AS BIRRAS DO MEU VELHO COM O FISCAL DA PREFEITURA DE MARILÂNDIA
Ah!, meu saudoso e querido velho! Quantas histórias eu teria pra contar sobre o senhor! Ainda hoje rememoramos aquelas observações espirituosas ou ranhetices típicas: que herdamos – por força genética – sem reclamação.
É.., meu velho era assim mesmo! Tudo perturbava, tudo incomodava. Era incapaz de ficar em qualquer lugar com alguma pessoa encostada, esfregando-se nele. Quantas vezes estávamos assistindo a um programa de televisão, espremidos no sofá, e ele se levantava e ia para a calçada, em busca de ar livre, de sossego ou, quem sabe, de espaço. Não admitia ficar apertado num mundo tão espaçoso!
Suas amizades eram selecionadas. Qualquer um que não comungasse suas ideias era automaticamente opositor, indigno de sua roda de bate-papos.
Tínhamos na família, um irmão de coração – a cor da pele era negra, mas a alma, a mais branca que conheci. Pelos longos anos de vida com a gente, tornara-se exatamente um de nós. E como ninguém é perfeito, era vascaíno. Isto desagradava sobremaneira o meu velho pai – camufladamente – flamenguista. Viviam discutindo e toda discussão tinha como princípio o futebol, e o final, bem, o final o mais imprevisível possível.
Um dia, convidamos os dois à assistirem uma pelada que faríamos num campo de uma das estações experimentais do Estado. Era um descampado próximo à cidade de Linhares ES. Ali os pernas-de-pau divertiam-se quase todas as tardes. Ficava a aproximadamente 300 metros do asfalto, trajeto que desfazíamos a pé.
Apesar de estarem sempre discutindo, os dois viviam juntos, sempre conversando sobre qualquer assunto. Não sendo futebol, havia possibilidade de algum acordo. Lá pelas tantas, já chegando ao campo, o Édi resolveu cutucar a onça com vara curta, afirmando que os juízes protegiam o Flamengo. Meu velho estacou furioso e a batida, como sempre, foi de frente, não sobrando nem os parafusos do para-choques. O fim da discussão acabou drástico:
– Olha aqui Édi, nóis dois num cumbina nem no caminho do inferno!
Era sempre assim: um desfecho próprio para terminar uma conversa sem acordo. E o mano Édi conhecia bem o velho e nunca se distraía da hora e momento exatos de se calar. Cedo ele aprendeu que meu velho fazia questão de arrematar a discussão, na certeza de que o último a falar sempre se considera o vencedor. Ele não se importava.
Pois bem, como o Édi, meu velho tinha outros dissidentes de suas ideias e de seus princípios. O fiscal da prefeitura era um deles.
Marilândia era distrito de Colatina, seu município. O prefeito enviara, então, para a vila, um fiscal baixote, de cabelos espessos e duros, nariz comprido e adunco, dentes grandes, físico razoável, tonalidade de voz enjoativa. Podia-se dizer que, realmente, era antipático e feio. Conversava o que dava o dia e jamais acatava a opinião de quem quer que fosse. Um prato cheio para o meu velho. O encontro dos dois proporcionava sempre aquilo que alguém definiu como ignorância, ou seja, o encontro de uma força irresistível contra um obstáculo intransponível. E as ideias do fiscal divergiam sempre das do meu pai, porque meu pai jamais aceitou acrescentar uma vírgula ao que ele achasse o certo.
Acontece que, diferentemente do Édi, o fiscal passou a perseguir meu pai, cobrando alguns impostos indevidos e fazendo certos comentários que poderiam até ser reais, porém jamais ditos por ele.
Todos sabiam, na vila, das amabilidades que os dois andavam trocando nos bate-papos dos bares, mas nunca houve uma preocupação maior, já que pela idade meu pai estava imune a qualquer agressão física. Era apenas um problema de filosofia, de pontos de vista, de orgulho, de teimosia, nada mais.
Nossa família tinha por hábito, todas as tardes após o jantar, reunir-se na frente de casa, num banco tosco de madeira, para falar do dia, dos problemas, das coisas engraçadas, dos planos… Ali se ouvia de tudo, falava-se de todos, criticava-se o mundo, solucionava-se até as crises internacionais.
O América F. C. era a principal vítima. Time da oposição, numa vila de mil habitantes, outra coisa não daria. Para ajudar na afinidade dos dois, o fiscal era americano doente e, meu velho, Marilândia E.C. mais doente ainda: todos seus filhos jogavam no time.
Estávamos ali reunidos falando ao alcance das cordas vocais, quando despontou na esquina do Milanezzi, montado numa velha e barulhenta bicicleta, o tal fiscal. Veio pedalando e passou bem rente a nós sem sequer virar a cabeça. Papai, que já o percebera desde a esquina, cutucou-me com o cotovelo, olhou dos lados – era mania para constatar que nenhum espião rondava por perto – e disse entre os dentes:
– Olha aqui, meu filho, se eu fosse uma PRAGA, montava neste fiscal e só apeava na entrada do cemitério.
– Que é isso, pai!, repreendi carinhosamente.
UM JOGUINHO ENTRE AMIGOS
Osvaldo, Gerson e Santos, Rubinho, Ávila e Juvenal, Paraguaio, Geninho, Otávio, Pirilo e Braguinha. Com esta escalação, o Botafogo alcançou um período glorioso de sua história. Nesse tempo eu era ainda criança e não tive, sequer, opção de livre escolha. O mano lIdebrando, botafoguense fanático e único irmão que permanecia constantemente em casa a meu lado, não teve muito trabalho em convencer-me ao triste destino. Já à época, eu gostava muito de futebol e, como centroavante, sempre conseguia o golzinho do time. Isto valeu-me a alcunha de Pirilo, que muito me enchia de orgulho. Em contrapartida, estava para sempre fadado a ser um sofredor. E, como corno apaixonado que chora pela mulher que vive com outros na orgia, ainda hoje perco noites de sono, até rezando para que o Botafogo não seja rebaixado. Para ser campeão? Ah, quem dera! Ah, mano, mano! Que Deus o tenha e o guarde de outra tão danosa opção.
Nossa fazenda – se assim se pode chamar uma área de noventa hectares – distava da vila de Marilândia, cinco quilômetros. Logo tratei de formar o meu próprio time, adquirindo reforços da própria vila. Neno, Capirda e Tononi eram os três elementos que hoje representariam Toninho Cerezo, Batista e Zico, pois formavam um meio-campo quase perfeito. O salário deles era pago com picolés e pães. O dinheiro eu conseguia vendendo ovos e verduras que minha santa irmã Elda (Corujão) me dava. A mana respeitava os mais infantis sonhos das crianças.
Quando cresci, ingressei na UACEC, agremiação estudantil do Colégio Estadual Conde de Linhares de Colatina. O time era formado de jovens com menos de 20 anos e, mesmo assim, foi vice-campeão do Estado. Depois voltei ao Marilândia E.C., onde fui presidente, técnico e jogador durante um longo período.
A idade foi chegando e os anos já não permitiam o peito a peito com profissionais velozes. Não querendo parar definitivamente, fundei meu próprio time, o FREGONA F. C., formado única e exclusivamente de familiares, namorados bem-intencionados de minhas sobrinhas, ou amigos íntimos.
Como sempre, pernas-de-pau não faltavam, e na justificativa de que somente 11 podiam jogar, os considerados piores ficavam pacatamente vestidos, esperando que alguém cansasse para entrar no segundo tempo. Isso nunca acontecia, porque os que entravam só saiam machucados, e bem machucados. No começo eram peladinhas inexpressivas, mas no fim já nos atrevíamos a enfrentar as melhores equipes não profissionais do Espírito Santo.
Pela pontualidade, comportamento e organização, éramos constantemente chamados para abrilhantar festejos. Foi quando, por ocasião da festa da padroeira da Barra do Triunfo, aceitamos o convite para jogar. A Barra do Triunfo era considerada perigosa e violenta, mas o oficio mal escrito, garantia: “será um joguinho entre amigos, não precisam se preocupar.” Acreditamos.
Churrasco, baile, muitas meninas…. Com entusiasmo qualificado preparamo-nos a semana inteira. Alugamos ônibus para a torcida, além dos oito automóveis particulares da comitiva. Afinal, a festa era de arromba.
A vila ficava situada entre a cidade de Linhares e a capital do Estado. Encravada entre montanhas, deixava transparecer vestígios Maias, tal a semelhança com as construções daquele povo. O que mais impressionava era o campo de futebol, lá no pico. A quem olhasse de longe, era impossível imaginar que lá em cima houvesse uma quadra de basquete, quanto mais, campo de futebol.
De cara percebi que, entre as cinco mil pessoas supostamente presentes, duas mil e novecentas estavam embriagadas. Fogos pipocavam a todo instante, a banda incansável, qual braços de Moisés estendidos na travessia do Mar Vermelho, mantinha animados os presentes. As mocinhas desfilavam com o charme peculiar de 30 anos atrás: lacinhos e rosas vermelhas alfinetadas nos cabelos e vestidos, estes, sempre de cores berrantes. Nada mais havia de diferente de uma autêntica festa do interior. Sinceramente, era bonito de se ver.
Quando entramos no gramado, percebi que uma muralha humana compacta fazia as divisórias do campo, com gente acotovelando-se freneticamente.
– Cadê o filho da puta do refi, que não começa este jogo? – Berrou uma voz rouca de um canto qualquer, na mais inconfundível prova de que, naquele recanto antes pacato, o louco que se propusesse apitar receberia adjetivos desconhecidos que nem Nário daria o significado.
Como sem juiz não haveria jogo e como não aparecesse qualquer voluntário, impusemos ao mano Dolmino (Cranuto), a árdua tarefa. Mal a bola saiu, nosso ponteiro levou uma rasteira que precisou ser substituído. O mano apitou. Um brutamonte entrou em campo e disse que futebol era pra homem e que aquilo não fora falta. O mano, ao ouvir aquilo, rodou o apito no dedo, deixando que um sibilo estridente apontasse a direção que o mesmo havia tomado. Os deixa-pra-lá; continue apitando; isso é assim mesmo… não funcionaram.
– Nesta não entro nem morto – foi taxativo o mano.
– Ainda bem – condescendi aliviado.
Trinta minutos depois, nova vítima era apresentada para o holocausto. Bermuda Lee, camisa branca com as pontas amarradas á altura da cintura, bigode austero, incisivos desgastados pelo cachimbo. Pela apresentação, ficava óbvio que seria preferível o juiz de Itália x Uruguai pelo Mundialito. Reuniu os jogadores e, não fossem os apupos da torcida, talvez o futebol seria trocado pela mais estúpida oratória de que se teve notícia até então.
– Óia aqui, não sei apitá, mais vô quebrá o gaio. Agora tem uma coisa, aqui quem manda sô eu. Boto pra fora o primeiro que quebrá a perna do ôtro…
Em cada frase, um calafrio perpassava-me a espinha, mas, enfim, fosse como Deus quisesse. Afinal, apesar dos pesares, só mesmo um louco idiota tomaria o apito naquelas circunstâncias.
Saiu a bola e não tardou para que sofrêssemos o primeiro gol no mais incrível impedimento. Pressionamos o juiz inutilmente:
– Bola no centro. Entrô, é gol.
– Mas, senhor juiz, o atacante estava impedido, totalmente sozinho na frente da zaga no momento do lançamento. Nossos zagueiros estavam quase no meio do campo!?
– Lugar de béqui é na ária. Quem mandô saí?
Como ninguém realmente tivesse ordenado aos zagueiros para abandonarem a área, o juiz manteve sua decisão e a partida foi reiniciada, já debaixo de um clima tenso.
A multidão frenética pedia “mais um” e a gente ia se defendendo como podia do entusiasmo da moçada adversária. Por sorte, o barulho ensurdecedor impedia-nos de ouvir todos os “elogios”.
Neivaldo (Fincãozinho), meu sobrinho, recebe uma bola e tenta levantar a cabeça à cata de um companheiro. Um torcedor aplica-lhe violenta tesoura nos rins e o deixa estatelado. Reajo com um cascudo na nuca do agressor e, ato contínuo, transporto para o centro do gramado, no cogote, um brutamonte de 90 quilos. Só desgrudou quando eu, não suportando mais seus cocorotes e seu peso, desmunhequei. Dali mesmo ele voltou com três sobrinhos meus na garupa até o ponto em que havia montado em mim.
Adalho (Velhão), meu saudoso mano, pacato e apaziguador, penetrou na confusão e levantou os braços pedindo calma. Recebeu um direto no queixo que lhe valeu três delicados pontos. Arlindo (Quoque, Grapuá), nosso Golias moderno, contra-atacou distribuindo pancadas sem prévia verificação: feriu mais companheiros que adversários. Recebeu também um “ponta de queixo” que o deixou tomando sopa várias semanas.
Cláudio (Mênego Canarim), num ato suicida, penetrou na multidão para lavar a honra do velho pai. Conseguiu seu intento, mas teve seu nariz deslocado alguns centímetros.
Perdi o equilíbrio e fui ao solo. Qual filmador de Fórmula 1 em ponta de pista, vi “tetinhas” longínquas avolumarem-se instantaneamente e, pelo chulé percebido, notei que uma chuteira mal lavada havia ameaçado minha carteira de identidade. Passou rente ao nariz e quis Deus que errasse o alvo, pois caso contrário Pitangui teria sérios problemas. Por sorte, um chute no traseiro equilibrou-me e pude me levantar, tomando posição de defesa. De pé pude ver, por instantes, a maior pancadaria de minha vida.
De repente, um estampido (de uma bombinha) seguido de um grito vulcânico:
– Parem, mataram um aqui!
Braços que à velocidade de 100 quilômetros horários partiam em direção a narizes distraídos, brecaram. Todos os olhares convergiram para um lugar comum: o morto. Caído, roxo, olhos virados, lá estava meu querido sobrinho Joelson (Cancão) estirado no gramado qual soldado vencido. O Delcir (Cirão), vendo aquilo, aproveitou a distração, e numa de Bruce Lee, levou a nocaute um abestalhado qualquer que também ficara estático perante o acontecimento. Houve indícios de que a luta se reiniciaria, mas um alto lá, cheio de autoridade, refreou os ânimos acirrados. Com um filete de sangue escorrendo pelo rosto, o Velhão gritou aos quatro ventos:
– Se meu filho morrer mesmo, mato até os cavalos desta merda!
E tal era a ira que transparecia nos seus olhos que ninguém ousou duvidar de suas ameaças. Para sorte dos equinos, o Joelson veio a si, e foi impossível convencê-lo que não havia sido atropelado por um caminhão.
Munhecas inchadas, torcicolos, narizes desposicionados, hematomas, estiramentos, lábios leporinos fabricados a muque, arranhões de primeiro grau, dentes estremecidos e um mísero empate, foi o saldo de nosso “joguinho entre amigos”.
FILHO DE PEIXE, NEM SEMPRE É PEIXINHO
Meus sobrinhos não eram lá muito de trocar as paqueras de um domingo por qualquer outro esporte, mormente caçadas. Mas, de tanto ouvirem comentários sobre as emoções das selvas, um dia resolveram, dois deles, participar. Cláudio, nosso Meneghin e Jadilson, o Zeca, ambos filhos do mais perfeito e imbatível caçador de inhambus do Brasil.
Saímos de madrugada. A caçada seria num capão de mata em que estavam insulados remanescentes dos jaós da mata, alguns tururins, urubas, chororós e chorões. Naquela época nem se pensava em ciência, quanto mais no valor científico de certos pássaros no equilíbrio ecológico dos ecossistemas. Por isso mesmo, o pensamento era abater para comer. Ecologia? Os caçadores nem sabiam do significado da palavra.
A estrada era péssima. O sereno da madrugada prendia a poeira no para-brisas, embaçando a visão e emporcalhando tudo. Mas valia a pena e lá fomos nós, numa euforia de fazer inveja à comemoração de um gol brasileiro no final de uma Copa do Mundo.
Chegamos ao local ainda antes de o sol nascer. Bem, eu não estaria aqui relatando este fato, se na hora de municiar minha espingarda não percebesse que as cápsulas haviam ficado em casa. Aquele rubor costumeiro que sempre sobe ao rosto, assomou-se como se fosse um elevador de trabalho, trazendo consigo todo ódio de uma frustração daquele calibre.
Meus sobrinhos fitaram-me entre indignação e pena e não se furtaram às duras observações de que estava ficando velho e caduco muito depressa. Para meu azar, meus sobrinhos estavam com espingardas de calibres diferentes. Tive de retornar para Linhares.
Todo cuidado e cautela da vinda foram subtraídos na volta. Com a graça de Deus, não encontramos nenhum veículo nas curvas.
A distância foi desfeita rapidamente pela velocidade imprimida, e me dei por feliz quando tornei ao lugar da caçada com os cartuchos, e notei apenas a ausência, no carro, dos canos de escapamento.
Os jaós do litoral, assim conhecidos vulgarmente, estavam piando por todos os lados e isso encheu-nos de esperanças. Escolhemos um lugar propício aos nossos planos. Zeca empoleirou-se à direita e Nanico à esquerda, ficando eu, como piador, no meio. Antes frisei dezenas de vezes minha posição aos incipientes, para que não me confundissem, no calor das emoções, com qualquer bicho distraído na linha de fogo.
Iniciei o chamamento. O jaó mais próximo cessou seus piados e, minutos após, um disparo, outro disparo… outro disparo e mais outro disparo. Para completar, o cartão de visitas do “renomado caçador”:
– Corre tio! Corre que o desgraçado está indo embora.
A balbúrdia já estava feita e acorri célere. Nos quatro disparos a queima roupa, que ameaçaria, pelo carrego, ao mais resistente rinoceronte, apenas uma das asas da ave havia sido atingida. Depois do pega-aqui, pega-ali, cerca, pula, cuidado etc., agarramos o fugitivo. Olhos acesos pela alegria, o Zeca apalpava as penas, assoprava-as para constatar a chumbada e por fim o pior:
– Está vendo só o que é um caçador, papudo?!
A pobre ave não respondeu à subjeção, mas não era necessário ser muito perspicaz para se supor o álibi de seus olhinhos se estivesse viva.
– Às posições – ordenei.
Jaó no alforje, posições tomadas. A seguir, o intervalo de praxe para que o silêncio retornasse à floresta. De minha choça eu podia ver, nitidamente, os dois “franco-atiradores” que, em posições ameaçadoras, minuto após minuto, apontavam a arma para alguma direção. De repente, qual perdigueiro treinado que localiza um perdigão, o Nanico se torna imóvel, deixando a cabeça numa posição faquireana. Fiquei apreensivo, pois o que havia de mosquitos disputando seu rosto não era menos digno de menção. A cada segundo, a parte descoberta de seu corpo ia ficando pontilhada de muriçocas. Ele se movia apenas para respirar. Mais um pouco e seu braço direito, com a velocidade de um ponteiro de relógio, foi deixando sua posição normal e tomando o rumo do gatilho. Concomitantemente todo seu corpo foi-se contorcendo na direção de seu olhar. Vi que a arma se elevava sinistramente em direção a algo que, pela tensão, bem podia ser um veado ou um mutum. Pontaria demorada, um tremendo disparo e um grito vulcânico:
– Corre! Corre que chumbei um macuco!
Bem, isso era demais até para mim. Arranquei célere e fui em socorro. Zeca pula do poleiro, Nanico também. O transtorno foi geral.
– Devagar tio, pode ser que esteja machucado e pode voar.
– Onde está?
– Devagar, devagar… ali, naquele buraco.
Firmei os olhos e vislumbrei algo marrom-acinzentado. Confesso que um calafrio vadeou por minha espinha. Depois agucei os ouvidos e não tive dúvidas que um ruído de tênue ranger de dentes chegava aos meus ouvidos.
– Diabos – pensei, que espécie de macuco é esta que possui dentes?
Estaria eu preste a celebrizar-me ante a descoberta de um descendente do Archaeopteryx, com sua origem reptiliana ainda acentuada?
Pé-ante-pé, aproximei-me. Dedo no gatilho; pontaria firme. Pelos flancos, mais duas espingardas apontavam para o mesmo local. Era difícil, tremendamente difícil para quem quer que estivesse com vida naquele buraco, escapar. Umas folhas dependuradas de pindoba dificultavam minha visão, mas não o bastante para, depois de alguns passos reconhecer, no galináceo do Meneghin: o mais pacato, indefeso, abestalhado, lento e agonizante jaboti.
As reações alérgicas das picadas dos mosquitos no rosto do Meneghin atestavam o grande sacrifício e o alto preço daquele imperdoável equívoco.
– Aos poleiros! – Sugeri.
Eles obedeceram, mas, com todo aquele barulho, até a mais idiota ameba ficaria assustada. Passamos horas e horas sem que nada acontecesse de anormal, fim das quais quase engoli o pio pelo susto de um disparo de pólvora comum.
Para variar, os gritos de praxe e o pulo do poleiro. Cláudio e eu mantivemos nossas posições, pois ainda não havíamos sido convocados a intervir. Disparo após disparo, mata adentro. O eco dos tiros foram paulatinamente diminuindo, até o ponto de apenas um som quase imperceptível chamar nossa atenção para o perigo daquele caçador de “meia-tigela” perder-se naquelas matas.
Saímos dos nossos esconderijos e aguçamos os ouvidos. A direção ficou confirmada, mas perdemos a calma quando os disparos cessaram, furtando-nos a localização. Prendemos até a respiração e o Nanico atestou ouvir, então, um grito sumido à esquerda do lugar em que nos encontrávamos.
– Sigamos para lá. Vamos marcando o caminho para evitar dissabores maiores – sugeri por ser o mais experiente.
Mas que “troço” estaria o Zeca perseguindo? Depois de uns cem metros de caminhada, já ficavam mais nítidos os chamados e pudemos ouvir claramente:
– Tio, ô, tio!?
– Que é? – Respondi aflito.
– Traga cartuchos. Depressa.
– Nanico – disse eu – fiquei aqui para não nos desnortearmos. Irei sem fazer picada para ganhar tempo. O Zeca deve ter encontrado um leão que escapou da jaula de um circo qualquer.
Quando ofegante cheguei, percebi o Jadilson (Zeca) totalmente molhado de suor, olhos fixos numa moita, mão direita espalmada para o meu lado com os dedos para cima, ordenando-me cautela.
É caros leitores, lá estava baleado, semimorto e ofegante, um mísero lagarto, ou teiú, como dizem os nordestinos. Sua cabeça enfiada entre paus podres, a cauda toda esfarrapada de chumbo, imóvel. Desengatilhei a arma e o apanhei. Era visível e notório a diferença de peso da traseira para a dianteira. Transportava, pelo menos, uns quatrocentos gramas de chumbo.
O mais engraçado é que, até hoje, não se pode falar em caçadas, que os dois se intrometem e exigem que eu comprove os dotes cinegéticos deles não explorados, mas latentes. Como dizia meu velho e saudoso pai: “Se isto os satisfaz, a mim não incomoda”.
LOUCOS NO PEDAÇO
Dia festivo. Sol bonito. Bem cedo, algazarra de crianças e mesmo de marmanjos mais afoitos. O toque de alvorada foi dado pelo Arlindo, que passou de casa em casa arremessando punhados de seixo sobre as folhas de amianto, causando sustos de perturbar a própria insulina. Depois dos palavrões de praxe, todo mundo levantou e foi cuidar de sua função específica.
Arlindo foi à margem do Tocantins alugar o barco; Nini providenciou o carvão; Brando, a carne para o churrasco; Delcir e Vicente, as bebidas, e assim por diante. Às nove horas já estávamos todos nas margens do belo rio Tocantins, aguardando apenas a chegada do Nini que fora apanhar a namorada na casa da irmã. Lá, morava apenas uma sendeira, já que o marido, piloto de avião, caíra na selva amazônica e ninguém, até então, tivera versão concreta sobre seu paradeiro. Vez por outra chegavam notícias de que ele havia sido visto no Planalto Central, ao sul do Maranhão, convivendo com os Rankokamekra-Canela; outras vezes, apareciam índios astutos que prometiam informações e até aceitavam determinada importância para trazê-lo vivo a Imperatriz. Contudo, isto nunca foi além de histórias pitorescas favoráveis à subsistência dos jornais da cidade, e de índios espertalhões.
Pois bem, o tempo foi passando e nada do Nini chegar com as duas, já que traria também a namorada do Vilmar, irmã de sua pequena. Impacientes, cada um protestando à sua maneira, aguardávamos a chegada do retardatário. Exatamente 90 minutos depois, percebemos que um Fiat branco despontava na rampa que levava à boate Fly-Back. Dentro dele, apenas o motorista, cuja cara refletia um grande transtorno.
Como a casa era habitada por apenas três mulheres, sendo duas delas íntimas namoradas, o Nini, no seu jeitão espalhafatoso, foi chegando, abrindo a porta à maneira da defesa vascaína, desfechando pontapés, escancarando-a ao máximo e gritando em seguida:
– Como é gatonas, estão prontas? Isto é hora de estar dormindo? Vou já apanhá-las no colo…
Tentou dar três passos em direção ao quarto, quando um som rouco, pouco amistoso, imprevisível e inesperado, interceptou-lhe as intenções:
– Minhas filhas, quem é este moleque que está “latindo” aí na sala?
Recuar seria humilhante. Continuar, arriscado. Parar ali, um enigma. Enquanto decidia, teve o escasso tempo de ouvir tudo aquilo de pior que um homem pode escutar em espaço de tempo exíguo, e mais, na presença da namorada.
É que o pai das meninas, fazendeiro de Montes-Altos, havia chegado tarde da noite. Passara a madrugada com tremenda enxaqueca: “ideal” para a intimidade exagerada de quem quer que fosse.
Depois da história, zarpamos, com o Vilmar olhando seu mano desastrado com muita indignação. Duas horas depois aportamos numa pequena enseada, circundada por praia limpa e convidativa. Na margem, mangueiras, todas elas amarelinhas de frutos maduros. Todos queriam ser o primeiro a chegar. O lugar era pitoresco, ameno, qualquer coisa paradisíaca.
O Venturim, nosso pedreiro, era um rapaz muito irrequieto e brincalhão e também muito ousado. Querendo talvez impressionar as garotas, escolheu uma mangueira das mais altas e começou a escalá-la com a intenção clara de tentar o último dos galhos.
A espécie era conhecida por manga-mamão e, realmente, não desmerecia o nome, pois pesava aproximadamente um quilo. Delcir, o inverso do Venturim, calmo e pacato, jazia nas proximidades, já com a cara toda lambuzada. No momento, chupava uma carambola que, segundo ele, era uma nova espécie de limão ainda não catalogado.
Nestas alturas, o Venturim, no último dos galhos, colhe uma enorme manga e joga para o Delcir, só gritando o “lá vai”, quando esta já havia ultrapassado a metade do caminho. Ainda meio preguiçoso, Delcir levantou, ou melhor, tentou levantar a cabeça e, como não poderia ser diferente, foi a nocaute.
A manga estatelou-se contra sua cabeça. Ele desmaiou. Muita água fria no rosto e, aos poucos, ele voltou ao normal. Bem, normal aqui indica apenas a ideia de sentidos, pois o Cirão despertou como deve despertar um urso polar atrapalhado em sua hibernação. Amassou meio hectare de capim angola, desafiando o Venturim e seus “doídos”. Como ninguém se apresentasse, sentou-se à sombra da mangueira e quietou-se.
Tendo sido normalizado o primeiro impasse, cada um foi tomando seu caniço e escolhendo um poço qualquer. Afinal, os peixes eram quase uma questão de honra, pois o encarregado da carne para o churrasco havia falhado. Vilmar, com seu molinete sofisticado, não quis sequer assistência, o mesmo acontecendo com o Nini, que logo desapareceu. E assim, cada um foi tomando o destino que mais lhe parecia favorável. Arlindo, o velho e astuto Grapuá, ficou na mira de todos, num remanso cuja margem era íngreme e de pedras. Estava iniciada a pescaria.
As mulheres se posicionaram como torcedoras fanáticas de um jogo, esperando cada uma por seu herói. Muitas horas depois, os primeiros estômagos menos pacientes começaram os reclames, sem que nenhum pescador se apresentasse.
Percebendo o fracasso, Delcir descobriu umas latas de sardinhas que alguém menos otimista levou e, sorrateiramente, fez uma farofa muito disputada. Foi nessa altura que um grito de guerra cortou o silêncio, fazendo com que todas as atenções se voltassem para o remanso. Linha tensa, olhos fixos, braços rijos, Arlindo tentava segurar um peixe que parecia grande. Marolas fortes vinham à tona, aumentando ainda mais a expectativa em torno do que apareceria.
Qual general vitorioso, o Grapuá firmava a linha, diante dos aplausos da plateia faminta. Paulatinamente o peixe foi cansando e o velho pescador recolhendo a linha. Aí aconteceu o imprevisto, consequência da falta de calma do Grapuá. Quando viu o peixe nas margens, temendo qualquer reação do mesmo, arremessou-o para o barranco em declive. Depois, percebendo que ao debater-se, o peixe voltava para as águas, atirou-se sobre o mesmo. Não podia desperdiçar os “ipiurras” que ecoavam em toda extensão da margem. Não se deu conta de que se tratava de um mangangá, assim chamado pelos caboclos por causa do temível e venenoso ferrão.
Ao abafá-lo, o ferrão entrou na polpa do polegar e apresentou a ponta aguçada do outro lado. Não havia mais medo de perdê-lo. Sem notar a desgraça, a turma continuava a gritaria, só cessada alguns segundos depois quando todos notaram a fisionomia lívida do pescador. O pior é que o ferrão era daqueles tipo espinho de ouriço-cacheiro: só entra e, se tiver de sair, só o faz rasgando a carne. Percebendo tudo, matamos o peixe, enquanto o Brando afiava o canivete para a cirurgia improvisada. Cortamos o ferrão e retiramo-lo por cima, enquanto o Grapuá, com mais de dois metros de altura, cento e tantos quilos, embrutecido pela árdua profissão de madeireiro, desmaiava.
Nini e Vilmar, os mais cotados, chegaram também com um mísero bagre. Diante de tais fracassos, incumbimos o pessoal a se virar e não foi difícil para o primo Orlando encontrar uma trilha que iria dar na casa de um ribeirinho pescador. Compramos quinze quilos de pacu-manteiga. Cegos de fome, almoçamos, às 16h.
A volta não foi menos trágica. O barco era do tipo dois andares, sendo o terraço bastante resistente para suportar o peso de toda a tripulação. Começou a confusão. Alguém de baixo percebeu uma perna comprida e cabeluda dependurada ao bel prazer. Um olhar para o lado e lá estava um litro de óleo queimado. A resposta foi uma bagaçada violenta que passou por várias cabeças indo estatelar-se contra uma das paredes do barco.
Alguém encheu um litro d’água e, sem olhar, arremessou sobre o barco, acertando em cheio o rosto de minha mulher que, não desmerecendo a alcunha de “Ventania”, quase levou a embarcação ao naufrágio, ameaçando até mesmo nosso “Bate-Estacas” Vilmar.
Tendo a maioria considerado isto o melhor passatempo da viagem, a batalha continuou e, desta feita, mais acirrada. Quem enfiasse a cabeça para fora para localizar qualquer adversário levava uma remada no crânio, daquela dos áureos tempos do “Struco Lodai”; quem baixasse para olhar para dentro, corria o risco de perder a parte apresentada. Cada um procurava um lugar mais seguro, menos vulnerável para defender-se de seus inimigos comuns.
E assim, duas horas depois, quando aportamos, dois bandos distintos de verdadeiros inimigos desceram, tendo cada qual a promessa de descontar no próximo convescote.
Não nego um temperozinho, mas nossa família era mesmo assim!…