O EMPLASTRO DA TIA DINDINHA
Não acredito que em Biafra – mesmo quando as tropas federais nigerianas retalharam a região vencendo os ibos pela fome – tenha existido uma criança mais faminta do que eu nos meus tempos de crescimento..
Solitária é um trematódeo. Há três espécies bem conhecidas e, com certeza, desafiando todas as normas científicas conhecidas, eu devia ter quatro ou cinco de cada espécie desses parasitas dentro de minha barriga, cada uma mais insaciável que a outra. E eu, para dar conta das famigeradas, comia tudo o que se parecesse com alimento. É que na roça, sempre que alguém come demais, diz-se que “está com a solitária”. Vocês conhecem bem o ditado. Eu, certamente, estava com muitas, de todas as espécies!.
Naquele tempo, acompanhava as buchas de bombril, um pedacinho de sabão quadradinho de cor marrom. O primeiro que vi, é claro, foi confundido com uma barrinha de chocolate e, como que hipnotizado, só notei a diferença quando minha boca se encheu de espuma. Como um gatinho que pula em cima de tudo que se mexe, e se dá mal quando o faz a insetos peçonhentos, também eu tive muito que apanhar para aprender o que podia ou não ser comido! Mas, entre todos os micos que paguei nessa aprendizagem, o pior veio de minha tia Dindinha – uma velhota que viera do Rio de Janeiro para nos visitar. Nascera na cidade de Muqui-ES e morreu acreditando em benzimentos, chás e emplastros, mesmo depois que se mudou para a cidade grande em que havia remédio para todos os males.
Emplastro! Era uma mistura de farinha com vinagre, sal, azeite e sei lá que diabos mais. Devia ser alguma receita macabra perdida por uma bruxa num dia de temporal em que a vassoura deu pane. Aquilo era cozido numa frigideira velha e corrugada, enrolado num pano fino de algodão e depois colocado em cima de partes inflamadas. Tia Dindinha estava com um tumor na canela que mais se parecia com um joelho sobressalente em estado de putrefação. Antibióticos? Nem pensar. Foi para o fogão e fez o diabo do emplastro, usou-o quanto pôde em cima do tumor e depois deixou-o, sem o pano, dentro da velha frigideira, que era usada só para poções que serviriam de remédio aos porcos, gado, galinhas e.… velhas malucas.
Eram dezesseis horas! Hora fatídica! Nesse horário, até hoje, só abro a boca para bocejar, tal o trauma da lembrança. Voltando da mexeriqueira do tio Gin, com um espinho enfiado na sola do pé direito, adentrei na cozinha com a fome de sempre. Lá em casa não havia sobras, por isso, fiquei surpreso quando percebi aquele beiju ao ponto, inteiramente a meu dispor, ainda quentinho e com sinais de molho de tomate por cima. Nunca haviam feito aquilo comigo! Era bom demais para ser verdade! Em três dentadas, dei-lhe fim, já que podia ter de dividi-lo com algum intruso inesperado… E havia muitos na família! Não percebi nada de errado. Fui cuidar do espinho e depois saí para o fundão: um poço do riacho Liberdade. Tomei banho e, ao retornar, ouvi discussões na cozinha. Era a tia Dindinha, esbravejando, pirraçando como criança malcriada, querendo saber, a qualquer preço, quem lhe havia jogado o emplastro do tumor fora.
Minhas vistas escureceram, o estômago (mesmo sendo de avestruz), embrulhou-se. Corri para o quintal e comecei a rogar tantas pragas na tia Dindinha que, duas semanas depois ela teve de ser internada em Colatina. E digo mais, se 2% das pragas que roguei tivessem sido acatadas pelo diabo, com certeza ela teria perdido a perna. Ainda hoje nem posso ver qualquer bolo ou alimento que contenha farinha ou farelo de coco por cima!
A DU MOULIN MOCHA
Logo que surgiram no mercado capixaba as espingardas mochas, o Velhão – apelido de nosso primogênito Adalho – adquiriu uma, francesa, calibre 32, Du Moulin. Aquela inovação não era aceita, principalmente pelos imigrantes italianos acostumados com os velhos trabucos de cão.
A notícia logo se espalhou pelo vilarejo e, quando em vez, batia à porta um curioso qualquer que queria “ver e confirmar com as mãos”, a estranha arma. Meu pai, no começo, fazia parte daqueles que desdenhavam os franceses, achando “aquela coisa” sem qualquer versatilidade para as caçadas de pacas. Com o tempo, porém, foi adaptando-se e, um pouco mais, só participava de caçadas se aquela espingarda ficasse com ele.
Levava-a para aonde ia, sem perdoar, jamais, o velho amigo Antônio Scarpatt que dissera, certa vez, que ele possuía um calo seco no ombro de tanto carregá-la. Mas, apesar das palavras do Scarpatt terem atingido em cheio o brio de meu pai, tínhamos de admitir que, o que insinuara, era a mais pura verdade. O calo não era lá tão acentuado, mais atestava a veracidade da acusação.
Depois dos cinquenta anos, devido as constantes crises alérgicas de asma, meu pai parou definitivamente de trabalhar. Para não definhar de tédio, passou a ocupar o tempo perseguindo os chororões do morro do Canal, os tururins da chapada do Catelan e as pacas de um capão de mata dos Lorenzonis. Estas últimas eram seu eterno desafio, já que as pacas desfrutavam da vantagem do riacho São Pedro e da morosidade de meu velho. E os anos começavam e terminavam sem que o Chapocão (cão retaco, branco e cotó) se visse compensado de suas andanças por aqueles extensos chapadões, saboreando a cabeça do roedor perseguido. Aliás, o Chapocão já conhecia todas as tocas daqueles roedores e levava, acredito, tudo na mais sã esportividade. Contentava-se em fazê-los sair dos buracos e jogá-los nas águas frias do São Pedro, o que sempre lhe garantia, ao retornar, um naco suculento de polenta.
A fazenda dos Lorenzonis ficava a um quilômetro da vila, na estrada que ligava Marilândia ao distrito de São Pedro. Nela havia uma serraria em que trabalhava o clã Lorenzoni. Todos eles já estavam acostumados a ver meu pai com seu boné tipo inglês, calça de cáqui, facão Policarpo Pupim, camisa de mescla, cachorro cotó branco, espingarda no ombro, passar por ali a passos trôpegos, em direção à mata. Como sempre ia e vinha de mãos abanando, os Lorenzonis nunca se preocuparam em demonstrar ciúmes pelas pacas de suas propriedades.
Contudo, o boato da Du Moulin mocha havia corrido bastante e logo chegou aos ouvidos dos Lorenzonis que, nessa manhã, estavam aguardando aquela hora infalível da passagem de meu velho. Estavam sentados sobre os toros do tombadouro, quando meu pai chegou e os cumprimentou. Falaram por algum tempo de outros assuntos, chegando, por fim, ao motivo único daquela reunião dos Lorenzonis, ali em cima de toros estocados à beira da estrada.
– Soubemos que comprou uma espingarda sem cão.
– Foi o Adalho, meu filho.
Foi dizendo isso e passando a arma para os mais curiosos que, avidamente, correram mãos e olhos, detalhadamente.
– Isto deve ser uma porcaria – comentou o velho Henrique, alisando com a mão o lugar onde deveriam estar posicionados os cães.
– Muito perigosa – acrescentou o João, irmão mais novo do Henrique.
– Qual nada – retrucou meu pai, tomando a arma com o propósito de desfazer as tantas impressões pejorativas.
Os Lorenzonis acercaram-se como meninas que brincam de roda, enquanto meu velho, entusiasmado, enumerava as vantagens da arma:
– Esta não oferece qualquer perigo. É extremamente versátil, pois num único escorregar do polegar, a gente tem os dois cães internos engatilhados, prontos para um disparo duplo, se for necessário.
E em cada argumento e explicação, mais os Lorenzonis se agrupavam, formando um bloco compacto. No meio, meu pai falava animado, sem se importar com a impaciência do Chapocão, que latia afoito e desassossegadamente, de cima do barranco da estrada. E era tal a aglutinação de pessoas que a espingarda passou a ser examinada na vertical (graças a Deus que assim o foi) pois lhe era impossível dar outra posição.
E quando todo aquele palavreado já parecia surtir o efeito desejado, com alguns Lorenzonis já até admitindo os argumentos que estavam sendo apresentados, eis que um estrondo ensurdecedor se fez ouvir, cobrindo a todos com uma nuvem de fumaça embaçadora. Quando essa se desfez, o que havia de Lorenzonis arrepiados e boquiabertos, não era fácil! No meio, qual boneco de cera, meu pai se mantinha ereto, lívido e imóvel.
Realmente, ainda dessa feita, os franceses não convenceriam os velhos italianos: continuaria sendo uma porcaria perigosa, aquela arma sem cães.
Em casa, calmo e inconformado, meu pai procurava – sem encontrar – a razão daquela detonação misteriosa. Havia sido um vexame, um grande vexame, capaz, inclusive, de fazer com que meu velho pai abandonasse, por completo, aquelas caçadas de pacas lá nos Lorenzonis. Os roedores devem ter mandado “celebrar missas em ações de graças pelo acontecido”, pois nunca mais precisaram acordar cedo, correr na frente de um cachorro idiota e mergulhar nas águas geladas do córrego São Pedro.
CAPIXABAS CAÇANDO NA BAHIA
Argeu é o nome de um dos meus primos que, hoje, já cansado, desfruta a velhice na paz de seu bangalô, na praia de Iriri – ES. Alto, forte, trabalhador e intempestivo, é o responsável por uma grande quantidade de belas construções que ainda hoje se mostram imponentes na cidade de Linhares – ES. Além de construtor, ele era maluco por caçadas de pacas e perdizes. Possuía uma matilha esganiçada que espantava vizinhos, pois eram tantos uivos e latidos durante as noites, que ninguém ousava instalar-se a um quilômetro de sua casa. Era também caçador de perdizes e, neste esporte nunca houve quem a ele se igualasse. Nem a pedido ele perdoava uma perdiz depois de levantada pelos seus perdigueiros.
O provérbio diz que “gado ruim por si se junta” e foi assim que ele formou um grupo de caçadores que sempre se reunia num boteco qualquer da cidade para contar “mentiras” e programar excursões duvidosas. E como num grupo de homens desocupados reunidos sempre mulher acaba sendo o assunto preferido, alguém teve a triste ideia de marcar uma caçada à Bahia, levando prostitutas para os deleites noturnos. A ideia foi aprovada – era de se esperar – unanimemente: aprovada e executada em menos de 15 dias. Nas primeiras vezes foi fácil enganar as esposas, sempre simples mulheres criadas no interior. Enquanto eles se divertiam por lá, as pobres e ingênuas esposas ficavam de terço na mão, rogando aos céus para que nada lhes acontecesse naquele ambiente hostil de cobras e insetos peçonhentos.
Quando retornavam eram recebidos com todo carinho: banho quente, comida especial, roupa de cama limpinha… Diante de tanta ingenuidade, logo eles escolheram uma fazenda estratégica na Bahia. Convenceram o capataz e até conseguiram um barraco só para eles, com sete cubículos especiais para suas luas de mel, agora, mensais.
Para compensar a hospitalidade do gerente, eles sempre levavam, também para ele, uma mulher de programa. Com tal regalia, o capataz, logo que o mensageiro avisou que eles estavam para chegar, foi ao povoado de Santa Maria Eterna e comprou um “novo enxoval”.
Enquanto isso, ingenuamente, por pura intuição… ou sugestão do diabo… ou intercessão dos anjos, faltando apenas três dias para a saída dos “caçadores de paca”, as mulheres deles resolveram acompanhá-los. Devia ser um lugar maravilhoso – pensavam elas – já que seus maridos estavam tão ansiosos para partir.
Diante do imprevisto, o meu primo Argeu ficou em apuros. Depois de tentar em vão demover sua mulher daquela ideia inesperada, começou a contatar os companheiros que, por sua vez, também estavam com o mesmo problema. Bem, não tendo jeito mesmo, eles, sorrateiramente, avisaram às “outras mulheres” do ocorrido e assumiram o mico. Partiram com suas digníssimas mesmo, totalmente desorientados e… desmotivados.
Ainda a quinhentos metros da sede da fazenda, eles, devidamente acompanhados de suas legítimas esposas, avistaram o capataz num verdadeiro uniforme de cowboy: calça jeans, camisa listrada de mangas compridas, correia com fivelões de metal, chapéu de couro, botas brilhando ao sol….
Ele veio correndo, abriu a cancela e já engolindo grosso, começou a conjeturar como seria a mulher que eles lhe haviam trazido. Argeu e sua turma entraram no terreiro e foram saltando, procurando um meio de despistar as mulheres e avisar o capataz do contratempo. Mas, para a infelicidade do Argeu, as legítimas esposas não tiravam os olhos daquele homem ridiculamente vestido, lá naquele cafundó do judas. E foi aí que o mico se consumou: o capataz enclavinhou a mão no queixo, passou em revista aquelas pobres mães desmazeladas, barrigudas e sofridas da viagem, e pronunciou a frase mais infeliz de sua vida… e da vida dos “caçadores de paca”:
– Putaquepariu, seu Argeu, desta vez o senhor trouxe uma putada runha que acho que não vai dá pra encará não.
Foi a última caçada de pacas que eles deram lá em Santa Maria Eterna. É…, bem dizia meu pai: “Quem muito faz, um dia cai.” Nem descarregaram as camionetas e, aí sim, durante meses, para suprir as necessidades sexuais, tiveram de procurar socorro nos prostíbulos do Pó, lugar promíscuo em que as serrarias de Linhares jogavam a serragem e que era habitado, principalmente, pelas tais “mulheres da vida”.
DENTRO DE CINCO MINUTOS, VOU SENTÁ O PAU
Quinze anos depois de fundada, Marilândia-ES inaugurou seu primeiro cinema: o CINE KID. O nome procedia, porque, enquanto existiu, nunca passou na tela um filme que não fosse faroeste. A bem da verdade, tentou-se algumas vezes Charles Chaplin, “Carlitos” e Oliver Hardy e Stan Laurel, “O gordo e o magro”. Mas, aqueles cowboys em seus cavalos, enfrentando os terríveis Peles Vermelhas lá no Mississipi, disparando mil tiros com o mesmo Colt sem recarregar, eram imbatíveis… nas cenas e na bilheteria. A qualidade nada devia às sombras chinesas projetadas sobre uma parede, cinco mil anos antes de Cristo.
Nós, crianças, já reconhecíamos a palavra western de cor e sauté. E se fosse John Wayne o xerife, aí até os agricultores montanheses de São Rafael, com seus sapatões descalcanhados, davam uma trégua à capina do café.
Era proprietário do cinema o comerciante Hilário Bérgami. Com dois metros de altura e pesando 170 quilos bem distribuídos, ele podia ser reconhecido rapidamente em qualquer ambiente. Sua força era descomunal. Certa feita, depois de vãs tentativas de oito passageiros, ele ergueu, sozinho, um dos lados da parte traseira de uma D-10 que havia caído no buraco de uma ponte.
O cinema dele só passava filmes aos sábados e domingos. Aos domingos havia a matinê para crianças. Os ingressos custavam menos e o grandalhão proprietário aceitava frangos, ovos, jacas… qualquer coisa que representasse o valor do ingresso. O cinema lotava.
Mesmo sem estudos, era ele o locutor do serviço de som. Grudado num microfone que pesava quase dois quilos, ele sentava na calçada do cinema e transmitia as notícias através de um enorme alto-falante pendurado no poste da esquina. A gente ficava por ali, na frente de sua sorveteria, lambendo picolés de groselha ou de coco: suas duas especialidades. De repente se ouvia o tão esperado anúncio:
– Senhoras e senhores, queira adquiri seus ingresso que dentro de cinco minuto eu vou sentá o pau.
E aí era aquela correria, pois o Hilário era pontual. Tanto que anunciava e já se ia levantando para acionar a máquina. Numa noite, por causa da pressa, no caminho, ele pisou no pé do Eurides Canal, um baixinho mal-humorado que também se espremia na fila para conseguir – como se fosse uma criança – uma cadeira bem na frente. Como só andava de lambretas – nome com que eram chamadas as sandálias de dedo naquela região – as unhas agredidas no labor da roça estavam avariadas e desprotegidas. O sapatão do Hilário, mais os 170 quilos de seu peso normal, mais a pressão do impulso para o passo seguinte, acabou “escalpando” o dedão do pé do Eurides. Sem se importar com a diferença física, ele reagiu furibundo:
– Não dá pra olhar onde mete o casco não, seu cavalão?
– Ô, Canal!, mi desculpe. Eu tava com pressa para começá o filme e não vi seu pé.
Animado com o aparente retraimento do gigante, o baixinho tentou se impor. Afinal, não é sempre que se tem a oportunidade de encontrar um grandalhão educado e manso. Por isso, pulando pra cima da calçada, o baixinho começou a vociferar insultos, chamando a atenção de meio-mundo. O povo acercou-se curioso diante daquela cena espalhafatosa e patética, não tão comum na vila.
Mas o baixinho deu azar, porque o Hilário, aos poucos, foi perdendo a paciência. Não percebendo que já passara da hora de cessar seu entusiasmo, o Eurides continuava ameaçador, dizendo que tamanho não era documento e que conhecia bem a passagem bíblica de Davi e Golias. A paciência minguada do Bérgami esgotou-se por completo. Reagiu contundente:
– Olha aqui, garnisé metido a besta, home de seu tipo eu enfio três no cu e ainda peido forgado.
O silêncio foi tumular. Só o chiado do alto-falante regulado sempre no volume máximo, lá pendurado no poste, era ouvido. Diante de tamanha humilhação, o Canalzinho resolveu arriscar sua última cartada. Riscou o pé no chão e fez menção de atacar: levou um mata-cobras na cabeça, dado de cima para baixo, que o encurtou mais alguns centímetros. Nocauteado, ele foi levado para dentro do bar, onde recuperou os sentidos depois de alguns litros de água fria no rosto.
O Bérgami, bufando como um touro peado, nem olhou para trás. Entrou no cinema, subiu a escada, ligou a máquina e, como havia prometido, “sentou o pau”.
NÃO SEI COMO, MAS SOBREVIVEMOS!
Não acredito que Osama Bin Laden tenha passado maior perigo na vida, fugindo dos bombardeios americanos no Afeganistão, do que nós ao tentarmos desfazer os três mil quilômetros de estradas de chão que, há 50 anos, separavam Goiânia-GO, de Rondônia-RO, numa Kombi caindo os pedaços. Apenas o motor mandamos retificar. O resto ficou como estava. A lataria apenas dificultava ao vento expelir a poeira que as rodas jogavam para dentro. As borrachas de vedação, quando existiam, não serviam para nada. Mesmo assim, oito loucos resolveram entrar naquela “coisa” e sair de Marilândia-ES, para ir caçar macucos em Rondônia – RO.
Nesse tempo, até Goiânia havia muito asfalto. Daí para a frente, o “bicho pegava”. Estrada horrível, cheia de areia e costeletas e, na ausência destas, palmos de puaca que a Kombi, como galinha ciscadeira, jogava pra dentro de si com invejável maestria. Já no segundo dia só nos reconhecíamos após o banho. A boca da italianada foi logo ressecando e rachando toda, e pelos olhos vermelhos e irritados, qualquer maconheiro inveterado assinaria embaixo.
Tudo isso não representava, senão, sacrifício. O pior foi o perigo por que passamos, já que não havia no veículo um único motorista que tivesse qualquer prática com aquele tipo de furreca retirado da sucata. Levava minutos para – em estrada plana – atingir 80 km e, para parar, só com a ajuda dos atritos da areia e do vento. O freio, para pouco nos adiantava. Mas, todos os integrantes possuíam carteira, já naquele tempo compradas de um despachante mancomunado com funcionários corruptos do DETRAN de Colatina-ES.
Na partida saímos com o saudoso mano Ildebrando ao volante. Ele era considerado o pior de todos, mas sustentava, com orgulho, a sorte de nunca haver atropelado nenhuma criança nem descido ribanceiras. Animais atropelados, perdeu a conta. Ameaças e multas, centenas. Os demais não tinham essa recomendação curricular. O certo é que, com ele ao volante, nem pensar em dormir. Todos atentos, olhos na estrada, garganta afiada a cada curva ou ultrapassagem: “Cuidado! Olha a curva! Acho que não vai dar! Freie, pelo amor de Deus!”
De repente, quando conseguiu a proeza de atingir os 80 km, o inesperado: um trevo que nem nós, seus fiéis vigilantes, cujos olhos alcançavam um zoom de águia jovem, percebemos. Foi um tal de Nossa Senhora, freie, jogue pra direita, segura o volante firme…, que nem um computador dos mais modernos seria capaz de decantar a melhor opção. E aí foi como pôde. A Kombi pulou por cima do canteiro, atingiu a contramão e foi parar atravessada no meio da pista contrária. Meu cunhado, sempre espirituoso, embora gaguejando, pilheriou:
– A curva foi tão violenta que cheguei ver a placa traseira da Kombi!
Tomamos-lhe o volante. Esperamos uma meia-hora até a última hemácia abandonar o refúgio do sangue medroso e previdente e resolvemos logo correr o risco que restava: entregar o volante a meu cunhado, completamente corredor e inconsequente. A esta altura a italianada já estava com os narizes vermelhos de costume. O metabolismo se regenerara. Meu cunhado Arlindo, o Esguatcheron, entrou na boleia, tomou posição, acelerou fundo para ver se o motor estava em dia, engatou uma segunda e partiu relinchando os pneus, quase nos deslocando a cervical. Alguns se benzeram; outros acharam que ainda era cedo para incomodar os santos.
E lá fomos nós, agora por péssima estrada de chão. A Kombi, agora, ia devagar e, assim, os riscos de acidentes diminuíam. Mais à frente, um caminhão que, por certo, não era de propriedade de quem o dirigia. Andando forte, levantava tanta poeira que, mesmo distante dele 50 metros, não podíamos ver a estrada com precisão. Era necessário se livrar daquele incômodo. E se Deus é grande, diz o ditado, o diabo não é pequeno.
E o diabo assoprou uma rajada de vento lateral que limpou a estrada, mostrando que, logo à frente, havia uma descida íngreme.
– Vai ser lá – disse ameaçador o meu cunhado. Irei ultrapassá-lo naquela descida.
Acelerou quanto pôde e quando já estava no vácuo do caminhão, o diabo parou de assoprar e a poeira voltou para a estrada cobrindo tudo. Era como se estivéssemos mergulhando num espaço escuro e de olhos vendados. Em poucos segundos sentimos solavancos, impulsões, sacolejos, bordoadas de todo tipo, companheiros levitando como se estivessem numa nave espacial e (como não poderia faltar num bando de italianos em dificuldades) gritos de “Maria Vérgena” ecoando para todo lado.
Nesse momento, já havíamos cortado o estado de Minas Gerais, entrado no de Mato Grosso e, agora, perdido o rumo. Depois de entrar pelo campo como se fosse um aríete abrindo caminho em tudo o que os sertões mato-grossenses contêm, escorraçando perdizes, jacus, corujas, veados, seriemas, emas…, a Kombi parou.
Novamente o sangue que já conhecia o caminho, num prévio aviso da suprarrenal, retornou aos órgãos centrais em sinal de defesa. Mas, aos narizes sempre vermelhos da italianada, a última hemácia só retornou depois de dois dias, que foi o tempo que levamos para arranjar socorro, transportar a Kombi para uma oficina quebra-galho e recomeçar o rali. A partir daí o mano e meu cunhado só tiveram consentimento de entrar na Kombi pela porta dos fundos.
Enfim, nessa Kombi, fomos a Rondônia, caçamos e, não sei como, estou aqui para contar a história. O retorno levou três semanas. Quando as oficinas eram próximas, empurrávamos; se longe, alguém pegava uma carona e ia à procura de um mecânico e, assim, conseguimos retornar a sucata à nossa vila de Marilândia. Na verdade, mais nós a levamos do que ela a nós.
MISTURADO AINDA É PIOR
Em 1973, quando abandonei as caçadas em respeito à Natureza, podia afirmar que era alguém que conhecia profundamente as manias da maioria dos inhambus brasileiros.
As caçadas foram abandonadas, mas não minha vivência com os passarinhos. Construí um viveiro que funcionou durante três anos como entretenimento, contendo mais de trezentos pássaros, a maior parte, capturada por mim. Todos os anos eu partia para algum estado brasileiro à cata de novas espécies. As dificuldades eram grandes, mas a teimosia, maior. E no exato momento em que abandonava as caçadas, o mano Adalho o fazia também, enredando pelos mesmos caminhos de proteção à fauna danificada pelos desmatamentos desenfreados que se faziam em toda Mata Atlântica.
Bolamos uma sofisticada rede de apanha, cognominada pelo saudoso naturalista Werner C. A. Bokerman, da seção de aves do Parque Zoológico de São Paulo, de EQUIPO FREGONA, que depois de centenas de modificações, chegou ao LACINHO, considerado por mim como “quase perfeito”.
Deixei de lado a parte esportiva e passei a me preocupar com o cunho científico da questão. E o mano, sempre por perto, dando-me apoio e as últimas lições de como reconhecer, localizar e atrair um inhambu.
Um dia, preocupado em obter uma fêmea de jaó do litoral, o mano e eu fomos numa faixa de matas próxima à Reserva Biológica Sooretama – um dos poucos lugares em que ainda existia essa ave. O lugar era perigoso, pois devido à proximidade da Reserva, os agentes florestais viviam fazendo continuadas e diárias rondas preventivas.
Saímos de Linhares às duas horas e, quando desligamos o carro, ainda era noite escura. Distanciei-me alguns metros do mano, pois já não portava condições de responder por mim, depois das extravagâncias do dia anterior com vitaminas de abacate e sobremesa de mamão.
Ali esperamos amanhecer, emitindo piados de jaó e já obtendo resposta ao longe de um macho afoito. Retomamos nosso alforje e, com o auxílio de lanternas, fomos adentrando até próximo a ele. Escolhemos, logo ao amanhecer, um lugar adequado e iniciamos as armadilhas, na esperança de que o macho estivesse devidamente acompanhado dos costumeiros haréns.
Mais de hora depois, estava tudo como manda o figurino: choça espaçosa e quase que hermeticamente fechada, alto-falantes posicionados lateralmente, redes de apanha bem camufladas. Tudo estava em ordem. Entramos na choça, ajeitamo-nos e iniciamos o desafio de atrair a ave às armadilhas.
Minha barriga, no entanto, por causa do excesso de abacate e mamão da tarde anterior, roncava, criando gases horríveis, deixando-me em situação deprimente. Enquanto estava fora da choça, aliviei-me sem grandes problemas, sempre buscando uma folha mais distante para não afetar as narinas do mano que detestava traques. No entanto, dentro da choça, seria impossível que ele não percebesse a “mudança do clima”.
Enquanto pude, fui resistindo, prendendo, contorcendo-me, evitando que o mano ficasse decepcionado comigo. Depois de algumas horas eu já estava com a barriga mais tensa que um baiacu fustigado, e o diabo do jaó, que costuma ser uma ave territorialista a qualquer invasor, não aparecia.
Um suor frio começou a brotar-me da fronte e, então, no desespero da insegurança, tive uma ideia que me pareceu, em princípio, digna de um gênio. Lembrei que tinha comigo um repelente spray da Raid, de odor horrível e, embora não houvesse muitos mosquitos, o mano não perceberia a estratégia. Retirei a lata, em aerossol, do picuá, reclamei da voracidade dos pernilongos, pulverizei o ambiente e, ao mesmo tempo, desafoguei, ficando atento às reações do mano que, tranquilo e atento, vigiava o lado contrário.
O mano não esboçou qualquer reação. Permaneceu imóvel, com seu pio na mão esquerda, os olhos pela abertura da choça, as pernas cruzadas. O ar ficou impregnado de um mau cheiro jamais sentido. Foram muitos minutos necessários para que a poluição se desfizesse. Quietei-me mais tranquilo e não tive o mínimo escrúpulo em repetir a dose, na primeira reviravolta dos intestinos. E, mais uma vez, o mano permaneceu imóvel, talvez apenas recriminando consigo mesmo, meu velho costume de, desnecessariamente, destruir a camada de ozônio.
Achei-me um “gênio” pela ideia, pois se não tivesse descoberto um jeito de ludibriar o mano, talvez a barriga explodisse antes de o dia terminar. E era só os gases se juntarem que, sem qualquer escrúpulo, eu repetia a dose, deixando o ar irrespirável.
Na quarta ou quinta investida – não me lembro bem – veio o imprevisível: movendo-se para a frente, o mano enfiou o nariz pela abertura da choça e, sem olhar, colocou o pio sobre o picuá, deu seu sinal característico “hummmm!” e observou:
– Nunca suportei traques, mas, misturado, ainda é pior!
A choça era bastante escura, mas não o bastante para não se perceber o enrubescimento que se espalhou por todo meu rosto.
DE TROMBONE À FLAUTINHA
Baiano era o apelido de um homenzarrão que, logicamente viera da Bahia à procura de trabalho. Dizia-se profissional em motosserra, falava grosso e ostentava um bigodão com a finalidade de cobrir a ausência de um dente incisivo. Era vaidoso e metido a valente. Sua voz tonitruante era calibrada ao grave, a fim de intimidar qualquer adversário que tentasse repeli-lo. A quem tivesse medo de trovoada não era aconselhável discutir com ele. Por todas estas “qualidades” o contratamos sem muita conversa. Nesse tempo, para conviver… e sobreviver naquele ninho de gozadores e encrenqueiros, só mesmo alguém com tais prerrogativas.
Nosso barracão de serviço ficava no centro de uma grande floresta pertencente à CIAMA – MA. Media mais de 40 metros de comprimento e, aproximadamente, seis metros de largura. O espaço dava para as 32 redes e, também, para o quarto das cozinheiras. Durante o dia, muito trabalho. À noite, do escurecer ao “Jornal Nacional”, tudo o que a mente mais pródiga pode imaginar, acontecia naquele fim de mundo. Era jogo de dominó, canastra, dama, discussões, desafios, duplas sertanejas improvisadas, histórias mirabolantes do presente e do passado.
O trabalho de extração de madeira é muito perigoso. Lida-se com árvores milenares, cobras venenosas, máquinas pesadas, lugares acidentados, objetos que comparativamente nos transformam em formiguinhas diante de elefantes. Qualquer distração ocasiona um grave acidente, ou a morte do envolvido. Perdemos alguns companheiros nessa lida.
Um deles foi o Jeová, um ajudante do motosserreiro que, num dia fatídico, resolveu acompanhar o patroleiro no acerto de um pequeno trecho da estrada. Na verdade, ele queria ser patroleiro e, sempre que possível, acompanhava o primo, que era exímio operador. Nesse dia, ao retornar, ele pediu para dirigir a patrol até o barraco. O lugar era acidentado e, num morro íngreme, ele não conseguiu passar a marcha exigida e a máquina voltou, atingindo logo uma alta velocidade e, em seguida, capotando. O Jeová ficou sob as ferragens e acabou esmagado. Logo depois, eu cheguei ao local e, com muita tristeza e dor, constatei o fato.
Três dias depois, algo estranho começou a acontecer no barraco. Todas as noites, logo que o Jornal Nacional terminava, o motor era desligado. O silêncio reinava quase soberano. Apenas os lamentos dos urutaus e os gritos metuendos das corujas feriam a quietude. Era aí que uma verdadeira chuva de saibros caía, misteriosamente, sobre as cozinheiras. Incontinenti elas saíam apavoradas do quarto e vinham se juntar a nós no dormitório para homens. Todo mundo (com a exceção do Cabeção) acordava, sem que ninguém conseguisse uma explicação razoável do que estava acontecendo.
Com o passar dos dias, a coisa foi ficando insustentável. Ninguém conseguia entender como aquelas pedrinhas caíam lá, já que as tábuas do quarto das cozinheiras encostavam no teto e a porta ficava trancada por dentro. Como podia alguém arremessar saibro lá dentro? Era o fantasma do Jeová: os caboclos não tinham mais quaisquer dúvidas. Terços, despachos, encomendas…, tudo foi rezado e feito sem qualquer resultado.
Alguns funcionários começaram a dizer que iriam embora, mesmo porque não aguentavam mais trabalhar de dia e se borrar de medo na hora de descansar. E todas as noites as empregadas saíam horrorizadas de dentro do quarto e vinham soluçar entre as redes dos funcionários. Para maior desdita, a minha, como chefe, era a preferida. Não havia um cabelo ainda para nascer, que não ficasse em pé. Lembro-me bem!
Numa noite, depois de as cozinheiras saírem apavoradas, o tal Baiano valente saltou da rede, engrossou o timbre da voz ainda mais, aprumou o bigodão desarrumado pela coberta e resolveu dar provas de sua valentia:
– Fantasma não existe, pessoal. Isso é sacanagem de alguém. Vou ficar lá dentro com as cozinheiras e quero ver se este fantasminha de merda vai ter a coragem de enfrentar o “baiano falado lá de Itamaraju”.
E lá foi o baiano para o desafio, escoltando as duas mulheres. Elas deitaram em suas redes e ele acomodou-se numa vaga da prateleira que não continha alimento. Apagaram-se as velas e as lanternas. Grilos, morcegos e toda sorte de sons fantasmagóricos foram preparando o ritual da chegada do fantasma. Por cinco minutos imaginamos que o fantasma, de fato, havia se intimidado com o nosso herói. Afinal, fosse mesmo o Jeová, conhecia bem a fama do Baiano de quem fora ajudante. Pura pretensão! Um pouco mais e uma chuva de saibro mais forte que as anteriores caiu sobre a cabeça do “Baiano falado de Itamaraju”, sujando de poeira até o prolixo bigodão dele.
Não precisou nada mais que isso. A porta se abriu violentamente e o nosso Baiano, como paca tangida por cachorro, saltou do quarto bufando, vindo parar no meio de nós. E sua voz, antes grave e rouca, pausada e amedrontadora, agora era de uma bichona em apuros, assustada e dependente. Falando fino, em sons recortados e gaguejantes, ele se entregou:
– Gente, a COISA É SÉRIA! Amanhã mesmo vou acertar minha conta e voltar para Itamaraju. E que o bicho me perdoe por ter duvidado dele!
Meus cabelos levantaram. A Tonha desatou a rede e correu pra junto de nós. Atrás e um pouco mais devagar, veio a Florisvalda. O silêncio era tanto que incomodava. Meu rosto parecia pegar fogo: nunca tinha vivido uma situação parecida. A única coisa que me salvava era a eterna incredulidade. Num ímpeto incontrolável, desafiei:
– Se é fantasma que jogue, agora, um punhado de terra na minha cara também. Fechei os olhos, mas nada aconteceu. Alguém, lá dos fundos, observou:
– Seu moço, não fais uma desgraça desta, não!
– Sabe o que é, gente – justifiquei-me – nunca consegui acreditar nestas coisas. Portanto, creio eu, esta é uma hora das mais propícias para tirar de mim estas dúvidas. Não estou mexendo com o além, estou apenas procurando minha verdade.
É bem certo que eu estava tenso, morrendo de dúvida e de medo. Acho até que falei aquilo sem pensar direito, mas o certo é que falei, e nada aconteceu.
Durante o resto da noite, nada mais de anormal se fez sentir. Cheguei a pensar que havia desmoralizado o fantasma. Nas noites seguintes, também nada mais caiu no quarto das meninas. Aos poucos fomos esquecendo que, de fato, fantasmas podem existir.
Quando já nem se falava mais no caso, numa noite de relâmpagos, trovoadas e chuva, talvez aproveitando o cenário perfeito para seu retorno, o fantasma voltou. O motor havia sido desligado mais cedo e com o acalanto dos pingos ressoando na cobertura do barraco, alguns já começavam a roncar.
De repente, a velha e quase esquecida rajada de saibros cai, outra vez, em cima das cozinheiras que, não esquecendo as rápidas escapadas a que já haviam se acostumado, saíram pela porta e esbarraram na minha rede:
– Seu Livaldo, quero minhas contas. Amanhã vou embora – disse a Tonha, tremendo da cabeça aos pés. Florisvalda, no entanto, agarrada à companheira, mostrava-se temerosa, porém mais controlada.
E eu, que não era de Itamaraju, mas carregava uma incredulidade bem mais forte que o bigodão do baiano, resolvi, também, desafiar o fantasma do Jeová. Tomei as cozinheiras pelas mãos e fui com elas ao quarto mal-assombrado. Sentei-me no mesmo lugar em que o “baiano falado de Itamaraju” sentou e fiquei atento, sempre protegendo os olhos, porque ainda não estava certo se o fantasma jogaria limpo.
Nada aconteceu até amanhecer. Quando elas se levantaram e o sol alumiou melhor o quarto sem janelas, examinei o chão: embaixo da rede da Florisvalda vi os arranhados com que ela juntava as pedrinhas de saibro para arremessar ao alto. Estava desmascarado o fantasma. A paz voltou a reinar e do fantasma, apenas piadinhas de que o “baiano falado de Itamaraju” não gostava.
E a Florisvalda, pela ingenuidade de suas ações, continuou lá, trabalhando como se nada houvesse aprontado. Nunca explicou a razão daquele comportamento e eu, que não sou psiquiatra nem terapeuta, preferi agradecer a Deus por não ter os olhos cheios de saibros.
CADÊ ESSE NEGO SAFADO?!…
Há cinco anos, meus sobrinhos resolveram tentar a sorte na Transamazônica, num fim de mundo a 140 km além de Altamira e a 40 km antes da cidade de Uruará, no Pará. Há sete anos, quando cometeram essa loucura, gastava-se dois dias de carro pequeno para desfazer o percurso. Em tempo de inverno, normalmente não se conseguia de jeito algum.
E lá, com toda fibra da qual me orgulho participar geneticamente, eles começaram a trabalhar. Seria tentativa vã descrever os milhares de problemas que enfrentaram até constituírem uma das firmas mais poderosas da região: quase um império.
Com o passar do tempo, grande parte da estrada foi asfaltada, a energia passou por lá, o telefone chegou e o comércio de exportação melhorou. Com quase uma centena de casas para funcionários, logo pequenos comerciantes (principalmente quiosques vendedores de cachaça), instalaram-se pelos derredores, formando uma grande vila. Mais um pouco e uma boate típica desses cafundós foi inaugurada. O que era uma simples serraria foi tomando forma de cidade, com igrejinha, campo de futebol, boates e comércio variado. Todos queriam o dinheiro que os funcionários não tinham onde gastar.
A “boate” logo passou a ser o local mais frequentado, tanto pelos solteiros, que se achavam no direito, quanto por alguns casados furtivos que sempre encontravam uma desculpa para “mudar a refeição”.
E foi assim que o Bigode, um crioulo forte que fazia jus ao apelido, começou a visitar o ambiente, em detrimento das indiretas da mulher desconfiada com a mudança radical dos hábitos noturnos do marido. Até então, ele chegava, assistia um pouco de televisão e, dizendo-se alquebrado, recolhia-se em sua rede. De repente, parecia alguém muito preocupado com o futuro, tendo, quase todas as noites, problemas para acertar com o patrão.
E a mulher, cansada de guerra, com uma porção de filhos para cuidar, resolveu dar um basta àquela vexatória situação. Sob sucessivas ameaças, numa noite chuvosa de inverno, depois de acirrada discussão, o Bigode disse – mesmo debaixo de trovões e relâmpagos – que precisava “dar um pulinho” ao escritório da firma para resolver um problema urgente, que surgira no setor em que trabalhava. As ameaças da esposa foram vãs. Calçou os sapatos domingueiros, vestiu a melhor camiseta, apertou o cinto na jeans e se meteu na lama: o assunto era muito sério e urgente para ser adiado para o dia seguinte.
A mulher dele, uma crioula não menos destemida, lá pelas 23 horas, munida de um revólver e da faca da cozinha, resolveu “participar” da conversa do marido com o patrão, indo, sem fazer curvas, para a boate.
A farra estava animadíssima: carimbó, forró… saias esvoaçando, litros de cachaça sobre as mesinhas improvisadas e toda crioulada da serraria lá, como se não invejassem camas vibratórias ou qualquer artifícios dos luxuosos motéis metropolitanos.
Ela veio sorrateira e, por uma fresta da parede de tábua lobrigou o Bigode, numa mesinha tosca de madeira, bebendo e contando vantagens às meninas que se refestelavam com torresmos e pinga.
Sem muito pensar, já sem um neurônio a auxiliar o bom senso, cega de raiva e revolta, a humilhada esposa, que passou o melhor de sua vida criando filhos, lavando e cozinhando para folgar na velhice, sacou do revólver do próprio marido, empunhou a afiada faca de cortar cebolas e investiu num grito que qualquer taoista do século V a.C, especializado na arte do Kung fu assinaria:
– Tu vai vê agora, nego safado, com quantos pau se fais uma cangaia!…
Na sala havia, pelo menos uns 20 crioulos, todos casados e ameaçados por suas mulheres – sabe lá Deus quantas vezes! De gente que estava no balcão para um cafezinho, ao soldado que mantinha a ordem, todos deram no pé, derrubando mesas, espalhando pinga, saltando pelas janelas, bufando como boi arredio peado.
É que quase todos eram crioulos, quase todos casados e todos atrás de safadezas. No grito “Tu vai vê agora, nego safado…”, nenhum deles ousou certificar-se de qual deles era a mulher. O momento não era de averiguar e sim de tomar decisão urgente.
No outro dia, lá estava o Bigode, de motosserra em punho, no pé de um jatobá com cinco metros de circunferência, todo molhado de suor, ganhando o sustento da família e fazendo mil planos para resolver a enrascada em que se metera. Pra casa, só depois de alguns longos meses de celibato.
AGORA, SÓ BRIGANDO MESMO!
Depois de uma semana correndo maior risco do que um albino de cuecas atravessando o Saara sem uma gota d’água no cantil; ou pulando do cume do Everest, pelado e sem paraquedas; ou estando sobre o Vesúvio na hora da erupção; ou passando a pé pelo Morro do Alemão, com a burra cheia de dólares, em plena madrugada, eis que descemos da velha Kombi e nos arrastamos, literalmente, até à margem do Sepotubinha: rio piscoso que atravessava uma densa floresta (hoje pastarias) no município de Nortelândia, no estado do Mato Grosso.
Dez maníacos italianos faziam parte da loucura. Entre eles, o Grapuá, um armário de portas abertas, um bicho: em força física e ignorância também. Sempre fora meu inseparável companheiro de caçadas. Nunca conheceu o medo nem as possíveis consequências que o excesso de coragem às vezes ocasiona. Pela mata, a qualquer hora, sentindo cansaço ou sono, ele se atirava nas folhas e dormia como se estivesse sedado para retirar o baço. Se houvesse alguma cobra, aranha ou inseto peçonhento embaixo, pior para eles. E, por incrível que pareça, fez isto a vida ativa inteira e nunca o imprevisto aconteceu.
O rio Sepotubinha é afluente do Sepotubão. A distância entre eles, do lugar em que nos encontrávamos, era de oito quilômetros. Um dia, Brando, Grapuá e eu resolvemos ir caçar lá. Acordamos bem cedo e partimos, chegando ao destino às oito horas em ponto. Descansamos um pouco e decidimos três direções para passar o dia. O primeiro que pretendesse voltar caçando pela picada que fizemos, cortaria um galho e deixaria ali como aviso. O segundo, encontrando o sinal, aguardaria o terceiro, para que fizesse companhia ao retardatário, naquele fim de mundo em que tudo podia acontecer.
Como nenhum dos três era bobo, houve unanimidade em logo retornar caçando. Por isso, cada um iniciou a picada conforme o acordo, mas, 50 metros à frente, parou e aguardou que os demais se distanciassem, a fim de não dar muito na pinta. Brando, proverbial em ser preguiçoso, foi o que parou primeiro, logo retornando. É que, naquela distância, e com várias tonas piando pela orla da picada que fizemos, ninguém era bobo de se cansar ali e depois andar de graça mais quatro horas para alcançar o barraco. Mais que razoável era ir voltando devagar, caçando e diminuindo o percurso.
Canso de dizer que, se Deus é grande, o diabo não é pequeno. Quando cheguei no cruzamento, já que era minha intenção ser o primeiro, a surpresa: lá estava o ramo verde combinado. Alguém havia sido mais ligeiro que eu. Sentei desolado. Teria de esperar pelo último. De repente, apanhei o galho e, qual não foi a grata surpresa ao perceber que aquele ramo fora cortado por uma besoura serra-pau e não por gente. Acontece que o galho fora posto ali pelo mano Ildebrando, que resolveu aproveitar a ajuda da cerambicídea, talvez com preguiça de cortar outro. Jamais imaginou que alguém se desse à curiosidade de examinar. Enganou-se. Foi a primeira coisa que fiz.
Diante da constatação, arremessei o galho fora, cortei outro novo, coloquei em lugar bem visível e me pus a caminho de volta. Logo depois chegou o Grapuá com o mesmo pensar. Só que, para ele, não havia mais alternativa. O ramo era autêntico e ele teria de esperar… e o fez até que a noite caiu. Depois, sozinho, por péssima picada, atordoado com a possibilidade de o pior ter acontecido, iniciou, quase correndo, a viagem de volta. Precisava avisar ao grupo sobre o incidente.
Às 20h, quando já saíamos a sua procura, ele chegou. Estava um bagaço: rasgado, molhado de suor da cabeça aos pés, mais possesso que um doido maconhado com 30 demônios entranhados. A cada pergunta que alguém fazia era um “Vai tomar no…”; “Vai a puta que…”; “Turma de moleques…”, e por aí afora. Nem o Rambo, depois de dizimar sozinho uma brigada inteira de russos, parecia mais machucado e furibundo.
Amuado, não jantou. Estirou-se em seu sujo, finíssimo e velho colchão de espuma e ficou bufando como boi peado. Imaginamos: amanhã ele estará mais calmo e entenderá que foi tudo um mal-entendido.
Qual nada! Durante três dias ele não conversou com ninguém e não saiu do barraco. Passava quase todo o tempo deitado com a cabeça encostada numa árvore que sustentava a lona do barraco e na qual havia vários pregos em que pendurávamos as espingardas.
Ainda no quarto dia, ao retornar de minha caçada, ele estava lá, enrolando os cabelos com o indicador: era costume ou cacoete que perdurou até o fim de seus dias. Cheguei. Ele nem virou o rosto. Quando pendurei minha espingarda no prego em que já havia outras, o desgraçado não resistiu. Uma das coronhas foi bem no chamado “pau do nariz” do amuado Grapuá, descascando-o até à ponta. Ao ver o estrago, o sangue escorrendo e o clima pesado no ar, recuei alguns passos e fui enfático:
– Bem, não sei se tentar explicar vai valer a pena. Portanto, pode vir que estou esperando para decidir no tapa mesmo.
Para mim, a briga era inevitável… e, meu fim, próximo, já que o brutamonte podia esganar-me sem muito esforço. Mas, depois de alguns segundos de silêncio tumular, alguém deixou escapar uma fungadela de riso que contaminou a todos, inclusive a ele. Com certeza, o diabo não é pequeno, mas Deus é maior. Acho que o fato bem podia constar da coleção “Great escapes”, da Stouffer Productions Ltd., porque se o Grapuá resolvesse mesmo me pegar, eu não teria a mesma sorte do coelho das neves.
Mais tarde ele confessou que fui salvo pela minha posição ridícula de defesa: bichona alguma se posicionaria mais ridiculamente!
A humilhação não foi menor do que ter apanhado.