E O FEITIÇO VIROU-SE CONTRA O FEITICEIRO

Antes de me dedicar ao estudo acurado dos inhambus brasileiros, já os conhecia sobejamente, caçando-os por todo o território nacional. Um dia, porém, alguns biólogos, zoólogos e ornitólogos de São Paulo, numa visita inesperada, aconselharam-me a pesquisá-los, ao invés de abatê-los.

– Se não se mudar essa cultura, diziam eles, num futuro próximo essas aves estarão em extinção.

Foi quando parei para aquilatar meu grau de culpabilidade e avaliar o crime ecológico que estava cometendo. Como bom arrependido, não deixei para o outro dia: ali mesmo iniciei a reversão de minhas atitudes, pendurando a espingarda no “fumeiro” e iniciando a construção de um cativeiro.

Entretanto, meu grupo de amigos caçadores não foi tão sensível aos conselhos dos ecologistas e continuou, com funções diferentes, a acompanhar-me nas incursões às selvas. Eles abatiam e eu capturava para posterior reprodução em cativeiro. Porém, a lei nunca fora de fazer grandes distinções entre abater e apanhar, e assim, continuei contraventor. Jamais consegui convencer a quem quer que fosse, que minhas intenções, então, eram de proteção, reprodução e repovoamento das áreas que já não existiam.

Diante desse clima, meus cunhados, irmãos e eu, marcamos uma incursão na Reserva Sooretama. Eles, armados até os dentes, e eu, com minha sofisticada aparelhagem de captura. Tentaria fêmeas de jaó da mata, que somente ali eram encontradas. O lugar era de difícil acesso e teríamos, inclusive, de passar pela barreira dos agentes florestais, postados em guaritas pelo caminho. Iríamos arranchar durante quatro dias e o que levávamos às costas, por certo, não deixaria com fome um exército faminto durante uma semana. Cada um transportava um alforje com tudo entulhado até à boca – não menos de 40 quilos.

Na tarde de quarta-feira, véspera de nossa saída, podia-se notar aquelas tralhas rechonchudas e pesadíssimas. Meu cunhado Vicente, eterno estropiado, a cada minuto experimentava o peso da dele e reclamava: – Nossa Senhora, pesa mais de 50 quilos, experimente! E o pior é que estou com a coluna em frangalhos. Foi aí que o tridente saiu das mãos de seu usuário-mor e me foi passado como se fosse uma corrida com bastão. Saí sorrateiro para o fundo do quintal, a almoxarifado improvisado, e encontrei um velho enxadão desencabado, uma cavadeira, uma travadeira dos primitivos grupiões italianos, uma grosa abandonada e uma marreta de aço alemão, pela qual meu pai falava maravilhas e desacatava a indústria brasileira. Arrumei tudo num embrulho só e, aproveitando a distração do Vicente, coloquei a sucata toda em seu picuá, acrescendo mais dez quilos ao peso primeiro do qual tanto reclamava. Como malfeitor assustado, espremi-me ao portal e ganhei a varanda, sem que ninguém percebesse – assim imaginei. “Puxa, será aquele sarro quando, mourejante e estafado, o Vicente chegar ao fim da jornada. Por certo ficará alguns minutos esticado e talvez até desmaie ao descobrir a sucata. O que terá de suportar de gozação, não será fácil!

” O que não me ocorreu foi o dom inato do cunhado, que conseguia perceber detalhes bem menores do que uma diferença acentuada de dez quilos. Ainda mais com sua coluna funcionando como detector sensível a um grama que fosse. Meu cunhado, até então, nunca deixara de ser um perfeito observador de tudo o que lhe dizia respeito.

Deleitava-me assim pensando, quando meio manco ele dobrou a esquina da Sorveteria Polar, que ficava a poucos metros de nossa casa. – Fui comprar uma Decadronal – disse ele exibindo uma pequena ampola. Meu picuá pesa mais de 50 quilos e estou com a coluna na pior. – É.…, Decadronal é muito bom – disse eu um tanto arrependido. Mas não era arrependimento, pois, se eu quisesse, bem podia retirar a ferragem. Não o fiz. Não podia perder, ainda que levasse meu cunhado a internar-se. Gozações e sacanagens eram sempre as conquistas mais gloriosas de nossa família. Essa seria inesquecível!

Chegou a madrugada, a partida, as guaritas, o local, o desembarque e a caminhada. Levamos quase meia hora para arrumar o cacaio nas costas. Parecíamos uma tropa organizada com excesso de carga. Trôpegos, com os sacos agarrando nos cipós e espinhos, lá íamos nós, floresta proibida adentro. Minha carga parecia encurtar-me, tal o peso que sentia nos ombros. Sinceramente, cheguei a arrepender-me ao notar o sofrimento do meu cunhado que reclamava sem parar.

Entretanto, talvez feliz por aquela aventura, o desgraçado seguia sempre com um sorriso safado e cínico. Quase que de minuto a minuto, virava-se para trás e comentava: – Vai pesar assim nos infernos! Isto me doía, mas não podia mais recuar. Afinal, também eu estava me arrebentado. Parecia-me transportar ltabira toda às costas. Enfim, depois de quase quatro horas de tropeções, quedas, arranhões e palavrões, chegamos ao local, com as roupas encharcadas de suor. Exatamente como previ, o Vicente estirou-se, cerrou os olhos e suspirou fundo dizendo: – Até que enfim, pensei que não suportaria este peso até o final. Enxugou o suor da testa com o próprio boné, abanou-se e insinuou:

– É, ainda bem que viemos prevenidos, pois aqui tem madeira pra chuchu – e deu uma olhadinha maliciosa para o meu outro cunhado, o Arlindo, o Quoque Grapii. Foi aí que uma ideia maluca me ocorreu:

– Será? Um calafrio perpassou-me a espinha.

Não, ele não faria isto. Não viu, não descobriu… Ele não seria capaz disso. Se tivesse descoberto a tempo, bonzinho como é, não poria a carga nas minhas costas. Tentei iludir-me como pude, mas uma dúvida terrível, e cada vez mais acentuada, invadia minha cabeça.

– Como é, vamos desarrumar as tralhas?

Outro risinho sarcástico. De fininho e disfarçadamente, passei a mão pelo alforje como se estivesse enxugando o suor das mãos. Um objeto duro, esquisito e não muito estranho foi detectado… o mesmo objeto desgraçado que me roera as costelas em todo o trajeto. Já não havia mais dúvidas: o desgraçado transferira a encomenda. Com mil furacões, pensei, estou arruinado. Desta não me safarei nos presumíveis 50 anos que me restam.

Brando e Arlindo, ainda apáticos, não haviam dado pelo fato, e se eu não continuasse tão idiota, talvez pudesse ainda deixar por menos aquela situação vexatória. Pensei: se ele não puder provar, será palavra contra palavra.

– Como é – retrucou insistentemente – vai amolar o grupião logo? Veja que jequitibá enorme aí do lado.

Depois de muitas estratégias, consegui convencê-los de que, o primeiro trabalho era preparar o barraco que usaríamos nos cinco dias em que ficaríamos lá. E mal o Vicente adentrou alguns metros para cortar um varão, arranquei aquela desgraceira de ferros velhos e levei-os a uma sapopemba, cobrindo-os com folhas secas. Cortei também um varão, mais para disfarçar, e voltei aliviado, jogando-o ao lado. Quando se aproximaram, às vistas de todos, comecei a desarrumar minha bagagem. Os olhos do Vicente brilharam e sua inquietação era por demais insinuadora. Peça por peça retirei tudo, sem que nada de anormal acontecesse.

– Onde escondeu?

– O quê?

– Pra cima de mim?

– Não sei do que está falando.

– Sabe sim.

– Então vai fazer uma derribadinha aqui – ponderou o Arlindo, que já recebera a versão do Vicente.

– Este cara é maluco. Pensa que me pegou. Já estou sabendo das insinuações dele. Acontece que fui avisado e retirei a sucata.

– Duvido!

– Pois quando chegar em casa, olhe no fundo do quintal para ver se a ferragem não está lá no mesmíssimo lugar de sempre.

Para tentar provar que eu, o sabichão, o pregador de peças, que sempre impunha malvadezas aos outros não tinha entrado naquela vexatória situação de idiota, trouxe a sucata de volta e, mal ele apanhou uma xícara de café e se virou para conversar com a esposa, corri para o fundo do quintal e coloquei a desgraceira toda no lugar de onde nunca deveria ter saído. Só Deus sabe o que sofri e as ginásticas que pratiquei para não ser flagrado. Depois, chamei o Vicente e desafiei:

– Não vai olhar se a sucata está no fundo do quintal?

– Ora se vou – disse ele dirigindo-se para o local.

Ficou duvidoso ante o que viu, embora manchas roxas atestassem por todo meu costado a dura verdade: para assegurar minha versão, permitir aquela desgraceira de ferros velhos roendo meu costado durante toda a viagem de retorno.  Por fim, examinou-as cuidadosamente e foi diabólico:

– É, mas estão lustras, muito lustras! Acho que foram usadas.

Passei cinco anos dizendo o contrário e quando já confirmava a filosofia daquele maníaco secretário de Hitler, de que uma mentira repetida mil vezes se tornaria uma verdade, resolvi discordar, contando tudo o que ocorrera de fato. Nunca me arrependi tanto! Com toda sinceridade: há pecados que é melhor pagar no purgatório.

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