OS DOIS MAIORES RONCADORES DO MUNDO
Dando uma olhada nas definições, fiquei sabendo que o ronco nada mais é do que a vibração intensa dos tecidos da garganta (úvula e palato mole), provocada pela passagem enérgica do ar inspirado. A apneia (parada respiratória superior a 10 segundos) muito comum nos roncadores, além de sequelas, pode cessar a respiração para sempre, ou seja, a respiração não volta e a pessoa morre dormindo. Há muitos casos assim e você, certamente, conhece algum. Pois é, não sei como ainda não tivemos essa fatalidade na família! Outra coisa de que não duvido, é que alguns de meus familiares têm os tais palatos moles e úvulas mais resistentes do mundo.
Em nossas caçadas e pescarias, depois de um dia estafante, e de um jantar descomedido, regado a cerveja e vinho, muitos barbados (aquele tipo de bugio que anda em grupo pela floresta, e emite sons guturais graves que qualquer canguçu apaixonada, em noite de luar, assinaria embaixo) ficariam humilhados. Com certeza, alguns de meus familiares não lhes tinham inveja.
Lá no rio Uruará-PA, os meus sobrinhos estavam com quase duas dezenas de peões derrubando matas e formando pastarias. A casa da fazenda, toda rodeada de varanda, parecia um desenho de linhas transversais, tantas as redes amarradas uma ao lado da outra. Pelo meio, dois espaços vazios: eram reservados aos meus sobrinhos Valber (Darutcha) e Vilmar (Zé Colmeia), proprietários que lá chegavam todo fim de semana para descansar o espírito, já que o corpo voltava mais moído do que quando chegava.
Saíram cedo, pescaram o dia todo e retornaram às 20h com o samburá cheio de peixes. Lá é assim mesmo: não é preciso se chamar Simão, nem incomodar Jesus para encher a canoa de peixes. Tomaram banho, assentaram-se à mesa e ficaram bebendo cerveja e vinho, enquanto o capataz Batista assava duas grandes caranhas no braseiro aceso para este fim..
Pela varanda, já os peões dormiam tranquilos. Dificilmente se ouvia um ressonar. Pessoas magras, sofridas, cansadas… sempre se alimentando frugalmente e dificilmente bebendo algo que não fosse água natural, não roncavam nem sofriam de dispneia. Eles estavam lá havia seis dias e ainda não tinham, até então, recebido a visita dos patrões. Logo, não desconfiavam da terrível armadilha.
Os meus dois sobrinhos conversaram, comeram e beberam até à meia-noite, quando, quase se arrastando, resolveram ir para as redes. Deitaram e apagaram em fração de segundos.
Lá pelas duas da madrugada, o Zé Colmeia, irmão mais novo do Darutcha, acordou com a bexiga estourando. Sonolento, tonto, aprumou-se na rede e achou estar sonhando porque, na varanda, antes apinhada de redes e caboclos, só havia ele e o irmão. Este, ainda dormindo, dir-se-ia melhor, desmaiado, roncava tão alto que fazia vibrar até a roupa do varal. Parecia que a casa estava sob nova investida daquele terremoto de 8,2 graus na escala Richter, que assolou o Japão. Percebendo que o irmão podia estar mesmo correndo o risco de morrer sufocado, ele o acordou:
– Valber, pelo amor de Deus, que agonia é esta?
– Que foi? Que foi!? Gaguejou ele que nem mais falar direito conseguia: a garganta estava ferida.
– Pelo amor de Deus, cara! Vai roncar assim na “putaquepariu”. Você está numa agonia de morte. Roncar sim, mas nem uma monte de leões no cio faz tanto barulho.
Ele acabou de acordar… ou de roncar e, também, logo percebeu algo diferente:
– Ué!, cadê a turma que estava dormindo aqui com a gente? Será que já foram pro serviço?
– Só se estivessem em regime de escravidão! Observou o Vilmar. São apenas três da madrugada. Mas, que é estranho, eu concordo. Será que estão todos mijando lá no terreiro?
Os dois, depois de aliviarem a bexiga, constataram que mais de vinte homens estavam amontoados num paiol de cinco por quatro, praticamente uns sobre os outros. Não houve, entre eles, um herói ou masoquista que não batesse em retirada quando os meus dois sobrinhos se deitaram nas redes. No outro dia, cinco deles, imaginando que a dupla de roncadores iria continuar no barraco por muito tempo, pediram as contas. Quanto aos dois, naquele resto de madrugada, ficaram sem dormir, sempre com um acordando o outro que ameaçava adormecer primeiro. Nem eles suportavam a tortura sonora originada pelas caixas de cerveja, os litros de vinho e as duas grandes caranhas assadas.
SUMIÇOS MISTERIOSOS
Vocês conhecem a história do homem que estava agredindo Deus e o mundo porque lhe haviam tirado o cachimbo do lugar, estando ele com o mesmo na boca? Pois é, essas coisas acontecem sim, apesar de ser enfeixadas no rol das mentiras.
Certo dia, pela manhã, esteve aqui no meu escritório, o confrade Vito Milesi. Todas as sextas-feiras ele aparecia para que a gente escrevesse, juntos, o Espaço das Letras: página que sai aos domingos no jornal O Progresso. De repente, ele que vinha fazendo anotações, deu falta da caneta que estava usando. Nós estávamos sentados um ao lado do outro e não havia explicação para o desaparecimento do rabiscante. Tentamos, em vão, o que estava ao nosso alcance, chamamos mais gente, palpamos-lhe a roupa do corpo… Só faltamos desmontar o escritório, e nada da caneta.
Aparentemente desistimos, mas, a cada minuto e meio, erguíamos um papel próximo para ver se ela não estava embaixo. Vocês sabem como são essas coisas! E, quando menos esperávamos, o Mestre deu seu grito de heureca, achando-a dentro de seu bolso da camisa, protegida entre duas carteirinhas que impossibilitavam a localização pelo tato.
Bem, isto me sugeriu uma história parecida, acontecida há 40 anos com o meu irmão mais velho que, exatamente por isso, fora apelidado de Velhão. Ele ganhava a vida como dentista prático, lá em Marilândia – ES, naquele tempo, uma pequena vila do interior norte espírito-santense. Certa feita, estava ele manipulando um pivô, desgastando saliências, ajustando-o à estética do cliente, quando o mesmo lhe escapuliu das mãos.
O gabinete do mano era pequeno. Media, mais ou menos, oito metros quadrados. O piso era coberto com cerâmica e dentro havia apenas um armário no canto, a cadeira em que ele se sentava e o gabinete propriamente dito, daqueles tocado a pedal. A maior parte da área era limpa e vazia. Mesmo assim, o dente sumiu.
Era inútil a procura insistente. O cliente ajudava e, um pouco mais, toda a família estava empilhada lá dentro, cada um verificando as mais estranhas possibilidades. Não houve dobra da roupa dos dois (dentista e cliente) que não fosse vasculhada. Por fim, afastaram o armário e a cadeira do dentista, pondo os objetos pequenos para o corredor. Nada! O pivô desaparecera mesmo, misteriosamente.
Não houve outra alternativa senão fazer outro. Fez-se novo molde e, depois de uma semana, o cliente saiu de lá distribuindo sorrisos. A esposa do mano, durante muitos dias, ao fazer a limpeza do gabinete, refazia as buscas, no afã de desvendar o mistério. Semanas depois, desistiu também.
Vários meses depois, quando ninguém nem mais se lembrava do fato, eis que os dois filhos mais velhos do mano se desentenderam no corredor da casa. O mais novo acertou um direto no nariz do primogênito e, sabendo que não ficaria sem o troco, deu no pé. A única saída era o gabinete do mano, e por lá ele entrou atropelando tudo o que tentava a obstar-lhe a passagem. Entre outros objetos, a cadeira na qual o mano costumava sentar-se, quando o tratamento permitia. Pois bem, ela foi jogada de pernas para cima, lá num canto do gabinete.
Atrás passou o irmão mais velho, com o nariz pelado e disposto a descontar. Na tentativa de apaziguar os ânimos, o mano tentou agarrar o perseguidor, mas ficou apenas com um trapo da camisa dele na mão. E os dois desapareceram rua afora, com o irmão mais velho numa perseguição digna de um tigre faminto nas estepes africanas.
Calmo – como sempre fora – o mano deixou que os dois se entendessem à maneira deles e começou a arrumar o gabinete para continuar o trabalho. E qual não foi a surpresa dele, quando, ao apanhar a cadeira que estava de pernas para cima, viu, bem no fundo, o maldito pivô preso a uma pequena teia de aranha.
TODY, COM SUSTO, PODE MATAR
Ah, minha doce irmã, quanto lhe devo de gratidão! Hoje, já falecida, na dimensão em que está vivendo, talvez não entenda a imensa saudade que sinto dela.
É dever, é reconhecimento, é consciência pesada por tê-la explorado tanto! Fico imaginando como pessoas, como você, querida e saudosa irmã, ficam fora dos altares!
Eu tinha lá meus 12 anos quando você se casou. Entre você e seu marido eu não saberia precisar quem possuía o coração maior. Vocês não se importavam… ou tinham pena, não sei, de um morto-a-fome como eu, quando adolescente. Você comprava Tody, Leite Moça, biscoitos… fazia doces e um sem número de derivados do leite: tentações que extrapolavam minha resistência de biafrino nascido fora do ninho.
Lá em casa, meu pai vivia do que plantava e jamais tinha dinheiro para comprar qualquer supérfluo. Meu cunhado, no entanto, trabalhava na Usiminas/MG e vivia de um bom salário. Alto, forte, saudável e trabalhador, logo angariou a simpatia do gerente que lhe recomendou aumento ao encarregado do setor. Sempre que conseguia folga, ele vinha visitar a família, e chegava sempre carregado de guloseimas. Esses dias eram esperados por mim com mais ansiedade do que por minha irmã.
Na casa da mana, a despensa era fechada por tramela de madeira: um pedaço de pau, parecido com taco de assoalho, tendo um prego bem no centro. Qualquer um podia girá-la e entrar quando bem entendesse. Doces, queijos, puinas, manteiga, biscoitos… tudo o que fazia, ela guardava lá dentro: eu só tinha o trabalho de esperar que ela saísse para lavar roupa ou ir tratar os porcos. Aí, eu invadia a despensa num verdadeiro arrastão. Com o tempo, a coisa ficou tão séria que ela precisou colocar uma chave, pois eu já não estava me contentando em ser meeiro: deixava apenas a rapa para ela e o marido.
A chave funcionou apenas até eu descobrir que a despensa não possuía forro. Então, eu entrava pelo paiol, subia no monte de espigas de milho, agarrava-me ao baldrame, pisava numa das prateleiras e descia como um rato. E aí, eram dentadas no queijo, na puina…. Enchia os bolsos de cocadas, balas e biscoitos, vasculhava tudo, experimentava de tudo e depois retornava sorrateiro pelo mesmo caminho.
Acontece que minha irmã era boazinha, mas não burra. Logo entendeu o que estava acontecendo e resolveu me dar um susto. Na orla do terreiro havia uma laranjeira. Era meu ponto estratégico predileto para acompanhar os passos da mana. Normalmente, às 15 horas, eu me postava debaixo da laranjeira, ficava arredondando pelotas de batinga para disfarçar e sempre de olho no trajeto da mana. É que a minha irmã sempre aproveitava esse horário para lavar roupas na bica, atrás do paiol, ou se desincumbir de afazeres fora de casa.
Nesse dia, vi quando ela apanhou a trouxa de roupa, colocou nas costas e desceu o caminho que curvava atrás do moinho. Ainda se via parte da trouxa de roupas, quando disparei para a despensa.
Com tudo planejado, ela jogou a trouxa no chão e voltou de fininho, postando-se pelo lado de fora, atrás da porta da despensa.
Como eu já conhecesse o caminho, até mesmo no escuro, logo subi ao monte de espigas armazenados, agarrei-me ao baldrame, alcei-me à parede e depois desci pela prateleira: como fazia sempre.
E, a primeira coisa que vi foi uma lata de Tody, novinha em folha, ainda fechada. Passei a mão numa colher, abri a tampa e, enquanto coube Tody na boca, fui enfiando… e socando, socando…
Nesse momento você, mana, que me vigiava pela greta, abriu a porta de chofre e gritou:
– Te peguei, ratão! Lembra?
No susto, aspirei o ar cheio do pó seco do Tody, perdi o fôlego e juro, pensei mesmo que fosse morrer. Não saía a voz, não conseguia respirar, desespero.
Na ânsia da morte, passei-lhe entre as pernas e a primeira coisa que vi – bem no cantinho da varanda sob a pia de lavar pratos – foi a lata de lavagem para os porcos. Entrei de cabeça, enchendo a boca, engolindo banana verde cozinhada, soro de leite azedo, rapa de polenta fermentada há vários dias, tentando, por todos os meios, desentupir o que não estava funcionando.
Vendo que a coisa se tornara séria, você, minha irmã, começou a gritar, a me dar tantos socos nas costas, tão fortes que cheguei a duvidar de suas boas intenções. Enfim, a respiração voltou.
E aí, minha querida e inesquecível irmã, você me ofereceu um bombom Serenata, presente especial do marido recém-chegado, cheio de “más intenções” para a noite que se avizinhava.
Juro, amigos: respirar pó de Tody seco numa golfada é mais perigoso do que ser solto em alto-mar, com as águas cheias de tubarões famintos!
O MACACÃO E OS FILHOS DO RAMPINELLI
Meus irmãos, tios, sobrinhos e paqueradores de minhas sobrinhas, somados, davam dois times de futebol com seus devidos reservas. Naquele tempo, a única exigência era a quantidade. Por isso, fizemos o time. Chamava-se FFFC, que em miúdos especificava: Fregona e Falquetos Futebol Clube: uma turma de “vacas-bravas” que lutava pelo resultado como hoje não se luta por uma vaguinha na política.
Para muitos do time, se o resultado fosse desfavorável, o juiz, para não apanhar, tinha de ser robusto. Robusto, valente e bom de briga… ou, de perna. Pusemos muitos a correrem!
Jogo oficial, só aos domingos. Campo próprio, nesse tempo, nem pensar. Para solucionar o problema resolvemos comprar um lote abandonado num dos bairros da cidade. Capinamos, baixamos os murundus, rastelamos os cavacos de madeira (fora um tombadouro de madeiras), enchemos de areia, enfiamos duas traves, e pronto. Era ali que treinávamos, ou melhor, que testávamos a resistência de nossas canelas, de nossas juntas e de nosso equilíbrio emocional. Com certeza, parte do tempo em que cada um de nós passará no purgatório, será devida àqueles “treinos”. Empurrões, soladas, cotoveladas e toda sorte de antijogo eram praticados sem qualquer escrúpulo. Valia a lei de “quem pode mais, chora menos”. E, se alguém fizesse um gol depois de solar o zagueiro, jogá-lo de perna para o ar e, ainda por cima, deixar-lhe um respeitável calombo na canela, aí era a glória total. E assim, nossas peladas no lote cheio de areia foram ficando faladas… e famosas.
O velho Rampinelli, comerciante mais rico da cidade, tinha três filhos: três marmanjos fortes e, segundo ele, bons de bola. Um dia, num encontro casual, ele me pediu que permitisse a seus filhos treinarem com a gente. O pai os achava educados demais e a nossa aparente brutalidade, segundo ele, poderia ajudar. Ele achava que entre os humanos e os equinos não poderia haver tanta diferença comportamental.
– Sem problemas, seu Rampinelli. Todos os dias, depois das 18h, estamos lá. A claridade é pouca, mas dá para ver a bola.
Logo no outro dia, já às 17h30m, a D-20 do Rampinelli estacionou na orla do lote. O estado físico do “campo de batalha”, a qualquer perscrutador atento, não deixava dúvidas do que ocorria ali. As cercas em torno, pelas laterais, eram de ripas: todas quebradas, amarradas ou repregadas.
Enfim, chegamos nós, com alguns mais se parecendo com estivadores mal-humorados do que jogadores de futebol. Com quichutes esgarçados, velhas chuteiras, unhas afiadas nos descalços, calças de mescla ou pano similar que resistisse os agarrões, pisamos na areia. Mesmo um tanto assustado com a nossa chegada, o Rampinelli apresentou seus três filhos. Eram enormes e fortes, mas esta referência fora elementar. O difícil, em nosso “time”, era encontrar um baixote esquálido.
Feita a divisão, a pelada começou. Não havia juiz: o primeiro que tentou moveu uma ação na justiça contra um de nossos atletas, por desacato moral. Falta ou não, decidia-se no grito, ou, quando nada, era sempre a favor de quem pegasse a bola primeiro.
Em menos de dois minutos, o Macacão entrou por baixo de um dos filhos do Rampinelli, lançou-o contra as ripas da cerca, pisou-lhe o estômago e deu um bicudo na velha bola encharcada que, para maior desgraça, foi acertar a cara do outro filho dele, deixando dois filetes escarlates como prova de que a mucosa das narinas não havia resistido o impacto.
Incontinenti, o velho Rampinelli gritou lá de fora em alto e bom som:
– Vamos embora, filhos! Isto aqui pode ser tudo no mundo, menos futebol. Prefiro vocês moleirões, mas vivos.
Macacão foi o apelido que demos a um crioulo mecânico que saía do serviço da oficina e, como saía entrava na pelada: com um macacão cheio de graxa e óleo queimado. O serviço dele era trocar feixe de molas de jamantas. Na primeira vez que apareceu, foi o último a ser escolhido. Depois que demonstrou que jamais Deus fizera um animal mais grosseiro, bruto, estúpido e, pior ainda, com canelas mais duras que cerne de cabiúna, a coisa mudou. Ainda antes do “par ou ímpar”, os dois que disputavam o direito de chamar primeiro, avisavam: “Se eu ganhar, quero o Macacão”.
E, se hoje, nós – os temidos brutamontes das peladas – lamentamos uma humilhação, com certeza é aquela que o Macacão nos impingiu. Jamais conseguimos tirá-lo do jogo. Acho que foi nele que o produtor do filme “RoboCop, o policial do futuro”, inspirou-se.
MECÂNICO OU SAPATEIRO?
No livro “Os humildes” eu menciono o fato. Naquele tempo eu passei dois anos na mata convivendo com pessoas humildes, simples, sem escola: apenas dois sabiam assinar o próprio nome. O grupo somava 32 pessoas, sendo duas mulheres que cuidavam da roupa, das refeições e da limpeza. Era um trabalho de extração de madeiras em toros realizado nas terras do senhor Reinaldo: um latifundiário que morava em Recife – PE. Na verdade, ele nunca pensou em destruir aqueles quase mil alqueires de uma das florestas mais lindas de Buriticupu – MA. No entanto, com as invasões dos sem-terras, encabeçados por lideranças sindicais, ele não teve outra alternativa senão aproveitar, para si, as madeiras. Contratou-nos para o serviço. Eu fui administrar. Zé Bigode era o meu “braço-direito”.
Construímos um enorme barraco: 36 x 8. Ali, as redes, uma ao lado da outra, formavam o desenho de uma centopeia gigante. O Zé Bigode escolheu a parte dos fundos, bem junto à parede de tábuas do lado leste.
Além dos peixes, verduras e cereais, ainda consumíamos meio boi por semana. E não é de se estranhar, pois as energias gastas bem valiam os combustíveis utilizados. Com a invasão e destruição do habitat natural, as onças começaram a invadir as pastarias e a dar grandes prejuízos aos fazendeiros. Tatus, pacas, veados… começaram a ser substituídos por bezerros. Por isso o Dr. Reinaldo decidiu pagar uma rês a cada felino abatido.
O Tonsura ou Baixinho, em apenas um dia, abateu três suçuaranas. Parte do prêmio ele doou ao nosso “restaurante”. O garrote foi trazido e executado no pátio. A carne que sobrou do churrasco foi acomodada nos congeladores, e o couro…, bem, o couro que seria jogado fora, desta feita foi aproveitado. O Pipoca resolveu esticá-lo e pendurá-lo a uns 50 metros do barraco. Com três dias, ninguém suportava mais a catinga. Bigode, o de narinas mais sensíveis e com certo poder de mando, ordenou que aquela imundícia fosse jogada fora.
No outro dia bem cedo, o Pipoca, proprietário do couro, obedeceu. Acontece que havia no barraco o Cutuca: o cara mais espírito-de-porco que conheço. Quando a noite caiu, ele foi lá, apanhou o couro e o encostou nas tábuas do lado de fora, bem rente à cabeça do Bigode. Lá pela madrugada, quando acordou, o Bigode estrilou:
– Porra, Pipoca! Onde colocou aquela carniça? Parece até que estou me cobrindo com ela. E olha que o vento nunca sopra para cá!
Ainda meio sonolento, Pipoca explicou que havia levado o couro a mais de 100 metros, pela juquira adentro.
– Pois, pela manhã, enterre-o a cinco metros de fundura – obtemperou o Bigode.
O que ele não podia imaginar era que o couro estava a um palmo de seu nariz. Pela manhã, quando viu aquilo, riscou o facão no chão, chamou meio mundo para a briga e, como ninguém se candidatasse, ele embainhou a lâmina, apanhou o couro podre e desapareceu pela macega. Voltou e disse:
– Quero ver, agora, se algum veado vai encontrar aquela merda e trazê-la para cá.
Na noite seguinte, novamente pela madrugada, o Bigode acordou com o mau-cheiro sufocante do couro podre. Foi enfático e dedutivo:
– Sei que um “filhadaputa” achou aquela desgraça e trouxe ela para cá pra me desafiar. Pois agora vou cortá-lo todo em pedacinhos e também a quem tentar impedir.
Acontece que o Cutuca previu a reação e colocou, na esquina do barraco, um cabo de aço esticado a palmo de altura. O Bigode, pela pressa, raiva e noite sem luar, engastalhou a sandália e foi de ponta, bem no meio de um monte de latões de óleo queimado que era guardado por ali, ficando mais sujo que o Zé Maria (nosso mecânico) ao abrir um motor lá dentro de um grotão qualquer.
O restante da noite foi consumido em impropérios, banho de sabão de coco, curativos na unha do dedão arrancada e esforço sobre-humano para retalhar o couro em quatro pedaços.
No sábado seguinte, o novo proprietário do couro (Zé Maria) – ele havia arrematado, do Pipoca, os pedaços que sobraram, porque dizia precisar para um serviço em sua moenda – resolveu trazê-los para Imperatriz. Apesar de bem enrolado, fedia feito o diabo. Lá pelas tantas, em seu último desabafo, o Bigode arrematou:
– Zé Maria, porra!, você é mecânico ou sapateiro?
E o Zé Maria, com a cara mais porca do mundo, ainda tripudiou:
– Aguenta aí, Bigodinho, só são mais três horas de cheiradinhas. Depois acaba, você vai ver, acaba!
“GUOI DIO”
Era o apelido do homem mais espírito-de-porco que já conheci. Para ele a vida era uma brincadeira. Se perguntado sobre seu eterno bom humor, ele respondia: “Já entendi a vida há muito tempo!” Era meio calvo, moreno, dentista prático de São Mateus-ES, físico mais para magro, estatura normal, andar desengonçado, coerente com sua maneira de ser. Jamais os caçadores programavam uma excursão sem antes convidá-lo. Era a alegria do ambiente em que se encontrava. De caçada não entendia nada: passava o dia inventando traquinagens, preparando armadilhas e piadas.
Certa feita, ele caiu de um poleiro. No outro dia, foi ao Manqueta (caboclo manco que morava, há 20 anos, sozinho, vigiando a propriedade do Dr. Alberico, um latifundiário de Vitória – ES), apanhou uma cela emprestada e, no outro dia, quando todos se preparavam para mais um dia de caçada, ele saiu na frente com a cela nas costas: “Hoje quero ver se aquele poleiro me derruba outra vez”. Fez a graça, voltou e foi devolver a cela.
Noutra, como nunca matava nada, saiu, em plena madrugada fria, nu, com uma nuvem de mosquitos atrás, apenas com a espingarda nas costas. “Já vi que se não virar índio, não matarei nada.”
Pois bem, lá fomos nós, em mais uma excursão: 22 pessoas, rumo ao Rancho Alto, um córrego que distava 30 quilômetros de Linhares e 100 do nosso ponto de partida. O carro e a estrada eram tão ruins que tivemos de dormir na entrada da mata, nas margens da “picada”, em que a “estrada” era ainda pior. O dia fora pequeno para desfazer a “grande” distância. Para se ter uma ideia do estado da “estrada”, basta saber que, cem quilômetros, hoje, desfazem-se em menos de duas horas.
No meio dos loucos, algumas figuraças, como diria o Galvão Bueno: Quincas (Picão), Eleutério, Guoi Dio, Canalzinho (Garnisé), Arlindo (Grapuá)… bem, ficarei só com os protagonistas desta história.
Depois de mais algumas horas, empurrado ou arrastado por tratores, o caminhão chegou ao ponto máximo que podia “ser levado”. A facão improvisamos um viradouro (a picada acabara de vez) e daí, com as tralhas nas costas, andamos pela mata mais cinco horas. Pena que não tivéssemos filmadora naquele tempo! Parecíamos mesmo uma tropa de burros, muito usada como transporte naquele tempo.
Levávamos chapa para o fogão, machado para lenha, foices para facilitar a abertura da clareira, encerado pesadíssimo para cobrir o barraco, quiçambas para o transporte dos alimentos… era tanta coisa que bem podíamos ir do Kuwait a Bagdá, sem os tantos problemas enfrentados pelas tropas da coalizão em seus caminhões de apoio. Literalmente, éramos uma tropa de BURROS. Até hoje não consigo entender tanta loucura… ou estupidez. Enfrentávamos temporais e estradas horríveis, mosquitos, carrapatos…, apenas para abater um pássaro.
Depois de instalados e de uma semana de caçadas, a italianada fedia mais que porcos do mato de chapadão. As meias pareciam parmesãs podres: fediam à distância e podiam ficar de pé, engomadas e duras de chulé como se encontravam. A água que utilizávamos vinha de um poço com quase dois metros de profundidade.
Todos os dias e em muitas noites, aconteciam fatos novos e inusitados, mas o pior mesmo se deu na noite em que o Grapuá não conseguiu dormir por causa de uma raiz que aparecera, misteriosamente, sob seu colchão. No outro dia, quando descobriu que a raiz havia sido colocada por alguém, não demorou mais que alguns segundos para se assegurar de que o Garnisé havia sido o autor. Com a mesma velocidade de raciocínio, foi a um canto do barraco, apanhou um par de meias de que nem mais o dono aguentara a catinga, e enfiou-o entre a fronha e o travesseiro do suposto culpado. Este dormia ao lado do Picão e, à noite, quando bateu o rosto no travesseiro, estrilou:
– Putaquepariu, Picão, que desgraça de brilhantina você está usando?
O Quincas, que já queimara vários travesseiros pelo mau costume de dormir com o picão (cigarro feito com palha de milho e fumo de corda) aceso, apenas disse:
– Nunca usei “perfume” no cabelo. Você é quem devia lavar os pés.
– Ou você a cabeça – respondeu em riste, o Garnisé.
Pela manhã, depois de uma noite sem dormir, o Canalzinho (Garnisé) descobriu de aonde vinha aquele catinga insuportável de parmesão podre. Assim como o Grapuá, também ele deduziu num instante: foi o Eleutério. Eleutério era tabelião, homem sisudo que não suportava brincadeiras. Pela primeira vez participava de nossas loucuras.
No outro dia, aproveitando um macaco-prego que alguém abateu, e conhecendo a rixa que se formara com mútuas acusações sobre varões e chulés, o Guói Dio (não poderia ser outro), enrolou o símio numa toalha e, como se fosse um bebê, colocou-o sobre as cobertas da cama do Eleutério. Este, depois de um dia aziago, chegou bufando de raiva no barraco. Ao se aproximar da cama encontrou a sacanagem. Jogou o “bebê” no meio do barraco e disparou dois tiros nele e, sem dizer uma palavra, saiu para o banho de caneco.
Todo mundo ficou calado. Não era comum acontecerem desequilíbrios emocionais daquela monta entre os companheiros de caçada. No outro dia, pela manhã, ainda descontrolado, o Eleutério arrumou as tralhas e, sozinho, ganhou a picada e foi embora. Quando já ia longe, o Guói Dio penitenciou-se ao chefe da caçada:
– Seu Adalho, me desculpe! Foi eu quem começou toda a lambança, colocando aquela raiz debaixo do colchão do Grapuá e, agora, presenteando o bebê ao Eleutério.
Não apanhou dos envolvidos porque, ao Guói Dio tudo era permitido. Ele entraria em depressão se lhe fosse proibido sacanear o mundo. Além do mais, qualquer caçada, sem ele, seria um velório. Era preciso não entupir o caminho.