Um dia ele se olhou no espelho e percebeu que se deixasse a barba e os cabelos crescerem, ficaria se parecendo, fisicamente, com Jesus Cristo. Puxa!, Jesus Cristo sempre fora seu herói, seu ídolo, seu Deus. Se toda sua admiração por Ele se convertesse em fé, certamente ele seria como o filho de Deus.
Começou a não mais rapar a barba, nem tão pouco cortar os cabelos. À medida que eles cresciam, não só ele, mas qualquer um notava certa semelhança com os traços fisionômicos que os pintores deixaram de Jesus.
Iniciou-se, a partir dali, um processo de transformação doentia: a cada dia ele ia se convencendo mais de que era a reencarnação do Filho de Deus. Deixou seus vícios, lia e relia a Bíblia e tudo o mais que podia sobre esse Homem que deu a própria vida para remir os pecados da humanidade.
Aquele ser frágil que vivia nele, cheio de defeitos, de desejos escusos, de malícia, inveja e egoísmo, paulatinamente foi cedendo lugar a outro, cheio de compreensão e desprendimento. Mais um pouco e ele completaria os trinta anos. Seria a hora das pregações, de reapresentar ao mundo adormecido e ingrato, as belas e esquecidas leis do perdão, da justiça, da mansidão e da fraternidade. A idade chegou.
Deixou sua casa onde já ouvia rumores de que estava mal da cabeça, e foi para as regiões semidesérticas do Nordeste. Na própria terra, pouco se consegue – lembrou-se disso como se estivesse em Nazaré, diante de conterrâneos descrentes: “Não é este o filho do carpinteiro?”
Depois de quarenta dias comendo o que encontrava nos cerrados, apareceu numa vila do sertão nordestino. Sentiu muitas tentações, porque mesmo nos tresloucados, os desejos são fortes. Houve dias em que teve medo do que estava fazendo. Quis desistir, mas todas as vezes que se olhava no espelho, a semelhança divina incitava-o a prosseguir.
Em busca de uma tábua de salvação que flutuasse no mar de corrupção, fome e miséria em que se encontrava o País, as pessoas sofridas da região acorreram a ele cheias de esperanças. A notícia espalhou-se rapidamente por todos os recantos.
O bispado reagiu enviando uma comissão com o fito de demovê-lo daquele alucinado comportamento. Ninguém é mais incompreendido do que os idealistas, os predestinados, aqueles que chegam a este mundo antes da hora. Por causa desses pensamentos, não desistiu. Ele mesmo nunca soubera se era normal ou louco.
Meses depois, a Igreja Católica tomou posição definida e drástica: ou ele parava com suas pregações, ou seria, sumariamente, excomungado. Ora – pensava – quem poderá fazer isso a mim se toda autoridade de mim emana? Rogava mais uma vez ao Pai para que lhes perdoasse, porque apesar dos quase dois mil anos, “os rabinos” ainda não sabiam o que estavam fazendo.
Numa tarde, enquanto pregava a uma multidão, subiu até aonde se encontrava, trazendo consigo um surdo de nascença, um sacerdote muito esperto. Interrompeu o sermão, desafiante:
– Caros fiéis, o próprio Jesus afirmou que aqui só voltaria com sua presença física para julgar os vivos e os mortos, no Juízo Final. Este homem vive fora da realidade. É um autista que, por causa de problemas mentais, criou um mundo irreal e autônomo, e isto pode ser muito perigoso para suas almas. Tenho aqui comigo o Joel, surdo de nascença que todos vocês conhecem. Vejamos se este Jesus lhe devolverá a audição.
Sem temer, o pregador retrucou em riste:
– E se o Joel passar a ouvir, acreditará em mim?
O sacerdote inquietou-se sobremaneira, mas apesar da ameaça cheirar-lhe a “tentar Deus”, não recuou. Estava mais que certo que o Joel continuaria surdo e que aquele homem seria desmascarado. Por isto, desafiou prepotente:
– Não só eu, mas todos os que estão aqui, certamente, acreditarão que você é Jesus Cristo. Faz com que ele ouça os trinados destes galos-da-campina e acreditaremos.
Tomando ares de intensa compenetração, o “tresloucado” foi até ao surdo e apoiando as mãos nos ombros dele, fitou-o nos olhos, repreendendo o sacerdote:
– Por que duvida? Acha isso impossível a meu Pai que está nos céus?
Fez-se silêncio sepulcral. Sem saber ao certo o que estava se passando, e vendo diante de si uma figura que tanto já vira em folhinhas e igrejas, o surdo de nascença foi entrando numa espécie de transe, em seu mundo de ilusões e sonhos. Seu coração encheu-se de fé; sua alma transbordou de esperanças. Já não tomava sentido ao que se passava ao redor. Cada célula de seu corpo foi sendo invadida por uma força capaz de remover montanhas: a fé. Ele sim, entre todos, era o único que não tinha dúvidas de estar diante daquele que poderia livrá-lo da surdez: Jesus Cristo.
E o lindo véu escarlate que naquela tarde encobria o horizonte árido, testemunhou, pelo milagre daqueles ouvidos que se abriram, os belos trinados dos galos-da-campina. De joelhos, rosto banhado em lágrimas agradecidas, o até então surdo ascendeu aos céus um olhar comovente.
O homem que se dizia Jesus Cristo não havia dito, pedido nem ordenado nada. O surdo havia se curado pela própria confiança. Então, voltando à realidade, desceu a colina certo de que era o mais comum dos mortais, mas que poderia ser Deus sim, se conseguisse ter fé.