EXISTE INFERNO, OU NÃO?
Quantos já não perguntaram contritamente a Deus, o porquê de tanto mal no mundo? O porquê de Ele permitir que haja tanto sofrimento arraigado na maioria dos seres humanos. Gandhi, Santo Agostinho na juventude, Schopenhauer e tantos outros pensadores, muitos santos e homens preocupados com a verdadeira justiça social, não raras vezes contestaram a bondade e perfeição de Deus em relação ao mal que permite infiltrar nos corações de alguns homens. Deus onisciente, poderoso, perfeito e criador de tudo estaria sujeito aos conluios de um outro reino, o do mal?
Tem-se a impressão que este reino perverso não O respeita e vive atrapalhando Sua criação sem que Ele, o verdadeiro Deus de bondade, possa impedir.
Este pensamento falso que perdura desde os tempos dos maniqueístas, ainda hoje se mantém arraigado, e não há quem – nos momentos de profunda angústia ou crise existencial – que não se prostre diante de Deus para cobrar-Lhe esta situação embaraçosa, ininteligível ao nosso raciocínio limitado. De fato, se o mal existe, e tudo quanto existe foi criado por Deus, não temos outra saída senão admitir: que há um outro reino em confronto ao Criador; ou que o nosso Deus não é perfeito, pois se torna inadmissível, um ser perfeito criar coisas imperfeitas. Qual seria, pois, a explicação?
É claro que Deus não criou nada imperfeito. Assim pensando, só nos resta seguir a outra pista, ou seja, provar que o mal não foi criado por Ele, ou simplesmente, que o mal é apenas a ausência do bem. Quanto à Natureza e ao universo – excetuando-se o homem – qualquer pessoa pode perceber a harmonia e a perfeição das coisas.
Notemos os astros, as estrelas, a Terra girando no espaço com tamanha perfeição que, se assim não fosse, não haveria vida no planeta. Para que aqui estejamos, com árvores, pássaros, água…, é preciso que nossa órbita não seja outra, nem um pouco para lá, nem um pouco para cá. O universo inteiro é perfeito. A terra em que habitamos – não fosse a interferência humana – também seria perfeita. Nunca houve necessidade de o homem interferir para equilibrar o mundo original.
O homem, portanto, se nos assemelha ao mal, embora na essência, seja perfeito. O que ele faz não vem de encontro à sua constituição ou à sua criação. Apesar de tudo o que é perfeito não permitir mais retoque algum, poderíamos contradizer o enunciado, alegando que o homem faz coisas erradas, sendo por isto mesmo, imperfeito. Que o homem foi feito por Deus, que assim sendo, teria feito algo imperfeito. A solução é não confundir o ser com os seus atos. Temos então de provar que o mal não existe, seguindo a proposta agostiniana de que o mesmo é apenas “uma perversão da vontade desviada da substância suprema”, ou seja, de Deus.
É como se alguém ordenasse a seu empregado para abrir a válvula de pressão de uma caldeira e ele não o fizesse. Ela explodiria e pareceria imperfeita, embora a causa tenha sido tão somente a perversão da ordem dada. O homem é perfeito como a caldeira o seria; o homem faz coisas erradas, assim como a caldeira explode se não se seguir as orientações de seu inventor.
O raciocínio é mais ou menos simples. Partindo-se da premissa de que Deus é eterno, portanto imodificável nos tempos, e que por isso mesmo é perfeito, chegamos à conclusão de que as coisas eternas são perfeitas. Admitindo-se que tudo quanto existe, enquanto existe é eterno, chegamos também a mais uma conclusão de que tudo quanto existe é perfeito. As coisas quando deixam de existir, desaparecem, logo não são eternas, portanto, o que não existe não pode ser nem perfeito nem imperfeito. Por este ângulo o homem, apesar de fazer tantas coisas erradas, é perfeito. Diante disto, desafio a qualquer cientista renomado a introduzir o escuro numa sala iluminada, ou o mal em Deus. Daí a grande ilusão de afetar Deus com nossos impropérios. Tudo o que fazemos de errado é a nós que o fazemos. Tanto o escuro como o mal são a ausência da luz ou do bem. Eles por si só, não existem.
Diferentemente, a luz e o bem existem por si e podem expulsar a escuridão ou o mal tão logo penetrem no ambiente. Por isto Ele é único e não há outro Deus além dele. O mal nada mais é do que a rejeição humana às coisas de Deus. E por causa desta rejeição que o homem mata, persegue, destrói as coisas lindas da Natureza e deixa o mundo neste caos, nesta insegurança terrível que nos assola.
Ninguém consegue incutir mal algum em Deus, pelo simples fato de Ele ser bom e perfeito. O que é perfeito existe eternamente. Por isto Deus é eterno. O que não existe, não é perfeito. Isto atrai nosso raciocínio para outro ponto difícil, o da alma, ou do que seja, na realidade, a alma. Foi prometido por Deus que no juízo final, todo homem ressuscitará e que, nesse dia, todos serão julgados. Aos bons Ele dirá: “Vinde benditos de meu Pai para o reino que lhe foi criado.” Os maus terão sorte adversa. Se tudo o que é eterno é perfeito, logo nosso corpo que ressuscitará e viverá, conforme promessa, é perfeito, pois será eternamente.
Daí duas conclusões podem ser obtidas: a primeira é de que nós (corpo e alma), na verdade somos uma só coisa, e a segunda que os maus padecerão “apenas” a grande dor de jamais conviverem com o Bem Supremo, ou simplesmente, deixarão de existir, já que o mal não existe nem é eterno. Dentro deste raciocínio, algumas religiões deveriam repensar sobre a grande angústia que semeiam nos corações de seus fiéis ameaçando-os com as chamas do inferno. O inferno nada mais é do que a incapacidade que o mal cria no homem de conviver eternamente com Deus. Para se aproximar do que isto representa, o próprio Jesus fez a comparação com um lugar em chamas onde haverá choro e ranger de dentes. Qualquer um que se imagine dentro do fogo sabe precisar o grau de sofrimento. Maior será a dor vivida no momento da separação e da volta à inexistência, para aqueles que perverterem a ordem de Deus. O inferno não existe porque não há crime sem reparação, e não há reparação que um dia não possa ser cumprida.
Assim como a escuridão é apenas a ausência da luz, as pessoas que morrerem sem luz, continuarão nas trevas e as trevas não existem. É, pois, a ausência de Deus, a Luz, o castigo impingido àqueles que se desviarem de seus ensinamentos. Haverá um só reino e um só pastor. Tudo será luz. Não existirão mais as trevas, logo não haverá mais mal algum. Tudo será perfeito.
Desarticulando-se o mal, as coisas imperfeitas terminam, deixa de existir este inferno, representado pelas angústias que a própria perversão do bem cria em nossos corações. Semeamos o mal e somos obrigados a colher os frutos daquilo que plantamos, pois na verdade, somos felizes ou infelizes conforme nossa conduta. No juízo final todos verão o esplendor de Deus, a felicidade indizível e eterna de Sua convivência, mas somente os merecedores subsistirão. Os demais voltarão às trevas, ou seja, deixarão de existir. Há de se imaginar que para se ganhar a verdadeira felicidade seja necessário grande conhecimento de verdades profundas. No entanto, de uma criança ao mais egrégio sábio, todos têm em si o discernimento sobre o que se deve ou não fazer.
A luz que salva, que não permite a intromissão das trevas, é a cega obediência à consciência, esta vizinha impertinente que não se cansa de nos orientar. Não é por menos que não devemos julgar para não sermos julgados. Os dez mandamentos estabelecem o geral, mas não se pode dispensar “os artigos e incisos”. Eles fundamentam o particular, a exceção, o relacionamento Deus/homem. Por isto, o que para uns é crime, para outros não é. Somos um poço de mistérios no qual somente Deus penetra. Nossos julgamentos, em geral, são sempre falhos. Não se surpreenda, pois, se do outro lado não encontrar no céu a presença de tantos benfeitores da humanidade. Para se viver na luz, não é preciso buscar fundamentos filosóficos, mas apenas seguir a nossa intuição ao que se deve ou não fazer. Esta voz é própria de cada um, o que dispensa grandes estudos, grandes procuras. Ela é inata, vem com a gente na mais pura graça de Deus. Somos o Seu templo vivo, o que equivale dizer que Deus vive e se preocupa com a gente, está na gente, fala pela gente nas horas mais embaraçosas. Sua voz está sempre – por meio da consciência – ciciando em nossos ouvidos, segredos de salvação. Deus é luz, e somente um erro grave apaga esta luz que nos orienta e nos mostra o caminho do céu. Este erro nada mais é – como já foi explicado – a perversão da vontade divina.
Sendo nossa consciência a cicerone que nos guia e traduz a vontade do Criador, devemos obedecê-la, ainda que as pessoas fiquem escandalizadas. Para atingirmos o céu, temos de ser justos e perfeitos conforme nosso entendimento de justiça e perfeição. Para sermos perfeitos, não é extremamente necessário saber das leis, nem sequer dos mandamentos, mas apenas seguir nossa consciência. A maneira com que entendemos honestamente as coisas, é a verdade que salva. Daí sermos todos iguais perante Deus. Como explicar as diferentes ideias em conflito dentro das religiões, cada uma jurando a verdade?
A única verdade absoluta é Deus. Todas as demais são verdades de cada um, adquiridas e ratificadas por Deus conforme nossa boa intenção. O mais interessante é que, um mesmo ponto discutido, pode possuir duas verdades. Coloquemos, por exemplo, duas pessoas a um quilômetro de distância uma da outra. No meio, a quinhentos metros, portanto, onde a visão não oferece perfeita distinção, ponhamos um objeto com duas faces diferentes, cada uma das faces voltada respectivamente para um e outro observador. Se arguidos sobre o que veem, atestarão formas diferentes, embora o objeto seja um só. Todas as verdades são particulares, dependendo da maneira, da instrução, da atribuição, do ângulo e de mil outros fatores observados.
Por isto é bom que se acredite que todas as religiões e ideologias são verdadeiras quando norteadas pela reta intenção de dizerem a verdade e praticarem o bem; e falsas quando não preencherem estes requisitos. Dirigido sempre pela boa intenção, fazendo sempre o que achar certo, dizendo sempre o que considerar oportuno…, todo homem – sem distinção de seita ou religião – chegará a Deus, ainda que o que fizer ou disser não for certo ou oportuno.