Título:
Marilândia – vale de sonhos e lágrimas
Romance de ficção
10 primeiros capítulos
Missão cumprida:
Em 2012, meus conterrâneos homenagearam-me por ter nascido em Marilândia e, também, por ter escrito livros.
Voltar à terra em que nasci, rever alguns amigos de infância e ser abraçado por eles, agora adultos alquebrados pelo tempo, confesso, senti-me alguém: um filho que conquistara seu lugar ao sol, talvez por ter escrito mais de uma dezena de livros.
No fim das homenagens, a cobrança:
– Temos notado que você ainda não escreveu nenhum livro sobre Marilândia, e ficaríamos felizes se o fizesse.
– Pois bem, prometo – respondi incontinênti. E condescendi: desde que Deus concorde com isso.
Pois bem, Ele concordou.
Agradecimentos:
1- Ao povo de minha terra, por acreditar que eu podia divulgar o nome de meu Torrão Natal por este mundo afora.
2- À minha esposa Corina e, principalmente, às minhas filhas, Kizy e Drielly, por passarem muitas horas em busca de possíveis incoerências.
3- Ao Stefano Massignani, Traduttore in dialetto Vicentin: insegnante – Olmo di Creazzo (Vicenza) Italy, e Luigia Gottoli – missionária leiga (enfermeira) – Cavalo di Fumane – Verona, Itália. Graças a eles você poderá imaginar o dialeto falado pelo personagem Antônio, advindo da região em questão, para, com Maria, isolarem-se na Mata Atlântica em busca de um futuro melhor para seus filhos, Estobe e Laura.
4- À professora Maria Tereza de Queiroz Piacentini, catarinense de Joaçaba, responsável pelo conteúdo do sítio Língua Brasil desde a sua criação no ano 2000. Trabalhou na redação e revisão de correspondência oficial por mais de 20 anos e foi responsável pela revisão gramatical da Constituição do Estado de Santa Catarina. Atualmente ministra cursos de Português. Carinhosa e amigavelmente, dispôs-se a revisar este livro.
5- A Deus por ter me deixado escrever esta história que, vez por outra, imaginei não ser possível, por causa das muitas intervenções cirúrgicas a que fui submetido, principalmente no olho esquerdo.
6- Aos meus confrades da Academia Imperatrizense de Letras.
7- A todo o povo da cidade de Imperatriz, que me acolheu com carinho e aceitação plena, desde minha chegada, em 7 de setembro de 1980.
8- Ao jornalista capixaba Orlando Scarpat, que intermediou a homenagem a mim prestada pela Secretaria de Educação de Marilândia, originando o livro que você tem nas mãos.
9- Aos meus pais e irmãos falecidos, que sempre acreditaram que eu pudesse escrever livros; principalmente o mano Jayr, médico, que não se cansava de fustigar-me a escrever, chantageando-me com elogios suspeitos.
10- À minha inesquecível e saudosa primeira professora, Zilda Maziolli, que teve a maior paciência do mundo para alfabetizar-me, quando Marilândia era uma pequena clareira na Mata Atlântica. Ao mestre Vito Milesi, que implantou em mim o chip das grandes virtudes: ser pontual, cumprir os combinados, não responder em riste…; ao professor de Língua Portuguesa do Colégio Estadual Conde de Linhares, de Colatina – ES, Sílvio Vitali, que certo dia, ao avaliar as 42 dissertações da classe, chamou-nos de “tropa de burros”, observando no final: “Apenas a dissertação do Fregona tem alguma coisa que se aproveita”.
Apresentação:
No dia 11 de agosto de 2015, estive em São Paulo – SP para a quarta cirurgia no olho esquerdo. Fiquei hospedado no apartamento do Dr. Bogdan Czaplinski Martins Barros, que lá mora, temporariamente, como residente em Oftalmologia. Se tentasse, não teria palavras adequadas para externar minha gratidão por tudo quanto ele fez por mim, deixando seus plantões para levar-me cidade de São Paulo adentro, em busca de exames, hospitais e locais inerentes. Enxergando mal e sem desenvoltura para locomover-me pelos meandros de uma das maiores cidades do mundo, confesso, se me soltassem lá, a cidade receberia mais um morador de rua.
Entre exames e cirurgias, tive de ficar lá 30 dias. Em seu apartamento, ele possuía uma gama invejável de aparelhos eletrônicos. Entre seus computadores, escolheu um e deixou-me à vontade. Com 12 horas por dia sem ter o que fazer, lembrei da promessa feita aos meus conterrâneos: escrever um livro sobre Marilândia. A visão não ajudava, mas oportunidade melhor eu não teria.
Durante três dias fiquei imaginando uma história, sintetizando capítulos, criando personagens, ajustando datas, enfim, preparando-me para a largada. Com a sinopse pronta, iniciei o primeiro capítulo.
Decidi: a história não seria verdadeira, mas bem podia ter laivos de verdade. Afinal, lá nasci, cresci e vivi grande parte de minha vida. Certas descrições, portanto, ninguém as faria melhor, porque marcaram uma criança que imaginava e levava a vida como um animal que, com sede, busca a fonte; com fome, a comida; com sono, um lugar para dormir…
Dei, à maior parte dos personagens da história, nomes dos habitantes do lugar. Muitos já se foram deste mundo; outros dispersaram-se em busca de vida melhor, deixando filhos e netos para trás.
A história começa com a chegada de uma família de italianos, cujo genitor professava a ideia fixa de seu pai, de que um homem trabalhador, nascido na pobreza, só tinha um caminho para, honestamente, proporcionar vida melhor e mais digna à sua prole: embrenhar-se nas matas e ali viver até o fim de sua vida, aguardando a chegada do desenvolvimento e da valorização. Ser italiano, chamar-se Antônio e ser casado com Maria, foi minha homenagem aos meus pais. Como a maioria das mães, também a minha foi incomparável. A ela dei dois filhos, porque minha história não precisava de mais.
Nego, uma criança loira de cabelos encaracolados, filho do único meeiro de Antônio, nascido no mesmo ano que Estobe – o filho macho de Maria – foi, deste, amigo inseparável. Não pensavam da mesma forma: Estobe gostava de ler livros, de aprender. Ele não suportava. Ao ser pressionado pelo padre Guilherme para ir para o seminário, Estobe exigiu que o sacerdote convencesse, também, o seu amigo Nego: condição sine qua non para que ele concordasse com a ideia do sacerdote. O padre não convenceu Nego, mas a amizade que nutria por Estobe, sim.
Padre Guilherme, alemão, alimentava a ideia fixa de enviar crianças para os seminários. Parecia não ter outra missão nesta vida senão aumentar os operários para a messe do Senhor. Para tanto, ele não hesitava – se necessário fosse – trapacear.
Biriba, o vira-latas cotó – estou certo – para muitos, roubará a cena dos personagens humanos. O cão sem pedigree, sem adestrador, mas que conseguia entender até o pensamento de seus donos, desempenhava todas as funções que lhe eram confiadas. Sua sabedoria era tanta que mereceu, ao morrer, um túmulo digno de um bom humano.
O romance mostra, também, a rapidez com que uma floresta, até então intocada, sob a sanha do machado de poucos, transforma-se em lavouras e pastagens. Também não foi esquecida – mesmo nesse tempo remoto – a luta incansável de alguns em desbravar os ambientes naturais.
Na realidade, o romance intitulado “Marilândia: vale de sonhos e lágrimas”, de fato mostra, mesmo na ficção, a realidade das vicissitudes de cada vida humana. Todos nós passamos, ao longo da existência, por momentos de muita alegria, de felicidade, de surpresas… e de sofrimentos.
Enfim, aí está o cumprimento de minha promessa, a demonstração de reconhecimento ao meu torrão natal. Nele passei os melhores momentos de minha existência, porque não há tempo que apague os momentos felizes de uma criança. São dessa época os sonhos mais doces e memoráveis.
A chegada de Helberti representa a primeira leva de professoras enviada pela Secretaria de Educação aos rincões norte do Estado do Espírito Santo. Moça prendada, pele aveludada, mãos de seda, modo singelo de se expressar… Nem precisava de tanto para aprisionar o coração de Estobe. Entre as narrações sobre as grandes paixões da humanidade, talvez Shakespeare não tenha sido o único em seu arquétipo do amor juvenil, ao narrar a paixão arrebatadora entre Romeu e Julieta.
Helberti foi assassinada, juntamente com seu maior amigo, Nego. Estobe entrou em depressão: a vida não tinha mais, para ele, qualquer motivação. Seu desinteresse por tudo e por todos afetou Maria. Até então, ela ainda acreditava que seu marido estava certo e que dias melhores viriam. E quando tudo parecia perdido…
1
Setembro de 1927. Ventos fortes sopravam em blocos indecisos, à revelia, avançando e recuando para todos os lados, amenizando o costumeiro calor sufocante da região. A recém-constituída família de Antônio e Maria arriava, na cabeceira da ponte sobre o lamacento rio Doce, em Colatina – ES, ainda feita de madeira e sem corrimão, todos seus pertences que poderiam, com algum esforço, ser transportados às costas deles mesmos.
No bolso, pouco dinheiro, já contado para, miseramente, instalarem-se na terra que Alberto Ceolin – um dos agentes credenciados pela Companhia de Colonização – havia prometido a eles, na recém-fundada vila de Alto Liberdade, a 24 quilômetros dali.
A cessão de 30 hectares de boa terra, na confluência dos riachos Liberdade e Santo Hilário, na região centro-oeste do pequeno Estado, lembrava a Antônio a terra prometida por Deus ao bíblico Abraão. Alberto Ceolin trabalhava, nesse tempo, como corretor da Companhia Territorial de Colonização, fundada pelo então governador do Espírito Santo, Nestor Gomes, com o fito de impedir que Minas e Bahia mantivessem o norte capixaba apenas como contenção à exploração de suas riquezas minerais, principalmente o ouro.
Nestor Gomes foi responsável pela ação inicial no sentido de ocupar a região, toda ela coberta pela Mata Atlântica. Recuperou para o Estado uma vasta área ao norte de Colatina e loteou-a em pequenas propriedades. Alguns anos depois, uma delas seria cedida a Antônio e Maria.
O sol, declinando lentamente sobre os morros à frente, deixava sombras menos quentes cobrirem seus rostos suarentos. Antônio estava, nesse tempo, com 50 anos de idade. Era alto, forte, cor rosada, olhos azuis, cabelos ralos e castanhos, lábios normais, dentes amarelecidos pelo fumo de corda, rosto sombrio e, aparentemente, de poucas amizades. Talvez não lhe tenham escapado cinco gargalhadas em todo seu tempo de vida.
Carregaria ao túmulo uma asma intermitente, resultado da alergia crônica que, às vezes, parecia diluí-lo, tal a quantidade de secreção que lhe escorria pelas narinas, pingando como água cristalina, por horas e horas, tardes inteiras. Ele era extremamente alérgico, mas sobre este problema e naquelas matas perdidas, ninguém, até então, ouvira falar.
Maria era mulher bonita, de boa instrução, 40 anos, alta, também de olhos azuis, pernas grossas, seios aprumados, magra, lábios finos, dentes claros e bem distribuídos, cabelos longos e negros e muito inteligente. Mesmo sendo italiana, conversava sempre em português e era raro flagrar, pelo sotaque, sua verdadeira origem.
O nascimento de seu segundo filho – por sinal, filha – veio com muitas complicações. A parteira não soube contornar o imprevisto e, médicos, somente na capital. Maria passou vários dias entre a vida e a morte, mas tanto ela, como a filha que se chamaria Laura, sobreviveram. Quando pôde andar, foi levada para Vitória e o obstetra achou por bem extrair-lhe o útero.
Entre suas tantas virtudes, sobressaía-se a força de trabalho, o aceitar o marido como ele era, a fé em Nossa Senhora das Graças e nos santos Bárbara e Simão, a quem recorria sempre que raios e trovões explodiam por perto. E eram muitos e constantes.
Em Ribeirão do Cristo, sul do Espírito Santo, era ela quem cuidava das poucas vacas do sogro, alimentando-as e se levantando às cinco horas, sob frio enrijecedor, para garantir o leite responsável pelo alimento de toda a família. A sobra era transformada em queijo, puina e soro, este último muito usado na complementação alimentar dos porcos e cães.
Quando resolveram tentar a sorte mais ao norte do estado, os pais de Antônio e Maria continuaram no sul, entre os píncaros de Ribeirão do Cristo. O vale era estreito e a temperatura sempre rondando o zero grau. Pela manhã, lavar o rosto na bica exigia desprendimento. Parecia que as mãos recolhiam escamas de gelo que se liquefaziam nas mãos. Os lábios ficavam roxos e a relutância em despertar fugia num átimo.
Não havia outra opção para as mulheres de origem italiana – na comunidade em que Maria nascera – senão acompanhar o marido, fosse qual a decisão que ele tomasse. Por isso, ela estava ali, ao lado dele, aguardando os dias que lhe dariam, mais adiante, o resultado da decisão que o marido tomaria. Antônio defendia, com convicção, a ideia herdada de seus pais, de que as pessoas pobres e honestas devem-se mudar para terras promissoras e devolutas, por mais longínquas que sejam, para melhorarem de vida com o tempo, aguardando pacientemente o desenvolvimento da região. Sabia que estavam, ele e a mulher, sacrificando as próprias vidas em prol de um futuro melhor para seus dois filhos. Ele não via outra opção, já que cedo aprendera que, honestamente, apenas com o trabalho, raramente se consegue ficar rico ou, ao menos, independente financeiramente.
Ali, sentados na cabeceira da ponte, Antônio e Maria não conseguiam entender aquela súbita diferença climática em distância tão pequena. Afinal, de Ribeirão do Cristo a Colatina, margem do rio Doce, em linha reta, eram menos de 150 quilômetros.
A seus pés, dois filhos: Estobe com 8 anos e Laura com 4, saudáveis… e famintos. Antônio havia combinado com o corretor que se encontrariam ali naquele lugar, ao meio dia: tempo exíguo, mas suficiente para alcançarem a área que lhe fora destinada. O problema maior era a noite que se avizinhava e os transtornos de passá-la, com dois filhos pequenos, ao sabor de possíveis chuvas, já que, nesse tempo, com a maior parte das florestas ainda intocadas, a qualquer hora podia chover.
Desmanchar as tralhas para retirar cobertores era algo que não havia sido previsto. E a Terra, sem escolha, seguia a organização do universo, escrava do Sol, que não lhe permitia voar pelo infinito em busca de liberdade plena. Como possível vingança, ela fazia o mesmo com a Lua, que chegaria em breve para reverenciá-la.
Vendo que Alberto não chegaria mesmo, Maria retirou uma grande panela em que havia arroz, polenta, queijo e uma galinha assada e desfiada, tudo misturado no conhecido e desejado mexidão. Procuraram um canto em que havia grama baixa e começaram logo o trabalho de acomodação, já que, se deixassem a noite cair, tudo seria mais difícil.
Na cabeceira da ponte, os tratores haviam alargado o aterro. As tábuas colocadas para firmarem a terra formavam uma pequena gruta que, mesmo sofrivelmente, amenizaria possíveis aguaceiros. Nesse tempo, já começavam os trabalhos para substituir a ponte de madeira. A grama havia coberto a terra escavada para o aterro e, naquelas circunstâncias, Antônio e Maria não podiam exigir mais para protegerem tanto a eles como a seus filhos. Pensão havia. Era rudimentar, mas nem pensar em desviar qualquer centavo do já minguado dinheiro.
Finalmente, com cada um tendo seu cantinho, a panela com o mexidão foi destampada. Maria tomou os pratos de esmalte e as colheres e começou a partilha, da menina aos mais velhos. Tendo-os alimentado, Maria foi a um pequeno remanso lavar os talheres utilizados, enquanto Antônio, alumiado por uma pequena lanterna, afastou-se um pouco, na esperança de abater uma paca ou outro animal qualquer de hábitos noturnos, para a carne da viagem do dia seguinte. E não demorou muito a chegar com uma jovem roedora nas mãos. A região ainda era pródiga em animais silvestres. A carne do próximo dia estava garantida, e era assim que definiam a vida: um presente que não ia além de 12 horas. No amanhecer do dia seguinte, preocupar-se-iam com ele.
Alberto só chegou às 8 horas, dirigindo, ele mesmo, um carro cujas marchas ainda eram passadas pelo lado de fora da cabina. Ele era um homem cheio de sonhos, estatura mediana, cor rosada, e, mesmo novo, já com barriga proeminente. Coragem e planos de se dar bem na vida nunca lhe faltaram. Seguia os passos de sua família religiosa, embora nunca tivesse assimilado o verdadeiro sentido de ser cristão. Construir igrejas, promover rezas noturnas aos domingos e dias santificados, sim, mas se fosse preciso impedir a ferro e fogo alguém que ousasse obstruir seus planos de poder e riqueza, não hesitaria.
Depois dos cumprimentos e boas-vindas, a bagagem foi posta num canto do carro e, com muito cuidado, cada um foi se acomodando em cima da carroceria. Para trás, as águas barrentas e revoltas do rio Doce.
Alberto falava maravilhas da área que estava sendo distribuída, mas Maria parecia não ouvir, tal a insegurança que sentia naquele momento. Agarrada à sua fé em Nossa Senhora das Graças, apenas desgarrou-se do manto de sua protetora quando viu Laura, a caçula, descer da carroceria no amparo das fortes mãos do pai.
Por causa daquela noite horrível passada ao relento, ouvindo pequenas ondas espocarem nas margens, somente pesadelos povoaram suas madorras. No local em que passariam mais uma noite, Alberto mandara fazer uma cobertura de folhas de palmeiras, de três por quatro metros. Seria ali, ainda com folhas secas e molhadas pelo chão, que Antônio e Maria começariam sua vida. Agora, seria lutar pela sobrevivência e deixar que o progresso chegasse, para que aquilo, um dia, valesse alguma coisa. Certamente eles não veriam este tempo, mas seus filhos e netos poderiam usufruir dessa herança.
Antônio, sempre decidindo pela família, resolvera acatar os conselhos do pai, de que assim teria de ser: sofrer e morrer pela felicidade dos filhos. Para tanto, ele contava com os ensinamentos cristãos, de que a vida pela Terra é passageira e que, todo sofrimento advindo da honestidade, da luta constante sem prejudicar o semelhante, resultaria em paz e felicidade. Crendo nisso sem reservas, Antônio esperava, resignado, o tempo passar.
A umidade constante e quente aguçara sua alergia, fazendo-o conviver com uma asma que lhe negava um pouquinho de ar, mesmo vivendo dentro de um espaço com milhões de toneladas dele. Sem conhecimento sobre o que ocasionava tais reações, Antônio não se precavia. Vivia molhado, ora pelas constantes chuvas, ora de suor pelos serviços forçados; não gostava de tomar banho e, por isso, não usava roupas secas e confortáveis. Demonstrava estar ali para cumprir uma dolorosa missão, e melhor para ele era que tudo terminasse o mais depressa possível. Depois viria a eternidade, a paz e a felicidade. Foi assim que seus pais lhe ensinaram, por meio dos ensinamentos de Jesus Cristo.
Colatina ainda era pequena e desorganizada. Do rio Doce aos morros que lhe formavam verdadeiro muro de arrimo natural, apenas uma centena de metros de área plana era oferecida aos pioneiros que resolvessem se instalar por ali. Na verdade, excetuando-se o rio Doce e a estrada de ferro – cujos trens transportavam minério de ferro de Minas Gerais para o porto de Vitória, capital do Espírito Santo – não havia qualquer outro atrativo que pudesse criar, nos pioneiros, esperança de ali ganhar dinheiro e ter um futuro melhor.
Mesmo assim, imprensada entre morros, tanto de um lado como do outro, moradas e comércio rudimentares foram aparecendo. O governo do Estado montou, ali, “suas entradas e bandeiras” para assegurar a posse das terras, principalmente ao norte.
A riqueza principal, mas ainda pouco valorizada, era a madeira. Em toda a extensão proliferavam jacarandás, perobas, louros, vinháticos, jequitibás, sucupiras e mais uma infinidade de madeiras de lei que, à época, eram totalmente desconsideradas.
De Colatina ao Alto da Liberdade fora construída a enxada, picaretas, pás e outras ferramentas manuais, uma picada tachada de estrada; por ela o primeiro veículo conseguiu passar, mas somente em tempo muito seco e muitos anos depois.
Na verdade, o Dia dos Pioneiros devia equiparar-se aos mais importantes e comemorados do mundo, tipo Natal, por exemplo. Sim, porque depois de Jesus, não acredito que exista maior doação de um ser humano do que submeter-se a todas as agruras de um pioneirismo.
Lutar sozinho um dia inteiro; ver a tarde cair e ter apenas duas crianças inocentes, expostas a centenas de perigosas armadilhas de um mundo hostil, a correr para ele, extenuadas, em busca de um carinho; depois, olhar a esposa, companheira consciente, sempre atarefada em remendar roupas esgarçadas; acender o fogo na improvisada trempe e perder-se em pensamentos positivos, que nem sempre o convenciam de que o que estava fazendo – não somente à família, mas também a si – era o certo. Ultimamente, aquela fé sempre avivada e lembrada pela constância de seus pais parecia enfraquecer-se, premiando-o com subjeções, insônia e arrependimento.
Numa tarde, ao chegar do serviço, viu Maria debruçada na trempe, mexendo a polenta. Teve vontade, muita vontade de achegar-se a ela, abraçá-la, falar de suas incertezas e pedir-lhe desculpas e até conselhos. Não o fez, porque a demonstração pública de humildade, carinho, submissão e reconhecimento de suas fraquezas era mais difícil para ele do que enfrentar as agruras da vida de seu dia a dia. Por dentro, na sua alma e no seu coração, ele sentia pena e dor por levar Maria àquele fim de mundo. Nesse momento, ele sentia o quanto a amava e admirava, mas ela, possivelmente, jamais ouviria isto dele.
Como Maria herdara boa educação, tendo sua infância e juventude no convívio de pessoas mais abastadas, o isolamento a que fora submetida doía muito mais. Antônio praticamente não perdia qualquer momento meditando sobre as consequências psicológicas que aquela vida de quase desterrada causava em sua esposa.
Por sua vez, Maria evitava pensar na situação em que estavam vivendo. Ela sabia que, se pensasse demais, acabaria se tornando a mulher mais infeliz do mundo. De fato, não fora aquela a vida que imaginou em seus tempos de mocidade. Lembrava que nunca criara em sua imaginação a imagem de um príncipe encantado, nem vida fácil em cruzeiros ou passeio no exterior. Satisfazia-a sonhar para si uma comunidade unida, com seus filhos brincando com outras crianças, frequentando escolas, indo à missa aos domingos… Não era muito e isto bem podia estar acontecendo.
O amor, no entanto, não deixa muitas opções quando se apaixona. Agora mesmo, num átimo de rara retrospecção, ela lembrava aquelas visitas inesperadas de Antônio, cheio de vida, chegando em seu cavalo, no terreiro de sua casa. Parecia estar vendo o belo cavalo, todo suado, erguendo as patas dianteiras, às vezes relinchando, enquanto Antônio o domava levando-o aonde queria. Depois ele o amarrava num esteiote que fora fincado perto da varanda, exatamente para esta função, descia, perguntava pelo dono da casa, sempre torcendo para que ele não se encontrasse.
Maria o convidava a entrar, oferecia-lhe um café com biscoitos feitos em casa… Ela sabia – apesar de ele nunca ter tocado no assunto – o motivo daquelas visitas. E como Antônio era forte e vistoso, Maria acabou permitindo, ao seu coração, que começasse a bater em favor da possibilidade do namoro. E lá pela milésima vez, aconteceu o dia em que ela estava sozinha quando ele chegou. A oportunidade não passou em branco. Antônio falou de seus sentimentos e Maria aceitou o pedido de namoro.
Surpreendendo-se nessa retrospectiva, Maria permitiu-se um curto momento, por que não dizer, de felicidade. Fora bom, muito bom, aquele tempo. No momento, nem ela saberia precisar a nota que daria, se fosse perguntada sobre sua felicidade.
2
Com exceção de três grandes pedras que podiam ser vistas de qualquer clarão da mata, a uma distância de 10 km, o restante da área ao alcance da visão não ia além de morros e planuras atapetadas de verdejantes florestas altaneiras, tendo, no sopé, várzeas alagadiças cobertas de taboas, tiriricas e pequenas poças constantes, a que os pioneiros, na maioria italianos, chamavam de lagoas. Nesses pequenos pântanos, em toda chuva mais forte, centenas de rãs coaxavam sob bolhas de espuma branca, com cada macho procurando atrair parceiras para si. Capturar essas rãs talvez tenha sido a primeira tarefa ocupacional do menino Estobe.
Munido de um cacete de aricanga – caprichosamente preparado pelo pai, no esmero de um índio guerreiro em sua caprichada borduna de guerra – Estobe, nesse tempo com seus 12 anos, caminhava pelos brejos com água e lama ao joelho, perseguindo os cobiçados anfíbios, que não se cansavam de proteger seus territórios, clamando pelas amadas renitentes. Ao perceberem o barulho estranho nas águas estagnadas, as rãs silenciavam temporariamente. Então, Estobe dava um tempo para que tudo voltasse ao normal. Depois, se o local em que se encontrava a rã fosse propício, ele enfiava a mão por baixo da espuma, bem devagarzinho, e tentava segurar a presa, sem usar a pequena borduna. Mas, se o lugar fosse espinhoso ou muito fundo, não ajudando a captura viva, ele mirava no cone de espuma e desfechava a paulada no local em que a rã deveria estar. Depois procurava e, na maioria das vezes, voltava com ela nas mãos, desmaiada ou completamente morta. O certo é que ele nunca voltava para casa com as mãos vazias, garantindo o jantar sofregamente aguardado por toda a família. Aqueles petiscos dourados na banha de porco só não agradavam à Laura, que preferia comer polenta pura a comer, como dizia, sapos.
Em 1931, depois de quatro anos de lutas e sofrimentos, Antônio e Maria já haviam derrubado dois alqueires de mata, cercado pequenas mangas com arame farpado e mourões – pasmem – de jacarandá; construído uma valeta com dois quilômetros de extensão, transferindo parte das águas do riacho Santo Hilário para a sede de sua pequena posse; formado um alqueire de capim-pernambuco e outro alqueire de café bourbon. Pelos espaços vazios, Antônio plantou mangueiras, laranjeiras de diversas espécies: seletas, china, pera…; jaqueiras, limoeiros, limeiras, mexeriqueiras, tangerineiras, biribazeiros, bananeiras: nanicas, da terra, prata, ouro…, mamoeiros e todas as demais fruteiras que conseguisse mudas ou sementes. As bananas sempre eram as preferidas de Antônio, porque seus pais, na velha Itália, só traziam algumas para casa por ocasião do Natal. Bananas, por lá, somente importadas. Maria cuidava de plantas que aprendeu serem medicinais: chapéu-de-couro, capim-santo, erva-cidreira, macaé, quebra-pedras, boldo e outras que eram ministradas conforme o mal-estar que alguém estivesse sentindo. E funcionava, ou melhor, havia de funcionar, porque outra alternativa não existia. Ou o organismo se defendia, ou a pessoa morria, caso Deus não se compadecesse, acrescentando aos chás as substâncias necessárias ao tratamento.
Nesse tempo, dezenas de outros pioneiros já se aglomeravam às margens do córrego Liberdade, dois quilômetros abaixo de onde moravam Antônio e sua família. O lugarejo prosperou rapidamente e, conforme o pedido do missionário Ponciano, devoto de Maria, passou a chamar-se Marilândia. Ponciano vivia pelas vilas e lugarejos do leste do Brasil e, todos os anos, durante o mês de maio, ele aparecia por lá para pregar o Evangelho de Jesus Cristo. Passava uma semana na comunidade de Marilândia onde houvesse pecado a ser perdoado, pois das penitências somente a crucificação não fazia parte.
E Marilândia crescia. Não demoraram a aparecer as quatro exigências fundamentais, indispensáveis a qualquer agrupamento de seres humanos: igreja, escola, campo de futebol e bar. Como a comunidade era de italianos, o campo de bocha também logo foi inaugurado.
Das três pedras que se sobressaíam à frente, a do meio era a maior, mais imponente, e parecia recostar-se na da esquerda, de tamanho médio, e na da direita, a menor. Entre elas, apesar de parecer paradoxal – pela preferência de surgir no alto da pedra, ao invés de minar na baixada – havia uma nascente de águas cristalinas e frias: cabeceira principal do riacho Liberdade, em cuja confluência com o riacho Santo Hilário, cinco quilômetros abaixo, a família de Antônio instalou-se. Com certeza, as boas referências do corretor, cercadas de atrativos, eram totalmente verdadeiras. Talvez não houvesse, em toda região, um vale mais fértil, bonito e promissor.
Entre as pedras desciam filetes límpidos, rodeados de árvores vigorosas, onde centenas de pequenos alíferos coloridos viviam em harmonia. Os tangarás dançantes, galanteando para conquistar as fêmeas verde-oliva – que pareciam exigentes na hora de escolher o pai de sua prole – eram incansáveis em suas demonstrações de dançarinos conquistadores. Os machos coloridos haveriam de ser bons dançarinos, caso contrário ficariam sem descendência.
Gaturamos, inhapins, guachos e sofrês – heterônimos palhaços gozadores da floresta – passavam boa parte do dia imitando seus amigos alados, numa verdadeira falsidade ideológica. Felizmente, o tempo os ensinou a quem arremedar, porque gaviões e corujas não constavam em seus repertórios. Melhor mesmo era deixá-los longe, o quanto possível.
No mesmo dia em que foram deixados no meio da mata, com apenas uma enlameada estradinha como opção de socorro, Antônio e Maria roçaram uma pequena área de 90 metros quadrados, sob árvores que bem podiam soltar galhos, ou mesmo cair sobre eles, e estenderam o negro e frágil plástico de oito por oito. Arrastaram os poucos pertences para dentro, juntaram gravetos secos, assoalharam o chão úmido com folhas de diversas palmeiras e coqueiros, também molhadas, e começaram a quase vã luta de acender o fogo. E não podiam, sequer, dar-se à extravagância de usar muitos palitos de fósforo. Ninguém – por mais que tenha imaginação fértil – consegue descrever, com precisão, o que é contar com a ajuda de Deus para que nada de grave aconteça. Um acidente, uma dor de barriga, de cabeça…, um mal-estar qualquer, nessas condições, só encontra mesmo o amparo das mãos de Deus, que nunca deixou as ervas utilizadas sem as substâncias próprias à debelação de todos os males que surgiam.
E, até então, os céus não haviam sido incomodados. Toda a família era forte e resistente. Surucucus, jararacas, corais… havia em profusão, mas sempre eram vistas primeiro, atacadas e mortas.
Comida, tão cedo não seria problema, porque havia fartura em cada galho, lagoa ou espaço de chão que se olhasse. Pelo dossel da floresta, dezenas de espécies de símios, mutuns, jacutingas, jacus, aracuãs, harpias que se refestelavam com macacos, preguiças, cobras… tudo ali havia em profusão. Pelo chão, além de uma dezena de espécies de inhambus saborosas, proliferavam veados, pacas, antas, tatus, cotias, quatis, coelhos, sem dizer dos ainda não comestíveis: onças, jaguatiricas, gatos do mato, tamanduás… Nesse tempo, seria estúpido quem ousasse prever a necessidade de protegê-los, para que um dia não desaparecessem. Como havia com fartura, ninguém se preocupava em estocar. Se Antônio abatesse uma paca, outra só depois que a carne dessa acabasse.
Nos seus 12 anos, Estobe viveu dois acontecimentos que iriam pautar a vida dele por todos os dias programados pelo destino para que vivesse ou perambulasse por este mundo: o início da vida escolar e a chegada do Nego.
Somente quando alcançou os 12 anos, Marilândia abriu sua primeira escola e, nela, Estobe foi matriculado. Até então, nunca vira cadernos, lápis ou qualquer material de alfabetização. A professora Zilda – uma santa autodidata cheia do dom de ensinar – ao lado da casa paroquial, sobre caixotes e tábuas serradas a grupião, recebeu poucos alunos em sua aula inaugural. Um mês depois, aqueles três primeiros alunos já se perdiam no grupo de 37. Foi necessário serrar mais tábuas e providenciar mais caixotes, já que o único comércio da vila não tinha a quem vender tanto querosene e óleo. Mesmo assim, o Mezadre retirava as mercadorias das embalagens e cedia, à escola, os caixotes como cadeiras.
Nego era um menino loiro, cabelos encaracolados, olhos mais azuis do que o céu límpido tingido de anil e que, por coincidência, nascera no mesmo mês e ano que Estobe. Era filho do primeiro meeiro de Antônio. Chamava-se Leno, mas sua mãe, com força nata de persuasão, mudou para Nego, e assim foi até o fim da vida. Não possuía o dom de Estobe de jogar futebol, mas acompanhava o amigo sempre que havia peladas. Em todo o vale já se comentava a facilidade de Estobe em manusear a bola.
Nesse tempo, quem possuísse um pedaço de terras permitia aos agricultores sem grandes pretensões que colhessem o café a meia, ficando com todo o mais que produzissem no pequeno pedaço de terra que lhes era confiado. Eles podiam plantar o que bem entendessem, tendo sempre o café como prioridade. Não querendo plantar, recebiam seus dias colhendo os grãos dos cafezais do patrão, ou mesmo de pequenos proprietários vizinhos. O café era a moeda de troca entre os produtores rurais e o dono da venda de mercadorias, o senhor Américo Mezadre.
Os agricultores compravam o ano todo aquilo que precisavam. Mezadre anotava tudo a lápis, num caderno comum. No final do ano, depois que cada um vendia seu café, era feito o acerto de contas. Como nesse tempo nem se falava em inflação, juros não eram cobrados. Não bastasse, nunca houve qualquer suspeita de desonestidade por parte do vendedor das mercadorias.
Albertino Cordeiro, o novo meeiro, já era conhecido de Estobe, porque viera dois meses antes para ajudar na construção da própria casa. Foram semanas duras embaixo de um jirau, puxando o grupião para serrar as tábuas necessárias. Colatina já possuía serra tico-tico, mas nem dinheiro para o frete, Antônio não tinha ainda. O jeito era conseguir as coisas com o próprio suor.
Para conseguir as tábuas, ele foi a um pequeno declive, próximo ao sopé da mata, onde havia algumas árvores de cedro e vinhático, escavou à picareta e a enxadão um buraco de mais ou menos três metros de comprimento por dois e meio de altura. Providenciou o estaleiro: dois esteios roliços no início superior do barranco, dois na parte mais baixa, fortes varões amarrados com cipós especiais. Em cima eram postos os toros.
Derrubadas as árvores e divididas com dois metros e meio de comprimento, com a ajuda de vizinhos, todos munidos de espeques de madeira que serviam de alavancas, eles empurravam as toras do lugar em que se encontravam, para cima do jirau. Com o toro posicionado, um homem ficava por cima e outro por baixo. Um puxava a serra para cima, outro a puxava para baixo, como se tivessem resolvendo uma questão de quem ficaria com o grupião. No vai e vem, a serra ia penetrando na madeira e delineando as tábuas. Os cedros e os vinháticos ajudavam, porque eram macios e resistiam ao tempo como nenhuma outra árvore. Não empenavam nem rachavam ao serem pregados, e levavam séculos para apodrecer. Não bastasse, a Natureza dera ao cedro um cheiro repulsivo aos cupins.
Primeiro eles quadravam o toro, depois, com um barbante molhado com qualquer espécie de tinta natural extraída de carirus maduros, eles marcavam a direção que a serra devia seguir, e a espessura que as tábuas teriam. O puxador de cima era responsável pela direção, já que ao de baixo era impraticável olhar para cima, donde chovia pó amargo de madeira. Aí, era só ter paciência e resistência, porque até pica-paus dormiam ante o intermitente e sonolento acalanto do grupião.
A quem estivesse por perto, era desafiador aguardar a saída de uma tábua serrada. Mas, no fim do dia, passando por lá, vinha a admiração ao ver várias, prontas para serem usadas.
Serrar tábuas manualmente é como olhar o ponteiro das horas de um relógio: não o vemos se movimentar, mas depois de doze horas ele completa a volta. Assim também é a nossa vida: não percebemos, mas de segundo em segundo ela vai se extinguindo. Normalmente nunca percebemos o aparecimento do primeiro fio de cabelo branco; da primeira ruga; o amarelecimento de um dente… O início, enfim, da destruição de nosso corpo.
Ao encerrar a serragem no fim do dia, Antônio e Albertino Cordeiro retornavam, levando às costas uma tábua cada um. Já havia, no terreiro da futura casa, duas forquilhas que sustentavam um varão a dois metros de altura. As tábuas eram escoradas de quina, uma de cada lado, pareadas, a fim de que secassem bem para evitar gretas maiores depois da casa construída. Mesmo assim, sempre se pregava mata-juntas entre uma e outra, porque as gretas apareciam, tirando a privacidade de quem estivesse do lado de dentro.
A casa em que Albertino morava com a família, não fosse a criatividade, não apresentava um cômodo seguro para eles trocarem de roupa.
Nesse tempo, as necessidades fisiológicas eram feitas no mato, mas com o passar do tempo – principalmente nos dias chuvosos – Albertino achou por bem construir uma privada. Cavou um buraco com cinco metros de profundidade, assoalhou-o com tábuas defeituosas que Antônio desaprovara das serragens, fez um buraco no centro, cobriu e cercou com folhas de palmeira. O recinto só podia ser usado em dias chuvosos, porque era praticamente ligado à casa e, com ventos contrários à direção costumeira, certamente o mau cheiro afetaria a residência.
O problema maior surgiu quando uma cobra resolveu aproveitar aquele lugar, para ela, seguro. Em busca de ratos, uma enorme jiboia logo se alojou num canto onde havia uma velha lata de biscoitos, cheia de sabugos. E como não podia ser diferente, nessa memorável noite de chuva torrencial, Norinha precisou socorrer-se. Ela saiu com a lamparina, mas, ao adentrar, uma rajada de vento apagou a chama. Sem tempo de buscar o fósforo, ela agachou-se e procurou aliviar-se, utilizando a memória para situar-se. Tudo ia bem, mas quando precisou dos sabugos, notou que dentro da lata havia um muito grosso, comprido e mole.
Ela sabia que aquilo não era o “papel higiênico” procurado, e para descobrir o que seria, não havia tempo. Abriu a boca no mundo, embaraçou-se com a própria calcinha que ainda não fora alçada às nádegas e caiu na lama, do lado de fora. Os gritos não cessavam e quando ela quis erguer-se, Albertino já estava a ampará-la, com a espingarda em riste.
– Que foi, mulher?
– Um sabuco grosso, frio, mole e comprido está dentro da lata.
Albertino começou a rir, porque a resposta fora imprevisível. Não bastasse, ver a mulher naquele estado deplorável, “simplesmente por causa de um sabuco grosso, frio, mole e comprido”, suprimiu dele toda preocupação de um perigo maior. Ergueu a mulher, alumiou a lata e viu, dentro, uma enorme jiboia. Ela estava atônica, bem acordada e pronta para desistir de aguardar ratos num local tão disputado.
Tudo explicado e resolvido, Albertino disse à mulher e aos filhos que aquela cobra era uma bênção, porque não era venenosa e comia ratos. Ainda tremendo de medo, Norinha disse que se o marido não se livrasse daquele bicho, ela iria embora com os filhos.
Albertino ainda tentou adiar para o dia seguinte, mas a mulher foi peremptória:
– Agora.
Uma hora depois, Albertino chegou todo molhado, jogou o saco de estopa num canto, apanhou a toalha, enxugou-se e deitou-se ao lado da mulher. Agradecida, ela passou a mão nos cabelos do marido e perguntou:
– Tá com vontade de mexer comigo?
– Não sei se devo. Hoje você está muito assustada com cobra.
Riram juntos e dormiram.
3
Foi na escola que Estobe percebeu que havia nascido com uma única diferença dos irracionais: ele pensava. Não lhe importava acordar cedo, pois já era costume curtir os bandos de sairinhas que, todas as manhãs, apareciam no pomar que circundava a casa, para o barulhento desjejum. Também não o perturbava o arrastar de bacias corrugadas de alumínio, nas quais Maria preparava a comida para as galinhas. Os porcos viviam da lavagem: sobra de alimentos misturados com banana, inhame, mamão verde…, tudo cozido num enorme panelão de ferro batido. Depois de fria, a comida era levada, num balde, ao cocho dos porcos: um toro de madeira escavado a enxó – ferramenta goiva que Antônio manejava com maestria. De tão simétrico, nele uma criança habituada às águas podia navegar tranquilamente, como se estivesse num caíque saído de um construtor amazônida. O pai de Estobe sempre demonstrara aptidão para a marcenaria, forçado que fora, pela falta de dinheiro, a fazer as coisas indispensáveis à sua condição de lavrador pobre.
Todos os móveis da casa – embora toscos e protegidos por grossa camada de verniz, extraído de sementes de bicuíba postas em litros sobre braseiro – vieram de seu serrote, plaina, facão, grosa e mais uma dezena de pequenas ferramentas de ferro, por ele mesmo idealizadas e forjadas.
Antônio ia fabricando suas peças, e quando – com as ferramentas de que dispunha – não conseguia alcançar a modelação imaginada, deixava tudo em cima da mesa e partia para o recanto do moinho, local em que se encontrava instalado o fole de amolecer barras de ferro. Era uma espécie de forno com carvão dentro. Através de um pedal, ele pressionava a bolsa de borracha, impulsionando o ar pela mangueira. Apenas com um graveto em chamas ou uma pequena brasa retirada do fogo da cozinha, logo todo o carvão pegava fogo. A temperatura subia e dava para avermelhar o ferro, tornando-o maleável. Aí era a vez da marreta, da bigorna e da criatividade. Não havia preocupação com estética ou beleza: precisava, apenas, que funcionasse, desempenhando a função por ele imaginada. E ai de quem ousasse mexer em sua caixa de ferramentas! Para tanto, era preciso pedir, dizer para que e, tendo terminado, repor a ferramenta usada ao lugar em que fora apanhada.
Ai até das galinhas se, algum dia, ele fosse à caixa e não encontrasse uma de suas ferramentas! Ameaçava até os parcos urubus, que já sobrevoavam, de olho na pequena manga em que havia uma das sete reses prenha de 10 meses. Nascendo o filhote sadio e vigiado, sobraria, quando nada, a placenta. Nem os urubus tinham vida fácil por lá.
E a reclamação vinha definida, decorada e guardada na memória, através dos mares:
– Mariola, Ostia, che la gà frugà nea cassa dei atressi? (Mariola, sacramento, quem mexeu na minha caixa de ferramentas?)
Maria, sempre responsabilizada pelas artes de Estobe e Laura, e mais que acostumada com as interpelações indevidas, retrucava, misturando os já bagunçados idiomas:
– Comanda mi? Você sabe que não mexo em suas bugigangas. Além do mais, pra que eu mexeria, se mal sei usar o facão para cortar palhas para as vacas em tempo de seca?
– Quei disgrassià, vociferava Antônio, referindo-se às crianças. Não havia outra opção para justificar seu desequilíbrio emocional.
Para sorte das crianças, e até de Maria, Antônio também era esquecido. A maior parte das vezes, a ferramenta estava no último lugar em que ele a havia utilizado. Nessas horas, mesmo bufando de raiva, ele admitia o engano e se lamentava por estar – como dizia: – Dasendo in sò pal monte. (Descendo o morro, ficando velho e caduco.)
Antônio cedo percebera que seu filho não se transformaria num homem responsável. Um tanto rebelde, sempre levando tudo na brincadeira, fugindo dos terços, detestando mandados, amaldiçoando as ordens de apanhar sua sacola escolar feita de mescla, com caderninhos, lápis, borracha e ir à escola… Talvez ainda não houvesse nascido alguém com tanto desejo de ser livre, totalmente livre de obrigações.
As coisas começaram a melhorar para Estobe quando o Cordeiro resolveu matricular seu filho Nego. Em menos de uma semana tornara-se impossível encontrar um longe do outro. Ou Estobe estava na casa do Nego, ou o Nego em sua casa. Ambos eram os únicos do sexo masculino nas duas famílias. Nego tinha duas irmãs. A mais velha, chamada Nadir, logo foi matriculada juntamente com a Laura, irmã de Estobe. A mais nova, sem amiguinhas pelas redondezas, vivia sentada no terreiro, fazendo casinhas ou brincando com seu perequitinho-tuim – um minúsculo psitacídeo que seu pai retirara de um oco, bem no aceiro da roça. O bichinho vivia de angu com água e não saía do ombro da menina. Somente com o passar dos dias, o perequitinho fez sua protetora entender que frutinhas e sementes eram melhores do que fubá com água.
Por coincidência – ainda que Albertino Cordeiro e Norinha não tivessem os olhos azuis e fossem de cor abacinada, podia-se dizer, mulatos – Nego, o filho mais velho, nasceu de pele clara, olhos azuis e cabelos cacheados e loiros. É que Norinha, mais aculturada, vinha de família de origem alemã, e da família era a única que não possuía as características dos familiares. A genética tem lá suas equações ou surpresas! Talvez essa fosse a razão.
Depois de alguns anos, além de Antônio e Cordeiro, já havia alguns outros moradores, mas todos a uma distância perigosa para ser desfeita pelas crianças, porque a floresta era prenhe de animais ferozes e peçonhentos, em que se destacavam as onças e as cobras.
Boa parte dos “fazendeiros” (donos de no máximo 20 alqueires de terra, inicialmente todos em mata) eram descendentes de italianos, ou mesmo italianos legítimos. Nesse tempo, houve grande migração de italianos, principalmente de Vêneto, para as regiões frias do sul espírito-santense. Com o nascimento, crescimento e casamento dos filhos, muitos vieram para o norte capixaba. E como todos eram amigos ou no mínimo conhecidos, agruparam-se nos derredores da agora Marilândia. Os pioneiros que resistiram a toda falta de apoio, que escaparam das enfermidades e das picadas de cobras, foram se desenvolvendo, arrendando parte da pequena gleba adquirida, transformando-se em brasileiros conformados com a pobreza, satisfeitos com a sobrevivência.
Foi assim que apareceram os colonos e, com eles, rapazes e moças, alegrando um pouco os fins de semana de Estobe e Nego, então inseparáveis amigos. Seus divertimentos resumiam-se a peladas na escola e a caçadas de estilingue pelas novas derrubadas, em que o cariru – com suas frutinhas roxas e de agradável sabor aos passarinhos frugívoros – havia em profusão. Sabiacicas, inhapins, gaturamos, sairinhas de cores lindas e diferenciadas, em suma, centenas ou talvez milhares de espécies cruzavam os ares das lavouras.
Nesse tempo, Estobe e Nego já demostravam desinteresse pelas minúsculas caças. Ouviam as juritis e os pombos arrulharem, os tururins, jaós, chorões, urus e tantos outros denunciarem-se pela orla da mata e ficavam planejando um modo de convencer seus pais a entregar-lhes as espingardas. Afinal, uma jaó não podia ser caçada de estilingue.
Estobe vivia contando ao Nego as caçadas do pai, que todo domingo chegava com um macuco no embornal e não se cansava de narrar a proeza, sempre com boas inserções de fatos que não aconteceram. Afinal, ele era caçador!
– Você precisa ver, Nego! O macuco é do tamanho de uma galinha gorda. Acho que pesa até mais. Dá pra gente almoçar e ainda sobra. Já pensou a gente matar um bicho desses?
Nego era menos atirado, mas, possivelmente, muito mais corajoso. Demostrava não acreditar nas histórias mirabolantes e fantasmagóricas que os pais lhe contavam desde a tenra infância. Em seu entendimento, a vida dele em nada se diferenciava da dos outros animais que procuravam fugir do perigo, alimentar-se quando estavam com fome e dormir quando estavam cansados. Deus? Bem, Deus até podia existir, porém jamais se importaria com ele. É Ele lá e eu cá, costumava dizer.
Já Estobe, embora duvidasse de tudo, não escapava das ameaças dos pais por não querer rezar, e vivia com a pulga atrás da orelha contra todo ruído estranho que ouvia quando estava sozinho pelas capoeiras.
Com a insistência dos pais de Antônio, extremamente religiosos, a falar-lhe todas as noites sobre a obrigação de rezar o terço e de acreditar que Jesus Cristo é o filho de Deus que desceu dos céus e deu a vida pela salvação da humanidade, Antônio seguia seus conselhos, mesmo sem convicção. Percebia que estava perdendo a fé e entendia que, sem ela, as coisas estavam se tornando difíceis. Lembrava das admoestações do pai quando ele mesmo não queria rezar. Sempre o alertava dizendo que sem Deus as coisas não funcionavam, ou funcionavam apenas temporariamente.
Na roça e naquele tempo, um adolescente com 16 anos não ia além de um menino com seus nove anos, principalmente aqueles que moram nas cidades e têm, em casa, os equipamentos eletrônicos da modernidade. E Estobe, nos seus 16 anos, ainda era uma criança que ficava admirado quando, ao urinar, percebia a ereção.
E, numa noite, quando acordou depois de ejacular naturalmente, entrou em pânico, porque imaginou-se doente. Mas, mesmo dormindo, ele sentiu o prazer que toda ejaculação oferece e, daí para frente, começou a examinar-se amiúde. Descobriu, embora não soubesse, que seu prepúcio estava colado à glande e isto o incomodava. Um dia, ao urinar atrás da horta, houve a ereção e ele, incomodado com a pele agarrada, deu um puxão, operando-se, sangrando e entrando em pânico. Falar com o pai, nem pensar: certamente levaria uma surra, como algumas que já levara por molhar a cama.
Houve noites em que ele só dormia porque o cansaço o vencia, tamanho o medo de sonhar atrás de um toco, lá no velho cafezal, com a bexiga cheia. Até que valia a surra, porque aquela água quentinha escorrendo entre as pernas, no momento, proporcionavam sensação agradável. Ao acordar, o problemão: como evitar que o pai descobrisse que ele havia mijado na cama?
Acordava, espremia o lençol e o calção, deixava-os estendido no chão e, com o corpo, tentava enxugar o colchão de palha de milho. Até que funcionava, mas aquele odor inconfundível não escapava das narinas sensíveis de sua mãe.
Maria entendia o filho, mas Antônio, nem tanto. Para ele, as crianças haveriam de aprender o que se deve ou não fazer, por meio da correia: única escola disciplinar daquele tempo. E se houve professor exigente, nenhum foi maior do que aquele que vivia entre os passadores das calças de Antônio, auxiliado pela coordenadora “tabuinha de caixote de querosene”, que vivia encostada à parede da varanda, sempre disposta a intervir na ausência do professor. É que Antônio ainda não se desvencilhara por completo do velho hábito peninsular de usar suspensórios. Não apertavam tanto e nem exigiam tempo e esforço para prender as calças. Portanto, estando sem a correia, a tabuinha dava as aulas que se fizessem necessárias. Estobe já havia experimentado a fúria da coordenadora!
Entre os animais de que mais tinha medo, vacas e cachorros mantinham a hegemonia. Antônio e Maria possuíam, nesse tempo, dois cavalos e um boi, quatro vacas e três bezerros. As vacas eram mansas; o boi, embora nunca tivesse atacado alguém, amedrontava pelo tamanho, tanto dele como dos chifres. Os bezerros, como ele, só pensavam em brincar e detestavam o curral ao cair do dia. Os muares, como todos, nunca foram de agredir ninguém, mas galopavam com o rabo para cima todas as vezes que algum movimento estranho acontecia na limitada pastaria.
Entre as duas pequenas mangas passava a estradinha que, no futuro, ligaria Alto Liberdade à vila de Marilândia. Todas as vezes que Antônio resolvia passar os animais de um pasto para o outro, Estobe já sabia: a coordenadora iria funcionar.
Nesse dia, os animais pareciam mais endiabrados que de outras vezes. Quando se viam encurralados a passar pela travessia, os bezerros ou os cavalos disparavam para longe, sendo acompanhados pelas pacatas vacas. Diante do problema, Antônio convocou, aos gritos:
– Estobe, vien a darme na man a portar ste pesti a pascolar sora. (Estobe, venha me ajudar a tocar essas pestes para o pasto de cima.)
Estobe, ao ouvir a ordem, pensou em correr para a capoeira, mas isto não o livraria da “coordenadora”. Então, o jeito era encarar. Ao sair da varanda, lembrou da tabuinha de querosene e voltou para escondê-la. Não a viu no lugar de sempre e isto o aliviou sobremaneira. Não tanto quando viu que ela estava nas mãos do pai, que a erguia ameaçadora para intimidar os animais e pensou: é hoje.
Com dificuldade, Antônio juntou novamente o pequeno rebanho. Como a porteira do lado de cima já estivesse aberta, o pai explicou:
– Desso, Estobe, versi la porta soto a sinistra, in modo che non i scapa de novo. (– Agora, Estobe, você abre a porteira de baixo e cerca aí do lado esquerdo, para que eles não fujam outra vez.)
Tremendo de medo, Estobe abriu a porteira e correu para cercar do lado esquerdo. Duas vacas passaram normalmente e tudo parecia que iria dar certo. Foi quando um dos cavalos enroscou a rabo, negaceou, bufou e, por capricho do destino, escolheu o lado esquerdo para passar. Antônio gritou:
– Stecato, stecato, stecato! (– Cerca, cerca, cerca!)
Estobe, ao perceber que atrás do cavalo vinha o boi, não pensou duas vezes: deu no pé. Quando tentou atravessar a cerca de arame farpado que protegia a estrada, seus suspensórios ficaram agarrados, prendendo-o até à chegada do pai que, furibundo, esfiapou a “coordenadora” na bunda exposta e retardatária. E foram tantas as “repreensões” que, ao menos, através daquele tabuinha, ele nunca mais apanhou.
Era a hora das pragas! Todas as vezes que apanhava, Estobe corria para um de seus esconderijos e debulhava seu rosário de imprecações:
– Tomara que a onça pegue ele; que uma topada arranque a unha do dedão dele; que ele pegue uma caganeira de andar com as pernas arrochadas pra não vazar…
Mas era tudo desabafo de momento, porque ele amava o pai como ninguém. Na verdade, não saberia viver sem ele.
Logo, porém, a bunda esfriava, os vergões baixavam, as mangas, biribás, mexericas e jambos desfilavam sob sua visão, e os primeiros resquícios de raiva e desforra desapareciam. Estobe retornava com a boca amarela, rindo e fazendo planos com Nego para a caçada de estilingue. Corriam para a valeta do tio Gin, escavavam o barranco, retiravam a batinga, punham-se sob a laranjeira do terreiro e começavam a arredondar as pelotas. E, enquanto não houvesse boi para cercar, a paz e a felicidade reinariam plenamente.
Antônio e Maria herdaram dos pais o bom costume de rezar todas as noites. O terço que Maria ganhara da avó italiana já apresentava desgaste, tal o uso contínuo. Jamais Maria questionou a existência de Deus. Simplesmente acreditava e deixava que as coisas acontecessem. Estobe não acreditava com convicção e amor. Era mais medo de ir para o inferno do que amor a Deus Criador. Sentia-se como o Biriba, cachorro cotó que vivia latindo, correndo, comendo, fazendo suas necessidades, perseguindo coelhos, raposas e a pobre cutia que Antônio apanhara filhote e criara em torno de casa. Não fazia mal a ninguém: apenas seguia seus instintos.
A cutia saía todas as noites para alguma fruteira e retornava pela manhã. Biriba já conhecia seus costumes e, quando o dia amanhecia, postava-se sob as mangueiras que circundavam o terreiro. Aí, era só uma questão de tempo. Por mais cuidadosa que fosse, aquela sua almíscar característica ela não conseguia suprimir. E aí era aquela tocada. Todos sabiam o que estava acontecendo, e tendo alguém por perto, ele já corria para o terreiro, a fim de garantir a entrada da roedora pelo buraco do alicerce que sustinha a casa. Durante anos isso se repetiu, até que um dia o Cordeiro arranjou um vira-latas que, sem opção, fez amizade com o Biriba. Não demorou muito, eles pegaram a cutia.
Numa noite tempestuosa, quando rajadas de vento, chuva grossa e relâmpagos sucessivos fustigavam a região, Maria logo buscou o terço, acendeu uma vela e tentou reunir a família para pedir a Santa Bárbara e São Simão proteção contra aquela força descomunal da Natureza.
Mesmo diante da aterrorizante encenação, Estobe não queria rezar. Demonstrando impaciência, não pronunciava as ave-marias e não perdia qualquer oportunidade para gracejar. Antônio, a certa altura, o tomou pelo braço, abriu a porta da sala que dava para a varanda e o deixou lá, trancando a porta por dentro.
Os relâmpagos encegueciam, os trovões aplaudiam a encenação pirotécnica dos raios; a chuva, arremessada pelo vento, molhava a varanda e o que estivesse dentro. Para tantas ameaças, já não havia incredulidade que resistisse. Estobe começou a gritar, a implorar para que abrissem a porta. Prometia rezar e nunca mais deixar de fazê-lo.
Maria – como toda mãe – logo amoleceu. Levantou-se para abrir a porta, mas Antônio a impediu.
– Lassalo li. Non ghe se Dio, quindi, chel staga lì con el demonio. (– Deixa ele lá. Não existe Deus, portanto, que ele fique aí com o diabo mesmo.)
Ao ouvir aquela ameaça, Estobe fraquejou. Começou a soquear a porta e a rezar ave-marias. Nisso, um raio caiu a 100 metros da casa, sobre uma boleira, transformando o grosso caule num amontoado de pequenas lascas.
– Maria Vérgena – desabafou Maria, enquanto Antônio correu para abrir a porta, imaginando que alguma coisa pudesse ter acontecido com o menino, que estava calado, mudo e, quem sabe, morto?
Quando a porta se abriu, ele pulou nas pernas do pai e só largou no meio da sala.
Ameaçar Estobe com o diabo, fora, até então, a estratégia que os pais haviam escolhido para amenizar o espírito irrequieto do filho. Quando em vez conversavam sobre isso. Maria achava que não estava certo, mas Antônio retrucava:
– Voialtri savì che senssa l’aiuto del demonio, non ghe la faremo a domarlo e rimeterlo nea bona strada. Elo non el scolta nessuni, non el crede a niente… el voe vivere con le bestie nea foresta. (– Você sabe que, sem a ajuda do diabo, nós não iremos amansar e colocar ele no bom caminho. Ele não obedece ninguém, não acredita em nada… Quer viver como os bichos do mato.)
4
Um ano depois de Estobe concluir o quarto ano, eis que Marilândia é contemplada com a presença definitiva de um pároco. Era um alemão que já se fazia entender em Português, e não tardou a demostrar sua esperança nas crianças, sendo uma das intenções separar algumas que demonstrassem aptidão para o sacerdócio. Padre Guilherme, enviado das terras frias da Alemanha para regiões quentes do leste brasileiro – como é o norte do Espírito Santo – apresentava-se mais vermelho que um morango maduro, bem madurinho.
A cúria diocesana presenteou-lhe um velho Jeep da Willis, talvez o primeiro fabricado no Brasil: única ajuda para que ele desenvolvesse sua missão cristã naqueles rincões. Os padres, para aquela comunidade italiana, significavam algo quase divino. Por isso, a disputa das famílias para dividir as galinhadas logo o deixaram mais gordo e robusto. E o padre Guilherme era mesmo da pá-virada, tanto nas brincadeiras como no trabalho. Vivia relinchando os pneus de seu velho Jeep, tirando finos em transeuntes e bicicletas e, por vezes, deixando um pedaço do para-lamas pendurado no canto de uma calçada. Como se não tivesse tempo pra nada, vivia acelerando forte, visitando Colatina e outros lugarejos que se formavam e, sempre, com velocidade incompatível com o veículo que dirigia. Não bastasse o carro cada dia mais danificado, as estradas eram péssimas, dignas das mais desafiantes trilhas de enduros. Eram feitas a enxadão, picaretas, pás, enxadas, machados e o velho couro de boi, que era abarrotado de terra escavada e arrastado pelos construtores: protótipo rudimentar das pás-carregadeiras.
Acontece que a vereda que ligava Marilândia a Colatina era prenhe de curvas e, numa delas, o padre Guilherme resolveu entrar na velocidade em que se encontrava na reta: passou direto e foi juntar-se aos porcos de um pocilga construída pelo proprietário, a mais de 50 metros abaixo. O Jeep ficou bastante danificado, mas o padre alemão, além de sofrer apenas alguns arranhões, ainda retornou para Marilândia acompanhado de um dos empregados da fazenda, que levava, às costas, um capado fornido para o almoço do domingo.
Em menos de um mês, o Jeep já estava rodando novamente, embora fazendo mais barulho do que um velho carretão de bois sem graxa na fricção do eixo com a carcaça. E o padre Guilherme, baixinho, roliço, ralos e brancos fios de cabelo, dentes encavalados e amarelecidos pela nicotina, ia levando a vida e dizendo que ficara decepcionado com a chance perdida de ter deixado este mundo sem graça, depois daquela derrapada. Afinal, que mais espera um homem de fé, depois de deixar todas as oportunidades e prazeres deste mundo, em troca de uma eternidade feliz? Para ele, foi como perder um bilhete premiado.
Antônio nunca fora de bajular padres, mas isto não evitou que Guilherme um dia pisasse a soleira de sua casa. Acostumado e já proverbial em sua maneira mirabolante de ser, padre Guilherme foi adentrando e, para não perder o costume – antes mesmo de cumprimentar qualquer um – logo foi destapando as panelas que se encontravam no fogão. Espetou um bom naco de tatu, pediu farinha e um copo com vinho de laranja, sentou-se e depois, ainda mastigando restos de comida, cumprimentou Antônio e Maria.
Em seguida, falou sobre o motivo de sua visita: chegara ali para comunicar – é…., para comunicar e não pedir ou solicitar – que enviassem Estobe para ser um dos sacristãos da igreja. Isto seria apenas a preparação para que, no ano seguinte, ele fosse para o Seminário Nossa Senhora da Penha, de Vitória. Com certeza – garantiu o padre – ele será um ministro de Cristo de primeira grandeza.
Escorado no portal da porta da cozinha entreaberta, Antônio não conteve o riso, que acabou se transformando numa constrangedora gargalhada:
– Por que ri, homem de Deus? Onde está a graça do que falei?
Antônio, ainda repicando o riso contido, foi enfático:
– Queo, solo sel voe diventare un prete par cambiar i piani del demonio. Non el scolta nessuni el fa solo queo chel voe far lù. (– Este aí, só se for padre para avacalhar os planos do diabo. Não obedece a ninguém e só faz o que quer.)
Sem se abalar com a desconfiança de Antônio quanto ao poder de Deus para escolher as pessoas a cumprirem alguma de suas missões, padre Guilherme, sem citações pormenorizadas – mesmo porque, a única Bíblia que Antônio vira na vida fora uma velha e amarelecida, nas mãos do último missionário que passara pela região – limitou-se a dizer:
– Já ouviu dizer sobre quem Jesus escolheu para comandar, proteger e fazer crescer a igreja dele? Acho que não, mas eu vou dizer: escolheu Simão, que se fosse hoje, ainda limparia a bunda com batueira de milho. Pedro era um modesto e ignorante pescador, talvez mal soubesse escrever o nome. Era bruto, intempestivo, inseguro. Pois foi esse, entre os 12 escolhidos, que Jesus separou para representá-lo após sua morte. Ele foi o primeiro substituto de Jesus, o primeiro bispo de Roma, o primeiro papa e o que mais tempo comandou a igreja de Cristo: 37 anos. E por que Jesus fez isso? Porque ele era o melhor?
E, antigamente, quem Deus escolheu para livrar o povo hebreu da escravidão egípcia? Moisés, não foi? Quem foi Moisés? Um pastor manso e humilde que, em 1512 a.C., no Monte de Horebe, deparou-se com uma sarça ardente que queimava, mas não se consumia, e assim foi “comissionado pela voz do Deus de Abraão” para libertar Israel do jugo egípcio. Moisés foi, assim, o instrumento humano na criação da nação de Israel, o povo escolhido por Deus. Mais humilde do que qualquer outro homem, ele gozava de privilégios únicos, pois “nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, a quem Deus se deixou conhecer face a face. Mas, ele era algum rei poderoso, um general comandante de forte exército? Não, simplesmente um pastor de ovelhas, fugitivo pelo medo de ser morto por ter, também, matado um homem.
E para ser o maior ou, pelo menos, o mais importante de seus evangelistas, quem escolheu? Você não sabe, mas vou lhe dizer. Escolheu Saulo de Tarso, um judeu convicto que não conheceu Jesus, mas perseguia os seguidores dele. Mas, quando Jesus o interpelou no caminho de Damasco, derrubando-o do cavalo, deixando-o temporariamente cego e lhe fazendo a pergunta: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, ele se converteu completamente. Será que Saulo imaginaria, um dia, ser escolhido por Deus para ser santo?
Portanto, italiano cabeçudo, não pense que Deus fica por aí vigiando quem é bom, manso, humilde para escolher alguém a cumprir uma de suas missões sobre esta terra. Você mesmo, se ele quisesse, ou estivesse precisando no momento, poderia ser escolhido para trabalhar para Ele.
Nisso Antônio, que ouvia boquiaberto as histórias do padre, teve novo acesso de riso:
– Bon, quando elo lè nato, forse mi so stà selto par netarghe el culo, penso che la madona la gera tanto indafarà. (– Bem, se fosse quando ele nasceu, talvez eu fosse escolhido para limpar a bunda dele, caso Nossa Senhora estivesse muito ocupada.)
– Ah, verrückter alter Mann – Ah, velho maluco – observou o sacerdote –, acho mesmo que nem pra isso ele escolheria você – e riu, mostrando até o último molar com uma enorme cárie exposta.
Padre Guilherme tinha muitos defeitos, muitas necessidades, precisava de amparo, não apenas de Deus, mas também de algum amigo que pudesse ajudá-lo em suas tantas dificuldades. Gostava de ler seu missal na varanda. Às vezes ficava com o livro na mão e o olhar perdido no infinito, remoendo suas tantas dúvidas, principalmente sobre o motivo de estar ali, longe de seus familiares e de sua terra. Nem seria tanto o sacrifício, se nele vigorasse a fé que alimentou e manteve firmes os milhares de santos da igreja de Jesus.
Ele pensava, pensava. Como seria Deus? Jesus fora mesmo Deus descido dos céus para salvar os homens? Mas, por que os homens eram tão importantes para Ele?
E aquela velha pergunta que sempre o martirizava, voltava sempre: se Deus criou todas as coisas visíveis e invisíveis, se é poderoso como aprendemos, por que usou um método tão doloroso para salvar Sua criação? Não poderia, apenas com sua ordem e desejo, eliminar todo o mal? E esse tal de diabo, ou anjo revoltado, que vive disputando suas criaturas, não pode ser eliminado por Ele? Que disputa haveria lá nos páramos infinitos entre o bem e o mal?
Pelo que é ensinado, Deus um dia vencerá o diabo, isso lá no final dos tempos, mas até lá, quantas almas estarão sofrendo (também como aprendemos) eternamente, queimando no fogo do inferno?
E Guilherme tanto pensava, que não era raro o missal escapulir-lhe das mãos. Era quando ele despertava e voltava a si. Apanhava o livro, batia a poeira, olhava para o céu e apenas dizia para si mesmo: Jesus, mil desculpas. Certo ou errado, não vejo caminho melhor. Irei seguir seus passos até o fim de minha vida. Conto com sua misericórdia diante de minhas fraquezas.
E Guilherme com certeza era apenas mais um na multidão que entra num seminário, é ordenado e parte, cheio de dúvidas, em busca do paraíso. Vai passando aos outros o que lhe ensinaram, mas dificilmente acreditando plenamente.
Nos últimos séculos, os papas canonizaram vários santos, mas nenhum deles com as características dos primeiros da Igreja de Cristo. Isto significava que os novos santos eram homens que procuravam ajudar aos semelhantes, às vezes praticando a caridade à exaustão e morrendo sem ter certeza de nada.
Perto de sua casa paroquial havia uma centenária árvore de ipê. Sempre que ele abria a janela, ela estava lá, forte e imponente. Se fosse na primavera, mostrava todo seu adorno amarelo. Era lindo de ver. E Guilherme olhava aquela árvore e lembrava uma passagem do evangelho de Mateus: “Pois em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele passará. Nada vos será impossível”.
E lá dentro de si, Guilherme pensava, pensava: “Eu também posso dizer àquele ipê: mude-se para o alto do morro. Posso até conseguir, se alugar um trator, arrancá-lo e transportá-lo para o lugar que desejo. Não sei o tamanho exato de um grão de mostarda. Sei apenas que o máximo que eu consigo é arrancar um pé de capim e levá-lo ao alto do morro. Mas com as mãos, porque não tenho fé alguma. Não tenho nada, zero.” E para fechar suas divagações ele balbuciava, às vezes com muita vontade de chorar: “Meu Deus, irei fazendo de conta que acredito e seguirei os passos de Seu Filho, até o fim da estrada. Resta-me uma nesga de esperança: Bem-aventurados os que não viram, e mesmo assim creram. Não, não consigo acreditar plenamente, mas o Senhor sabe o quanto eu gostaria de acreditar.”
5
Muitas noites Antônio e Maria perderam, ou pelo menos dormiram mal, preocupados com a decisão que o padre Guilherme havia tomado. Sim, porque nesse tempo não havia, em Marilândia, autoridade maior para os cristãos. Podia-se dizer que os padres mandavam mais em qualquer família do que os próprios pais.
Ao Estobe – que já não gostava sequer de rezar – a ideia de ser padre desnorteava. Como? Ele, mais que ninguém, sabia que até para Deus seria difícil realizar tamanho milagre. Mas não se entregou sem espernear. Protestou a seu modo, chegando mesmo a pedir pelo amor de Deus que seus pais o livrassem de tamanho castigo.
Seus pais se comoveram, e quando padre Guilherme chegou, disseram que, infelizmente, o menino não tinha roupa, nem para viajar e nem para usar quando estivesse no seminário. Padre Guilherme ouviu calado mas, no outro dia reapareceu com muitos metros de retalhos de panos baratos e entregou-os à Maria, dizendo que, depois, se precisasse, traria mais. O certo é que ele teria recebido, em sonho, a incumbência de costurar a ida do “menino” – nesse tempo, adolescentes de 17 anos eram chamados de meninos e, em termos de inocência, de fato o eram – ao seminário, para se tornar padre secular.
Ainda que o padre não desconhecesse a distância que o separava da era dos milagres, na hora de convencer Estobe e seus pais, apelou aos saudosos tempos. Antônio, ainda que não arriscasse confessar sua incredulidade, preferia iludir-se e não arriscar. Afinal, conservando – ainda que cheio de dúvidas – os ensinamentos cristãos recebidos de seus pais e avós, era mais seguro do que abandonar o velho caminho e seguir por trilhas incertas. E foi raciocinando assim, a seu modo, que um dia ensinou o filho, numa daquelas encrencas costumeiras, quando, mais uma vez, ele não queria rezar. Antônio tomou-o pelo braço, encostou-o em suas pernas, e aconselhou. A seu modo, mas traduzindo, era mais ou menos assim:
– Me fiolo, credare che el Signore esista, se meio che non credare. Vedi ben, anca se Dio non el ghe fusse, vive meio chi camina drio al Segnore Gesù. Se parchè el Signore Gesù non el ga mai insegnà el mae, chi fa el ben non gà problem. Se ti si uno chel scolta, chel studia, chel amico, che te iuti el prossimo, insoma, che el fa del so meio, te gavarè sempre amici e non te ghe daver paura de nessun. Quando gavemo la cossiensa a posto, me fiolo, versemo la porta sensa domandar chi che sé. Quando se more, tuto finirà lì, se ancora meio, fiolo. Se dificile dire che non credemo e quando moremo, se par caso gavemo sbaglià. Chi è sensa Speranza, fiolo, perché el tempo se finio e non ghe se modo de riparar el sbaglio. Mi non posso parlar, me fiolo, ma me capissito? (– Meu filho, acreditar que Deus existe é melhor do que não acreditar. Veja bem: mesmo que Deus não exista, vive melhor quem anda conforme os ensinamentos de Jesus. É, porque Jesus nunca ensinou coisa ruim e, quem anda fazendo as coisas certas, nunca tem problemas. Se você for obediente, estudioso, amigo, ajudar as pessoas, enfim, fazer o bem, sempre terá amigos e não precisará temer ninguém. Quando a gente tem a consciência tranquila, meu filho, a gente abre a porta sem perguntar quem bateu. Ainda que, quando a gente morrer, tudo se acabar ali mesmo, ainda é melhor, meu filho. Duro mesmo é a gente dizer que não acredita e, quando morrer, perceber que estava errado. Aí não tem mais jeito, meu filho, porque o tempo se esgotou e não há mais como você reparar o erro. Eu não sei falar direito, meu filho, mas você me entendeu?)
– Sim, pai, eu entendi. De hoje em diante, mesmo duvidando, sempre vou dizer que Deus existe e vou procurar andar do jeito que Jesus ensinou. A partir de amanhã, irei rezar sempre o terço com o senhor.
– Doman? (– Amanhã?)
– Tá, pai, hoje. Mas, pai, não posso andar direito sem ir pro seminário, não?
– Potere, te poi, ma se sa come che la sé: qua el capo sè el prete. Fà sta roba chi: Se te voi, perché non te ghe niente da perdare! El n’darà a conosser posti novi. Questo el farà molto ben a ti, visto che te pensi che el mondo el sé come sta disboscata. (– Poder, pode, mas você sabe como é: por aqui, quem manda é o padre. Faça o seguinte: você vai, porque não tem nada a perder. Irá conhecer coisas diferentes, lugares diferentes. Isso irá fazer muito bem a você, que pensa que o mundo tem só o tamanho desta derrubada.)
Convencido ou forçado, Estobe jogou a última cartada:
– Eu vou, mas quero que o padre leve o Nego também. Se ele for, eu vou.
Alguns dias depois, padre Guilherme passou pela casa de Antônio e Maria. Ao receber o pedido de Estobe, não se mostrou surpreso, porque era pedido da cúria que os sacerdotes se esforçassem em enviar jovens para se tornarem ministros de Deus.
Então, passaram pela casa de Albertino Cordeiro, mas ele se encontrava na roça. Norinha, a mãe de Nego, disse que não resolveria nada. Somente o marido poderia decidir. Padre Guilherme então despediu-se e, ao se retirar, deu de frente com Albertino, que vinha recurvado sob uma pesada quiçamba de mandioca com abóboras. Padre Guilherme ajudou-o a retirar o peso das costas e, sem qualquer cerimônia, puxou-o pelo braço, levando-o a uns tamboretes que havia próximo a um canteiro de flores, contíguo à modesta casa. Assentaram-se e a conversa foi demorada, mas profícua, pelo menos para o padre.
No outro dia, mais um fardo de retalhos foi deixado na casa de Norinha, e 29 dias depois Estobe e Nego estavam sendo levados, pelo padre, para o seminário menor da Praia Santa Helena, em Vitória, no Espírito Santo.
Desde que Antônio e Maria foram deixados ali pelo responsável pela colonização do norte do Estado, nunca mais Maria e os filhos haviam ido além de Marilândia. Por isso, quando o padre embarcou na Maria Fumaça, em Colatina, tanto Estobe como Nego sentiram-se como passarinhos retirados da Natureza e aprisionados em pequenas gaiolas de embaúba. Apesar da idade, os dois pensavam e agiam como crianças. Por isso, padre Guilherme vivia perguntando se queriam ir ao banheiro, se queriam comer alguma coisa, se estavam gostando da viagem…
Apesar de serem da mesma idade, notava-se grande diferença na personalidade dos dois amigos: Estobe pensava mais, deduzia mais, arriscava menos, tinha mais medo do futuro. Nego, tendo em menor escala estas prerrogativas, normalmente apresentava seus inversos acentuados. Dizia não acreditar em nada e agia como se, de fato, tudo terminasse depois da morte.
Se durante a viagem de trem – vigiando faíscas que podiam incendiar lugares propícios, mormente roupas – eles quase não tiravam o olhar dos panoramas que se intercalavam em cada curva, quando o trem apitou na última estação da capital eles, então, entreolharam-se como se quisessem se abraçar em busca de proteção.
Como padre Guilherme já havia acertado tudo, uma velha Kombi, de propriedade do seminário, os aguardava. O motorista logo que os viu e reconheceu, entrou e ajudou a carregar as pequenas malas para o carro. Padre Guilherme as conferiu, não sem uma nesga de pena diante de tamanha pobreza e precisão. Mas não haveria de ser nada: afinal, estavam ali para praticar o desapego e alcançar a santidade.
De repente, depois de passarem por centenas de ruas e avenidas, a Kombi virou à direita e começou a subir por uma estradinha calçada com pequenas pedras, até alcançar o pátio. Ali se iniciava uma escada de 27 degraus, bem ao lado de uma espécie de gruta, com a porta fechada. Depois descobririam que era a igreja. Essa escada levava ao segundo pátio, em que estava plantado o Seminário propriamente dito, com seu refeitório, dormitório dos professores, secretaria, salas de aula, dormitório dos alunos, área de lazer…
Esse segundo pátio estava vazio e silencioso. Na frente, praticamente ligado à construção, um campinho de peladas que duas traves indicavam. Fora isso, nada mais viram ou lhes disseram que existia.
O silêncio – sem que ainda soubessem – sinalizava que os alunos que já haviam chegado, estavam tomando o café da tarde. Padre Guilherme, então, levou-os ao refeitório, apresentou-os ao reitor Acácio e os acomodou numa pequena mesa destinada aos alunos. Nela já havia dois bules, um com café e outro com leite, e dois pães já com sinais de manteiga sobre eles. A fome fez com que achassem leite, café, pão… tudo muito delicioso.
Mais um pouco, a sirene tocou e todos se levantaram para a oração de agradecimento. Nego olhou de soslaio para Estobe e fez de conta que estava rezando, mas apenas abria e fechava a boca para ludibriar algum curioso que pudesse estar olhando para ele. Estobe não pôde suprimir a vontade de rir e isto ficou bem acentuado em seus músculos faciais. Por sorte, ninguém notou.
Depois do café, Estobe e Nego foram levados ao dormitório, onde escolheram camas e armários contíguos. Foram-lhes mostrados os banheiros e o lugar em que poderiam pendurar alguma peça de roupa para secar. Havia lavanderia comunitária, mas algumas peças não deviam ser misturadas, para não criar constrangimento, como sungas e cuecas manchadas em sonhos de celibatários.
Embora ainda houvesse muitas novidades para eles, preferiram descer à praia Santa Helena: uma faixa de areia de apenas 100 metros, espremida entre a praia do Canto e a do Suá. Essas duas praias viviam superlotadas de jovens de biquíni, mas elas dificilmente eram vistas, porque poucas transitavam de uma a outra, passando pela praia Santa Helena, exclusiva do seminário.
Alunos mais antigos, já acostumados com a rotina seminarística, desceram de calção e entraram no mar. Nego e Estobe ficaram sentados sobre uma pedra, à sombra de uma jarana, cujos galhos se debruçavam sobre eles. Tudo lhes era fantástico e extraordinário, total novidade, como se fossem duas araras retiradas da Amazônia e postas em gaiolas no meio da Avenida Paulista.
Vontade de também entrar na água já não lhes faltava, mas não tinham calções adequados. Ao serem convidados a pular na água – envergonhados pela penúria – disseram que haviam descido só para conhecer o caminho e passar o tempo. Confessaram que não sabiam da existência de uma lagoa tão grande, o que causou uma gargalhada geral. Uns, por tamanha ingenuidade; outros, por imaginarem tratar-se de um chiste cheio de humor.
Era sexta-feira e as aulas só começariam na segunda seguinte. Por isso, os primeiros a chegar curtiam os bons momentos de plena folga, com banhos de mar, peladas e muitas brincadeiras. Mesmo com todo o ambiente favorável, Estobe e Nego sentiam-se isolados, porque assim viviam na casa de seus pais. As amizades da escola também não eram muitas e restringiam-se aos recreios.
Estobe nascera com o dom dos esportes, mas lá, ainda, ninguém sabia disso. Ao ser chamado para participar das peladas, respondeu que não tinha calção. Um seminarista de nome Antelmo disse que tinha vários e correu para apanhar dois, um para Nego e outro para Estobe. Nego disse que aceitava, mas apenas para tomar banho, porque nunca encostara o pé numa bola.
Estobe foi a um dos banheiros, vestiu o calção e retornou. Foi escolhido para o time do Antelmo e não precisou mais que dois ataques para marcar o primeiro gol. Entusiasmado e aplaudido, não tardou a ser considerado o melhor jogador do seminário.
Ele nascera, também, com o dom da liderança. A cada dia enturmava-se e assumia compromissos, enquanto Nego ia caindo no ostracismo e se sentindo excluído.
Com a chegada dos padres professores e de todos os alunos programados para o ano em curso, Nego percebeu que jamais iria se acostumar com aquela mudança drástica de vida. Por isso, num dos recreios da manhã, ele chamou o amigo Estobe e disse que precisava falar com ele. Estobe prontamente atendeu, e os dois desceram a escada que levava à igrejinha e subiram numa espécie de mirante que fora construído à esquerda, com magnífica visão do oceano Atlântico, tendo como varanda a entrada para o porto de Tubarão. Debruçaram-se no parapeito e Nego foi direto ao assunto que o estava martirizando:
– Estobe, eu quero ir embora. Não aguento mais ficar aqui. Vou pedir pro Reitor chamar o padre Guilherme para me buscar.
– Você já pensou bastante? Lembre-se que aqui temos escola de graça e o ensino é bom. Para ser sincero, aqui também não é o meu lugar, eu já percebi. Ultimamente, descobri que o seminário tem uma biblioteca com milhares de livros, e não é que estou me acostumando a ler?
– Não é o meu caso. Nem posso ver livro. A vontade que tenho quando me obrigam a ter um nas mãos é de logo jogar ele pela janela.
– Está certo. Temos de escrever para o padre Guilherme e falar com ele. Por enquanto, eu continuarei por aqui, pelo menos por uns tempos. Mas me aguarde, logo estarei lá para corrermos juntos atrás das pipiras e pegar as juritis dos cafezais.
Os dois riram. De fato, a decisão do Nego era irrevogável. Nunca se interessara por aprender qualquer coisa nos livros. Ele – como qualquer animal – vivia guiado pelo instinto. Se chovesse, procurava abrigo; se com fome, buscava bananas, mangas, biribás… ou mesmo alguma sobra de comida no fogão a lenha de sua casa. Assim, seus pais sempre viveram; assim ele viveria também. Era impossível flagrá-lo pensando.
Estobe dispôs-se a escrever a carta que, depois de redigida, seria selada e entregue ao encarregado de levar e trazer as correspondências e encomendas do correio.
Quando desceram a escadinha de estreitos degraus do mirante, Estobe percebeu, claramente, a grande angústia que o amigo estava vivendo. Era como se ele estivesse com uma cangalha aos ombros, pesada além de suas forças. Tendo recebido o apoio do amigo e decidido que retornaria a seu vale de tantos sonhos, Nego parecia voar. Começou a participar das brincadeiras e – ainda que não sentisse qualquer prazer – fingia dedicar-se às orações e aos estudos. Apenas às peladas ele continuava arredio. Era – e tinha consciência disto – desengonçado, sem a mínima ginga de um mero desportista. Preferia sempre ficar à sombra de uma das mangueiras laterais, olhando, sem enxergar nem entender a razão de tantos gritos, ora de reclamações, ora de alegria, que seus amigos seminaristas emitiam. Em sua cabeça, apenas os planos do retorno.
Depois da conversa que tivera com Estobe, ele começou a embrulhar suas coisas e a fazer planos. Três dias depois não parava de perguntar a Estobe se padre Guilherme já havia respondido. O pobre do carteiro do seminário não tinha sossego: era só aparecer que Nego acorria célere, perguntando pelas correspondências. Acontece que tudo quanto era enviado, ou que chegasse dos correios, passava pela triagem do reitor. Este, ladino e interesseiro em manter seminaristas para a seara do Senhor, tudo fazia para impedir que algum jovem desistisse da nobre missão de se tornar um ministro da Igreja. As cartas, principalmente essas, eram abertas, lidas e passadas pelo injusto crivo da censura.
Por isso, a carta não fora enviada, embora o Reitor tenha comunicado o caso ao padre Guilherme que, de comum acordo, já engendrava planos para dissuadir Nego da decisão.
6
Dois meses se passaram, e nada de qualquer providência. Nego nem desconfiou que o esperto padre alemão tivesse recebido o comunicado e concluído que o tempo iria fazê-lo entender que o melhor caminho, para ele, seria o seminário. Fez de conta que não sabia de nada.
O que Guilherme não aprendera em sua Alemanha foi que há uma enorme diferença entre lugar desenvolvido e sertão, e o que essas duas imposições de vida significam para quem vive e é criado neles, principalmente para os jovens com parcas opções de escolha. Para alguém que pouco raciocina, que nasce pobre e se acostuma com os pequenos prazeres de seu habitat, sempre o melhor, para ele, é aquilo que ele quer.
Nego insistiu, e Estobe ajudou-lhe a redigir nova carta, com o mesmo teor da primeira. Foi enviada, mas teve o mesmo fim: o lixo. Como já estivesse decidido a não ser padre secular e muito menos terminar sua vida enterrado em livros para morrer como culto, planejou tudo direitinho, até mesmo sem revelar seu plano ao companheiro de fé. Apanhou seus pertences, e num dia em que todos estavam de folga, jogando futebol ou tomando banho na praia, ele desceu o morro e embrenhou-se no mundo, sem conhecer nada e sem dinheiro. A única coisa com que contava era a coragem e a determinação. Perguntando aqui e ali, tomou a direção da estrada que ligava a Capital ao vilarejo em que morava.
Quando anoiteceu, encostou-se sob a platibanda de um posto de gasolina, quase ao lado de uma lanchonete. A fome roía-lhe o estômago e ele não teve qualquer escrúpulo em pedir o que restava do sanduíche de um motorista, que parecia estar comendo para não jogar fora. Ao perceber que não se tratava de um pedinte comum, o homem não só lhe pagou um suculento sanduíche, como se interessou pela situação em que ele se encontrava:
– Você é de onde, rapaz?
– Sou de Marilândia, o senhor conhece?
– Moro bem próximo de lá e, por coincidência, estou saindo agora para minha casa.
– Pelo amor de Deus, senhor, me dá uma carona até onde o senhor vai.
– Dou, sim. Sem qualquer problema. Só que vou deixar você a uns 20 quilômetros de Marilândia. Você ficará na encruzilhada e talvez tenha de passar o resto da noite lá, porque poucos carros viajam para a vila. Quer ir mesmo assim?
– Quero, e como quero. Vinte quilômetros eu ando na canela. Minha bagagem não pesa nada. É só uns paninhos de bunda.
– E de onde vem você com seus paninhos de bunda?
– Do seminário Nossa Senhora da Penha. O padre de Marilândia quer me forçar a ser padre, mas eu não tenho jeito nem para varrer a igreja.
– Êpa lá! Assim as coisas se complicam. Conheço o padre de Marilândia e não quero ter problema com ele. Sou católico e aquele padre ameaça excomungar as pessoas por qualquer coisa. Tô fora! Vai que ele resolve dizer que tenho a ver com sua escapada do seminário? Por sinal, eles já sabem que você fugiu?
– Talvez, sim.
– E por que fugiu?
– Já disse: querem me fazer padre, mas não nasci pra isso não, homem.
– Por certo, até a polícia já deve estar procurando você, rapaz, porque é muito grave um seminário não saber o paradeiro de um seminarista.
– Bem, meu senhor, se não quiser me levar, eu fico por aqui mesmo. Você já fez até demais por mim. Não imagina a fome que eu estava sentindo!
O motorista fitou aquele adolescente loiro de cabelos encaracolados, pensou em todas as respostas que ouvira, concluiu que ele fora sincero e honesto, e então, depois de alguns passos em direção ao caminhão, olhou para trás, fechou a mão e ergueu o polegar em sinal de positivo. Depois abriu a porta da boleia, e como se estivesse arrastando alguma coisa para si, disse:
– Vamos em frente, rapaz! Traga seu embrulho. Eu, em seu lugar, teria fugido bem antes.
Dando mostras de muita satisfação e alegria, Nego jogou o embrulho às costas e correu para o caminhão.
Como o motorista havia previsto, ele passou o restante da noite recostado em sua tralha. Decidiu que sacrificar-se caminhando com seus pertences às costas bem podia ser um esforço inútil, porque, apesar de remota, havia a possibilidade de algum carro passar para Marilândia.
Nesse tempo, um velho ônibus já fazia a linha Marilândia/Colatina. Partia às 8h e retornava às 18h, isso se a estrada estivesse seca e os velhos e carecas pneus não precisassem ser trocados mais de duas vezes.
Mas, naquele dia, nenhum carro passou; nem o Jeep do padre Guilherme – que comumente visitava famílias por aquelas bandas – passou por lá. Aliás, para Nego, isso foi bom, porque se havia algo que temia, o encontro com o padre era um deles. Sabia que isso iria acontecer, mas quanto mais demorasse, melhor.
Lá pelas 9 horas, Nego alçou a tralha às costas e resolveu desfazer os quase 20 quilômetros. Chegou a Marilândia junto com o ônibus das 20 horas, mas não reclamou, porque não tinha mesmo o dinheiro da passagem.
E a viagem não havia terminado. Faltavam ainda os dois quilômetros que o separavam da casa dos pais.
Quando o Biriba, cachorro do patrão, avisou que alguém estava passando pelo terreiro de sua responsabilidade, Albertino, que morava quase ao lado e sempre se deitava bem cedo, acordou, ficando de “orelha em pé”, porque gente por lá, àquela hora, era sinal de algum problema sério. E não demorou a ouvir a voz do filho chamando e pedindo para abrirem a porta. Albertino reconheceu a voz e acorreu célere. Nem o abraçou. Foi logo fazendo mil perguntas sobre o que havia acontecido.
Apesar do cansaço, Nego não teve o direito de dormir, pelo menos até esclarecer tudo e obter a bênção do pai. Afinal, Albertino jamais sonhou com seu filho sendo padre e dele muito precisava no amanho da terra que cultivava. Nego era-lhe o único macho da família e Albertino contava com ele para sustentar a mulher e as filhas depois que deixasse este mundo.
Os dias que se seguiram foram tumultuados. Padre Guilherme apareceu nervoso e pouco se importou com a obrigação de seguir os conselhos de compreensão, perdão e paciência de seu mestre Jesus. Aliás, por pouco não utilizou o “desequilíbrio” divino quando usou a chibata no lombo dos vendilhões do templo. Afinal, o que o mestre fez podia ser seguido, para ele, tanto de um lado como de outro. Enfim, diante da decisão firme de Nego, ele foi obrigado a concordar e tratou, com urgência, de comunicar ao reitor que o menino havia chegado à casa dos pais e que, de fato, não mais retornaria. Posteriormente, daria explicações.
Enquanto isso, Estobe permanecia lá, também com muita vontade de mandar tudo às favas e retornar para o lugar do qual, segundo ele, nunca devia ter saído. Com o passar dos dias, o seminário foi conseguindo mostrar a ele que o Deus que ele conhecia era ilusório, e que precisava moldar sua vida com restrições, responsabilidade e total entrega da bela e feliz juventude que desfrutava em prol da futura salvação. Em casa, sob a proteção de seus pais e ao lado do inseparável e confiável Nego, sem ainda a obrigação de trabalhar, Estobe vivera os mais felizes dias de sua vida. Isto não lhe saía da cabeça.
Mas o tempo foi passando, passando. Das cartas que escrevia ao amigo, nunca recebeu respostas, mesmo porque Nego era avesso a tudo o que exigisse raciocínio ou leitura. Quando foi para lá, de nada sabia: agora continuava do mesmo jeito, porque não se interessara, certo de que lá não ficaria e de que não precisava falar bonito, nem fazer contas, para ser feliz.
Três anos se passaram.
Agora sim, já não podiam mais ser tratados como crianças. Os hormônios apareceram e vieram com força, ocupando cada espaço que lhes era devido. As meninas já povoavam seus momentos de abstração e as ereções eram frequentes em todo devaneio. Nego não teve qualquer problema em lidar com tais eflúvios, mas Estobe, no cabresto das castrações desses aparecimentos naturais, vivia às turras com sua consciência, visitando amiúde o diretor espiritual porque não conseguira desviar os olhos das lindas garotas que atravessavam, rebolando, a Praia Santa Helena, em direção à do Canto. Pelo menos para ele – totalmente desacostumado a pouca roupa – olhar as mulheres de biquíni era tentador.
Para escapar das exigências hormonais, Estobe adquirira o cacoete de balançar a cabeça com o fito de expulsar a aproximação de qualquer pensamento libidinoso que, conforme orientação dos seus mestres padres, era pecado. O diretor espiritual o aconselhara a jamais passar um único momento sem alguma coisa boa e edificante a fazer, evitando assim que o “diabo”, esperto e ardiloso, o convencesse de que aquilo era normal e que ele podia aliviar-se. A bem da verdade, Estobe queria acreditar que as reações de seu corpo não dependiam dele: eram naturais e permitidas por Deus, mas o diretor espiritual, talvez por vingança ao celibato forçado em que a sua Igreja o prostrara, se não pensava da mesma maneira, pelo menos fingia muito bem. E não perdia a oportunidade de argumentar todas as vezes que algum seminarista tentava justificar a queda:
– Ora, é possível se controlar, sim. Eu também sinto todas essas necessidades, ainda sou jovem e, no entanto, me controlo por amor a Deus e aos ensinamentos de Seu filho Jesus.
Assim, atendendo aos conselhos, Estobe, que já vivia lendo tudo o que encontrava na biblioteca, agora partiu para a obsessão, não saindo de lá. O seminário contava com uma coleção de livros religiosos e também de grossos volumes dos mais festejados autores, principalmente do passado: Homero, Aristóteles, Platão, Sófocles, Ovídio, Plutarco, Virgílio, Tomás de Aquino, Shakespeare, Victor Hugo, Hemingway, Camões, Fernando Pessoa, Euclides da Cunha e centenas de outros. Alguns só podiam ser lidos com autorização do padre bibliotecário. Este mantinha a lista dos liberados, bem exposta na entrada, obedecendo às ordens do reitor.
A partir da Bíblia – sempre oferecida e disponível – Estobe foi lendo tudo o que era possível. Sua vida tornou-se uma rotina cansativa. Dificilmente era visto sem um livro na mão. Muitos ele passou a ler somente para ocupar o tempo e se livrar das tentações; outros, pela vaidade de dizer, posteriormente, que havia lido grande parte dos clássicos literários, ainda que pouco soubesse ou guardasse do pensamento deles.
Ficava claro que a estratégia do diretor espiritual não vingaria por muito tempo. A ideia de deixar o seminário começou a interferir até mesmo nas leituras de que gostava. E numa visita inesperada do padre Guilherme, por quem ficou sabendo que Nego se encontrava perdido nas matas, onde fora para caçar, Estobe pediu a ele que o levasse para ajudar nas buscas. Padre Guilherme logo o dissuadiu, dizendo que a presença dele em nada iria ajudar, porque toda a redondeza já estava empenhada nas buscas.
– O senhor não está entendendo, padre! Ainda que houvesse lá toda população da região, eu quero ir, eu preciso ir.
– Preciso falar com o Acácio, afinal ele é o reitor.
– Pode falar, mas eu irei.
– Não pode falar assim. Para alcançar o sacerdócio, uma das principais exigências é a obediência. Se ele concordar, eu o levarei; senão, você ficará.
– Então, que ele concorde, porque já disse, eu irei.
– Não seja petulante, Estobe. Aqui não é você quem manda.
– Não quero mandar em nada aqui. Só não permitirei que mandem em mim, que amordacem ou tolham plenamente minha liberdade. Estou aqui para ser padre, e não escravo. Não sou obrigado a ficar aqui. Vim por consideração ao senhor, mas na verdade, nunca me passou pela cabeça ser padre.
Vendo que Estobe faria o mesmo que seu amigo Nego, padre Guilherme arrefeceu, tentando salvaguardar uma das poucas esperanças de conseguir uma boa vocação em sua paróquia.
Pouco demorou para que Estobe fosse chamado à reitoria. Mais vermelho que de costume, o reitor nem o convidou a sentar-se. Foi logo estabelecendo:
– Rapaz, aqui há ordem e disciplina e estas prerrogativas impedem que você saia quando desejar. Para visitar seus pais, ou mesmo ir em socorro de seu amigo desnorteado na mata, temos as férias. Acho que isto é tudo e volte para a sala de estudos.
Estobe deu uma risadinha quase de deboche, olhou para seu pároco e perguntou:
– O senhor me leva ou irei sozinho, como o Nego?
Padre Acácio ergueu-se arremessando a poltrona em que estava sentado a alguns metros para trás. Aproximou-se em tom ameaçador e sentenciou em riste:
– Isto é o que vamos ver.
– Assim seja – respondeu Estobe, sem mudar a distância de seu nariz do nariz do reitor.
Padre Guilherme, estarrecido e sem nem saber a direção da saída, tomou Estobe pelo braço e o retirou da reitoria, quase arrastando-o para o lado do refeitório. Estobe refez a direção e saíram para o pátio. Mal chegou, disse:
– O Reitor está com a razão. Irei para a sala de estudos e pensarei melhor sobre o assunto.
Padre Guilherme sentiu um grande alívio e, inocentemente, imaginou a situação contornada. Tomou a direção da reitoria e foi dar a boa notícia.
– Graças a Deus, Acácio, o rapaz entendeu. Já está na sala de estudos e disse que reconhecia o erro dele.
– Às vezes, caro Guilherme, é preciso ter pulso forte. Não é fácil dirigir um seminário com mais de 200 cabeças pensantes e nem sempre dispostas a aceitar as regras de uma congregação rígida como a nossa.
E lá os dois ficaram comemorando a vitória por mais de uma hora, só se levantando quando a campainha avisou o fim dos estudos daquele dia. O reitor, num raro momento de humildade, convidou Guilherme a bater um papo com Estobe e até a desculpar-se pela maneira grotesca com que o tratara.
A esta altura, Estobe já estava a quilômetros do seminário, porque ao invés de se dirigir à sala de estudos, tão logo se viu livre e sozinho, desceu correndo a estradinha de pedras que dava acesso ao bairro contíguo e, mesmo sem uma segunda muda de roupa, tomou o primeiro bonde e distanciou-se quanto pôde. Nem se lembrou de que a noite chegava e de que não tinha, no bolso, um só centavo para quitar a passagem.
Não se apavorou e, na primeira diminuída de velocidade do bonde, ele saltou, esborrachando-se numa recente poça de lama quase seca. Ergueu-se, olhou para trás e só ouviu gargalhadas e uma coleção de dentes a expor-se sem piedade. Já mais nada lhe importava: começou a perguntar – como Nego o tinha feito – e acabou na orla da estrada que o levaria de volta à Marilândia. E a trancos e barrancos, ele conseguiu: ora pedindo, ora quase implorando. O certo é que também realizou seu intento. A noite perdida parecia nada significar para aquele jovem saudável, mesmo porque estava vivendo a ansiedade de encontrar seu velho e único companheiro de verdade.
Pela manhã, foi grande sua surpresa quando, ao entrar no terreiro de sua casa, viu o Jeep do padre Guilherme estacionado no terreiro, junto a pequenos montes de café maduro. Não havia ninguém do lado de fora e o Biriba apenas acorreu a seus pés, abanando o cotoco e lambendo-lhe os pés, como a dizer: quanta saudade, amigo! Antes de ir embora, Estobe não saía de casa sem que Biriba o acompanhasse.
Esgueirando-se pelo mangueiral e acompanhando a valeta que fora construída para desviar parte das águas do córrego Santo Hilário, Estobe protegeu-se atrás de um pé de café e ficou aguardando que o padre se retirasse. Mas era quase hora do almoço e o vigário não perderia a viagem. Na roça – e principalmente na casa de Antônio – todas as refeições aconteciam muito cedo. Era café da manhã às seis, almoço às dez, café da tarde às 14h e jantar às 17. Com isso, a demora foi maior e propiciou a Estobe também matar a fome colhendo goiabas, que havia em profusão, às margens do alagadiço em que, na infância, tanto perseguira as rãs, piaçocas, frangos-d’água, saracuras…
E como o padre não ia embora, Estobe encostou as costas no tronco de um ipê que escapara milagrosamente da derrubada e se entregou ao devaneio de recordar o dia em que encontrou, sob sua arapuca, no brejo ao lado, um irerê. Naquele dia, antes de retirá-lo – como sempre fazia – gritou para o Nego, que veio célere para compartilhar a grande façanha. O brejo era contíguo à estradinha, e logo após havia uma pequena área de capim em que tanto Antônio como Albertino edificaram suas casas. Foram construídas a menos de 100 metros uma da outra.
E os dois, ali, maravilhados com o feito, demoraram em tomar a decisão de ter o irerê nas mãos. Debatendo-se na ânsia da liberdade, o irerê afrouxou os pauzinhos da arapuca (que fora construída com toletes de assa-peixe verde que o tempo secara) e fugiu afoito, na onomatopeia que lhe originou o nome… que bem podia ser interpretada como: consegui, consegui, consegui…
Naquele momento ele se via ao lado do Nego, olhar desolado, enquanto o irerê voava em círculo sobre o brejo, feliz da vida. Era, possivelmente, a primeira aula deles sobre o valor da liberdade.
De quando em vez, Estobe esgueirava-se entre o cafezal e voltava frustrado: o Jeep do padre continuava lá e, agora, com mais gente chegando. É que o padre não tinha ido lá apenas para falar do “fugitivo” e almoçar, mas também – como era considerado o que mais carregava conhecimentos e bom senso – traçar o último dia de procura ao Nego, que há três dias havia se perdido na mata. Não suportando mais tanta demora, Estobe esgueirou-se para a casa de Albertino, pai de Nego, que já havia, a chamado do padre, se dirigido à casa de Antônio, seu patrão.
Encontrou Norinha desmanchando-se em pranto, porque, para ela, Nego já estava morto, possivelmente trucidado por uma onça. Estobe, atabalhoadamente, tentou acalmá-la, contou a razão de estar ali. Aos poucos os soluços foram diminuindo e puderam conversar:
– Por favor, dona Norinha, conte-me como tudo aconteceu.
– Na sexta-feira bem cedo, logo que “Bertino” (Albertino) saiu pra roça, ele apanhou a “por fora” e disse que ia caçar um macuco pra gente comer. Ele saiu descalço, com camisa de manga curta, sem boné, apenas com uma faca de cozinha na mão e a espingarda. Não levou nem munição, porque disse que daria um único tiro. Segundo ele, seria coisa rápida e o pai nem podia ficar sabendo, porque nunca permitia que ele apanhasse a espingarda. Ele sempre falava em matar um macuco, porque quando menino, segundo ele, vocês sonhavam com isso.
Como mãe é mãe, de tanto amor, às vezes irresponsável, Norinha consentiu e Nego saiu quase correndo para o morro em que o macuco estava piando. O passarinho estava piando bem ali – e Norinha apontou com o dedo, pela janela, um canto de mata que descia até o riacho Liberdade. O passarinho piava ali, bem no aceiro.
– E daquela hora até agora, ele não voltou. O pai já andou e gritou de ficar rouco, mas nem sinal dele. Todo o pessoal da redondeza já andou pela mata e ninguém viu qualquer sinal.
– Eu vou achá-lo, dona Norinha, nem que seja morto.
– Virgem do céu, não fala assim.
– O que quis dizer é que fugi do seminário para procurá-lo e nem para lá mais voltarei se não o encontrar. Já estou nervoso com a demora. O diabo daquele padre não sai lá de casa e não quero esbarrar com ele por enquanto. Ele irá me tomar mais um bom tempo com explicações inúteis. Já pensei em tudo. Vou precisar de um bom sapatão, um facão amolado e um pedaço de pedra de amolar, a espingarda de papai com todos os cartuchos que ele tiver, o pio de macuco e o de jaó, duas caixas de fósforos, um pedaço de plástico, um rolinho de esparadrapo, uma rede e, se tiver, cinco metros de linha de nylon, dois metros de elástico bem forte e, se possível, uma lanterna e quatro pilhas, para as noites chuvosas. Certamente estou esquecendo alguma coisa importante, mas até a hora de sair, lembrarei. Quero ir prevenido e sem pressa, porque não retornarei sem ele.
– Você está esquecendo a cabaça para levar água. Não sei se há nascentes em toda grota. E quem vai com você?
– O Biriba.
– O Biriba? Por que levará o cachorro e não um homem?
– Porque além de ser o melhor amigo do homem, o Biriba é também, depois do Nego, meu melhor companheiro. Olhe para ele aqui, no meu pé. Desde que cheguei ele não saiu dos meus pés. E como se me entendesse: não latiu para não chamar a atenção, porque percebe que, por algum motivo, preciso de privacidade. E todas as vezes que olho para ele, ele abana o cotoco e se esfrega nas minhas pernas. Tenho certeza que se eu passar um mês no mato, ele não tentará me convencer a retornar. Não bastasse, ele conhece bem o Nego e, tenho certeza, guarda em seu nariz o cheio inconfundível dele.
Felizmente, algumas horas depois, grupos de dois em dois saíram para o mato e o padre foi embora, como sempre, relinchando os pneus do velho Jeep. Maria logo saiu para o terreiro com sua enorme bacia corrugada de alumínio, cheia de pratos sujos, o que indicava que o padre não abrira mão da costumeira penosa. Antônio, logo em seguida, apareceu com um rodo às costas e foi ao terreiro mexer o café, que ali havia sido jogado para secar.
Ao ver o pai leirando o café, Estobe estranhou que ele não estivesse fazendo parte dos grupos que se embrenhavam na mata à procura do Nego. Notando sua estranheza, Norinha explicou:
– Percebo que está surpreso porque seu pai não está junto com a turma que foi procurar meu filho, não é?
– Com certeza. Esperava que ele fosse o primeiro.
– E foi, Estobe. Ele procurou ontem o dia inteiro, passou a noite no mato, porque dizia que no silêncio da noite talvez fosse melhor ouvir gritos de socorro. Chegou agora de manhã e deve estar muito cansado. E como a gente vê, ele não viu nem ouviu nada.
– É…., de fato a coisa é séria, muito mais séria do que imaginamos.
– Eu sei que não posso perder as esperanças, mas está sendo muito duro eu continuar acreditando que ainda vou ver meu filho.
– Você vai ver sim, Norinha, você vai. Bem, deixa eu acabar de chegar em casa. Depois a gente se fala mais.
7
Estobe, desde pequeno, sempre fora brincalhão. Brincalhão e sentimental – apesar destas duas vertentes de personalidade humana parecerem adversas. Às vezes, ao exceder-se em suas brincadeiras ou molecagens, levava um cocorote dos mais velhos, ou era por eles repreendido na presença de quem estivesse por perto. Isso bastava para que ele se retirasse para um canto qualquer e chorasse amargamente. Se visse uma cena triste, ou mesmo lhe contassem casos ou histórias de sofrimento, de gente ou de animais, as lágrimas logo escorriam pela sua face. Ele vivia os fatos como se fosse testemunha presencial. Assim ele era quando criança; assim ele continuava como adolescente.
Agora que já era rapaz, teve uma recaída, não perdendo a oportunidade de dar um susto no pai que, distraidamente, espalhava os pequenos montes de caroços de café maduro ao sol. Veio e agarrou o velho que, diga-se de passagem, detestava brincadeiras. Imitou um esturro de onça e apertou-o por trás. Antônio, que estava com o pensamento longe, imaginando onde estaria ou o que teria acontecido ao filho de seu meeiro, assustou-se de fato:
– Ostia, da dove seo vegnù? (– Sacramento, de onde apareceu?)
E como a estrada era contígua ao terreiro, continuou:
– Mi so chi dae prime ore del dì e non go visto nessuni andar par strada. Parchè ti si chì? Cossa se capità? (– Estou por aqui desde que o dia amanheceu e não vi ninguém passar aí no caminho. Por que está aqui? O que aconteceu?)
Para não repetir a mesma história, Estobe prometeu que, logo possível, contaria tudo a ele. Convidou o pai a parar o serviço, porque precisava muito, e com urgência, falar com ele sobre o desaparecimento de seu amigo de infância. Maria vinha voltando da bica d´água com a bacia de pratos já lavados e, ao reconhecer o filho, arriou-a ao chão e esvoaçou a saia em direção a ele. Dando vazão à convivência diuturna com o marido italiano, exclamou:
– Maria Vérgena!
Abraçaram-se, Estobe retomou a bacia e todos foram em direção à casa em que moravam. Eram poucos metros que os separavam e, por isso, logo se viram sentados no banco da cozinha, com o fogão a lenha ainda bem aceso. Maria encheu um prato fundo com café e leite, aproximou a tábua da polenta, trouxe o queijo, deixou-o ao lado do prato, e quando olhou para o banco para chamar o filho, ele já se encontrava sentado, com leite e polenta escorrendo pelo queixo, comendo como leitão faminto no cocho do chiqueiro. Logo depois das primeiras colheradas, Estobe lembrou-se de Laura:
– Cadê a caçulinha, mamãe?
– Está pra escola. Ela e a Nadir saem bem cedinho, porque a escola fica lá na paróquia da vila e a dona Zilda não gosta que os alunos se atrasem. Ela está a coisa mais linda do mundo, Estobe. Os olhinhos dela parecem que estão cada dia mais azuis, a pele parece de seda e os cabelos se parecem com fitinhas de ouro. É inteligente, bonita e até brinca de escola, sendo sempre a professora de suas coleguinhas. Vive desenhando, colorindo toda figura que encontra e cantarolando. Não pode ver seu pai com a sanfona na mão, que corre lá do lado e fica admirando as bobagens que seu pai toca. Acho que vai ser cantora.
– Papai ainda toca aquela velha oito baixos?
– Todo dia, depois da janta, a gente tem que aguentar ele.
– Bem, quando a Laura chegar, diga pra ela que estou com muita saudade e que lhe darei um forte abraço ao retornar.
– Ué, já está saindo?
– Ah, sim, falei apenas pro papai. Vou sair imediatamente à procura do meu amigo Nego.
Apesar de tudo aquilo estar acontecendo, Antônio achava que a preocupação com o companheiro de infância perdido não era a única razão daquela visita inesperada. Esperou o momento adequado, e não mais se conteve:
– N’cò….? Lè apena rivà e sà el voe n’dar via de novo? (– Mas, afinal, por que veio fora do tempo de férias?)
Na verdade, Antônio esperava o dia em que o filho desistisse de usar saia – como sempre se referia aos padres – retornando para ficar definitivamente com ele. Estobe também sabia que este dia aconteceria, mas, no momento, não era este o motivo principal. Já não tinha tanta pressa de abandonar o seminário. Estava aprendendo muita coisa e tendo boa noção da vida e do mundo. Os seminários, nesse tempo, eram referência de ensino em quase todo o mundo.
– Ô pai, o senhor sabe de minha amizade com o Nego e nem imagina como estou me sentindo, sabendo que ele está sozinho, possivelmente em perigo, perdido aí dentro desta floresta sem fim. Eu vim para provar minha amizade, e hoje mesmo quero sair para procurá-lo. Pai, pense no Nego. Ele podia ser seu filho também. Imagino que, se eu estivesse agora no lugar dele, o senhor estaria pelo mato, chamando desesperadamente, e nem tanto porque eu mereça. O senhor sabe muito bem o que significa, para mim, o desaparecimento repentino do Nego, não sabe? Nós fomos criados juntos.
– Tuto ben, tuto ben. (– Está bem, está bem.)
Estobe explicou que iria sem pressa e que ninguém se preocupasse com uma possível demora de até dez dias. Falou para o pai sobre o mínimo de que iria precisar. Ao ouvir, Antônio interpelou:
– E par mi? Non ti si bon imaginar cossa che farò in meso a sti boschi. Albertino el sé nel bosco con li altri che se in serca. Sa fusse chi, vero…! L’omo non el dorme el pianse tutto el dì , vuto vèdarlo. Me spaca el core, ma non so cossa fare, se poe solo pregare. E te conossi la forssa che go davanti al Signor! (– E, para mim? Você não está imaginando que irei deixá-lo entrar por estas matas sozinho! O Albertino está na mata com os outros que também estão procurando. Se estivesse aqui, iria com você. O homem não dorme e chora o dia todo, você precisa ver. Eu morro de pena, mas não sei o que fazer, senão rezar. E você conhece a força que tenho diante de Deus!
– Pai, mil desculpas, mas o senhor, nesse caso, só vai me atrapalhar. Vive tendo crises de asma. Já imaginou uma crise pesada, em noites de chuva e dias de intensa umidade, longe de casa? Não quero que deduza que eu esteja insinuando que o senhor está velho ou cansado, mas é que o tempo passa para todos e, com certeza, o senhor não é exceção. Faça o senhor mesmo uma equiparação sobre a diferença entre seus 18 anos e o peso que o trabalho e os anos estão significando hoje para o senhor.
– Porterò con mi el me inventore Asmac, stà bon. (– Levarei comigo meu estoque de Asmac, não se preocupe.)
– Não, pai, apenas o Biriba irá comigo. Irei devagarzinho, com direção sempre mantida, dirigindo-me pelo sol e, em caso de chuva, esperarei que o sol volte, para não ficar rodando como galinha que recebeu uma vassourada na cabeça, depois de carimbar o assoalho como uma bela cagada, não é, mamãe?
E depois de muitas objeções do pai e contraposições do filho, ficou decidido que, de fato, Estobe iria apenas com a companhia do Biriba. Maria passou horas embrulhando polenta, queijo, carne de porco guardadas em latas de biscoito cheias de banha para conservar…. Quando terminou, Estobe riu e ponderou:
– Mãe, será preciso contratar a tropa do Chico Mineiro para carregar tudo isso aí. Não precisarei, senão, de uma marmita para hoje e amanhã cedo e, mesmo assim, apenas para ganhar tempo. Papai já está lá carregando mais cartuchos e a senhora sabe que, filho de peixe, peixinho é. Papai, até agora, nunca precisou das galinhas nem dos porcos para termos carne em casa. Ele é um dos maiores caçadores da região e eu sou filho dele. As matas aqui são prenhes de animais silvestres. Sei que irei encontrar alguns todos os dias e poderei até escolher meu cardápio. O meu, e o do Biriba.
Maria, apesar de um tanto frustrada, riu, já se imaginando o dia todo agarrada à saia da mãe de Jesus, pedindo amparo ao filho. Era meio-dia em ponto quando, mais uniformizado que um soldado em campo de batalha, Estobe se dirigiu para a floresta. O pai quis saber:
– Gheto capio ben tutto queo che go dito? Se te resti sensa el fusile, seto come ciapare un oselo, seto come preparar e armar la trapola? Te devi saper indovinare dove la bestia la n’darà e la ritornerà!? Ricordate che non sè pol mai sparar, se ben mantener sempre la calma. Se se perde la diression se meio star fermi, non movare i pie finchè non se sé sicuri dea diression e capir dove el vien e dove el và. Go sa caminà in sto bosco e sempre rompo dei rameti par traciar el ritorno. Ti non te poi far istesso, te versarè el camino cossì te ricordarè da dove te si vegnù. Se te ghè bisogno de aiuto liga al colo della Biriba del nastro rosso, e de forma rabbìà, mandala verso el camino de casa e anca se ritorna sensa nastro non interessa, quando vò a cacia de simmie e la fasso ritornar a casa significa che gò bisogno de aiuto, se il Biribba (el can) ritorna con el nastro salo vol dir che el Nego (negro) nonostante che le vivo el gà bisogno de aiuto, e finalmente, sel torna indrio con el nastro viola vol dir che lo gà trovà morto. Te ghè sincue (5) dì par trovarlo, sensa sbagliar. Va dentro là, vissin la pianta de jequitibá, sempre drito e versi ben la strada, dopo sincue (5) dì te la gavrè trovà. Gò solo dodase (12) cartuce e nonostante le sia ben cariche le podaria non esser suficienti, perchè te ghè ancora poca esperiensa come caciatore. Nonostante gli insegnamenti e le lunghe storie ca te gò racontà. Par questo porta con ti sto sacco de polvere da sparo. Dopera la ponta del corteo par tore la spoleta sparà, el manego del corteo par tore quea nova. Sta cartucia la se la mesura ma se te doperi el chumbo te ghè bisogno del dopio de polvere (da sparo). Per separar la polvere dal chumbo non te lo digo pì, perché te lo ghè visto un mucio de volte. Se non te ghè la carta, dopera dele foie seche. Te poi esser sicuro chel tiro el sarà perfeto. (– Você entendeu bem tudo o que eu falei? Caso fique sem a espingarda, você sabe como pegar um passarinho, sabe como preparar e armar o laço? Sabe escolher o lugar em que o bichinho vai passar para que ele pise no laço? Lembra que nunca pode atirar no que não está vendo e que precisa ter sempre muita calma. Se se desnortear, não tire o pé do lugar até que tenha certeza da direção em que veio e para aonde irá em seguida. Sempre entrei nestas matas e apenas quebrei alguns raminhos para marcar a saída. Você não fará o mesmo. Você abrirá sua picada, bem feita e sempre marcando pontos interessantes para fazer você lembrar que passou por ali. Se precisar de ajuda, amarre esta fita vermelha no pescoço do Biriba e brigue com ele para que volte para casa. Embora sem fita, sempre quando ele me acompanha nas caçadas de macuco, eu brigo com ele e ele volta para casa. A fita vermelha é para avisar que você está em apuros e precisando de ajuda; a amarela é para dizer que encontrou o Nego mas que, apesar de vivo, ele precisa ser transportado, e finalmente, se o Biriba chegar com esta fita roxa, é porque achou ele morto. Você terá cinco dias para sua procura, nem um dia a mais. Entre lá no pé daquele jequitibá e dele para adiante, faça boa picada. Depois de cinco dias sairei à sua procura. Estamos entendidos? Eu só tenho 12 cartuchos, filho. Estão carregados, bem carregados, mas pode ser que acabem, porque você ainda tem muito que aprender sobre caçada, apesar de eu viver ensinando você e lhe contando tantas histórias. Por isso, leve esta sacolinha com pólvora, chumbo e espoleta. Você usa a ponta do facão para retirar a espoleta atirada e o cabo para prender a outra não atirada. Este cartuchinho de revólver é a medida de pólvora. Para o chumbo, use o dobro da medida da pólvora. Quanto a separar o chumbo da pólvora, nem preciso dizer, porque você viu muitas vezes como faço. Se não tiver papel, use folha seca mesmo. Pode deixar que o tiro irá sair e o chumbo varrerá a direção em que apontar.)
– Pai, estou levando comigo um lápis e estas folhinhas de papel. Todo fim do dia, antes de dormir, eu escreverei alguma coisa e prenderei na ponta de uma varinha, bem no meio de minha picada. Em caso de terem encontrado o Nego e vierem me buscar, vocês irão ficar sabendo de minha posição.
– E capisso la to scritura? Ora stemo parlando difissile e ben per la magior parte, go solo da capir queo chel dise. (– E eu entendo sua escrita? Agora você está falando difícil e bonito e, na maioria das vezes, eu apenas deduzo o que diz.)
Estobe riu, deu um forte abraço no pai e na mãe, chamou o Biriba, alimentou-o sobejamente e partiu. Antes, lembrou:
– Pai, se alguma coisa me acontecer de ruim, não fique triste. O senhor e a mamãe me ensinaram a fazer o bem, a ser amigo até daqueles de quem não gostamos; e lá no seminário, reforçaram ainda mais o ponto de vista de vocês. Estou saindo para uma causa nobre, de caridade e, principalmente, de amizade. Enfim, se me acontecer alguma coisa grave, já tenho em mente as palavras do apóstolo Paulo em seus últimos momentos de vida: “Combati o bom combate”.
– Nada de ruim irá acontecer com você, meu filho – disse Maria, já com lágrimas nos olhos e o terço numa das mãos. Só não sei de quem você herdou tanta coragem, porque tenho medo até de entrar nos cafezais, mesmo de dia. Só em pensar em você, sozinho, no meio desta mata cheia de cobras, onças e bichos perigosos, me dá vontade de chorar.
– Não estarei sozinho, mãe! Tenho meu companheiro de fé, o Biriba e, se ele não conseguir resolver, ainda posso contar com a espingarda e a ajuda de Deus.
Antônio, que ouvia a conversa, interferiu:
– El coraio lo gà ciapà da mi. El nono, che nonostante el vegneva a casa con la testa rotta, non el gaveva nessun problema. (– A coragem ele herdou de mim… E do avô, que apesar de chegar sempre em casa com a cabeça quebrada de gramarim, nunca enjeitou qualquer encrenca.)
Maria virou-se para Antônio, fixou-lhe um olhar acusativo, porque o orgulho que seu marido sentia do pai, às vezes o tornava inconsequente, ou mentiroso mesmo, e ele não se furtou a uma pequena mas necessária complementação:
– Va ben… lu beveva massa…! (– Está bem, está bem! Ele bebia muito!)
De fato, o avô de Estobe nunca se livrara do vinho. Trabalhava de segunda a sexta, mas no sábado, todos já sabiam: selava o velho cavalo – cuja idade e tempo de trabalho o tornaram manso e paciente – e, como diziam, partia pras quebradas. Era costumeiro, no domingo à noite, o cavalo chegar na porta de sua casa com ele deitado em cima da cela, todo ensanguentado pelos golpes dos “gramarins” inimigos. O velho cavalo – depois de muitos anos fazendo a mesma coisa – sabia até abrir as porteiras e devolver o velho ao lugar de aonde saíra. A avó de Estobe, com a ajuda dos filhos, descia-o do cavalo e o deitavam sobre uma esteira de taboas, num dos cantos da varanda, até que ele voltasse a si, vomitasse e dissesse mil impropérios, como se o mundo fosse culpado por sua dependência. A família esperava um pouco mais, e quando notava que ele já estava consciente e calmo, o acompanhavam à bica. Ele tomava banho, jantava, aceitava os curativos e ia pra cama. Na segunda-feira, como se nada tivesse acontecido, lá ia ele, enxada às costas, rumo a algum ponto de suas pequenas lavouras. Seriam cinco dias de sossego na casa.
O pé de jequitibá distava uns 300 metros da casa de Antônio. Nascera lá, Deus sabe quando, talvez ainda antes de ele ter nascido na Itália. Parecia alçar-se às nuvens, tal a altura que aparentava. Seu tronco media mais de oito metros de circunferência. Nascera ao lado de uma gruta formada por pequenas pedras e uma nascente de pouca, mas cristalina água, onde Antônio plantara um pé de chuchu que, há dois anos, não deixava de produzir frutos sobejamente. Por isso, até lá a picada estava bem batida, porque toda semana Antônio ia recolher os frutos que Maria utilizava, tanto para saladas como para misturar às carnes em deliciosos ensopados.
Estobe e Biriba não demoraram a chegar lá. Sem pressa e lembrando que assim teria de ser todo o percurso da caminhada, ele arriou a tralha, que lhe parecera volumosa (Maria introduziu um pequeno cobertor e mais uma velha rede dentro, mesmo contra sua vontade). Da sacolinha de plástico retirou o lápis e uma de suas folhinhas de caderneta, e escreveu: “Deste ponto, hoje, 25 de setembro de 1939, segundo o relógio de bolso de meu pai, às 13 horas e 17 minutos, eu, Estobe, e meu companheiro Biriba, estamos partindo em busca de nosso melhor amigo de infância, e de agora também, Nego.”
O tempo fizera com que cogumelos conhecidos como “orelha de pau” tivessem crescido e endurecido em quase todo o contorno da árvore centenária. Eram grandes, duros e forneciam seguro abrigo às chuvas. Sob eles – notava-se – estava muito seco. Estobe, com paciência e cuidado, utilizando a ponta do facão, abriu uma lasquinha e prendeu o papel. Desceu, tomou bastante água da nascente, repôs a carga às costas e partiu resoluto.
Apesar de passar grande parte de sua infância andando e caçando de estilingue pelas capoeiras, Estobe não tinha prática, e talvez nem condições, de empreender uma busca naquela imensa e aparentemente inexpugnável Mata Atlântica. Por isso, ao se mover para iniciar a caminhada, tomou um grande susto quando um bando de urus esvoaçou bem próximo dele. É que os urus andam em bando e se agacham ao perceber a presença de algo incomum. Contudo, pelo instinto, também sabem a hora de dar no pé. Biriba deu alguns latidos e voltou aos pés de Estobe, e os dois, então, começaram de fato a caminhada.
Não haviam progredido nem 500 metros quando ouviram gritos seguidos. Estobe parou, afinou os ouvidos, ouviu novamente os gritos e, então, respondeu utilizando toda a potencialidade de suas cordas vocais. Tendo assinalado que ouvira o grito, novamente arriou a carga e sentou-se sobre um galho que há tempos havia se desprendido de uma sucanga, assim chamada a árvore que sempre era procurada para as lenhas do fogão.
Um pouco mais, e um grito mais próximo. Estobe respondeu e continuou aguardando, já identificando o grito como sendo de seu pai. Por isso, cheio de esperança de que haviam encontrado Nego, ele saiu ao encontro, deixando a tralha no lugar. Seria extremamente prazeroso voltar para apanhá-la, caso houvessem encontrado o amigo. Por isso, mal avistou o pai, foi logo deduzindo:
– Graças a Deus, encontraram o perdido, não é isso?
– No… no… fiolo. Prima gera. Perchè, come savì, la Ceolin la gà accusà mì de tegnere el giasso, le punture contro i morsegoni dei sarpenti. Ogni stimana torna a casa e la porta del giasso novo, perchè l’altro el se desfa e dopo na stimana el siero non el se pol tegnere fora dal giasso. La me ga domandà anca de salvare altre medissine, in particolar la peninssilina. Ghi nè dei altri, ma non go mai vardà, a cossa chei giova. Quando la gà ricordà che, appena messa in questa casela, giasso, segaura e pi la siringa con sie (6) flaconi. El contenitor de giasso che non durerà pi de du giorni, ma va ben lo stesso. Sii tra i serpenti, i putei, e podaria esser utile e con l’aiuto del Signor, la medissina la n’darà ben. (– Não, não, filho! Antes fosse. É que, como sabe, o Ceolin me encarregou de guardar no gelo as injeções contra picada de cobra. Toda semana ele vem lá em casa e traz gelo novo, porque o outro derrete depois de uma semana e o soro não pode ficar fora do gelo. Ele me encarregou, também, de guardar outros remédios, principalmente penicilina. Há outros, mas eu nunca olhei, sequer, para que servem. Quando lembrei disso, logo coloquei nesta caixinha, gelo e pó de serra e mais a seringa e seis ampolas. O gelo nessa caixinha não vai durar mais de dois dias, mas já ajuda. Você está entre as cobras, filho, e pode precisar. Mesmo com as ampolas fora do gelo, com a ajuda de Deus, o remédio vai funcionar.)
– Eu nunca apliquei uma injeção, pai!
– Se ghe sé bisogno – e el Signor voia che non – se impara na seconda, el me creda. Non sdemendegarte: fà tute le sie fiale una drio l’altra nei posti pì distante dal morsegon. Capio? (– Se houver necessidade – e Deus queira que não – você aprenderá num segundo, pode acreditar. E não esqueça: aplique todas as seis ampolas, uma atrás da outra, em lugar distante da picada. Entendeu?)
– Puxa, pai, se continuarem trazendo coisas, vou ter que improvisar uma cangalha para o Biriba também. Agora, pai, sinceramente, acho que se eu mesmo precisar enfiar seis vezes a agulha no meu corpo, talvez prefira morrer mesmo.
– Tranquilo, fiolo! Se sta fasendo calcosa mille volte peso, più rischioso e non elgà paura e preoccupassion. Infati sto morendo de paura e preocupassion, ma giuro, so tanto orgoglioso. (– Não se preocupe, filho! Você está fazendo uma coisa mil vezes pior, mais arriscada, e demonstra não estar com medo. Para dizer a verdade, eu sim é que estou morrendo de medo e preocupação, mas juro, estou muito orgulhoso.)
E depois, fugindo à regra de seriedade e sisudez, complementou:
– Spero de trovar un giaguaro, e speremo che la sia na giornata de sole e con un saco de acqua. Ghe vorà un sacco de acqua per lavar i vestiti e tanto sole par sugarli. (– Espero que, se encontrar uma onça, seja num dia de sol e perto de muita água. Vai ser preciso muita água para lavar a roupa e boas brechas de sol para secar elas.)
Em seguida, abraçando novamente o filho e esboçando o que seria um leve sorriso – o que era raro – desejou-lhe boa sorte. Disse que o pessoal já estava voltando da mata e que ninguém percebera qualquer sinal do Nego.
Estobe respirou fundo, imprensou a caixinha entre as coisas, colocou tudo às costas e reiniciou novamente a caminhada. Estava convencido de que os homens que estavam auxiliando nas buscas jamais iriam encontrar o que procuravam, porque não iam além de dois quilômetros e, Nego, se realmente perdido, andando e talvez até correndo desvairadamente, já estaria a mais de 20 quilômetros. Estobe contava com a ajuda da inexperiência do amigo perdido, porque Nego talvez estivesse rodando sempre no mesmo lugar. Pena que não fizera isso perto do lugar em que se perdera!
– Por causa das tantas perdas de tempo, interrupções devidas à saída quase precipitada, no primeiro dia Estobe e Biriba pouco progrediram. Aliás, Estobe ia pensando, quase que atabalhoadamente, sobre o possível longo trajeto que teria de fazer.
Puxou o relógio Ômega – que embora enciumado, seu pai quase o obrigara a levar – examinou e percebeu que já eram 17h13min. Os raios do sol já penetravam esmaecidos entre os galhos das imensas árvores. O vento, muito comum nessa época, havia dado uma trégua e o silêncio lhe pareceu tumular. A primeira sensação de medo não desperdiçou a oportunidade.
Recomposto daquela primeira sensação de medo e quase pavor, Estobe começou a procurar um lugar para passar a noite, antes que precisasse usar a lanterna, gastando as benditas pilhas. O tempo ajudava. No céu, pelas frestas que podia utilizar, ele via sempre um azul anil confortante. Foi andando bem devagar e procurando um lugar adequado. Mais adiante percebeu que, à esquerda da direção em que caminhava, havia uma grossa árvore. Mudou um pouco a direção e dirigiu-se para ela. Era uma jendiba centenária, cujas sapopembas formavam verdadeiras grutas. Ele escolheu a maior e a mais fechada nas pontas, fez uma vassoura de finos galhos e, cuidadosamente, varreu todo o cisco que havia dentro dela. Depois, cortou finas varas, enfiou em volta e tratou de cortar folhas de palmeiras para vedar a entrada de possíveis visitas indesejadas.
Entrou, estendeu a rede sobre as folhas de palmeira que espalhara no chão, acomodou-se e achou que passaria a noite sem grandes problemas. Mesmo antes de a noite cair plenamente, ele tirou a marmita, comeu quanto pôde e deu o restante, que não era pouco, para o Biriba. Cortou uma larga folha de caeté, fez dela uma concha, encheu de água e deu ao companheiro. Depois, bebeu também, entrou na caverna construída, chamou o amigo e se deitaram.
8
É corriqueiro e milenar a permanência da lembrança, às vezes até o fim da vida de alguém, de algo praticado pela primeira vez. Isto é comum em quase todos os seres humanos e, com Estobe, não foi diferente naquele pernoite, no meio de uma escura e perigosa floresta, tendo ao lado o Biriba: pequeno e até inofensivo ante grandes felinos e varas de porcos do queixo branco. Era frágil, embora morresse em defesa de Estobe, se preciso fosse.
Tão logo a Natureza decretou o rodízio dos seres, com os animais diurnos se recolhendo e os notívagos despertando, os sons se modificaram sobremaneira. Desfez-se o mavioso piado dos sabiás, dos tucanos, do pica-pau avinhado, dos bandos barulhentos de passarinhos…, e agigantaram-se os gritos de ordem dos novos senhores da noite. Chorões, tururins, jaós e toda espécie de inhambus ali existentes deram o toque de recolher. Já praticamente sem visibilidade, um harém de fêmeas de jaós passou tagarelando bem perto do lugar em que Estobe estava, em direção ao macho que, cheio de autoridade, conclamava-as a se aproximarem. Aqui e acolá, macucos empoleiravam, piavam e depois também quietavam.
Numa fração de segundos, toda aquela algazarra silenciou-se, e verdadeiros gritos fantasmagóricos de uma “coruja-perdida” ressoaram medonhamente. Eram verdadeiros chamados humanos de uma pessoa em apuros. Estobe arrepiou-se todo e, sem que o percebesse, encostou-se mais no Biriba. O cão permaneceu quieto e, talvez, satisfeito, porque também via no companheiro tanto uma fonte de calor como de segurança.
Estobe lembrou-se, então, da história de caçador que o pai lhe contara um dia. Segundo seu pai, um caçador se perdeu e lá pelas tantas da noite um amigo foi procurá-lo. Depois de meia hora pela mata, ele começou a ouvir o grito dessa coruja: um grito muito semelhante ao de um ser humano perdido e gritando por socorro. E ele, que também nunca ouvira aquilo, imaginando ser seu companheiro perdido, a cada grito da coruja, respondia a todo pulmão:
– É aqui a picada!
E a coruja voltava a gritar, porque aquela era sua maneira de comunicar-se e de defender seu território.
Depois de responder umas dez vezes, ele perdeu a paciência:
– Putaquepariu, Astolfo! Já te disse que é aqui a picada e não acredito que não tá ouvindo. Quer ficar aí, que fique, porque eu já tou indo pra casa dormir.
E, de fato foi, largando o “pobre companheiro” lá na mata escura, sozinho e desamparado. A coruja, sem entender nada, continuou com sua cantilena.
Conciliar o sono, nem pensar. Comparando a drástica diferença daquela cama em que se encontrava com a modesta, mas limpa e macia, em que dormia no seminário, contando ainda com os acalantos quase macabros de bichos estranhos que saíam de seus esconderijos e partiam para a luta pela sobrevivência, a diferença era muito grande. Como não chovia havia semanas, as folhas estavam secas e até os “miguelões” – maiores formigas daquela floresta – faziam considerável barulho em seus movimentos sorrateiros. Ratos, então, pareciam pacas, tatus ou bichos de maior tamanho, caminhando em direção a alguma fruteira.
Um pouco mais afeito à noite e ao mato, Biriba mantinha-se quieto. Somente se levantou quando uma anta resolveu tirar satisfação com sua rival, a uns 30 metros da jendiba em que se encontravam. Aí ele latiu, mas foi logo repreendido por Estobe, porque seu pai uma vez lhe dissera que os ganidos dos cães atraem as onças. E se havia uma coisa que Estobe jamais queria que acontecesse, a aproximação desse felino do lugar em que se encontravam era uma delas.
Enfim, a trancos e barrancos, mexendo-se a noite toda, novamente o rodízio repetiu-se, com a claridade do sol que despontava, expulsando a escuridão. Aos poucos os noturnos foram se recolhendo, e os diurnos despertando, dando a Estobe mais segurança e ânimo. Tão logo notou que podia divisar as coisas, ele afastou as folhas que protegiam o abrigo e saiu. Biriba já estava do lado de fora, tremelicando o cotoco como a dizer: estou pronto.
Estobe retirou o embrulho de polenta com queijo que havia separado exatamente para aquele desjejum, comeu menos de um terço e deu o restante ao Biriba. Sem degustar, Biriba engoliu tudo, farejou e catou algum pedaço que caíra nas folhas e ficou olhando para o companheiro. Estobe, embora desconfiasse que o amigo não entendia o que falava, observou:
– De agora em diante teremos de nos manter, amigo. O que eu trouxe, terminou.
Apanhou o lápis e a caderneta e escreveu: “Aqui passamos a primeira noite. Foi estranha para mim, mas tudo correu bem. Partimos às 6 horas.” Cortou uma vara fina, abriu a extremidade e prendeu o bilhete. Procurou uma folha larga e protegeu o papel, envolvendo-o e depois firmando-o com um fino cipó.
Colocou a tralha às costas, examinou o cartucho e a Boito 20, de um cano, engatilhou e cuidadosamente desengatilhou, para confirmar que tudo estava funcionando; sacou o facão da bainha, confirmou a direção e partiu.
– Daqui a duas horas, Biriba, faremos nova parada. Durante a caminhada, nada de perseguir cotias ou qualquer outro bicho. Não quero que me deixe sozinho. Fique aqui pertinho de mim, quieto, só me avisando se farejar algo muito estranho. Entendeu?
Biriba sempre respondia do mesmo jeito: vibrando o restante de rabo que lhe sobrara.
Agora, Estobe, além dos ouvidos sempre em alerta, também mantinha os olhos varrendo toda a extensão de mata que lhe fosse permitido observar. Precisava abater alguma coisa para comer durante o dia. Ainda era cedo e estava sem fome, mas sabia que até à noite o estômago doeria. Não bastasse, havia também o companheiro que, apesar de comer de tudo, padeceria se não o fizesse.
E Estobe foi caminhando, devagarzinho, fazendo a picada, olhando o sol e, de meia em meia hora, gritando pelo companheiro que estava em algum lugar daquela floresta, ainda que morto. Mas os gritos se perdiam em ecos quase tristonhos, entre os fundos valões daqueles tantos morros que constituíam a geografia da região.
Depois de duas horas, conforme havia prometido a si mesmo, tão logo encontrou um tronco caído que lhe serviria de banco, ele arriou o alforje, tirou o boné, abriu a camisa e respirou fundo. Olhou mais uma vez em volta de si, tomou um pouco d´água, não esqueceu do Biriba, aliviou a bexiga, gritou pelo companheiro, e depois sentou-se em posição de descanso.
Ele parara bem no fim de uma chapada da qual se via, em frente, um enorme e fundo valão. Como o morro parava abruptamente, a visão era fantástica. Para frente, um tapete verde, mal enrolado, estendia-se a perder de vista; um pouco mais à esquerda, despontavam as três pedras que pareciam reinar e vigiar as matas que ninguém imaginaria que pudessem ser destruídas pelo homem. Tudo era belo e grandioso e a vida pululava em cada graveto espalhado pelo chão. Decidiu que o atravessaria, mesmo porque imaginava água nele, e a cabaça precisava ser reabastecida. Como tudo era cronometrado e os intervalos preestabelecidos por ele antes da partida – como regras inalteráveis –, ele sentou-se e ficou esperando o tempo de descanso esgotar-se.
Nesses momentos ele divagava, retrocedia no tempo, voltava à infância e relembrava os tantos momentos felizes que vivera ao lado do Nego: companheiro que sempre estava de acordo com tudo o que ele sugerisse. Era, de fato, um amigão!
E já que estava numa posição privilegiada, podendo ver o céu sem uma única nuvem passeando, ele se lembrou de Deus e a Ele elevou seus pensamentos, pedindo proteção a si e, principalmente, ao amigo.
Virou-se novamente para as pedras e conseguiu extrair do passado as divagações que ele e Nego, juntos, um dia viveram:
– Puxa vida, Estobe, já pensou como deve ser lá naquelas pedras? Quando a gente crescer, a gente vai lá, não vai?
– Papai disse que eles vão fazer uma picada até lá. Até já começaram. O Alcides, filho do Gerônimo, mais o Arlindo, já foram lá caçando. Trouxeram muitos bichos grandes de lá.
– É, quem sabe, o nosso dia também vai chegar?
– Vai chegar, pode ter certeza. Todo mundo cresce e nós vamos crescer também. Quando a gente ficar grande, vai ser dono do próprio nariz.
– Puxa vida! Isso vai ser bom demais!
Enquanto o tempo permitiu, Estobe foi devaneando, dando asas à sua sempre fértil imaginação. Enfim, repôs a muamba às costas e partiu. Antes, porém, notando na noite anterior a impaciência do Biriba ao perceber o barulho, talvez de antas mal-humoradas, perto do lugar em que descansavam, resolveu prevenir-se escolhendo um bom e resistente cipó, o qual, depois de descascado e retorcido muitas vezes, foi transformado numa corda com coleira. Enrolou o cipó, fez dele uma argola, passou-o pela cabeça, deixando-o a tiracolo e pronto para ser utilizado. Até então, nada de anormal havia acontecido, mas Estobe sabia, que todas as coisas mais graves (graças ao inesperado que nos pega de surpresa) acontecem em fração de segundos e, por isso, tornava-se cada vez mais previdente.
Foram descendo a rampa, tão íngreme que às vezes era necessário agarrar-se nos varões para não adiantar a viagem rolando morro abaixo. E num desses imprevistos Estobe torceu um pouco o pé que, embora não atrapalhasse a caminhada, doía bastante.
Quando alcançou o sopé, de fato havia água. Água bastante e límpida, acompanhada de não longínquo chuá vindo de alguma pequena queda. Mesmo antes de encher a cabaça e de garantir-se com boa hidratação, resolveu verificar o motivo daquela possível queda d´água. Não era queda d´água alguma, mas sim uma nascente da qual ele jamais esqueceria. Num diâmetro de mais ou menos 50 cm, a água brotava com força, como se fosse um poço artesiano construído pela Natureza. A água subia a uns 50 cm de altura, entornava numa árvore rachada, escorria por ela e caía em forma de cachoeira, fazendo aquele barulhinho gostoso de chuva grossa. O barulho era ouvido de longe pelos animais em tempo de estiagem, que tão logo a sede apertava, sabiam onde saciá-la. Por isso, num diâmetro de 100 metros, quase não havia folhas nem arbustos. Tudo fora pisado, amassado e destruído.
Estobe percebeu que ali, com pequena espera, ele conseguiria a carne de que precisava para aquele e para o dia seguinte. Fazer uma choça de folhas de palmeiras estava difícil, porque não mais existiam por ali. Contudo, as coisas pareciam conspirar a favor dele, oferecendo uma enorme árvore arrancada pelo vento, sobre cujas raízes, ainda cheias de terras, arbustos diversos nasceram. Ele laçou o Biriba, subiu vagarosamente, segurando a ponta do cipó, agarrando-se às raízes e lá ajeitou-se, com ótima visão para todos os lados. Biriba deitou-se embaixo e parecia comportado. No entanto, a área infestada pelo cheiro, ou fedor de bichos, deixava-o empertigado. Estobe sabia que seria difícil ele não investir contra o primeiro animal que viesse matar a sede. Mesmo assim, como havia muitos, não se preocupou.
E não demorou mais que 20 minutos para que verdadeiras rajadas de metralhadoras ecoassem no meio do morro, bem em frente de onde iriam passar tão logo saíssem dali. Eram os queixadas que, por algum motivo, estavam alvoroçados. Quando isso acontece, esses porcos se reúnem e tentam amedrontar o agressor, arrepiando os pelos, trepidando os dentes e emitindo gritos agressivos. Mais uma vez, Estobe tremeu na base. Olhou para baixo e viu que Biriba pressentira também o perigo, encontrando-se extremamente inquieto e vulnerável. Então, calmamente, ele chamou por ele e foi, com calma, alçando-o ao topo das raízes. Como sempre, apesar do curto momento de quase asfixia, Biriba, ao chegar, lambeu Estobe e dispensou a ele aquele olhar agradecido.
E os porcos vieram descendo, cada vez mais barulhentos e ameaçadores. Estobe lembrou-se que seu pai lhe dissera que as varas de queixadas são as mais violentas e valentes que existem nas florestas. Elas sim acreditam que a união faz a força, e o tempo fez com que elas se convencessem disso, porque até as onças preferiam mudar o cardápio a enfrentar centenas de porcos dispostos a tudo para não serem escorraçados ou comidos.
Mais um pouco e os primeiros apareceram. Biriba tremia nervoso, não sabendo se devia saltar e agredir, ou manter-se quieto e obediente. Estobe, enquanto esperava a mais fácil e melhor presa, esfregava as mãos na cara dele, acariciando-o e acalmando-o. Enfim, uma porquinha fornida aproximou-se a menos de 10 metros e, calmamente, Estobe fez pontaria na cabeça e disparou. Sem sequer um grunhido, ela tombou e mal demonstrou pequenos espasmos através das pernas.
Ao ouvir o tiro, a vara, sem exceção, redobrou a ameaça. Se antes produziam apenas o som de algumas metralhadoras, agora pareciam acionar todo o arsenal. De quando em quando se calavam, ouviam, deduziam, e novamente estrilavam. Estobe quietou, esperou até que o chefe da vara decidisse pela retirada e, quando esteve certo de que não havia mais nenhum deles por perto, desceu primeiro o Biriba e, depois, ele mesmo o fez. Já no chão, recobrada a calma, desatou o Biriba, enrolou e repôs o laço de cipó ao pescoço e foi ver a porquinha.
Estava gordinha e cheia de carrapatos, numa quantidade assustadora. Foi quando Estobe resolveu examinar as comichões que estava sentindo perna acima. Ao perceber os milhares de pequeninos carrapatos que subiam pelas pernas, assustou-se. Não levava nenhum repelente e não se prevenira, sequer, para evitar que aquilo acontecesse. Imediatamente apanhou a caixa de fósforo, com dificuldade acendeu gravetos secos próximo à nascente, tirou a roupa e pendurou um pouco acima das chamas. Depois, raspou a pele com o facão, jogou água e esfregou quanto pode, e começou a retirar a carne da porquinha. Abriu-lhe as entranhas, retirou bons pedaços de carne maciça, salgou-as, espetou-as e as deixou um pouco abaixo das roupas, onde o calor era maior. Feito isso, foi retirando e oferecendo ao amigo petiscos que talvez nunca tenha experimentado: fígado, coração, rins…
Ali ficaram mais de hora. Abastecidos e totalmente recuperados, reiniciaram a caminhada, subindo aos poucos a íngreme ladeira do outro lado. A caminhada progredia pouco, dada a inexperiência de Estobe tanto quanto sua falta de resistência para aquele tipo de empreitada.
Mas a busca ao companheiro de infância oferecia-se como seu maior estímulo, ainda que para si mesmo, porque nunca deixara de acreditar que a vida os unia por uma questão de destino, ou plano de Deus. Era como se fossem irmãos espiritualmente xifópagos, ligados para sempre. Por isso o desaparecimento de Nego doía tanto em Estobe. A empatia era inegável.
Certa feita, durante a noite, na hora de ir para a cama, Estobe tropeçou no tamanco do pai, desequilibrou-se e bateu com a testa na quina do portal que dividia a cozinha com a sala. Embora tenha sangrado pouco, o galo ficou enorme – a ponto de sua mãe, ao notar que não era nada grave – brincar:
– Amanhã terá de acordar antes da hora costumeira, meu filho, porque este galo, com certeza, começará a cantar bem cedo.
Estobe, com uma compressa de água e sal em cima do calombo, chupava o ar e a saliva num barulho de dor.
No outro dia, Norinha comentou com Maria, quando foi pedir um pé de alface para o almoço:
– Ontem, dona Maria, quase vim incomodar a senhora. O Nego, bem na hora de se deitar, começou a reclamar de dor de cabeça e não teve macaé que desse jeito. Só dormiu lá pelas 10 horas da noite.
9
Ao alcançar a chapada, Estobe teve de tirar a carga das costas e novamente descansar. A subida longa e íngreme o cansara sobremaneira. Um vento, a princípio suave, mas a cada instante aumentando, refrescava a pele suada. O sol aparecia e desaparecia intermitentemente e não era difícil concluir que densas nuvens passeavam pelo céu escampo.
A região era suscetível ao chamado vento sul. Todas as vezes que as frentes frias avançavam do sul para o centro do País, a região norte do Espírito Santo era afetada.
Havendo mudança climática – com o calor abafado sendo substituído por aragens frias – o agradável som dos pássaros e dos demais animais desaparecia, dando lugar ao monótono farfalhar das folhas. Ali parado, Estobe concentrou-se no que fazer caso chovesse, e decidiu que ficaria atento para não ser pego de surpresa. Com toda a atenção – como fazia de tempo em tempo – gritava pelo amigo, mas, como anteriormente, nenhuma resposta obtinha. Sempre olhando para o alto, examinando o tempo e a direção, ele continuou a caminhada.
Não sabia explicar, mas sentia uma força intuitiva impulsionando-o para a esquerda, para o lado das grandes pedras. No seminário aprendera que, entre duas ou mais opções, mesmo sendo elas simples e inexpressivas, logo a consciência decidia a mais viável.
– A consciência é a voz de Deus dentro da gente – insistia padre Aristides – e Deus, por conhecer tudo, nunca tem qualquer dúvida sobre o que é melhor para quem a consulta.
Como não houvesse nada em contrário; como não tivesse direção definida e nem um traçado que indicasse a posição do amigo, ele resolveu seguir a intuição. Destacou mais uma folha da caderneta e escreveu: “Aqui mudei para a esquerda. Vou seguir em direção às grandes pedras.”
Deixou o aviso na ponta da varinha, protegeu-o quanto pôde de possível chuva, caprichosamente enfiou no chão uma seta indicando o novo rumo, e partiu. Talvez influenciado pela ansiedade, talvez pelo tamanho das pedras, parecia a Estobe que, apesar da chapada favorecer a progressão, ele permanecia sempre no mesmo lugar. Às 15 horas, o tempo fechou de vez. A mata ficou escura, os ventos aumentaram e, mesmo sem trovões, uma chuva fina começou a cair. Estobe sabia que não devia molhar-se, porque com a mudança do tempo bem podia resfriar-se, e isto não era nada recomendável para ele, sozinho na missão que abraçara e no lugar em que se encontrava.
Lembrou que prometera a seu pai que retornaria com notícias, ou mesmo com o Nego, no prazo de cinco dias. Mesmo assim, achou por bem correr o risco de não cumprir o combinado, a atabalhoar-se e tornar as coisas ainda piores. Até então, ao aproximar-se a hora de se abrigar, ele caminhava observando em volta, sempre à procura de alguma árvore frondosa que pudesse favorecer a construção do abrigo. O tempo era de vento sul, sem calor, sem ameaças de raios que, ao caírem dentro da mata, sempre escolhem altas e grossas árvores para alcançar o chão. Numa floresta como aquela, com milhares de opções para os raios – ainda que a possibilidade fosse mínima de ele escolher aquela de seu abrigo – não deixava de ser perigoso dar a ele a mínima chance. Estobe pensava essas coisas, mas teria de arriscar, ainda que começasse a trovejar.
A verdade é que ele ainda não havia se adaptado ao que heroicamente estava fazendo. Talvez – como costumam dizer – a ficha ainda não lhe caíra, porque dificilmente uma pessoa em pleno uso da razão se embrenharia no mato, sozinho e sem experiência, por longo tempo para procurar um amigo perdido. Até então se saíra bem, mas bem poderia ocorrer algum fato em que a falta de experiência lhe acarretaria irremediável consequência. No momento, era até bom que ele não tivesse plena consciência do que estava fazendo.
Tendo encontrado o lugar para passar a noite, ele logo tratou de vasculhar o chão. Bem podia estar ali alguma jararaca, porque as cobras não são muito exigentes quando querem descansar. Costumam se meter sob troncos podres, em anfractuosidades de pedras, enroscadas num cantinho de catana, ou mesmo dormindo em cima de algum cipó ou galho qualquer, isso sempre foi a preferência das surucucus-pindobas.
Seu pai, apaixonado por caçadas, vivia contando histórias sobre suas andanças. Ele lembrava bem de uma delas:
– Gero drio caminar in meso al sentiero e me sé vegnù un tremendo mal de pansa. Beh, mi gero nea foresta e me sentivo sicuro come el paròn de tuto, ma non podevo sparare par non inpienarme le braghe.. Così in un posto pì neto,go tirà sò le braghe e me ricordo che vissin ghe gera na radisa, me lo ricordo ben.. Tranquillo, fin che la fasevo, con la coa dell’ocio go visto che calcosa se stava movendo. Ostia, fiolo, el gera un surucucu. Confesso: solo dopo tre dì son sta bòn ancora a sbassare le braghe. (– Eu ia andando pela picada, quando me apertou uma dor de barriga danada. Bem…, eu estava no mato e qualquer lugar seria adequado, mas, seguro de que era senhor de todos eles, não me afobei: pelo menos até que senti que, se demorasse muito, sujaria as calças. Então, numa pequena área mais limpa, arriei as calças e agachei-me. Foi perto de umas raízes expostas, isto eu lembro bem. Quando ia liberar, eis que, com o rabo do olho, percebi que alguma coisa se movia, incomodada com a ponta da bainha do facão que se apoiara na rodilha. Sacramento, filho, era uma surucucu-pindoba, daquelas que têm os galhos como cama predileta. Aí eu me arranquei, caindo de bruços a mais de um metro à frente. E, confesso: somente três dias depois abaixei-me outra vez para me aliviar.)
Mesmo sozinho, a lembrança fez com que Estobe risse, e Biriba, alheio ao que parecia engraçado, simplesmente mexeu o cotoco e encostou-se um pouco mais. Então, foi repreendido: “Meu caro, procure soltar todos seus puns antes que anoiteça, porque se continuar assim, terei de expulsá-lo do dormitório. Não sei como os urubus não estão sobrevoando.”
É que a carne de porco, em proporção exagerada, havia deixado a barriga do Biriba em petição de miséria. Não andava 20 metros sem soltar um pum fedorento.
Preparado o dormitório, Estobe apanhou a espingarda e ficou do lado de fora, protegendo-se antes com o pedaço de plástico que trouxera. Os pingos eram poucos, mas não se protegendo, com o tempo molharia sua roupa, e o frio já o incomodava. Voltou a recolher folhas de palmeira e as recostou na parede do dormitório, bem inclinadas e bastante compactas. Somente um toró mais demorado poderia ultrapassar a parede de proteção. Aliviado, prendeu o Biriba entre as pernas e respondeu a uma macuca que piava bem pertinho, procurando o parceiro para copular antes de subir ao poleiro. Em poucos segundos foi obrigado a dispensar a companhia do amigo: estava insuportável. Amarrou-o um pouco mais distante, voltou e continuou respondendo ao galináceo. Devia ser uma fêmea, porque os machos só chororocam quando descobrem que algum filhote travesso dispersou-se. Não bastasse, setembro no Espírito Santo é o mês preferido dos inhambus para a reprodução.
Estava tão perto que Estobe começou a tremer as pernas, porque lhe tinha sido um sonho, durante toda a juventude, abater aquela espécie de ave. Segundo seu pai, a mais esperta e difícil de ser morta pelos caçadores.
De repente, ela calou. Um caticoco que passava logo abaixo ouriçou o rabo e começou a acuar alguma coisa e, para aumentar o suspense, uma coruja iniciou sua raspada de garganta, crocitando que algo estranho rondava a área em que ela se encontrava. Biriba ergueu-se, posicionou as orelhas, começou a respirar apressadamente como a filtrar o odor que vagava pelo ar. Estobe assustou-se. Ergueu-se e foi para perto do Biriba, desatou-lhe o cipó e deixou a espingarda pronta para um disparo inesperado. Um ronco quase inaudível começou a ser percebido, acompanhado do protesto da coruja observadora. Estobe já não tinha qualquer dúvida: era uma onça. Uma onça que parecia não estar gostando, nem um pouco, da intromissão de estranhos em seu território.
Biriba começou a gemer de medo e apreensão. O esturro foi aumentando, aumentando, a ponto de Estobe ter a nítida impressão de que o felino estava a alguns metros apenas de seus pés. Muito aterrorizado, ele engatilhou a espingarda e disparou para o alto. O som ecoou chapada afora e a onça quietou. Como a noite já era sentida, ele retirou a lanterna, recarregou a espingarda e, sem se importar com a barriga do Biriba, arrastou-o para dentro do esconderijo. Encostou-se no tronco e começou a contar os minutos que o separavam de um novo dia. A comichão alérgica provocada pelos carrapatos, os puns do Biriba e a tensão por causa da proximidade de uma onça eram motivos suficientes para ele passar várias noites de olhos arregalados.
Durante a noite toda a mata respingou. Teria sido ótima para dormir, não fosse a desgraçada da onça. E, como a noite não abreviara um só minuto de sua jornada, Estobe tentou consumi-la com lembranças de seu velho pai, caçador que, apesar de velho, podia estar ali a seu lado, com sua experiência e coragem. Mas Estobe mesmo não quis, alegando que lhe seria mais estorvo que ajuda. Então, lembrou-se:
– Gero vissin, apena semo rivà chì, go visto un macaco che non el me voeva lì, parea che ghe rubasse un toco de casa. Podarìa verlo copà subito, parchè alora i gera ancora ingenui parchè non i gavea gnancora incontrà un caciator. Ma go preferio lassarlo parchè non gavevo ancora bisogno de carne. Pioveva poco e fin, e la pigrissia non me ga fato andar a lavorar. Cossì go tolto el fusie e me gò messo el capeo de feltro che me gaveva portà dall’ italia, e, el gera come novo. Go trovà na pianta, poco grossa e la gera rabaltà, la gera quasi oto (8) metri, tegnùa da molte visele. Le gera visele grosse e robuste. Sentà go capioo…, anca sensa vento, un rameto el se piegava el passava vssin ala me facia,e dopo un poco sempre pì vissin, fin a tocarme. All’ inissio non sospetavo niente, e continuavo a cantar. Ma tuto ad un colpo el rameto el gà scomissià a battere sula me faccia. Quando me sò voltà, par vardàr,subito a vedo un giaguaro rosso a sirca tre metri da mì. Anca elo el sercava un posto pì alto, si, par poder trovar un posto fora dai pericoli par poder saltare e corare. In chel momento non go vudo el tempo de pensare a gniente; solo un urlo de fifa e un salto… insieme al giaguaro che saltò con mi. El giaguaro saltò a tera e sparì subito, e mi invesse so rimasto tacà-via e blocà. El fusile el gera cass’cà a tera e mi so rimasto tacà-via, non sò par quanto tempo,parchè in sti momenti un minuto el sembra un’ora. Dopo tanta lota so riussìo a sbregarme el giuboto e liberarme cascando par tera. Ritogo el fusile e vò verso casa tuto sgraffà dala caduta ma non dal giaguaro! (– Bem ali no aceiro da derrubada – logo que aqui chegamos – tinha uma macuca que parecia não se conformar por eu ter agredido e tomado um pedaço de seu lar. Eu podia ter matado ela logo, porque naquele tempo os macucos eram muito mansos e nunca tinham visto um caçador. Mas deixei ela para o dia em que eu não tivesse muito tempo e precisando de carne para o almoço. E esse dia chegou. Estava chovendo fininho e a preguiça não me deixou ir trabalhar. Então, peguei a espingarda, vesti a capa de feltro que eu trouxe da Itália e que ainda estava forte e perfeita, enfiei o sapatão nos pés e fui para lá. Encontrei uma árvore não muito grossa que havia caído, mas estava suspensa a uns oito metros de altura, presa por muitos cipós. Eram cipós grossos e fortes, que não só davam sustentação como ofereciam lugares para que se pudesse sentar. Para ser sincero, achei até covardia, porque não via qualquer chance para a macuca que, naquela necessidade de cruzar, certamente viria procurar o companheiro que a chamava. Lá em cima sentado, comecei a piar. Depois de alguns minutos, comecei a perceber que, mesmo sem vento, um grosso cipó que curvava rente ao meu rosto, começou a me tocar. No começo nem desconfiei de nada, continuando a piar. Mas, de repente, o cipó começou a bater forte no meu rosto e aí eu resolvi averiguar. Quando me virei para trás, uma onça vermelha, a suçuarana, não estava nem a três metros de mim. Mas não vinha para me pegar, e sim para chegar ao lugar seguro para pular e fugir daquela situação. Acontece que, naquele momento, não tive tempo de pensar em nada: emiti um grito de medo e pulei… junto com a onça que “pensou” como eu. Ela bateu no chão e desapareceu, mas eu fiquei pendurado. Eu estava com a capa vestida e caí tão rente ao varão que ele passou raspando por minhas costas e firmou-se na gola da capa. A espingarda caiu e eu fiquei lá pendurado e não sei por quanto tempo, porque em momentos assim um minuto parece uma hora. Com muita luta, consegui me atracar no varão e me livrar da capa. Aí desci, apanhei a espingarda e voltei todo arranhado – mas não da onça – para casa.)
Lembrou-se que ainda perguntou a seu pai:
– E a macuca?
– Se na bestia non lo tòe, el morirà de vecchiaia, o el dovrà ancora scampare. Canticchiava, non el ga mai fiss’cià. Credo che la fifa non gera manco del a mia e del giaguaro. (– Se um bicho não pegou ela, caso não tenha morrido de velha, deve estar ali até hoje. Piar, ela nunca mais piou. Acho que o susto dela não foi menor do que o meu… e o da onça.)
Aquelas histórias de caçadas, contadas por seu pai, num tempo em que ele era ainda mais contundentemente seu herói, muito o ajudaram. Sem recordá-las, as noites seriam intermináveis, e talvez Estobe até tivesse desistido das buscas, embora, até então, esta possibilidade não tenha sequer passado pela sua cabeça.
Durante o restante da noite, nada mais foi ouvido, a não ser a intermitência daqueles pingos de chuva que se juntavam lá no dossel da floresta e despencavam sobre as folhas do abrigo. Embora enrolado na rede – ainda não utilizada para pendurar-se e tirar uma soneca – Estobe estava sentindo muito frio e curtindo a tensão que vivera com os esturros da onça, acompanhados da pequena orquestra encenada pelo caticoco e pela coruja, que nunca foram mais eficientes em passar a imagem de suspense e medo. Até podia ter tirado boas madorras, mas o Biriba continuava com sua barriga ruim e soltando puns a cada minuto. E fediam mais que a almíscar existente nas glândulas dos suínos selvagens. De qualquer forma, era preferível assim do que ver-se totalmente sozinho naquele fim de mundo. Mesmo fedido e insuportável, Biriba nunca passara uma noite com tantos afagos, porque, sem o que fazer, e às vezes até sem o que pensar, Estobe passou a noite acariciando-lhe a cabeça.
E como tudo passa neste mundo – e quem sabe, até no outro – também aquela noite horrível chegou ao fim. O dia só clareou mesmo às sete horas. O céu nublado impedia que os raios do sol o ultrapassassem. O vento sul continuava e Estobe sabia que duraria por no mínimo mais dois dias, porque assim fora em seus 20 anos vivendo no Espírito Santo. Era quase impossível chover forte e, mais impossível ainda, o sol aparecer. Assim sendo, Estobe, depois de comer, mesmo frio e com apenas sal, mais um pedaço da leitoa que assara e cozinhara lá no grotão, alçou o peso que carregava às costas e reiniciou a caminhada. Teve vontade e até sentiu a necessidade de acender um fogo para aquecer a carne, mas a mata estava molhada, tornando muito difícil conseguir gravetos secos.
Estobe voltou ao abrigo, conferiu se não estava esquecendo alguma coisa, respirou fundo e começou seu terceiro dia de viagem. Ficou feliz e aliviado quando percebeu que o Biriba estava de cócoras, espremendo-se todo e se aliviando daquela carniça gasosa. Para não atrapalhar o esforço que, para ele, era mais aliviador do que para o Biriba, Estobe ficou parado, até que seu amigo – naquele esforço característico de corte, comum aos cachorros para que nada fique pendurado – deu-se por aliviado. Abanando o cotoco, demonstrando conforto e reconhecimento, Biriba achegou-se feliz e, então, a caminhada recomeçou de fato.
Não havendo sol, nem GPS, nem sequer uma simples bússola, Estobe seguia a direção anteriormente programada em direção às pedras. Para não fazer curvas e ficar andando no mesmo lugar, ele resolveu andar – quando a mata fechada não permitia que visse as pedras – de ponto em ponto, utilizando sempre altas árvores que via na direção que traçava.
Mesmo suado, a umidade e o frio camuflavam o cansaço e ele ia progredindo. Às 14 horas, novo susto: em gargalhadas fantasmagóricas, um bando de jacus que mariscava sob uma densa moita espantou-se e subiu aos galhos. Como não soubesse se teria mais oportunidades, Estobe alvejou a mais próxima, que, ferida, nem bem alcançou o chão e já saiu em disparada. Biriba partiu em perseguição e não demorou a retornar com ela entre os dentes. Um dos grossos caroços de chumbo havia atingido a asa, mas as pernas estavam em perfeito estado. Não fosse o Biriba, com certeza haveria necessidade de mais disparos.
Aproveitando o eco do disparo, Estobe pôs-se a chamar pelo companheiro, mas, por mais que os ouvidos filtrassem, nada mais ouvia do que o barulho monótono dos pingos caindo sobre as folhas do chão. Sem tirar o plástico das costas, Estobe saiu à procura de galhos secos para acender o fogo e assar o jacu. Depois de muitas buscas, resolveu que salgaria a carne e a comeria crua mesmo. Afinal, lera que, no Japão, eles não só comiam peixe cru como até pagavam mais caro por ele. Então pensou: por que não? Pelo menos não preciso pagar.
Sentou-se mais comodamente, arrancou a pele com as penas aderidas, cortou nacos da carne do peito, salgou bem e comeu. O gosto era horrível para seu paladar, mas era necessário alimentar-se para evitar inanição por falta de proteína. Todo pedaço suspeito, ou com ossos sem possibilidade de lascas, era oferecido ao Biriba. Já mal acostumado com a carne da porquinha, com a bunda no chão e a frente erguida, ele postou-se em frente a Estobe e não se fez de rogado a todo oferecimento. Em seguida, deitou-se e ficou a lamber as laterais da boca. Estobe o recriminou:
– A vida está como sempre pediu a Deus, não é, meu amigo? Mas pode tratar de ir se levantando, porque ainda não terminamos nossa procura.
Como Biriba obedecia mais ao faro e aos ouvidos do que aos olhos, ao notar que o companheiro sacara o facão e reiniciara a picada, ele se ergueu e passou a segui-lo. Caminharam, sem parar, sempre na direção das pedras, até às 16 horas, quando encontraram um pau com espaçosas catanas e muitas palmeiras ao redor.
Escolher um bom lugar, e prepará-lo, já se tornara corriqueiro para Estobe. O que mais o incomodava eram os calos das mãos: a princípio, bolhas d´água; agora, de sangue. Havia chegado do seminário com as mãos finas, e se houvesse alguma fricção para prepará-las para serviços mais grosseiros, esta fricção vinha do manuseio de livros. As mãos doíam muito, principalmente no reinício dos serviços da manhã, quando empunhava o facão para a abertura da picada. Chegou a pensar na possibilidade de caminhar aleatoriamente, mas logo se lembrou do que havia prometido ao pai. Para aliviar um pouco, fez faixas de uma camiseta velha e enrolou na mão direita. Isto até o aliviava, mas prejudicava o manuseio do facão que, por várias vezes, escapulia. Por fim, resolveu – conforme ensinamento de seu diretor espiritual do seminário – oferecer a dor e o sacrifício em prol da graça de reencontrar seu amigo.
Tinha certeza de que Nego – estando vivo – estaria se lembrando dele. Foram tantos anos andando juntos, perambulando pelas capoeiras, trocando confidências, jurando eterna amizade, que ele não podia duvidar do sofrimento de Estobe diante de seu desaparecimento.
Por sua vez, Estobe jurava para si mesmo que não descansaria enquanto houvesse esperança de encontrá-lo, ainda que morto. Jamais iria se conformar com o simples desaparecimento do amigo. Não confessaria ao Nego, caso o encontrasse vivo, a fraqueza de que perscrutara os ares para ver se urubus estavam sobrevoando.
A cada dia as pedras pareciam maiores. Agora, não precisaria mais perder qualquer minuto para confirmar a direção.
10
Apesar de todos os transtornos emocionais e físicos do dia anterior, graças ao cansaço, depois de debater-se por quase uma hora, Estobe acabou dormindo, só despertando quando um bando de macacos, guinchando sobre o esconderijo, começou a derrubar pingos acumulados e galhos podres. Biriba não se conteve: saiu do barraco e começou a protestar, enervando ainda mais a macacada. Curiosos, os símios foram descendo, descendo e pareciam mesmo saltar ao chão. Eram macacos-prego, daqueles moleques, irresponsáveis e inconsequentes, alguns com topetes “à la jovem guarda”, que pareciam estar gostando de toda aquela novidade. Nunca tinham visto um cachorro ou um ser humano, e só Deus para saber o que estavam achando de tudo aquilo.
Sem importar-se com a cena, Estobe arrumou-se e partiu. Não comeu nada, porque o que guardara do jacu não despertava nele a mínima vontade de comer. Não bastasse, estava sem fome. A proximidade do fim de suas buscas estava deixando-o apreensivo e ansioso.
Sem esquecer qualquer detalhe dos procedimentos que prometera a si mesmo cumprir, mesmo tendo as pedras como referência, foi mantendo a direção e fazendo boa picada. De quando em vez olhava para trás, conferia se a passagem estava clara, e continuava.
Por sorte, as nuvens foram-se esfarrapando, dando ao sol esparsas e rápidas oportunidades de mostrar seus raios. Estobe imaginava que teria mais um dia de vento frio e garoa intermitente, mas a Natureza dava mostras de que podia ser diferente. Que assim fosse, que Deus assim o fizesse, porque sua roupa úmida já causava inveja ao mais desleixado gambá. Banho até então não tomara, porque água, somente aquela do grotão. Lá, ele apenas lavou o facão, as mãos, o rosto e as pernas. Por isso, muitos daqueles carrapatos que subiram em sua roupa e também no seu corpo, ou continuavam nele ou haviam saído, não sem antes deixar toda a reação alérgica da espécie. A pele estava empolada e coçava irritantemente. Quando podia, Estobe baixava as calças, alçava a camisa e quase não se encorajava mais a diminuir o contingente. Eram centenas, talvez milhares, porque havia regiões escusas e impossíveis de serem examinadas. E eram as que mais coçavam!
De vez em quando carrapatos-estrela, enormes e já cheios de sangue, eram encontrados, pelo tato, nas regiões escusas. Sem meios adequados, e também sem tempo, Estobe simplesmente os agarrava pelo costado e arrancava-os. Para sair, eles formavam um cone e acabavam deixando os grampos naturais presos na pele. Quando isso acontecia, a irritação era mais duradoura e bem maior.
Com a proximidade das pedras, Estobe não tinha mais necessidade de se preocupar com a direção, porque elas podiam ser vistas de qualquer lugar em que se encontrasse. Talvez não estivesse a 500 metros do sopé da pedra menor, que ficava à direita de seu ponto de observação. Na ansiedade de logo chegar, ele começou a cortar os arbustos com mais rapidez. A mata era limpa, apenas com pedras pequenas, certamente desprendidas das maiores, encontradas de quando em quando. E, quanto mais se aproximava, mais o Biriba ficava para trás, olhando fixo para ele e dando mostras de que não pretendia segui-lo mais naquela direção. Estobe estranhou o comportamento dele e o chamou. Ele veio como que envergonhado e, a seus pés, começou a gemer e a olhar para a esquerda. Não sabendo o motivo daquela reação, Estobe começou a progredir e ele, novamente, ficou parado, olhando sempre na mesma direção, e gemendo. De repente, ele entrou um pouco na direção em que olhava e começou a latir. Estobe chamou, mas ele insistia. Por fim, Estobe cedeu. Ao perceber o amigo, Biriba acionou seu cotoco e seguiu alguns metros na direção em que insistia, novamente parando e latindo, num chamamento claro.
Foi então que Estobe caiu em si, lembrando das orações que tanto fizera, pedindo a Deus que os orientasse na busca do amigo. “Estaria Deus utilizando o Biriba para que Nego fosse encontrado?” Por causa destes pensamentos, ele novamente gritou pelo amigo, mas apenas o eco emitido pela ressonância das pedras em frente respondia. E como nada era certo, e como tanto fazia, para ele, procurar o amigo na primeira, na segunda, ou na terceira pedra, decidiu seguir o Biriba. Agora o cachorro ia na frente e, se ele parasse, gania, como se estivesse com pressa.
É que, desde que Estobe fora para o Seminário e Nego retornara, Biriba vivia mais na casa do Albertino do que na de Antônio. Além do Girão, vira-latas do Albertino, havia o Nego, para quem Biriba transferira todo afeto e amizade que antes eram somente de Estobe. Por isso, ao perceber o cheiro do amigo, Biriba excitou-se: Nego não estava longe. Talvez morto, mas Biriba sabia que ele estava logo adiante. E quando a distância encurtou ainda mais, Biriba partiu em disparada e não demorou a latir insistentemente, como se gritasse: “Corra, corra depressa, o Nego está aqui”.
Atabalhoado, Estobe acorreu. Não sabia ao certo o que estava acontecendo. Mesmo assim, conferiu a arma e partiu, quase sem picada, até o ponto em que Biriba latia. Parou um pouco antes, desceu a tralha e, com o facão numa das mãos e a espingarda na outra, foi se aproximando cautelosamente. Quando viu que Biriba cercava alegremente alguma coisa, perdeu o medo e aproximou-se de vez: era o amigo a quem procurava.
Mas ele não se mexia, estava inchado, talvez morto. Por isso, naquele misto de contentamento e tristeza, ele agachou-se, pondo a mão no peito do amigo. Notou que ele respirava ofegante e que dos seus olhos grossas lágrimas rolavam. Então debruçou-se em cima dele e falou:
– Amigo, como nos velhos tempos, juntos para sempre. Acabou. Tenha coragem, nós vamos sair dessa. Tenha coragem, tenha coragem, amigo.
E Nego, com mil coisas a dizer, apenas gemia. Seus movimentos eram limitados e a voz ele não mais a tinha. Estava nu e frio, quase gelado. Estobe, então, começou a olhar mais acuradamente para ele e não tardou a perceber que seu braço direito estava mais inchado do que as demais partes do corpo. Foi então que notou que alguma coisa o havia picado e esta coisa só podia ter sido uma cobra. A marca das presas ainda podia ser vista. Retirou o pequeno cobertor, a rede e a própria camisa e enrolou tudo nele. Depois, abriu o picuá e, sem demora, tratou de apanhar as ampolas que, milagrosamente, seu pai correra para entregar-lhe no início da caminhada. E em cada gesto, em cada lembrança, Estobe não se esquecia de Deus, porque tudo aquilo não podia deixar de ser obra Dele. Gelo não havia mais, mas as ampolas estavam frias, porque frio estava o clima. Pedindo a Deus calma e eficiência, ele tombou Nego para que ficasse com as costas para cima. Depois, foi do lado esquerdo e injetou as seis ampolas. Parecia ouvir a voz do pai: “Aplique todas as seis, num lugar distante da picada da cobra”. Terminadas as aplicações, ele desvirou o companheiro, tentou dar-lhe o máximo de comodidade possível e se lembrou também das fitas. Era a vez de – sempre com a ajuda de Deus – enviar o Biriba para que fosse em busca de mais socorro. Chamou-o, acariciou-o, amarrou, com três nós, a fita amarela, que também prendia um bilhete: “Estou no pé das pedras, venham correndo”. Antes de brigar com ele para que fosse embora, conforme seu pai ensinara, tentou explicar:
– Biriba, meu amigo de fé, até aqui você foi nosso herói. Lá onde estou estudando só se fala de Deus, que é poderoso, que está em todo lugar, que conhece todas as nossas necessidades e que qualquer um, ou qualquer coisa pode ser utilizada para que a misericórdia Dele se faça. Então, meu cachorro, acho que Ele escolheu você na missão de salvar nosso amigo Nego. Tenho certeza que o soro irá surtir efeito e que ele vai melhorar. Enquanto isso, quero que volte e vá buscar socorro para que possamos carregá-lo para casa. Depois, meu querido amigo, quando estivermos em casa, nós vamos sair para passear, perseguir os lagartos e as cotias. Eu prometo. Desculpas por não saber fazer com que você entenda que vou brigar com você por necessidade e não porque estou zangado. Você foi o melhor companheiro que eu podia ter nesta viagem pela mata. Toma aqui este resto do jacu. Está horrível, mas é o que tenho agora. Coma, porque sua viagem vai ser longa. Não pare para correr atrás de bicho algum. Siga pela picada, não saia dela, entendeu? Não saia dela.
Então, Estobe voltou alguns metros pela picada e, com o coração partido, ordenou:
– Biriba, para casa! Vai embora, agora.
E, quase chorando, ameaçou-o com uma vara. Biriba murchou as orelhas e, devagarzinho, foi retornando. Ainda era visto quando acelerou e desapareceu naquele mundo verde e perigoso. Estobe voltou para junto de Nego, que continuava ofegante mas, não sendo seu desejo ou impressão, parecia um pouco melhor.
Agora era correr contra o tempo. Com a graça de Deus, o vento sul perdia força. A tarde era morna; as nuvens, antes frias e densas, agora não passavam de fiapos perdidos no céu, dissipando-se com toda a pressa. Dificilmente choveria, o que facilitava construir um abrigo sem muitas precauções.
Nego fora picado pela cobra a poucos metros do local em que se encontrava. Estobe, ao encher a cabaça de água, viu a jararaca morta, ao lado da nascente. Certamente fora a desgraçada que picara Nego na hora em que ele se agachou para beber.
Também aquela nascente era muito visitada pelos animais, porque ao redor estava tudo pisado. No momento apresentava-se quieta, porque os dias anteriores foram de chuva e os animais mataram a sede lambendo folhas molhadas ou aproveitando conchas formadas por cascas de pau. Mesmo assim, Estobe apanhou a espingarda e ficou de sobreaviso, enquanto juntava pequenos gravetos que se mantinham secos sob lugares protegidos. E no vaivém em busca de gravetos, ele escutou o roer de uma cotia e, para ela dirigiu-se sorrateiro. Viu-a distraída, roendo um coco de sapucaia, e não a perdoou. Estava precisando de carne, de qualquer alimento que contivesse proteína, principalmente para o Nego.
Correu para a nascente, tirou o couro, cortou nacos maciços de carne e apressou-se a acender o fogo. Foi trabalhoso, mas conseguiu que uma pequena chama se avolumasse. O mais difícil foi fazer com que os fósforos acendessem, porque a umidade não respeitara os invólucros da proteção. Enquanto o fogo se firmava, Estobe terminou de limpar a área em que iriam dormir. Protegeu o teto e as laterais, deixando a frente aberta. Forrou o quanto pôde o chão úmido e depois, cuidadosamente, arrastou o companheiro para dentro. Quieto, mas aparentando respiração menos ofegante, Nego foi deixado dentro do abrigo. Estava cheio de carrapatos, e Estobe já havia decidido que o aliviaria daquela praga, mas no momento a proximidade da noite não permitia. Sempre que chegava perto, ele testava a consciência do amigo, mas ela parecia adormecida.
Como o que devia ser feito já o fora, Estobe enfiou carne de cotia nos espetos e os posicionou sobre as brasas da pequena fogueira. Salgou bem, tanto para aliviar o almíscar desagradável quanto para servir de alimento. Enquanto a carne assava, ele voltou para o local em que havia abatido a cotia e colheu amêndoas para variar o cardápio.
Voltou e passou todo o entardecer limpando as amêndoas e cuidando do churrasco. De quando em vez olhava para o amigo deitado, mas ele continuava imóvel, embora respirando. Ao perceber a lenta melhora de Nego, Estobe duvidou da eficácia do medicamento, mas não havia outra coisa a fazer. Ele queria que Nego comesse alguma coisa e tomasse água, mas, no estado gravíssimo em que se encontrava, nada disso era possível.
Aproveitando os últimos e esparsos raios do sol, agora sem muita escolha de madeira seca (o calor do fogo logo secava o que estava úmido e as chamas devoravam), Estobe reforçou a fogueira e, mesmo diante da grave situação que estava vivendo, sentiu-se feliz e realizado. Alguma coisa dizia que tudo acabaria bem, mas se assim não fosse, ele manteria, em sua consciência, a certeza de um ato de amizade e de bravura. Não conseguia fingir: estava muito feliz.
Quando a noite caiu de vez, ele pôde curtir, novamente, a transição das espécies, com os diurnos se recolhendo e os notívagos despertando. A lua voltava aos céus e sua luz suave agora varria a imensidão. Se houvesse alguma dúvida de que o vento sul arredara, um urutau a eliminou ao piar em algum toco seco da floresta. Aquilo era lindo e fantástico. Não havia como negar a existência de um controlador de tudo aquilo, porque entravam e saíam os séculos e tudo continuava equilibrado. As onças eram as mais ferozes e predadoras, mas nunca seu número havia aumentado; os veados, pacas, tatus, cotias… eram predados desde o aparecimento das florestas, mas nem por isto haviam diminuído.
Com coração e alma aliviados, Estobe deitou-se ao lado do amigo. Sentia que não dormiria, porque estava tenso e feliz demais, tanto que não conseguia afastar do pensamento a certeza do quanto seu pai se sentiria orgulhoso pelo feito que realizara. Segundo os princípios adquiridos, isto era feio e não recomendável, porque fugia à recomendação de humildade. Infelizmente, o sentimento era avassalador e incontrolável.
Lá pela madrugada quando, vencido pelo sono, foi tomado por uma madorra, acordou com algo lhe batendo no rosto: era a mão de Nego que, finalmente, dava mais um sinal de vida e de melhora. Imediatamente, Estobe afastou a mão com cuidado e arriscou:
– E aí, amigo, está se sentindo melhor?
Não houve resposta, apenas um respirar mais fundo, como se os pulmões de Nego estivessem precisando de mais oxigênio. De qualquer forma, isto era bom.
Estobe molhou os dedos com água e passou na boca seca do amigo. Nego roçou a língua, demonstrando sede. Estobe repetiu dezenas de vezes e, em todas elas, Nego absorveu o líquido: estava melhorando, não havia dúvidas. Agora, com a ajuda de Deus, era só uma questão de tempo.
Estobe voltou a pensar em Deus e agora rezava pedindo humildade e fé. As palavras de sua oração foram se diluindo no cansaço e com elas ele dormiu profundamente. Pela madrugada, “sonhou” com o amigo e, no sonho, Nego lhe pedia socorro. De repente ele acorda com o chamado tênue do amigo:
– Estobe, Estobe, Estobe… Me socorre, não me deixa morrer.
Quase num salto, Estobe acendeu a lanterna e viu que Nego abria os olhos e vasculhava o derredor com as mãos. Então inclinou-se sobre ele, abraçou-o e respondeu:
– Estou aqui, amigo, estou aqui, bem pertinho de você.
Ele respondeu:
– Meu Deus, não deixa que isto seja um sonho, por favor, meu Deus.
– Não, Nego! Não é um sonho. Você se perdeu no mato e todos os habitantes da redondeza estão à sua procura. Para sorte minha, eu o encontrei. Você foi picado por uma cobra, mas já foi medicado e está melhorando. Amanhã, tenho certeza, você já estará sentado ou, quem sabe, de pé. Quando o soro age, a pessoa melhora rápido.
Mas Nego, como que delirando, apenas repetia:
– Não me deixa morrer. Eu quero viver, eu preciso viver.
– Está bem, amigo, está bem! Não vou deixar você morrer.
E como Estobe sabia que ele apenas delirava, limitou-se a se sentar bem pertinho e a esfregar as mãos na cabeça dele. Continuava umedecendo a boca sedenta do amigo, ininterruptamente. Nego engolia a água e dava clara demonstração de que queria mais. Estobe não se furtava e ficou assim por todo o resto da noite. Finalmente, Nego quietou e novamente dormiu. Mais um pouco, Estobe dormiu também.
Às 5 horas, Estobe acordou com a pergunta:
– Quem é você? Onde estou? Meu Deus!
Estobe assustou-se, arregalou os olhos, sentou-se também, abraçou efusivamente o amigo e o confortou:
– Eu sou o Estobe, não está me reconhecendo? Você está no pé daquelas pedras grandes que sempre sonhávamos visitar quando éramos criança. Não se lembra?
Nego, então, fitou o amigo demoradamente; depois, chorando convulsivamente, disse:
– Estobe, de fato Deus existe!