Marilândia – vale de sonhos e lágrimas
Parte final
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11
Como a festejar o grande feito que aos poucos se concretizava, o dia amanhecera bonito. O sol brilhava, os pássaros cantavam e Nego melhorava a cada hora que passava. Ficou conversador, queria comer a todo minuto e já claudicava para lá e para cá. Seus pés – quase em carne viva – continuavam inchados e muito doloridos. Sempre na beira do fogo, arrumando a lenha afastada, puxando conversa, lembrou travessuras da infância e até propôs a Estobe piar um macuco enquanto o socorro não chegasse:
– Você lembra como a gente ficava quando seu pai chegava da mata com um macuco? A gente ficava cheio de inveja e torcendo para um dia a gente crescer e fazer a mesma coisa. Você lembra?
Estobe aproximou-se, agachou-se ao lado do amigo e acrescentou:
– Sabe o que me ocorreu, também, enquanto você puxava lembranças de nossa infância?
– Não faço a menor ideia. Afinal, era tanta besteira que a gente falava e planejava, que se a gente escrevesse todas, daria um livro.
– Pois é, isto é verdade. Mas você sabia que está vivo por causa de uma daquelas nossas conversas quando éramos crianças?
– Como assim? Qual delas?
– Puxe aí, da memória, aquele dia em que estávamos fazendo pelotas de batinga, lá no canto do terreiro, bem de frente para estas pedras. Naquele tempo elas nos pareciam mágicas, inalcançáveis e misteriosas. Então, a gente se enchia de curiosidade e de planos, dizendo que não morreríamos sem visitá-las. Lembra?
– Será que foi por isto que não morri? – Nego observou, pensativo.
– Pode até ser, mas o certo é que, quando mudei a direção para cá, depois de dois dias andando à direita e em linha reta, foi por causa daqueles nossos planos de meninos. Maluco como você é, bem podia – ao concluir que não sairia vivo dessa perdida – ter caminhado para cá, como a conceder-se o último desejo.
– Meu Deus! – exclamou Nego. – Foi mais ou menos isto que aconteceu, quando já nu, comendo goiti, amêndoas do mato e brotos de açaí, eu pensei.
– E sua roupa, que fez dela?
– Quando o desespero bateu de vez, os panos foram ficando para trás. Comecei a correr como um louco, gritando por socorro. Eu gritava, mas não parava para ouvir se alguém respondia. Logo perdi a espingarda, a faca e, aos poucos, o resto dos trapos. Em cada moita de espinho ou ponta de pau, um pedaço ficava. Meus pés sangravam, mas, juro, eu não sentia dor alguma. Via apenas o sangue saindo.
– Eu imagino como foi. Conheço você bem! Nunca controlou suas emoções. Sempre agiu pelo instinto, não parando para pensar nos prós e contras antes de tomar definitivamente uma decisão. Mas, com esta lição talvez você acorde e mude esta maneira errada de conduzir a vida. Estamos com 20 anos. Acho que já é hora de assumir que somos homens.
– É, de fato, eu preciso mudar.
– E estudar – complementou Estobe.
– Iiiii, lá vem você com esta história outra vez! Vejo que agora fala esquisito, mas nem por isto vai ficar pra semente. Todos os dias morre gente que fala bonito, junto daqueles que não sabem assinar o nome. Vai tudo para o mesmo lugar: debaixo da terra. Nem o que aprenderam levam com eles.
– É verdade, é verdade. Mas, se não fossem os estudiosos que perderam noites e noites estudando até descobrirem o soro contra picadas de cobras, nesta hora você estaria sendo disputado pelos saruês e urubus.
Reconhecendo a verdade, Nego riu e usou um termo que Estobe nunca ouvira: Ah, “dexa o pau caí a folha”!
– Naquele tempo de seminário, mesmo sem querer, ouvi o padre Wolkers dizer que a gente era palhaço de Deus. Se ele falou a verdade, vou cumprindo minha sina, fazendo palhaçadas. Aliás, tem outro jeito?
– Não, não tem. Bem – lembrou Estobe –, a gente não precisa ter pressa para nada, porque você não pode andar, e o socorro – se o Biriba chegou lá – só virá daqui a alguns dias. Mesmo assim, vou fazer um bom curativo nestas feridas dos seus pés. Tenho esparadrapo, mas precisaria de uns 20 rolos a fim de transformar você numa múmia egípcia. Vou proteger as mais inflamadas e profundas, e depois você terá de aguentar os meus sapatões.
– E os seus pés?
– Eles irão ferir-se também, mas aí eu já estarei em casa.
Estobe apanhou a cabaça, foi à nascente, encheu-a e retornou. Nego sentou-se sobre um toro e ficou com as pernas dependuradas. Ao começar a assepsia, Estobe estremeceu:
– Meu Deus! Mais um pouco e você ficaria apenas com a tíbia e o perônio para lhe servirem de apoio.
– Que significam estes dois palavrões que acabou de dizer?
– São os dois ossos que vão do joelho ao pé.
– Ah, tá. Tiba e perono. Entendi.
– Sabendo onde ficam e pra que servem, não tem importância: podem se chamar tíbia e perônio, ou tiba e perono – brincou Estobe, e riu a valer.
O amigo não tinha jeito mesmo: nasceu para ser o que era e modificá-lo não valia a pena: seria um trabalho árduo e, talvez, desnecessário. Como sobreviveriam os médicos se não houvesse os doentes?
Estobe terminou os curativos, vestiu-lhe as meias lavadas e não muito secas e tentou calçar-lhe os sapatões. Ele gemeu, aspirou a saliva com os beiços espremidos, emitindo um chiado de dor, e quis arrancá-los dos pés. Estobe o convenceu a resistir, porque logo a dor seria assimilada. Disse que certamente ninguém iria chegar, porque ele caminhara três dias, com raras paradas, e por mais rápidos que viessem, pelo menos dois dias seriam necessários.
– Nego, agradeça a Deus… e ao Biriba por estar vivo. Portanto, ao invés de reclamar, reze e agradeça. Aguenta aí que irei afastar-me um pouco e tentar abater alguma coisa pra gente comer.
– Vai, vai – respondeu Nego. Tente fazer um macuco responder. Quem sabe, depois da merda que fiz, matar um macuco seria a recompensa. Sei que jamais nós dois vamos esquecer estes momentos, mas temperado com um macuco, vai ser muito melhor. Ah, se encontrar cotia, deixe-a em paz: prefiro ficar com fome do que comer aquele bicho fedorento.
Estobe riu, apanhou a espingarda e, com muito cuidado por estar descalço, penetrou uns 30 metros fora do barraco. Subiu em cima de uma pedra e viu que o lugar era ótimo. Raras vezes piara um macuco, mas lembrava bem como fazia seu pai: era só segurar o pio entre o indicador e o polegar e assoprar. O sopro não podia ser muito forte, nem muito longo. Seu pai ensinara que um assopro curto e com o fundo do pio livre indicava macho; um assopro mais longo e com o fundo do pio um pouco abafado indicava fêmea. Disse, também, que embora todos imaginem que se o macuco piado for macho, deve-se piar fêmea, e vice-versa, mas que ele discordava. Preferia chamar para brigar, ou seja, se fosse fêmea, piava fêmea; se macho, piava macho, porque os macucos vinham mais afoitos, tornando-se inconsequentes. Aliás, a qualquer ser humano ou bicho deste mundo, a necessidade intensa para atingir o objetivo torna-os inconsequentes.
Os conhecimentos cinegéticos de Estobe eram de lembranças e histórias de seu pai, mas ele era um bom e inteligente aluno e acabava fazendo tudo como se fosse um velho e esperto caçador.
Como era setembro, e as matas prenhes de inhambus, mesmo antes que ele tirasse do bolso o pio, uma macuca piou bem pertinho.
Ele voltou de ponta de pé e foi buscar o amigo. Nego, apesar da dor e da fraqueza, entusiasmou-se e, apoiado no ombro de Estobe, chegou ao local. Lá, Estobe o posicionou sobre a pedra, deixou a espingarda com ele:
– Você fica aí, quietinho. Não mova nem a cabeça, porque os macucos são os inhambus mais espertos da floresta. Não sei se já observou, mas quando a gente está quieto e parado dentro de uma mata, a gente percebe até o abrir e fechar das asas de uma pequena borboleta. Imagine um cavalão como você, girando estes cabelos ruivos ao sol, pra lá e pra cá?
– Pode deixar comigo. Se ela passar perto de mim, não saberá o que é gente e o que é pedra.
– Vou ficar logo ali atrás. Se ela vier, terá de passar por aqui e aí você já sabe o que fazer. Não esqueça: eu estou logo ali atrás. Não atire para lá, nem que veja duas onças abraçadas. Não esqueça, fique imóvel, mesmo ela piando no pé da pedra. Só se movimente quando você enxergá-la. Entendeu?
– Deixa comigo. Não se lembra como eu era melhor que você quando a gente caçava caga-sebo lá no cafezal?
– Ah, sim, lembro. Gastava um embornal de pelotas para acertar um.
– Pois é, melhor que você que não acertava nem um leofante.
– Elefante, você quis dizer, não é mesmo?
– Bem, se seu elefante for igual ao meu leofante, concordo.
Estobe riu, afastou-se, sentou-se (por garantia) atrás de uma árvore, apanhou o pio, caprichou e emitiu o primeiro piado de fêmea.
Normalmente os macucos, quando não localizam quem chama, respondem num intervalo de cinco minutos. No entanto, se definem a posição do intruso, calam-se e partem para expulsar o invasor. E a macuca quietou. Estobe não piou mais. Ela veio quase correndo e ficou embaixo do lugar em que, em cima, estava Nego, que não viu nada. A macuca observou ao redor e então desafiou, emitindo um piado tão alto que – depois, Nego confessaria – quase a espingarda lhe caiu das mãos. Ele foi lentamente virando a cabeça e viu que ela estava atrás de uma pequena moita, com a cabeça escondida e o resto do corpo bem visível. Isto facilitou muito a pontaria. Nego engatilhou a espingarda, apontou, conferiu e puxou o gatilho. A macuca apenas agachou-se, morrendo instantaneamente, deixando atrás de si um caminho de penas. O tiro acertara em cheio e ela não estava a 10 metros.
Nem bem o eco do tiro havia se desfeito, Nego deu um grito de vitória e felicidade. Estobe acorreu célere. O amigo continuava sobre a pedra e não parava de repetir: eu matei, eu matei, eu matei.
Estobe achegou-se e perguntou:
– Onde ela está?
– Ali, disse ele, apontando com o dedo.
Estobe foi lá, apanhou-a e brincou: agora, se não quisermos apenas chupar os ossos das costelas, teremos de caçar outra.
É que o tiro acertou em cheio, quase diluindo a carne do peito. Mas era brincadeira: havia muita coisa ainda para ser aproveitada.
Calmamente, Estobe ajudou Nego a descer. Ele estava tão emocionado que nem quis ajuda:
– Pode deixar: eu vou sozinho mesmo. Caçador tem que ser macho, e agora eu já sou caçador.
Os pés pareciam não mais doer; da cobra, ele nem mais lembrava. Ficava claro que felicidade é para todos e também o melhor remédio do mundo para curar enfermidades.
No barraco improvisado, Estobe ajudou Nego a sentar-se perto do fogo e desceu para limpar a macuca. Pôs a espingarda ao alcance do amigo e lembrou:
– Não podemos nos esquecer que estamos dentro de uma das maiores florestas do mundo. Há milhões de bichos andando por elas, buscando a sobrevivência e também encrencas. Fique de olho.
Estobe, antes de agachar-se, verificou bem o lugar: afinal, os animais também se acasalam, e as cobras não fogem à regra. Normalmente, elas não abandonam seu pequeno território. A companheira da que picou Nego não estaria muito longe dali. Isto sem contar os pais e irmãos. Matutando estas divagações, Estobe foi surpreendido por um estampido e um grito do companheiro. Ele acorreu célere. Nem precisou perguntar: bem perto dele, um tamanduá-colete estirado. Viera, certamente, em busca de água para saciar a sede. Nas florestas, os tamanduás são muito mansos, porque não procuram encrenca, e nem as onças os perseguem, por serem considerados “carne de terceira”.
– Meu Deus, você atirou neste pobre bicho? Ele não faz mal a ninguém e nem serve para comer. Agora, vou ter de arrastar esta carcaça para bem longe, ou improvisar uma cavadeira de pau e fazer um buraco para enterrá-lo.
– Eu já aguento cavar o buraco, pode deixar comigo. Eu fiz a cagada. Agora vou ter que limpar a bunda.
Rindo, Estobe voltou à nascente. Minutos depois voltou com a macuca bem limpa e já cortada em pequenos nacos de carne para serem assados. Numa das mãos ele trazia um ovo pronto para ser posto. Mostrou para Nego:
– Veja aí a merda que fizemos. Matamos uma pobre mãe grávida.
– Ué, o ovo é verde? Bem, se ela estava grávida é porque alguém a engravidou. Amanhã, se a turma não chegar, a gente volta lá para pegar o marido.
Nego era assim: quase um bicho.
Estobe riu e ao mesmo tempo repreendeu:
– Nego, certo está meu pai. Se a gente não matar para destruir, vai ter bicho pra toda vida. Portanto, outro macuco, ou qualquer outro animal, só quando a carne desta macuca acabar. Combinado? E, pensando melhor, nós vamos mesmo enterrar este tamanduá. Antes, vou retirar o filé e nacos de carne maciça dos quartos. Quero preparar tudo com muito carinho. Será o alimento do Biriba quando ele voltar com a turma que virá nos resgatar.
– E o Biriba come este bicho?
– Bem, se você não contar pra ele que é carne de tamanduá, e a gente salgar direitinho, com certeza ele comerá. Sem contar que ele chegará faminto, porque meu pai não confunde animal irracional com gente. Certamente ele não lembrará de trazer comida para o Biriba. Lá em casa, ele fica sempre com as sobras do almoço e do jantar.
– É, vamos fazer assim como você falou. Vou comer esta carne toda hoje mesmo; assim, poderemos caçar outra vez amanhã. Certo?
Estobe apenas riu.

12
Depois da saída de Estobe, no quinto dia à noite, Antônio foi à casa de Albertino e o convocou, desta feita, a procurar Estobe. O filho dele, infelizmente, já era dado como morto.
Nem Estobe nem Biriba voltaram, e isto era extremamente preocupante. Tanto Albertino como Antônio foram à procura de ajuda e, no dia seguinte, às 9 horas, com as mochilas recheadas de comida, redes, panos e de tudo o que imaginavam necessário – inclusive velhos calçados – eles partiram. Antes era apenas um; agora eram dois os perdidos.
Maria passou a noite entrecortando as ave-marias com lamentações. Como gostaria de nunca ter saído do Sul! Isto não queria dizer que não gostasse do lugar em que morava. Toda a tristeza baseava-se na insegurança do momento que estava vivendo.

Junto com o grupo formado ia o Augusto, um italiano recém-chegado, cujas boas-vindas, diante de tantos e graves problemas, não eram nada sinceras. Ele possuía, também, uma espingarda 20, de um cano, e aquilo constituía a única defesa bruta de todo o grupo. Somente ele não falava nem entendia qualquer coisa dita em Português. Por isso, sempre que precisava de alguma informação, ele se dirigia a Antônio. O dialeto era diferente, mas Antônio conseguia deduzir.
Andando quase a galope, eles progrediram até o segundo abrigo de Estobe, onde passaram a noite. Por sorte, o tempo firmara e não havia nenhuma ameaça de chuva. Cada um escolheu um lugar que achava adequado para deitar, ou amarrou a rede nos tantos varões que a mata oferecia. O medo restringia-se, apenas, a possíveis quedas de galhos, já que cada um sentia-se seguro no meio do grupo. Ninguém escolheu lugar sem verificar as árvores mais altas, examinando se não havia galhos secos ou dependurados que pudessem cair.
Conversaram quase a noite toda, só silenciando pela madrugada. Entretanto, quando parecia que teriam um pouco de descanso, porque muitos já roncavam, eis que Augusto cutuca Antônio que dormia ao lado, e diz:
– Toni, asculta, paura que viem una bestia par qua. Me toca pegar la stchopa. (– Antônio, escute: imagino que um bicho está vindo pra cima da gente. Vou pegar a espingarda.)
Antônio tomou a lanterna e os dois ficaram aguardando. O bicho veio se arrastando pela picada e parou bem próximo, porque farejara a presença de gente. Como já estivesse em posição de tiro, Augusto pediu a Antônio que alumiasse. Antônio o fez e lobrigou um animal avermelhado que, em princípio não reconheceu. Augusto levou a espingarda, engatilhou e já ia disparar, quando Antônio empurrou a arma, tirando-a da direção e gritou:
– No, par l’amor del Signore, no sbarare. Lè Biriba, el me can fedele. El sta male. (– Não, pelo amor de Deus, não atire. É o Biriba, meu cão fiel. Ele está ferido, muito ferido.)
Ao empurrar a arma, Augusto que já estava com a mão no gatilho, apertou-o sem querer. O tiro de pólvora comum ecoou, acordando todo mundo. E entre o que foi e o que não foi, todos acorreram ao cão herói, que mesmo ferido tentava cumprir a missão que lhe fora destinada.
Muito emocionado, Antônio o tomou no colo e o levou para o abrigo, no meio deles. Logo acenderam um fogo e, com as chamas e a ajuda de lanternas, puderam constatar o estrago que algum bicho fizera ao dedicado Biriba.
– Se stà le lagne – Toni, dopo el gà dito chel saveva della cattiveria de sti mass’ci, sopratuto quando l’asta la gera granda. El gaveva de pi de sento (100) componenti.  Par miracolo non io gà copà, ma, me pare che io gà reso disgrassià par tuta la so vita. Sto tipo de mass’cio, quando lè atacà, non el se ferma gnanca davanti ai giaguari, sopratuto se lè sovane.  I ataca in grupo e insieme i ciapa el nemico, con la grande preda pi bassa, affilata ed esposto, come lance. (– Foram os queixadas – disse logo Antônio que conhecia a agressividade desses porcos, principalmente quando a vara era imensa. Havia algumas com mais de 100 componentes. Por milagre não o mataram, mas, parece, o aleijaram para o resto da vida. Essa espécie de porco, quando reunida e com filhotes, não respeita nem as onças. E sempre os tem. Eles atacam em grupos e agem saltando sobre o pretenso inimigo, com as presas inferiores grandes, afiadas e expostas, como se fossem lanças. O golpe faz isso aqui, olha – e mostrou o rasgo que ia da barriga ao cotoco do pobre Biriba.)
Os músculos foram levados juntamente com a pele e o pobre cão penava sem lastimar. Todo mundo acercou-se solidário ao Biriba, principalmente quando Antônio explicou a razão daquela fita amarela que ele carregava ao pescoço.
– Savio cossa vol dir questo, Albertino?  (– Sabe o que isto significa, Albertino?) Perguntou a Antônio, num misto de tristeza e alegria.
– Voe dir che el bambin le stà trovà ed lè con me fiolo, el stà tanto male, ma lè ancora vivo. Non so fin quando, perché non ghela fasso a acetar quando Biriba lè sta agredìo.  (– Significa que seu filho foi encontrado e está junto com meu filho, muito mal, mas ainda vivo. Não sei a que distância, porque também não posso acertar quando o Biriba foi agredido.)   
Albertino ajoelhou-se no meio da floresta e assim ficou até que o dia acabou de clarear.
Antônio e os demais continuaram cuidando do Biriba. Puxaram a pelanca e as carnes para o lugar, enfaixaram-no, deram água e comida o quanto ele quis. Devido à dor, ele pouco comeu, embora tenha bebido mais de um litro d´água.
Quando já se podia enxergar, improvisaram uma rede com um pequeno cobertor, ataram as pontas num varão, colocaram o Biriba dentro e foram em direção a Estobe e Nego.
A picada era boa e não se perdia tempo em procurá-la. Na única mudança de direção havia uma seta e um bilhete explicando. E os homens, agora mais que no dia anterior, mais corriam que andavam. Albertino ia na frente e ninguém conseguia alcançá-lo. Chegou ao ponto de ser advertido pelo seu patrão. Ele pediu desculpas e nem precisou explicar nada, porque todos ali eram casados e tinham filhos.
Já sabiam que os dois encontravam-se ao pé das pedras e todos queriam chegar lá ainda antes de o dia terminar. E, não acontecendo nada de anormal, chegariam, porque as pedras já eram vistas nitidamente. Ainda havia fracos raios de sol quando Antônio gritou e ouviu a resposta. Reconhecendo a voz do pai, Estobe respondeu:
– Estamos aqui, pai.
– E meu filho, está vivo? – gritou, perguntando, Albertino.
– Está, seu Albertino e, se duvidar, melhor que eu.
Novamente Albertino caiu de joelhos e chorou. A emoção dele, e de todos os que compunham a comitiva, era indescritível. Antônio não conseguia esconder o orgulho que sentia do filho e não via a hora de abraçá-lo efusivamente.
Em poucos minutos eles chegaram, e bom foi que pessoas que nada tinham a ver com aquilo estivessem por perto para sentir, no coração, o amor profundo que une as famílias. Eram gritos de alegria, de agradecimentos a Deus, choros compulsivos com orações misturadas. E nem a comemoração havia terminado quando Estobe quis saber do Biriba, porque já havia decidido que jamais se separaria dele enquanto estivesse vivo. Antônio baixou a cabeça e a fisionomia de pesar tocou fundo o coração de Estobe:
– Pelo amor de Deus, pai, o que aconteceu a ele?
Antônio entristeceu-se, virou a cabeça para o lado em que chegaram e mostrou alguma coisa dependurada.
– Não, pai, diga que não. O que aconteceu a ele?
Antônio observou melancólico:
– Forse saria meio sel fosse morto. Elo el ga perso par le ofese, ma lè ancora vivo. El gà ancora le sate dedrio, el se trassina. Se meio par voialtri che non lo vedì. (– Talvez fosse melhor que tivesse morrido. Ele foi trucidado pelos queixadas, mas ainda está vivo. Perdeu as pernas traseiras e apenas se arrasta.  É bom até que você nem o veja.)
Estobe saiu correndo e foi à rede improvisada. Abriu o pano e deu de cara com os olhos lânguidos do companheiro. Com bastante calma ele o apanhou no colo, beijou-o e, em cima dele chorou amargamente. Vendo aquilo, o pai comoveu-se, contando a ele que o encontrara rastejando pela picada a fim de obedecer às ordens que lhe foram dadas.
Num repente, Estobe reuniu o grupo e disse:
– Gente, se fiz algum favor a vocês, agora quero que me paguem. Entre os animais, o Biriba foi e sempre será aquele por quem tive e terei, até o fim da vida, gratidão, carinho e eterno reconhecimento. Ele salvou a vida do Nego e isto não irei esquecer nem na eternidade. Por isso, apesar de estarem cansados, quero dois voluntários para, agora mesmo, neste instante, me acompanhar de volta levando o Biriba. Se ele não receber tratamento com antibiótico o quanto antes, irá morrer.
No mesmo instante, dois se apresentaram como voluntários e, munidos de lanternas, começaram a desfazer o caminho. Antônio, previdente, que levara calçados, conseguiu duas velhas botas que calçaram bem em Estobe. Às pressas, encheram as cabaças com água, enfiaram comida nos embornais, repuseram o varão às costas e partiram. Os demais ficaram com Nego, porque ele era humano e os pés doíam, impedindo-o de andar. Teria de ser transportado numa rede, mas para isto o grupo contava com bom contingente e com todo o tempo do mundo.

Na noite do segundo dia, andando sem descanso, Estobe, Cleto e Osmar chegaram em casa. Biriba ainda estava vivo, mas seu estado era deplorável. Estobe abraçou a mãe e dizendo que depois contaria tudo, correu à caixa de remédios, achou um vidrinho de pó em que estava escrito “Penicilina”, misturou uma ampola do líquido que ao vidro estava acoplada, sugou com a seringa, injetou dentro do vidro, agitou bem, repôs o líquido na seringa e aplicou. Biriba não reclamou, não deu demonstração de dor: apenas não tirava os olhos do amigo que mais amava.
Com a principal, essencial e indispensável paz de estar fazendo tudo o que sua consciência aprovava, Estobe sentou-se e, como uma avalanche, o cansaço o soterrou. Cambaleando, chorando compulsivamente, ele dirigiu-se para a cama e nela caiu, só acordando às 10 horas do dia seguinte, quando sua mãe, propositalmente, começou a mexer nas vasilhas de alumínio sem a menor preocupação com o barulho. Na mesa, tudo o que Estobe gostava: leite, café, polenta, queijo e, desta vez, dois ovos fritos. Era preciso comemorar! No entanto, ainda que percebesse a frustração da mãe, antes de sentar-se ele correu para a caminha improvisada do Biriba, bem no canto da varandinha da cozinha.  Ficou feliz por encontrá-lo vivo, mas muito inchado e sem mostras de melhora. Mas estava vivo e em casa. Se o pior acontecesse, com certeza ele enfrentaria com bravura, porque seu instinto não lhe negaria o reconhecimento de carinho e apoio dispensado por Estobe. Depois dessa visita, Estobe sentou-se e tanto comeu que sua mãe ficou preocupada:
– Não tenha pressa, filho! Ainda há muito fubá, leite e ovos na despensa.
– Mãe, nunca pensei que fazer o bem fosse tão compensador. Estou como alguém que só pensa em riqueza e, de repente, acerta na loteria. Minha preocupação, agora, é com aqueles que permanecem no mato. Eles terão de transportar o Nego numa rede – porque ele está com os pés inchados e inflamados. Serão dias de angústia, dor e cansaço. Além da luta dos que ficaram, ainda há a preocupação do Nego, porque o conheço bem e sei que ser problema para os outros nunca lhe agradou.
– É…., mas vai ser o jeito! Nós não somos donos do próprio querer. Aguarde – mesmo porque não há saída, e nem preciso dizer que gostaria que não fosse assim – porque chegará o dia em que alguém vai ter de apoiar seus passos, botar comida na sua boca como se fosse um bebê, limpar sua bunda, ou fazer coisas parecidas. São suposições, filho, porque somente Deus sabe sobre o fim de cada um de nós.
– Vire essa boca pra lá, mamãe! Eu quero morrer como morreu meu avô que, segundo papai, estava sentado numa cadeira e dela caiu como se estivesse sido atingido por uma bala de canhão. Não sofreu, não encheu o saco de ninguém.
– Assim você quer que seja, meu filho, mas combinou com Deus? Nosso destino está traçado, eu acredito nisso. E já que estou com a palavra: você vai voltar quando para o seminário?
Nisso, um carro para no terreiro. O roncar do motor era inconfundível:
– A senhora viu o que me arranjou, mãe? Não sabe? Quando a gente fala sobre alguma coisa é porque essa coisa ronda por perto.
– Lá se vai mais uma de minhas galinhas, complementou Maria. Mas não tem problema, não: ele é um homem de Deus e a presença dele me agrada.
Padre Guilherme, espalhafatoso como sempre, tão logo ouviu toda a história, não perdeu tempo:
– Já que está tudo resolvido, voltamos amanhã para o seminário?
– Padre, o senhor sabe que não pretendo mais voltar para lá, a não ser que seja para buscar minha roupa. Tenho isso como resolvido. Foi bom que o senhor veio aqui, porque estava à procura de alguém para um grande favor. O senhor ouviu toda a história e sabe o que o Biriba significou para o salvamento do Nego. Só que ele está ali, aleijado, precisando de socorro urgente.
– Mas eu não sou veterinário e, depois de tudo, é apenas um animal, um cachorro.
– Pelo amor que tem a Deus, padre, nunca mais diga isso. Não foi o senhor mesmo que, ao tentar me convencer a ser padre, disse que Deus, ao dispensar uma graça, não escolhe pessoa ou coisa? Pois é, padre, não foi o senhor que ele escolheu, mesmo sendo o representante dele aqui em Marilândia. Escolheu um cachorro vira-latas.
Pego de surpresa e sem resposta satisfatória, padre Guilherme pediu para ver o cachorro. Estobe o levou e, ao descobri-lo, o padre teve repuxos de nojo e sentenciou:
– Aí não tem mais santo que dê jeito! Pode abrir a cova.
Diante de tal vaticínio, vendo Estobe que seria quase impossível convencer o padre a levar o Biriba, apelou:
– Padre, se o senhor levar eu e o Biriba para Colatina, agora, e pagar o tratamento do cachorro (o senhor sabe que aqui em casa só há dinheiro quando se vende o café), e ele ficar bom, eu volto para o seminário e darei tudo de mim para me tornar padre, como o senhor deseja. Como este ano já está no fim, voltarei para as aulas do próximo ano. Assim, além de acompanhar o restabelecimento do Biriba, ainda amadurecerei minha fé e a minha vocação.
Sem pestanejar, padre Guilherme, vendo que Maria saía para o terreiro com uma espiga de milho para atrair as galinhas, respondeu:
– Negócio fechado. Depois do almoço a gente vai.
Para adiantar, Estobe ofereceu-se para limpar a galinha, e enquanto Maria a cozinhava, tratou de se arrumar, embrulhando o Biriba em panos velhos e deixando tudo prontinho.
Não conseguiu almoçar direito, e quando o padre despediu-se de Maria, ele já estava com o Biriba no colo, sentado na parte traseira do Jeep. Ainda que desaprovando tudo aquilo, e demonstrando que gratidão e reconhecimento não eram seu forte, padre Guilherme não mais interferiu. Meteu a chave na ignição e partiu. Às 20 horas já estava de volta. Deixou Estobe e o Biriba em casa, beliscou ainda bons nacos de galinha, despediu-se e, antes de partir, virou-se para Estobe e não arrefeceu:
– Ano que vem, não esqueça. Vou logo entrar em contato com o padre Acácio e deixar tudo certinho.
É que o veterinário – veterinária, por sinal – havia garantido que, mesmo o antibiótico funcionando, o Biriba levaria muito tempo para curar-se dos ferimentos. Quanto a caminhar, ela não garantia nada. Possivelmente ele se arrastaria até o fim de seus dias.
Mas isto não importava muito a Estobe. O que ele queria era fazer Biriba entender, por meio de seu instinto, que ele jamais o abandonaria, que jamais esqueceria o quanto ele fora fundamental no salvamento de seu maior amigo, Nego.

Três dias depois, os homens que traziam Nego numa rede atada a um grosso varão despontaram no aceiro da pequena área de pasto. Chegaram extenuados, suados, mas com feições de alegria, tanto por fazerem parte do salvamento de uma vida como do cumprimento de uma dolorosa e inesquecível missão.
Nego estava muito abatido, todo picado por insetos, feridas por todo o corpo e os pés muito inchados. Mesmo assim, ao ser colocado no chão, ergueu-se, manteve-se de pé e, ao ser abraçado por Estobe, sussurrou-lhe aos ouvidos: “Como está nosso amigo de fé?” Sem descolar o rosto, Estobe respondeu: “Já foi devidamente medicado em Colatina e a veterinária disse que agora é rezar para que os antibióticos funcionem”. “Os remédios vão funcionar, porque o Biriba é um anjo de Deus em forma de cachorro”! “Disto eu nunca irei duvidar até o fim de meus dias.”
E como demorassem demais abraçados, Maria interferiu num chiste de brincadeira maliciosa:
– Vocês não acham que já chega de tanto abraço? Agora mesmo o pessoal vai desconfiar.
Estobe e Nego afastaram-se ante boas risadas de todos os que estavam presentes.
Novamente colocaram Nego na rede, e só então ele foi entregue na casa dele.
Naquela noite, enquanto Nego dormia e acordava intermitentemente, Norinha e Albertino não descolaram os joelhos do chão. Havia muito a agradecer. Lá pela madrugada, enfim, resolveram rezar a salve-rainha, que segundo a tradição católica complementa o terço.
Norinha foi para a cozinha, acendeu outra lamparina e, até o amanhecer, ficou fritando bolinhos de banana, cozinhando broas de fubá com torresmo e todo o mais que Nego sempre gostou.
Com o dia claro, Albertino foi à procura de ervas para machucados e, embora não fosse de seu agrado, passou o resto do dia dando banhos mornos nos pés inchados do filho. Mas, que Nego não duvidasse: tão logo ficasse bom, ouviria o sermão que merecia, porque tantas vezes Albertino tentou convencê-lo de que ainda era muito novo para entrar nas matas e caçar de espingarda. E não adiantaria Nego lembrar ao pai que já tinha 20 anos, porque esta idade, naquele tempo, em Marilândia, pouco significava em termos de direitos para exercer a liberdade plena.
Era muito difícil, ali, falar de alguém que se casou com 20 anos, tanto homem como mulher. A maioria das mulheres, nesse tempo, em Marilândia, nem sequer apresentavam seios.

13
No Natal de 1939, a única diferença que se notava dos natais de anos anteriores era a imensa alegria que reinava nas famílias de Antônio e Albertino Cordeiro. Antônio não era de muitas amizades, mas o grave incidente da perdida do filho do meeiro, em que Estobe se tornou o principal responsável por não somente encontrá-lo mas também salvá-lo da morte, acabou atando-lhes forte amizade. Cordeiro enviava-lhe “agrado” toda vez possível e era comum vê-los saírem juntos para caçar e, quando matavam um bicho, fosse quem fosse o atirador, eles o limpavam e dividiam. O incidente servira, acima de tudo, para avivar a fraternidade entre eles.
Em novembro Antônio fora acometido pela malária, e por mais comprimidos de quina que tomasse para combater os constantes calafrios e vômitos, não melhorava. Chegou o Natal e ele continuava com a febre. Apesar da insistência da família, não procurava médicos. Continuava tomando os comprimidos que a SUCAN distribuía às famílias de todo o vale todas as vezes que seus agentes passavam borrifando veneno contra os mosquitos. Não se conformava com a ineficácia do remédio. Sempre febril, praticamente não usufruía do momento em que todos pareciam alegres e felizes. Os meses foram passando, passando, e nenhuma melhora era notada.
Em fevereiro, conforme acordo com o padre Guilherme, Estobe retornou ao seminário e, desta vez, para pedir a Deus vocação para tornar-se padre secular. Já nem pensava em vocação, mas voltaria a fim de cumprir o acordo que fizera com o padre.
Já no seminário, em abril, recebeu a notícia de que seu pai havia falecido. Novamente, com muita dificuldade, conseguiu que o reitor o liberasse para acompanhar as exéquias do pai. Essas demonstrações de insensibilidade do reitor cada vez mais o afastavam da possibilidade de se tornar padre.

Depois de lutar incansavelmente contra a malária, Antônio resolvera – a conselho de um curandeiro – ingerir, de uma só vez, uma garrafa de cachaça: entrou em coma e, antes de ser levado ao médico, repentinamente quietou para sempre.
Estobe teve de apelar para a Bíblia e para os conselhos da mãe e amigos mais equilibrados, porque queria, a todo custo, acabar com a vida do curandeiro. Avisado, ele desapareceu da região e nunca mais foi visto por aquelas bandas.
Maria sentiu os vergastes da vida e novamente lamentou o dia em que saiu do sul do Estado. Lá nunca se falou em malária. Ela nem sabia o que era. Ali, quem lhe garantia que um mosquito infectado não a picaria, assim como ao Estobe ou à Laura? Diante da dor e da inconstância, ela propôs a Estobe voltarem para Ribeirão do Cristo. Mas o tempo – sempre o tempo – encarregou-se de amenizar também aquela dor. A angústia diminuiu, ninguém mais foi acometido pela doença, a vida foi se adequando e Maria voltou à sua rotina de cuidar das criações e deixar a solução dos problemas aos cuidados do tempo.
Vendo a luta da mãe, mais uma vez – agora forçadamente – Estobe foi falar com o padre Guilherme. Obcecado pela ideia fixa de ordenar um sacerdote filho de sua paróquia e vendo que perderia sua maior esperança, ele reagiu:
– Que diabo de homem é você? Já se esqueceu que tem uma dívida comigo? Não se esqueça: você prometeu. Eu cumpri a minha parte, agora é sua vez.
– Padre, Jesus não falaria deste jeito.
– E eu lá sou Jesus?
– Mas prega e ensina que devemos andar e agir como Ele.
– Ele sempre cumpriu a palavra.
– Mas, padre, há coisas que independem da gente. Deus é testemunha de que minha intenção era cumprir o prometido, mas o senhor está vendo: não posso deixar minha mãe sozinha. Ela já está cansada, reclama de dores nas costas e há tarefas que ela não aguenta mais fazer.
– Quem, pra você, é mais importante, sua mãe, ou Deus?
– Eu, padre, devolvo ao senhor a pergunta: quem precisa mais de mim neste momento: Deus ou minha mãe?
– Não me venha com subterfúgios, Estobe. O apóstolo Mateus lembra: “E todo aquele que tiver deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras, por amor de meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna.”
Perdendo a paciência, Estobe retrucou:
– Certamente o senhor conta com isto, padre, e eu o felicito, mas prefiro ficar lá escondido, no cantinho do céu, do que deixar, agora, minha mãe desamparada.
E como o padre conhecia a cabeça dura de Estobe, bufou como um dragão enfurecido, foi para o Jeep, acelerou fundo e voltou para a construção de seu pré-seminário. Sua maior esperança também não vingara. Enfim, entre os dentes, conformou-se: “Fiat voluntas tua”.
Padre Guilherme, em algumas situações, lembrava Pedro, o apóstolo explosivo, às vezes inconstante, mas o mais confiável na hora de defender seu mestre. Sempre com a ideia fixa de arrebanhar jovens para a Igreja, ele resolvera, com a cara, a língua para pedir e a força da persuasão, construir um grande pré-seminário. Como era uma comunidade italiana católica, ele conseguiu o terreno e todo o material de graça, e não se furtava a participar. Mal terminava a missa, às vezes ainda de batina, ele corria para a construção. Cumprimentava os voluntários, dava ordens, às vezes sugestões, e quando terminava a inspeção, puxava a batina, enfiava a orla sob a cintura e também carregava tijolos e argamassa. Começou com 20 salas de aula, uma igrejinha, um refeitório, duas grandes salas para estudo e um dormitório para mais de 200 alunos. Tudo era simples. Nada de luxo ou material para embelezamento. Havia de ser funcional.
E Marilândia crescia. Mais e mais famílias chegavam. Já não se podia dizer que era uma colônia de brancos, de italianos genuínos: brasileiros de outros estados, mulatos e negros, já se misturavam como café e leite.
A partir daquele momento, Estobe tornou-se arrimo da família, o homem da casa, aquele a quem até a mãe pedia a opinião na hora de tomar decisões. Somente depois dos 20 anos a barba de Estobe anunciou-se. Farripas ruivas apareceram pelo rosto e, com elas, uma verdadeira explosão de hormônios: o que era normal naquele tempo, e naquele lugar, a jovens dessa faixa etária.
Ele e Nego viviam como irmãos e nada um fazia sem que o outro fosse convidado a participar. Albertino ainda não havia passado o bastão para Nego, mas sem que o percebesse, também já era o filho quem decidia quase tudo.
A região crescia. De vez em quando uma família chegava, instalando-se por perto. Com as famílias, novos rapazes, novas moças. Não demorou para que bailes fossem programados, reunindo jovens que, como tal, logo iniciaram namoricos e fofocas.
Estobe e Nego trataram logo de comprar uma bicicleta e um poldro para cada um. No primeiro ensaio para aprenderem manejar a bicicleta, Estobe foi firmado por Nego em cima do selim, bem no início de um caminho em declive que passava entre mangueiras e ia ao riacho Santo Hilário. Estobe firmou-se e autorizou:
– Pode empurrar.
O caminho em declive, o impulso do empurrão do Nego e a inexperiência de Estobe não podiam ter outro resultado: em menos de 10 metros a bicicleta imbicou, e na ânsia de pará-la, Estobe puxou o freio da roda dianteira. No breque, ela travou, Estobe foi alçado por cima do guidão, deixando parte da sobrancelha esquerda agarrada na raiz exposta de uma mangueira. Carregou a cicatriz por toda a vida, porque, embora já houvesse posto de saúde em Marilândia, ninguém se preocupava com a vaidade.
No auge da Segunda Guerra Mundial, apareceu por lá um médico alemão de nome Nickman. Ele havia saído da Alemanha para escapar das loucuras de Hitler e, tão logo seu conterrâneo Guilherme o localizou no Brasil, tratou de levá-lo para Marilândia.
Se já muitos consideravam o padre Guilherme maluco, Dr. Nickman parecia generalizar a raça ariana toda. Mesmo de olhos azuis esbugalhados – tipo psiquiatra precisando da ajuda de seus pares, sem saber uma única palavra de nosso idioma – o médico salvou muitas vidas, mesmo sem obter qualquer informação para auxiliá-lo no diagnóstico. Dr. Nickman examinava, olhava, apalpava, em seguida puxava para si um bloco em branco e escrevia a receita. Foi então que se descobriu o quanto valiam os farmacêuticos, porque decifrar aqueles hieróglifos, só mesmo especialistas formados em símbolos enigmáticos. Sabendo de suas limitações, ele só escrevia o nome dos remédios. O resto era por conta da bula e das orientações do farmacêutico.
Do jeito que apareceu, em 1946 Nickman desapareceu, não deixando informação, nem ao seu compatriota Guilherme.
Foi também nesse ano que Biriba, não suportando o tempo, morreu. Havia muitos meses que ele mudara o comportamento, dando mostras de que as coisas não iam bem. Os ferimentos sararam, mas ele nunca mais teve as pernas traseiras para se firmar e acompanhar Estobe. Enquanto doente, apesar de seus presumíveis 13 anos, ele gozou o privilégio de dormir dentro de casa. Quando a barriga doía, ele se arrastava para o terreiro e, sempre no mesmo lugar, aliviava-se. Estobe o ensinara apenas algumas vezes quando, doente, ele sujava a casa. Com paciência, Estobe recolhia o cocô da sala, ia ao terreiro com o Biriba debaixo do braço, depositava os excrementos no chão, punha o amigo ao lado, passava-lhe a mão na cabeça, acariciava e depois, como se Biriba fosse uma criança de dois anos, batia palmas como a dizer: “Bravo, bravo, meu herói”.
Nos seus últimos dias, ele já não gemia quando queria sair, não comia senão polenta com leite ou comida que pudesse ser engolida sem mastigar: quase todos os dentes haviam caído e os que sobraram estavam com cáries ou mesmo quebrados. Ele babava e já não conseguia arrastar-se. Sempre que podia, Estobe andava com ele pelo terreiro, punha-o no chão, tentava brincar, estimular, mas não dava mais. Biriba baixava a cabeça, fechava os olhos e Estobe, sem suportar a dor que lhe invadia a alma, retirava-se para algum lugar ermo a fim de transformar seu desespero em lágrimas. Escondia-se porque muitos não concordavam que um homem chorasse por causa de um cachorro.
Quando viu que a hora havia chegado, ele foi chamar o Nego e ambos se deitaram ao lado dele, o abraçaram, e, enquanto choravam, Biriba deu seu último suspiro.
Biriba não tinha pedigree: era um simples vira-latas chegado não se sabe de onde, nem de quem; não teve sua figura esculpida, ou mantida em estátua na estação de Shibuya, como Hachiko, mas não deixou de ser menos amigo e fiel do que ele. Não passou anos esperando pelo dono, Hidesaburo Ueno, mas deu a própria vida para salvar a quem amava e tinha amizade.
Passado o momento mais forte e crucial da despedida, Estobe e Nego, munidos de um enxadão, tomaram Biriba no colo e enrolaram numa toalha nova, fizeram uma sepultura entre as duas casas, colocaram flores e cercaram a cova com estacas e pedras. Não puseram cruz, porque Estobe disse a Nego que isto não devia se fazer, a não ser com humanos. Mas poucos humanos receberam mais visitas, mais flores e mais lágrimas do que Biriba.
Dias depois, Estobe comprou tinta e pincel e escreveu:          AQUI JAZ BIRIBA, O CACHORRO QUE MORREU PARA SALVAR A VIDA DE NEGO.
Sabendo do que andava acontecendo, porque a notícia se espalhou por toda a região, padre Guilherme foi averiguar, temendo tratar-se de uma apostasia. Mas, ao ser lembrado dos detalhes do que Biriba fizera, ficou sem palavra. Afinal, disse ele, “Deus também nos ama, apesar de sermos bem piores que muitos cachorros”.
Durante muitos anos era possível, à noite, depois de aguar as flores que haviam plantado, ver Nego e Estobe sentados ao lado da sepultura. Nem Maria, nem toda a família de Albertino, nunca se opuseram. Aquele cachorro, sem sombra de dúvida, fora o instrumento que Deus utilizara para atender os pedidos de Norinha e de toda a família.

14
Antônio, quando vivo, não se cansava de lembrar que quando se é pobre e honesto só há uma chance de deixar herança digna para os filhos: mudar para regiões em desenvolvimento – lugares em que as coisas ainda são baratas – e esperar que o desenvolvimento chegue e a valorização aconteça. Com certeza ele morreria pobre, mas seus filhos já ficariam melhores e, os netos, ricos. Com Estobe, a teoria do pai estava funcionando.
Antônio mudou-se para as matas da região norte do Espírito Santo, morreu um pouco menos pobre do que quando chegou, mas deixou à família uma pequena área de terras já bem valorizada. E o progresso rondava. Famílias chegavam, pequenos empreendedores estabeleciam-se, surgiam olarias, serrarias, fazendeiros, comerciantes, gente que percebia a chegada do desenvolvimento. Enquanto o lugarejo já formava ruas, grandes cafezais surgiam.
Marilândia crescera, tornara-se uma vila com todos os mínimos requisitos em todos os setores. Um médico, vindo de Crato, instalou-se; professoras da Capital já lecionavam em pequenos núcleos do interior; Marilândia já contava com duas escolas; cinema, bares, bons campos de futebol e até um modesto conjunto musical, que vivia se apresentando em todas as ocasiões festivas da região.
Foi assim que Estobe ficou conhecendo Helberti, uma professora evangélica vinda da Capital, oito anos mais nova do que ele, muito meiga e bonita. Não foi nada difícil, para ela, cativar Estobe, um homem cheio de vida, mas com todas as amarras de uma educação rígida, talvez ultrapassada, talvez correta, ele nunca soube precisar.
Helberti não tinha pressa. Lecionava numa escolinha bem próxima e ficava hospedada na casa de Maria. Estobe passava horas rolando na cama pensando nela; ela não via a hora de tê-lo para si. O tão simplório enunciado da “fome com a vontade de comer” era a máxima reinante. A troca de olhares constantes denunciava a empatia existente. Embora mais nova, Helberti trazia dentro de si todas as estratégias para conquistar um homem carente e, em termos de amor, inexperiente. Não desperdiçava qualquer oportunidade para somar a seu plano de conquista.
Percebendo que Estobe gostava muito de cana, num sábado, logo após o almoço, ela o convidou para ir ao canavial, porque ela também amava chupar cana. Dificilmente o fazia porque, além de não saber descascá-las, ainda tinha medo de ir sozinha ao canavial para apanhá-las. Como passar momentos sozinho com ela era tudo o que ele mais queria, Estobe nem esperou o convite terminar: logo apanhou uma faca e foram saindo.
O canavial, que fora plantado por Antônio, ficava do outro lado do riacho Liberdade. O tio de Estobe (Luís) que tinha comprado a área contígua à de Maria, fizera, a enxadão, um pequeno dique numa das curvas do riacho, desviando parte das águas para seu pequeno pedaço de chão. Apesar da pouca água, Luís não teve preguiça ao escavar a valeta, deixando-a com dois metros, tanto de fundura como de largura. Sobre ela foi jogado um tronco roliço que, mesmo fino, servia de pinguela.
Tendo atravessado este primeiro obstáculo, logo na frente surgia novamente o riacho Liberdade em seu curso normal, agora com menos água, por causa do desvio. A menos de 500 metros abaixo, as águas do Liberdade juntavam-se outra vez às águas desviadas.
A travessia dessa pinguela era mais comprida e instável a quem não dispusesse de cerebelo em perfeito estado. Antônio, que a projetara, não se preocupou com possíveis quedas, porque a altura era mínima, talvez um metro. Era muito fina e balançava bastante. Com o desvio de parte da água que formava o Liberdade, o leito sob essa pinguela tornara-se um filete e as margens, que antes eram ocupadas pela água, transformaram-se em capim rasteiro, verdejante e macio.
Encenando muito medo, Helberti disse que só passaria se ele a ajudasse. Estobe jogou a faca para o outro lado e se dispôs a amparar Helberti. Ela – já com tudo premeditado – abraçou-lhe a cintura, pressionando maliciosamente seus seios rígidos nas costas de Estobe. Ele, que já ficava excitado somente ao fitar os olhos verdes da professora, com aquele toque acariciador logo sentiu um estranho calor perpassando-lhe a espinha.
De tanto deixar as rédeas soltas das fantasias, até para urinar, ele vivia tendo problemas com ereções indesejadas. Agora, com tudo real e em cores, ele se via realmente em apuros. Que seria dele se Helberti percebesse? Em sua santa inexperiência no mundo da luxúria, ele não sabia que aquela reação significava tudo o que uma mulher gosta de provocar nos homens.
Então, bem no início da ponte – que era mais baixa e o capim mais convidativo – ela forjou desequilíbrio e puxou Estobe, caindo os dois sobre a relva. E aí não houve mais qualquer estratégia: ela o agarrou e o beijou, deixando-o fora de si. Se ele tentasse argumentar, ela impedia, sufocando-o com mais beijos. Por fim, ela foi tirando a própria roupa e baixando as calças de Estobe. Ela não precisou de muitos cuidados, porque já fora sem a lingerie, tudo muito bem premeditado.
Ali ficaram por mais de uma hora, transaram três vezes e quando pareciam saciados, ergueram-se, atravessaram a pinguela sem qualquer problema, ganharam o cafezal e se dirigiram, abraçados, para o canavial. Em menos de 10 minutos as ereções de Estobe retornaram. Como bom aluno, ele já não se importava que a professora visse. E ela, sem se fazer de rogada, puxava-o para si e transavam mais uma vez. E assim foi durante todo o passeio.
Ao retornar, Helberti trazia nas mãos mudas de lírios encontradas numa pequena depressão do terreno, no qual a umidade se mantinha o ano todo. Ao passar pela pinguela, ela desceu e, com a faca, cavoucou a terra e plantou os lírios. Depois, olhou para cima e disse: eles sempre lembrarão que você me fez a mulher mais feliz deste mundo.
Já mais calmos, Estobe tentou explicar à enamorada que a mãe dele jamais iria concordar que ele transasse com qualquer mulher sem antes ter casado no religioso, e sendo ela evangélica, isto não seria possível.
– Minha mãe foi criada como católica e não é porque é minha mãe não, mas poucas mulheres deve haver no mundo mais corretas do que ela. Ela sabe que você é evangélica e não concordará nem que namoremos, quanto mais que nos casemos.
– Casar? – perguntou Helberti, assustada.
– Sim, casar. Eu também acho que quando se chega aonde chegamos, o jeito é casar. Não sendo assim é pecar contra a castidade, e isto é grave.
– Estobe, meus avós também eram fanáticos e o fanatismo dizimou nossa família. Eles abandonaram minha mãe grávida, voltando para o Irã sem levá-la. Meu bem, por enquanto eu amo você e isto já não basta para começar? Vamos deixar o tempo passar e ver o que acontece.
– E você tem dúvida do que irá acontecer? Eu irei todas as noites ao seu quarto e nem sei se irei esperar a outra noite chegar.
– Quanto melhor, se assim for. Eu estarei sempre esperando você, no quarto ou em qualquer lugar.
– O diabo é que você pensa que mamãe, por não ter diplomas, é boba. Não levará uma semana para desconfiar e me chamar para uma conversa.
– Vai nada. É só a gente não dar bandeira. Vamos ser espertos e disfarçados.

No domingo, Estobe havia marcado uma caçada com Nego. Mas, ao amanhecer, ele foi lá e pediu desculpas, dizendo que acordara com dor de cabeça e mal da barriga.
– Ora – argumentou Nego –, você toma um comprimido de Melhoral para a cabeça e, quanto a cagar, olhe lá o tamanho da mata: não vai faltar lugar.
Estobe riu, mas não cedeu. Fez cara de doente, desculpou-se e arrefeceu:
– Nós temos a vida pela frente, amigo! No próximo domingo, talvez. Agora, não esqueça: sair sozinho, nem pensar, porque não tenho mais o Biriba para encontrá-lo.
– Passe ali e olhe como está a sepultura dele: enchi de flores.
– Faz muito bem, Nego. Este outro pedaço de vida que está vivendo, você deve a ele.
– Você pode até não crer nisso, mas eu, sim.

Na terça-feira foi a vez de confirmar o que ele nunca duvidara: mal pôs o vasilhame na bacia para ser lavado, Maria observou:
– Você vai sair para algum lugar?
– Ué, mãe, por que esta pergunta agora?
– Você e Nego saem quase todas as noites, não saem?
– Não, mãe, estou cansado. Vou ficar em casa mesmo. Por falar nisso, venho sentindo que preciso me cuidar mais. Trabalhar de dia e sair de noite já está sendo demais para mim.
Confirmando suas suspeitas, Maria apenas arrematou com entonação de desconfiança:
– Ah, sim, sei!

Era comum, antes de desligar a energia, a família ouvir a Pausa para Meditação, de Júlio Louzada, e depois a novela Fatalidade, que alguns anos mais tarde perderia espaço para a Ave-Maria, O Direito de Nascer e Jerônimo, o herói do sertão.
A energia era produzida pela força da água desviada, que vinha da longa vala que Antônio, quando vivo, junto com amigos da redondeza, escavou, da cabeceira do riacho Santo Hilário ao terreiro de sua casa. Como o terreiro terminava num declive de 15 metros, Antônio improvisou uma bica utilizando um pau oco, arrastado ao local pela junta de bois do irmão Luís. Escorou-o com fortes forquilhas e, na queda que se formou, montou uma grande roda de pau, com caixinhas de madeira, uma após a outra, em cada uma cabendo 10 litros de água. As caixas, do topo à base, quando enchiam, faziam a roda girar, acionando a polia grande, que por sua vez, através de um correão, girava o dínamo, produzindo energia para 20 lâmpadas de 40 watts, ou 40 velas, como diziam lá, e um rádio.  Ainda que a produção de energia fosse de graça, eles sempre desligavam às 22 horas, a fim de economizar os carvões, o breu das correias e o próprio desgaste. Por isso, não havendo luar, a noite era muito escura.
Nas cabeceiras das camas, para eventualidades, sempre havia uma lamparina e uma caixa de fósforo, mas dificilmente eram usadas. A paz, o sossego, a falta de contas a pagar, impediam que se debatessem na cama. Não tinham dinheiro nem dívidas, e isto era o acalanto perfeito para que logo dormissem.
Com a supressão do monótono barulho da parafernália criada por Antônio para gerar energia e tocar o moinho de milho, somente feria o silêncio o chilrear das corujinhas, que pareciam reclamar. É que a luz, embora fraca, atraía besouros e mariposas, propiciando a elas e aos sapos substancioso jantar.
Barulhos esporádicos vinham do pega-pega do gato a algum rato sobrevivente e desavisado. Aqueles barulhos eram antigos e bem definidos por Maria. No entanto, certos gemidos e sussurros, por mais cuidadosos que fossem emitidos – naquela casa sem forro e quase toda de madeira – logo começaram a chamar-lhe a atenção. Não havia dúvidas: Estobe e Helberti estavam com safadezas.
Não que Maria desconhecesse ou desconsiderasse a mútua atração dos jovens, mas ela se lembrava de Laura, e de sua formação cristã, e nunca quis para a filha de ninguém o que não desejava à sua.
No outro dia bem cedo, quando Helberti saiu para lecionar, Laura para o curso de datilografia e Estobe tomava café para ir ao trabalho, Maria, pondo a mão em seu ombro, disse:
– Filho, não vou perguntar nada, como se de nada eu soubesse. Vou direto ao assunto. Há quanto tempo você e Helberti estão vivendo como marido e mulher?
Estobe podia esperar tudo, menos uma indiscrição daquele quilate. Sua mãe sempre fora sensata, e até para dar palmadas, quando Estobe e Laura eram pequenos, ela o fazia com carinho. Todas as malcriações das crianças ela esquecia num átimo.
Sem deglutir a broa que já havia mastigado, Estobe paralisou-se. Quando tentou engolir, engasgou-se, levantando-se para tomar um copo d´água. Voltou, sentou-se e tentou se justificar:
– Começou sábado passado, mãe, quando fomos à roça chupar cana.
E sem culpar Helberti, que desde aquele dia não saía de seu pensamento, continuou:
– Nós sentamos para descascar a cana e ela ficou muito próxima de mim. Sabe, mãe, eu acho ela muito bonita e acabei dizendo isto a ela. Então, ela passou a mão no meu rosto e….
– Filho, dispenso os detalhes, porque já fui jovem e só Deus sabe quantas desculpas e mentiras inventei para não decepcionar meus pais e casar virgem. Até então, filho, não só era lei, mas também um bom costume, ir para a cama depois do altar.
– As coisas mudaram muito, não é, mamãe?
– As coisas sim, filho, mas Deus não. Jesus Cristo, o Filho que o Pai Eterno enviou para salvar a humanidade, foi pregado na cruz por causa de nossos erros. Não vai na onda do mundo, filho, porque se assim fizer, estará continuando a pregar o Filho de Deus na cruz.
– Puxa, mãe, desculpas! E agora, como faço? Ela não vê a hora de ficar comigo; eu não vejo a hora de ficar com ela. Desde o início eu sabia que a senhora iria sofrer, porque seus pensamentos ainda são aqueles da boa tradição. Sabe, eu até falei com ela em casamento, mas ela parece não ter gostado. Ela veio da Capital, onde a juventude imagina que o namoro inclui o sexo, e por isso acha muito normal deitar-se comigo.
– Porém, filho, você sabe que isto não vai dar certo. Você sabia que ela é evangélica? Mesmo que resolvessem se casar: seria na nossa ou na igreja dela? Nós nascemos no catolicismo e permanecemos nele porque acreditamos que a Igreja Católica segue o que Jesus mandou, quando deu a Pedro o comando de sua igreja. Hoje, o papa Pio XII substitui Pedro. Por isso, não quero nem pensar que você se apaixone ao ponto de abandonar o que passamos a vida a acreditar.
– Ô, mãe! Não se preocupe tanto ainda. Apenas começamos um namoro muito avançado para os moldes de seu tempo. Esta sofreguidão talvez se deva por causa de meu longo celibato no seminário. A senhora sabe que Helberti é a primeira mulher que conheço e já estou ficando muito velho. Talvez ela seja mulher de qualquer um – e se for assim, vai me doer muito. Eu não a tiro do pensamento e não vejo a hora que a noite chegue.
– Em sendo assim, filho, terei de pedir a ela que procure outra casa, porque não posso concordar com isso.
Ao ouvir a ameaça, Estobe ergueu-se, abraçou a mãe e prometeu:
– Não faça isso, mamãe! Eu prometo que não a procurarei mais durante a noite. Se a senhora quiser, vou até dormir no quarto da senhora. Faço qualquer coisa, mas não a mande embora. Será um grande constrangimento para todos nós. Todo mundo quererá saber a razão e por mais que tentemos esconder, a verdade acabará surgindo. A senhora não acha?
– Concordo, filho! Não precisará dormir no meu quarto. Eu acredito e confio em você. Sabe que Laura já é moça. Nem sei se ela já não ouviu o barulho de vocês. Acho que não, porque ela ainda é muito pura e só pensa em me ajudar nos serviços da casa e estudar. Quando chega a noite, ela logo vai pra cama. Você acredita que antes de ontem ela foi deitar ainda mais cedo do que de costume? Uma hora depois entrei lá, e ela estava com o rosto em cima da folha do caderno de exercícios. Para não a acordar, deixei como estava. Pois de manhã, voltei lá para chamá-la, e vi que a folha estava do mesmo jeitinho, demonstrando que ela tinha dormido a noite toda.
– Graças a Deus, mãe! É que, como a senhora disse, ela é muito pura, e é mesmo. Tenho notado que o Nego é maluco por ela, mas não tem coragem, mesmo porque ele se sente inferior e incapaz de cortejar a filha da patroa.
– Por enquanto, é bom que ele pense assim, porque sinto que Laura sonha continuar os estudos, e quem sabe as coisas mudem e a gente vai poder mantê-la em Colatina ou em outra cidade.
– É, mãe, quem sabe! E agora, posso ir? Ah, posso estar com ela esta noite, para dizer de nossa conversa?
– Não deve, filho, não deve! Saiam aí pelo terreiro e conversem.
– Está bem, mãe! Mil desculpas. A senhora sabe o quanto gosto da senhora e que tudo farei para não entristecê-la.
– Sei sim, filho!

Estobe não almoçou direito. O que prometera à sua mãe fora demasiado para suas forças. Apesar de ter colocado no prato bem menos do que o costumeiro, ainda deixou bastante. A mãe olhou e não precisou perguntar nada: sabia o que estava se passando na cabeça e no coração do filho. Ela mesma não estava certa de sua decisão, pois conhecia bem a força dos hormônios. Muitas vezes se perguntava se tinha valido a pena ter-se resguardado para casar virgem. Lembrava das tantas noites que perdera quando se negava a aceitar os carinhos mais avançados de Antônio.
Feliz ou infelizmente, fora criada sob os princípios cristãos e muito cedo aprendera que para tudo há o tempo oportuno. Como a semente que nasce; como o renovo que desperta; como a árvore que cresce; como as flores que aparecem; como os frutos que se formam… Os frutos, quando verdes, embelezam e deixam as pessoas ansiosas, aguardando que amadureçam. Só então o tempo da degustação chega. E, nessa hora, apesar da espera, tudo se faz com prazer e alegria.
Pensando assim, ela se conformava e até agradecia a Deus por não ter do que se arrepender. Namorou com decência; casou virgem e estava com a consciência tranquila.
Estobe, cabisbaixo, saiu pelo terreiro e foi assentar-se sobre uma grossa raiz exposta da mangueira, bem ao lado da valeta. Como estava de sandália de borracha, imergiu os pés na água corrente. Ficou a erguer e a afundar os pés, mecanicamente. Helberti ainda não chegara da escola. Muitas vezes ela vinha a pé, porque lecionava bem perto. Por isso, seus olhos miravam a curva da estrada e seu sangue efervesceu quando a viu despontar.
Ergueu os pés da torrente e foi-lhe ao encontro.

15
Era evidente que Estobe e Helberti não parariam de se encontrar. Logo descobriram meios para se ver e continuar a vida como recém-casados. Encontravam-se dia sim, dia não. Geralmente ele saía do serviço, tomava banho no Liberdade e ia para a “encruzilhada do Estado”. Ali o Estado mantinha um projeto de auxílio técnico aos lavradores. O projeto fora desativado havia anos e apenas um homem chamado Astolfo tomava conta do que fora deixado para trás. Como Marilândia ainda não tinha sido premiada com a presença de ladrões, Astolfo, o vigia, vivia mais em Marilândia jogando baralho do que propriamente cumprindo suas obrigações de funcionário público. Ali Estobe e Helberti se encontravam, num galpão em que havia uma parede bem alta que os protegia de quem passasse na estrada.
Ficavam ali até saciarem a paixão que os avassalava como um tsunami. Depois, olhavam por cima do muro para ver se na estrada passava alguém. Estando a estrada deserta, Helberti saía, e ele continuava ali até que ela desaparecesse, protegida pela curva do caminho; esperava mais alguns minutos, depois saía também e voltava ao serviço.
Maria, que já se disse, não era boba, logo deduziu o que estava acontecendo. Não havia como não perceber a mudança de comportamento do filho. Primeiro, ele não era de levar marmita para o serviço; depois, a barba, que só era rapada de semana em semana, começou a ser feita quase todos os dias. Também o olhar perdido e fixo em alguma coisa inexistente o incriminavam. Na verdade, ele estava perdidamente apaixonado por Helberti. E ela, moça rodada e vivendo um momento de carência afetiva – porque Marilândia não oferecia escolha –, também acreditava ter sido premiada.
Mais alguns dias, num momento oportuno, novamente Maria interpelou Estobe:
– Filho, não pense que está me enganando. Já disse que não sou boba. Sei que continuam se encontrando, agora às escondidas, e isto, além de fortalecer a paixão, ainda é mais perigoso. Não que eu tenha vivido essa situação, mas sei bem como é. Espero que não se surpreenda quando ela ficar grávida. Já se disse, filho: as coisas de que mais nos arrependemos na vida acontecem num segundo. Já imaginou, amanhã, a Helberti chegar pra você e dizer que está grávida?
Estobe sobressaltou-se, porque as observações de sua mãe eram verdadeiras e preocupantes. O final do ano aproximava-se e, ele, sofrendo por antecedência, já passava noites em claro pensando na possibilidade de viver sem Helberti durante os dois meses de férias escolares. Não bastasse, agora com a agravante de uma possível gravidez.

E o final do ano chegou, e com ele a volta de Helberti para Vitória. Aquela véspera, sem mais a preocupação de quem visse ou ouvisse os gemidos de prazer, os dois transaram durante o dia e quase toda a noite. Os tantos anos no seminário, cuja única excitação era o pecado de olhar uma mulher de biquíni que cortava a praia Santa Helena rumo à do Canto ou à do Suá, armazenara nele força e excitação acima do normal.
Estobe não enganou a mãe que, do quarto em que dormia – sempre rezando para que o pior não acontecesse – não pregou os olhos. Agradeceu aos céus quando o Sabuco anunciou o raiar do dia.  Ela ainda ouviu os passos sorrateiros do filho que retornava ao quarto dele.
Sabuco era o nome que Estobe, ainda adolescente, dera a um frango carijó. Quando novo, Sabuco não conseguia cobrir as galinhas porque Rodete – o galo que o pai guardara como matriz do terreiro – vivia atento a qualquer intruso que ameaçasse seu harém. Rodete era avermelhado, com matizes furta-cores em dégradé. O tempo lhe dera grandes e pontiagudos esporões, o que lhe garantia reinar enquanto seu protetor vivesse. Depois que Antônio faleceu, Estobe convenceu sua mãe a renovar, argumentando que o galo do pai já estava velho e frouxo. Rodete foi para a panela e começou o reinado de Sabuco, que já não vinha recebendo a antiga e costumeira atenção de seu protetor. É que, quando novo, para poder cobrir uma galinha, Estobe a segurava e vigiava para que o Rodete não atrapalhasse. Estobe divertia-se com futilidades assim, porque ele mesmo ainda não havia liberado a força dos hormônios. Somente agora ele tomava consciência dessas coisas.
Fingindo haver apenas acordado, Estobe foi para a cozinha, dizendo que levantara para acompanhar Helberti ao ônibus, que saía todos os dias às oito horas com destino a Colatina. De lá, Helberti pegaria o maria-fumaça e seguiria para Vitória de trem.  Maria fez de conta que não percebeu nada e até elogiou a cordialidade do filho:
– Faz muito bem, filho! Helberti, como toda professora que vem de fora, desempenha papel importante aqui no nosso Vale. Essas professoras são abnegadas, deixam o conforto da casa dos pais para educar nossas crianças. Vai sim, filho, porque ela merece.
Mãe e filho conheciam-se bem e ambos sabiam que aquela conversa de compreensão não passava de formalidade para amenizar a situação embaraçosa em que se encontravam. Maria, porque percebia que o filho entrava, cada dia mais, numa estrada sem volta; Estobe, porque sabia que Maria sabia de tudo, nos mínimos detalhes. Ela era mulher estudada, porque vinha de uma família culta. Agora lia menos, mas unicamente por falta de tempo. Estobe aproveitara bem o período no seminário, e até conhecer Helberti a leitura era seu passatempo favorito. Nunca se separara do Pequeno Dicionário, porque não admitia encontrar uma palavra de que não soubesse o significado.
Logo que Helberti despertou e veio para o café, como se não a tivesse visto à noite, ele perguntou:
– E aí, cara professora, como passou sua última noite deste ano aqui na roça?
Ela, sem lá muito disfarce, respondeu:
– Acho que a elegerei como a noite mais inesquecível de minha vida.
Maria olhou firme para Estobe e se dirigiu ao fogão para servir a broa de fubá, que permanecia ao lado da chapa, a fim de não esfriar. E Helberti completou:
– A amizade de vocês e esta broa de fubá dificilmente me sairão da cabeça.
– Será apenas por dois meses – disse Estobe.
– Talvez não, meu caro!
– Como, não? Está indo para não voltar?
– Não é isso, mas você sabe que não somos donos do dia seguinte. O mundo dá voltas, muitas voltas, e queira Deus que não haja mudança de rota nos próximos dois meses.
– Não haverá – disse Estobe. Há não sei lá quantos mil ou milhões de anos ele gira do mesmo jeito e não será agora que virá com novidades.
– O pároco quer que você volte; o seminário conta com você. Não é mesmo, Maria?
– Como você, no meio desta declaração de…, digamos, de amizade, solicitou minha opinião – interferiu Maria –, devo dizer que quem mais vai sentir sua falta, Helberti, é Estobe, que vive apaixonado por você. Ainda bem que é com você, que tem a mente sóbria para discernir o que deve e o que não deve fazer. É porque meu homem – que ainda permanece criança – às vezes não aceita quando lhe é negado o pirulito. Contudo, há momentos em que um pirulito deve ser negado. Não sei se me fiz entender.
Helberti riu e Estobe não gostou nem um pouquinho. Simplesmente suspirou:
– Êta, mãe, a senhora não muda mesmo, hem? A senhora não acha que já posso ser dono do meu nariz?
E, já que havia pouco a esconder, completou:
– É verdade, mãe, eu e Helberti gostamos um do outro. Ela é 8 anos mais nova e está me ajudando muito, porque vim do seminário e pouco ainda sei sobre amar. Ela está me ensinando e eu não vejo nenhum mal nisso.
– Que assim seja, embora eu penso que vocês estão começando o jogo no segundo tempo, bem antes da hora. Agora apressem o passo, porque lugar de esperar ônibus é no ponto. O Camatão não espera por ninguém, muito menos o trem.
Helberti deu um forte abraço em Maria, agradeceu exageradamente a hospedagem, dizendo que lhe custaria muito substituir a costumeira broa pelo pão francês.
– A senhora bem podia escrever um livro dando a receita dessas coisas deliciosas que faz usando folhas, raízes e frutos apanhados na roça, no quintal e na horta.
E aproveitando que Estobe já estava no terreiro com a mala, diminuiu a voz e disse:
– Dona Maria, eu sei que a senhora não é boba e que sabe tudo o que aconteceu até agora entre mim e seu filho, mas, por favor, não perca um segundo de sono, porque jamais irei ser problema, tanto para a senhora como para ele. Fui eu quem provocou, quem quis, quem seduziu. Mas, pode acreditar: foi bom pra ele. De agora em diante, ao se relacionar com alguém, ele ficará muito mais esperto. De uma coisa tenho certeza: ele nunca mais viverá momentos melhores do que estes que viveu comigo. Tentei fazê-lo feliz e consegui. Eu sabia que estava tudo errado; ele também, mas as coisas erradas têm sabor melhor, como uma laranja roubada do vizinho. Estou indo, mas lembre-se sempre de minha gratidão e de que jamais causarei problema para vocês. Agora, para provar que não vai guardar raiva de mim, me dê lá um abraço bem forte. Eu preciso viajar com a certeza de que a senhora me perdoou.
E Maria a apertou tanto que quase a machucou.

Esse não parecia mesmo ser um bom dia para Estobe. Quando retornou do centro de Marilândia, viu Nego sentado num degrau da pequena escada que dava acesso à sala de sua casa. Sem Helberti, há tão pouco tempo, ele já sentia a solidão. Ao invés de entrar em casa, ele desviou para a casa de Albertino a fim de conversar com o amigo e, quem sabe, marcar uma caçada para o domingo seguinte.
Nego via-se na encruzilhada de uma grande decisão, tanto que quase sobressaltou-se quando percebeu a chegada de Estobe. Recuperando-se do sobressalto, brincou:
– Uauuuuu, pensei que tivesse me esquecido. Mas não tem nada não. Afinal, a companhia da professora é bem melhor do que a minha.
– Não é melhor não, amigo, mas é diferente, e sempre é bom mudar um pouquinho.
– E agora que ela foi embora, que pretende fazer?
– Esperar. Daqui a dois meses, quando as aulas começarem, ela estará de volta.
– Se ela estiver pensando como eu, acho que ficará por lá mesmo.
– Como assim? Não entendi.
– É que já estou enjoado desta vida aqui. Já percebi que se eu não der um jeito enquanto novo, irei morrer aqui juntando tostões para não morrer de fome.
Muito surpreso, Estobe quis saber:
– E como pretende mudar esta situação?
– Ainda não sei, mas vou em busca de coisa melhor.
– E seus pais e suas irmãs?
– É também pensando neles que decidi sair deste lugar que não me dá chances de melhorar de vida para ajudar eles.
Conhecendo o amigo e sabendo que ele não estava pensando, mas apenas aguardando o dia de sair; e reconhecendo que a perda do amigo seria um desastre também para ele, quase sem pensar no que diria, apelou:
– Amigo, fique. A partir de agora, tudo o que produzir na área que você e seu pai cuidam será de vocês, inclusive o café. Você sabe que temos quatro pernas, quatro mãos, quatro olhos…, somos apenas um. Se você sair, ficarei aleijado. Você, inclusive, me tornou um herói quando o Biriba o encontrou. Maluco como é, talvez se perca outra vez e….
– Nem pense nisso. Sem o Biriba por perto, até para caçar um inhambu ali na capoeira, faço uma estrada que dá para passar um carro. O mundo é mesmo o melhor professor da vida.
Os dois riram juntos, mas o sorriso de Nego era um riso de felicidade. Envaidecia-o a amizade do patrão:
– Eu sei que somos amigos. Não vou esquecer que se não fosse você eu seria comido por urubus e gambás lá nas pedras. Nunca vou esquecer que devo minha vida a você. Ela, a partir daquele dia, passou a ser sua. Eu apenas tomo conta dela pra você. Só não quero pensar que me salvou para agora não deixar que eu corra atrás do que acho melhor para mim. Quero ajudar meu pai, que já não está dando conta da lavoura, ganhando dinheiro e mandando para ele. Vai dar certo, você vai ver.
– Embora eu esteja sendo egoísta, pergunto a você: e eu, como vou ficar?
– Vai ficar numa boa. A professora irá voltar e você nem vai mais se lembrar de mim.
– Ah, acho que agora sei por que está ameaçando ir embora! Está com ciúmes, seu boiola – e, batendo-lhe nas costas, riu com estardalhaço.
– Até que podia ser, porque desde que começou esse namoro, nunca mais teve tempo para nossas caçadas, bailes e fugidas pela noite.
– Não seja pretensioso, amigo! Não está querendo que, entre um homem e uma mulher, eu escolha um macho para passar a noite, está?
– Não, não. Você é um felizardo. Se eu também encontrasse uma professora daquelas, as pacas e os macucos morreriam velhos.
– É… A conversa está boa, mas quero saber se irá aceitar a proposta que lhe fiz. Não esqueça que seu pai irá ficar muito alegre se aceitar.
– Não posso.
– Ora, por quê?
– Porque você chegou um pouco tarde. Agora, eu já decidi.
– Já decidiu?! …
– Já.
– Então sei que não tem mais volta. Mesmo assim, diga a seu pai que, por nossa amizade, tudo o que ele produzir de hoje em diante será dele…. como prova de que lhe quero como a um irmão. O irmão que não tive.
Nego ergueu-se, abraçou o amigo e antes que ele voltasse, lembrou:
– Se precisar de minha vida, que é sua, é só avisar.
Estobe riu e brincou:
– Para isso, não esqueça de me mandar o endereço quando se instalar no lugar que escolher para ficar.
– Não vou esquecer.

16
Helberti amava Estobe, tanto que não queria ser-lhe estorvo. Havia equilíbrio entre o que ela desejava e o que precisava e devia ser feito. O que mais queria na vida era viver, para sempre, ao lado de Estobe, como se aquela fogueira de paixão jamais pudesse extinguir-se. No entanto, a própria razão conspirava contra ela, lembrando-a que aquilo não iria dar certo. Ela, criada na cidade, dependente de costumes adversos aos da roça; ele, criado na roça, dependente de costumes adversos aos da cidade. Enquanto Helberti engravidara e achava aquilo comum, ele, se soubesse que ela carregava um filho seu, iria à loucura.

Helberti demorava semanas para responder às cartas de Estobe e, quando respondia, fazia-o com aparente frieza, ainda que às vezes, no final do papel usado, ficasse o borrão de uma lágrima incontida. Estobe entristecia, perguntava se ela não gostava mais dele, ou o que havia acontecido.
Numa de suas cartas – que por sinal seria a última – ela disse que não iria mais retornar a Marilândia, porque encontrara lotação numa ótima escola da Capital, onde iria receber o dobro do salário de seu emprego anterior. Não bastasse, disse que, infelizmente, eles teriam de terminar, porque encontrara novo amor e não podia se dar o luxo de ficar escolhendo. Disse que os dias que passara com ele jamais seriam esquecidos, mas que a realidade dificilmente vive de mãos dadas com os sonhos. Pediu que ele não escrevesse mais, que a esquecesse e a perdoasse.
No entanto, pouco daquilo retratava os sentimentos que iam em sua alma. Logo que chegara, sentindo as mudanças de seu corpo, com os seios crescendo, a fome aumentando, o rosto tomando feições ainda mais bonitas, ela nem precisou de exames: estava grávida. Lembrou que Estobe vivia dizendo que tinha muito medo que isso acontecesse sem que eles fossem casados, sem saber que, transando várias vezes por dia, durante meses, certamente ele apresentaria, aos óvulos férteis, espermatozoides prontos para originar uma nova vida. Helberti sabia, mas fingia não saber, porque, ninguém mais que ela queria ter um filho de Estobe: saudável, loiro, olhos azuis, para ela o homem mais bonito que conhecera, tanto por dentro como por fora. Iria assumir tudo sozinha. Não bastasse, ao despedir-se de Maria ela prometera que jamais criaria problema tanto para ela como para o filho. E poucas vezes fora mais sincera em sua vida.
A filha nascera. E a única diferença do pai era ser do sexo feminino: o rostinho, uma cópia fiel em miniatura. A angústia de não ter Estobe a seu lado era amenizada pela graciosidade da filha. Se não podia ser 100% feliz, os 50% já lhe bastavam. Por onde passava, a criança chamava a atenção. Principalmente as jovens adolescentes a interpelavam dizendo: “Mas é de verdade?”
Helberti amava aquelas observações e sentia profundamente não ter Estobe ao lado, para que também ele usufruísse aqueles momentos de prazer e felicidade. Escondia tudo isso de Estobe e mentia quando falava do novo emprego e do namorado. Para criar e cuidar da filha, ela abandonara tudo. Como também não era rica, vivia às expensas da mãe. Ao registrar a criança, ela deu o nome de Esberti, sincopando Estobe/Helberti e, com inteira aprovação de sua consciência, no cartório, deu Estobe como pai, porque ele era o pai. Como o cartório aceitou a justificativa de que Estobe estava viajando e só retornaria meses depois, Helberti voltou com Esberti registrada.
Quando Estobe escreveu que dali a duas semanas passaria na casa em que ela morava para conversarem, e diante da determinação que ele demonstrara, Helberti foi rápida. Apanhou caneta e papel e foi sucinta e objetiva, pedindo-lhe que não viesse, porque já estava casada e morando com seu marido, um sargento da polícia militar, extremamente ciumento e agressivo. Não dissera antes porque não queria magoá-lo ainda mais.
Estobe leu a carta e não conteve as lágrimas: nunca imaginara, em sua santa e ingênua experiência no amor, que as mulheres pudessem fingir tanto. Então, tudo o que ela lhe dizia, toda aquela sofreguidão nos atos de amor, aquelas juras e mais juras de que o amava como nunca amara ninguém…. Tudo era fingimento, tudo era mentira.
Ergueu o colchão, apanhou todas as lembranças, os bilhetes, as rosas secas, um pequeno ninho de beija-flor, as fotos e, ainda chorando, foi à cozinha. O fogo estava aceso e sua mãe saíra para tratar as criações. Uma por uma, ele foi jogando as lembranças às chamas. Cada uma parecia queimar um pedaço de seu coração. Naquele momento, não acreditava que pudesse haver dor maior. Ao menos se Nego estivesse por perto, para poderem conversar, sair novamente todos os fins de semana para as caçadas, para os festejos e bailes… Mas Nego não estava: foi em busca dos sonhos dele. Estobe ficara sozinho. Não seria fácil recuperar seu prazer de viver.
Os meses foram passando. A dor de perder Helberti e o vazio de não contar mais com seu amigo e companheiro de fé, Nego, fazia com que ele quase não se reconhecesse ao mirar-se no espelho: barba por fazer, pele queimada pela sol, unhas sujas…
Sua mãe, que o conhecia sem reservas, antes de convidá-lo para rezar o terço à noite sentou-se no banco da cozinha ao lado dele, que como sempre comia a costumeira polenta com leite e café, um bom pedaço de queijo e dois ovos fritos. Ele comia devagarzinho, com o olhar distante. Maria apoiou a mão direita sobre o ombro do filho:
– Não está sendo nada fácil, não é meu filho?
– Não é nada não, mãe! Apenas uma leve dor de cabeça. Logo, logo passa.
– Ô, filho, eu sei que não é sua cabeça que está doendo. Nesse momento, antes fosse. O que está doendo é seu coração, eu sei. Nem imagina como estou arrependida por ter até rezado para que Helberti fosse embora e não mais voltasse. Eu achava que você fosse esquecer, arranjar outra namorada e logo recuperar a alegria de viver. Agora vejo que eu estava errada, muito errada. Não apoiei você na busca de sua felicidade. Está certo que ela era evangélica, você católico, mas nada pra Deus é impossível e tudo podia ter dado certo. Você tem certeza de que ela não vai mais voltar?
– Ela já está casada, mãe!
– Casada? Como assim?
– Ora, mãe, casada com um homem. Vivendo com ele, morando com ele. Acabou pra sempre, mãe! Olha ali no fogão. Está vendo a fuligem de papéis por cima da lenha? São as últimas lembranças da Helberti que viraram cinzas, desapareceram para sempre. Assim aconteceu com o nosso amor, mãe! Virou cinzas.
Maria, que ainda mantinha a mão sobre o ombro do filho, apertou os dedos, puxou-o para si e pediu perdão:
– Eu sou culpada de tudo isso, filho! Quero que me perdoe, se puder. Fique sabendo que, como toda mãe, eu só queria sua felicidade, sem saber que era exatamente a felicidade que eu estava tirando de você. Ela ter arranjado outro e casado tão depressa me deixa mais aliviada, porque se amasse você de verdade, não teria feito isso; antes, teria voltado sem medir qualquer consequência.
– Mãe, ela me amou de verdade, eu sei, eu tenho certeza disso. Ninguém neste mundo consegue fingir com tanta perfeição. Ao mesmo tempo, mãe, eu não consigo compreender como um sentimento tão puro e sólido pode acabar assim, de uma hora pra outra. Nesse ponto, eu concordo com a senhora.
– Bem, filho, você sabe, vai passar. Tudo passa. Quem sabe, mais adiante, você encontra outra moça que lhe proporcione mais felicidade, até, do que a Helberti.
– Quem dera, mãe, quem dera! Infelizmente, acho isso impossível, porque Helberti era perfeita. Não há como outra mulher acrescentar qualquer coisa.
Mais aliviados, ambos se levantaram. Estobe disse que iria dar uma volta pelo terreiro, para fazer a digestão; desligaria a luz e depois iria deitar-se. Maria varreu a cozinha e a varanda da entrada, escorou a vassoura no canto, encostou a porta e foi deitar-se.
Na sala, alguns vizinhos que sempre iam assistir ao Repórter Esso e aos seriados foram voltando para casa. Maria ainda ouviu as boas-noites a Estobe, encobriu-se e dormiu. Estobe apanhou a lanterna, desceu, desligou a energia e também entrou no quarto.
Ainda não tinha nem vestido a roupa de dormir quando ouviu que um carro, o Jeep do padre Guilherme – aquela zoada do motor ele conhecia até se a ouvisse nos píncaros do Himalaia – parava bem ao lado da casa. Nem esperou pelas palmas. Acendeu a lanterna e foi para a varanda.
E, se um pouco antes Maria não tivesse aliviado a dor de seu coração com a conversa sobre Helberti, talvez agora ele não resistisse: o padre chegava com um caixão, tendo dentro o seu maior amigo: Nego. Dois policiais acompanhavam a entrega do defunto.
Ao saber da trágica notícia, Estobe debruçou-se sobre o pequeno vidro do caixão, onde era visível a face pálida do amigo, e entrou em choque. Não falava, não movia um dedo, não chorava… Era como se fosse um fugitivo de Gomorra que tivesse olhado para trás.
O padre e os policiais já não sabiam o que dizer, o que fazer. Maria levantou-se, e também não conseguiu fazer Estobe livrar-se daquele estupor. O padre saíra e fora chamar a família de Nego, porque achava que o velório seria mesmo na casa de Estobe. Quando Cordeiro e Norinha chegaram e olharam o filho, Norinha desmaiou. Só então Estobe moveu-se, voltou a si e gritou:
– Meu Deus, por que fez isto comigo? Se me dissesse que faria isto, eu teria ficado no seminário. Porque castigou meu amigo e não a mim?
Estobe – assim como aqueles que crucificaram Cristo não sabiam o que estavam fazendo – também blasfemava, porque não sabia o que estava dizendo. Na verdade, se fosse levar para o campo de um Deus vingativo, castigo maior não havia a infligir do que lhe tirar a mulher amada e o maior amigo. Mas não era nada disso que estava acontecendo. Simplesmente era o livre-arbítrio funcionando. Deus não interferia, mostrava por meio do conselho dos pais, dos professores, dos mais sensatos e da própria consciência o que devia ou não devia ser feito. Além de mostrar o verdadeiro caminho, Deus ainda ornamentava a orla da estrada com flores e rosas de misericórdia. Só que, às vezes, a gente escolhe o caminho errado e quando quer voltar, não dá mais tempo, não encontra mais as pegadas da ida para que possa retornar.
Fazia dois dias que Nego havia morrido e, mesmo com o caixão hermeticamente fechado, o mau cheiro exalava. Por isso escolheram a varanda para que ele fosse velado até que o dia amanhecesse, para que o corpo fosse sepultado.
Estobe pegou o cavalo, arreou-o e passou o resto da noite avisando a vizinhança, combinando com o coveiro para abrir a cova, pedindo a algumas mulheres das casas que visitava para que levassem flores, muitas flores, que ele pagaria todos os custos.
Ficou combinado que padre Guilherme rezaria missa de corpo presente, às 9 horas, que foi o tempo máximo que deliberaram, porque o mau cheiro já estava quase insuportável. Para aliviar, envolveram o caixão com um grande plástico, cobrindo-o com uma toalha bordada, branca e muito bonita. Norinha ganhara aquela toalha bordada de sua mãe, e sempre dizia que só a usaria num dia muito especial. Não especificara se especial em alegria, ou em tristeza.
Era costume da igreja de Marilândia repicar os sinos com badaladas diferenciadas quando alguém da comunidade morria. E tão logo Estobe chegou a Marilândia, o paroquiano responsável foi avisado. Por isso, o dia ainda não havia clareado e já os sinos repicavam tristemente. Em vilas pequenas, em que todos se conhecem, quando acontece o aviso sonoro de que alguém morreu, a vila desperta, na curiosidade de saber quem e como. Por isso, quando o corpo chegou, a igreja já estava cheia. A missa foi celebrada e Nego deixado no cemitério, que ficava no meio do morro, bem perto da canônica, a uns 200 metros. Terminada as exéquias, com a exceção de Estobe, todos se retiraram. Estobe permaneceu ao lado do amigo. Sentou-se perto da cova e, não conseguindo rezar, chorava e relembrava os tantos momentos felizes, e até mesmo desesperadores, que viveram juntos. Passou horas ali, pensando, ajeitando as flores…. Depois, como se Nego estivesse ali a seu lado, ele abraçou o vento e disse:
– Adeus, amigo! Acabo de perder a última esperança de consolação. É possível que a dor me faça partir também para o lugar em que você se encontra.

E todos queriam saber como foi, onde foi, mas ninguém sabia ao certo, a não ser um dos policiais que, a esta altura, ainda dormia na casa de Estobe. Notícias da Capital todos ignoravam, porque em Marilândia não circulavam jornais e poucas pessoas viajavam para Vitória. Fora até mesmo muita sorte Nego não ter sido enterrado lá mesmo, como indigente.
Estobe, o mais procurado, não sabia ainda de detalhes, mas prometia que, tão logo soubesse, diria a todo mundo. Padre Guilherme sabia por alto, graças a algumas perguntas que fizera aos soldados, mas não se dispusera a dizer o pouco que sabia.
Tudo só foi mesmo esclarecido na hora do almoço que Maria preparara para os policiais e para o padre que iria levá-los ao trem, em Colatina. Um dos policiais disse que foi muita sorte ter encontrado, no bolso dele, um pedacinho de papel qualquer com o endereço de Estobe. Um companheiro de trabalho, que viera ao velório, também ajudou bastante: disse que Nego estava no portão de entrada, esperando que fosse aberto para ele entrar e começar seu horário de serviço. Ele trabalhava das 8 às 18 horas. Nesse horário a cidade ganhava vida e muita gente estava indo e vindo, cada um buscando cumprir a missão daquele dia. De repente, a menos de 20 metros, um tremendo alvoroço. Uma mulher, tendo no colo uma criança de mais ou menos dois anos, gritava por socorro e lutava contra um bandido que tentava sequestrar a criança. Apesar de haver centenas de pessoas em volta, ninguém fazia nada. Foi quando Nego arrancou entre as pessoas e foi acudir. O bandido já estava tomando a criança das mãos da mãe, quando Nego chegou e atracou-se com ele. Apesar de armado, o bandido ainda não havia sacado a arma, mas, quando viu que o adversário era mais forte e arrancava a criança de suas mãos, sacou o revólver e disparou dois tiros mortais, à queima-roupa, tirando a vida do rapaz e da mãe da criança. O que comoveu todo mundo – disse o amigo de trabalho – é que Nego caiu e foi perdendo as forças pouco a pouco, mas sempre amparando a criança no colo. Ele morreu fitando a menina e repetindo: Estobe, Estobe! Hoje aqui, olhando para você, eu consigo entender mais ou menos o que ele queria dizer, porque nem imagina como aquela criança se parece com você.
Como a mãe morava em Vitória e portava documento, logo parentes chegaram, levaram ela e a criança, e nada mais ficamos sabendo – disse um dos policiais. Nego ninguém conhecia, mas como trabalhava no Porto, por meio de colegas de serviço e da ficha do escritório, conseguimos o endereço. Fomos lá: ele morava numa palafita próxima ao mangue, com apenas um quarto. Lá foram encontradas algumas roupas, alguns objetos pessoais e um diário, onde ele dava destaque a alguns acontecimentos de sua vida. Está tudo aí neste embrulho, que deverá ser entregue aos pais dele.
Extremamente vulnerável, Estobe pediu licença e se retirou para o quarto, onde pôde chorar amargamente.

17
Depois de fazer um chá de macaé, misturar um comprimido de Melhoral e adicionar cinco folhas de erva-cidreira, que segundo ele, além de funcionar como calmante, arrefecia o amargor do macaé, Estobe dirigiu-se ao quarto em que sua mãe descansava – reclamava de dores de cabeça e certo mal do estômago. Maria, como sempre, tomou sem reclamar, mesmo porque confiava nas ervas que a ajudaram a criar os filhos. Estobe encostou as costas das mãos no rosto da mãe e percebeu que ela estava muito febril.
– Acho que alguma gripe está chegando, mãe!
– Com certeza, filho! Como sempre, terei de passar uma dura semana entocada neste quarto. Mas, também como sempre, ela irá como chegou. Sempre foi assim e não vejo motivo para agora ser diferente.
– Vamos torcer para que assim seja, minha mãe, porque seu organismo já não é o mesmo dos bons tempos da juventude. A gente é como os carros: quando somos novos, tudo funciona. Com o tempo, as peças vão se deteriorando, sempre com as desgastadas prejudicando o funcionamento das demais.
Em seguida, Estobe estendeu um fino cobertor ao lado da mãe, dizendo que, se sentisse frio, devia cobrir-se. Depois, abriu bem a porta do quarto e saiu para o terreiro, sempre com os ouvidos bem atentos em caso de ser chamado. Os traços amargos do tempo já eram bem notados em Maria. Ele sabia disso e não podia descuidar-se.
Estobe estava num daqueles dias em que tudo parecia conspirar para que entrasse em depressão. Mais de 30 anos de idade, sua mãe muito cansada, e ele sem sequer uma namorada para motivar seu resto de caminhada. Ao ver a cova em que ele e Nego enterraram o Biriba, resolveu ir para lá. Aquele local sempre lhe trazia saudosas lembranças, ora de felicidade, ora de lágrimas, porém nunca sem mexer com seu astral. Sentou-se ao lado, sobre um tamborete ali posto exatamente para visitas e momentos de reflexão.
O sol ainda não se pusera totalmente no ocidente. Podia-se ver, lá longe, refletindo nas esparsas nuvens que lentamente caminhavam no firmamento, fiapos esmaecidos dos últimos raios. Do outro lado, como se houvessem combinado que a noite não seria escura, a Lua despontava cheia e brilhante, distribuindo o reflexo do Sol. Com isso, aquela noite escura que tantas vezes acontecia, desta feita não facilitaria a vida dos animais notívagos, que parecem preferir as tocas e a precaução do que se exporem ao lusco-fusco do luar.
Estendendo a mão para alcançar um pé de muxinga, que parecia ter nascido para enfear o colorido de centenas de margaridas ali cultivadas desde o triste desfecho da morte do saudoso cachorro Biriba, Estobe o arrancou. Fora um ato mecânico, já que seus pensamentos retrocediam a dolorosas lembranças. Não fosse a chegada inesperada de Norinha, talvez ele ali passasse a noite, porque poucas existiram climaticamente mais agradáveis. Sobressaltado, Estobe voltou a si. Norinha, que viera sorrateira, acabou de se aproximar:
– A saudade é forte, não é Estobe? Você, Nego e Biriba praticamente eram um só, não é mesmo?
– Nem me fale, dona Norinha, nem me fale! Há momentos em que me bate, aqui no coração, uma dor tão profunda, que chego a pensar que se a morte viesse seria melhor para mim. Já perdi meu pai, perdi o Nego, perdi a mulher que amava, perdi este companheiro de cujas lembranças não consigo fugir. Sabe, dona Norinha, o Biriba agiu como se fosse uma pessoa dirigida por Deus para desempenhar uma nobre função neste mundo.
– Eu entendo, eu entendo. Bem, ao ver você aqui, lembrei deste caderno que o policial deixou comigo. Eu sou ruim de leitura e o Nego era ainda pior para escrever. Por isso, resolvi entregar ele para você. Quem sabe ajude você a diminuir a saudade?
– Ô, Norinha, isto é um grande presente! Lerei cada frase, pensarei em cada palavra que aqui estiver escrita, mesmo porque nunca duvidei que, em vida, éramos um tipo espiritual de siameses. Quando criança, eu não conseguia me divertir sozinho; quando crescemos, a coisa não foi muito diferente. Sempre houve e, parece-me, continua existindo, uma ligação espiritual indestrutível entre mim e o Nego.
Ao perceber que Estobe abria e fechava o diário constantemente, e que apenas não encontrava meios para pedir que o deixasse sozinho, ela mesma despediu-se, retornando para sua casa que, afinal, ficava a poucos metros do lugar em que se encontrava. Estobe nem sequer fingiu naturalidade: ergueu-se e partiu célere para sua casa, buscando um lugar em que pudesse iniciar a leitura.
Para todos os demais, aquilo certamente seriam rabiscos mal grafados, mas para Estobe era um documento valioso. Ele o leria e estudaria como se estivesse folheando papiros com hieróglifos dos tempos do faraó Quéops.
Apesar da sofreguidão, entrou no quarto da mãe e percebeu que ela dormia tranquilamente. Encostou a mão no rosto dela e percebeu que não havia sinal de febre.
Ainda era cedo, e a parafernália que seu pai fizera quando vivo continuava movendo o dínamo e acendendo as lâmpadas. Estobe sentou-se à mesa da cozinha, onde havia uma lâmpada de 60 velas, ajeitou-se e fez a primeira leitura dinâmica, olhando a capa, ou melhor, o início e o fim do que fora escrito, ou desabafado. Só então foi para o começo.
Logo percebeu que não se tratava bem de “diário”, mas sim de relatos em dias e horas bem definidos, quando, por certo, a dor ou a saudade o feriam mais profundamente. Abaixo, Estobe adaptava o pensamento do amigo, já que ele nunca quisera estudar e, às vezes, somente ele que o conhecera profundamente podia deduzir o que ele estava querendo dizer. E assim, Nego começou:
“Hoje é dia 7 de setembro, quarta-feira (1949). Desta data sempre irei lembrar, porque Vitória está em festa e procurei saber a razão. Vim pra cá pra ganhar algum dinheiro para ajudar meus pais e minhas irmãs, mas já percebo que será muito difícil. Toda cara me é estranha, embora ninguém tenha me negado as informações quando pergunto alguma coisa. Hoje sou um morador de rua. Ainda não estendi a mão, mas meu olhar faminto sempre amolece o coração de quem está comendo nas lanchonetes e restaurantes. Hoje, quando a noite caiu, fiquei debruçado no parapeito de um restaurante pobre. Quando vi que um casal estava deixando muita comida sobrando, pedi a eles se eu podia comer o que estavam deixando na mesa. Não só permitiram, como chamaram o garçom e pediram a ele um prato limpo. Deixaram-me sentado à mesa, pagaram um refrigerante e foram embora. Tem muita gente boa ainda no mundo.
Dia 15 de setembro, quinta-feira. Continuo na rua, mas sem passar fome. Se o tempo esfria, eu sofro, não consigo dormir. Então, eu fico sentado debaixo de alguma platibanda, abraço meu próprio corpo e, de vez em quando, eu levanto e fico andando de um lado para o outro, a fim de me esquentar. Sempre escolho um lugar que tenha banheiro para tomar banho e fazer minhas necessidades. Normalmente, perto de algum posto de gasolina.
Dia 30 de setembro de 1950, sábado. Hoje foi um dia especial para mim. Um homem de nome Cícero, talvez um pouco mais velho do que eu, sentou-se a meu lado e me ofereceu um sanduíche. Ele tinha dois: comeu um e me deu o outro. Deixou também metade da garrafa de Coca-Cola que estava tomando, pra mim. Quis saber da minha vida e eu não precisei mentir nada pra ele. Ele também falou dele. Disse que trabalhava no porto de Vitória, como recebedor e arrumador de mercadorias que vinham de navios estrangeiros e que iria tentar arranjar uma vaga para mim, lá no setor em que trabalhava. Quase ajoelhei nos pés dele, porque não me acostumo ver a noite chegar e não ter onde ficar. O homem disse para que eu continuasse ali, no mesmo lugar, pelo menos até ele trazer a notícia se havia conseguido um lugar pra eu trabalhar. Deu-me dinheiro suficiente para comprar escova e graxa para engraxar sapatos. Disse para eu ficar perto de algum lugar que tivesse cadeira para o cliente sentar e que eu usasse um caixote qualquer para o cliente botar os pés.
Dia 2 de outubro, segunda-feira. Eu estava sentado no meu lugar de sempre, com uma cadeira e um caixote, com a cabeça entre as pernas, pensando na vida, na minha família e na amizade do Estobe. Dificilmente chega alguém para engraxar os sapatos. Sinto que vou chorar, porque nunca vou encontrar nada para justificar eu ter me afastado da pessoa que salvou minha vida e sempre mostrou que era mesmo meu amigo. Tento me justificar, porque ele é rico e eu só lhe dava trabalho. Sinto que não posso viver explorando a bondade dele, por isso saí de lá. Nunca fui de estudar e de rezar, mas não recosto a cabeça sem pedir a Deus pela felicidade dele e que, se Ele existir mesmo, para me ajudar também. Ele será feliz, porque merece, porque Deus lhe deu um coração do tamanho do mundo. A minha vida pertence a ele e não descansarei enquanto não retribuir a ele a vida que ele me deu. Estobe não me sai da cabeça, porque sempre dependi dele, porque a vida sempre só teve sentido ao lado dele. Muitas vezes peço a Deus que, se Ele existir, que faça ao meu amigo aquilo que eu gostaria tanto de fazer.
Dia 15 de outubro de 1950, domingo:
Choveu a noite toda. Não encontrei um lugar seco para passar a noite. Por mais que me espremesse contra as paredes, os respingos me alcançavam. O vento era muito frio, mas tudo isto era pouco diante das incertezas de minha vida. Sentado no caixote de engraxate, fiquei olhando os homens que podiam me pedir para limpar os sapatos, mas todos passavam depressa, olhando para frente, como se estivessem atrasados para assistir às missas ou os cultos de sua religião. De repente, vi o Cícero que vinha em minha direção. Ele é muito fácil de ser reconhecido, porque tem um jeito de andar diferente de todo mundo. Ele vinha sorrindo e já de longe estendia os braços como a me abraçar.
– Levante-se, homem. Esconda aí seus pertences e me siga. Seu lugar está garantido. Vai ser trabalho duro, carregando objetos pesados de um lado para outro. Mas é bem melhor do que ficar aí engraxando sapatos. De agora em diante você terá hora para chegar, para comer e para sair. Demorei um pouco porque precisava encontrar um lugar para você passar a noite. Até falei com minha mulher na possibilidade de levar você para minha casa, mas estou com três filhos e eles ocupam todo canto de minha casa. Aí eu procurei um amigo que tem, aqui não tão longe, palafitas para alugar. É coisa de desempregado, de pobre, mas o preço é bom e você, com o salário que irá receber, poderá pagar. Café e almoço você terá lá na lanchonete do porto e não precisará pagar nada. À noite, se for bom de conversa, as meninas separam um sanduíche para você levar para casa. Lá, o banheiro é comum e fica um pouco longe. Espero que não seja acometido de uma boa dor de barriga num dia de chuva. Vim hoje, porque domingo não trabalho. Então vou levar você para conhecer o lugar, o dono da casinha em que irá ficar e até o lugar em que irá trabalhar. Temos o dia todo para isto. Já deixei dito lá em casa que não voltarei para almoçar, porque um amigo se ofereceu para levar-me ao restaurante mais caro e melhor da capital. E dizendo isto sorriu largamente.
– Não vi nada ainda, mas mesmo sem ver, já agradeço de coração. Qualquer coisa será melhor do que esta vida de morador de rua. Vou deixar ali, naquele canto, as minhas coisas e já volto para ir pro serviço. Mas, pensando bem, já que aceitarei de qualquer jeito, não é melhor eu levar logo as minhas coisas?
– É assim que se fala, amigo. Vamos levar logo suas coisas para deixar na casa que acabei de alugar. Quanto ao emprego, não é nada sonhado, mas é assim que se começa. Logo que você se enturmar, arranjar novas amizades, vai conseguir coisa melhor.
Dia 26 de novembro, domingo:
Acho que tem quase um mês que não encontro tempo, sequer, para anotar o que está acontecendo comigo. Meu serviço começa às 8 horas da manhã. Ao meio dia paramos para almoçar e recomeçamos às 2 horas da tarde, indo até às 6 horas da tarde. Aí eu furo lá uma folha de papel para dizer que estive trabalhando e vou embora. No outro dia, bem antes das 8, eu já estou em pé lá na frente, esperando o portão abrir. Já fiz muitas amizades. Lá, quase todos são simples, fortes, jovens e pobres como eu. Hoje fui na missa lá na Catedral. Fiquei bem lá no fundo, escondendo-me das pessoas que estavam bem vestidas e muito cheirosas. Baixei a cabeça e nunca rezei tanto pelo meu amigo de verdade, pelo Cícero que me pareceu enviado por Deus e por toda minha família. Nem vi a missa terminar. Só percebi quando os fiéis começaram a deixar a catedral. Cada um ia entrando em seu carro e voltando para sua casa. Ao levantar, quase caí, porque depois de mais de uma hora na mesma posição meus músculos ficaram dormentes. Logo me equilibrei e fui para minha palafita. Lá eu me sinto gente, me sinto feliz, me sinto senhor. A cada dia eu me sinto melhor. Não vejo a hora que chegue a segunda-feira, para ir trabalhar. Apesar do esforço, lá é muito bom. Sinto que sou igual a muita gente e isto para mim é motivo de felicidade.

Estobe acabou de decifrar os rabiscos, organizou as folhas e guardou tudo sob o colchão, no exato lugar em que sempre guardava as lembranças de Helberti. Viu gravetos do ninho de um beija-flor e não se furtou a saudosas e tristes lembranças. Aquele canto esquerdo da cama significava, para ele, um lugar sagrado. Helberti tinha o costume de levar para Estobe flores que encontrava à beira do caminho. Ele – com vergonha de prorrogar a florescência das flores que ganhava – logo as colocava debaixo do canto esquerdo do colchão. Durante a noite, sempre erguia a ponta do colchão, apanhava uma das tantas lembranças, mantinha-a colada ao rosto e devaneava sobre momentos agradáveis que vivera com Helberti.
No lugar dessas tantas lembranças que a desilusão transformou em cinzas, agora morariam as anotações de seu melhor amigo.

Notando que não mais dormiria mesmo, Estobe tornou a apanhar o caderno e leu tudo novamente. É que a leitura trazia seu amigo de volta, colocava-o a seu lado, fazendo renascer as mais inesquecíveis lembranças. O mundo era cheio de singulares amizades, e nesse rol, com certeza, a de Estobe e Nego não ficaria em segundo plano.
Tudo começou nos tempos idos, quando ambos não contavam com outras crianças do mesmo sexo para brincar. Havia a Laura e as filhas do meeiro, mas eram meninas e só brincavam de bonecas e casinha, e ninar um sabugo de milho enrolado num trapo de pano qualquer fugia ao entendimento dos dois meninos. Eles passavam o dia fazendo planos de perseguir os passarinhos e não viam a hora de se libertar da adolescência para caçar de espingarda.
Tudo isso agora se passava na cabeça de Estobe. Não dormiria o restante da noite, mas isso, para ele, era bem melhor do que não usufruir do saudoso passado. A ausência do Biriba, do Nego, da Helberti e do pai doía sim, mas era uma dor daquelas que a gente gosta de sentir e que aliviam quando massageadas.

18
No caderno de anotações de Nego, somente os acontecimentos importantes – ao menos para ele – foram anotados. Eram rabiscos difíceis de ser entendidos, mas Estobe, graças ao período de convivência, decifrava satisfatoriamente. Ao ser interrompido no dia 27 de novembro, ficava claro que Nego estivera no portão de entrada do porto e, enquanto esperava a hora de entrar, viu e tentou evitar o sequestro de uma criança. Jamais – ainda que conhecesse Helberti – Nego suporia ser a criança filha de seu melhor amigo, a quem devia uma prova de gratidão, ainda que lhe custasse a vida. Ele não era de raciocinar, mas sua vida sempre fora pautada para o bem. Fosse a mulher de um desconhecido; fosse a criança filha de quem quer que fosse, ele interferiria para tentar salvá-la das mãos do bandido. Porém, nos fastos dos céus estava escrito que ele receberia a oportunidade de demonstrar sua gratidão àquele que lhe salvou a vida.  Estobe fechou novamente o caderno, colocou-o à cabeceira de sua cama, deitou-se de barriga para cima e ficou a pensar. Apesar de cansado, não conseguia dormir. Ultimamente, as insônias eram constantes. O lugar em que morava fazia-o lembrar da terra prometida por Deus a Abraão: existia, estava ali, mas possivelmente não seria ele a usufruir. Nos seus 30 e poucos anos, ele não saberia precisar se, divididos, eles ofereciam mais momentos felizes do que tristes. Aquele vale, de fato, era-lhe o vale de sonhos e de lágrimas. Perdera o pai, o melhor amigo humano; a mulher que mais amou na vida e, apesar de possivelmente escandalizar algumas pessoas, o Biriba, de quem jamais esqueceu um só dia, como se fosse um cristão. A cova continuava bem cuidada e era sempre lá que Estobe descansava o corpo, enquanto o coração sofria. Sabia que, como cristão, não devia manter um animal irracional, em nível de um ser humano. Contudo, Estobe sempre se justificava, porque pensar cotidianamente nele era algo incontrolável. O cão salvara a vida de seu maior amigo e agira como um ser humano herói, e isto ele não esqueceria, ainda que vivesse 100 anos.
E, de tanto mudar de posição, cobrir-se para em seguida retirar a coberta, Estobe acabou dormindo. Quando acordou com o canto forte e longo do seu galo de estimação, Sabuco, que dormia sobre um galho da amoreira, próximo à sua janela, logo lembrou do que sonhara: estivera na cova do Biriba e o dia amanhecia promissor. Vira o sol despontar por detrás do jequitibá da grota, e lembrava o dia em que iniciara a caminhada para encontrar o amigo desaparecido. E aí, viu-se guiado por um anjo que por vezes continha aparência humana; outras vezes, a de um cãozinho amigo que o acompanhava obediente. Mas, se Estobe desviasse da direção, Biriba a corrigia, como se fosse um anjo de Deus enviado para aquela missão.
Como todos os sonhos, no meio de fatos inexplicáveis inseriam-se outros, totalmente vividos e reais. Estobe passou aquele dia inteiro remendando lembranças e tentando juntar o quebra-cabeças do sonho. Ficou feliz quando viu sua mãe caminhando – embora um tanto cambaleante – do quarto para a cozinha. E, notando ela que Estobe lutava para acender o fogo, logo pediu que ele fosse desligar o dínamo que ela faria o café. Vendo sua mãe melhor, aproveitou para dizer que estava com muita vontade de comer, novamente, uma daquelas deliciosas broas de fubá de seus tempos de menino.
– Isto vai demorar um pouco, filho!
– Tem problema não, mãe!
– Tem sim. Conheço você há mais de 30 anos. Em menos de cinco minutos estará de volta perguntando se a broa já está pronta.
Estobe riu e saiu para desligar a energia, que ficara ligada porque ele não se cansava de ler as anotações de Nego. Depois, acabou dormindo.
A observação de Maria procedia, porque Estobe sempre fora afoito em tudo o que se destinava a fazer. E, se o fazer significasse comida, então a sofreguidão era ainda mais galopante. Quando criança, Maria não poderia conceber que no mundo existisse um menino mais faminto. O leite era seu favorito. Por mais que Maria escondesse, ele sempre o encontrava: atrás das achas de lenha do fogão, sob o pé de repolho lá do fundo da horta, enfim, não havia mais opção de esconderijos para Maria. Por fim, certa vez resolveu colocar a panela com leite sob a cama em que dormia com Antônio. Mas, já sabendo de quem estava escondendo, e como não houvesse fechaduras nas portas, Maria muniu-se do velho tamanco de imbuia que guardava como lembrança de uma amiga paranaense, e o deixou bem na cabeceira. Nesse tempo, Estobe estava com mais ou menos 10 anos e sempre era o último a deitar-se. Mas o último não significava altas horas e, sim, no máximo 20 horas. Cansados, Antônio e Maria deitavam-se bem cedo e Estobe demorava mais, porque teria de atender à sua insaciável fome e livrar-se das represálias caso os pais estivessem acordados.
Logo que percebeu que seus pais estavam dormindo, ele iniciou a busca. Primeiro, olhou os lugares mais prováveis, mas percebeu que o pouco leite não estaria em nenhum deles. Nesse tempo, Antônio tinha apenas duas vacas, com apenas uma parida. O leite mal dava para o café da manhã e o das 13 horas. O costume italiano permanecia: levantar às 5h e tomar café; almoçar às 10h; tomar café com broa, aipim ou inhame cozidos às 14h e jantar às 17h.
Mas, convenhamos, para as crianças e adolescentes, às 20 horas a barriga doía de fome. Não bastasse, Estobe nunca se contentava com apenas um canecão: ele bebia no beiço da panela mesmo. Apesar de já ter levado uma surra do pai por ter sido flagrado nessa falta de higiene, Estobe não se emendou: apenas se tornou mais precavido, sempre verificando bem antes de reincidir.
Pois bem, nessa noite, depois de achar que os velhos estavam dormindo e de constatar que a panela do leite não tinha outro lugar para estar senão dentro do quarto, ele decidiu arriscar tudo e contar com o sono profundo dos velhos. Empurrou a porta bem devagar e olhou pela greta: não havia dúvidas, os velhos estavam dormindo – talvez o sono mais pesado do ano. Empurrou a porta mais um pouco e entrou. Examinou por fora e não viu nada, mas faltava debaixo da cama. E era lá mesmo que estava a velha panela corrugada, com o diabo de uma tampa barulhenta a protegê-la. Respirou fundo, deitou-se de barriga para baixo e começou a rastejar em direção ao enorme ímã que o atraía. Então, como um rato profissional, ele retirou a tampa e a colocou de lado, sem qualquer ruído. Parou um pouco, ficou atento: silêncio sepulcral. Seus pais pareciam ter tido um dia dos mais cansativos e, agora, tudo indicava que não acordariam nem que ele arrastasse a panela. Foi virando a panela e escorando-a com a boca, enquanto aquele “natão” – com que passava o dia sonhando – era degustado.
Acontece que sua mãe estava acordada desde o momento em que ele entrou no quarto: estava apenas esperando o momento certo para desferir a tamancada mais certeira de sua vida. E gritando, “te peguei, ratão” ela o fez. Estobe – mais pelo susto do que pela dor – arrancou para a frente, cortando os lábios na beiço da panela e entornando muito do precioso líquido. E, como um rato de verdade, saiu pela parte dos fundos da cama, ganhou a porta e correu à procura de um pano para estancar o sangue que lhe corria queixo abaixo. Ainda procurava um pedaço de pano quando Maria achegou-se. Trazia a panela do leite e o pano que Estobe procurava. Abraçou-o e balbuciou:
– Ah, meu “esbrenato”, quantas solitárias você tem na barriga?
Esbrenato era o apelido que seu pai usava para chamá-lo de faminto ou morto-à-fome.
Estobe achegou-se à mãe e, sem responder e sem se fazer de rogado, tomou um duplo canecão de leite. Depois, pressionando a ferida com o pano, foi deitar-se, feliz. Era sempre assim: apesar de viver criando problemas para os pais, Estobe era o filho macho único e Maria sabia que não teria outro.
Embora não conseguisse explicar, depois do café da manhã daquela quarta-feira Estobe estava a pensar sobre seu tempo de menino faminto e, ao ver a mãe vergada sob o peso dos anos, empurrou o sapatão para o lado e ergueu-se para abraçá-la:
– Os anos estão pesando, não é, mamãe?
– E como, filho! Mas não se preocupe: não irei embora sem antes vê-lo casado. Laura já casou, mas por infelicidade não teve filhos. Eu não queria partir sem abraçar um neto. Esta noite – não sei se de febre ou por viver pensando nisto – sonhei que você estava casado e tinha um filho bonito como você: loirinho, olhos azuis como os seus. A criança tinha uns dois anos, mas eu não conseguia ver a mãe direito.
Maria falava e Estobe não conseguia erguer os olhos. Seus pensamentos estavam cravados no passado e Helberti não lhe saía da cabeça. Bem poderia ter sido conforme sua mãe sonhou, não fosse o destino ter conspirado contra sua felicidade. Quando ergueu os olhos, viu que sua mãe chorava e, então, sem pensar, ele disse:
– Minha mãe, deste próximo ano não passará. Vou procurar alguém que me queira e irei juntar os “paninhos de bunda” e lhe dar um neto. Pode acreditar.
– Filho, isto é o que mais quero antes de morrer, mas, pelo amor de Deus, não esqueça que casamento é coisa séria, e para toda a vida.  Na pressa, não vai escolher alguém que não vai fazer você feliz. Todas as meninas deste vale sonham se casar com um homem como você. Portanto, peça a Deus que o ajude a escolher bem.
– Farei isto, mãe, prometo.
Estobe puxou os sapatões, calçou-os, abraçou a mãe e saiu para trabalhar. Há dias adiava examinar as roças que, com a exceção das que eram cuidadas por Albertino, seu meeiro, precisavam de uma boa capina. Estobe pouco pegava no pesado. Normalmente ele empreitava os plantios e as colheitas a trabalhadores ocasionais. O café que fora plantado no morro da frente, notava-se de longe, precisava de cuidados. Para chegar lá era necessário passar pela pinguela em que, há mais ou menos três anos, ele e Helberti caíram sobre um tapete de capim, formado com a diminuição do riacho Liberdade, que tivera parte das águas desviadas para a gleba do tio Luís.
Ali ele parou, sentou-se no toco da árvore que substituíra a velha travessia, entregando-se a devaneios que, possivelmente, não voltariam mais. E a lembrança foi tão forte que seu rosto esquentou, parecendo febril. Não saberia precisar o tempo que ali ficou prostrado, entregando-se a sonhos inesquecíveis: “Helberti, Helberti, quanta saudade!”
Aprumou-se, cortou um tolete de assa-peixe e o arremessou em direção a um biribá maduro. Apesar de nunca ser preciso em arremessos de pelotas por meio de estilingues, nem de pedaços de pau em direção a alguma coisa, desta feita ele acertou em cheio, derrubando a fruta. Ele a apanhou, abriu-a e continuou seu caminho, degustando os favos do saboroso fruto. Na cabeça, todos os motivos para ocupar seus próximos meses. Não permitiria que sua mãe deixasse este mundo sem levar consigo a certeza de que ele estaria bem. E conseguir uma esposa e dar à sua mãe um neto fazia parte do compromisso assumido.
Andou pelas plantações, mas pouco verificou. Algo muito forte não o prendia ao que estava fazendo. Ao retornar pela pinguela, aproveitou para banhar-se. Tirou a roupa e entrou na pouca água, contudo límpida e corrente. Seu olhar, porém, insistia em se manter fixado naquele pequeno tapete de capim que ainda continuava invadindo o leito do riacho. Foi ali que iniciara a mais linda e inesquecível paixão de sua vida.
É bem verdade que Estobe – além da fidelidade que mantinha como promessa de que jamais se casaria com outra mulher – ainda continuava preso à responsabilidade de cuidar da mãe. Maria vivia alimentando o sonho de poder brincar com um neto vindo de Estobe. Ele sabia disto, e ultimamente tentava desvencilhar-se de sua decisão de ser eternamente fiel a Helberti e conseguir alguém que pudesse, pelo menos, realizar o sonho da mãe. Colheu, com cuidado, um dos mais belos lírios que fora plantado por Helberti, e voltou para casa, mergulhando o caule na água de um litro. Quando sua mãe chegou, ele a abraçou e disse:
– Trouxe para a senhora, mãe. Foi plantado pela Helberti.

19
Mais para uns, menos para outros, mas o certo é que há, em todo ser humano, uma premonição para as coisas muito boas, ou muito ruins, prestes a acontecer. Sem que percebamos, não conseguimos dormir, nem nos alimentarmos direito. A pessoa fica a pensar, tentando buscar as causas, mas não consegue. Torna-se tensa, inquieta, anda de um lado para outro, tenta acalmar-se. Droga!, pensa: se está tudo como sempre foi, se estou bem de saúde, se não há qualquer problema urgente a resolver, por que esta inquietação?
Sua mãe não andava bem, mas era problema da idade, e isto já vinha de alguns anos. Certa feita, Estobe chegou a pensar: “Quando minha mãe se for, mudarei completamente a minha vida. Afinal, já estou ficando velho demais para esperar.” Depois, arrependeu-se do pensamento intruso, que lhe parecera desejo de ver-se livre da mãe. Sabia que os pensamentos passeiam pela memória, aleatoriamente, que não somos donos deles. São como animais irados que precisam ser domados.
Estobe desculpou-se a si mesmo, mas a ansiedade continuava, como se algo a acontecer já houvesse sido programado há muito tempo, e agora estava prestes a acontecer. E foi assim que ele viveu do domingo à quarta-feira daquele novembro de 1951.
Demonstrava um comportamento estranho, tanto que sua mãe, após o costumeiro café com leite com broa de fubá – ao notar que o sol já ia alto, observou em tom de brincadeira:
– E aí, “preguissier”, vai passar o dia aqui dentro de casa?
Estobe riu e concordou:
– Acho que sim, mãe. Há alguns dias ando ansioso, sem sequer saber a razão.
– Bem – observou Maria –, eu também levantei desanimada, cheia de preguiça. A vida é assim mesmo, filho! Quando isto acontece, o melhor que temos a fazer é deixar o tempo passar. Tudo o que acontece com a gente ocupa um espaço de tempo em nossa vida, e nada é para sempre. O tempo faz, o tempo desfaz. Se hoje estamos assim, tensos e ansiosos, com certeza amanhã estaremos calmos e tranquilos. É só deixar, que o tempo resolve.
– Que assim seja, mãe, porque a vida não prestaria se tivesse de ser vivida desse jeito, sem expectativas.
Estobe foi à pia, construída ao nível da janela da cozinha, do lado de fora. Para usá-la, era só achegar-se à janela, e utilizar a água que vinha da valeta do moinho. A água derramava dia e noite, porque não havia torneira. Lavou as mãos e o rosto, bebeu um pouco na concha da mão e saiu para o terreiro.

A água da pia caía perto de um dos esteios da casa, passava em ziguezague por uma área cercada de mil metros quadrados, irrigando diversas plantações. Ali, Maria cultivava, para consumo próprio, toda espécie de temperos e de plantas medicinais que existia na região.
Apesar de Marilândia haver se desenvolvido, tendo inclusive farmácia com todos os principais remédios, Maria não desprezava os caseiros. A água que vinha à pia da cozinha por gravidade acabava voltando à origem, juntando-se – depois de percorrer uns 200 metros – logo abaixo da roda pelton que acionava o moinho e o dínamo de energia. Toda aquela parafernália era legado de Antônio, que tivera a ideia de desviar parte das águas do riacho Santo Hilário até o terreiro de sua casa. Isto, além de tocar o moinho de fubá e o dínamo de energia, ainda evitava que Maria fosse apanhar cada balde de água de que necessitasse.
Todas essas lembranças Estobe agora remoía, andando sem direção, pensando sem parar. Voltou cedo de suas andanças e ficou ajudando a mãe, que já mostrava dificuldades, principalmente na hora de lavar as panelas enfumaçadas e cheias de crostas. Depois, almoçou e logo estirou-se na rede da varanda, dormindo profundamente.
Acordou com o barulho de um carro que parara em frente ao terreiro de sua casa. Pendurou a cabeça e firmou os olhos: uma linda mulher descia, tendo uma criança no colo. Junto a ela, duas grandes malas. Estobe sentou na rede e seu coração acelerou: estaria ainda dormindo e sonhando? Para ele, era Helberti quem desembarcara. Devia mesmo estar vendo alucinações, porque Helberti morrera havia algum tempo, juntamente com Nego, que tentara livrar, a ela e a filha, de um sequestrador.
Ouviram-se despedidas, o ruído da porta se fechando, o ônibus acelerando e seguindo para Liberdade: ponto final da viagem, desde que houvesse passageiros para lá. Descido o último passageiro, o ônibus virava e retornava à garagem. Liberdade fora o nome com que batizaram o final da estrada que, por sinal, ficava bem no sopé das três grandes pedras que um dia foram cenário de acontecimentos inesquecíveis para Estobe. Ali também nascia o riacho Liberdade, que banhava as terras de Antônio e Maria.
Percebendo que quem descera tinha como destino a sua casa, Estobe saiu da rede, apressadamente lavou o rosto e foi saber de quem se tratava.
Mesmo já bem próximo, Estobe não conseguia ver o rosto da pessoa, porque ela estava agachada, de costas, atarefada com a criança que queria fazer xixi. Por isso, de pé, ele aguardou. Cada vez mais o calafrio perpassava-lhe a espinha, porquanto, em tudo, a mulher se parecia com o maior amor de sua vida. Quando ela se levantou e fitou os olhos de Estobe, ele sentiu-se mal, a ponto dela perceber, observando:
– Você está se sentindo mal?
Estobe gaguejou. Não conseguia articular qualquer resposta. Depois, com a voz entrecortada, perguntou:
– Você é irmã da Helberti ou, por milagre de Deus, a própria Helberti que ressuscitou?
– Nem uma, nem outra. Eu sou a mãe, a avó de sua filha. Não vai abraçar sua filha?
Cada vez mais embaraçado, Estobe agachou-se e fitou a criança: não seria sua filha, porque Deus não lhe daria a graça de ser o pai de uma criança tão saudável e bonita. Tudo nela era perfeito. Não bastasse, os olhos eram dois pedacinhos de céu azul que enfeitava aquele rostinho angelical. Diante das tantas tentativas de deixar Estobe livre, Helberti sempre falara de um outro amor, com quem casara. Por isso, para não implorar explicações ali mesmo, Estobe abraçou a criança, tomou a mala mais pesada e convidou a mulher a segui-lo.
– Bem… Como é mesmo seu nome?
– Sakina.
Então, ele continuou:
– Bem, Sakina, vamos entrar. Apesar de toda minha curiosidade, sei que precisa descansar, mas, pelo amor de Deus, tão logo descanse, conte-me tudo.
– Não estou tão cansada assim, mas, por enquanto, acho mesmo que precisamos, eu e a Esberti, tomar um bom banho e comer alguma coisa.
– Esberti?
– Filha de Estobe e de Helberti. Depois explico.
– Com certeza, com certeza. Você vai encontrar minha mãe um tanto cansada. Por causa da idade, ultimamente ela reclama de muitas dores e cansaço.
– Quando anos ela tem?
– 64 anos. Ela vinha bem e a idade não seria tanto se ela não tivesse sofrido, sobremaneira, a perda de meu pai.
– Bem, na verdade, eu sei muita coisa sobre vocês, porque a Helberti parecia não ter outro assunto senão você e sua família.

Quando chegaram, Maria já estava esperando. Tanto quanto Estobe, ela enrugou a testa, apertou as pálpebras, firmou a visão e, por mais que tentasse, não conseguia ver senão a Helberti. Diante de tanta semelhança, apenas balbuciou:
– Meu Deus! …
– Mãe, não é a Helberti. É a mãe dela. E esta criaturinha mais linda do mundo é a filha de Helberti e, segundo a mãe, minha filha, a neta com que tanto sonha.
– Mas, como?
– Logo, logo, vamos ficar sabendo, mãe. Agora, vamos mostrar o quarto em que ela e a criança irão ficar, arranjar toalhas, enfim, deixar que ela descanse bastante, para depois matar toda esta nossa curiosidade.
– Sim, sim, filho! Enquanto você mostra tudo a ela, eu irei adiantando o jantar. Bem, ela já sabe como é a comida aqui na roça, não sabe?
– Deve saber, mãe, não se preocupe. Segundo ela, Helberti lhe contava tudo sobre nós.
Maria – que com o peso dos anos já apresentava dificuldades de locomoção – como se não bastasse, agora sentia verdadeira avalancha de curiosidade por aquilo que estava vendo e vivendo. Sakina não podia ser a mãe de Helberti, porque aparentava a mesma idade, o mesmo corpo, o mesmo rosto, a mesma cor dos olhos, a mesma maneira de falar… Meu Deus! – pensou – estarei delirando, ficando mal do juízo. Que Deus me livre deste mal!
Por outro lado, logo que mostrou e arrumou o quarto em que Sakina e Esberti ficariam e o banheiro (um cercado de tábuas de cedro, com água contínua, também vinda da valeta), Estobe quase correu para a cozinha:
– Mãe, o que a senhora está achando de tudo isto? Estou com o rosto pegando fogo, igualzinho ao dia em que conheci Helberti.
– E eu aqui estou rezando, filho, pedindo a Deus que não me deixe ficar louca. É que não consigo notar qualquer diferença. Talvez um pouquinho mais velha. Não consigo explicar, mas para mim Sakina é a Helberti.
– Não, mamãe, não é. Helberti morreu mesmo, naquela desdita em que também faleceu meu inesquecível amigo Nego.
– Tenho certeza que não dormirei esta noite. Poucas vezes na vida esperei com mais ansiedade o chegar de um novo dia. Amanhã, com certeza, ela irá explicar tudo direitinho.
– Bem, mãe, seremos dois. Se a senhora – que até torcia para que o amor entre mim e Helberti não fosse adiante – quanto mais eu, que nunca mais quis saber de outra mulher, como se houvesse necessidade espiritual de ser a ela fiel. Na verdade, mãe, nem em pensamento eu traí a Helberti. Não sei se por saudade ou não aceitação da perda, o certo é que Sakina está reacendendo a esperança de eu reencontrar a felicidade.
– Calma, filho! Não sabemos nada sobre ela, ainda. Pode até ser casada ou, finalmente, não ter os mesmos sentimentos de Helberti para com você.
– É verdade, mãe, é verdade. De qualquer forma, já que vou ficar acordado mesmo, passarei a noite pedindo a todos os santos, canonizados ou esquecidos, para que intercedam junto a Deus por mim.
– Não se importa de se casar com a avó de sua filha?
– Mãe, ela é linda, cheia de vida. Não perc…
Nisto, Sakina vinha chegando, tendo nos braços a netinha Esberti. Vinha bem vestida, perfumada, com um vestido colado ao corpo, dando-lhe provas sobejas de um corpo escultural. Por outro lado, Esberti, com seu rostinho angelical, aureolado por cabelos entre ouro e prata, demonstrava total felicidade, por estar livre de tantas recomendações lá da cidade, principalmente depois da tentativa de sequestro, impedido, com a vida, por Nego.
O jantar já estava pronto e Maria apressou-se em pedir que se sentassem. Das sobras do almoço, havia feijão e arroz; feito na hora, a costumeira polenta: prato predileto de Estobe, sempre com leite e café misturados. Salada havia muita, porque a horta dava sobejamente para ela e Estobe. Juntando tudo com ovos fritos, queijo e puina, a mesa ficava apresentável. Maria foi logo se desculpando:
– Sakina, aqui é assim a nossa vida. Plantamos e colhemos quase tudo o que comemos. Só não sei se você e a Esberti irão gostar do meu tempero.
– Não se preocupe, dona Maria! Ainda que estivesse ruim, complementou rindo, hoje não perceberíamos, porque estamos com muita fome.
– Ainda bem – respondeu Maria, que lembrara o velho provérbio de que a fome é o melhor tempero.
– E a Esberti, o que come?
– Bem, deixo sempre que ela escolha. Não se preocupe, ela decidindo, qualquer coisa serve. Mas, se tentar convencê-la, aí a coisa se complica.
E enquanto cada um fazia o prato, Esberti falou:
– Vó, eu quero cuiscuis.
Estava decidido: ela comeria polenta mesmo. Todos acharam graça.
– Sakina lembrou: não ofereçam nada, por favor. Se ela perceber que estamos querendo obrigá-la a alguma coisa, ela não comerá mais.
Então, todos foram se servindo e jantando normalmente. Esberti olhava, empurrando nacos de polenta espalhados pelo prato pra lá e pra cá. De repente, esticou as mãos e apanhou uma folha de alface. Ninguém ralhou, porque ela – segundo a avó, nunca tomava qualquer alimento sem antes lavar as mãos. Experimentou, gostou e aí foi o prato todo de alface. Sakina piscou os olhos e todos entenderam. Depois foi a vez de experimentar os ovos e, mais um, ela comeu.
Todos já estavam terminando quando Estobe observou:
– Esberti, estão dizendo que eu sou seu pai. Você acredita?
Esberti virou-se, fitou os olhinhos azuis nos não menos azuis de Estobe e apenas observou:
– Vó, ele tem os olhos azul como eu.
E, sem qualquer outro comentário, todos concordaram que, de fato, outro não poderia ser o pai de Esberti. Estobe, então, virou-se para Sakina e antecipou uma das tantas curiosidades que já ouvira, mas precisava confirmar:
– Sakina, por que puseram nesta princesinha o nome de Esberti?
– Você não deduz? Falei pra você lá no ônibus.
– Bem, não fosse a pretensão de acreditar que, de fato, Helberti também me amava muito, eu diria que ela sincopou Estobe/Helberti.  Foi isto mesmo?
– Sem dúvida alguma.
Estobe então levantou-se, acercou-se de Esberti, tomou-a no colo e a fitou demoradamente, dizendo:
– Minha filha!
As palavras foram ditas com tanta emoção, que todos os presentes não evitaram que os olhos umedecessem. Para completar, Esberti também fitou Estobe e, pela primeira vez, balbuciou:
– Papai!

20
Depois de três dias de chuvas e frias aragens valsando pelo vale, o vento sul finalmente começou a perder força. Aproveitando a retirada, o sol aconchegante mostrou o nariz por entre as árvores maiores dos morros. Uns 15 anus-pretos juntaram-se sobre a copa de uma buganvília de flores vermelhas, abriram as asas e viraram a cabeça para o sol, como se estivessem agradecendo a Deus aquela mudança climática agradável.
Era o décimo terceiro dia em que Sakina e Esberti encontravam-se na casa de Maria e Estobe. Apesar do pouco tempo, eles já nem imaginavam viver ali sem ela e a criança; Sakina parecia ainda estar sonhando e, mesmo certa de que tudo era real, pedia a Deus para não acordar.
Desde a chegada, e agora cada vez mais, ela percebia que Estobe denunciava-se em cada olhar, e ela, como Helberti, não podia conceber que houvesse um homem mais completo para o seu sonho de constituir uma família.
Logo após o almoço, Estobe saiu ao terreiro e ficou olhando uma pequena represa, feita por seu pai, em que havia um criatório de tilápias. A bem da verdade, ele não se lembrava do dia em que retirara algumas para comer. Quando ia se virar para trás, com o pretexto de chamar Sakina para ajudá-lo a pegar algumas para o jantar, ela já encostava os ainda hirtos seios em suas costas.
A sensação daquele aconchego fez com que ele até esquecesse, momentaneamente, o plano de pescar algumas tilápias para o jantar.
– Que grata surpresa, Sakina! Estava mesmo pensando em você.
– Verdade?
– A mais sincera que já disse até hoje.
– Não disse nenhuma à Helberti?
– Para mim, Sakina, você e Helberti são a mesma pessoa. Às vezes até imagino se, por um milagre, não foi isso mesmo que aconteceu. Nunca vi tanta semelhança entre duas pessoas, apesar da diferença de idade. Desculpe-me a curiosidade: mas a que se deve você estar tão conservada, tão bonita e atraente?
– Não tem medo de que eu o processe por assédio?
– Não, nem um pouquinho. Não é assédio, é quase um juramento sobre o que penso.
– Se estiver com tempo, acho que posso explicar.
– Dou a você o resto deste dia, toda a noite que se avizinha e o próximo dia que irá nascer.
– Já basta, mesmo porque farei um resumo. Falarei sobre o principal e, com o tempo, irei diminuindo sua curiosidade.
– Então, vamos ali naquele banco improvisado sob as mangueiras. Era nele que meu pai, tantas vezes, descansava do almoço. E, se pela estrada passasse alguém com tempo, o papo ia ao anoitecer, com direito ao jantar. Mas vamos ao que interessa. Nem imagina como estou curioso.
Assentaram-se e esticaram os pés, imergindo-os na água corrente da valeta. Sakina começou:
– Há 33 anos… Já fez a conta?
– 1918.
– Bem, nem preciso dizer sobre minha idade.
– Não, não precisa. Precisa apenas me dizer o segredo de estar, aos, aos… em que ano você nasceu mesmo?
– 1912.
– Hum… aos… 39 anos, com o frescor de uma adolescente.
– Não é bem assim. Helberti realmente se parecia muito comigo. Certa feita, uma senhora que vendia toalhas de prato bordadas perguntou-me se éramos irmãs gêmeas. Acho que é uma questão de genética.
– Meu Deus! Você está, agora, igualzinha a ela quando a conheci. Seu sorriso, o modo como pronuncia as palavras, o jeito de olhar… Desculpe-me, mas não há como fugir dessas lembranças.
– Lembre que não sou ela.
Estobe entristeceu-se. Poderia ela estar insinuando que ele não confundisse as coisas? Sakina percebeu e logo tratou de consertar o possível mal-entendido.
– Eu não seria tão pretensiosa ao ponto de querer substituí-la.
Estobe tomou-lhe a mão: ambas tremiam. Sakina curvou a cabeça, fitando Estobe nos olhos. As lembranças do impossível assomaram-se incontroláveis. Naquele momento, já não havia a precaução de pôr tudo a perder: ele a puxou para si e a beijou com a sofreguidão de alguns anos atrás. E as bocas só descolaram quando Maria espantou, da varanda, uma galinha que ciscava o pequeno canteiro de flores.
Apesar de já não estar enxergando bem, Maria percebeu que algo mais forte que uma simples amizade já estava acontecendo entre eles. Logo adentrou e se pôs diante de uma pequena imagem fosforescente, que ganhara do próprio Estobe quando esteve no seminário. Fora mais um, entre os tantos prêmios que Estobe recebera quando estudava.
Excetuando-se o Grego e o Latim, nas demais matérias ele sempre se sobressaía. Por isso, não demorou para que Sakina falasse a ele sobre a quase correta maneira de se expressar. Depois de um bom tempo cabisbaixos, ela – possivelmente para quebrar a forte emoção que se instalara –, fazendo voltar a aparente normalidade, observou:
– Por favor, não me leve a mal, mas, como fala tão bem, morando aqui na roça, onde a maioria não tem qualquer cuidado com as palavras? No interior, as pessoas se expressam do jeito que aprenderam com seus pais e com quem nunca frequentou uma escola.
– Bem, estudei no melhor centro de ensino do Estado, o Seminário Nossa Senhora da Penha. Fui – poderia dizer – jogado lá, pela ideia fixa do padre alemão, João Guilherme, que queria, a qualquer preço, tornar-me padre secular. Eu nunca senti tal vocação, mas até que nosso pároco entendesse isso, foi uma longa jornada. Seria tortura passar o dia fitando os barcos a vela que vinham do alto-mar, atravessavam a praia Santa Helena e aportavam na praia do Suá, sempre cheia de gaivotas preguiçosas, que preferiam comer as sobras não vendidas do que pescar mar adentro. A praia vivia cheia de pessoas pobres, que tão logo o barco atracava encostavam para comprar peixes mais comuns e baratos. Principalmente para passar as horas, comecei a ocupar meu tempo estudando. Lia bons e profundos livros, porque na biblioteca de lá não havia outra opção. A história é bem longa, mas explica o que a deixou confusa sobre minha maneira de falar, morando aqui na roça.
– E parou de estudar por quê?
– Sakina, na verdade, sempre detestei estudar. Quando criança, eu queria mesmo era correr atrás de uma bola feita com meias velhas (a gente as enchia de capim e arredondava-as quanto possível); caçar de estilingue (nisso não guardo remorsos, porque fui o pior caçador de estilingue do mundo: quando muito, acertava, por semana, um inocente e manso caga-sebo); pescar jundiás, mandis, moreias, traíras, piabas e acarás nos riachos Santo Hilário e Liberdade. Sempre quando chovia muito, formavam-se lagoas pelas depressões, e nelas as rãs coaxavam sob flocos de espuma. Então, eu e o Nego (que Deus o tenha), munidos de porretes, desferíamos fortes cacetadas em cima dos flocos e quase sempre atingíamos quem estava embaixo. Por falar nisto, você já comeu rãs?
– É um tipo de sapo?
– É…., não deixa de ser, mas são comestíveis e deliciosas. Você aceitaria experimentar?
– Não vejo a hora!
A bem da verdade, Sakina estava tão esperançosa e feliz por estar ali, vivendo o que pressentia ser o momento mais importante da vida dela, que se fosse convidada a experimentar um cururu, ela aceitaria. Ali, os dois representavam o velho dizer: “A fome com a vontade de comer”.
– Bem, agora só nos resta esperar pelas enchentes. Quando chover, as lagoas irão aparecer e, com elas, as rãs. Farei tudo para conseguir uma jia, com este nome aqui conhecida como a maior e mais apetitosa das rãs. – E, em tom de brincadeira, disse: “Se eu conseguir, procurarei um chef de bom restaurante, só para prepará-la para você”.
Sakina achegou-se a Estobe, abraçou-o fortemente e respirou fundo. Jamais imaginava que a vida fosse oferecer-lhe a felicidade quando já nem mais mantinha tal esperança. Estobe retribuiu o abraço, olhou se a mãe não estava a espreitá-lo, e a beijou sofregamente, outra vez. Estava selado e sacramentado, para eles, um novo tempo.
– Acho que agora já mereço saber, também, um pouco mais de você.
Sakina retraiu-se. Passara a maior parte da vida tentando apagar as piores lembranças de sua existência. Evitava recordar o dia em que fora abandonada pela família, em vista de um inaceitável radicalismo religioso. Apesar de viver lutando contra tais lembranças, elas nunca a abandonaram. Por isso resolveu resumir, também, os caminhos que, enfim, a fizeram chegar até ali. Era a primeira vez que alguém procurava inteirar-se de seus problemas. Tomada a resolução de sintetizar, ela começou:
– Nem sei por onde começar, meu querido. Sempre me esquivei de revolver tais lembranças, mas agora entendo serem necessárias. Segundo me consta, meus pais vieram do Irã. Eram islamitas. Nunca soube a razão de terem vindo para o Brasil, mais estritamente para Vitória, capital do Espírito Santo. O certo é que aqui escolheram para morar. Quando aqui chegaram, eu tinha apenas sete anos. Não entendia, é claro, as demais crianças que se acercavam de mim. Mas, como sabe, as crianças aprendem tudo muito depressa. Tudo o que eu disser, por favor, entenda como aquilo que me contaram, porque não lembro de detalhes. Ao lado de nosso modesto barraco morava uma família numerosa, cheia de crianças. Elas viviam brincando no quintal e eu ficava olhando, doidinha para ir lá. Um dia, uma delas veio até perto de mim e entendi que ela me chamava para brincar. Mamãe era diarista. Meu pai fazia tudo o que aparecesse de serviço braçal. Eles me deixavam sozinha em casa. Então, eu acompanhei a menina que me chamava. Logo passei a ser motivo de curiosidade para eles. Não sei o que pensaram, mas não seria devaneio imaginar que concluíram ser eu uma criança com sérias deficiências. Quando meus pais chegaram, eu não disse nada, porque com certeza iriam me proibir. Nos dias seguintes, todas as vezes que as crianças se reuniam, eu ia à porta de nosso casebre e ficava esperando que me chamassem. E isto não demorava, porque eu me tornara um bichinho diferente. É bem possível que eles me tivessem como se tem um cachorrinho, um gato… algo, apenas, de entretenimento. Eu não entendia o que diziam, mas percebia, melhor que eles, as reações que provocava. Como toda criança, também eu não sabia se estavam rindo de mim, ou de minha maneira de brincar. De qualquer forma, em poucos meses comecei a entender quase tudo o que diziam. Eu mesma já pronunciava respostas que eles admiravam. Mamãe, papai, brincar, crianças, menino, menina, amarelinha, de novo, roda, escola, não, sim… foram as primeiras palavras que me lembro ter aprendido. Meus pais, por sua vez, também começaram a pronunciar algumas palavras em Português. Não levamos muito tempo para nos fazermos entender pelos brasileiros. As vezes causávamos risos, mas nunca levamos aquilo a mal. Quando atingi os oito anos, com a ajuda da vizinha que era professora, fui matriculada na escola em que ela trabalhava. Eu ia com os filhos dela e com eles fazia as tarefas. Para simplificar, aos 12 anos eu já era uma brasileirinha moderna. Fazia tudo o que as crianças com essa idade fazem: participava de aniversários, ia a espetáculos, aos jogos de basquete e vôlei e a todos os lugares que uma adolescente pode ir. Sob a aparente liberdade, meus pais não descuidavam de minha formação religiosa. Como não houvesse, ou não conhecêssemos ninguém de nossa crença, meus pais, todos as noites, não se cansavam de ler trechos do Alcorão. Cumpriam fielmente os princípios de obediência, sendo Alá o Deus único e Maomé, seu mensageiro; uma vez por ano, ajudavam alguém mais pobres que eles; não esqueciam as orações diárias; jejuavam, uma vez por ano, do amanhecer ao anoitecer; viviam lembrando o dia da peregrinação a Meca, até então adiado em vista da dificuldade de irem à Arábia Saudita. Por causa de minhas amizades, eu ia, embora sempre escondida, às igrejas católicas. Eu me afinava melhor com os ensinamento de Jesus Cristo, sempre bondoso e misericordioso. Apesar de certa semelhança, parecia-me que o Alá de Maomé não era o mesmo Deus de Jesus Cristo. Foi aí que percebi a razão de boa parte das pessoas que moram nos países asiáticos serem seguidores de Maomé. Eu fui islamita porque meus pais o eram; você é católico pela tradição de seus pais, não é assim?
– É. Confesso que nunca perdi noites procurando pela religião verdadeira. Aprendi a seguir os meus pais, levando meus sapatos nas mãos até à entrada da igreja. Lá, eu os calçava e, ao lado dos meus pais, assistia à missa, ouvia a voz fanhosa do padre Guilherme explicando o evangelho do dia. Uma vez por ano havia a confissão dos pecados, por sinal sempre os mesmos; depois a comunhão e os bons dias de abstinência aos vícios. Lembro que a gente rezava, pedia, lutava mesmo, até a primeira queda, depois deslanchava até o ano seguinte.
Sakina teve um acesso de riso. Depois, respirando fundo, complementou:
– Desculpe-me! Não ri de você, não, ri de nós dois; ri dos tantos bilhões de seres humanos que hoje vivem na Terra. Ri porque ninguém acredita em nada que segue. Tudo é uma farsa com o intuito de enganar a Deus. Somos todos mentirosos. Incrédulos irrecuperáveis, tentando iludir a Deus, sem observar que Ele existindo e tendo todas as prerrogativas que Lhe imputam de onisciente, onipresente e onipotente, é simplesmente impossível iludi-lo. Você, por exemplo, trocaria suas terras por um cabrito?
– Claro que não. Mas que diabo tem o assunto com a troca das terras por um cabrito?
– Serei, então, mais atinente. Você trocaria uma eternidade feliz por alguns dias de prazer?
– Claro que não!
– Pois bem, é o que você, eu e todo o mundo – talvez deixando de fora as raras pessoas de muita fé – fazemos. Logo, trocamos nossas terras por um velho cabrito.
E Estobe riu do sofisma, continuando:
– Meu anjo, religião, política e futebol não são bons motes para passarmos o tempo. Voltemos ao seu passado. Estou ansiosíssimo para saber.
– Minha vida foi, digamos, normal, até eu chegar aos 15 anos. Nesse tempo, eu ouvia os outros dizerem que eu era linda e inteligente. Os rapazes me cortejavam, mas eu, não só me sentia uma criança como, de fato, eu era uma criança. O medo “de ser apedrejada” andava de mãos dadas comigo. Entre os meus tantos cortejadores havia um muito especial. Ele adivinhava até meus pensamentos. Ajudava-me nos exercícios, dava-me bons conselhos, protegia-me sempre que necessário. Bem, acho que devo poupá-lo de detalhes. Quando completei 15 anos, engravidei dele. Logo que soube, ele quis, apesar de contar apenas com 16 anos, assumir-me, mas a família dele não aceitou. Não bastasse, meus pais rasgaram as vestes e disseram que eu não era mais filha deles. O que eu fizera fora tão grave para eles que, mesmo sem me avisar, voltaram para o Irã, abandonando-me. Imagine você, uma adolescente grávida, abandonada pela família e sem nenhum parente no Brasil?! Passei dois dias ali sozinha. Dona Angelina, a vizinha, cujos filhos também haviam crescido, quando soube de minha desdita, disse que eu não estava em estado de viver abandonada e que, pelo menos até a criança nascer, ela cuidaria de mim. Ela, que fora minha professora, não só cuidou de mim e da criança que nasceu, como providenciou tudo para que meus estudos continuassem. Eu era uma boa aluna. Estava sempre entre os primeiros da classe. Em 1932, quatro anos depois que Helberti nasceu, eu me formei, tornando-me professora da própria escola em que me formara. Tendo meu próprio salário, falei com dona Angelina de minha intenção de alugar uma casa, contratar uma babá e ir criar minha filha. Ela, no entanto, ao invés de mostrar-se satisfeita, baixou a cabeça e passou alguns longos segundos sem dizer nada. Depois, quando ergueu a cabeça, vi que dos seus olhos lágrimas ressumavam. Gaguejando, ela desabafou:
– Sempre tive medo deste momento, Sakina. Para mim, você sempre foi uma filha. Lembro de você criança, brincando com meus meninos o dia todo. Não bastasse, além de ser minha afilhada, a Helberti é a alegria de minha casa. Meus filhos chegam a brigar para ter o privilégio de ficar com ela. Ela é uma criança adorável e sadia. Raramente chora. Apenas não gosta de dormir cedo, mas aqui já virou costume ficarem brincando até bem tarde. Mas ela não chora: fica ali do lado, batendo as perninhas até fechar os olhos. Bem, você vê isso todos os dias, eu não preciso falar.
– Dona Angelina, a senhora gostaria mesmo que eu e minha filha continuássemos morando aqui?
– É o que mais quero no momento.
– Então eu irei ficando, mas com uma condição: as despesas da casa ficarão por minha conta. A senhora apenas me faz a lista e eu providencio as compras. Se não for assim, nada feito.
– Mas, você não está pagando as prestações do carro?
– Sim, mas não é muito. O que sobra dá perfeitamente para nossa alimentação.
Com os olhos brilhando, dona Angelina me abraçou, deu boa-noite e foi para seu quarto. Em resumo, meu bem, esta é minha vida. Nunca mais amei ninguém. Não que eu não tivesse oportunidade, porque aqui no Brasil, quando acontece o que aconteceu comigo, os homens se mostram ainda mais interessados, porque imaginam presa fácil para suas pretensões libidinosas. Por isso, vivi exclusivamente para formar Helberti professora e foi como tal que você a conheceu.
Na verdade, quando Sakina deu por encerrado o relato sintetizado de sua vida, Estobe sentiu um grande alívio interior. É que, por mais que tentasse, não havia conseguido enxergar em Sakina a mulher maravilhosa e honesta que transparecia. Aquele corpo escultural, os seios hirtos, uma filha fora do casamento, morando numa capital…. Bem, para conservar-se honesta e pura, não podia assemelhar-se a alguém oferecida e fácil, agindo como estava agindo com ele. Enquanto Estobe passava horas imaginando como declarar-se, ela o abraçava por trás, apertava-o como se já namorassem havia meses.
Na verdade, fosse ela conservada e pura, ou mulher de muitos amores, para Estobe já pouco importava. Estava cegamente apaixonado.

21
Coisa alguma é melhor que o tempo para sarar feridas, também da alma. Desde o dia em que Helberti foi embora, nada mais motivara Estobe. Via o dia amanhecer e se findar agindo como um autômato, desincumbindo-se dos rotineiros afazeres, sem nenhum projeto para um futuro melhor. Aquele estado – podia-se dizer – depressivo, afetara também sua mãe. Maria vivia a perguntar-se, em suas meditações, se de fato valera a pena toda aquela luta em prol da ideia fixa de seu marido, de crescer junto ao desenvolvimento do lugar. Boa parte das matas haviam cedido lugar aos cafezais, Marilândia crescera, virara grande vila, as terras encareceram, mas a felicidade, até então, mostrava-se incerta, tanto para ela como para Estobe, mesmo porque a felicidade nunca, aqui na Terra, será completa para ninguém. Ela é um estado de espírito temporário, que anda de braços dados com algum acontecimento, também transitório. Na verdade, ela depende da harmonia entre as coisas que nos rodeiam e que transcorrem segundo o que imaginamos bom e aguardado por nós.

De repente, a despedida de Helberti – que lhe roubara a alegria de viver – voltava, como uma graça dos céus, com Sakina, e o enchia de prazer pela vida. Por sua vez, Sakina não se fazia de rogada. Seu coração desperto palpitava freneticamente, fazendo-a sentir emoções que imaginou sepultadas desde o dia em que fora abandonada pelos pais estando grávida de Helberti.
Em menos de três meses, tudo mudara na casa de Estobe. Maria não mais reclamava de qualquer infortúnio. Passava o dia com a neta pendurada em sua saia, perguntando sobre tudo. Esberti, loirinha, com os olhos mais azuis que o céu num límpido dia de verão, queria sempre ajudar. Arrastava a vassoura pela casa, molhava a cozinha, “lavava” os talheres, retirava os panos de prato e os espalhava pela casa… Em suma, parecia um pequeno vendaval ativado desde o momento em que abria os olhos pela manhã. E Maria ria, incentivava, curtia como talvez não tivesse curtido os próprios filhos. Ninguém podia fazer qualquer coisa que magoasse a netinha, que ela logo interferia, abraçando-a e dizendo que não ligasse porque os pais não entendiam nada. Com a avó reencontrando novo motivo para viver, e viver feliz, Estobe e Sakina não se largavam.
Como se fosse reprise, Sakina, nessa manhã, pediu a Estobe que a levasse para conhecer os cafezais que ficavam do outro lado do riacho Liberdade. Mesmo havendo mangueiras por todos os lados, ela disse que gostaria de experimentar as tantas que se mostravam carregadas de frutos maduros, bem no caminho dos cafezais. Estobe foi à mãe para perguntar se podiam sair deixando Esberti sob os cuidados dela. Encontrou as duas na pia da janela da cozinha, conversando como gente grande. Ao ver Estobe, ela logo acrescentou:
– Papai, tô ajudando a vovó lavar os pratos.
– Ajudando, ou atrapalhando, minha filha?
– Estou ajudando, não é, vovó?
– Claro que está ajudando. Desde quando chegou, fazer as coisas aqui ficou mais fácil. Ela me ajuda a lavar a cozinha e a varanda, a varrer os quartos, arrumar as camas… E pode olhar: nunca quebrou um prato ou uma xícara (tudo era de plástico).
– Sim, sei! – arrefeceu Estobe, que sabia e via sempre o tipo de ajuda que ela prestava. Maria, por sua vez, já não conseguia imaginar viver “sem aquela ajuda”. Era o dia inteiro – e boa parte da noite – os constantes gritinhos: Vovó? Vovó? Vovó? E se ela não olhasse, era cobrada imediatamente: Vovó, vovó, olha pra mim. Se olhasse, fitasse-a nos olhos, ela dizia, à maneira dela, o que tinha a dizer. Maria sempre concordava, abraçava-a e sorria de felicidade. Sorrisos que estavam apagados desde que Helberti foi embora.
Estobe nem perguntou se estava tudo bem. Apenas avisou que estava indo com Sakina ao cafezal, mas que voltariam para o almoço.
– Vai, filho, porque desta vez não irei interferir. Apenas rezar bastante para que tudo dê certo. Talvez seja egoísmo, porque confesso que não saberia mais viver sem “minha amiga” de fé. Disse isso e abraçou Esberti carinhosamente:
– Vovó! – foi a resposta, mais uma vez.
Estobe muniu-se de uma faca, calçou os sapatões e voltou ao terreiro. Encontrou Sakina no mesmo lugar:
– Não vai vestir uma calça jeans, colocar um calçado de couro e usar uma blusa de manga comprida? Afinal, estamos indo pra dentro do mato mais fechado.
– Não, irei deste jeito mesmo. Algo me obriga a isto.  Não ousaria gastar qualquer tempo a fim de impedir que alguma coisa aconteça e você mude nossos planos.
– Como assim?
– Por favor, não sei explicar. Acredite.
– Então, vamos lá e tenha muito cuidado. Olhe bem o lugar em que irá pôr os pés.
– Se estou com você, você é meu cuidado. Sinto-me segura, como se fosse o papa rodeado de guardas suíços.
– Bem, neste caso, deixe-me apanhar a espingarda também.
– Não precisa. Você, sem armas, me basta plenamente.
E rindo das brincadeiras, os dois desceram a pequena rampa do moinho e alcançaram a também pequena pastaria, chegando às mangueiras. Elas eram parte do legado de Antônio, que tinha por mania plantar. Havia mais que uma dezena de mangas com sabores diferentes, assim como outras tantas fruteiras. Se houvesse algo de que ninguém pudesse reclamar na casa de Maria e Estobe, com certeza, a falta de frutas e verduras seria uma delas.
Havia mangas pelo chão, mas Estobe nunca abdicara de exigir-se frutas tiradas do pé, com as mãos. Não podiam ter qualquer amassado. Por isso, subiu pé por pé, escolheu as mais belas frutas, protegeu-as por dentro da camisa com as pontas amarradas à cintura, e foi em direção à pinguela que dava passagem para os cafezais e canaviais. Ao chegar ali, Estobe empacou como um animal manhoso. Ficou preso ao passado não tão distante.
A pinguela era outra, feita com uma árvore mais grossa e resistente, mas o capim que servira de cama para ele e Helberti estava lá, ainda mais bonito e rasteiro. Parecia um tapete verde, bem estendido. Pela orla deste tapete, mais perto do barranco, vários pés de lírios, com suas flores brancas valsando ao sabor de fracos ventos. Aqueles lírios foram plantados por Helberti – segundo ela – como lembrança do amor que jamais terminaria: “Enquanto estes lírios estiverem vivos, Estobe, nosso amor também estará. Se eles morrerem, nosso amor também morrerá. Por isso, nunca perca as esperanças. Cuide bem deles. Todos os dias em que passar por aqui, você irá se lembrar de mim. Também não se esqueça: para Deus, nada é impossível – disse ela. Se, de fato, você me ama quanto diz, eu permanecerei com você até o fim de seus dias.”
Sakina não sabia de nada, muito menos do que estava se passando pela cabeça de Estobe. Ao perceber que ele encontrava-se numa espécie de êxtase, ela não pôde furtar-se à força do destino: aproximou-se, abraçou Estobe por trás e guiou-o aos lírios. Ela mesma não saberia precisar o que a forçava a agir daquela maneira.  Fez com que ele se assentasse junto aos lírios.
Depois de algumas horas, somente as frutas esparramadas pelo capim testemunhavam a explosão de paixão que reacendera e parecia não ter fim.
Às 13h, quando retornaram para o almoço – que sempre era servido às 10 – Maria já estava aflita, imaginando o que poderia ter acontecido. Quando perguntou a Sakina sobre o que achara dos cafezais, canaviais, da lavoura enfim, Estobe tomou a frente e disse que ela achara tudo maravilhoso, principalmente as canas-caianas: principais culpadas pelo atraso deles.
– Sakina disse que nunca lhe passou pela cabeça que no Brasil houvesse bambus tão moles e doces.
Maria olhou firme para Sakina, e com um sorrisinho um tanto sarcástico, um tanto malicioso, observou:
– Pelo rosado do rosto de vocês dois, principalmente da boca, dá para perceber que chuparam muita cana mesmo!
Podia até fazer algumas perguntas para desmenti-los, mas preferiu mudar de assunto, porque, várias vezes por dia, pediu a Deus que os dois se entendessem e que Esberti jamais saísse da barra de suas saias. Agora, pouco lhe importava a diferença de crença religiosa dos dois. Ela mesma achava que tudo o que acontecera fora um recado de Deus para que ela nunca mais se metesse nos desígnios Dele.
A relativa diferença de idade entre Sakina e Helberti não transparecia. Elas eram tão idênticas, física e espiritualmente, que Estobe já se desculpara por trocar os nomes. Sakina achava graça e considerava a distração de Estobe um grande elogio, porque ninguém melhor do que ela conhecia a filha que teve.
Naquele mesmo entardecer, depois do jantar, Estobe convidou Sakina para visitar o túmulo do Biriba. Era mais uma boa desculpa para tratar do relacionamento deles do que propriamente demonstrar gratidão e reconhecimento à bravura do cão.
– Eu pensei que aquela cova – vista daqui, toda florida e muito bem cuidada – guardasse alguma criança.
– Não, Sakina, trata-se de um cão vira-latas, responsável, inclusive, por você estar aqui hoje. Se neste momento você se sente bem e feliz, agradeça a esse vira-latas. Ele é responsável por tudo o que está se passando no seu coração. Aos poucos irei lhe contando toda essa longa e emocionante história. Por agora, peço apenas que venha comigo. Precisamos conversar. A visita ao túmulo é apenas justificativa para ficarmos a sós.
– Assim você me assusta. Nem bem começamos a namorar, e você já parece muito preocupado.
– Mamãe, dá para a senhora cuidar da Esberti por mais umas duas horas?
– Ora, filho! Quero cuidar dela enquanto eu viver, as 24 horas de todos os dias. E, pelo jeito, vai ser por muito tempo, porque desde o dia em que ela chegou, todas minhas dores e tristezas desapareceram. Estou me sentindo jovem. Se Sakina e Esberti não tivessem chegado, por certo eu estaria prostrada na cama, esperando meu fim. Agora não, quero viver e não estou sendo econômica em pedir a Deus mais um bom tempo de vida. Mais 20 anos, pelo menos. Quero assistir à colação de grau da Esberti. Você sabe que Laura casou, não teve filhos e nunca veio nos visitar. Raramente escreve. Nota-se que está bem financeiramente, mas que não é feliz. Sabe como é: as mães percebem!
Sakina que escutava calada, interferiu:
– A senhora tem somente mais uma filha, né?
– Apenas mais uma, a Laura.
– Ah, desculpas. É que Helberti só tinha tempo para falar de Estobe.
– Quando aqui, os dois viviam mais agarrados que carrapato. Eu percebia que ela só falava comigo por educação, porque qualquer segundo, para ela, era precioso. Acho que ela antevia tudo o que acabou acontecendo.
– Helberti era uma filha maravilhosa. Até hoje não entendo por que a vida lhe foi tão cruel.
– Sabe, Sakina, não vejo o destino das pessoas assim. Meu velho não se cansava de dizer que a vida, sem saúde e força para vivê-la plenamente, não prestava. Dizia, também, que esperava que tão logo não conseguisse mais fazer tudo o que sempre fez, que preferia morrer. E, por incrível que pareça, foi o que aconteceu.
– Sei que talvez não goste de relembrar, mas se não lhe custar muito, fale mais um pouco sobre isso.
– Em 1941 ele já vivia às voltas com uma alergia crônica que o deixava prostrado, normalmente lá no moinho, com a cabeça entre as pernas e uma secreção interminável a escorrer-lhe pelas narinas. Ele passava horas assim. Não bastasse, o ar vivia lhe faltando, tendo dias que chegávamos a acender velas e a chamar os vizinhos. Ajudado por alguns comprimidos de Asmac, ele sempre sobrevivia. Foi quando a malária o pegou e não havia quinina que desse jeito. A vida para ele, de fato, perdera o sentido. Não se sabe como, num triste dia, passou por aqui um curandeiro e disse que ele só se livraria da malária se conseguisse tomar, de uma só vez, uma garrafa de cachaça. Espero que ele tenha acreditado, porque seria muito doloroso se me ficasse qualquer dúvida sobre ele ter dado, por si, cabo da própria vida. É que ele não suportava bebida alcoólica, e já enfraquecido pela série de mal-estares que o acometia, com certeza acabaria morrendo.
Maria quietou, permanecendo com o olhar perdido em algum ponto que podia ser vislumbrado através da janela. Sakina entendeu a dor que promovera e tentou logo amenizá-la:
– Desculpas, dona Maria, eu não devia ter feito a senhora relembrar fatos que, percebe-se, trazem-lhe duras lembranças.
– É assim mesmo, Sakina, querendo ou não, todas as lembranças do passado nos acompanharão ao túmulo. Mas não são apenas essas lembranças tristes que moram aqui no meu coração, não. Tive aqui muitas alegrias e sonhos também. E, se Deus quiser, eles apenas começaram.
Sakina, que era mulher de percepção aguçada, logo entendeu o que Maria estava insinuando com alegrias e sonhos. Ergueu-se, aproximou-se dela e a abraçou carinhosamente. Depois, assentou-se ao lado e segurando as mãos de Maria, disse:
– Dona Maria, se a senhora está feliz com o que está acontecendo e se o Estobe estiver sendo sincero sobre o que anda me confessando, a senhora pode acreditar: um novo sol está raiando por aqui e, juntos, ainda seremos muito felizes.
– Deus a ouça, Sakina! Deus a ouça.
Enquanto isso, exigindo toda a atenção para si, Esberti não sossegava. Chamava pelas avós – sempre com maior preferência por Maria – e nem queria saber se estavam conversando ou não. E como a família inteira passara a viver em função dela, a atenção lhe era dada:
– Que foi, princesinha?
– Vó, compra um cachorrinho pra mim?
– E que cachorrinho você quer, minha princesinha?
– Um cachorrinho, piquininho e sem rabo.
– Ué, por que sem rabo?
– Porque acho mais bonito.
Estobe, que ouvia a conversa, retrocedeu no tempo e interferiu:
– Pode deixar, minha filha, vou procurar o cachorrinho que você quer. Mas tem uma condição: o nome dele será Biriba.
– Biliba?
– É, Biriba. Você não gosta?
– Gosto sim. Quando ele vem?
– Não sei. A partir de agora, começarei a procurar. Vocês também me ajudem, perguntando por alguém que tenha uma cadela parida com filhotinhos. Se tiverem rabo, a gente corta. Sou bom nisso, filhota.
– Mas ele vai sofrê, papai. Você não pode machucá ele não.
– Pode deixar, filha. A gente anestesia e depois tira a ponta. O rabo é fininho e ele não sentirá nada.
E mal Maria e Sakina tentavam entabular um assunto qualquer, já Esberti goelava:
– Vovó, vovó, vovóóóóóóó…

22
Quase todo mundo vive períodos instáveis na vida. Esses períodos variam de minutos a anos, e os motivos sempre se relacionam com algum acontecimento que corta a rotina que se vinha vivendo.
O ano de 1952, para Estobe, Maria, Sakina e, por que não dizer, Esberti, foi um deles. Sem exceção, todos vinham de uma fase que, embora de relativa paz e estabilidade, não oferecia nenhuma expectativa de mudança. Representavam pedras expostas ao tempo, sem qualquer transformação aparente ante as intempéries. E, se há causas de desânimo e depressão, com certeza a falta de planos, projetos e sonhos é um deles. É preciso estar, a cada dia, planejando, executando, sonhando com alguma coisa, para descarrilar a monotonia: principal causa da inoperância. Como já se disse: um homem sem sonhos é um homem morto.
Estobe, que até então via o sol nascer rolando na cama, sem sono e sem saber o que faria se se levantasse, agora, mal o velho substituto do Sabuco descia do poleiro e começava a cortejar o seu harém, ele pulava de pé, espreguiçava-se, lavava o rosto, não esquecia o desodorante, passava alguns minutos ao espelho e saía para a cozinha, sempre na esperança de que Sakina já estivesse por lá.
Maria, por sua vez, parecia ter rejuvenescido muitos anos. Dizia não estar sentindo mais qualquer incômodo físico e não deixava passar minutos sem voltar ao quarto para certificar-se de que Esberti ainda dormia e estava bem. O café com broa recheada de torresmos já estava posto, e ela, no terreiro, espalhando milho às galinhas, sempre com uma oração de agradecimento a Deus pelo fim feliz que Ele parecia ter reservado a ela. Agora sim, podia-se dizer, a fazenda – ou sítio – tinha vida. Em sua cabeça, sempre a dor de não ter ao lado o cabeçudo filósofo, seu marido. No momento ela acreditava no plano, a longo prazo, de Antônio: dar a própria vida pelo bem dos filhos, mudando para uma área devoluta e crescendo junto ao desenvolvimento. Sendo pobre, para ele essa era a única maneira honesta de crescer honestamente.

Apesar de todo o indiscutível amor, Sakina e Estobe esperaram quase um ano para se casar. A demora não fora ocasionada por qualquer dúvida de amor entre eles, e sim para deliberarem sobre o futuro. Sakina voltou a Vitória, apenas para regularizar os documentos e apanhar suas poucas coisas, que coube perfeitamente no seu Fusca: carrão sucesso em 1952.
O casamento, celebrado pelo padre Guilherme sob a sombra do mangueiral plantado no entorno da valeta – escavada por Antônio – contou com mais de uma centena de participantes: quase todos os moradores vizinhos, e os não tão vizinhos. Havia muito vinho de laranja e outros de garrafão de cinco litros, cerveja, refrigerantes e muito suco. O churrasco constava de um boi gordo inteiro, espetado pelo meio por um varão e posto sobre um grande braseiro. Duas pessoas foram necessárias para fazer o espeto rodar, assando a carne por igual. As pessoas se serviam: tomavam a grande faca amolada, iam ao boi, cortavam o pedaço que desejavam e voltavam à mesa, ou se sentavam sobre as grossas raízes expostas. A barulheira era a de centenas de psitacídeos ao amanhecer, em cima de uma fruteira carregada de frutas maduras.
Os convidados eram imigrantes italianos, ou brasileiros natos já enquadrados no barulhento sistema da convivência. Em determinado momento, padre Guilherme pediu a palavra. Fez-se silêncio tumular, porque, para os imigrantes italianos de Marilândia, onde não havia papa nem bispos, os padres eram os mais admirados e respeitados. Padre Guilherme subiu, literalmente, na mesa – já um pouco alterado pelo excesso de vinho –, empurrou com os sapatos algumas garrafas e pratos que estavam reduzindo-lhe o espaço e começou soberano:
– Vejam como são estranhos os desígnios de Deus! Não vai tão longe o tempo em que empenhei todo meu merecimento diante de Deus, para pedir a Ele que incutisse vocação neste homem que hoje faz sua opção definitiva pelo matrimônio. Fico um pouco frustrado, porque eu, escudando-me na força do Criador, perdi a briga com um diabinho de saia.
Depois de longas gargalhadas e comentários diversos, padre Guilherme retomou a palavra:
– Há horas na minha vida que fico matutando sobre todas essas coisas. Acho até que sinto inveja, porque é muito bonito ver e ter certeza da felicidade que se reflete através do brilho dos olhos de Estobe e Sakina. Confesso, ao fitar Sakina com meus olhos remelentos, que de fato há muita coisa ainda a ser descoberta sob este céu que nos encobre – que Blaise Pascal me perdoe a adaptação de sua célebre frase. Para aqueles que conheceram o primeiro “diabinho enviado” para me derrotar, a Helberti, e agora estão vendo a Sakina, sua mãe, com certeza não conseguem explicar tamanha semelhança. Não perguntei ainda – mas não deixarei escapar – qual a diferença de idade entre a mãe e a filha. Acho admirável que no mínimo 15 anos de diferença não tenham proporcionado algumas rugas, pelo menos.
Novas gargalhadas. Descobrindo que estava agradando, padre Guilherme retomou o fôlego. Afinal, com sua voz fanhosa e ainda carregada do sotaque alemão, ele fazia muitas pessoas dormirem em suas homilias aos domingos e dias santificados:
– Bem, eu reconheço a derrota. Afinal, se Deus aceitou – mesmo podendo mudar o rumo de tudo –, quem sou eu para contestar? Agora é tomar a bandeirinha, o bumbo e o pandeiro, e torcer fanaticamente por estes jogadores da vida. Antes de rezarmos unidos pela felicidade deles, quero ler a carta que me foi entregue por dona Angelina, senhora que manteve Sakina e Helberti em sua casa, lá em Vitória. Como a carta foi escrita depois que os pais souberam deste casamento, foi pedido a Azad que a entregasse para ser lida durante a cerimônia religiosa. Azad foi um dos amigos da família de Sakina que veio para o Brasil e não retornou mais ao Irã. Era ele quem informava sobre a vida da filha aqui no Espírito Santo. Ouçamos a carta traduzida por Azad:
“Filha, apesar dos rigores de nossas leis, os laços de sangue sempre falam mais alto. Tentamos sempre conciliar a lei com os laços de sangue. Por isso, por meio do Azad, que você conhece bem, sempre estivemos a par de sua vida. Soubemos de sua filha Helberti e do fim trágico dela, e estamos a par da Esberti, de quem até temos foto enviada pelo Azad. Com toda a sinceridade do mundo, não sei se colocar Alá acima de tudo – como fez Abraão ao erguer a faca para sacrificar seu filho Isaac – está valendo a pena. Sei que hoje, finalmente, você está se casando com o pai de sua neta. Bem, melhor assim. Que fique tudo em família. Nunca duvide de nossa saudade, do quanto, como sempre, nós a amamos e torcemos por sua felicidade. Conforme Azad, nesta hora em que comemora seu casamento, estará, também, tomando conhecimento desta carta. Veja nela nossa presença. Só não estamos aí porque continuamos pobres e a distância é longa e custosa. Se fechar os olhos, com certeza nos sentirá. Espero que sinta nossa presença e que, diante de nós, diga que nos perdoa pelo que fizemos a você. Desejamos toda a felicidade do mundo para você, seu esposo e para a Esberti. Muitas vezes, principalmente quando nos bate a saudade, ficamos olhando as fotos que nos chegam de Azad. Juro, nunca vi criança mais linda que a Esberti. Sei que o pai dela tem os olhos azuis, mas a minha participação também deve ser respeitada. Por isso, a inveja não é tão grande (risos). Se for a vontade de Alá, não morreremos sem voltar ao Brasil, para abraçar vocês e a futura netinha. De seus pais, Amir e Alaleh.”
– Bem – continuou Guilherme –, agora até em minha garganta alguma coisa parece intrometer-se. Por dentro também estou chorando, como está chorando Sakina, que vejo daqui soluçando. Pode chorar, mulher, porque não fomos nós que criamos os sentimentos. Eu também vivo solitário, aqui longe de minha Alemanha e de meus familiares. Amigos? Nem sei se os tenho de fato. Até que, logo que cheguei, eu os tinha, porque podia escolher a casa em que ia comer uma galinha. Agora está ficando mais difícil. Tenho a impressão de que chegou a hora de eu acreditar que os anos tornam a gente pessoas comuns, sem novidades e, acima de tudo, muito chatos e rabugentos (novas risadas e comentários).  Sobre o assunto anterior em que eu falava sobre a intransigência de algumas religiões, que penso serem mais seitas que religiões, a cada dia mais me convenço da fraqueza, do nosso lado, do Papa. Acho que já passou da hora de os seres humanos entenderem que só existe um Deus, que Ele é misericordioso e bom, e que as tantas denominações que criaram de nada servem. Deixemos isto para o sermão do próximo domingo, quando porei muitos para bocejar (novos risos).
Padre Guilherme ainda falava quando um carro pequeno parou bem em frente. É que a festa do casamento estava sendo comemorada ao lado da estrada que ligava a vila de Marilândia à vila de Liberdade, e terminava bem no sopé das grandes pedras em que, um dia, Nego foi salvo por Estobe e Biriba. Dele um casal desceu, portando uma pequena mala: era Laura e seu marido, o advogado criminal, Leandro. Eles haviam prometido que viriam para o casamento, mas houve imprevistos e perderam o casamento religioso. No entanto – como dizem os incrédulos – o melhor da festa estava no auge.
Tendo reconhecido a filha, Maria adiantou-se, sendo seguida pelos familiares. Padre Guilherme só teve tempo de anunciar o “tenho dito”, porque a chegada dos convidados tirou-lhe a atenção dos presentes. Não deve ter gostado, porque ultimamente ocasiões parecidas haviam se tornado raras. Depois de tantos anos falando todos os dias para as mesmas pessoas, convenhamos, não estava sendo nada fácil prender a atenção dos fiéis. Hoje estava sendo um dia especial, porque Guilherme havia fugido da seriedade e posto à prova o seu lado liberal. Ficou, pelo menos, a lição:  iria preparar histórias e piadas para inserir nos seus novos sermões.

Ao se porem frente a frente, numa distância de aproximadamente 10 metros, Laura começou a correr e, ao abraçar a mãe, a queda foi inevitável. E ali mesmo no chão – com muitos preocupados em erguê-las – elas se beijavam e choravam de alegria e saudade:
– Oh, mãe, quanta saudade, minha mãezinha!
Maria não falava nada, porque a voz estava embargada pela emoção. Estobe, Sakina e mais alguns trataram de reerguê-las e limpar as partes da roupa empoeirada. Tiveram de fazê-lo com as duas agarradas. Leandro, ao lado, via-se fora do contexto, enquanto Estobe e Sakina aguardavam pacientemente. O choro de Laura aumentou quando Esberti – como sempre, linda e graciosa – aproximou-se, agarrou a saia de Laura e, olhando para cima, mostrou os límpidos olhinhos azuis: retoque final de mais uma obra-prima dos céus, porque Esberti era, de fato, um anjo de Deus:
– Meus Deus! Estobe, “é de verdade”?
Enfim, abraçando Laura com força excessiva, ele pilheriou:
– Fiz o que pude, fiz o que pude! Aguarde o próximo, que já foi encomendado.
Padre Guilherme – abusando do dom humorístico que descobrira em si – talvez tenha exagerado:
– Êpa, não me lembro de você ter confessado este pecado.
Pelo menos Leandro riu, e isto já lhe bastava. Nem Estobe deixou barato:
– Olha o segredo da confissão, padre Guilherme!
Enquanto isso acontecia, a festa parecia animar-se a cada hora que passava. Havia vinho e carne para uma semana, e poucas etnias, no mundo, equiparam-se à italiana na demonstração de alegria depois de algumas garrafas de vinho.
A tarde caiu, a noite chegou, a Lua apareceu por cima do dossel da floresta entre os morros do leste, e a folia continuava. Já o clarão do luar cedia lugar à chegada do Sol, quando as moretinas e os folclores peninsulares enfraqueceram. As montarias começaram a ganhar estrada, os “tchau compadre” formalizando as despedidas e, de repente, somente a família de Estobe e Maria se viu solitária, entre dezenas de cães vindos da vizinhança, para a limpeza das sobras. Para qualquer lugar que se olhasse, eram copos, pratos, panelas…, tanto em cima das mesas como espalhados pelo chão.
Tendo o último convidado se despedido, Estobe complementou:
– Bem, pelo menos não preciso me preocupar com as dormidas. Estou certo de que nem eu conseguirei ficar de pé por mais muito tempo. Que Sakina não duvide de minha virilidade.
Sakina, que não desgarrava, arrefeceu:
– Poderei até reclamar do excesso, jamais da falta.
– Que seja assim enquanto durar – complementou Estobe.
E fazendo os últimos comentários, foram descendo até à casa de Maria que, por sinal, ficava a apenas um terreiro do local. Laura – aproveitando que Esberti dormia – não desgrudava da mãe. Percebia-se que precisava desabafar, contar para ela sobre a angústia que a afligia. Maria percebeu e antes que ela entrasse no quarto, acalmou-a:
– Sossegue, filha! Fique tranquila. Teremos o resto da vida para descontar todo esse tempo que estivemos separadas.
– Está certo, mãe! Vamos descansar um pouco. O Sol já aparece, mas, para nós, que seja a Lua. Boa noite.

Já muito sacrificada pelas agruras da vida, pelos anos vividos e o extremo cansaço dos três últimos dias, Maria deitou-se, mas não conseguiu dormir. Eram informações demais para sua cabeça. Deitada de barriga para cima, olhava as tabuinhas de madeira que substituíam as telhas que, quando a casa foi construída, não existiam por lá. Entre as frestas laterais já se percebia tênue claridade: indicativa de que o Sol despontava. Na caminha ao lado, Esberti ressonava cheia de paz.
Maria não via a hora de levantar-se, mas não queria fazer qualquer barulho que impedisse o descanso dos que também perderam a noite e que não estavam vivendo as suas emoções, pelo menos com tanta intensidade.
E quando se está com insônia, o jeito que tem é pensar, lembrar, deduzir, fazer planos, rezar, enfim, tentar distrair o cérebro para que ele permita o descanso do corpo. Agora, Maria retornava à infância. Vestidinho comprido, descalça, cabelo desgrenhado, sempre sentindo muito frio e quase sempre levando boas palmadas para que tomasse banho. E como não há infância sem a figura da mãe, era ela que agora entrava em cena. Avental surrado, a cabeça coberta com uma espécie de turbante, quase sempre descalça, do amanhecer ao anoitecer cuidando das criações, da arrumação da casa, do almoço e demais refeições…
Nesse tempo, as imigrantes italianas eram uma espécie de escravas, sem direito sequer de reclamar. Maria lembrava perfeitamente disso, mesmo porque ela não fora muito diferente, pelo menos até o falecimento do marido. Antônio não a maltratava, mas as ideias e as opiniões dela não tinham qualquer peso na decisão final. Assim ela vira em sua mãe; assim aprendeu e suportou a maior parte de sua vida. Nunca reclamou, porque jamais duvidou de cada palavra da Bíblia. Para ela, do Gênesis ao Apocalipse, tudo era sumariamente verdadeiro, inclusive a submissão das mulheres.
Agora, depois de velha, via-se até desacostumada a opinar, mesmo quando Estobe solicitava. Sentia-se valorizada e estava feliz, porque, mesmo em idade avançada, conseguia fazer planos. E eram essas mudanças todas que agora a premiavam com aquela insônia. Era como se o momento oferecesse a ela a oportunidade de usufruir cada segundo que ainda lhe restava. Procurar calmantes, nem pensar. Primeiro porque não os tinha; segundo, porque sempre fora contrária ao uso de soníferos. Tinha certeza de que, quando seu corpo precisasse de descanso, o sono chegaria.

23
Levando-se em conta que a noite fora perdida, nada mais coerente do que supor que ali, naquela casa, ninguém acordaria antes do meio-dia. Só que o galo, que dormira a maior parte da noite, manteve seu costumeiro horário e já estava a perseguir as galinhas que se faziam de rogadas. Ele cacarejava, cantava, batia as asas, enfim, dava todas as demonstrações de que era o dono daquele pedaço. Não bastasse, os bezerros, que também nada tinham a ver com a festa dos patrões, reclamavam o desjejum, presos que estavam no curral. As mães, emitindo o curto berro costumeiro, pediam paciência, mas eles não concordavam.
Para sorte dos afoitos que protestavam, Esberti começou a correr pela casa, batendo as portas, chamando repetidamente pelas avós e pelo pai. Como sempre fora paparicada, ela não admitia deixar de ser atendida prontamente.
Maria, mesmo bocejando, saiu da cama e foi atendê-la. Pedir silêncio, tentar incutir na cabecinha da neta que precisava respeitar o cansaço dos que ainda dormiam era inútil. Na esperança de diminuir “o barulho da sirene”, Maria convenceu Esberti a ajudá-la a preparar o desjejum: ela vivia perturbando todo mundo, sempre com a justificativa de ajudar. Era uma criança ativa, inquieta, inquiridora:
– Vovó, me dá o leite e o ovo pra mim batê a massa.
E a avó – mais para ganhar tempo e acalmar a “auxiliar” do que usufruir da ajuda – passava a ela uma pequena bacia de plástico, um ovo e um pouco de leite misturado a um canecão com água – apenas para que o líquido apresentasse coloração de leite. E logo ela queria o fubá, e Maria lhe passava meio litro da farinha de milho, já sem muita culpabilidade de desperdício, porque logo seria repassado à choca que, a esta altura, já estava ciscando perto na varanda.
Laura, que vivia um tempo quase desesperador de instabilidade emocional e que, por isso mesmo, não pregara os olhos até então, percebendo que a mãe já havia levantado, apressou-se em desfazer-se da coberta de retalhos, e foi para a cozinha. E mal deu bom-dia à mãe e à sobrinha, foi direta ao assunto:
– Mãe, a senhora talvez estranhe minha pressa, mas o problema não é de agora: há mais de um ano eu estou sofrendo.
– Que foi, filha?! Não é feliz com o Leandro?
– Não, mãe, não sou. Casamento sem filhos, para mim não é casamento.
– E por que não tem filhos?
– Porque o Leandro é aquele tipo de machista que acha humilhante procurar um médico para saber de quem é o problema.
– E você, tem certeza que o problema não é seu?
– Tenho, mãe. Mesmo às escondidas, fiz todos os exames e eles constataram que sou inteiramente normal. Então, insisti para que ele fizesse também, mas ele se nega veementemente.
Nisto Estobe, que também pouco dormira, entrou na cozinha. Somente Leandro e Sakina permaneciam nos quartos. Laura olhou para lá, afinou os ouvidos, e tendo notado completo silêncio, baixou a voz e inteirou Estobe sobre o que ela e a mãe estavam conversando. Adiantando logo a conversa, ela abriu o jogo:
– Estobe, ainda não disse isto à mamãe, mas não pretendo retornar com Leandro para minha casa.
– Ora, mas isto não é problema. Você passa o tempo que quiser aqui com a gente e depois retorna. Que mal há nisto?
– Você não entendeu. Eu quero ficar para sempre.
Maria, que ainda não havia entendido a que ponto a filha queria chegar, assustou-se:
– Minha filha, você sabe que fomos criados sob o peso de uma moral religiosa rígida, em que as promessas do altar nunca podem ser desprezadas. A união deve ser para sempre.
– Mãe, contra todos os princípios morais e religiosos, eu não irei retornar para Vitória. Em miúdos: se Leandro não se submeter a um tratamento médico rigoroso, não abrirei mão. Não fosse este bendito casamento do Estobe, eu iria aparecer aqui sozinha, pode acreditar.
– Estobe, que já estava com seu canecão de café com leite e um bom naco de broa de fubá no prato, percebendo a decisão irremediável da irmã, nem tentou ponderar. Simplesmente se levantou, abraçou a irmã e sentenciou:
– No prato em que comem quatro, comem cinco, mana. É bom mesmo que fique, porque é mais uma para fortalecer nossa família. Qualquer braço que for acrescentado, melhor será para desenvolver nosso projeto de crescer e viver feliz por aqui mesmo. Aliás, não tenho mais dúvidas de que este vale é abençoado. Sakina veio me mostrar a filha, e nem voltar para buscar os pertences ela queria mais. Se quer saber, esta foi a melhor notícia que recebi depois do casamento, apesar de ele ter sido ontem. Acho que não terei outra melhor por muito tempo.
– Filha – continuou Maria –, você ficando aqui, minha felicidade será completa. Nunca imaginei que pudesse ser feliz nesta idade. Muitas vezes me questionei sobre ter valido a pena, ou não, ter acompanhado seu pai aqui para estas matas. Seu pai acreditava sumariamente que, sendo pobre e honesto, o único jeito de crescer era fazendo o que ele fez: meter-se nas matas e esperar o tempo passar. E esse tempo, meus filhos, acho que chegou. No entanto, apesar de minha felicidade com tantas coisas boas acontecendo, meu coração se enche de ansiedade quando penso na hora de você dizer ao Leandro que não irá voltar.
– Ele terá de aceitar, mãe. Ele é apenas o meu marido, não o meu dono.
E Estobe aquiesceu:
– O que importa é sua decisão, mana. Quanto a ele, não há outra alternativa: terá de aceitar, porque o tempo da escravidão já passou.
– Tenho medo da reação dele, filho. E se ele bater o pé e disser que Laura terá de voltar por bem ou por mal?
– Neste caso, eu direi a ele que também eu tenho minhas regras e que ele terá de abandonar o barco, ou será jogado ao mar. Não acredito que ele seja mais homem do que eu.
– Pelo amor de Deus! Que coisa tão boa não se transforme em coisa tão ruim.
– Vai acontecer não, mãe. Fique calma. Contudo, para evitar espicaçar a fera, vamos tentar apenas enxotá-la com carinho.
– Como assim?
– Eu mesmo direi a ele que Laura quer passar um mês aqui em casa, porque os anos sem ver a mãe criaram uma saudade que não se acaba em alguns dias apenas. Depois, quando estiver próximo do dia de ir, a gente abre o jogo.
– É, mãe, acho que vai dar certo. Eu gosto dele, mas quero um filho ou, pelo menos, a demonstração dele de que também o quer. Se ele se submeter ao tratamento e os médicos concluírem que o caso dele é irreversível, é até possível que eu abdique da minha felicidade em prol do juramento que fiz no altar.
– Não, mana, você irá ter seu filho. Se ele for estéril, terá de compreender.
Maria, que ouvia toda a conversa, tentando responder às constantes curiosidades de Esberti, numa das folgas da neta entrou novamente na conversa:
– Sei que para vocês jovens o que vou dizer não tem lá tanta importância, mas é que fui criada na religião católica: uma vez casada, casada até à morte.
– Mãe, para a senhora esta é a verdade, e se a senhora tivesse largado o papai tendo este entendimento no coração, com certeza estaria cometendo um pecado grave. A gente é julgado por aquilo que acredita, mãe! Eu vou à missa todos os domingos, rezo meu terço e muito me esforço para ser uma esposa ideal. Mas há uma diferença em nossa compreensão, mãe: eu acredito que Deus me fez para ser feliz, e eu não estou sendo. Depois, considero minha decisão justa e sei que Deus a aprova. Lembra do que disse Deus ao criar o homem? “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra.” Minha consciência está tranquila, mãe, e isto é o que importa. Cedo aprendi que ela é a voz de Deus e que nunca nos aconselha o caminho errado. A senhora sabe que a gente nunca tem dúvida sobre a decisão a tomar; às vezes há dúvidas sim, mas sempre porque nosso interesse tenta ludibriá-la. Ela, porém, num segundo nos mostra o caminho.
– Que assim seja, filha, porque é exatamente isto que agora está acontecendo comigo. Espero não estar me iludindo ao decidir que minha consciência apoia sua permanência aqui. Talvez seja egoísmo de minha parte, mas isto me fará a velha mais feliz deste mundo.
– Se a felicidade da senhora for tão fácil assim de ser alcançada, pode estar certa: a senhora já é a velha mais feliz deste mundo.
– Vó, vó, vó, vóóóóóóóó!
Apesar de Maria, em cada “vó” responder “oi”, Esberti insistia chamando por ela. Isto já virara rotina:
– Vó, vó… Olha pra mim!
Maria então olhou, e aí, com a certeza de que toda a atenção lhe era dirigida, Esberti complementou:
– Eu quero cuiscuis com ovo.
– Agora mesmo, minha princesinha do coração. A vovó faz tudo o que você quer.
Apesar do primeiro acordo, Esberti não se calava, chamando incessantemente pela avó. Laura olhava aquilo e só Deus para avaliar a santa inveja que lhe povoava o coração. Por fim, ela desabafou:
– Estobe, não precisa que seja assim tão linda. Não precisa ter os olhos azuis. Quero apenas que seja minha filha.
Laura olhava fixamente para Esberti, e de seus olhos lágrimas desciam. De fato, a maioria das mulheres só encontra a felicidade plena na maternidade. E não importa nem que os filhos venham saudáveis. Elas sentem necessidade de ouvir aqueles pedacinhos de si, totalmente dependentes, chamá-las de mãe.
Enquanto Maria, “com a ajuda de Esberti”, cuidava do almoço, Laura e Estobe saíram ao terreiro. Ali, mais livremente, eles traçaram todos os planos. Aos poucos, aquele olhar triste de Laura ia tomando brilho e alegria. Laura, como Estobe, tinha os olhos azuis, porém os dela ainda eram mais bonitos. Sempre que o assunto propiciava, Estobe reclamava desta preferência da genética por ela. Maria achava graça e dizia que nunca opinara sobre a cor dos olhos deles. Estobe bem sabia disto e apenas falava para agradar a irmã.
Andando aleatoriamente, Estobe e Laura foram ao local da festa, que distava apenas 60 metros da casa. Chutando copos sujos e enxotando alguns cachorros que insistiam na limpeza da ossada e carnes descartadas, espalhadas por todo canto, foram sentar-se na mesa fixa sob as mangueiras, rente à valeta do moinho. Então Laura, como toda mulher curiosa, perguntou:
– Mano, por favor, me explique esta de você se casar com a avó de sua filha? Ela é linda, educada e até sensual demais para uma avó, mas como tudo isto aconteceu?
– Laura, minha cara, a história é longa. Acho que precisarei de uns bons meses para lhe contar tudo o que aconteceu durante o tempo em que se casou e se mudou. Até hoje, já aqui com a aliança no dedo e sentindo que é verdade, ainda tenho lampejos de dúvidas, imaginando que estou sonhando. Não acredito que haja, no mundo, um homem mais feliz do que eu hoje. É, hoje, porque eu vivia deprimido, as lavouras abandonadas, nossa mãe doente… Não gosto nem de lembrar. Já não via qualquer motivo para viver, quando, de repente, o ônibus parou bem ali e dele desceu uma mulher com uma criança no colo. Pensei que era uma mulher qualquer, que houvesse parado ali para pedir informação. Mas não era. Era um presente que Deus mandara me entregar. Aliás, dois presentes.

Lá pelas 11 horas, Leandro apareceu na varanda da casa. Espreguiçou-se, viu Estobe e Laura conversando sob a mangueira, voltou para a cozinha e, depois de uns 15 minutos, retornou à varanda. Havia tomado café e, lentamente, caminhava em direção à Laura e ao Estobe. Sakina continuava dormindo, e Maria, às voltas com as mil perguntas da netinha. Fosse qual fosse a observação da avó, ou a resposta que dava às inocentes perguntas de Esberti, sempre vinha a contrapartida:
– Por quê?
E Maria desmanchava-se em criatividade para explicar, e quando terminava, novamente a pergunta:
– Por quê?
E assim era o dia todo, desde a hora em que ela pulava da cama até às 23 horas. E Maria, já cansada dos serviços e dos anos, deitava-a a seu lado, ficava coçando a barriguinha dela e inventando histórias. Se no outro dia alguém perguntasse a que hora Esberti dormira, Maria não sabia. Havia vezes em que Maria dormia primeiro que ela.
Sakina perdera a preferência. Quando muito, recebia um abraço rápido. Estobe tentava, de todo jeito, atrair a simpatia da filha, mas Maria era soberana. E a razão era até simples: Esberti amava “ajudar a vovó” e nada Maria fazia sem que ela estivesse colada e dizendo que estava ajudando. É claro que, em certos preparos, Esberti mais sujava do que limpava, mas era uma criança, a mais amada do mundo e, para ela, tudo se tornava permitido.

Leandro aproximou-se de Estobe e Laura, cumprimentou-os educadamente e foi direto ao que lhe interessava:
– Laura, viajamos hoje ou amanhã?
Laura olhou para Estobe como a pedir socorro e o irmão atendeu prontamente:
– Caro cunhado, precisamos conversar. Eu não sei o quanto a Laura lhe é imprescindível lá em Vitória, mas, ainda que assim seja, queremos pedir sua compreensão, permitindo que ela fique aqui conosco pelo menos por mais uns 30 dias. Você sabe os tantos anos que ela não vinha nos visitar, e apenas dois dias não darão para matar a saudade. Nós estávamos exatamente falando sobre isso.
– Eu gostaria muito de concordar, mas no momento não será possível. Tenho muitos compromissos na próxima semana e preciso, ao chegar em casa, encontrar tudo certinho. Agora, quem pede a compreensão de vocês sou eu.
– Bem, cunhado, assim a coisa vai ficar mais difícil, porque Laura queria, por bem, que você concordasse.
– Não vai ser possível, já disse.
– Disse-o bem, caro cunhado: não será possível. Ela já decidiu que não voltará enquanto você não fizer o tratamento de sua infertilidade. Ela já fez todos os exames, constatando ser uma mulher normal. Portanto, você precisará fazer o mesmo, se é que quer a mulher de volta.
– Você está esquecendo que ela é minha mulher e tem o compromisso de me seguir sempre, conforme juramento no altar.
– A partir de hoje, este alegado compromisso acabou. Agora, quem diz sou eu: ela não voltará nem hoje, nem amanhã; e caso você insista em não se tratar, não a terá mais nunca. Acho que fui claro, não?
– Ela irá, nem que seja arrastada.
– Não queria que nossa conversa chegasse a este ponto, mas já que chegou, eu aceito o desafio. Você diz que ela irá; eu digo que ela não irá. E, como faziam antigamente, dou a você a escolha das armas.
Vendo que o desentendimento chegara mais rápido do que imaginava, Laura assustou-se:
– Pelo amor de Deus, gente! Vocês são civilizados e como civilizados devem resolver o impasse conversando.
– Não há impasse: você irá comigo e o assunto está encerrado.
– Pois eu o contradigo: ela não irá com você e, também dou o assunto por encerrado. E como não há mais clima para sua permanência em minha casa, agradeço ter vindo ao meu casamento e sugiro que vá embora.
Estobe disse isto e pôs a mão esquerda sobre o ombro de Laura:
– Mana, é assim mesmo, não se preocupe. Eu sabia que esta conversa não terminaria de outra maneira, por isso não “rodeei o toco”. Ele não será homem para arrastá-la para o carro, mesmo porque, para fazer isto, terá de passar por cima de meu cadáver.
Leandro saiu bufando, pegou a sua bagagem, jogou-a dentro do carro, relinchou os pneus e foi embora. Antes, porém, pôs a cabeça para fora e sentenciou:
– Vocês não pensem que venceram. Me aguardem.
– Leandro, você não acha que está indo longe demais, não? Afinal, você se casou para formar uma família, ou para ter em casa uma empregada sem ônus? Pelo que vejo, você fica com a segunda opção, e se assim for, continuarei aguardando você. Lamento. Sinceramente lamento termos chegado a este ponto. Se você fosse um pouco mais compreensivo, tudo sairia muito bem. Laura gosta de você, mas reclama por ser irredutível e teimoso. Afinal, que custaria fazer os exames? Por acaso você se acharia culpado se fosse infértil para gerar um filho? Há milhões de casos semelhantes. Ainda mais quando ela me disse que continuaria com você mesmo que o problema não tivesse solução.  Há milhares de crianças órfãs por aí, e vocês poderiam adotar uma.
– O que eu disse continua valendo, Estobe. Reafirmo que isto não continuará assim. Ela é minha mulher e deve me seguir e me ouvir.
– Meu caro, o tempo em que as mulheres eram apenas objetos já passou. Agora elas estão voltando a “ser gente” e precisam de carinho, compreensão. Se você a quer apenas como “empregada”, lamento dizer, pode arranjar outra. Há muitas desempregadas esperando por esta oportunidade.
– A sua opinião pouco me interessa. Você que se mostra tão sabido… Por que não aprendeu, também, o velho ditado que diz que em briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher?
– Conheço este dizer, sim, e nunca me meti em casamento de amigos ou de estranhos. Aqui, no entanto, envolve minha irmã e irei defender a felicidade dela, custe o que custar.
– Pois então se previna, porque vai lhe custar bastante.
– Leandro, não esqueça também aquela outra máxima que aconselha precaução, para que o feitiço não recaia sobre o feiticeiro. Só há uma parte de que não gosto: o adiamento. Por acaso você não quer decidir isto agora mesmo? Estamos aqui, um ao lado do outro. Não quer decidir agora?
Leandro proferiu um palavrão, acelerou o carro e se perdeu numa nuvem de poeira.
Mal a poeira baixou, Laura pulou no pescoço de Estobe e ficou por tanto tempo agarrada, que Maria, que olhava de esguelha lá da varanda, preocupou-se:
– Que está acontecendo, filhos?
– Nada não, mãe. Tudo isto é para que tenha a certeza de que, a partir de agora, a senhora é a velha mais feliz deste mundo.
Ao ouvir aquilo, Maria, sempre com Esberti pendurada à saia, foi encontrá-los. Sakina, que já estava de pé, também preocupada com o que estava acontecendo, acorreu lepidamente. E o que se viu a seguir foram cinco criaturas vivendo, quem sabe, os primeiros dias de intensa felicidade.

24
Em 1969, os habitantes de Marilândia – ao menos os mais interessados em se situar diante dos acontecimentos do mundo – já podiam saber, por meio de jornais impressos e falado, o que se passava no Espírito Santo, no Brasil e no mundo. O velho costume dos tempos primeiros, na casa de Antônio e Maria, continuava o mesmo. O hábito das pessoas de, após o jantar, dirigirem-se para lá para ouvir o Jornal Nacional e as novelas, continuava inalterado. O rádio era o mesmo da época em que Antônio inaugurou a energia elétrica.
Em Marilândia havia o Notícias do Vale: um caderno colado num mural do coreto, ao lado do cinema Bérgami. Orlando, o jornalista que o criara, buscava informações e as publicava com as palavras dele. Às vezes era preciso entrar na fila para ler, porque todas as manhãs as pessoas – mormente as mais preocupadas com o futuro – estavam a postos. As notícias normalmente vinham de Colatina, da Folha do Norte e de O Colatinense. Orlando as lia e as adaptava para o povo da Vila. No momento, o caderno falava sobre Moacir Brotas que, sem qualquer motivo que justificasse, começou a ser perseguido pelo regime militar, chegando ao ponto de ser cassado. Por não aceitar a, para ele, injustiça, caiu em depressão, falecendo três anos depois, vítima de uma trombose.
Notícias assim, nesse tempo, deixavam os imigrantes italianos abalados, e durante semanas os comentários e as deduções eram as mais diversas. É que Moacir Brotas sempre dera mostras de honestidade e trabalho, e tinha como descanso a vila de Marilândia.
Maria, que antes da chegada de Sakina e Esberti vivia desmotivada, depressiva e muito doente – demonstrando que não viveria por mais muito tempo – agora, com 82 anos, parecia rejuvenescida. E melhor ficou com a separação de Laura e Leandro.
A bem da verdade, depois das ameaças de Leandro – no dia em que ele precisou retornar sozinho, diante da intromissão de Estobe, fortalecendo a decisão da irmã em não acompanhá-lo – para ambos significou quase três anos de angustiosa expectativa. A troca de insultos fora deseducada e todos conheciam o temperamento vingativo de Leandro. Ninguém acreditava que o arguto advogado, proverbial em não perder questões, iria se dar por vencido. Estobe chegou a andar armado por mais de um ano, prevenindo-se de alguma visita inesperada. Felizmente, antes que se completassem três anos, duas grandes malas chegaram, tendo dentro todos os pertences de Laura e farta documentação, dando à Laura o divórcio, e a ele todos os direitos a tudo o quanto, juntos, haviam adquirido.
Laura, depois de pedir a Estobe que examinasse os documentos enviados, felicíssima da vida, assinou tudo. A bem da verdade, ela já vinha sendo cortejada por um jovem viúvo, amigo e vizinho de terras de Estobe. Chamava-se José e perdera mulher e filho num parto complicado.
Com o divórcio conseguido, ela e José não demoraram em ir ao cartório e legalizar a união. Nove meses depois, o primeiro filho nasceu, também de olhos azuis como os da mãe. Aparentemente não cresceria uma Esberti, mesmo porque outra Esberti talvez fosse, senão impossível, ao menos muito difícil aparecer. Todavia, ser um menino normal já lhe era suficiente para ter a certeza de que Deus ouvira suas orações. O menino foi batizado – a pedido de Estobe – com o nome de Leno, que era o primeiro e verdadeiro nome de Nego, seu inesquecível e saudoso amigo.
Maria, que viveu adoentada até à chegada de Sakina, desde então parecia restabelecida, cheia de vida e de felicidade. Com Esberti comunicando-se quinzenalmente e agora com Leno sempre faminto e inquieto, ela se sentia útil e sempre solicitada. As broas diárias eram o carro-chefe. Seu passado era-lhe merecido salvo-conduto. Afinal, os dois marmanjões, representados agora por Laura e Estobe, foram criados dentro da mata, medicados com macaé, chapéu-de-couro, arnica, cidreira, o terrível boldo e mais uma dezena de outras ervas medicinais. Isto lhe conferia o diploma incontestável de quem se formara na escola da vida.
Na verdade, a cura se dava graças à defesa do próprio organismo, sacramentada pela fé inabalável de Maria em Nossa Senhora. Na cabeceira da cama de Maria, com as contas dos ora-pro-nóbis desgastadas pelo constante uso, permanecia o terço que ganhara da mãe quando deixou Ribeirão do Cristo, no sul do Estado, para se embrenhar nas matas do norte do Espírito Santo. Maria, em suas retrospectivas, nunca esquecia de enfatizar as lembranças do marido teimoso e persistente. Antônio pagou com a vida; Maria sofreu muito, viveu momentos de angústia e depressão, e agora, sem a presença do marido, desfrutava da premonição dele. Só Deus sabia o quanto ela desejava tê-lo presente, para que vivesse, também, a felicidade que ela estava vivendo. Muitas vezes ele sonhara com o momento que toda família vivia, mas, como Moisés, por algum desejo de Deus, Antônio não receberia a graça de pisar na “Terra Prometida”. Antônio não tinha maldade e, com a morte, foi para o céu, mas foi Maria, fazendo as vezes de Josué, que viu os planos de Antônio se concretizarem na plena felicidade de uma família unida e, podia-se dizer, cheia de paz.
Esberti continuava no Rio de Janeiro, concluindo o curso de medicina e vivendo dentro dos hospitais, porque queria iniciar seus trabalhos inteiramente consciente. Não se cansava de escrever cartas e enviar questionários. Um dia, enquanto jantavam, Maria perguntou a Estobe se ele sabia o motivo daquele comportamento de Esberti:
– Mãe, Esberti foi criada pela senhora e da senhora herdou toda a fé que a senhora tem. Ela não se prende a dinheiro e nem tem a ambição de ficar milionária. Quer exercer a medicina apenas como meio de sobrevivência, sem jamais deixar de atender quem quer que seja, sem se importar se a pessoa vai pagar ou não a consulta. Ela diz amar a terra que papai comprou, e insiste em dizer que aqui quer morrer um dia. Ela me mandou a planta de um pequeno hospital, que deverá ser construído no lugar daquela nossa casa lá de Marilândia, que nunca foi vendida. Quer que seja simples: um consultório/escritório com uma máquina de escrever, uma cozinha, uma sala de espera, três quartos grandes com várias camas para internação, um com duas camas – uma para ela e outra para a senhora – uma farmácia e um laboratório. Tudo simples e funcional.
– Mas, e estes questionários que ela vive pedindo que eu responda? O que ela quer com isto?
– Mãe, talvez a senhora sonhasse com uma neta emproada, toda de branco, desfilando por corredores de grandes hospitais… Comportamento que vemos muitas vezes em alguns médicos. Mas Esberti foi criada pela senhora, não se esqueça. Ela quer fazer o bem e, não bastasse, está se formando em medicina apenas para ajudar as pessoas. Fala-me sempre que a vocação que ela sente forte no coração é a de ser escritora. Tanto quanto ajudar as pessoas, ela quer imortalizar a vida, principalmente do papai e da senhora. É claro que eu, a Laura e todos que compusemos e ainda compomos esta história, deveremos constar. Hoje, segundo ela, o tempo é dividido entre a faculdade e as constantes leituras sobre Literatura. A senhora sabe como é conviver com certas dependências! Lembro quando comecei a namorar Helberti: ela era tudo para mim. Dia, noite, chuva, sol, serviço, cansaço… bem, a senhora viu, não preciso ficar explicando.
– E como vi!
Sakina, que até então apenas ouvia, sem ciúmes, observou:
– Fico feliz que tenha amado tanto a minha filha!
– Um pouco mais afoito que a você, minha querida. Afinal, ela foi a primeira. Mas você sabe o quanto gosto também de você, não sabe?
– Sei sim, não posso reclamar.
– E eu, muito menos! Quando desembarcou aqui, sinceramente, eu já não tinha mais qualquer motivo para sonhar. Você me devolveu o prazer de viver. Lembra como estavam estas terras quando aqui chegou? E hoje, como está? Você foi uma bênção de Deus para mim, Sakina. Tornou-se minha sombra e nela pretendo descansar até meu último dia de vida.
Terminado o ajuste daquela declaração de Estobe, possivelmente fora de hora, Maria fez mais uma pergunta:
– Então, é intenção de Esberti escrever nossa história?
– É sim, mãe. Mas não será apenas nossa história, mas a de toda esta gente pioneira que ainda hoje vive na região.
– Tenho pena dela, meu filho! Afinal, onde ela vai encontrar inspiração para tornar a vida de uma família italiana – cuja única bravura foi sobreviver mais de três décadas dentro da mata – interessante e digna de ser lida?
– Mãe, não se esqueça: comparar o ontem com o agora é motivo mais que suficiente para um bom escritor formar uma história. A senhora sabe que a vida de cada ser humano, se descrita fielmente, tem enrustida um best-seller, basta apenas um bom escritor passá-la para o papel.
– Sim, filho, um bom escritor, mas somente agora estou sabendo que Esberti pretende escrever seu primeiro livro. E não faz muito tempo que li, numa folha de papel avulsa, que quase todos os escritores, depois que acabam ficando famosos, gostariam muito de não ter lançado o primeiro livro.
– É verdade, mãe! Em contrapartida, são os livros mais procurados depois da morte do autor. A razão até me parece simples. No primeiro livro, o autor deve cometer deslizes ocasionados pela falta de experiência. Assim, ao relê-lo, ele percebe que determinadas páginas ficariam bem melhores se fossem escritas com o conhecimento do momento atual. Os historiadores e os críticos, apesar de reconhecerem que a obra poderia ter sido melhor, levam muito em conta a evolução do escritor. Bem, quem somos nós para tentar dissuadi-la desse intento? Pelo contrário: vamos incentivá-la, fornecendo todos os dados necessários para que ela leve o projeto adiante. Convenhamos, mamãe: lutamos e devemos ser humildes, mas a vaidade de termos nossos nomes eternizados num livro irá nos fazer muito bem.
Sakina, que boquiaberta ouvia a conversa, interferiu:
– Será que vai sobrar uma linha do livro para mim?
– Ninguém ficará de fora, cunhada – disse Laura, levantando-se para atender Leno, que xingava por ter dado uma topada numa raiz da mangueira.
Maria aproveitou a deixa e fustigou Estobe:
– E o seu e o de Sakina nunca veio, não é Estobe?
– Já que a senhora puxou o assunto, mãe, devemos dizer que eu e Sakina nunca evitamos. Como tive Esberti, imagino que o problema não é meu…
– E como Helberti não veio do Espírito Santo, imagino que também meu não é o problema – defendeu-se Sakina.
– Sabe, mãe, eu e Sakina, logo que nos casamos, falamos sobre isto. Não nos acusamos, nem nunca fugimos das ocasiões de termos um filho. Deixamos por conta da natureza. Afinal, naquele tempo ela estava com quase 40 anos, e isto deve ter influenciado. Depois de tudo, ela não se chama Sara, nem eu, Abraão. Ficamos naquela: se Deus mandar, bem; se não mandar, amém.
– É, hoje só mesmo um milagre! Ficaram no amém – disse isso e sorriu com prazer.
Laura chegou com Leno lamuriento, tendo uma unha do dedão do pé estremecida. Como filho legítimo de italianos, qualquer desconforto sempre era motivo de lamentações exageradas. Mas, vendo o canecão de café com leite posto e a broa ainda fumegando no tabuleiro, parou de reclamar. Laura dizia que ele puxara o pai, mas Maria preferia dividir a responsabilidade, porque não esquecia as carreiras que dava em Laura todas as vezes que coalhava o leite para fazer queijo. Leno, nesse tempo, era ainda muito jovem. Frequentava o colégio, mas apenas para agradar aos pais. Detestava fazer tarefas, mas amava trabalhar nos cafezais. Acompanhava sempre o pai em suas incansáveis andanças pelas lavouras. Um dia, sendo questionado sobre sua aversão aos livros e cadernos, justificou-se:
– Vou estudar pra quê? É, diga aí, pra quê que vou estudar?
– Ora, para se dar bem na vida, filho – respondeu Laura.
– Ué, que estudo tem o papai? Mal sabe assinar o nome e, no entanto, é rico. Sou o único filho de vocês, não sou? Papai já está com 58 anos de idade. Eu não preciso estudar: apenas aprender a cuidar disto tudo que ele conseguiu.
– Bem, até faz sentido, filho, mas uma pessoa estudada é diferente. Fala diferente, age diferente, sabe se comportar diante de qualquer autoridade…
– Ah, mãe, tenha dó, né? Se preciso de um médico e eu pago a consulta, se preciso de um documento e eu pago o que o cartório cobra… bem, quem tem dinheiro, só precisa mesmo é enfiar a mão no bolso e pegar nele. O dinheiro de quem fala feio é o mesmo de quem fala bonito.
E Laura, que nem podia imaginar ficar longe do filho, enviando-o a bons colégios da capital, desconversava, satisfeita em pelo menos ter repetido o que tantas mães repetem a seus filhos. Afinal, se todos se formassem, quem iria cuidar das lavouras, varrer as ruas, carregar os pesados fardos?
José nem perdia tempo em discutir o futuro do filho. Duas razões o levavam a aceitar a escolha do filho, mesmo porque a opção dele era exatamente o que ele pediria se fosse inquirido. Todo pai se sente feliz quando o filho ou os filhos dão continuidade à profissão dele. Nunca os boatos sobre a tecnologia moderna atraíram Leno, mas se passasse um cavalo bonito e fogoso na estrada, ele ficava boquiaberto, como se tivesse visto uma visagem do além.

Um vizinho possuía um mestiço manga-larga com o pelo branco e preto, e toda semana passava pela estrada em direção a Marilândia. Leno logo percebeu que, aos sábados, era o dia preferido do dono do animal passar por ali. Nesse dia, ele sempre evitava acompanhar o pai às lavouras. Com o tempo, José ficou sabendo. Procurou pelo dono do animal e, depois de muita negociação e de ceder à imposição do proprietário, acabou comprando-o. Pagou por ele 40 sacas de café pilado. Além deste gasto, José foi a Colatina e comprou todos os acessórios, escondendo-os na casa de Albertino, meeiro de Estobe. O cavalo ele apanharia no dia do aniversário de Leno, que aconteceria doze dias à frente.

E o dia chegou. Como Laura e Leno vivessem mais na casa de Maria do que na própria casa, e como José nunca demonstrara qualquer ciúme por isso, também ele celebrava todo e qualquer acontecimento mais importante da vida de sua família sob as mangueiras em que Estobe e Sakina haviam se casado. E ali, durante dois dias, tudo foi preparado. Como toda festa não o seria se não tivesse um boi inteiro para churrasco e muito vinho, assim também seria comemorado o aniversário de Leno. E como, por mais longa que seja a data, um dia ela chega, não foi diferente com o tão esperado aniversário de Leno.

Com todos os amigos da vizinhança presentes e com o vinho já dando sinais de sua presença contagiante, a pedido de José, que era tímido e de poucas palavras, Estobe pediu silêncio. Agradeceu a todos, tentou enaltecer as virtudes de Leno e, em seguida, pediu total atenção para a chegada de algo inusitado.
Foi quando o cavalo, minuciosamente paramentado, adentrou no terreiro. Se Leno já achava aquele cavalo o mais bonito que vira na vida, com todos aqueles aparatos ele se transformava na montaria predileta de São Jorge. Mas, até então, ele nem desconfiava que o cavalo já era seu. Apenas admirava. Aproximou-se – o animal era manso e treinado –, acariciou as orelhas, a crina… Olhou para o “dono” que continuava montado e pediu a ele se também podia montar. Agostinho desceu e passou-lhe a tala e as rédeas. Como um gato, Leno subiu e assentou-se:
– Posso dar uma voltinha?
– Claro que pode. Ele é todo seu.
E era mesmo, só que Leno não podia adivinhar.
– Ele não vai me estranhar, não?
– Claro que não.
Como se conhecesse a intenção de Leno, o cavalo virou-se para à esquerda e ganhou a estrada. Leno afrouxou a rédea e ele arrancou célere. Os cabelos de Leno esvoaçaram ao vento. Ele foi ao pé da boleira do tio Luís e, obedecendo ao comando, retornou a galope. Quando chegou ao lugar de que partira, já encontrou o bolo sobre a mesa e todos os presentes agrupados, cantando o parabéns para você. Se Leno já sentia os olhos umedecidos pela emoção de cavalgar o cavalo de seus sonhos, agora, com mais toda aquela demonstração de carinho e amizade, começou a chorar de vez.
Então Estobe aproximou-se e disse:
– Meu caro sobrinho, se apenas com a presença de todos nossos amigos vizinhos você já não contém a emoção, como irá se sentir quando souber que este animal em que está montado e que tanto desejou em sua vida é seu, todo seu? Seu pai o comprou do Agostinho e agora é seu presente de aniversário.
Leno, então, debruçou-se sobre a cabeça do cavalo e começou a soluçar.

José era um agricultor humilde e sem estudos, mas isto não o impedia de viver fortes emoções. Ao sentir a alegria do filho, também pôs-se a chorar. Por dentro ele não se sentia menos feliz do que o filho. Para prolongar aquela alegria de ver a felicidade do filho ele investiria a própria fazenda. Laura, não menos sentimental, foi ao cavalo e ajudou o filho a descer. Leno agarrou-se ao pescoço da mãe e como um bicho-preguiça não dava mostras de mais soltar. Tão forte foi a emoção do momento que dos olhos da maioria dos presentes muitas lágrimas desceram.
Esberti, que não perderia por nada aquela festa familiar, sempre grudada na avó, também achegou-se. As duas abraçaram Leno e não mais paravam de dizer-lhe aos ouvidos tudo o que aprenderam de edificante. Foi então que Estobe interferiu:
– Bem, bem… Acho que é passado o momento de retornarmos ao boi assado e à torneira do vinho. Os convidados já fizeram a parte deles aplaudindo toda esta nossa frescura. Pedimos desculpas aos não italianos, por desconhecerem esta nossa herança. Para nós, tudo isto não é apenas normal, como também pouco. Amanhã, com certeza, ainda estaremos vivendo este momento. Espero que a Esberti não me venha com mais um questionário sobre esta festa. É que ela, depois que se ausentou para estudar, vive querendo saber até a hora e o lugar em fomos aliviar a barriga.
Leno, que já não sabia se participava da festa ou se continuava alisando seu cavalo, enfim amarrou o presente e entrou na conversa:
– Pois é, tio, será que é por quê? Por quê? ….
É que, por mais que Esberti procurasse esconder que iria escrever a história do êxodo de seus avós àquelas plagas, a comunidade já havia bisbilhotado e vivia especulando. Ela dizia que “talvez, quem sabe”, mas não negava.

25
– Vovó, me ajude aqui fazê a broa de fubá.
Era sempre assim em seus tempos de criança: ela não perguntava, não pedia permissão, apenas avisava. Maria fazia tudo o que ela queria e ela aceitava, sem modéstia, a coroa de princesa que lhe era dada.
Agora, com 93 anos de idade, apoiada num cajado, cabelos brancos, mais se arrastando do que andando, Maria encostou na pia da cozinha em que Esberti dispusera os ingredientes para fazer a tradicional broa de fubá. A cena invertia-se:
– Por favor, vovó, me ensina. Eu nunca aprendi direito – pediu Esberti, apenas para distrair a avó.

As mãos de Maria tremiam e o raciocínio rateava. Apesar de toda a luta e carinho da menina que mais fora amada e paparicada na vida, o Alzheimer em Maria progredia a cada mês. E, então, como se fosse a pequena Esberti de outrora, Maria apanhou o leite, olhou para ele, pensou, pensou, mas não sabia mais o próximo passo. Esberti tentava ajudar: empurrava a fôrma sob as mãos da avó, mas ela continuava olhando, olhando. E ao fitar o rosto da avozinha, Esberti viu que ela chorava: resquícios de lembranças às vezes passeavam saudosos no consciente de Maria. Nesses momentos relâmpago, ela não duvidava de que o fim de sua passagem por este mundo estava bem próximo.
A bem da verdade, Esberti nem viu direito, porque as lágrimas também embaçavam sua visão. Então, ela disse com a voz embargada – tantas eram as torturantes lembranças do tempo em que ela assim fazia com Maria, que não se cansava de elogiá-la, dizendo que somente ela sabia fazer as coisas direito:
– Agora, vovó, deixa que eu levo pro forno.
E Maria entregava a fôrma com massas que, por vezes, acabavam esparramadas pelo chão. Maria ria, apanhava uma colher, jogava tudo dentro da fôrma outra vez e deixava que ela empurrasse para dentro do forno. Depois, esperava o momento oportuno, e substituía a fôrma da neta pelo bolo que ela fizera. Quando pronto, todos haviam de saber que fora Esberti quem o fizera. E agarrada à saia da avó, Esberti fitava seus olhinhos azuis nos de Maria, e sorria cheia de alegria e felicidade. E eram essas lembranças do passado, ressurgidas nos momentos de trégua da doença, que faziam Maria chorar. Muitos apregoam não se importar com a morte, e até brincam com ela, exatamente por não acreditar que, um dia, também ela baterá na sua porta.

Corria o ano de 1980. O mundo musical chorava o assassinato de John Lennon; lamentava a perda de Nelson Rodrigues, Vinícius de Moraes, Cartola… Enfim, 1980 foi um ano repleto de perdas aparentemente irreparáveis para a humanidade. Era difícil o mês em que os noticiários não anunciavam a partida de pessoas famosas. Mas, para Esberti, nada era mais importante do que a presença, ainda que deficitária, de sua avozinha. Muito doía quando ela, como médica, percebia que, infelizmente, não a teria por muito mais tempo. E nessa equiparação de beleza e importância, Esberti lembrava Fernando Pessoa: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia; Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia; Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.” 
John Lennon, Nelson Rodrigues, Vinícius de Moraes, Cartola…, eram importantes sim, mas não tanto quanto Maria para Esberti.
Maria vivia na clínica de Esberti, que a medicava e dela cuidava como a mais eficiente das enfermeiras: remédio sempre na hora certa, banho, higiene bucal…
A maior parte da família continuava no sítio de Estobe e Sakina, tido como modelo em toda a região norte do Espírito Santo. Nele não havia um palmo de terra que não fosse utilizado com plantas ornamentais, árvores frutíferas, cereais, piscicultura… Não fosse o tempo cruel com suas mazelas, dir-se-ia que, ali, Deus esquecera um pedacinho do céu. E sendo um pedacinho do céu, nele viviam anjos alegres e felizes.

Na clínica, Esberti dormia no quarto, ao lado de Maria, e passava boa parte das noites indo à cama da avó, olhando se o quadro, pelo menos, continuava estável. Se ela se debatia um pouquinho, Esberti deixava sua cama e ia deitar-se ao lado dela, entrelaçando-a com um dos braços. Sentindo-se mais protegida, Maria logo dormia.

O livro que escrevera acabava de chegar da editora. Por ser o primeiro, Esberti o admirava sobremaneira. Somente Deus para avaliar o desejo imenso que ela tinha de ter ao lado, no dia do lançamento, a avozinha querida. Aproveitando um momento em que Maria melhorara um pouco, balbuciando algumas palavras com sentido, ela correu, apanhou um dos livros, sentou-se na cama ao lado de Maria e passou-o às mãos dela:
– Vovó, a senhora lembra quando eu vivia enviando questionários para a senhora responder? Pois é, vovó, todas as suas respostas estão aqui registradas, para sempre guardadas para nossos filhos, netos, bisnetos, tetranetos…
Maria pôs o livro sobre as pernas, a mão direita sobre a capa e elevou o olhar:
– Onde estou? Cadê minha netinha?
– Olha eu aqui, vovó. É que eu cresci muito. Agora sou médica e, do mesmo jeito que tanto a senhora cuidou de mim, agora estou cuidando da senhora.
– E o Estobe, a Laura, o, o, o …
– O Leno, a senhora está tentando dizer, não é mesmo, vovó?
– É, é. Me leva pra lá, porque preciso ver minha netinha.
– Ó, minha avozinha querida, eu sou sua netinha que cresci.

Três semanas depois, no mais lindo dia de sol de que se lembrassem, a família reuniu-se: Estobe, com 61 anos; Laura, com 57; Sakina, com 68, Esberti com 32 anos e Leno, 27 anos. Não havia boi na churrasqueira, não havia vinho de laranja nos barris, não se ouvia música. Apesar de o silêncio reinar, a vontade de Deus era aceita. Esberti não conseguia manter os olhos secos. A fonte era mantida continuamente pelas lembranças de seu tempo de criança, agarrada à saia da mulher que mais a amou neste mundo.
Durante a Eucaristia, quando o não menos velhinho padre Guilherme rezava a missa de corpo presente, a brisa até então suave arvorou-se, num átimo, em forte ventania. Mas, apesar de a missa estar sendo rezada em local aberto, nada caiu, nem as velas se apagaram. Todos se entreolharam assustados, porque, de fato, aquela mudança era inexplicável. E o sacerdote velhinho, que já precisava ser ajudado na hora de erguer-se da cadeira, olhou para o alto:
– Não duvidem, caros fiéis: aqui, agora, Nego, Antônio e Helberti – com a permissão de Deus – também estão presentes. Eles vieram para acompanhar o espírito de Maria à felicidade eterna.
E todos responderam:
– AMÉM, AMÉM.

BIOGRAFIA
Livaldo Fregona é filho de Antônio Fregona e Maria Pupim. Nasceu num pedacinho de terra devoluta, no convívio pleno com a Natureza, próximo à atual cidade de Marilândia, no norte do Espírito Santo, no dia 26 de novembro de 1939.
Completou o curso primário em Marilândia – ES; o Ginasial em Colatina – ES; o Clássico em Vitória – ES; Filosofia em Belo-Horizonte – MG; Contabilidade e Laboratório, em Colatina – ES. Para se sustentar, trabalhou como protético na Odontótica Capixaba, do velho amigo Neil Pacheco; deu aulas de Português e Biologia nos Colégios Nossa Senhora do Brasil e Estadual Conde de Linhares, ambos de Colatina – ES e jogou futebol na U.A.C.E.C., que disputava o campeonato estadual do Espírito Santo.
Voltando a Marilândia, exerceu diversas profissões: laboratorista (análises clínicas de laboratório); professor de Biologia, Português e Religião no Seminário Menor Sagrado Coração de Jesus; guitarrista do conjunto musical “Os Corujas” e contador de diversas firmas de Marilândia e adjacências.
Mudou-se para Linhares – ES. Fundou novo conjunto musical, formou seu próprio time de futebol, continuou com laboratório e contabilidade, acrescendo, ainda, o comércio de madeira. Em 1981 mudou-se para Imperatriz, trazendo consigo a maior parte dos familiares. Entre escrever crônicas e contos para “O Progresso” e, esporadicamente, para outros jornais e revistas, lançou, em 1983, seu primeiro livro: CONTOS, 164 páginas narrando acontecimentos engraçados de seus amigos e familiares; em 1984, A PROCURA, 175 páginas narrando o início de sua crise existencial; em 1985, MENINO DA ROÇA, 255 páginas retratando boa parte de sua vida; em 1986, ESTRANHA PASSAGEM, 169 páginas narrando a vida de um homem bom envolvido nos males do mundo; em 1987, JABINO, o predestinado, 210 páginas de ficção, entrelaçadas nos mistérios da predestinação; em 1988, ABISMOS, 289 páginas contando a vida real de um amigo; em 1990, O CAMINHO, 242 páginas de crônicas e contos diversos; 1992, OS HUMILDES, 172 páginas narrando a vida de homens pobres e humildes; em 1994, SIRIANO, 144 páginas sobre a vida real de um menino de rua da cidade de Imperatriz; em 1996, NUVENS PASSAGEIRAS, 252 páginas de crônicas e contos sobre os mais variados assuntos, quase sempre baseados em fatos reais; em 1998, 18 ANOS DE IMPERATRIZ – o que vi, li e ouvi. Neste, em 420 páginas, o autor aborda seus percalços e o de seus familiares, os acontecimentos marcantes das pessoas mais em evidência na cidade, a tumultuada vida política desse período, o avanço cultural, a febre do ouro, a Revolução de Janeiro e os conluios e crimes acontecidos aqui durante esse tempo; em 1999, A FAMA E A VERDADE DE JOSÉ BONFIM, 200 páginas ilustradas com depoimentos do homem que sempre foi considerado o pistoleiro mais temido do País; em 2005, AO LADO DO TRAVESSEIRO, um livro que narra fatos incríveis produzidos pela fé e pela bondade de Deus; em 2008, O CAÇADOR, 221 páginas narrando alguns acontecimentos do tempo em que caçar era apenas um esporte; em 2010, SIMBA, 189 páginas de um romance ocorrido na Amazônia; CAUSOS E CONTOS, 263 páginas narrando casos engraçados de familiares e amigos; O MAIOR MENTIROSO DO MUNDO, 100 páginas de contos escolhidos, patrocinado pela Prefeitura Municipal de Imperatriz a fim de ser distribuído nas escolas municipais da cidade, e agora MARILÂNDIA, vale de sonhos e lágrimas, um romance de ficção sobre seu torrão natal, com 226 páginas.
Cooperou com três páginas discorrendo sobre a Mata Atlântica, no livro científico “A Preservação do Mutum de Alagoas”, do escritor, pesquisador e ornitólogo Pedro Mário Nardelli, da Zoobotânica Mário Nardelli, de Nilópolis – RJ, editado também em inglês.
No dia 26 de abril de 1997, por ter sido eleito o mais atuante escritor da Região Tocantina, recebeu o Prêmio Academia Imperatrizense de Letras, criado pela Prefeitura Municipal de Imperatriz, no valor de cinco mil reais. Em junho de 1997, recebeu da Revista Brasília, de Brasília – DF, a láurea cultural “Stella Brasiliense”, também pelo conjunto de suas obras. No dia 11 de outubro de 1997, a Academia de Letras e Ciências de São Lourenço o premiou com o segundo lugar no concurso “Obras Publicadas em 1997”, seu livro “Nuvens Passageiras”. No dia 11 de dezembro de 1997, pelos serviços prestados à comunidade, foi-lhe outorgado, pela Câmara Municipal de Imperatriz, o título de “Cidadão Imperatrizense”. No dia 16 de julho de 2008 foi condecorado com a Comenda Frei Manoel Procópio, a maior honraria concedida pelo Município de Imperatriz – MA.
É Membro Correspondente da Associação dos Escritores do Amazonas; da Academia de Letras e Ciências de São Lourenço; da Academia Itajubense de Letras; da Academia Internacional de Letras; da Academia de Letras da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul; da Academia de Letras de Uruguaiana; da Associação Uruguaiense de Escritores e Editores; da Federação das Entidades Culturais Fronteiristas; da Academia Espírito-Santense de Letras e do Clube Internacional da Boa Leitura.  É membro fundador da Academia Imperatrizense de Letras, na qual ocupa a cadeira 13, tendo como patrono o escritor carolinense Othon Maranhão. É católico, casado com Corina Silva Fregona, com quem tem duas filhas: Kizy e Drielly, e uma neta, Sofia. Atualmente se dedica com exclusividade à informática, a ler e a escrever.

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