ABISMOS
APRESENTAÇÃO
No som quase sinistro dos atabaques, nas mandalas indígenas em torno de fogueiras, nas mesquitas pomposas do oriente, nas catedrais bizarras do cristianismo, nas encruzilhadas das macumbas, nos terreiros obscuros do ocultismo, nas superstições, nas seções absconsas do espiritismo de terreiro, no tremelicar das velas nos dias de desolação, no cheiro do incenso dos turíbulos, nas magias, nas cabalas e simpatias, nos tarôs…, nos recônditos de cada coração sempre existiu, e jamais deixará de existir, a necessidade peremptória de se crer em algo superior, poderoso e sobrenatural. Ninguém consegue nada se não acreditar em alguma coisa. A fé é a força da vida; a ousadia, a fonte do sucesso.
A fé, somente ela, ela sozinha, é capaz de curar enfermos, erguer paraplégicos, aliviar dores, amainar corações opressos, criar esperanças, dar alegria e felicidade…, “remover montanhas”. Ao homem que quer, acredita que pode e luta para conseguir o que almeja, nada possível lhe será negado. Deus? Aí entra o acervo de discordâncias, o acúmulo de explicações, a convicção de cada um que, embora com nomes diferentes, sempre adoram e respeitam uma poderosa entidade criadora.
ABISMOS põe em discussão essa necessidade nas vidas atribuladas e misteriosas, cheias de percalços e de graças de seus protagonistas. Para uns, depois do sofrimento sempre vêm dias alegres; para outros, esses dias se passam imodificáveis: são pessoas que nascem e morrem na miséria e no aparente esquecimento do próprio Deus. Mas, para tudo, quem crê tem uma justificação. Surgem então as crendices, as normas de vida, as seitas, as religiões… E, apesar de se digladiarem, todas elas são como o sangue que corre pelos nossos capilares, veias e artérias: mil ramificações diferentes que acabam sempre chegando ao coração.
A vida de Neandro, cercada dos mais estranhos acontecimentos, faz acreditar que, acima do nosso entendimento, existe um ser criador que manipula nossas vidas e as converge para um ponto único do interesse dele.
Orácio, Edna, Ubaldo, Ricardo, Iracema, Marcélia, Arseno, Josemar… enfim, todos os personagens parecem imbuídos da obrigação irreversível de cumprir um mandado do céu, por meio de uma mensagem de fé, representada pelo exemplo de vida, principalmente na obstinação de Neandro.
Depois de chegar ao limiar das falcatruas, metido em roubos, sequestros e assassinatos, Neandro entra em desespero e chega às portas do inferno, na ribanceira do abismo, metendo uma arma no ouvido que, milagrosamente, não dispara. Ele repensa, encontra uma palavra amiga, retoma o caminho e com o tempo consegue reverter seu destino.
Tentei deixar em cima desses fatos, a mensagem de que nunca devemos nos desesperar, ainda que estejamos chafurdados em toda sorte de malquerenças, sujeiras e trapaças. Enquanto vivos, devemos alimentar esperanças, pois acreditando ou não, há, além do nosso entendimento, um ser superior que nos criou e que se preocupa com o que fez. Ele pode fazer e desfazer, criar e matar… Ele pode tudo, até mesmo transformar pedras em pães, lágrimas em sorrisos, perseguidor em apóstolo, covardes em heróis…
Ainda neste trabalho proponho-me manter a linha que sempre norteou meus modestos escritos: a de traduzir, com minhas próprias palavras, o pensamento dos caboclos, das crianças e dos iletrados. Entendo que a inteligência é única, que todas as pessoas a recebem em igualdade e que a diferença existe apenas na oportunidade de aprender palavras diferentes para expressar as ideias.
Pretendo com isto ajudar – em tudo o que me for possível – os jovens estudantes, que mais têm a aprender numa frase escrita corretamente do que nas regras convencionais das propriedades.
Meus trabalhos não se preocupam muito com datas, lugares… Atêm-se, antes, e mais, em apresentar uma lição de obstinação e coragem, em que o leitor possa encontrar a vereda perdida e iniciar nova caminhada.
Há, neste romance, muita coisa real, inclusive personagens que ainda hoje vivem e me serviram de roteiro. Há também outros criados pela minha imaginação. A intenção foi miscigenar as pessoas e os fatos, embolá-los numa massa difícil de ser decantada, preservando assim a integridade moral e a privacidade dos protagonistas reais.
Sei que muita gente não concordará com as impropriedades, com a sintaxe e com as possíveis incoerências. A esses só me resta desculpar-me, pois não é possível agradar a todos. Nem Jesus Cristo, filho de Deus, conseguiu isto. Casas, projetos… livros, cada um faz a seu gosto, conforme entende e ache mais razoável.
Quem não percebe as diferenças literárias e estilísticas extremas existentes entre Euclides da Cunha e Jorge Amado? No entanto, literariamente, quem poderia precisar o maior? Como diz o provérbio: “Que seria do azul, se todos gostassem do amarelo?”
Entrego a vocês, humildemente, este meu modesto romance. Espero que a história o atraia; que a mensagem lhe sugira alguma coisa nova e que os fatos o façam sorrir, pensar ou mesmo entristecer: nada mais um autor espera de sua obra do que atingir estes lugares-comuns. Eu, particularmente, ficarei muito feliz se atingir um único destes objetivos. O autor.
CAPÍTULO 1
Ela vinha da capital. Recém-formada em Pedagogia, começava a viver os duros momentos de todo início, amenizados, apenas, pela emoção do ideal de ensinar. Os cabelos sedosos e castanhos caíam-lhe pelos ombros, dando um toque todo especial aos olhos quase verdes. A carinha alegre e trigueira sofria certo contraste com o queixo pontudo. As sobrancelhas negras e os cílios bem arqueados completavam, com os claros dentes de nácar, a singeleza de seus lábios carnudos. Não se podia encontrar defeito físico algum naquele corpo de cintura bem fina e pernas lisas, bronzeadas pelo sol ardente de verão nas praias capixabas.
Edna colocou a mala no primeiro degrau da escada e dispôs-se a abraçar duas pessoas da família que se apresentaram para recebê-la. Passaria o ano letivo de 1946 ali, na casa dos Álvares, lecionando num grupo escolar precário, que os próprios fazendeiros haviam construído. A família era pequena: pai, mãe e um filho chamado Ubaldo que, por sinal, frequentava o Colégio Salesiano de Vitória, no Espírito Santo, e que por esta razão não se encontrava ali.
O senhor Antunes e dona Débora haviam nascido no sul da Bahia e lá vivido por muito tempo, cultivando cacaueiros. Ali mesmo nascera seu primeiro e único filho, Ubaldo. Pensaram dar estudos ao menino, fazer dele um médico de renome, alguém de quem pudessem se orgulhar: sonho incerto e, às vezes frustrado de todo pai.
A vida nem sempre favorece a realização de nossos sonhos, ainda que sejam razoáveis e possíveis. Embora ninguém predissesse (baseado em sua infância) uma juventude travessa para Ubaldo, ela aconteceu em cheio quando a força dos hormônios explodiu. No começo ele foi vencendo as provas finais a trancos e barrancos, mas depois, pela falta de base, somada ao desleixo, a situação chegou ao insustentável.
Numa tarde qualquer, mandou colégio, professores, tudo às favas, arrumou suas malas e veio viver a vida fácil da fazenda. Neste tempo, sua família já havia trocado a cultura do cacau da Bahia pelos promissores cafezais do norte espírito-santense.
Seus pais ficaram desolados, mas não conseguiram encontrar nenhuma saída digna, nenhum argumento sólido que demovesse o filho daquela estranha e inopinada decisão. E, com pouco tempo, devido às afinidades da idade, e também por falta de outras companhias, Ubaldo e Edna começaram a namorar.
Jogavam baralho até tarde da noite, intrincavam-se com palavras cruzadas, inventavam jogos de adivinhação, enfim, criavam situações para ficar juntos a maior parte do tempo.
Sem nenhum problema financeiro e de aparência atlética, Ubaldo tornou-se, logo, o “ai Jesus” suspirado pelas garotas da redondeza. E o pior é que o diabo não parecia ter feito qualquer restrição aos dotes cupidinosos de Ubaldo. Dentro de casa quase 24 horas por dia, ele tinha todo o tempo necessário para engendrar planos mirabolantes que, certamente, iriam encontrar ressonância na carência afetiva de Edna. Numa tarde de sábado, quiçá sem avaliar a consequência do convite, ela o procurou, incitando-o a colher canas caianas do outro lado do riacho.
Trajava um vestido de musselina amarelo que, tentadoramente, delineava-lhe o corpo esguio. Ubaldo não resistia àquela maneira provocante de Edna vestir-se, jogando sobre os seios hirtos um fino pano cuja claridade incumbia-se de refleti-los. E nessas situações a mente é mais pródiga do que a realidade em si.
Atravessaram a várzea de capim-pernambuco, ganharam o outro lado do riacho, equilibrando-se por cima de uma pinguela oscilante; foram por uma picada que cortava uma grota pequena e sombria, da qual descia um bico de matas deixado como reserva e, finalmente, chegaram ao cafezal. Entre as leiras, moitas de canas caianas se apinhavam. Cortaram algumas das mais bonitas e depois desceram para uma pequena tulha, cujo solo servia de eira para a secagem do café e do feijão. Nos dias de chuva, os grãos eram protegidos por folhas verdes de bananeiras, que tão logo secassem eram amontoadas num canto da tulha, quando passavam a ter várias utilidades.
Edna chegou com ares de cansada. Seu rosto estava rosado e suarento, dando-lhe um toque de brejeirice à pele macia. Jogou-se sobre o monte de folhas secas e estendeu o braço para Ubaldo. Apesar de sua aparente desenvoltura em lidar com o sexo frágil, Ubaldo acedeu com relutância, pois a estrita amizade de alguns meses dera início a um sentimento nobre que, no mínimo, merecia prefaciação mais cerimoniosa para com aquele ato de paixão.
Tomou a mão de Edna, curvou-se um pouco, olhando-a nos olhos. Ela estava arfante, com todo desejo de seus 19 anos aflorando naquele momento. Ubaldo deitou-se ao lado dela. Ficou por alguns instantes naquela posição.
– Não sei o que dizer – comentou ele, muito embaraçado.
– Nestas horas – respondeu ela – o melhor é não dizer nada. Agora, as palavras ofuscariam a voz do coração e atrapalhariam o diálogo inaudível de nossas almas.
Ele se ergueu, ficando sentado, olhando-a de cima. Puxou a blusa de musselina, descobrindo os seios bem feitos.
– Não sei o que está esperando de mim – tornou a gaguejar – mas na verdade estou muito confuso. Não é segredo para você que tenho tantas meninas quanto desejo, mas com você é diferente.
Talvez ofendida pela sincera arrogância de Ubaldo, Edna retrucou:
– Que está esperando de mim, uma virgem donzela? Também tenho quantos homens desejo.
– O quê? Está querendo dizer que não é mais virgem?
– Por que se assusta tanto? Não sabe que se fizer uma averiguação, uma pesquisa honesta, notará que todas as moças da cidade acham normal o sexo antes do casamento?
– Só acredito nisto o dia em que uma virgem convicta me disser – retrucou em riste. E continuou:
– Essas pesquisas que fazem por aí são apenas a busca de justificativas para aquilo que não tem mais jeito. As adolescentes que erraram, apregoam que o hímen é uma estupidez almejada por machistas quadrados e ultrapassados. As que ainda se consideram puras não dizem o mesmo. Os homens que amam uma mulher estabanada, que não é mais moça, acham também o hímen uma estupidez. O certo é que nem as virgens convictas defendem o sexo antes do casamento, nem as prostitutas defendem a virgindade. Tudo é uma questão de justificativa, de defesa própria. Quem usa lentes azuis, vê as coisas azuis; quem as tem pretas, vê as coisas pretas. Entende o que quero dizer?
Notando o pouco entusiasmo do companheiro, Edna afrouxou o cinto do vestido, folgando-se. Ubaldo, totalmente frustrado, tirou sua roupa e tentou justificar sua virilidade. Foi a pior experiência que provou em sua vida de conquistador. Só então entendeu que já estava gostando de Edna e que o golpe daquela inoportuna confissão destruíra todos os possíveis lindos sonhos que tentavam emergir. Sua mente transtornada, seu sentimento ferido, toda aquela decepção incrustada nas palavras forjadas de Edna conseguiu sufocar em Ubaldo a semente de amor que já estava intumescida e prestes a nascer. A dificuldade, o sangue, as dores… nada significaram para Ubaldo. Ela havia sido de outros: não prestava. Ali mesmo, inconscientemente, passou a odiá-la.
Depois disto, todas as semanas ficava com ela. Eram intercursos violentos e inexplicáveis: amor e ódio, numa miscigenação impossível de ser decantada. Um mês antes do término das aulas ela descobriu que estava grávida e que vivia na roça sujeita à lei dura do sertão.
Gerações se passaram para que os missionários levassem aos confins, a lei estúpida da honra ultrajada. Mas, mesmo no sertão, logo a lei passou a ter os mesmos defeitos e os mesmos requintes da força e da parcialidade. Também no sertão havia os intocáveis, os deuses da verdade. E uma moça liberal não tinha, sequer, o direito a um grito de justiça, principalmente se envolvesse o filho de um rico fazendeiro. Era expulsa como vagabunda e seu ventre túmido não passava de um mesquinho troféu do filho garanhão.
Edna era uma criatura excêntrica, difícil de ser entendida. Fazia o que queria de sua vida e não se humilhava a quem quer que fosse. Ainda não havia recebido os duros golpes do tempo, capazes de transformarem as pessoas. Dias depois da descoberta de sua gravidez, procurou Ubaldo e perguntou-lhe, secamente:
– Estou esperando um filho seu e gostaria de saber qual sua opinião a respeito.
Ubaldo riu. Era comum nas fazendas o poderio dos chamados “coronéis”. Mulher grávida, não casada, era “puta rampeira” e tinha que avir-se com seus próprios infortúnios:
– Você não está esperando que eu vá assumir esta gravidez, está? Você mesma confessou que fica com o homem que lhe apraz, e agora vem perguntar-me o que acho disto tudo?
– Está insinuando que eu não era…
Edna ia explicar-lhe, tentar convencê-lo de que dissera aquilo num momento de revide à arrogância de Ubaldo, mas percebendo o amor frágil que lhe era devotado, capaz de sucumbir diante de um passado que nada deveria significar, interrompeu a justificativa e disse:
– Não tem importância, eu só queria saber.
Logo que as aulas terminaram ela sumiu, e Ubaldo não mais teve notícias dela.
Mal chegara à casa de seus pais, Edna disse a eles que iria lecionar noutra fazenda, onde daria um curso de férias e continuaria com o ano letivo seguinte. Foi para uma república de moças liberais, ganhou o filho e, logo na semana seguinte, deixou-o dentro de uma cesta, na porta da primeira casa de aspecto promissor que encontrou. Dentro do cesto deixou um bilhete escrito: “Sou professora e mãe solteira. O pai deste menino chama-se Ubaldo. O menino nasceu no dia 12 de julho. Cuidem bem dele, pelo amor de Deus.
CAPÍTULO 2
– Segure a ponta da corda com firmeza e suba.
Orácio tocou a corda, virou o rosto molhado de lágrimas e soluçou temeroso:
– Estou com medo, meu pai vai me castigar.
– Esqueça seu pai agora e venha. Não é hora para pensar nisto. Tenha coragem, amigo.
– Estou com medo.
Sentado ao lado da ponta da corda, o menino chorava. Dos seus braços o sangue escorria. Uma pedra cortante abrira-lhe um profundo sulco no braço esquerdo.
Neandro e Orácio brincavam num ligar muito perigoso e, de repente, o acidente: Orácio escorregou, derrapou pela ribanceira, indo, milagrosamente, ater-se a uma saliência em que alguns arbustos haviam crescido.
Orácio morava no sopé da montanha, num casebre todo esburacado, na divisa da fazenda do senhor Ricardo Ribeiro, pai de Neandro. Era um ano e pouco mais novo que Neandro. Os garotos haviam se conhecido por acaso e pareciam demonstrar grande afinidade.
O pai de Orácio era um homem austero, duro e jamais deixara de surrar o pretenso filho – um menino que em algum tempo fora deixado na porta de sua casa. Revoltado com isto, sempre fustigado por lampejos de sua consciência moribunda, continuava com o menino em casa, mas castigava-o, como vingança, em cada oportunidade que se lhe apresentasse.
O pai de Orácio não conhecia Ricardo Ribeiro – um brasileiro de origem portuguesa, muito rico e que iniciava, pioneiramente, um respeitável plantio de abacaxis em sua propriedade. Ricardo era um homem magro, estatura mediana, cabelos castanhos, agora grisalhos, lábios finos, pouca instrução e que vivia às voltas com crises nervosas, mormente quando ficava tenso e desorientado. Era casado com uma cafuza de origem incerta, talvez tupiniquim, pois seus ancestrais, ao que se sabia, sempre moraram no litoral de Porto Seguro, na Bahia. Chamava-se Iracema Atabaia e não se podia encontrar grandes atrativos físicos em sua tez morena, agraciada com longos cabelos pretos que desciam até a altura de suas nádegas. Aprendera a ler tardiamente, mas depois disto nunca deixou de fazer dos livros sua principal ocupação, o que lhe dava um toque sutil de cultura e sabedoria. Possuía a fleuma de seus antepassados, jamais se preocupando com o futuro. Nunca ficara doente e tinha sempre um sorriso doce para distribuir, mesmo diante dos mais adversos problemas. Qualquer pessoa que tivesse tido algum contato com os primeiros habitantes de nosso país, logo podia-lhe notar a descendência.
Ricardo e Iracema possuíam um único filho que nascera em 1947, um pouco antes de ali chegarem. Agora o menino contava 10 anos e ninguém parecia demonstrar a menor das preocupações pelo fato de Iracema não mais engravidar. Viviam ali, quase no topo da serra, de onde se podia descortinar uma linda visão das proximidades do Atlântico e da capital, Vitória. O clima era saudável, quase frio, e enchia, todas as manhãs, os vales e as montanhas com cortinas neblinares que pareciam mãos ociosas a acariciar os cabelos das serras. A cidade de Serra, embora pequena, gozava do privilégio de ser sossegada e ter, bem próximo, na capital que distava apenas alguns quilômetros, todo o conforto e apoio de que alguém necessitasse.
Ricardo jamais conhecera a miséria ou a infelicidade. Tudo sempre lhe fora favorável. Adquirira uma boa quantidade de alqueires de terra nas mediações da cidade, mandara analisar a terra e tendo-a constatado propícia ao plantio de abacaxis, passou a ocupar-se, pioneiramente, com esse cultivo. Só muito mais tarde outros o imitaram, tornando Serra, por bom tempo, a terra dos abacaxis.
A fazenda não tinha grandes dimensões, mas pela boa terra e pela proximidade da capital, valia uma fortuna. Além disto, Ricardo já viera morar ali sem nenhum problema financeiro. Aos poucos, os pequenos proprietários foram vendendo seus quinhões de terra aos latifundiários e passando a viver como meeiros.
O pai de Orácio talvez fosse o decano desta manobra natural que insula os pobres, tolhendo-lhes todo o direito de viver dignamente. O prazo em que deveria deixar a terra já se esgotara. O comprador já havia, inclusive, ameaçado, avisando que traria a polícia dentro de poucos dias.
Foi exatamente na semana em que estava providenciando sua mudança para outro lugar, até então não definido, que Orácio, brincando com Neandro, escorregara pedra abaixo e se achava agora machucado, exangue e desesperado. Neandro, também com medo, não pensou em pedir socorro aos pais. Foi ao paiol, apanhou uma corda, amarrou-a numa pedra no topo do despenhadeiro e lançou-a até Orácio, instigando-o a agarrar-se e a subir. Mas Orácio não encontrava forças nem destemor para tal façanha. Foi quando Neandro, buscando, não se sabe onde, tanta coragem, desceu pela corda e foi estar com ele, lá na depressão, entre arbustos espinhentos. Achegou-se, abraçou o companheiro, acalmou-o e depois disse:
– Agora vamos. A corda é forte, não tenha medo. Você vai na frente e eu, logo atrás. Pode escorar os pés nos meus ombros. Não se afobe, a gente vai conseguir. Tenha coragem, companheiro!
Orácio, tremendo como um caniço ao vento, ergueu-se e agarrou a corda. O sangue do corte havia se espalhado pelo corpo e dava um tom de rubro assustador. Agarrou-se, firmou os pés na pedra e alçou-se um pouco. Neandro, encostando a cabeça em suas nádegas, animou-o a prosseguir. Sempre temeroso, Orácio foi escalando, tendo sempre e em cada instante, as palavras animadoras e confortantes de Neandro.
– Isto, isto, estamos conseguindo! Vai ser fácil, você vai ver, amigo! Tudo antes de começar parece difícil. Depois a gente vê que não é assim. Vamos, coragem!
– Meu pai, meu pai vai me matar!
– Bobagem, os pais não matam seus filhos.
– Você não conhece o meu.
– Vamos, suba, força, companheiro. A gente vai conseguir. Olhe, faltam apenas alguns metros.
Neandro nunca fora de demorar muito fora de casa. Vivia brincando pelos derredores, mas eram raras as horas em que não entrava ventando pela casa a fim de combater sua insaciável fome. Neste dia, porém, ele extrapolara, pois era perto de 15 horas quando saiu e já a noite se avizinhava sem que ele aparecesse. Preocupado, Ricardo saiu ao terreiro, chamou pelo menino, e não percebendo ali nenhum sinal de vida, subiu um pouco a ladeira, indo postar-se sobre uma pedra, donde tanto sua voz como seus olhos poderiam alcançar maior distância. Dali gritou a todo pulmão, chamando pelo filho, mas apenas os ecos, batendo de encontro às encostas da montanha fria, respondiam.
– Está ouvindo? – disse Orácio num fio de voz. É meu pai, ele está vindo para me bater – e dizendo isto fraquejou, afrouxando as mãos e caindo sobre Neandro. Este firmou-se com todas suas forças e implorou:
– Segure-se. Olhe ali, estamos conseguindo, não fraqueje agora. Vamos, vamos, pelo amor de Deus. Aguente firme aí que irei responder ao chamado. Virão nos ajudar.
– Não, não, não responda. É meu pai. Se ele me vir aqui… oh, meu Deus!
– Esqueça esta droga de pai – vociferou Neandro. Não está vendo que isto não é hora de pensar nisto? – e firmando-se quanto podia, gritou com todas suas forças:
– Socorro, socorro, estamos aqui, venham depressa.
Os ventos sibilantes e frios que sopravam de Ricardo para eles dificultavam o retorno e por isso o estridente grito de Neandro, apenas chegou ao ouvido do pai como tênue suposição. Ricardo afinou os ouvidos, prendeu a respiração e pôs-se todo sentido. Mas, nada mais pôde ouvir. Mesmo assim seguiu em direção ao despenhadeiro: único lugar deveras perigoso que havia nas proximidades da fazenda. Enquanto isto, Orácio se entregara e parecia disposto a soltar-se. Neandro alçou a corda que sobrara por baixo e com toda dificuldade, enlaçou o companheiro, amarrando-o pelo meio. Depois guinchou-se sobre ele, alcançando o topo.
Orácio ofegava, já então com as mãos soltas e dependuradas. Neandro tentava, desesperadamente, trazê-lo ao topo, mas suas forças não davam mais. Foi então que sentiu um braço rijo que o ajudava. Era seu pai. Logo que Orácio foi posto a salvo, o senhor Ricardo, vencido por forte crise nervosa, deixou-se cair por terra, desfalecido. Recuperado, ele desceu com Orácio no colo e se achegou à tapera em que Orácio morava. A noite havia caído e apenas um trêmulo facho de luz lutava para afastar a negridão tétrica da noite, dentro daquele infeliz barraco. A pobreza ali era extrema: alguns catres, farrapos dependurados, uma enxada, poucas e corrugadas panelas e algumas pedras bem-dispostas, sobre as quais uma panelinha preta de fuligem soltava uma fumaça sem odor algum.
– Boa-noite – disse Ricardo à guisa de conversa.
– Boa-noite – respondeu uma voz rouca e pouca amistosa.
– Vim trazer seu filho. Ele escorregou e machucou-se bastante.
– Ah, machucou-se, heim?! Pois o que não quebrou por lá, vai quebrar agora – grunhiu o homem, empunhando uma vara, já descascada pelo uso.
– Não, pelo amor de Deus, não me deixe apanhar mais, seu Ricardo.
Virando-se de lado como a proteger o menino, Ricardo disse energicamente:
– Apesar de sermos vizinhos, a gente ainda não se conhece direito. Mesmo assim tomo a liberdade de dizer que isto não são modos de tratar um filho ruma situação destas, ainda que ele fosse o mais endiabrado deles.
– Isto aí nunca foi meu filho – gritou o homem iracundo. E continuando:
– Só tem me dado dissabor e trabalho. Não vale nada. Deixaram isto aí na porta de minha casa e já não sei como livrar-me deste estorvo. Não tenho comida nem para meus filhos legítimos, quanto mais para o dos outros. Por isso ele não me escapa. Vou esfolá-lo para que aprenda a ficar em casa e a fazer alguma coisa que preste.
Notando o espírito irascível do homem, Ricardo observou:
– Não se preocupe, senhor. Se o problema é livrar-se do garoto, eu o ajudo – e dizendo isto deu as costas e saiu com ele no colo, enquanto o homem ainda vociferava alguma ofensa que Ricardo fez questão de desconhecer.
Orácio, como um filhote de macaco, mantinha-se agarrado ao pescoço de seu protetor, cheio de dependência e de medo. Apertava tanto que machucava. Ricardo arrefeceu:
– De hoje em diante não precisa mais temer, meu filho. Pode afrouxar as mãos, você está seguro e protegido. Vou cuidar de você e somente se quiser trarei você de volta.
O menino não falava. De repente, como se tivesse acometido de uma convulsão, começou a soluçar. E o choro vinha profundo, profundo como o entendimento de quem enxerga a realidade sem poder dela escapulir. Tristeza angustiante de uma criança rejeitada e infeliz, sozinha no mundo, sem caminho, sem esperanças. Dor de um menino sem pai, sem mãe, deixado num mundo com pouco ou nenhum amor. Falar? Pra quê? Era apenas uma criança, não tinha o direito de dizer-se infeliz, de reclamar qualquer coisa. Mas seu coração sentia e seu espírito percebia quanta dor lhe aguardava pela vida afora.
Quando Ricardo colocou-o na cama, foi custoso desgarrar-lhe as mãos do pescoço. Ele continuou soluçando e quando seu corpo se quietou no sono, ainda uma última lágrima despencou dos seus olhos, como se ali selasse uma grande caminhada, mais dura e perigosa do que o despenhadeiro em que havia caído. Oxalá ele pudesse, ainda que em sonho, repetir a doce oração de José: “Agradeço-te, Senhor, por entornares na minha face estas gotas que arrefecem meu rosto”.
Ali, estendido numa caminha em que jamais deitara, fofa e limpa, ele parecia desfazer-se de uma virtude natural que sempre lhe norteara os dias e que só os dervixes alcançavam quando conseguiam desprender-se a ponto de não terem lugar certo para morar; estarem sempre com fome; serem sempre pobres e humildes; não se importarem com o lugar em que nasceram…, e tantas outras virtudes de desprendimento que, em Orácio, vinham sem nenhum esforço e por extrema imperiosidade da vida.
Ao lado, no lusco-fusco do quebra-luz, Neandro, tenso e inquieto, debatia-se em sonho: “Força companheiro, coragem, a gente vai conseguir.”
– Assim, meu filho! – disse Ricardo, orgulhoso – seja bom e honesto, ajude o seu semelhante e não esqueça, jamais, que tudo o que fizer nesta vida tornará a você – e apagou a luz, recolhendo-se com a esposa.
CAPÍTULO 3
Durante os 30 dias seguintes, Ricardo não mais procurou o pai de Orácio, e este, confirmando a intenção de livrar-se do garoto, também não deu mais sinal de vida. O menino parecia recuperado: no lugar dos arranhões e das escoriações mais profundas, apenas cicatrizes de feridas recentes e curadas. Mesmo assim, Orácio parecia ter perdido o prazer de viver. Vivia calado, em geral sentado pelos cantos, sempre com o olhar perdido em algum ponto, aguardando a volta de seus tenros pensamentos, que somente Deus sabia por aonde divagavam.
Orácio contava, então, com nove anos. Apesar de mais novo que Neandro, era-lhe maior na altura. Os cabelos castanhos e encaracolados, a tez morena e a face taciturna davam-lhe um aspecto de menino sombrio e triste. Não obstante tivesse frequentado pouco a escola, sabia escrever e gostava muito de fazê-lo. Dificilmente se libertava de sua introversão. Como até aí sempre fora rejeitado e castigado, parecia um animalzinho encurralado e dependente. Talvez por isto, qualquer ato que demonstrasse amizade sincera, ele não esqueceria jamais enquanto vivesse. Mesmo com todo carinho e compreensão da nova família, mostrava-se profundamente abatido. As feridas do coração eram grandes demais para serem curadas em pouco tempo.
Neandro, vendo-o assim, insistia para que brincasse. Ensaiava correrias, pulava em seu cavalo de pau, erguia a bola…, mas nada, nada mesmo parecia penetrar naquele mundo triste e intocável. Iracema, que normalmente pouco falava, nesse dia observou:
– Deve estar com saudade de casa. Acho melhor levar o menino.
– Pode ser – retrucou, cheio de dúvidas, Ricardo.
Algumas horas depois o menino era levado ladeira abaixo. No seu rosto, a mesma melancolia. Mantinha-se cabisbaixo e não parecia mais possuído do temor extremo de ser surrado, temor este que sempre o acompanhara.
Sem que ninguém o soubesse, estava tomando uma resolução, e esta, pelas feições de seu rosto, não eram nada promissoras. Assim pensando, ele descia quieto, não se importando mais em que lugar fosse passar estes seus últimos dias de vigília e desolação.
Por isso mesmo, quando chegaram ao terreiro do casebre e notaram-no fechado, com as portas arrancadas, em total abandono, não se notou senão um ar de surpresa na fisionomia de Ricardo, pois para Orácio isto também não modificava em nada a sua sorte, nem seus planos.
A família despejada, sem lugar algum conseguido antes, meteu pé na estrada, esperando que Deus ou o diabo lhe apresentassem um abrigo que dificilmente seria pior do que aquele em que vivera tantos anos.
Ricardo olhou desolado tudo aquilo, dando uma demonstração inequívoca de que a situação não lhe era nada promissora. O menino percebeu, embora fosse apenas uma criança: dessas que os adultos imaginam insensíveis e ingênuas. Como um judeu sem pátria, Orácio não encontrava para si um lugar no mundo. A ideia que amadurecia em sua mente ia amadurecendo.
Subiu a ladeira andando atrás de Ricardo, sempre em silêncio. Seu protetor também não dizia palavra, absorto que estava naquele problema que agora era todo seu. Imaginava estas coisas quando adentrou pela porta em que Neandro chutava uma bola contra a parede da sala. Este, ao perceber que Orácio voltara, encheu-se de contentamento e perguntou:
– Seus pais deixaram você viver aqui com a gente?
O menino ergueu os olhos tristes:
– Eles foram embora.
– Que bom – retrucou, inocentemente, Neandro. Agora ninguém virá buscá-lo mais. Poderemos ser irmãos, brincar e estudar juntos.
Orácio não parecia sentir, senão, as dores que o aguardavam. Olhou seu amigo de verdade, fitou-o bem nos olhos e depois, vagarosamente, saiu pela porta, indo sentar-se atrás do paiol. Neandro acompanhou-o. Postou-se a seu lado, tomou-lhe as mãos trêmulas:
– Por que está tão triste? Não gosta de viver aqui comigo?
– Ninguém gosta de mim.
– Não seja injusto, amigo, eu gosto muito de você.
Orácio ergueu os olhos úmidos:
– Eu acredito, mas não pode fazer nada por mim.
– Claro que posso. Vou falar com papai e mamãe e você ficará morando aqui com a gente.
– Não fale. Seu pai é muito bom, mas não quer que eu fique aqui. Ele tem razão, eu não devia ter nascido.
– Meu pai disse isto?
– Não, eu é quem está dizendo. Sinto que ele pensa assim.
– Puxa, amigo, que maneira de falar! Não é tão bom viver, estar aqui diante de tantas coisas bonitas que nosso Pai do Céu fez?
– Deus não fez o mundo bonito para as crianças abandonadas.
– Por que não? Por acaso alguém pode apanhar só para si todos os pássaros, os rios, as estrelas, os mares e as árvores da terra?
– Tudo isto é nada diante de se ter uma família.
Neandro calou-se, baixando a cabeça. Tentou encontrar um argumento, mas todos sucumbiam à verdade dura daquelas simples palavras. Para uma criança, nada mesmo era mais importante do que o pai e a mãe. Imaginou-se sem os seus e logo meneou a cabeça como a afastar aqueles pensamentos.
Aí se recostam as dúvidas que tantos magistrados alimentam quando se mostram incertos ao decidir se mãe é a que pariu ou a que cuidou e criou com carinho. Quando um menino desconhece a origem e é adotado por outra família que o trata bem, como se filho de sangue fosse, dificilmente sente falta da mãe que o gerou.
Sem encontrar um meio convincente de, com palavras, amenizar a dor que ia no coração do companheiro, Neandro ergueu-se, tomou um ar de alegria e desafiou:
– Dou-lhe dois gols de frente e aposto que ganho o jogo – e saiu tocando a bola de borracha, com mestria.
Orácio mal levantou a cabeça, mas mesmo assim Neandro pôde perceber seus olhos molhados. Na cozinha, Ricardo e Iracema debatiam a situação:
– Sinceramente, não sei o que fazer. Sinto que o menino percebe até meus pensamentos, mas não consigo fingir. Estou assustado em ter que assumir mais esta paternidade. Mais tarde isto poderá acarretar-me grandes dissabores. Se ainda fosse recém-nascido! Crianças grandes já estão modeladas, cheias de manias diferentes daquelas culturais que aceitamos como certas.
Iracema, sempre calma e tranquila, via em tudo a mão de Deus.
– Se aconteceu é porque tinha de acontecer. Do mesmo jeito que Deus o pôs aqui, se for a vontade dele, irá tirá-lo. Li em algum lugar que até os nossos cabelos estão contados, e que nenhum cai sem que Ele permita.
Ricardo esfregou a mão no queixo como a arrumar uma barbicha que não existia e ficou matutando, sem dizer mais nada. Lá fora, os ventos frios da tarde, raspando nas faces cortantes das pedras, pareciam uivos melancólicos. Iracema pensou um pouco, olhou a fisionomia preocupada do marido e observou:
– Se está tão preocupado, por que não procura a polícia e conta o caso, exigindo explicações do pai que o abandonou?
– Não adianta, mulher. Ele não é o pai do menino, e pior ainda, não o aceita. Achou-o também quando pequeno, na porta de sua cabana e, como disse, não pôde mais livrar-se dele. Depois de tudo, basta a ele o remorso de haver causado tanto mal a uma criatura indefesa e inocente. Tenho certeza que a estas horas, por muito duro que seja, deve estar às voltas com sua consciência, pois não é nada fácil dormir sossegado depois de um ato cruel e injusto. É exatamente por isto que tenho de pensar bastante antes de tomar uma decisão. Uma coisa aprendi na vida: não há maior riqueza para uma criatura humana do que poder encostar a cabeça num travesseiro, examinar-se e a seu dia, e depois fechar os olhos sem os vergastes da consciência.
– Bem – prosseguiu – vamos dar tempo ao tempo. Na hora exata, tudo irá para os seus devidos lugares – e dizendo isto, foi à janela e chamou os meninos para o jantar.
Algumas horas depois, os dois dormiam, aparentemente sossegados. Lá fora, o vento, que já era frio e cortante, agora vinha acompanhado de forte nevoeiro.
O Espírito Santo sempre sofreu os achaques dos ventos frios vindos do Sul. Estes ventos, depois de tudo, desenterram reumatismos adormentados, dores encruadas, resfriados e mais uma infinidade de coisas desagradáveis que ficam hibernadas na gente nos períodos de clima estável. As pessoas vivem engurujadas, agasalhadas e presas dentro de suas casas. Por sorte, estas friagens são passageiras, mal retardando sua visita calamitosa por mais de três ou quatro dias.
Desde as quinze horas o vento-sul chegara e agora sibilava friento por toda a encosta. Orácio esperou que todos dormissem. Ergueu-se depois, tomou o sobretudo de Neandro e no lugar deixou um bilhete: “Amigo, estou apenas tomando o seu sobretudo emprestado. A noite está muito fria lá fora. Não vou esquecer jamais que me salvou a vida e que é o meu melhor amigo. Um dia, tenho certeza, vou devolver sua roupa. Estou muito triste. Deixo-lhe meu canivete como recordação. Achei-o perto da estrada, há algum tempo. E a única coisa que possuo. Orácio.”
Depois entreabriu a porta. A aragem fria que entrou varreu o rosto de Neandro, que se mexeu na cama, virando-se para o outro lado. Ele olhou o amigo que dormia e não pôde evitar as lágrimas. Como gostaria de ser como ele, ter um pai e uma mãe: o frio, ele não sentia.
Encostou a porta novamente e saiu.
Enquanto descia, mil sons gritavam pelas montanhas como duendes fantasmagóricos a amedrontar seu coraçãozinho indefeso. Mas ele não ouvia nada, não sentia nada. Tinha de ir. Uma força peremptória o impelia. Ainda que tudo pudesse acontecer, ele não seria estorvo a ninguém. E caminhou, tropeçou pela vereda escura, seguiu a rota de tantos que nascem e são abandonados – a rota da solidão, da miséria e da incerteza. Era mais uma ovelha que se desgarrava do rebanho e se punha à mercê de todo o mal que rondava.
Orácio e Neandro sentiam a certeza de terem ou não uma família, uma origem. Mas no fundo, embora não soubessem, eram exatamente iguais.
CAPÍTULO 4
Já fazia um ano que Orácio havia desaparecido e, não obstante as buscas, não muito ostensivas de Ricardo, dele nunca mais se teve notícias. Vez por outra, quando em palestra familiar, o nome do menino era lembrado, não sem laivos de certo desagrado. Tal lembrança não era bem recebida, principalmente por Ricardo que, embora sempre se mostrasse compreensivo em palavras, não conseguia esconder o desejo de esquivar-se daquele futuro problema.
Iracema, menos envolvida emocionalmente, não via nenhum incômodo em lembrar a triste sorte do menino, e Neandro, sempre pesaroso e amigo, não se fadigava em reavivar a lembrança do pai:
– Onde será que ele está a esta hora, hein, pai? – perguntava insistentemente.
A cada semana que passava, Neandro demonstrava maior aptidão para os estudos e uma facilidade incrível para reter os conhecimentos que lhe eram ministrados. Ricardo notava isto e não via hora de arrumar as coisas para que este dom do menino pudesse se desenvolver plenamente.
A oportunidade que esperava parecia agora aproximar-se como um favônio do céu. Um homem do Sul havia se interessado pela compra da fazenda e apenas pequenos detalhes estavam impedindo a transação. O homem queria um prazo de 60 dias para quitar os 30% restantes do valor total estipulado. Um tanto temeroso, Ricardo pedira alguns dias para pensar e tendo levantado a ficha do velho e percebido que ele poderia, se quisesse, adquirir, à vista, dez fazendas igual à sua, concordou. Estava esperando a visita do comprador quando reconheceu o carro azul que subia a estrada íngreme e sinuosa da sede.
– É ele – disse para a mulher. Espero que não tenha desistido.
– Ele não vai desistir, é um homem sensato e inteligente.
– Que quer dizer com isto, mulher?
– Quero dizer que só pessoas ingênuas se desfazem de um paraíso como este. Aqui temos paz, prosperidade, saúde, uma nascente que desce das montanhas trazendo esta água cristalina que está aí…. Puxa! Vou sentir muita saudade disto. Se não me engano foi Platão que um dia disse: “Que mais pode desejar um homem para sua felicidade do que uma casa no bosque com um regato de águas cristalinas bem próximo?” Os gregos parecem ter percebido bem cedo que muitas pessoas continuariam não entendendo que, mesmo na terra, pode-se alcançar o céu.
Ricardo se preparava para pensar no assunto quando o carro estacionou e o homem desceu. Não era preciso ser muito perspicaz para adivinhar sua decisão.
Numa última e vã tentativa, depois dos cumprimentos e de haver entrado definitivamente no assunto da venda da terra, Ricardo negaceou:
– Sr. Anastácio, estive pensando bem e cheguei à conclusão de que não posso lhe dar os 60 dias que me pediu.
Era uma tênue tentativa de desfazer o negócio. O Sr. Anastácio sorriu, enfiou a mão na maleta, tirou o talão de cheques e ponderou com arguta maestria:
– Vendi uma boa partida de gado só para isto e mesmo que não me pedisse, insistiria em quitar a dívida de uma vez. O senhor não tem nenhuma obrigação de confiar num desconhecido.
Apesar de desolado, Ricardo apanhou o cheque, assinou o recibo provisório e marcou o dia seguinte para a transferência definitiva do imóvel. O comprador acionou o carro e desceu a encosta, com visível ar de felicidade estampado no rosto. Ricardo entrou para o quarto com o cheque na mão e uma angústia ainda mais forte na alma. Viu a mulher debruçada na janela olhando a água límpida que saltitava entre as pedras soltas e pôde perceber, então, a grande estupidez que cometera. Aproximou-se da esposa, pôs a mão no ombro dela, apertou-a carinhosamente e desabafou justificativo:
– O que fiz está feito, está definitivamente feito. Prefiro perder qualquer coisa na vida do que ser tachado de homem sem palavra. Espero que você me compreenda.
– Não se preocupe – retrucou a esposa sempre resignada.
– Sou assim mesmo, muito apegada às coisas. A terra sempre falou muito alto em mim. Acho que é coisa do sangue.
– Ah, vai, não fique assim! Agora estaremos mais perto dele e do colégio e o dinheiro de que dispomos dará ainda que vivamos mais um século.
– Eu sei – disse a esposa mecanicamente – quase sem autorizar-se a resposta.
Iracema nunca fora apegada ao dinheiro, que considerava uma coisa suja, procurada e adorada por tanta gente má que se esquecia de Deus. Sempre percebeu a ganância humana, o desejo irrefreável e jamais satisfeito do enriquecimento que endurece os corações, tornando os homens desumanos e empedernidos. Nunca tivera da riqueza excessiva qualquer momento de paz – ela só servia para trazer preocupações, semear trampas, destruir o amor e as amizades.
O que ela queria mesmo era um lugar sossegado, em que pudesse viver, talvez pescar e caçar como seus antepassados, sem os vergastes da ganância e do exagerado conforto. Sabia ela que de um cobertor de lã, ao relento de uma madrugada, tudo era uma questão de adaptação, de ter ou não ter. Por isso os cães dormitavam ao relento, mais tranquilos do que um milionário insaciável, imerso num estofado felpudo de um quarto luxuoso.
“Por que muito dinheiro, para quê?” – perguntava-se ela, olhar perdido naquele paraíso do qual se sentia expulsa, como Adão e Eva o foram do éden.
Ricardo dispunha do prazo de 30 dias para entregar o imóvel ao comprador. Neste ínterim adquiriu, num lugar dos mais aprazíveis e confortáveis, uma ampla residência recém-construída na orla florescente da praia de Camburi. Embora apenas promessa, Camburi era um dos lugares mais lindos, sossegados e promissores da Capital.
Transferiu-se para lá e depositou todo seu dinheiro, que somava respeitosa quantia, numa caderneta de poupança. Isto lhe renderia o lucro suficiente para que ele e sua família levassem, pelo resto de seus dias, uma vida sem preocupação financeira.
Neandro foi matriculado num dos melhores estabelecimentos de ensino da capital. Tudo parecia estar dentro dos planos da família: uma casa nova num bairro dos mais promissores; um mar que ninguém poderia afastar; o dinheiro aplicado em lugar seguro, com rendimentos que não exigiam chuva nem sol…. tudo parecia muito seguro – o mais seguro possível. Apenas Iracema sentia-se um tanto desambientada, mas Ricardo estava certo que, em pouco tempo, ela se acostumaria.
Aos poucos, certamente, o ar frio e saudável das montanhas, o regato límpido e sonolento que descia das encostas com seu burburinho embalador, os sanhaços e sabiás que cantavam pelas murteiras e o lindo panorama que se descortinava a perder de vista seriam esquecidos, ou pelo menos cederiam seus lugares ao chuá eterno das ondas que arrebentavam na praia, sempre repleta de banhistas, de barcos de pescadores que navegavam ao largo, de navios que procuravam a entrada da barra e de sons de aves marinhas que jamais possuíam a maviosidade daqueles lindos pássaros canoros de sua terra paradisíaca.
Para arrefecer um pouco o impacto de tão brusca mudança, a família havia combinado ir todas as manhãs à praia, pelo menos até às 9h, quando retornariam para preparar o almoço e arrumar os objetos escolares de Neandro. O menino, com seus onze anos – tendo todos os dias as areias da praia e sua bola para correr atrás, o sol para arder-lhe nas faces juvenis, os siris para escavar na areia, as ondas para estapear-lhe a carne fresca, não parecia sentir tanto a brusca transformação a que fora submetido. Ricardo, principal culpado de toda aquela mudança, não ousava tecer qualquer comentário a respeito, e Iracema, calma e conformada como sempre, preferia enclausurar-se no silêncio do que remexer inutilmente numa coisa que considerava irreversível. A vida parecia tomar seu novo e definitivo rumo. Agora, mais do que nunca, se entregaria a seus livretos de pensamentos e manuais religiosos.
CAPÍTULO 5
1960. A rua estava deserta. Apenas um garoto esquálido em seus andrajos andava pela calçada, com uma cesta de vime surrada, tentando vender pipocas, pirulitos e outras guloseimas. Um carro veio e parou no sinal vermelho. O garoto se preparava para oferecer seus quitutes quando dois vultos irromperam, não se sabe de onde, e apontaram uma arma bem na cabeça do motorista. O menino ficou estatelado, boquiaberto, cheio de medo e de terror. Um dos assaltantes entrou pelo outro lado do carro. Também sacou de um revólver e apontou para o motorista, obrigando-o a saltar e ir para o banco de trás, enquanto o outro dava a volta e tomava o volante. Depois, antes ainda que o sinal abrisse, o carro arrancou, curvando à esquerda e desaparecendo. Só então o menino pareceu retomar a respiração. Sentiu as mãos frias e uma estranha sensação.
Logo depois passou outro carro, depois mais outro. A rua parecia ganhar movimento. Tudo voltava ao normal, como se nada tivesse acontecido. A cada um que passava o rapazinho parecia querer dizer alguma coisa, mas todos, indistintamente, passavam ao largo, desconhecendo sua presença.
O garoto estava ali, mas para os transeuntes, o passado, embora recente, não deixara nenhuma marca visível. Era como se um tubarão feroz tivesse ferido sua presa nas águas eternas do mar: exatamente ali, num ponto exato das águas ele a feriu, mas logo, o silêncio e a sua retirada, tudo apagou. Outros peixes que por ali passarem jamais irão imaginar o ato cruel que ali transcorreu. Assim são os lugares e a vida. Onde hoje dobramos nossos joelhos, bem pode ter havido um crime hediondo; no lugar em que agora se engendra as trampas, bem pode estar soterrado o rastro de um santo…. Ninguém consegue imaginar os segredos que que cada palmo de terra encerra, nem os acontecimentos que o tempo tenta apagar.
O carro seguiu por uma rua estreita, fez algumas voltas, ganhou uma avenida comprida e foi saindo da cidade. Um quarto de hora depois, curvou à direita, subiu uma rampa íngreme e estacionou em frente a um barraco de madeira abandonado, sustido por podres vigas de pequi. Um dos assaltantes desceu, deu uma olhada para os lados e fez sinal de positivo, erguendo o polegar. O outro arrancou o homem de dentro e empurrou-o para o interior do barraco.
– É, sacana, vai ver agora como é bom ter muito dinheiro. Vai desembuchando logo: quanto tem? Não minta. Se mentir, só o diabo vai contradizê-lo – e dizendo isto foi logo desfechando violento pontapé entre suas pernas. O homem curvou-se todo e caiu gemendo. Ergueu-se em seguida, quase de joelhos, tomando posição de súplica:
– Pelo amor de Deus, não me matem. Podem levar tudo o que eu tenho, mas não me matem – e ainda se contorcendo de dor, começou a ter uma crise nervosa incontrolável. Tremia, chorava e de repente começou a gritar por socorro e pelo amor de Deus, o que irritou, desvairadamente, os assaltantes. Um deles desfechou novo pontapé, desta feita no rosto, fazendo o sangue esguichar longe. Vendo aquilo, o homem entrou em desespero total, gritando a todos os pulmões:
– Valha-me Deus…Iracema, Neandro, ajudem-me! …
Arseno agarrou-lhe pelo pescoço e tentou sufocar a voz, mas o homem parecia possuído de descomunal força. Desvencilhava-se e gritava a todo pulmão:
– Não, pelo amor de Deus, não! Ajude-me Deus, não me matem, não me matem!
Não tendo como sufocar aqueles gritos que acabariam sendo ouvidos a qualquer momento, Josemar sacou o revólver e detonou-o, impiedosamente, nas têmporas do homem. Ele deu um gemido rouco e tombou inerte.
– Cala ou não cala, filho de uma puta. Detesto pegar gente frouxa!
– E agora? – perguntou o outro que parecia apalermado diante da cena inesperada. E ele mesmo concluiu:
– Não tem problema algum. Façamos de conta que ainda está vivo e vamos ao trabalho. Vamos cobri-lo de terra aqui mesmo, dentro do barraco. Não vamos mais precisar disto aqui, por isso não correremos o risco de sermos flagrados no local do crime.
– O idiota podia estar vivo!
– Não vai me dizer que está arrependido! Não era seu sonho matar um homem?
– Jamais me arrependerei de alguma coisa. Não será com pouco que vou esquecer o que fizeram com nosso pai. Alguém vai ter de pagar; alguém não, muita gente.
– Não tenhamos pressa – concordou, friamente, o outro.
Josemar e Arseno eram, então, dois irmãos com seus vinte e vinte e dois anos, respectivamente. Não chegaram a conhecer a mãe que os abandonara, ainda quando crianças, para fugir com outro, deixando o pai em situação difícil para criá-los. Nesse tempo, não tendo nenhuma instrução e com certos problemas de saúde, o velho se viu num dilema cruel: ou morria e deixava morrer de fome os filhos ou se imiscuía em atos não condizentes com sua maneira sempre honesta de viver. Optou pela segunda.
Numa tarde, voltando para casa de estômago vazio, viu uma padaria aberta e ninguém, no momento, para proteger a mercadoria. Hesitou um pouco, mas logo a lembrança de seu desemprego, de sua saúde e de duas crianças famintas que o esperavam em casa, fê-lo decidir-se de vez. Olhou para um lado, para o outro e, sorrateiramente, apanhou alguns pães, saindo em seguida. Uma senhora que o olhava do outro lado da rua, gritou a todo pulmão:
– Ladrão, ladrão, peguem o ladrão!
Ao ouvir aqueles gritos, o homem pôs-se em desabalada carreira, com os pães esvoaçando em cada salto que dava. Um pedreiro que trabalhava numa calçada logo em frente, vendo o homem esfarrapado que corria pela rua e o vozerio que agora fazia coro, num ato, talvez impensado, arremessou meio tijolo contra o fugitivo, acertando-o em pleno rosto. Diante do impacto, o homem caiu no chão, sem sentidos, esvaindo-se em sangue.
Logo a polícia foi chamada e o pobre homem, faminto e desonrado, foi levado num camburão. Na cadeia não adiantaram as rogativas de que era um homem honrado e que havia tomado os pães por ter, em casa, duas crianças famintas.
Sem documentos, sem amigos, sem ninguém que pudesse socorrê-lo, o homem não resistiu mais de três dias. As surras, as pancadas, somadas à fome e ao desespero, levaram-no deste mundo. As crianças ficaram órfãs e abandonadas. Com o passar do tempo foram tomando consciência do ato desumano e cruel que praticaram contra o pai deles.
Despertos para a crueza do mundo, começaram a ter a vida que é comum a toda criança desamparada. Sem lar, sem emprego, sem escola, sem amor, enfim, como cães abandonados, cada um iniciou sua vida de bandalho. Arseno, o mais velho, tornou-se, bem cedo, um assassino perigoso. Josemar ainda não tinha cometido nenhum crime de morte e parecia realizado com sua estreia em Ricardo.
Tempos atrás ficara desolado quando soube que o policial que havia ferido num tiroteio havia escapado. Logo a fama dos dois penetrou no mundo da polícia. Passaram, então, a ser tratados com maior respeito e logo receberam, à socapa, um convite do delegado para uma conversa amistosa. Encontraram-se numa taberna próximo ao mangue da Vila-Garrido. Ali conversaram longo tempo e depois se despediram como velhos e cordatos amigos: infalível encontro que quase sempre acaba acontecendo com gente da mesma laia.
Depois deste dia, os dois já não mais tiveram o desprazer de encontros inesperados com a polícia, e o delegado, sem que ninguém soubesse explicar, logo começou a construção de uma mansão, num dos lugares mais privilegiados da cidade.
O dono da taberna era irmão do delegado. Todos os sábados, exatamente às 22h, depois que o irmão chegava, a taberna era fechada. Logo depois apareciam Arseno e Josemar e a partilha era feita na mais escrupulosa honestidade. O irmão do delegado levava 3% da coleta semanal para manter os sigilosos contatos, o que, segundo ele, dava para suprir, regiamente, os lucros que teria se continuasse com a bodega aberta.
Neste dia, os dois assaltantes só chegaram depois da meia-noite, quando por força do horário, a taberna já estava fechada. Um tanto irritado, o delegado já se preparava para sair quando ouviu três batidas características na porta. Mandou o irmão abrir e foi postar-se na cozinha, já com a saída aberta, pronto a evitar encontros desagradáveis e inesperados. Logo que percebeu de quem se tratava, retrocedeu furibundo:
– Não gosto que me façam esperar.
– Jamais irá agradecer tanto a uma demora – falou o mais velho, expondo o saco que trazia, no meio da sala.
– Vamos, diga logo, que tem aí dentro?
– O calmante infalível para seu nervosismo, pode acreditar. Destas doenças não há médico que entende melhor que eu.
O delegado desfez as feições austeras que dominavam seu semblante:
– Vamos logo, abra esta droga. Já estou bastante sonolento para acreditar que tudo isto aí seja dinheiro.
– Em notas graúdas – disse Arseno, retomando o saco do meio da sala e abrindo-o ante o olhar estupefato do delegado.
Só de madrugada o acerto foi concluído. Primeiro saiu o delegado. Portava um grosso embrulho debaixo do braço. Meia hora depois, um dos assaltantes e em seguida, o outro.
A rua parecia morta e deserta. Nem mesmo os primeiros velhos cheios de insônia haviam se levantado para buscar o pão para seus netos. Tudo era silêncio tumular: cenário propício para tudo o que acontece de mais brutal no mundo.
Não muito longe dali duas pessoas esperavam, ansiosas, o retorno do marido e pai. Haviam pago o resgate conforme todas as exigências e não tinham dúvidas que os sequestradores cumpririam a palavra.
CAPÍTULO 6
Depois de três dias de tensa e inútil espera, Iracema foi à polícia. A delegacia, por coincidência, não ficava muito longe de sua casa. Acompanhada de seu filho, agora com 13 anos, ela aguardou ainda um bom quarto de hora para ser atendida. Do lugar em que se encontrava, por meio de um vidro fumê, embora com pouca visibilidade, ela podia divisar a figura cheia de empáfia do policial. Ele conversava e ria, dividindo estúpidas futilidades com outro homem de barba hirsuta e longos bigodes retorcidos para cima, e que não se dera, sequer, à mesura elementar de tirar o chapéu de abas largas que trazia na cabeça. Ali, alheio aos problemas e ao sofrimento de dezenas de injustiçados que aguardavam para reclamar seus parvos direitos, ele dava gargalhadas espalhafatosas, pondo em dúvida toda e qualquer teoria que até hoje se engendrou sobre remorso e peso de consciência.
Era um mulato, poder-se-ia dizer, negro, um tanto obeso, baixa estatura, cabelos negros e ondulados, seguros no lugar por uma pasta brilhosa. A pele do rosto era cheia de espinhas e cravos, o que lhe dava aspecto repugnante de uma casca de jaca deteriorada. Tinha dentes alvos, cujo brilho talvez se devesse mais ao contraste com a pele escura do que propriamente a algum clareamento dentário.
Fora empossado no cargo por um amigo político, desses que mantêm a perene guerra sem sangue de que já se falou no passado. Como todo cargo político, ele fazia jus ao que dele se esperava, protegendo criminosos e assaltantes, depenando indefesos cidadãos, praticando, enfim, todo e qualquer ato que pudesse aumentar-lhe o saldo bancário, sempre sob a proteção de algumas divisas sem mérito. Quem iria denunciá-lo num país, do qual já dizia Rui Barbosa, o cidadão sentia vergonha de confessar-se honesto?
Riu, falou alto, usou todos os recursos disponíveis para firmar sua autoridade e muito se lamentou quando o visitante mal-encarado se ergueu, fazendo menção de se retirar.
Depois, tomando ar de seriedade, mudando como um camaleão diante do perigo, ele fez tilintar uma campainha que lhe estava ao alcance da mão. Logo apareceu um soldado alegre:
– Mande entrar quem tiver chegado primeiro.
Iracema entrou, acompanhada de seu filho. Ficaram de pé em posição de respeito, aguardando que a briosa autoridade se dignasse dar conta da presença deles. Por fim, ajeitando o cigarro no cinzeiro, ele ergueu a cabeça com desagrado:
– Que aprontaram desta vez? – perguntou cinicamente, como se ali estivessem dois inveterados malandros.
Iracema, desconcertada com tamanha frieza, gaguejou o acontecido, contando tudo quanto sabia sobre o sequestro de seu marido. Mal deu ciência dos fatos, o delegado perturbou-se, ajeitou-se na cadeira e convidou-a a sentar-se. Ficou pensativo por alguns minutos como a permitir a chegada de ideias fugidias e depois repreendeu:
– Aí está o grande mal! Vocês só procuram o médico depois que a doença não tem mais cura. Agora me digam: o que um delegado, apesar de honesto e cumpridor de seus deveres como eu, pode fazer diante de um mistério? De qualquer forma, prometo envidar todos os esforços para conseguir uma pista e tentar desvendar o crime.
Iracema, apesar de usar todo tempo disponível em leituras – seu único passatempo – não era mulher de longos raciocínios. Mesmo assim, sentiu no ar aquele clima estranho que girava. Não sabia a razão, mas não conseguia encontrar fidelidade naquele olhar torvo e desinteressado. Qualquer pessoa simples, não sendo tão idiota, poderia perceber que o delegado não era homem de confiança. A própria vizinha, quando soube que Iracema iria procurá-lo, torceu a boca, grunhindo uma interjeição própria de quem não leva muita fé. Entretanto, não havia outro lugar nem outra pessoa que devesse ser procurada numa situação embaraçosa como aquela.
Quando Iracema deixou a delegacia e ganhou a rua, Neandro perguntou aflito:
– Será que papai não vai voltar mais, mamãe?
– Oh, filho! Estou fazendo muito esforço para acreditar em sua volta.
– Isto quer dizer que a senhora acha que os ladrões o mataram?
– Deus queira que não.
– Se fizeram isto, hei de me vingar, juro por meu pai!
E os olhos do menino pareciam brilhar de um sentimento até então não notado por sua mãe. E ele não brincava, porque a opressão faz nascer o desejo de também oprimir, principalmente quando se desconhece certos princípios morais e religiosos.
A mãe olhou-o fixamente:
– De uma coisa quero que saiba, meu filho: nunca a gente deve consertar uma parede fraca com marretadas. Não se combate a violência com a própria violência. A única arma capaz de vencer a brutalidade é a mansidão. Você não irá modificar o mundo. Aqui as coisas acontecem porque não há justiça. Os maus têm campo aberto para agir e sua audácia é hasteada na impunidade. Você não viu o descaso do delegado? Dava para perceber que ele pouco estava se importando com o que possa ter acontecido ao Ricardo. O que importava era ele estar ali sentado numa poltrona, cheio de autoridade, sob a inescrupulosa paz de um cargo político, imune aos castigos e às leis que tão-somente são exigidas do povo humilde. Há gente que não se preocupa com os outros. Por isso tudo acontece. Mas gente assim, meu filho, é necessária, para que haja dificuldades e tropeços no caminho de cada um, a fim de que tenha a oportunidade de provar que é um forte, um homem de valor. Por isso lhe peço: tire de seu coração, desde já, todo e qualquer pensamento de vingança. Os pensamentos, ainda que despretensiosos, são o início de nossos atos. Foi com um primeiro lampejo de pensamento, depois alimentado, que grandes acontecimentos, bons e maus, se deram na humanidade. Não esqueça disto, meu filho, e alimente apenas bons pensamentos em sua mente.
Neandro olhou a mãe, mas dos seus olhos, o brilho estranho ainda não havia se dissipado.
Quinze dias depois, um cachorro desenterrou o cadáver de Ricardo e o mau-cheiro acabou atraindo um matuto curioso que passava por perto. Entrou para olhar e saiu horrorizado, fazendo todo o escarcéu que normalmente fazem as pessoas simples não acostumadas com atos cruéis daquela natureza.
O delegado chegou bem depois e como bom ator contracenou a contento com todos os demais curiosos e jornalistas, fazendo um discurso enfadonho e chinfrim, no qual se esforçou sobremaneira para ocultar sua personalidade de bandalho.
Mandou que buscassem Iracema e tendo ela reconhecido o cadáver como sendo de seu marido, deu-lhe as condolências, prometendo não economizar esforços para encontrar os criminosos e trancafiá-los para sempre.
Iracema voltou para casa. Neandro estava sozinho, debruçado no peitoril da janela, olhando o mar eterno que se abaulava em sua frente. Seus pensamentos andavam sobre as ondas, revoltos e inseguros como elas. Estava certo de que seu pai estava morto: ele sentia isso. Então começou a lembrar de seu torrão, das montanhas bonitas, da torrente espumante, do sanhaço e do sabiá. E tudo parecia tão longe, tão distante…, um mundo imaginário. Jamais a vida retornaria: tudo estava tão perdido e acabado, assim como sua esperança num futuro promissor.
Viu uma gaivota que mergulhou no mar e nada conseguiu. O mar parecia infinito, mas a gaivota por certo estava com fome. Ela continuou voando, olhar fixo nas ondas. Mergulhou outra vez e voltou sozinha. Ergueu-se e desapareceu voando, procurando outras águas, outras praias. Neandro sentiu-se só como aquela gaivota solitária e, como ela, certamente, teria de lutar e caminhar para também sobreviver.
– Oh, meu filho! – foi dizendo Iracema tão logo desfez o umbral da porta.
O menino virou-se, mantendo sempre seu olhar de ódio e de revolta. A mãe estremeceu. Abraçou-o temerosa. Ele falou primeiro:
– Já sei mãe, aliás, já sabia desde o dia em que meu pai devia ter chegado e não chegou. Eles o mataram, não é? O homem que encontraram era meu pai, não é isto?
– Meu filho, ajude-me a ter coragem. Estou tão vulnerável, tão fraca!
– Ajude-me meu filho, seja forte.
– Alguém vai ter de pagar por tudo isto, mamãe.
– Tudo tem seu tempo, meu filho. Deixa a justiça para Deus. Mais dia, menos dia, todos nós seremos julgados, teremos de estar diante dele e prestar contas de nossos atos.
– Não vou esperar tanto, mamãe.
Sentindo que aquela não era a hora propícia para aconselhar o filho, Iracema calou-se, apertando-o contra o peito e chorando convulsivamente. Lá fora a vida continuava, a despeito do sofrimento e da dor que ia dentro daqueles corações. Trazia em si o peso e a marca das fatalidades irreversíveis.
Logo depois, Iracema entregou a casa ao fiador que lhe completara o dinheiro exigido pelos sequestradores e foi morar numa palafita das mais vulneráveis, bem perto do mangue, na praia do Suá.
A solidão prostituía-se, maculava-se, fugia de sua definição de desesperante silêncio, e ruía, estrondava como mil vulcões naquelas almas à deriva. O cheiro nauseabundo do mangue, os berros da pobre mãe ao filho rebelde, a tosse de um tuberculoso mais abaixo…, tudo gritava e dizia que eles haviam sido expulsos do céu e estavam, irremediavelmente, às portas do inferno.
O coração de Iracema desenfreava-se em cada lembrança, em cada olhar nas latas vazias; em cada tato num saco dobrado. A miséria! Sim, a miséria, a incerteza, quem sabe, o fim?!…
Os olhos de Iracema iam do nada ao filho desolado. Ah!, aquele menino feliz que pulava o riacho, que vinha sem as unhas dos dedos, que tinha um mundo de sonhos pela frente!
“Que será de você, meu filho?” E a pergunta morria no ar, naquele ar fétido, naquele panorama bruxuleante e triste. Era seu primeiro dia de miséria e vinha duro e cortante como o fio de uma espada reluzente e afiada.
CAPÍTULO 7
1961. Pe. Antônio Vieira, jesuíta português que passou a maior parte de sua vida no Brasil, já dizia que toda fortuna traz consigo o desconhecimento: se é próspera, a pessoa se desconhece; se é adversa, a pessoa é desconhecida.
Assim parecia ser. Nunca, enquanto ricos, talvez eles tivessem pensado seriamente no problema dos outros, tanto que Ricardo, apesar de não confessar publicamente, sentia em seu íntimo um grande medo de arcar com a responsabilidade de Orácio viver a expensas dele. Agora, porém, que estavam despojados de tudo, jogados na mais extrema miséria, sentiam a crueldade que, por incúria e insensatez, haviam atraído sobre si. Dos amigos que frequentemente compartilhavam sua mesa, nem mais notícias.
Isolados num recanto fétido, rodeados de pessoas maltrapilhas, esquálidas, desconhecidas e infelizes, eles pareciam estar vivendo o mais longo pesadelo de suas noites atribuladas.
Neandro, com os pés lambuzados de lama do mangue, tentava, não sem uma nesga de nojo, capturar um caranguejo que se metera entre paus podres que a maré trouxera. Iracema, apesar de sua quase invulnerável calma e resignação, fitava o menino, quase adolescente, cheia de ternura e tristeza.
O tempo ia passando e ela não via, para si, qualquer chance, por diminuta que fosse, de livrar-se daquela extrema miséria. Mas em tudo, o que mais lhe doía, era o olhar de Neandro, que depois da morte do pai tornara-se taciturno, refletindo a revolta que lhe corroía a alma.
Um pouco antes ele pensava em estudar, em ser um homem respeitado. Sentia facilidade para reter o que lhe ensinavam, tinha o dinheiro necessário para se formar. Com a morte do pai, tudo acabou, apagando a chama da esperança e dos sonhos.
Iracema olhava o menino que, sem muito entusiasmo, revirava as imundícias do mangue. De repente percebeu que ele parou e ficou a olhar para um ponto qualquer, como se existisse ali alguma coisa muito importante a ser examinada. Corpo encurvado, uma das mãos na lama, outra dependurada, ele se mantinha extático, como que petrificado diante de uma estranha visão. Iracema sabia o que estava acontecendo.
Chamou-o:
– Neandro, deixe o caranguejo e venha até aqui. Preciso conversar com você.
O filho continuava em posição estranha, absorto em seus pensamentos, alheio ao mundo hostil que o cercava. A mãe insistiu, alteando a voz. Então ele, sobressaltado como se tivesse sido surpreendido em alguma prevaricação, virou-se de chofre. A mãe falou docilmente:
– Por favor, meu filho, venha cá. Preciso falar com você.
Ele veio, vibrou as mãos para livrar-se da sujidade, chutou o ar arremessando a sujeira distante e entrou. No rosto, marcas de lama e de sol que, contudo, não conseguiam desfazer o frescor da adolescência que despontava. As feições da miséria ainda não haviam se implantado inteiramente. Cheia de dor, engolindo as angústias que pareciam sufocá-la, Iracema apoiou as mãos em seus ombros:
– Para se conhecer os pensamentos de uma pessoa, basta olhar o que ela está fazendo, as ações que anda praticando e o modo com que as faz. Desde que assassinaram seu pai, sinto que uma revolta muito grande fez morada no seu coração. Eu também estou triste e abatida, mas sinto que não há dor, por maior que seja, que o tempo não amenize e que, enfim, a morte não venha curar. Já lhe disse isto uma vez, meu filho, mas sinto que preciso repetir, bater como se faz com um martelo, para que em cada vez, esta ideia possa encravar-se como um prego em seu coração. Não tente retribuir a ninguém o mal que fizeram a seu pai. Se assim agir, não terá nenhuma diferença deles. Para que você seja superior e diferente, tem de agir de modo diferente, perdoando e enfrentando a vida como ela se lhe apresentar. Depois de tudo, temos que acreditar em Deus, pois se isto também ruir dentro da gente, então nada mais restará. Deus sabe o que está acontecendo e o porquê de tudo isto. O homem jamais seria completo se só conhecesse a vida sem dificuldades. É como quem se põe a subir uma montanha, apenas do meio para cima: a parte baixa lhe seria desconhecida. Agora conhecemos também o mundo de baixo, a dor que impera na pobreza. Se um dia voltarmos ao topo da montanha, tenho certeza, não iremos deixar outro Orácio sair pelo mundo, desorientado e triste. Você entende o que estou querendo dizer, meu filho?
Neandro olhava a mãe, mas parecia não existir palavras para demover as tristes e funestas decisões que haviam se arraigado em seu coração. Ela percebeu prontamente. Pensou rapidamente numa saída, olhou em diversas direções, como se em uma delas estivesse a chave daquele mistério e, desiludida, abraçou o filho, deixando rolar em suas faces, a dor que vinha de dentro. Neandro, no entanto, estava firme, olhos cravados sempre num ponto qualquer. Quando a mãe o deixou, ele saiu pela porta da palafita e ganhou a ruela imunda do mangue.
Mais à frente havia um rapazinho de uns 13 anos, bem vestido, já com uma barba que prometia vingar medrando pelo queixo e lado do rosto, olhando-o com certa curiosidade. Neandro continuava seu caminho. Levantando-se o garoto foi lhe seguindo os passos. Um pouco mais, Neandro parou diante de um lixeiro e começou a empurrar com os pés, o amontoado de imundície. De repente, agachou-se e tomou um naco de pão que ali havia. Olhou-o minuciosamente, fazendo menção de levá-lo à boca. O nojo veio-lhe agudo. Ele parou. Uma lágrima brotou-lhe. Em seguida, com todo esforço que conseguiu juntar, meteu-o na boca e, quase soluçando, começou a mastigar raivosamente.
O garoto que o acompanhava à distância aproximou-se então, tocando-lhe no ombro:
– Neandro? …
Ele voltou-se como que atingido por um raio.
– Quem é você?
– Alguém que lhe deve a vida.
Neandro repuxou as pálpebras, diminuindo a abertura dos olhos como quem busca alguma recordação. Depois foi afrouxando a fisionomia:
– Orácio?!…
– Em carne e osso.
– Meu Deus, como você está diferente! Se houvesse possibilidade de ser outro, jamais pensaria em você.
– É, eu mudei. Cresci bastante. Quando nos conhecemos, éramos quase do mesmo tamanho, lembra? Agora quem nos olha, bem pode dar-me alguns anos a mais, apesar de eu ser mais novo. Reconhece por acaso este sobretudo? Vim devolvê-lo como prometi.
Neandro olhou o amigo, enternecido. Parecia-lhe, agora, a corda estendida à sua alma, caída dos abismos da insegurança e do medo. Como antes tirara do despenhadeiro a ele, agora se via por ele içado, também num momento de grande desespero. Verdadeiramente – pensou – o que fazemos aos outros, torna a nós.
Sentiu as forças voltarem, as lágrimas secarem. Tinha um amigo, um só, mas tinha um amigo de verdade. Perguntou cheio de contentamento:
– Por aonde andou durante todo este tempo?
– É uma longa história, amigo – disse Orácio, acentuando bem a palavra amigo, como quem tenta retribuir uma das poucas e agradáveis lembranças de seu tempo de criança.
E não encontrando mais limites para suas curiosidades, Neandro ainda observou:
– Como veio parar aqui? Como me descobriu? Por que veio procurar-me?
Orácio pensou um pouco, pois a ideia de procurar Neandro ainda não estava bem amadurecida naquele momento. Há tempo vinha acompanhando-lhe os passos e as desditas, mas não sabia se era justo misturar o amigo na sujeira que lhe mantinha a sobrevivência. Com um nuto desfez tais pensamentos, mesmo porque a miséria que notava infiltrada no companheiro, não podia dispensar a ajuda, ainda que fosse do diabo.
– Passei por maus bocados, companheiro. Também revirei lixeiros, caixotes de supermercados. Fui enxotado como um cão, dormi ao relento. Houve noites que imaginei não suportar. Um dia, eu estava vendendo pipocas quando vi dois homens… bem, eles estavam fazendo uma coisa feia. Fiquei assustado, mas nem imaginei que tivessem dado pela minha presença. Mesmo assim, dias depois eles me procuraram dizendo que eu não falasse nada sobre o que tinha visto e que eles iriam me ajudar. Deram-me dinheiro e roupa, pagaram-me um quarto de pensão e lá vivo sem nenhum problema.
Agora, me pergunta por que vim procurá-lo! Sabe que lhe devo a vida e deve ficar sabendo, também, que é de você a única lembrança afável que tenho do passado. Se pudesse imaginar quanto medo senti naquele dia lá no despenhadeiro, talvez pudesse entender as razões que me fizeram acompanhar o seu caminho. Desde o dia em que saí de lá, venho seguindo os seus passos, sempre na esperança de poder retribuir o que fez por mim. Pois bem, este dia chegou. Quero que venha morar comigo. O quarto dá para nós dois.
E mamãe? – perguntou prontamente Neandro.
– Ela fica. A gente a ajuda de outra maneira. Meus amigos já disseram que não querem que me envolva com muita gente. Você é um caso particular e tenho certeza que eles irão compreender.
– Sem ela, nada feito. Deve entender que um bom filho não pode abandonar sua mãe desta maneira.
– Você não estará abandonando e sim ajudando. Não vê que juntos, trabalhando, poderemos ganhar dinheiro, vencer na vida e até comprar uma nova casa para sua mãe?
Neandro pensou: a ideia era maravilhosa. Talvez não houvesse outra coisa com que sonhasse mais na vida. Entre todos os malefícios que podiam ocorrer-lhe, talvez viver por uns tempos separado da mãe, não fosse o pior. Preferiu, no entanto, não falar mais estritamente sobre o assunto. Depois que pensasse bem, tomaria uma decisão.
E os dois conversaram por longo tempo. Muita coisa que podia ser dita, foi dita.
Neandro teve uma boa refeição depois de muito tempo e também se deu ao luxo de levar alguns pães com salame para sua mãe. Ela, sem muitas perguntas, comeu com avidez.
Ninguém jamais poderá descrever a miséria sem tê-la vivido em toda extensão. Ela tem seus subterfúgios, seus negaceios, suas fraquezas e deslizes… como a vida de um milionário ganancioso e insaciável também tem pelo dinheiro.
A miséria e a fartura são dois reinos distintos disputando o mesmo espaço, assim como Deus e o diabo são dois diferentes concorrentes à cata de nossas almas. Nós seremos o troféu do vencedor.
CAPÍTULO 8
Há aproximadamente 400 anos antes de Cristo, já um famoso dramaturgo grego chamado Eurípedes afirmava que o caráter do homem é formado pelas pessoas que escolheu para conviver. Sartre, Marx e pensadores mais antigos da Grécia também defendiam essa ideia, sem atentar para a influência que o desenvolvimento, impulsionado pela tecnologia, principalmente a digital, viria ocasionar no futuro.
Corria o ano de 1962. Neandro contava agora com 15 anos. Tornara-se um adolescente sem grandes atrativos físicos. Pequeno, magro, cabelos e olhos castanhos, maxilar inferior proeminente. Estes detalhes pouco atrativos, porém, não contavam diante de sua incrível resistência física e de sua privilegiada capacidade de dizer, com acerto, o que lhe ia no pensamento.
Depois daquele primeiro encontro com Orácio, não levou tempo para que se enturmasse com seus “protetores” que, embora ele não soubesse, eram os mesmos que haviam sequestrado e matado o pai dele.
Orácio, imaginando salvaguardar o amigo, jamais contara, e ele, com o passar do tempo, já não parecia tão afoito em desvendar o mistério daquele assassinato que o orfanara.
Sua mãe não estava errada quando afirmava que o tempo conseguia amenizar as agruras, acentuar o esquecimento e criar o perdão.
Orácio parecia mais satisfeito com isso, pois sabia da periculosidade de Arseno e Josemar e temia pela sorte do companheiro, caso o passado fosse esclarecido.
Na realidade, os quatro formavam, praticamente, duas duplas distintas, embora em muitos casos trabalhassem juntos. Arseno e Josemar eram frios e calculistas, não se apiedavam de uma velhinha abandonada ao relento e jamais suas amizades se hasteavam em pessoas que não lhes dessem retorno financeiro. Orácio e Neandro eram dois sentimentais metidos no mundo do crime por contingências adversas aos seus caracteres morais. Eram duas pessoas honestas que haviam descido à orla do abismo em busca de um lugar ao sol. Nem sempre os valores morais são bastante resistentes para suportar a fome e a miséria. Desta comprovação, a história é proba.
Arseno e Josemar normalmente usavam os dois mais para armar as trampas do que para executar algum trabalho mais perigoso e desumano. Davam recados, avisos, preparavam o terreno, coisas de somenos importância, mas que podiam redundar sempre em hediondos crimes. Os dois, até então, não sabiam do verdadeiro esconderijo de Arseno e Josemar, que faziam absoluta questão de que isto permanecesse no mais religioso sigilo. Não confiavam em ninguém.
Os avisos de algum trabalho eram sempre dados por meio de telefonemas com identidade falsa, e se os dois tivessem que se encontrar com eles, tinham também um ponto comum, que nunca era o lugar em que moravam. E assim a coisa ia funcionando.
Os dissabores de encontros inesperados com a polícia já não mais aconteciam, pois, o delegado, único que podia criar-lhes problemas, partilhava das falcatruas.
Em dezembro, por ocasião do aniversário de Orácio, Neandro mandou confeccionar um bolo. Comprou três garrafas de vinho, encomendou alguns pratos num bufê modesto da própria rua e quando o aniversariante chegou, encontrou-o sozinho no quarto, sob a luz tênue de uma vela sem presteza:
– Aqui estão os convidados – pilheriou Neandro, curvando-se e apontando para si próprio.
– Acredite-me – retrucou Orácio – não me poderia sentir mais honrado com “tanta gente” – e dizendo isto, abraçou o amigo efusivamente.
Ficaram por um bom lapso de tempo naquela posição e depois, um tanto desconcertados, afastaram-se. Ambos não sabiam o que dizer diante de tantas coisas a falar. Amavam-se como os cristãos dos primeiros tempos.
A amizade que existia entre os dois era algo tão puro, quão sujo era o jogo que aceitavam para sobreviver. Quantas vezes se punham em silêncio constrangedor, como se um fosse a causa do outro estar no mau caminho. Em seus corações, o senso de vingança, embora imbele e em doses diferentes, ainda medrava, dominando o bom senso e a crença em algo mais sublime.
Orácio não podia evitar a lembrança de seus primeiros padrastos, e Neandro, os assassinos que, além de levarem seu pai, ainda haviam prostrado a ele e à sua mãe na mais estonteante miséria.
Os dois foram bebendo: um copo, um salgadinho, outro copo, mais salgadinho… risadas, lágrimas… coisas que o desregramento favorece e faz acontecer inesperadamente. Lá pela madrugada, já as garrafas de vinho estavam vazias, e a voz fanhosa e enrolada denotava que o cérebro já não ministrava, com acerto, as ideias que engendrava. Estavam bêbados.
Orácio, tentando erguer-se da cama para ir ao banheiro, foi ao soalho. Na descida, tonteou e vomitou grande parte de seus infortúnios. Neandro agachou-se para erguê-lo e juntos, cambaleantes, foram seguindo tropegamente. Mais se lambuzaram do que se banharam, mas de qualquer jeito, dezesseis minutos depois estavam novamente no quarto.
– Preciso dizer-lhe um segredo, amigo – engrolou Orácio.
– Pois pode dizer. Aqui tem um túmulo à sua disposição.
– Faz tempo, preciso dizer. Você é meu amigo e para um amigo de verdade não se deve ter segredos.
– É isto mesmo. Eu sou seu amigo e não há nada que eu não possa dizer a você.
– Lembra-se de um dia, quando o encontrei e disse que tinha melhorado de vida porque havia assistido a um malfeito de dois bandidos e eles…
– Lembro, lembro – entrecortou Neandro, dispensando a repetição.
– Pois bem, os bandidos eram Arseno e Josemar.
– Ah, ah, ah – estrondou Neandro numa deseducada gargalhada.
Eram aqueles dois safados, veja você, aqueles dois! São mesmo uns bandidos. Desde aquele tempo já andavam aprontando, hein – e dizendo isto, sem perceber a extensão do que iria ser revelado, pôs-se a rir, levado pela graça estúpida do álcool.
– Você está rindo, mas não me perguntou o que eles estavam fazendo.
– Isto mesmo: o que aqueles dois safados estavam aprontando nesse dia?
– Este dia já vai longe! Faz…faz uns três anos.
Cerrando um pouco os cenhos e arrotando um bafo acre, Neandro procurou lembrar-se: “Três anos, exatamente quando meu pai foi morto por uns crápulas.” Tomou ares de pesar e incitou, em seguida, o amigo a que continuasse o desabafo.
Orácio, diante da névoa que lhe embaçava o bom senso e do cheiro azedo que recendia, já não tinha nenhum discernimento entre o que devia dizer ou omitir. Mal Neandro se calou, ele disse:
– Aqueles safados, naquele dia, há três anos, estavam sequestrando um homem que parara num sinal vermelho.
Ao ouvir isto, Neandro, mesmo zonzo, deu-se conta do que o amigo lhe revelara. Mesmo assim tentou manter a aparência de calma e esperou que a confissão se fizesse inteiramente e não ficasse nenhuma dúvida sobre tudo o que imaginava ter acontecido naquele dia.
– E este homem era meu pai – ajudou Neandro, prendendo a respiração como a evitar que qualquer ruído impedisse de entender as palavras que viriam, sílaba por sílaba. Tanto tempo havia esperado por aquele momento!
– Aquele homem era seu pai, sim. Arseno e Josemar foram os homens que sequestraram, roubaram e mataram seu pai, deixando você na miséria em que se encontra.
Ao ouvir aquilo. Neandro agarrou o amigo, freneticamente:
– Miserável! Que belo amigo me saiu. Três anos escondendo de mim aquilo que eu mais procurava, fazendo-me de imbecil, tornando-me um auxiliar dos próprios algozes de meu pai. Três anos! Três anos! Ah, miseráveis!
E Neandro tanto falou que, quando deu por si, estava falando para si mesmo. Orácio, bêbado e cansado, caíra em sono profundo.
A dor de Neandro, no entanto, era mais forte do que a sonolência que a bebida desregrada causava. Assistiu ao desfile das horas amargas; pôde sentir a força do ódio em toda sua extensão. Ódio que, como veneno entorpecente, mantinha-lhe as pálpebras abertas, massacrava-o por inteiro, fustigava seu sono, roubava-lhe o descanso. Pôde, no início da escalada de seu tope, sentir o desconforto dos primeiros degraus. Agora sim, ele acreditava que se pudesse chegar ao cume, teria os louros dos heróis, daqueles que trilharam a vida do primeiro ao último palmo de seu espaço.
CAPÍTULO 9
1964. Arseno, Josemar, Orácio e Neandro caminhavam pela orla do mar como se fossem uma alcateia de chacais à procura de uma vítima indefesa. Iam devagar, esquadrinhando cada recanto. Não tinham nenhuma pressa, pois a noite apenas começava. A escuridão, o silêncio tumular, as trevas e seus atributos, sempre representaram a parte assustadora da vida. Os sensatos batalhadores procuram descansar e os malandros e maus, enquanto suas vítimas procuram descansar, os surpreendem, roubam e destroem.
Desde que Neandro descobrira os assassinos de seu pai, mudara completamente seu comportamento. Ao invés de reagir, de irritar-se, de agredir, comportava-se como um comparsa obediente, procurando assim não falhar quando desencadeasse sua vingança. Ele sabia que não se deve atacar um mal sem lhe enfraquecer, antes, os alicerces.
Arseno e Josemar, apesar da grande precaução que sempre os acompanhava, não desconfiavam de nada. Depois de tudo, conheciam o caráter de Neandro e acreditavam que não seria capaz de fazer-lhes qualquer mal. Era, para eles, um rapaz aturdido pela miséria e que não se importaria, nem quando soubesse, que eles haviam matado seu próprio pai – se é que um dia viesse a saber.
Orácio, embora estranhasse a mudança de comportamento do amigo, não conseguia atinar com sua finalidade, porque não se lembrava do que dissera naquela noite, levado pelo vinho.
Depois daquela indevida e inesperada confissão, Neandro parecia mais calmo, não demonstrando qualquer ressentimento. Somente ele sabia aonde queria chegar. Não tinha pressa, pois entendia que não podia falhar. Ia, dia a dia, angariando a confiança dos assassinos de seu pai. A hora adequada fatalmente chegaria.
A noite estava calma e saudável. No céu, miríades de estrelas pintalgavam a cortina negra do infinito com pequenos focos luminosos que piscavam sem cessar. O mar, embora calmo, fazia pequenas ondas que se quebravam na praia, num som agradável e embalador. Os quatro caminhavam, conversando, chutando latas vazias de cerveja pela areia, olhos atentos para uma vítima distraída. Assemelhavam-se a um bando de feras à espreita da última rês.
Numa ponta da praia, perto de uma pedra, um homem estacionara seu carro. Era Ubaldo Álvares, um homem maduro que ainda não se decidira a casar. Apesar de seus quase 40 anos, achava que o casamento seria a decisão final de sua existência. Depois dele, adeus vida livre de solteiro, adeus liberdade total, sem horas nem explicações. Por isso não havia ainda se decidido a arcar com tal responsabilidade. Era um homem realizado na vida, agora, muito religioso. Considerava o trabalho um meio necessário apenas para adquirir as coisas indispensáveis à sobrevivência. Jamais escravizou-se a ele.
Embora involuntariamente, herdara uma verdadeira fortuna e não parecia muito livre do remorso de ter sido duro com Edna e, consequentemente, com seu próprio filho. Por isso quietara, deixando o barco correr, agarrado à tênue esperança de que a vida lhe daria a oportunidade de reparar suas loucuras cometidas na juventude. Gostava muito de esportes e não havia uma folga que não fosse aproveitada nos campos de pelada.
Nesta terça-feira, saíra com Poliana, sua namorada, e foram parar ali em frente à praia, pois a noite estava linda e convidativa. Já namoravam há mais de um ano e Ubaldo não tinha mais muita dúvida quanto ao fim de sua vida de solteirão despreocupado.
A corja, sempre atenta, parecia ter encontrado o que procurava: um homem, aparentemente rico e que estivesse desprotegido, ao bel-prazer deles. Preparou-se o plano: Josemar desvencilhou-se dos demais e seguiu sozinho, passando perto do carro. Deveria, em caso favorável, dar um sinal para que os demais entrassem em ação.
Ubaldo estava distraído, olhando o mar e conversando com sua namorada, que recostara a cabeça em seu ombro, feliz e apaixonada. Numa fração de segundos, os quatro se acercaram, abriram a porta, apontaram seus revólveres para eles, jogaram-nos para trás e fugiram com o carro do local.
Poliana entrou em pânico, mas logo foi sufocada por Josemar, que lhe apertou o pescoço e ameaçou estrangulá-la caso não se calasse. Ubaldo, com a cabeça entre as poltronas e dois canos, um cada lado, fustigando-lhe as costelas, mantinha-se submisso e calado. Ele nunca fora homem violento, mas também nunca se desesperava em situações embaraçosas. Como costumava dizer, não era homem de ter medo nem coragem. Mantinha-se sempre impassível diante de qualquer situação, simples ou complicada.
Nas imediações da praia de Camburi havia muito matagal e os bandidos conheciam cada vereda daquele inferno da delinquência. Cada entrada daquela possuía certa privacidade, pois as gangues mantinham-se fiéis às suas facções.
O carro estacionou. Os bandidos traçaram seus planos:
Não iriam ficar com o carro. Usá-lo-iam apenas para as orgias da noite, enquanto os dois ficariam, nus e amarrados, ali no meio do matagal. Apanharam Ubaldo, despiram-no e o ataram numa árvore próxima. Depois, Arseno, tomando Poliana, avisou aos demais que ele seria o primeiro. Poliana quis correr, mas foi logo agarrada e jogada ao chão. Em seguida, como um gato mordaz que desfruta de seu sadismo ante um rato indefeso, ele começou a tirar a roupa da moça. Ela começou a gritar e novamente teve a boca coberta pelas mãos sujas de Arseno, que em seguida rasgou-lhe o sutiã e a calcinha.
– Primeiro por trás – disse ele arriando as calças também.
Poliana debateu-se, não permitindo. Ele sacou da arma que estava dependurada em sua calça próxima ao local e a detonou bem perto da cabeça da moça. Poliana desfaleceu. Então ele a usou de todas as maneiras. Totalmente traumatizada, Poliana calou-se, num extremo transe de angústia.
Mal Arseno deixou a moça, já Josemar esperava. Tomou-a animalescamente, machucando-a, mordendo-a, submetendo-a a todo desmando sexual humilhante de que sua índole perversa era capaz. Aproveitando a distração dos dois, Neandro aproximou-se de Orácio e ciciou:
– Que está achando de tudo isto?
– Estou com nojo de mim mesmo – respondeu laconicamente Orácio, totalmente aturdido com o que estava vendo.
– Por favor, não vá – disse Neandro, num apelo quase comovente ao amigo.
Orácio olhou-o surpreso, quase comovido. Não havia pedido de Neandro que ele não fizesse todo o possível para cumprir. As lembranças do despenhadeiro, sempre elas, formavam o elo de gratidão que jamais iria esquecer. Aquele, porém, era um pedido que coadunava com os seus sentimentos e que se sentia feliz por atendê-lo. Josemar deixou Poliana exangue. Sungou as calças e disse:
– Agora é a vez de vocês, podem aproveitar.
Orácio olhou para Neandro que vasculhava a bolsa de Ubaldo e desculpou-se:
– Passei a tarde toda com uma mulher, não sinto mais vontade alguma.
– E você, Neandro?
– Eu estava com Orácio – desculpou-se também.
Os dois não insistiram, justificando:
– Acho que vocês estão certos. Comer uma mulher destas é melhor usar as mãos. Se tivesse enfiado o pau numa pedra de gelo talvez tivesse encontrado mais prazer e calor.
E atirando uma corda, ordenou:
– Amarrem ela no mesmo tronco em que está o namorado. Neandro adiantou-se. Orácio o acompanhou. Os outros dois ficaram examinando o que levariam do carro, logo que dele não precisassem mais. De repente, Arseno teve uma triste ideia. Virou-se para Josemar e sussurrou:
– Esses caras sabem demais. Viram bem a gente e poderão nos criar sérios problemas.
– É, você tem razão. Embora o delegado seja do time, isto pode ir mais longe. Talvez seja melhor mesmo a gente se livrar deles de uma vez por todas. Mande Neandro liquidá-los.
– Neandro?
– Por que, não?
– Acho melhor a gente não o acostumar. As coisas são difíceis a primeira vez, você sabe. Depois de tudo, o feitiço poderá virar contra o feiticeiro, você me entende, não é mesmo?
Josemar ficou por instante pensativo. Depois, inconsequentemente, argumentou:
– Mande Neandro mesmo fazer o serviço. Temos que testar a fibra do moço. Vamos ver se é um cagão mesmo ou se tem alguma coragem.
Nisto, Neandro e Orácio vinham chegando.
– Missão cumprida, chefe.
– Ainda não. Tome aqui meu revólver e liquide-os. Estivemos pensando: estes caras viram bem a gente e poderão nos acarretar problemas futuros.
Neandro estremeceu. De repente teve uma ideia assoprada por Deus, e disse:
– Virem o carro e fiquem ligados. Logo que eu os liquidar, quero que saiamos imediatamente do local. Vai ser minha estreia e estou muito nervoso.
– Como queira – disse Arseno.
Viraram o carro e ficaram esperando. Neandro se aproximou e cochichou algo muito rápido ás duas vítimas. Disparou dois tiros e como alguém ainda gemesse, disparou mais um, havendo em seguida, silêncio tumular. Ele aproximou-se quase correndo, entrou no carro e disse nervosamente:
– Diabo de homem duro. Tive que gastar mais uma de suas preciosas balas, chefe.
– Não tem importância. Agora você também está batizado. O próximo será de Orácio.
Orácio estremeceu também, ficando muito abalado. Jamais pensara em assassinar um ser humano. Quando ouviu os disparos, quase desmaiou. Jamais imaginara que seu amigo fosse capaz de tamanha atrocidade. Pouco antes se compadecera da moça e agora a executava friamente. Um arrependimento forte, como a retirada de Deus num coração que se perde, apossou-se de Orácio. Ele sentiu, de uma só vez, todo o peso de um dia haver procurado Neandro em sua palafita. Imaginou-se responsável por ter feito do amigo um criminoso. Estava tão perdido em suas conjecturas que, quando chegaram novamente à praia, disse estar se sentindo mal e que não iria acompanhá-los na promissora noitada.
Neandro seguiu com eles – precisava estudá-los em todos os detalhes. Tinha um plano e quanto mais acreditassem e confiassem nele, melhor.
Junto com seus infortúnios, Orácio caminhava sem rumo. Não havia mais nada que justificasse sua vida. Mil demônios gargalhavam dos abismos e seus urros longínquos rompiam a distância e lhe chegavam nítidos como o repicar de sinos. A noite ia alta. Apenas alguns carros cortavam, vez por outra, uma rua qualquer. Quando percebeu, estava na orla da praia.
A imensidão das águas diminuía-lhe ao nada. O barulho das ondas também era silêncio, diante da surdez causada por seus transtornos. A silhueta do infinito baixava sobre ele como se fosse Deus, imenso e poderoso. Veio-lhe a angústia, achegou-se o desespero: que canalha era ele, que opróbrio do mundo se movimentava sobre suas pernas. As ondas se desfaziam na praia, os pensamentos, revoltos como as ondas, turbilhonavam em sua cabeça. Aquilo era o clímax do desespero, ditirambo fúnebre a um desvairado. Caiu de joelhos, com o revólver na mão. Parecia fitar Deus de frente, “homem a homem”. Sua face repuxou-se, toda a força do mal tentou incitá-lo ao fim. Mas outra força maior se aproximou, no silêncio da noite, no chuá das ondas, na beleza do infinito estrelejado. Então ele deixou a arma cair na areia e apenas balbuciou: “Meu Deus!”
Na areia, pouco depois, a fé podia lobrigar dois rastros distintos que se apartavam. Seriam as pegadas de Orácio e as de um anjo de Deus, que descera pessoalmente, no momento em que um de seus filhos parecia fraquejar ante a força do desespero?
CAPÍTULO 10
Dez meses depois do assalto, Ubaldo parecia externamente recuperado. Os primeiros meses foram-lhe difíceis, cheios de revolta e desejo de vingança. Não fosse sua crença em Deus, talvez mais um revoltado engrossasse o exército de facínoras. Entretanto, pela coerência com o que pregava, resolveu esforçar-se para perdoar e tentar esquecer. Evitar pensamentos reais de vingança, ele conseguiu, mas tirar aquelas lembranças amargas da cabeça, fora-lhe, simplesmente, uma tentativa vã.
Poliana, sua namorada, ficara profundamente traumatizada, tomando sempre posição de defesa, tão logo Ubaldo se tornava afoito em seus carinhos. Sem perceber passou a odiar o sexo, mormente pelo motivo de ser acometida de grave infecção uterina e jamais ter se tratado convenientemente.
Numa tarde bonita, tentando ajudar, Ubaldo apanhou-a e se encaminhou para a avenida que circundava a praia em que fora assaltado. Ia devagar, notando as reações da namorada. Quando quis parar, ela reagiu com um grito:
– Aqui, não!
– Ora, que tem a gente parar aqui?
– Não, vamos embora deste lugar.
– Poliana, aquilo é passado, não adianta a gente ficar alimentando uma coisa que nos é má. Todo mundo sente medo na vida, mas medrosos são sempre e apenas, aqueles que se deixam subjugar por ele.
– Eu não consigo esquecer.
– Ninguém esquece. Pensa, por acaso, que esqueci? Contudo, a gente tem de se dominar, dar a volta por cima, vencer o temor ou pelo menos enfrentá-lo. A alusão deste mal é pior que a situação real.
– Vamos embora daqui.
Ubaldo ligou o carro e saiu, vagarosamente. Poliana investiu:
– Vamos mais depressa. Saiamos logo daqui.
– Está bem – anuiu Ubaldo, e depois propôs:
– Vamos, então, a um lugar seguro no qual a gente possa conversar.
Estou cansado de ficar dirigindo de um canto a outro da cidade. Nunca lhe falei nestes termos e nem lhe propus nada imoral, você sabe disto. Nem hoje estou com esta intenção. Falo assim porque você poderá interpretar meu convite de maneira maliciosamente errada.
– Pode falar – disse ela.
– Quero convidá-la para irmos a um motel. Lá a gente pode conversar sossegadamente, sem este medo doentio de aparecer algum bandido. Você não será forçada a nada, disto sei que não duvida.
Poliana pensou um pouco, depois, como quem se defende apenas para demonstrar forjada relutância, observou:
– Não acha tais lugares impróprios para pessoas decentes?
– Lugar algum é impróprio para nada. Nós sim podemos ser. Depende apenas da gente, de nossos pensamentos, de nossas intenções, de nossas ações.
– Está bem, você me convenceu, mas não se esqueça do que acabou de dizer.
Já quase na saída da cidade, havia um motel recém-construído, com boa segurança e aparência razoável. Entraram, pediram o jantar e duas taças de vinho. Poliana estava assustada. A cada pequeno barulho, sobressaltava-se e dizia estar gelada de medo. Ubaldo ia arrefecendo, tentando transmitir calma e naturalidade a tudo quanto acontecia. Jantaram, ligaram a televisão e ficaram recostados nos travesseiros, assistindo a um programa qualquer. Um pouco mais, Ubaldo desligou o aparelho, achegando-se a Poliana.
– Venha aqui pertinho de mim – disse ele, forçando-a carinhosamente.
Um tanto assustada, ela acedeu. Ubaldo falou:
– Acho que chegou a hora de tomarmos uma decisão em nossas vidas. Tanto você como eu já não somos tão crianças. Que me diz sobre isto?
– Onde está querendo chegar?
– Ora, não sabe? Há quase três anos namoramos e ainda não sabe o que estou querendo dizer? Estou pedindo-a em casamento.
Ela se calou. Ubaldo deitou-a na cama, achegou-se bem próximo e começou a acariciá-la.
– Poliana, você gostaria de ficar comigo, agora?
Pensativa, buscando nos recônditos, lembranças que ainda não se tinham dissipado, ela se negava a dar uma resposta. Ele continuou:
– O casamento é feito de amor, amizade, compreensão e também sexo. Embora puritanos não aceitem, o sexo é a coisa mais importante para a união de duas pessoas. É ele que faz perdoar e esquecer as divergências. Por isto, acho que a gente devia…
Ela estendeu a mão sobre a boca do namorado, impedindo-o de falar. Depois, como quem acaba de chegar de uma viagem espiritual, observou:
– Concordo com sexo, quando chegar a hora.
– A que hora se refere?
– Depois do casamento.
– E se nós na cama nos acharmos uma droga, como iremos retroceder?
– A gente não vai se achar uma droga.
– Quem garante?
– Eu.
– Desculpe-me, mas não me parece que devo confiar tanto numa mudança tão benfazeja.
– Droga!, que há de errado em a gente não arriscar? Olha, se eu não estiver certo de que iremos ser felizes, não casarei. Não há motivo nem razão para este tipo de jogo.
– Estou com medo.
– Medo de quê?
– De tudo, sei lá. Quero ir embora. Vamos sair daqui.
– Poliana, a causa de seu medo não está aqui, nem na praia, nem em lugar algum da estrada, e sim na sua cabeça. Não adianta querer fugir, pois jamais escapará de si mesma. Entenda isto, minha querida.
– Quero ir embora. Tem certeza que é isto que quer? Não vai ao menos lutar contra este trauma? Vai entregar-se assim tão facilmente? Não acha que vale a pena lutar um pouco por aquilo que quer e que pode representar sua felicidade?
– Vamos sair daqui.
Ubaldo pediu a conta e saíram. Na estrada ele insistiu:
– Você tem de se abrir mais com quem realmente é seu amigo e gosta de você. É uma menina inteligente e sabe que não vai ser possível eu tomar uma decisão com você afetada deste jeito e sem vontade de lutar.
Poliana quietou-se. Não disse mais uma palavra, até chegar em sua casa. Quando desceu, nem olhou para Ubaldo. Já com raiva, ele acelerou forte e foi embora.
Daí a uns dias, porém, ela telefonou avisando que estava mal e iria procurar um médico.
– Que está sentindo?
– Não precisa saber. É coisa minha.
– Mas, fala pra mim, querida, talvez eu possa fazer alguma coisa.
– Ninguém pode ajudar-me.
– Então por que ligou?
– Para avisar.
– Está bem, de qualquer forma eu estou aqui e sabe como encontrar-me.
– Obrigada.
Uma semana depois, com o início do tratamento, cujos medicamentos mexeram com o ponto nevrálgico da infecção, Poliana parecia pior. Ubaldo foi estar com ela, mas seu corpo estava puído e ela se queixava do mínimo contato. Abriu-se um pouco, dizendo que sempre, desde o dia do estupro, passara a sofrer fortes dores e que agora eram constatadas fortes lesões.
Ubaldo tentou ajudá-la em tudo o que foi possível, preocupando-se para que o tratamento se fizesse de maneira correta e definitiva. Pensava, assim, retirar a principal causa de sua aversão ao sexo. Mas, estava muito enganado. Poliana era uma pessoa estranha que convivia com seus traumas, dando-lhes especial entonação no que tangia a seus interesses. Sabia usufruir da obsessão do namorado, explorando-o em seus sentimentos, sempre com ar de menina sofrida e indecisa. Sentia necessidade de Ubaldo, pois de uma maneira ou de outra, era ele a pessoa talhada para solucionar, em toda emergência, os seus mais intrincados problemas. Aí ela se tornava amável e carinhosa e qualquer sentimento que estivesse desfalecendo em Ubaldo, logo renascia como um botão na primavera. Aos poucos, porém, ele foi acordando de sua inépcia, reconhecendo certos princípios elementares do amor e tomando uma posição de defesa contra quem tanto o explorava sentimentalmente. Mas, como todo bom apaixonado, mil provas ainda eram insuficientes. Ajudou-a mais uma vez, na esperança de que tudo se devia à dor proporcionada pela infecção, o que a tornava arredia aos carinhos que poderiam levá-la a consequências maiores.
Poucas semanas depois, Ubaldo parecia ter conseguido. Poliana dizia-se curada e feliz e por alguns dias, cobriu-o de carinho e atenção. Apesar de tudo, havia nela um pouco de gratidão. Precisava pagar de alguma maneira, os favores que recebia. Cada beijo tinha um alto preço, e assim, em poucos dias, já não se via obrigada a mais pagamento algum. Ainda estava tudo bem, quando Ubaldo telefonou e marcaram um almoço. Ela aceitou, não sem forjada relutância.
Quando ele chegou, ela estava em sua escrivaninha, tendo à frente uma amiga. Pediu ao namorado que se assentasse e ficou conversando como se já não se lembrasse do convite aceito. Não entendendo tais evasivas, Ubaldo observou, dirigindo-se à amiga de Poliana:
– Você não se importaria se eu lhe tirasse Poliana por algumas horas? Temos um almoço e algum assunto a tratar.
– De forma alguma. Estejam à vontade. Estava mesmo de saída.
Aproveitando a distração da amiga, Poliana piscou os olhos para Ubaldo com fingida preocupação e disse:
– Que isso Ubaldo, a gente pode deixar para conversar em outra oportunidade.
– Sem dúvidas – disse ele ferido, erguendo-se e se preparando para sair. Poliana levantou-se também. Fazia questão de camuflar suas indelicadezas.
– Você se importaria em nos dar urna carona até à casa de uma amiga?
Juntando suas últimas forças, Ubaldo engoliu seco mais aquela farsa.
– Claro que não.
– Mas Deus era testemunha da grande mentira. Deixou-a na casa da amiga e voltou arrasado. Terminava ali um grande amor, fundamentado na sinceridade e na mentira: coisas aparentemente contrárias, mas que são encontradas em muitos casais.
Enquanto retornava, Ubaldo ficou a lembrar do passado como se fosse um moribundo se despedindo desta vida. De repente se viu diante da praia, com quatro homens abordando-o e carregando-o para um matagal. Daquelas quatro fisionomias, uma não lhe saía do pensamento. Por que aquele assaltante não lhe tirara a vida? Onde ele estaria querendo chegar?
Aquilo o tinha impressionado tanto, que quando foi dar queixa à polícia, disse que eram apenas três os sequestradores, e não quatro. Fez um retrato falado dos três, tirando toda e qualquer dúvida do delegado sobre a suspeita de quem seriam os dois homens parecidos e mal-encarados. O terceiro, porém, o delegado não conhecia e era ali que mostraria serviço, justificando seu emprego e fugindo da suspeita de envolvimento.
O próprio Ubaldo não entendia porque o deixara fora da corja. O certo é que aquele rapaz franzino, de tez rosada e queixo proeminente, não lhe saía do pensamento. Notara-o atrapalhado e percebera a mentira quando dissera que, juntamente com outro amigo, estivera a tarde inteira com uma mulher.
Em casa, Ubaldo sentiu que aquela seria uma noite que talvez preferisse estar junto aos garis da limpeza pública noturna. Possivelmente seria mais curta e menos dolorosa do que a certeza de que teria de consumi-la às voltas com seus infortúnios. E, de fato, o dia amanheceu sem que ele tivesse dormido por um só momento.
Não culpava ninguém, pois também o que estava sentindo era consequência de seu caráter, de suas paixões, de seus erros e de suas fraquezas. Poliana era-lhe tudo, e nem Menandro, em sua sempre aguerrida luta contra as mulheres, consolava-o na desdita de perdê-la. Cabeça no travesseiro, olhos no teto, pensamentos encorpados no delírio da derrota. Naquele momento não estranharia se lhe fechassem o livro da vida. Ele, um homem rico, apenas rico e muito infeliz. Passava pela vida, e na sede por muita felicidade, esquecia-se da impossibilidade de tal conquista. Todo o passado rondava a casa, entrava pelas frestas das janelas, ocupava os desvãos de seu coração.
Gostaria de chorar, mas não era mais uma criança. Recomeçar? É, talvez recomeçar. Jamais faria uma linda construção, mas poderia erigir um monumento, um grande monumento de dor com a quantidade de argamassa de que dispunha.
CAPÍTULO 11
Na idealização de um país modelo – a sua tão ajustada Utopia – Tomás Morus já não hesitava em definir as forças armadas, com todos os seus segmentos, como “miríades de lacaios ociosos, ou espécie de animais carnívoros”, que viviam ociosos à espera de uma guerra que lhes desse a oportunidade de devastar, não somente os cofres das nações em conflito, mas também a tudo e a todos. Com efeito – escreveu ele – os ladrões não são os piores soldados, como os soldados não são os ladrões mais tímidos; há muita analogia entre estes dois ofícios. Infelizmente, esta praga social não é particular à Inglaterra; corrói quase todas as nações.
Se Einstein estivesse presente, por certo bateria palmas. É quase sempre dos setores mais altos, criados em defesa do povo, que surgem os maiores crimes e as maiores injustiças contra o próprio povo.
Em 1966, o delegado – juntamente com mais dois soldados – bebia numa boate suspeita, quando percebeu dois jovens rapazes que, muito desenvoltos, tomavam lugar ao lado de duas loiras que pareciam esperá-los.
Um deles chamou a atenção do delegado, que não podia menosprezar a queixa de Ubaldo sem dar-lhe, pelo menos, uma satisfação. Franziu os cenhos como a buscar alguma lembrança dispersa, e depois alargou-os, na certeza de que a resposta estava em seu bolso. Retirou o papel, conferiu-o detalhadamente e toda dúvida dissipou-se: estava ali um dos assaltantes que havia roubado a Ubaldo e estuprado sua namorada. Há muito o delegado esperava por uma oportunidade para provar a Arseno e Josemar, que tão logo quisesse, eles estariam em suas garras. “Sempre é bom lembrá-los disto” – pensava. Cochichou alguma coisa aos dois soldados e depois se ergueu, afastando-se um pouco, numa demonstração inequívoca de que todo covarde foge diante do mínimo perigo. Em seu gabinete, diante de vítimas indefesas, jamais alguém poderia supor sua covardia: tornava-se insolente e aguerrido. Os dois soldados se aproximaram, sacaram seus revólveres e deram voz de prisão a Orácio e Neandro. Os dois entreolharam-se, ergueram-se e ficaram à mercê dos dois policiais. Um deles recolocou a arma no coldre e revistou os dois, enquanto o outro se mantinha a certa distância, ainda com seu revólver apontado. O delegado então se aproximou:
– Quero que me acompanhem à minha delegacia.
– Por que está nos prendendo?
– Este aí – disse apontando para Orácio – é suspeito de assalto e roubo a um senhor de nome Ubaldo e também de estupro à namorada dele.
– E eu – perguntou Neandro, surpreso por perceber que o delegado não mais se lembrava dele.
Quanto a ele, jamais se esqueceria daquele dia em que fora com a mãe dar ciência do desaparecimento de seu pai. Embora não percebesse, talvez tivesse mudado muito durante aqueles seis anos.
– Você será preso por estar com ele.
– Faz sentido – disse Neandro, lembrando-se de um velho anexim popular que diz qualquer coisa a este respeito.
Os dois entraram na viatura policial e seguiram para a delegacia. Um dos soldados telefonou para Ubaldo pedindo que viesse a fim de reconhecer os assaltantes. Ubaldo não demorou.
– Entre, por favor, senhor Ubaldo – desmanchou-se em mesuras, o delegado.
– Boa-noite – disse Ubaldo, retribuindo a boa acolhida.
– Encontramos estes dois vagabundos numa boate e, se não me engano, um deles muito se parece com a pessoa que descreveu.
Ubaldo examinou-os amiúde. Não havia dúvida alguma: os dois haviam participado do assalto. No entanto, não eram exatamente aqueles dois que Ubaldo queria ver atrás das grades. Olhou-os por instantes, depois ficou por alguns segundos pensativo como se estivesse, caladamente, tomando alguma decisão importante. O delegado insistiu:
– Reconhece-os?
– Apenas um, disse Ubaldo, olhando firme para Neandro que lhe havia poupado, misteriosamente, a vida. Este baixou o olhar, tão confuso quanto Ubaldo ficara quando ele detonara a arma longe de sua cabeça. A gratidão parecia ainda imperar, mesmo em situações embaraçosas como as do crime.
E você – perguntou o delegado a Neandro – o que faz na vida? Quem são seus pais? Onde mora e por que estava com este marginal?
Tomado de surpresa, Neandro repuxou a face, produzindo esgares de desconcerto. Ao perceber o embaraço do bandido que lhe poupara a vida, Ubaldo interferiu a tempo:
– Este aí eu conheço, delegado. Já trabalhou comigo. É um moço bom. Realmente estava hoje com um bandido, mas nenhum bandido traz estrela na testa, nem apregoa aos quatro ventos sua sórdida profissão, isto o senhor há de convir. Pode soltá-lo, é um bom rapaz, pode acreditar-me. Mesmo este outro não me pareceu tão mau. Apesar de estar com aqueles dois outros facínoras, não participou do estupro nem atentou contra minha moral. O que gostaria mesmo é que o senhor lançasse mão nos outros dois e, pelo menos para isto, este aí deverá servir. Acho que não poderia ter pista melhor para alcançá-los. O delegado anuiu, não sem uma sombra de desagrado a perturbar a feição dele, até então serena. Era ele, um dos policiais a que, tão severamente, Morus dedicara sua oração de protesto: “…um lacaio ocioso”. Ubaldo, porém, nem sequer sonhava com a realidade. Imbuído da mais pura intenção, imaginava ali um defensor dos oprimidos, um guardião da comunidade, um policial honesto e fiel a seu brilhante ideal.
– Solte este e prenda o outro – autorizou o delegado. Ao ouvir a sentença, Orácio, humildemente, solicitou ao delegado a fineza de deixá-lo a sós com seu amigo, pois tencionava mandar um recado a seus familiares.
– E bandido tem família? Tem sentimentos? Tem alguém para se preocupar com ele? – foi logo respondendo em riste, o delegado, que melhor que ninguém sabia o que estava falando. Ubaldo interferiu mais uma vez:
– Por favor, delegado, deixe-o falar. Sempre há uma esperança de compreensão, ainda que seja no coração empedernido de um vadio.
E notando a indecisão do delegado, reforçou:
– Por favor, estou pedindo.
O delegado concordou. Orácio desviou-se para um canto mais distante e ciciou a Neandro:
– Não estou entendendo mais nada.
Neandro sabia que ele se referia aos disparos do matagal. Sorriu, batendo-lhe no ombro:
– Não precisa entender, basta ver e notar que os deixei vivos. Não sou assassino, você sabe disto.
Orácio suspirou fundo. Pouca coisa gostaria de escutar mais naquela hora do que o que acabara de ouvir. Bastante feliz, mas também preocupado, asseverou:
– Fuja, amigo. Não fique nem mais esta noite na cidade. Logo irão prender Arseno e Josemar (nem Orácio, nem Neandro sabiam da trama que existia entre eles e o delegado) e aí você não ficará de fora.
– Não é direito deixá-lo sozinho nesta enrascada.
– Deixa de ser bobo, homem. Não viu que o queixoso o reconheceu, mas não quis acusá-lo? Aproveita esta oportunidade, desapareça e deixe esta vida. Quando apanharem Arseno e Josemar, você estará frito. Eles não prestam e farão tudo para incriminar-nos e ficar de fora.
– Mas, e você?
– Não se preocupe. O homem não parece estar interessado em mim. Isto poderá ajudar-me a sair desta. De qualquer forma, com você aqui, será pior. Se realmente é meu amigo, fuja, hoje mesmo.
Neandro pensou um pouco e antes que pudesse dar uma resposta, o delegado grunhiu raivoso:
– Chega de tanto recado. Neandro apertou a mão do amigo e se retirou.
Ainda antes de desfazer o umbral nojento da delegacia, volveu os olhos e deparou-se com Ubaldo que o fitava com certo ar de felicidade. Não sabia o motivo, mas parecia que queria deixar claro que agora estavam quites.
Dobrou a esquina e olhou a noite em seu esplendor. O mundo parecia ter desabado sobre ele. Como que desperto de um pesadelo, pôs-se a meditar sobre sua vida, vendo em si um bandido. Quando entrou para o bando, não tinha ainda avaliado o grau de responsabilidade que isto implicaria. Achava-se num país em que imperavam as desigualdades sociais, em que a hegemonia do poder escravizava, em que os pobres eram tratados como párias. Mesmo assim se defenderia, ainda que tivesse de ir de encontro às leis criadas por este mesmo poder. Como diria o humanista inglês em seus devaneios: “Confessai, pois, ó vós que não sabeis governar senão arrebatando aos cidadãos a subsistência e as comodidades da vida! Confessai que sois indignos e incapazes de dirigir homens livres! Ou então corrigi vossa ignorância, vosso orgulho, vossa incapacidade e vossa preguiça: é isto que excita o ódio e o desprezo pelo governo… Cessem de criar suplícios contra os infelizes que uma legislação absurda e bárbara impele ao crime e à morte.”
Agora, porém, o sangue subia-lhe ao rosto e um arrependimento ímpar invadia-lhe a alma, apesar de tantos humanistas revoltados terem chamado a esmo, o direito obsoleto de uma classe marginalizada pelo poder. Imaginou-se numa cela imunda, rodeado de marginais de todos os tipos e índoles, cercado de ignomínias… “Não, que Deus o poupasse desse infortúnio.”
Seu amigo estava lá. O que menos devia, seria o que mais iria pagar. Arseno e Josemar estavam soltos, talvez preparando mais um crime. “Facínoras, filhos de putas” – surpreendeu-se falando sozinho, Neandro. Seus pensamentos retroagiram, trazendo-lhe a certeza de quem o tinha jogado naquela lama. Mataram seu pai, relegaram sua mãe à mais extrema miséria, fizeram dele um bandido. Não, que Deus o perdoasse, mas teriam de pagar. Mais cedo ou mais tarde, não importava o tempo, mas pagariam tudo o que de mal haviam feito a ele e à sua família.
Tomou a direção da rodoviária. Enquanto esperava o ônibus partir, escreveu um bilhete para sua mãe e pediu a um pivete para entregar em mãos. Deixou ao garoto, generosa quantia. Onze dias depois desembarcou na cidade de Imperatriz, no estado do Maranhão, a três mil quilômetros do lugar em que deixara grande parte de sua vida.
Imperatriz era uma vastidão inóspita, com alguns aventureiros bem-sucedidos, cheia de promessas, sofrimento e futuro. No entanto, quem quisesse conseguir alguma coisa ali, teria de pagar o preço do desconforto e da espera paciente por um progresso que vinha lento, sem lei e sem ordem. Tudo era precário e desafiante: um lugar talhado para quem já não sabia, sequer, o que queria da vida.
CAPÍTULO 12
Não tardou muito para que as dores da solidão penetrassem fundo na alma de Iracema, legando-lhe uma nostalgia tão forte que a prostrou doente. Depois de relutar para não criar incômodos ao filho, escreveu-lhe dizendo que estava mal e precisava vê-lo com urgência. Aquela era a segunda missiva que escrevia depois que acertaram os endereços. Neandro recebeu a carta num momento de profunda desolação. Estava tão abatido e cheio de saudades de sua mãe, que mal acabou de ler, amarfanhou-a entre os dedos rijos e se pôs em ação. Colocou numa valise seus poucos pertences e rumou à rodoviária. Já não havia pensar em sua cabeça.
Desembarcou em Vitória dias depois, às 23h30min., tomou um táxi e com o trajeto sem tráfego, logo se aproximou de seu barraco na praia do Suá. Havia duas mulheres na porta e a claridade inconstante de lamparinas incumbia-se de dar-lhes um aspecto bruxuleante. Aquilo não era bom agouro, principalmente naquela hora da noite. Neandro subiu a tosca escada, muito apressado, quase derrubando as duas caridosas senhoras que velavam sua mãe.
– Alguma coisa errada? – foi logo perguntando, muito afobado.
– Há uma senhora sozinha e abandonada aí dentro, em agonia.
Neandro crispou-se todo. Aproximou-se da rústica cama (um estrado encimado por uma velha esteira de taboas) em que sua mãe, imóvel e abatida, olhava um ponto qualquer. Ajoelhou-se, tomando-lhe as mãos geladas:
– Mãe, sou eu, seu filho. Que está sentindo, mãezinha querida?
Iracema ergueu os olhos como quem desperta de um pesadelo:
– Oh, meu filho! Que bom que você veio. Dois anos! Estava mesmo pensando na dor de partir sem poder vê-lo pela última vez.
Neandro estremeceu. Não era difícil sentir a verdade, ainda que doesse e machucasse. Esforçou-se:
– Não fale assim. Deve ser apenas alguma coisa passageira.
– Seja o que for, agora não tem mais importância. Você está aqui e isto é tudo o que eu queria. Diga a estas senhoras que podem ir. Você chegou e temos muito que conversar no pouco tempo que me resta.
Neandro virou-se, mas não houve necessidade de falar. As boas samaritanas já acenavam com a mão, desejando melhora e uma boa-noite: mecânicas palavras que a tradição criou para enxovalhar a realidade dura da dor final. Neandro acompanhou-as com os olhos, e mal se eclipsaram na noite, voltou-se para sua mãe.
– Mãezinha, quando começou a se sentir mal?
– Desde que saiu, meu filho.
– Fui obrigado a uma viagem rápida. Havia uns negócios importantes e….
– Por favor, filho, não diga nada! A porta mais bem fechada é aquela que pode sempre estar aberta. Conheço-o bem e sei que não anda trilhando o bom caminho. As mães sentem isto, não há quem as possa enganar. Sua porta não pode ficar aberta.
– Oh, mãe! Não fale tanto, a senhora está ficando muito cansada.
– Não se preocupe comigo.
– Como exige isto de mim? Acha por acaso que existe alguma coisa neste mundo que eu queira mais que a senhora?
– Por que anda fugindo, filho querido?
– Bem…, eu… sabe, é o trabalho, mãe. A gente precisa se virar, andar, lutar, viajar, a fim de manter a sobrevivência. A coisa não está fácil. Acho que não vou me acostumar com esta miséria extrema e….
– Filho, não se aflija tanto com a pobreza. Mais temos nós para ensinar e dar agora, do que quando éramos ricos. Hoje podemos entender as razões de muitas coisas que no passado não entendíamos.
– A senhora está falando como se tudo estivesse perdido, como se não houvesse nem mais esperanças.
– Não há nada perdido, mas o fim se aproxima. Sinto em mim um prazer indizível perpassar-me o ser. Acho mesmo que estava certo quem disse que a lua só clareia depois que o sol se esconde. Agora que sinto o fim, dentro do limite máximo da miséria, meu coração se alegra. Alegro-me por tê-lo aqui pertinho, pedaço de mim, e poder dizer que o amo, e poder me despedir e estar certa de que um dia nos veremos outra vez.
Neandro começava a sentir um aperto forte no peito. Pensou mil coisas para dizer, mas na hora de dizê-las, tudo ficou na intenção.
– Eu também amo muito a senhora. Agora tente se acalmar e dormir, já é muito tarde.
– Não há falta de tempo para quem já está atrasada para ter todo tempo do mundo. Você demorou e tive que abusar da paciência de Deus para que esperasse. Ele foi muito bom não me negando este grande desejo de minha vida. Sabe, meu filho, parece-me agora vê-lo lá na nossa terra, junto com Ricardo. Éramos tão felizes, não éramos, meu filho? Olhando para você agora, vejo-o um rapaz, mas sinto que ainda não romperam de todo a candura de seu rostinho de criança.
– Mãe, não fale tanto, por favor!
– Deixe-me filho, eu preciso falar. Foi para lhe dizer estas coisas que resisti heroicamente. Filho, que anda fazendo de sua vida?
Neandro envergonhou-se mais uma vez, mas a pouca luz negou-lhe o rubor. Tentou mentir ainda desta feita:
– Trabalho como todo mundo faz para poder sobreviver.
Iracema apertou-lhe a mão:
– Filho, filho querido, que bom que você ainda não aprendeu a mentir! Sei que anda em negócios escusos, cheio de ódio no seu coração.
Neandro baixou a cabeça.
– Eles terão de pagar, mãe.
– Filho, não queira fazer justiça com suas mãos.
– Eu já sei quem matou meu pai.
Sem surpreender-se com a confissão, Iracema assentiu:
– Antes que descobrisse, Deus já o sabia. Ele tem a todos nós nas mãos e nem por isso se vinga de ninguém. Já imaginou, meu filho, se Deus nos castigasse todas as vezes que errássemos e praticássemos o mal?
– Deus se vingou muitas vezes de quem fazia mal a seu povo.
– Isto foi naquele tempo. Depois ele enviou seu Filho e ele reajustou a Lei. Agora o que salva é a lei da mansidão e do perdão. Tire o ódio de seu coração, meu filho. Foi para lhe pedir isto, que esperei. Não irei tranquila se não me prometer estas coisas.
– Vou esforçar-me, mamãe, mas chega de falar como se fosse morrer. Iracema virou-se um pouco. A luz da lamparina alumiou-lhe a face lívida e abatida. Seu semblante, no entanto, era de paz. Dava para sentir o sossego de sua alma.
– Chegue mais pertinho de mim, filho.
Neandro inclinou-se.
– Pegue minha bolsa preta, ali debaixo daquela prateleira. Neandro foi buscá-la, entregando-a nas mãos trêmulas da mãe. Depois de algum esforço, Iracema conseguiu tirar de dentro, um envelope lacrado.
– Aqui está.
Neandro assentiu com um nuto de estranheza. Ela explicou:
– Isto aqui é uma carta que seu pai e eu escrevemos para você. Naquele tempo parecia-nos brincadeira, pois nos sentíamos eternos. Hoje, porém, vejo quanto estávamos enganados. Filho, apanhe esta carta, mas não a abra senão num dia muito especial em que, como eu, sinta o peso irreversível da dor e da desolação. Que Deus não lhe reserve tão cedo este dia e que, enfim, nunca tenha necessidade de abri-la. Promete-me ao menos isto?
– Juro mamãe.
– Importa-se de me dar um beijo?
Ele a beijou soluçando e então ela quietou para sempre. Neandro apanhou a carta, dobrou-a, pondo-a num saco plástico, bem protegida. Depois, tomou sua mãe nos braços, apertou-a contra o peito, repetindo então, as palavras de Victor Hugo na lápide de Valjean: “Dorme. Apesar da sorte adversa, soube viver. Quando perdeu seu anjo, simplesmente morreu, como acontece ao dia que se transmuda serenamente em noite escura.”
Neandro recolocou-a inerte no leito e veio à porta. Apenas o mau cheiro nauseabundo dos mangues fazia-lhe companhia. Uma ou outra lâmpada, dependurada em postes finos, balouçava ao sabor dos ventos, levando e trazendo a luz, numa estranha dança boreal.
Um pouco mais distante, o barulho da maré que subia transmudava o ambiente melancólico em sons de coros de anjos. Agarrado firme à frágil escada, Neandro parecia um fantoche a remoer seu destino de provações. As lágrimas iam caindo sem cessar. Elas vinham de dentro, de lugares recônditos, rompendo obstáculos de incrível resistência e se aflorando na humildade do mais puro sentimento de dependência filial.
– Oh, mãe, mãe! – dizia ele, apertando as mãos e cravando as unhas no madeirame podre.
Se Deus subtraísse aos homens tais provas de dor, ninguém se salvaria. Nada mais lhe importava: nem cadeia, nem vingança…, o que ele queria mesmo, naquele momento, era fechar os olhos e poder morrer também.
Volveu os olhos para a sala quieta em que a luz incerta da lamparina tentava dar movimento àquele ambiente de quietude. A luz abanava a face inerte de Iracema; não conseguia empanar o brilho daqueles cabelos mongóis que resistira bravamente ao destrato da miséria.
“Mãe, mãe querida! Por que me deixou sozinho, por quê?”
E os soluços rompiam o silêncio tétrico da noite, num lamento de rapaz órfão e abandonado.
Aproximou-se do estrado. Ajoelhou-se, curvando o tronco e recostando a cabeça no peito da mãe. Fitou-a angustioso:
“Deus, se é eterno e poderoso, acorde-a para mim.”
Ela continuava serena, morta. Em seu desespero, ele insistiu:
– Deus, se existe, se me tem como filho, se é bom e se pode, não a deixe ir, não a deixe, meu Deus!
Mas, somente a lamparina parecia estar presente com sua chama fantasmagórica a fustigar a quietude e a inércia do ambiente. Deus apenas compreendia o desespero daquela terrível dependência.
E sozinho, no abandono de seu Gethsemani, Neandro pôde sentir a bondade dura do Senhor. Chorou amargamente, sozinho, durante toda aquela inesquecível e triste madrugada.
E o tempo, este jogo sutil do Eterno, secou as lágrimas, desfez um pouco o sofrimento, ceifou a compreensão e fez medrar no lugar, a revolta e a vingança.
CAPÍTULO 13
Vá, caminhe alma triste, coração abatido. O sofrimento será sua eterna companhia pelos dias que há de viver. A felicidade, para você, estará sempre no passado ou no futuro. Ela é uma nuvem escura que o vento impele sobre uma planície cheia de sol: tudo é luz, para frente e para trás, só ela projeta sua sombra opaca por aonde passa. Como seu é só o presente, terá de carregar o peso de suas angústias, vendo a apoteótica ilusão da felicidade sempre ao lado, sem jamais alcançá-la. Vá, alma triste, sozinha no mundo! Hoje alcançou a plenitude da existência, o clímax do sofrimento. Submeta-se a este mundo-cão, odiando e sendo odiado, porque já não pode esquivar-se do que está escrito em seu destino. Cumpra sua parte. Caminhe, chore, sofra e faça sofrer, porque esta é sua missão neste inferno negro e metuendo.
Sua mãe se foi, não viveu, sofreu apenas na conformidade dos pusilânimes. Não creia no que ela disse; sua função é fazer justiça, é vingar, é abater, é humilhar. Não deixe que a piedade se infiltre em seu coração. A piedade é um sentimento falso que faz nascer a comiseração, na justificativa de que sempre alguém é pior que você. Vá, caminhe, amigo de infortúnio.
O féretro seguia vagaroso, rumo ao cemitério. Poucas pessoas o acompanhavam. Aquilo doía em Neandro, mas não tanto como a certeza da separação. Seus olhos penetravam nas tábuas do caixão e podiam divisar os traços inertes e sofridos da pobre mãe. As forças do mal invadiam-lhe a alma como ondas de um tsunâmi, rompendo barreiras e preparando-o para a vingança.
Caminhava atrás do pequeno cortejo, pensamentos e rumos incertos, alma abatida: uma gazela cercada por mil chacais famintos. Os conselhos da mãe, hostilizados por mil demônios, sucumbiam aos desejos de vingança. E naquela luta extrema que ocorria dentro de si, via-se mais destruído e pisado que um campo de guerra. Desceram sua mãe à cova. Em cima, punhados de terra. Os poucos que acompanhavam, foram se retirando. O coveiro aproximou-se. Neandro jogou também seu último punhado de terra, mesclado a uma lágrima e a um dorido adeus.
Agora estava, deveras, sozinho no mundo. E como quem, diante de tantos achaques já não teme sequer a morte, encaminhou-se resoluto à delegacia. Já não se importava com mais nada. Como num passe de mágica, desaparecera de si a autoconservação, a defesa da liberdade, o desejo de viver. Nem o sofrimento e a morte lhe preocupavam mais naquele instante.
Lá encontrou Orácio, cadavérico e triste. Estava numa cela apinhada de celerados maldispostos, totalmente desambientado. Na parede, acima das cabeças, via-se uma inscrição entre aspas, feita com muito desvelo e tempo: “Como ousaste interromper o repouso sagrado do nada, ó criador, para fazer surgir tal massa de desgraça e de angústia?” Não havia dúvida, que aquele criador, escrito com inicial minúscula, não se referia a Deus.
Depois de muita insistência, o delegado permitiu que ele saísse da cela e fosse ao pátio conversar com Neandro por dez minutos. Mal se assentaram num banco de pedra em que o sol incidia plenamente, Neandro pôde perceber o estado lastimável do amigo. Baixou a cabeça, desolado. Orácio disse:
– Amigo, por que voltou?
Neandro, sem virar a cabeça, sussurrou apenas:
– Minha mãe…, ela está morta. Agora só temos um ao outro neste mundo.
Orácio apiedou-se, dando o silêncio como prova de sua consternação. Neandro ergueu os olhos:
– Amigo, estou arrasado em vê-lo assim. Não deve ser fácil viver aí misturado com tantos marginais.
– Tudo isto não seria nada, se a gente tivesse alguma coisa a fazer. O pior é ficar aqui por intermináveis dias, sem ocupação alguma. Nunca supus que o tédio fosse um aguilhão tão martirizante. A gente tem vontade de explodir-se os miolos.
– Alguma esperança de sair deste inferno?
Orácio ergueu a cabeça, respondendo com um nuto negativo. Neandro tentou encorajá-lo:
– Vou jogar minha cartada final. Estou cansado de esperar e ficar à deriva, sem saber o que fazer de minha vida.
Orácio preocupou-se:
– Que tipo de jogada?
– Vou procurar aquele homem que assaltamos. Ele…
– Não faça isto – disse Orácio, sobressaltado.
– Por quê, não?
Orácio olhou ao redor, amedrontado. Depois falou baixinho, quase num murmúrio:
– O delegado é conivente, um ladrão pior que nós.
Neandro enrugou a testa, interrogativo e incrédulo.
– Baseado em quê, diz isto?
– Contei para ele sobre Josemar e Arseno. Pretendia ver o circo pegar fogo, ser julgado e ver no que dava. Três dias depois começaram a espancar-me. Veja – disse ele erguendo a camisa e mostrando as mossas, os arranhões e os profundos sulcos de chibatadas impingidos com fios elétricos dobrados – vão acabar comigo, companheiro.
Neandro baixou a cerviz, sem ter o que dizer diante daquela situação embaraçosa. Orácio continuou:
– Quando terminar esta visita, desapareça para sempre. Não torne nunca mais a pisar por aqui, nem para acompanhar minha agonia. Josemar e Arseno devem estar à sua procura. Cuidado, amigo, eles são protegidos do delegado.
Num repente, notando a presença de um policial, Neandro falou:
– Darei o recado, fique tranquilo.
O soldado aproximou-se:
– Já venceu o prazo.
Neandro olhou o relógio e concordou. Abraçou o companheiro e saiu desolado. Não podia acreditar no que tinha visto e ouvido. Para tirar sua dúvida, escreveu uma denúncia anônima, delatando Arseno e Josemar, contando tudo quanto sabia ao delegado. Ato contínuo, procurou-os, telefonando para o homem que fazia a ponte de comunicação. Minutos depois era marcado o lugar do encontro.
Neandro forjou uma história para explicar sua ausência de dois anos, a qual Arseno e Josemar engoliram, não sem um trejeito de quem não acha a comida tão deliciosa. Mas, para Neandro, a dúvida deles já bastava. Logo marcaram um trabalho para a noite e Neandro cumpriu sua parte com o mais elogiável empenho. Tinha de angariar a confiança dos bandidos. Falou a eles, dizendo que estava conseguindo a graça de um milionário e que estava preparando um plano que talvez resolvesse a vida deles de uma vez por todas.
Alguns dias depois, durante a costumeira partilha, o delegado mostrou a carta a Josemar e Arseno, dizendo que havia gente sabendo demais e que era bom eles serem mais cautelosos.
Os dois ficaram matutando e suas suspeitas não foram além de Orácio, que devia ter mandado alguém fazer aquilo. Pediram ao delegado que o soltasse que dariam um jeito nele.
Mais alguns dias, Orácio foi posto em liberdade e, incontinenti, procurou Neandro. Ele estava em sua palafita, fumando um cigarro, perdido em conjecturas. Quando viu Orácio, sobressaltou-se:
Amigo, que significa isto?
– Que estou com os dias contados, marcado para morrer.
– Não entendi.
– Soltaram-me para me matar, tenho certeza disto – e logo foi explicando a inesperada soltura.
Neandro ouviu-o temeroso. Aos poucos percebia o perigo que corriam, estando ambos no mesmo barco. Um calafrio perpassou-lhe a espinha.
– Temos de nos defender, agir antes que acabem conosco – disse Neandro com certa euforia.
Pouca coisa havia mais forte dentro dele, do que o desejo de vingança. Este desejo estava arraigado como um câncer maligno, já em metástase, impossível de ser erradicado. Orácio, no entanto, já não pensava, senão, em algo mais profundo e elevado. As humilhações que sofrera na delegacia, as provações, os castigos…, tudo o transformara e preparara para uma única esperança: Deus. Esteve no limiar da revolta, mas pendera para a submissão. Por isso, olhou para o amigo com certo ar de ternura:
– Para isto teríamos de continuar na bandidagem.
– Contra patifes, a patifaria é arma válida – disse Neandro com certa empáfia.
– Companheiro, só espero mais uma coisa desta vida: que Deus exista e tenha piedade de mim. Não quero mais envolver-me em trampas, nem em nenhum negócio sujo deste mundo. Neste submundo a gente só anda corrido, assustado, perseguido. Vou tentar trabalhar honestamente.
– Ninguém irá empregá-lo, tire isto da cabeça.
– Não importa. Só não quero suicidar-me, mas morrer é o que mais desejo. Estou arrasado… não presto pra nada. Vim do nada, nem família eu tive. Sou um bastardo, um joão-ninguém, um nada. Há alguma coisa que um vivente como eu possa desejar mais do que morrer? Neandro passou a mão no rosto com a barba de um mês por fazer:
– Você está muito fraco, por isto se sente tão abatido. Coragem, amigo, você não pode desfalecer. Ainda que o mundo todo lhe renegue e massacre, eu estarei do seu lado. Não se entregue agora. Nós acabamos de formar uma família, somos irmãos, somos o que resta um para o outro. Vamos deixar a quem possa nos ouvir, o nosso brado de luta e de justiça. Sei que não vamos consertar nada, mas podemos mostrar a este mundo que não será fácil vitória dos maus. Orácio forçou um sorriso, mas a descrença estava impressa em sua face, ocultando-lhe a alegria.
– Nossa mente é uma folha de palmeira: pende para o lado que o vento força. Não estou certo do que pretendo agora, mas estou por aqui. Se não se importar, vou dividir este barraco com você. Aqui parece um lugar seguro. Arseno e Josemar não o conhecem ainda.
– Claro, claro. Agora vou comprar alguma coisa para comemorar.
– O dinheiro…. Você está trabalhando sozinho?
– Bem, eu…, deixe pra lá. Depois, quando estiver restabelecido, contarei tudo a você. Por enquanto, vamos festejar. Estou muito feliz por tê-lo aqui comigo. Nosso mundo é feito de tristeza. Aproveitemos os retalhos de alegria, as michas que caem do régio banquete dos eleitos.
E a nuvem opaca das desilusões pareceu desfazer-se numa neblina esparsa em que o sol penetrava, dando-lhes uma migalha de luz. Era de pequenas fatias de alegrias que eles arrefeciam as dores do coração. Neandro ganhou a ruela imunda, e pulando sobre poças de lama, foi saindo do mangue. Com a maré alta, a passagem ficava naquele estado. Orácio fitava-o cheio de incerteza e insegurança. Não podia encontrar o motivo de tudo o quanto lhe acontecera. Quanta vontade de entender a vida! Tanta gente, aparentemente igual, e com prêmios e castigos tão diferentes. Por que havia o rico, o miserável, o aleijado, o feliz, o desgraçado… Onde a justiça de Deus? Na liberdade? Mas, que liberdade era esta que não oferecia, senão, à maior parte das pessoas, um caminho espinhento e sem retorno?
Era preciso viver, sofrer. Não podia tirar-se a vida. Recebera-a com a condição de deixá-la fluir, acontecer. Não sabia de aonde vinha este acordo que assinara, mas estava certo que ele existia. Era um documento sério que ninguém devia desconhecer. Todo mundo ria e chorava, conforme o disposto contratual.
Neandro era-lhe, agora, o itinerante e a poça d’água do deserto. Chegava para umedecer-lhe a boca e estender-lhe a mão. A vida parecia querer sua desdita e seu sofrimento por mais tempo. E Orácio ergueu os olhos para uma fresta em que uma réstia de luz penetrava brilhante. Viu o sol, as alturas, o infinito. Olhou apenas, sem dizer uma oração ou proferir uma blasfêmia. Olhou apenas.
CAPÍTULO 14
Um ano depois, Orácio estava sentado numa tabuinha, cujas extremidades se firmavam em latas de tinta vazias. Distraía-se com uma comichão que lhe aparecera entre os dedos do pé, e buscava algum argumento que pudesse demover o amigo de sua obstinada ideia fixa de vingança. Neandro, emburrado pela não aquiescência do companheiro, mantinha-se debruçado na janela, olhando a luta infrene pela sobrevivência de insetos que se devoravam. “Somos insetos grandes” – cismava. Orácio interrompeu suas divagações:
– Na cadeia aprendi a pensar.
– Há várias maneiras de pensar e mil outras de se chegar às conclusões – foi logo rebatendo Neandro, já imaginando onde o companheiro desejava chegar.
– O sofrimento ensina muita coisa. A vingança é um mal que não encontra abrigo em nenhum coração que se preze. A gente nunca deve fazer uma coisa tipo lixo atômico, que não possa se livrar depois.
– Entre não dever e não fazer há tanta distância e contraponto como a que existe entre a justiça e a bondade – tornou a retrucar na defensiva, Neandro. E continuou: – Já bolei o plano. Amanhã falarei aos dois, dizendo do grande golpe.
– Posso saber que grande golpe é este?
– Você é meu amigo, meu grande e único amigo. Está com umas ideias esquisitas, mas é meu amigo, tenho certeza disto. Não sei se em suas meditações lá na cadeia aprendeu que a gente sempre deve entrar de cabeça no que faz: é ser ou não ser; confiar ou não confiar. O meio termo nunca leva a nada e nem Deus gosta. Por isso vou lhe contar: inventei um homem muito rico, chamado Astério, que está metido no tráfico de drogas. Segundo eu, este homem anda sempre com milhares de dólares, muita cocaína e quer conhecer a gente para negociar. Ele quer se relacionar com meus companheiros, lá na Curva do Cotovelo, num lugar em que os tratores corroeram o morro, deixando atrás, um verdadeiro esconderijo. No dia marcado ele irá para a suposta reunião. O plano é despojar, matar, fazer o que for preciso ao homem e passar a mão no que ele tiver. Conforme ficou combinado, o tal Astério levará muita cocaína e eu, muito dinheiro. O homem acredita piamente que meus companheiros são milionários e entendem de tráfico alto.
Arseno e Josemar gostaram muito do plano, pois o homem só conhece a mim e em caso de o tiro sair pela culatra, estarão de fora. O que eles não sabem é que não existe homem algum na jogada, mas sim um untado 38, pronto para fazer justiça.
Em cima do morro cortado pelos tratores, cresceu uma vegetação que o diabo deve ter plantado, já imaginando que eu iria precisar dela em algum tempo: não há posição melhor para se abater quem estiver em baixo. Isto é o grosso da história. Há muitos outros detalhes, mas que não modificam a trama que lhe contei.
– Isto vai ser logo?
– Não. Já avisei que o homem viaja muito pelo mundo inteiro. Às vezes passa meses e até anos sem aparecer. Assim, poderei tê-lo aqui, quando me convier, você entendeu? Orácio olhava com pesar, o amigo revoltado. Neandro percebeu e reagiu:
– Por que me fita deste jeito?
– Para ser sincero, não sei. Antevejo você entrando num beco sem saída. Depois destas mortes, virão outras. Você terá de fugir, será perseguido pela polícia e por sua própria consciência. Terá de matar e matar para sobreviver. Numa desta você irá também e aí, tudo se finda, inclusive sua estúpida obsessão de vingança. Todo homem mau, além de ter uma vida infeliz, ainda vive pouco. Tudo o que fazemos neste mundo volta a nós, atrai coisas similares, como um ímã às limalhas de ferro. Pense nisto, amigo.
– Você me ficou um bom moleirão, Orácio. O ferreiro da cadeia errou na têmpera: estragou-lhe o corte. Por que não ingressa num seminário e vai pregar ao vento esta sua doutrina covarde que nunca mudou o mundo em nada? Você fala assim, aconselha, porque o mal não lhe toca. Queria que estivesse em meu lugar! O dia que uma pessoa como eu sair por aí, pregando o perdão e a compreensão, pode acreditar, porque ali, em verdade, existirá um parecer honesto de um homem convertido.
– Não acha, por acaso, que também eu teria motivos sobejos para estar revoltado com a vida? Estive eu durante toda minha vida, “num leito de rosas?” Quero que apenas não se esqueça do que estou lhe dizendo quando estiver acuado por perseguidores, como uma fera sem rumo nem defesa.
Neandro, sentindo que não conseguiria o apoio de Orácio, emitiu um bah de desistência e saiu do barraco. Era domingo e não fazia muitas horas que o dia havia amanhecido. Saiu daquele gueto infesto e andou bastante, ganhando as areias da praia de Camburi. Bem na frente, viu uma multidão que falava ao mesmo tempo, misturando suas vozes ao som estridente de um alto-falante, numa algaravia ensurdecedora. Foi andando e quando percebeu, estava no meio do povo que gritava e tomava posições.
O alto-falante anunciava o prêmio: um carro 0 km e mais 500,00 em dinheiro para o vencedor. Neandro achegou-se a um curioso:
– Que disputa é esta?
– Uma “São Silvestre” improvisada. Daqui sairá o representante do Estado para disputar a corrida em nível nacional. De lá, sairá o campeão brasileiro que irá, finalmente, às Olimpíadas de Munique, em 72.
– Onde a gente se inscreve?
– Não há inscrição. Campeão será o que sair daqui junto e chegar lá primeiro.
– Lá, onde?
– Na Serra.
– Está brincando?!… São mais de 21 km daqui até lá. Afinal, não há nenhuma guerra vencida para se levar a notícia. Vinte e um quilômetros! …
– É o que estão dizendo aí pelo alto-falante.
– Só um caminhão aguentaria fazer este percurso sem parar.
– Se estiver com o tanque cheio – pilheriou o moço.
Neandro bateu na barriga:
– Meu tanque não parece ter esta autonomia, mas não vejo coisa melhor como remédio para esquecer uns pensamentos que tenho aqui na cabeça. O alto-falante tornou a anunciar: “Todo mundo em seus postos. Faremos agora a contagem regressiva… 4,3,2,1 – vamos lá e boa sorte.”
Neandro foi seguindo a multidão. Quando passou pelas mediações de Goiabeiras, percebeu que centenas de pessoas já iam desistindo, caindo cansadas, bufando como bois de canga, enquanto ele não percebia em si, qualquer indício de desfalecimento. Olhou para trás: o magote de centenas de concorrentes já estava reduzido a menos de 100 pessoas. Em sua frente, apenas algumas dezenas de jovens bem constituídos e uniformizados. Ele estava descalço e usava apenas um calção e uma camiseta amarela onde se lia no peito, “Casa das Bugigangas”.
Em Carapinas, quando ainda não haviam desfeito um terço da corrida, mais algumas dezenas foram desistindo. Eram amadores despreparados em busca de um entretenimento. Aos poucos os reais concorrentes foram tomando suas posições.
Ao meio-dia, os que ainda resistiam, passavam em frente a uma guarita improvisada da Polícia Rodoviária Federal. Neandro olhou para trás: ninguém o seguia. Ergueu a cabeça: mais ou menos vinte pessoas continuavam. Examinou-se: ainda estava inteiro. Começou a sentir que seria possível vencer aquela maratona. Forçou um pouco os passos, ultrapassando um bloco de oito rapazes que pareciam extenuados. Caminhavam tropegamente e era fácil perceber que não desfariam mais dois quilômetros.
Tornou a examinar-se. Parecia que seu corpo resistia. Perguntou a um dos rapazes que já quase não se firmava nos pés:
– A que distância fica daqui ao ponto de chegada?
– A dez quilômetros, mais ou menos.
– Você vai tentar?
– Não, não dá mais – e dizendo isto parou, sentando-se na orla da estrada.
“Dez quilômetros” – pensou Neandro, que até então não conseguia nem justificar a si, aquela estranha participação e resistência. Seus pés já começavam a doer terrivelmente. Parou um instante e olhou as solas: estavam cheias de calos de sangue. Estremeceu. Fez menção de parar, mas percebeu que já não havia remédio para desfazer aquelas malditas bolhas. Ergueu-se e meteu pé na estrada.
O grupo da frente vencia-o por, no máximo, um quilômetro. Resolveu pôr logo à prova, sua resistência. Apertou o passo, enquanto pensava:
“Serra, foi lá que nasci! Não lembro bem, mas sei que é lugar de morros, de ventos frios… é, eu era ainda uma criança quando saí de lá. Nunca mais voltei. Interessante, tão perto e nunca mais voltei. Se um dia for possível, quero retornar à fazenda em que nasci. Lembro que mamãe contava muitas histórias de lá: pássaros, cachoeiras, frutas… devia ser um paraíso. Eu sou Adão, expulso dele. Fez menção de sorrir. Estava tão absorto em suas divagações que, quando se deu conta, mais três que desistiam, incentivaram-lhe:
– Em frente rapaz; dá pra ganhar; pé na estrada.
Neandro sobressaltou-se. Por momentos havia esquecido os pés calejados e a disputa que, por acaso, enfrentava. Olhou à sua frente: o grupo seguia trôpego e não estava nem a duzentos metros dele. O diretor da prova que acompanhava o grupo, perguntou atônito:
– Os pés vão aguentar?
– Estão adormentados, nem os sinto mais.
O diretor meneou a cabeça: “juventude louca!”
Um pouco mais, e uma grande algazarra, com explosões de fogos, avisava que a chegada estava próxima. Cinco dos mais afoitos e resistentes apertaram o passo. Os demais foram ficando para trás. Neandro ultrapassou-os também. Em sua frente agora, apenas os cinco. Droga! – pensou – é agora ou nunca. Respirou fundo e deu tudo o que tinha. Seus concorrentes, que até então não haviam dado conta de sua presença, começaram a se preocupar, olhando sucessivamente para trás.
Ele seguia. A balbúrdia dos que esperavam, aumentava; vinha-lhe forte como um incentivo dos céus. Tornou a vir à sua lembrança a terra natal. “Aqui nasci… se minha mãe estivesse viva agora, certamente estaria ali no meio aplaudindo, dando-me força. E quem garante que ela não está? É…., ela pode estar e eu vou ganhar esta corrida para que ela se orgulhe de mim.”
Apressou mais ainda o passo. Faltavam apenas 500 metros. Os que iam à frente não se davam descanso, olhando continuamente para trás. Ele ultrapassou mais três concorrentes. Restavam dois. Seus pés pareciam não existir; temeu por instante, desfalecer. O cansaço parecia descer de vez em cima dele. Passou a língua no céu da boca ressequido. Uma espécie de torpor ia anestesiando seus músculos. Já parecia não sentir mais nenhum reflexo. Os músculos estavam arredios às ordens cerebrais.
– É pela senhora, mãe! – balbuciou.
Faltavam apenas 200 metros. Ele encostou em seus adversários. O povo gritava freneticamente. Os pensamentos turbilhonavam-lhe a cabeça: “eu, o bandido franzino, o campeão”.
As vozes enchiam-lhe de estranho excitamento. Oitenta metros. Uma mulher deu dois passos na pista. Neandro sobressaltou-se: era sua mãe ou estava delirando? Ela morrera ou ainda vivia de alguma maneira diferente? Que estava acontecendo? Miragem?
Deu tudo o que tinha. Ouviu alguém, que já ficava para trás (pois a fila dos que esperavam no ponto de chegada era extensa), dizer:
– Olhem, ele está deixando um rastro de sangue!
A sola dos pés estava soltando, ficando em carne viva. Ele corria; sua mãe o esperava, orgulhosa e feliz. Quando percebeu, estava nos braços da multidão, rodeado de repórteres e curiosos. Todos queriam ver de perto aquele rapaz franzino, aparentemente fraco, pequeno, descalço e que tinha superado tantos atletas que tão bem haviam se preparado.
Não suportando mais, Neandro desmaiou. Foi levado a um hospital e logo deixado sob forte ação de sedativos e outras drogas. Entrou em sono profundo, delirando:
– A senhora gostou, mamãe?
E então se viu que em tudo que se faz nesta vida, o mais importante é querer. A força latente que existe dentro de cada um (e que muitos nascem e morrem sem descobrir) seria capaz de multiplicar por mil, o número de campeões e gênios que enobrecem a humanidade.
Quanto herói covarde; valente medroso; campeão vencido; filósofo mesquinho; cientista genocida…, quantos, enfim, estão enterrados hoje sob o véu de tristes lembranças por não usar a força intrínseca do querer.
Quem quer e luta pelo que quer, só não consegue as coisas humanamente impossíveis.
CAPÍTULO 15
Durante um mês, Neandro teve de se arrastar da cama todas as vezes que dela precisasse sair. Orácio dava-lhe assistência como se fosse um irmão de sangue, ajudando-o em todas suas necessidades. Hoje era o primeiro dia que conseguia aprumar-se, embora os pés doessem terrivelmente. Foi à janela e ficou olhando seu fusca, ganho com o sangue daqueles pés. Bafejou um jato de ar espremido entre um leve sorriso de escárnio, como quem, num lampejo, define um ato estúpido e impensado.
Desde aquele dia sua vida mudara bastante. Era seu primeiro dinheiro honesto. No lugar de ações escusas, viu-se metido num sem número de entrevistas, virando notícia de rádio, jornal e até televisão.
Por coincidência, Arseno e Josemar, sem necessidade dele para qualquer serviço, mantinham-se alheios a todos aqueles acontecimentos. Quando Orácio viu-o na janela, olhando com certo orgulho para o carro, observou:
– Está aí, amigo! Você é um cara privilegiado, não precisa acabar sua vida por causa daquela vingança. É inteligente, um desportista nato. Por falar nisto, estiveram aqui, na semana passada (você estava dormindo e não quis acordá-lo), um grupo de rapazes que veio convidá-lo para jogar futebol. Disseram que logo que melhorasse poderia ir até lá que sua vaga estaria reservada. O campo fica lá perto do Aeroporto.
– Eu não sou jogador de futebol.
– Deixe de modéstia. Desde criança gosta de bola. Não é um craque, mas engana bem. Naquele tempo você fazia cada embaixada! …
– Isto foi naquele tempo. Você sabe que nunca mais joguei.
– Quem sabe, nunca esquece.
– Ah, vai! Deixe de bobagem, amigo.
– Gente honesta está estendendo as mãos. Entremos aí e esqueçamos o passado negro que nos embaça o caminho.
Neandro ficou pensativo. Por mais que tentasse não conseguia livrar-se daqueles pensamentos de vingança contra os assassinos de seu pai que, indiretamente, haviam levado à morte, também sua mãe. Isto sem levar em conta o estado lastimável em que, também ele, ficou.
Muitas vezes – embora nunca admitia – tentara livrar-se daquele pensamento, mas uma força superior sempre sufocava suas frágeis decisões. Sentia que alguma coisa lhe dava a oportunidade de mudar de vida, de trabalhar honestamente, de conviver com gente honrada, de livrar-se daquela ideia fixa de vingança. Percebia isto, mas ainda não estava certo se o que Deus queria, não era usá-lo como instrumento de justiça. Sem iludir-se, imaginava estar cometendo maior crime deixando aqueles bandidos impunes do que os eliminando para não continuarem espalhando a morte e o terror.
Mesmo assim, logo que melhorou completamente, foi ao Aeroporto, num domingo à tarde. Neste tempo, Neandro já era conhecido como herói por toda a cidade. Comentava-se sua relutância em continuar as corridas como falsa modéstia de quem quer atrair sobre si, muita badalação.
Ninguém acreditava na verdadeira história de sua participação casual. Todos achavam que ele havia se preparado, esquecendo-se da evidência de suas afirmações, nos pés descalços e sangrados. No mês seguinte aconteceria a corrida em nível nacional e a imprensa não se cansava de abordá-lo para saber dos preparativos:
– Não irei participar. Cedo meu lugar ao vice. Aquilo foi um acaso, algo que talvez nem soubesse explicar – repetia como um disco defeituoso, Neandro.
E assim o tempo foi passando e ele tentando resolver seus problemas emocionais: os sempre problemas que não permitiam que tomasse um rumo certo na vida. Nesse domingo resolveu aceitar o convite da rapaziada que queria contá-lo entre os jogadores.
Mal encostou na orla do gramado, logo foi percebido. Os rapazes que o haviam convidado achegaram-se já com o uniforme completo da equipe nas mãos.
Depois de muitos: “eu jogo mal”; “não, você é bom”, “que é isso?”, “queremos você no time”, “vamos lá campeão”, Neandro viu-se uniformizado no meio do gramado. Embrulhou com cuidado sua roupa, entregando-a ao roupeiro.
– Que diabo tem aqui dentro para pesar tanto? – perguntou o rapazola que cuidava do material.
– E uma arma – explicou Neandro – mas sozinha não faz mal a ninguém. Cuidado, está carregada.
Embora assustado, o roupeiro guardou-a no fundo do saco, sem fazer mais qualquer comentário.
Correu o primeiro tempo. Neandro, desacostumado, sem condicionamento técnico, pediu para ser substituído, garantindo que, se quisessem, voltaria no próximo domingo.
– Tudo bem!, disse o moço que parecia ser o técnico ou o dono do time. Sem demora, ele gritou:
– Ubaldo, é a sua vez, pegue aqui a camisa.
Ao ouvir aquele nome, Neandro estremeceu como se fosse Pedro vendo Moisés e Elias transfigurados, falando a Jesus. Ubaldo veio, cumprimentou-o naturalmente, sem nenhum constrangimento ou surpresa. Tomou a camisa e ficou a bater bola com os demais companheiros.
“Então é isso!” – pensou Neandro. “Este cara, sempre este cara! Que viu em mim este sujeito? Certamente foi ele quem mandou me convidar.”
E enquanto a partida transcorria, ficou sentado na orla do campo, mas seus olhos não viam além de suas angústias. Qualquer ato estranho era motivo para deixá-lo transtornado, fazendo renascer, em seu coração, lembranças doces e amargas a que ele não podia ou não se via forte para combatê-las. Quantas coisas maravilhosas poderiam acontecer a ele, não fosse a interferência malévola de Arseno e Josemar. Aqueles dois tinham de pagar, não ficariam impunes de maneira alguma, nem que tivesse que destruir sua própria vida.
Mas, Orácio tinha razão: a violência não levaria senão a mais violência, numa roda viva de transtornos e tensões intermináveis.
Um amontoado de dúvidas e decisões incertas era seu eterno visitante, que não permitia a ele, um minuto de paz. As tentativas de esquecer, de distrair-se e passar a levar uma vida nova, foram-lhe vãs. A angústia morava nele, corroía sua resistência, engolia suas últimas forças: era terra propícia para o reflorescimento de vingança.
Quando em vez, a comemoração de uma jogada impetuosa ou mesmo de um gol, tirava-lhe do êxtase em que se encontrava. Mas logo voltava a sua posição de insegurança. Era, como diria a Bíblia numa de suas tantas inspirações poéticas, “um caniço ao vento”, indo e vindo sem jamais firmar-se em suas frágeis estruturas.
Terminou o jogo. Os companheiros logo se acercaram alegres pela vitória, e também por contar com um herói em suas fileiras. Falavam alto, abraçavam-se. Mas Neandro parecia apático.
– Vamos, ânimo companheiro, você é o que mais devia estar feliz! Ah, se Deus tivesse me dado seu carisma! Há mais de um mês que os jornais e as emissoras não se cansam de dar notas, enaltecendo seu feito. E ainda está aí com esta cara de insatisfeito? Não se importe de ser um cara estranho não, todo cara superior é estranho mesmo. É, como dizem: um cara maluco.
Neandro ouvia aquilo, mas em seu coração a angústia crescia como as ondas do oceano num maremoto. Aquilo lhe vinha forte, trazendo desespero máximo. As vozes foram sumindo, sumindo. Já não ouvia mais ninguém dizer nada – tudo era silêncio sepulcral. De repente, sem se dar conta do que estava fazendo, desembrulhou a arma, soltou o tambor, retirando cinco balas e deixando uma. Virou-se para a turma:
– Conhecem este jogo? É também um jogo de heróis, pois medroso algum se arrisca. E simples – e assim falando, rodou o tambor, engatilhou a arma, apontou-a no ouvido e puxou o gatilho.
Um som seco e inexpressivo avisou que a bala não estava na agulha. Todos estremeceram. Entreolharam-se assustados. Foi então que Neandro pareceu acordar de seu estupor. Como que por encanto, viu-se com cinco balas na mão, o revólver na outra e dezenas de olhos esbugalhados a fita-lo. Tomado, ele mesmo, de espanto, pôs a arma no chão e começou a ficar triste, não contendo nos olhos as lágrimas que desciam em sua face firme. Ubaldo, virando-se para os colegas que comandava, solicitou:
– Deixem-me a sós com ele.
A rapaziada foi se retirando, todos surpresos, sem ter um comentário sensato a fazer.
Na cabeça de cada um, há um destino. Muitos andam a vida inteira nas orlas dos abismos e, já no fim, retornam sem cair. Outros vivem nas campinas, ao largo, e, inexplicavelmente, como lemingues determinados, apanham a direção e lançam-se para os precipícios. Mundo inexplicável, mundo de mixórdias. Dele e das pessoas, disse Schopenhauer:
“Se se pudesse pôr diante dos olhos de cada um as dores e os espantosos tormentos aos quais a sua vida se encontra incessantemente exposta, um tal aspecto enchê-lo-ia de medo; e se se quisesse conduzir o otimista mais endurecido aos hospitais, aos lazaretos e aposentos de torturas cirúrgicas, às prisões, aos lugares de suplícios, às pocilgas dos escravos, aos campos de batalha e aos tribunais criminais; se se lhe abrissem todos os antros sombrios onde a miséria se acolhe para fugir aos olhares de uma curiosidade fria, e se por fim o deixassem ver a torre de Ugolino, então, com certeza, também ele acabaria por reconhecer de que espécie é este melhor dos mundos possíveis.”
Aí se misturam numa massa heterogênea, as verdades, as normas, os dogmas, a moral, as crenças, as filosofias e tudo o que pensa explicar a vida e suas vicissitudes. Até hoje não acredito que a humanidade tenha criado um passatempo mais insolúvel do que a vã ciência que imagina explicar Deus e suas criaturas.
CAPÍTULO 16
O campo ficou deserto. Aos poucos o sol se punha. Ubaldo bateu no ombro de Neandro:
– Aceitaria um convite meu para conhecer minha casa?
Neandro deu de ombro, numa demonstração inequívoca de que, naquele momento, qualquer convite seria razoável. Estava abatido, sem direito a opções.
– Não acha que já lhe causei problemas demais?
– Temos alguma coisa em comum. Não sei explicar o quê, mas sinto que temos.
Neandro mostrou os dentes. Não era mesmo um sorriso espontâneo.
– Não vejo em que podemos ser parecidos.
– Depois falaremos disto. Aceita meu convite?
Um tanto relutante, Neandro anuiu. Seguiu o carro de Ubaldo, indo estacionar numa mansão luxuosa a pouco menos de 50 metros da praia. Entraram. Neandro ficou assustado com tanta coisa bonita e bem organizada. Observou:
– Sua casa é um primor.
– Esqueça a casa. Use o banheiro social. Lá você encontrará toalha e sabonete. Vamos nos livrar deste suor incômodo.
Uma hora depois, estavam assentados a uma mesa redonda, num terraço bem ventilado, com plena vista para o mar. Comiam salgados e tomavam suco de laranja, pois segundo Ubaldo, era uma boa receita para recuperar as energias gastas no futebol.
– Por que se preocupa comigo? – perguntou Neandro, buscando suas últimas forças para entender o que estava acontecendo.
– Não me preocupo só com você, não. Qualquer pessoa que eu possa ajudar, eu tento. A gente neste mundo só vale pelos amigos verdadeiros que junta no decorrer da vida. A amizade fiel é o mandamento que Deus esqueceu, ou que apelidou de amor. Não há nada mais puro que ela.
– A-mi-go! – murmurou Neandro, tendo na mente retroativas lembranças. Ele e Orácio jamais encontraram três sílabas que falassem tanto ao coração. Replicou:
– Que sabe a meu respeito?
– Pouco e muito, dependendo do caráter e do significado que dermos a muito e a pouco. Sei que não posso defini-lo por aquilo que me diz, mas sei que não estou longe do que anda pensando, vendo sua maneira estranha de agir.
– E o que ando pensando?
– Ao vê-lo arriscar a vida numa roleta russa estúpida; ao notar o aparente desprezo que mantém pela vida, se há de convir que alguma coisa bem forte roubou de você o prazer de viver.
– Acertou.
– Posso saber o quê?
Neandro fitou Ubaldo, temeroso:
– Acho que não vale a pena.
– Claro que vale. Embora não saiba, estamos no mesmo mar revolto, embora em barcos diferentes.
– Barcos muito diferentes, dá para se ver!
– Você não entendeu o que eu quis dizer – explicou-se Ubaldo.
– Queria que conhecesse minha casa!
– Sua história, melhor dizendo.
– É, talvez esteja com a razão. Desafiou:
– O que conhece de minha história?
– Alguma coisa apenas, assim como você da minha.
Levado por contingências que obrigam as pessoas dar à existência o seu verdadeiro significado, Ubaldo desabafou:
– Está maravilhado com esta casa, não está? Está surpreso com toda esta ostentação, não está? Gostaria de estar no meu lugar, não é mesmo? Pois bem, se houvesse jeito de trocar, eu trocaria com você. Sou um homem com os dias contados e você me inveja tanto. Minha vida nunca foi um mar de rosas. Quando deixei os estudos, estava cheio de vida e de dinheiro. Meus pais não permitiam que me faltasse nada. As mocinhas da redondeza disputavam minha atenção. Naquele tempo, veio lecionar na fazenda, uma professora da capital. Chamava-se Edna. Menina bonita, esperta, com todos os subterfúgios da cidade. Logo se sobressaiu das matutas que, apesar de belas, não eram carinhosas e meigas. Já estava apaixonado por ela, quando…, bem, a verdade é que ela era uma menina sem preconceitos, destas que acham normal fazer amor com quem deseja. Isto me decepcionou, arrebentou meus sentimentos. Mesmo assim ficávamos juntos, fazíamos amor. Ela engravidou. Um dia ela me disse que estava esperando um filho meu e eu a enxotei como uma cadela. Ela tinha muita personalidade. Não reclamou. Juntou os trapos e foi embora. Nenhuma lei a protegeu, ninguém a defendeu. Ficou só com o meu filho na barriga. Ao dizer isto, Ubaldo ficou, por instantes, pensativo. Alguma coisa remoía dentro de seu coração. Continuou depois:
– É…, ela foi embora e dela nunca mais tive notícia. No mesmo ano perdi meus pais num desastre de carro. De repente me vi assim, um homem sem problemas financeiros, rico de verdade. Em vida, eles imaginavam tornar-me um homem de valor, um sábio. Gostavam da terra, do cacau e do café. Eu os decepcionei. Abandonei os estudos e vim viver a vida fácil, em que nada que o dinheiro pudesse adquirir, me faltava. Mas, a morte deles me doeu muito, pois meus pais eram tudo o que eu tinha e queria. Logo vendi as terras e vim morar na capital, investindo meu dinheiro em outros negócios que não a terra. Com o dinheiro aplicado, logo me vi sem ocupação. A solidão aproveitou a deixa e veio morar comigo. Depois, pensando em desfazê-la, comecei a trazer mocinhas para cá. Eram programas e mais programas que no fim só aumentavam minhas angústias. Um ano depois do que aconteceu com Edna, uma de minhas amantes, uma morena de cabelos encaracolados, engravidou, mas não aceitei seus juramentos de que o filho era meu. Ela não relutou, apenas desapareceu de minha vida, mas era fácil notar o desapontamento que havia dentro dela. Nunca mais me procurou.
Aquilo nunca deixou de martelar a minha consciência. Alguma coisa me dizia que ela era fiel a mim. Tentei localizá-la. Encontrei-a numa agência bancária, com uma gestação de quase nove meses. Não quis falar comigo. Vinte dias depois, soube que morrera num hospital. Não era verdade, pois um ano depois a encontrei novamente numa exposição agropecuária de Linhares. Abordei-a, quis obrigá-la a falar comigo. Depois de muita insistência, vingou-se dizendo que havia deixado a criança numa tapera paupérrima, mas não quis dizer em que lugar.
– Afinal – retrucou em riste – não sei por que se preocupa agora com um filho que não é seu.
– Mas eu sabia, estava certo que era meu filho. Hoje, tudo isto me consome aos poucos, mata-me em cada minuto de solidão. Ela e Edna: dois filhos! Duas criaturas que deixei abandonadas no mundo. Podiam ser crianças felizes e amparadas, você entende? Podiam estar comigo, usando de tudo isto, sendo minha alegria nestas horas tristes de solidão. Eu era um homem irresponsável naquela época e vivia acumulando angústias sem perceber. Tinha mais ou menos a idade que você tem hoje, talvez mais. Vivia enturmado, acreditando que o tempo jamais ultrapassaria a mocidade. Tentei assim esquecer o incidente, mas hoje percebo que apenas tentei. Tudo o que fazemos, tanto de bom como de ruim, um dia acaba voltando pra gente, hoje tenho certeza disto.
– O tempo passou e passou. Anos depois, encontrei uma moça estranha. Ela me escravizou os sentimentos, fez-me amá-la com força de apostasia. Deixei a vida desregrada e parecia, enfim, ter encontrado o caminho da estabilidade. Passava os dias pensando nela, esperando ansiosamente que a tarde caísse e eu pudesse ir apanhá-la no lugar em que trabalhava. Era ela muito estranha, simples, pobre…, mas era tudo o que eu queria. Jamais pensei que pudesse amar tanto uma criatura. Uma noite, porém, enquanto namorávamos na praia, fomos… bem, foi uma noite horrível. Depois daquilo, minha namorada ficou traumatizada. Transferiu sua insegurança para mim, numa instintiva vingança aos homens. Passou a hostilizar-me, a usar-me, a explorar meus sentimentos de maneira doentia. Trancou-se dentro de si; parecia não ter mais motivação alguma no amor. Resisti enquanto pude, mas no fim, embora sob meus próprios escombros, sepultei mais aquela esperança de ser feliz. Fui assim morrendo aos poucos. Há três meses, enfim, descobri que não terei mais muito tempo de vida. Como vê, não deve invejar-me.
Neandro estava boquiaberto, confuso, transtornado. O que levava aquele homem a tanta conformidade e desprendimento? Certamente, a certeza de que não era eterno. Certamente, todo fim é apenas um começo. Sentiu-se atraído por aquela confiança. Na verdade, não estavam tão distantes um do outro. Falou:
– Certamente, temos muita coisa em comum. Depôs o copo de suco na mesa, esfregou as costas das mãos na boca e disse:
– Eu já fui feliz também. Quando criança, morava numa fazenda, na cidade da Serra. Não lembro bem de minha infância, mas devo ter sido uma criança feliz e destemida – mamãe dizia muitas coisas a este respeito e sempre lembrava, com orgulho, o dia em que arrisquei a vida para salvar um amiguinho que escorregara por um despenhadeiro. Depois viemos morar aqui na capital e dois malandros assaltaram e mataram meu pai, exigindo um resgate que era tudo o que possuíamos. Ficamos na mais irrestrita miséria. A gente quase morria de fome. Fomos morar bem dentro do mangue, numa palafita de sarrafos e tábuas velhas. Um dia, o garoto que eu havia salvo do despenhadeiro, também abandonado, encontrou-me. Neste tempo, diante da miséria, ele andava roubando para sobreviver. Com o passar dos dias, comecei também. Sabe, a fome é dura demais e….
– Eu entendo – arrefeceu Ubaldo.
– No início eram coisas inexpressivas e necessárias, coisas para matar a fome e para me vestir. Depois, por meio deste meu amigo, conheci dois outros caras, muito maus e perversos. Paulatinamente fui me envolvendo. Um dia, enquanto vagávamos pela praia, vimos um carro estacionado…, bem, esta lembrança também me é muito desagradável e pediria que me poupasse relembrar.
– Eu sei – disse Ubaldo.
– Eu temia que soubesse. Sei que me reconheceu. Por que me separou? Por que não nos executou naquela noite?
– Não sou um assassino.
– Tenho certeza disto.
– Eu sofri muito vendo o que faziam com sua namorada.
– Eu percebi. Diga-me: que o leva a conviver com aqueles dois assassinos?
– Um dia, um menino viu dois caras sequestrarem um homem. O menino é o mesmo que eu salvei no despenhadeiro e os sequestradores, são os meus dois pretensos amigos assassinos. Mataram meu pai e deixaram-me na miséria, além de concorrerem indiretamente para a morte de minha mãe.
Ubaldo mudou de cor. Por mais canalha que tenha sido no amor, não podia imaginar, do outro lado da vida, uma história mais sórdida e brutal. Gaguejou:
– E agora, o que está se passando em sua cabeça?
– Eles irão me pagar por tudo isto.
– Já imaginava! Quando e como pretende cobrar esta dívida?
– Não tenho pressa. Dizem que ela é inimiga da perfeição. Não posso falhar. O modo será segundo a lei de talião.
– Mas já faz tanto tempo e….
– Aí está o grande problema. Há aqui dentro de mim uma voz terrível que ainda não consegui convencer. Mas, penso conseguir. Ela é renitente, mas eu sou dono dela. Um dia se calará, embora eu entenda que seu silêncio nada mais será do que o abandono de Deus.
– Sua consciência?
– Sim, ela mesma.
– Isto explica seu desprezo pela vida. Ninguém pode amá-la, gostar dela, sem a compreensão e o amor.
– Você não sabe o drama que minha consciência me impõe. Perco noites e noites tentando me convencer que tenho o direito de me vingar, mas não consigo. Ouço minha mãe dizendo que devo perdoar e recomeçar minha vida. Isto me cria uma angústia desgastante. Orácio também tenta me convencer de que não devo ser um assassino. Eu rebato reservando-me o direito de fazer justiça.
– Deus e o diabo, fazendo de seu coração, o que comunistas e americanos começam a fazer ao Camboja.
– É, acho que é isso.
– Você, na verdade, não nasceu para ser um assassino, percebe-se isto claramente. Quem você acha que levará a melhor nesta guerra, americanos ou comunistas?
– Sei apenas quem vai sair perdendo – retrucou Neandro olhando-se como a ver os escombros dos primeiros bombardeios aos vietcongues, ainda antes de a guerra acontecer declaradamente.
– Bem – disse erguendo-se da cadeira – tenho de ir. Orácio pensa ser meu irmão protetor: vive sempre preocupado se me atraso. Disse-lhe que não demoraria e são 22 horas. Deve estar lá decorando suas frases de repreensão.
– Domingo? – perguntou Ubaldo, referindo-se ao próximo jogo de futebol.
– Se Deus quiser – respondeu Neandro.
Ubaldo levou-o até a porta, voltando para o terraço. De cima, podia-se ver o mar imenso, mas ainda muito pequenino diante das galáxias, que por sua vez nada significavam ante a grandiosidade e o poder de Deus. E Deus nada mais parecia ser a Ubaldo e Neandro, naquele momento, do que um velho solitário, mexendo as vidas para distrair-se do tédio galáctico.
CAPÍTULO 17
1970.
A maré havia baixado. Apenas uma nata de lama rodeava a palafita de Neandro e Orácio.
O fusca veio e tocou na escada, quase a derrubando. O carro nada sofreu, pois não era necessário mais que um forte assopro para estremecer o barraco. Neandro não tinha ainda muita prática ao volante. Orácio, depois do susto, desceu repreensivo:
– Por aonde andava, homem de Deus?
– Não sabia que estava jogando bola?
– Refiro-me a depois do jogo.
– E melhor eu nem lhe contar.
– Já sei: de carro novo, famoso…. Uma garota?!
– Na mosca – respondeu Neandro, satisfeito pela saída que o próprio companheiro lhe dava.
Embora não houvesse motivo algum mais forte, não tencionava dizer de seu encontro com Ubaldo. Era algo ainda muito confuso nele mesmo.
– Os homens mandaram recado. Querem falar com a gente, amanhã.
– Você é louco? Foi ao local de espera?
– Claro que não.
– Como então mandaram recado?
– Descobriram nossa morada. Não sei como, mas descobriram. Um pivete esteve aqui e deu o recado. Eles são esquisitos. Às vezes passam tempo sem dar sinal de vida; não nos procuram nem se interessam por aquilo que possamos estar fazendo. De repente, chegam cheios de exigências, como se estivéssemos profundamente envolvidos. Sinceramente, esta maneira incoerente deles agirem assim, deixa-me confuso e tenso.
– Isto não é nada bom, principalmente se você estiver certo em suas suposições de que o soltaram para eliminá-lo em seguida.
– Infelizmente, estou.
– Então, será agora ou nunca. Faça de conta que não desconfia de nada. Seja o mais natural possível.
– Eu… sabe…. Eu estou com medo.
– Não se importe com isto. Tudo o que tem cu, tem medo.
– Cu? Não tem um sinônimo para substituir, não?
– Hiii! Acho que a cadeia não está sendo mais tão eficiente.
– Querem falar com a gente amanhã, no ponto e horário de sempre.
– Eles não perdem por esperar.
– Amigo! Não acha melhor a gente sair destes caras?
– Não se apresse. Nós iremos nos livrar deles.
– Não me refiro a seu plano maluco.
– De que jeito então?
– Fugindo daqui. Este mundo é grande e não há nada que nos prenda neste lugar. Ainda mais agora que você tem o carro, tudo fica mais fácil. Neandro pensou: “É, quando chegar o momento, a gente se manda.”
– O momento exato é este.
– Não estou bem certo.
– “A vingança é um tipo de justiça selvagem”, esqueça estes caras. Se não os esquecer, farão um mal ainda maior a você. Salve ao menos o que pode, cara!
– Depois falaremos sobre isto. Você me enfada com seus conselhos.
– Nem um jumento é mais teimoso! – suspirou Orácio, desistente.
– Você se imagina dono da verdade, do saber. Pois fique sabendo que não há regra comum para a verdade. Cada um tem a sua. Ela está na cabeça. Você pode dar mil voltas, ler, rezar, pedir, fugir…, ela lhe acompanhará, pois não está senão dentro de você. Tenho meus princípios, minhas regras, minhas decisões, minhas verdades.
– “O maior cego é aquele que não quer ver” – fustigou Orácio.
– Ah, vai, você e suas citações!
No outro dia, Neandro e Orácio foram ao encontro. Os dois já esperavam, fumando tranquilamente. Quando viram o carro, entreolharam-se com aprovação. Os dois saltaram um tanto apreensivos. Neandro forjou uma naturalidade que em nenhures estava com ele. Orácio não conseguia fingir: estava visivelmente nervoso.
– Gostaram? – perguntou Neandro.
– É bonito e veio a calhar. Temos um servicinho para ele.
– Êpa, este não entra em tais serviços! Não quero este carro manjado – defendeu-se Neandro.
– E desde quando você tem querer? – argumentou em riste, Arseno. Neandro engoliu seco:
Ele poderá ser usado, mas, sob protesto.
Arseno foi além:
– Depois que o rapazinho aí virou herói (nesta altura já sabiam da façanha de Neandro), está deixando a gente de lado. Olha aqui, bichinho, este é um caminho sem retorno: só tem entrada, entendeu? Cadê o milionário, o tal do Astério que iria nos render uma boa grana?
Apesar da grande luta interna que mantinha, Neandro decidiu-se num instante:
– Foi bom você lembrar. O homem chegou e está com relativa pressa. Ainda no início desta semana, disse-me que se nós não pudermos atendê-lo, irá procurar outros. Acalmei-o dizendo que viria falar com vocês e marcar a data.
– Depois de amanhã – antecipou-se Josemar
– Não vai ser possível. Ele mesmo pediu para que o encontro se desse daqui a duas semanas. Fez outra viagem rápida. Façamos o seguinte: logo que chegar, marco para três dias depois. Isto dará tempo de avisá-los. O plano continua o mesmo: vocês chegam primeiro, ou seja, às 20 horas, e ficam no lugar estratégico. Logo depois chego eu e fico em campo aberto, do outro lado. Dez a vinte minutos depois, ele deverá chegar. O resto vocês já sabem. Ah!, não esqueçam de maltratar-me um pouco para que ele não desconfie, caso resolvam deixá-lo vivo.
– Faremos isto com muito prazer – pilheriou Arseno.
– Eu sei – rebateu Neandro, absorvendo um pouco da sinceridade do bandido.
Orácio lançou a Neandro um olhar desolado. Aquilo que tanto tentara evitar, enfim, iria acontecer. O amigo, naquela decisão, parecia mesmo ter entrado num beco sem saída, num caminho sem retorno.
Viu Neandro entregar a chave do carro aos dois marginais, sem relutância, submisso. Os dois derraparam os pneus e desapareceram. Nem sequer lhe dirigiram a palavra. Aquela estranha atitude, perturbou-o ainda mais. Virou-se para Neandro:
– Amigo, saiamos desta enquanto há tempo.
– O que decidi, está decidido. Peço para não amolar mais com suas preleções. Sou-lhe grato por sua preocupação, mas, enfim, chegou o tempo.
– Lamento muito. Fico fora desta. Você é a única amizade que tive na vida, por isso prefiro não estar presente à sua derrocada. Logo que marcar o tal encontro, irei embora e tenho certeza, nunca mais nos veremos. Ainda há tempo. Pense mil vezes antes de se tornar um assassino.
– Você é um cagão!
– Sinto que tenho grande culpa nisto tudo. Estou com a consciência pesada. Não há como iludir-me de que não sou o único culpado por você estar metido nesta sujeira toda. Como quer que me encontre, depois de tanto mal que causei à pessoa que mais me compreendeu e a quem devo a própria vida? Estou arrasado, companheiro. Faria tudo para livrá-lo de tornar-se um assassino. Tivesse eu um irmão, talvez não lhe quisesse tanto bem, você sabe disto.
Neandro emudeceu, ficando a riscar, com o dedo, a areia do chão. Não havia pensamento concatenado em tal circunstância.
– Por favor – disse depois – não fale assim comigo. Não misture as coisas. Não vê que o único objetivo que tenho na vida é fazer justiça? Neste país tem de ser assim. Isto aqui, na verdade, não é um país sério. Aqui tudo e todos estão sujeitos ao desmando do poder político. Não importa que a nação deva, que os pobres sofram…, importa apenas o poder e com ele o prestígio e a riqueza dos que mandam. Eles fazem as leis somente para serem observadas pelo povo. Há mais ladrões e corruptos no comando deste país, do que nas cadeias. E o pior é que estes estão na cabeça de todos os poderes. Se não fizermos justiça, nós mesmos, ninguém fará por nós.
– Isto sempre foi assim. Pensa talvez que irá modificar alguma coisa?
– Não sei, mas de qualquer forma, o mundo saberá do meu protesto.
– Gostaria muito de ter a palavra certa para dissuadi-lo deste intento – disse, num sussurro inconsolável, Orácio.
O ônibus chegou. Tomaram-no e voltaram para casa, sem trocar mais uma única palavra. Em ambas as cabeças, uma verdadeira guerra era travada. Ambos estavam desolados. Pouca coisa há que consome mais o ser humano do que as dúvidas e a insegurança. Todo o organismo parece imbuir-se de um desejo desvairado de se autodestruir. Perde-se o sono, a fome…, o estômago queima, a cabeça dói. Vão-se a paz e a tranquilidade, desaparece o prazer de viver. O homem se revolta e perde as rédeas do bom senso, tornando-se um autômato, um fantoche ao bel prazer da insegurança. Não queriam dizer outra coisa, aqueles comprimidos que, ambos, Orácio e Neandro, agora procuravam sob a esteira da cama.
CAPÍTULO 18
Fins de 1970.
Terminava o jogo. Neandro havia feito o gol da vitória, mas nem por isto parecia feliz. Um companheiro de equipe cientificara-o de que Ubaldo não participara por estar debilitado por uma doença muito séria. Durante toda a partida, Neandro observou-o sob uma árvore, abstraído e triste. Logo que a turma se dispersou, foi estar com ele, sentando-se a seu lado.
– E então, companheiro, não quis participar hoje?
Sobressaltando-se como quem retorna de outra galáxia, Ubaldo fitou-o:
– Desculpe-me pela distração. Estava verificando os limites do infinito. Acho que é hora de ver estas coisas.
– É, você parecia-me muito distraído; distraído e talvez triste.
– Você não errou, aliás, acho que nunca foi mais preciso.
– A coisa não está sendo fácil, não é mesmo?
– É, não está. A gente quando está bem, imagina-se um forte. Faz planos de enfrentar as adversidades, de aceitar a vontade de Deus…. Bem, a gente erige um grande e frágil castelo de decisões. No entanto, quando o fim se aproxima, então percebemos nossa debilidade. Sei que isto é normal, haja vista o exemplo de Gethsemani, mas a verdade é que estou arrasado e frágil como um caiaque em alto mar.
Neandro coçou a nuca, não tinha nada a acrescentar. Bateu nos ombros do amigo, mudando aquele assunto desagradável.
– O sol esteve horrível durante a partida. Correr pela manhã é muito desgastante. E olhe só, agora que terminou, o céu nublou-se e até parece que vai chover. Mesmo assim, convido-o para um sanduíche na praia. Você tem duas opções: uma é dizer sim; a outra é não dizer não. Qual delas escolhe?
Ubaldo, Deus sabe com que esforço, pulou de pé, sorriu e disse:
– É isto mesmo, vamos curtir a vida enquanto a temos. Afinal, preocupação nunca resolveu qualquer problema. Seja o que Deus quiser, já que não pode ser como nós queremos. Para curtir a solidão, terei toda a eternidade. Por enquanto não posso me dar este luxo.
– Valeu, amigo – retrucou Neandro, quase acreditando na mudança de espírito de Ubaldo.
Às 17 horas, com o céu nublado, apenas os dois se mantinham na areia da praia, olhando o mar eterno que ostentava seu tamanho e beleza. Quando em vez, os raios do sol, burlando as nuvens que caminhavam rumo ao oriente, tocavam as ondas do mar, criando nuanças de rara beleza.
– Como é bonito este mundo de Deus! – exclamou Ubaldo, não sem um misto de pesar e saudade.
– Pena que Deus tenha metido o ser humano nele – desabafou Neandro, que jamais conseguira esquecer os transtornos que seres semelhantes lhe causaram.
Ubaldo fitou-o:
– Shakespeare não pensava assim. Achava o homem a obra prima de Deus. Só espero que ele não tenha se enganado e que sejamos, de fato, a obra prima do Criador.
– Você dizendo isto? – perguntou Neandro, surpreso.
– Há uma velha promessa de um só rebanho e um só pastor, mas cada dia mais pastores aparecem e ainda mais os rebanhos se dispersam. Além do mais, não podemos esquecer o dilúvio, quando Deus, arrependido pelos rumos de sua criação, resolveu passar uma esponja e começar tudo de novo. Afinal, ele também pode se enganar?
Neandro sorriu. Ubaldo arremessou um punhado de areia na água, comentando:
– Não ligue para o que estou dizendo, é apenas uma brincadeira. Para ser franco, agora estou muito feliz. Não estava hoje pela manhã, mas agora estou. Acho que é sua presença. Sabe, ficar isolado é um sofrimento. Não sei mesmo se alguém pode ser feliz, estando só.
– Mas você não estava sozinho. Havia centenas de pessoas lá no campo.
Novamente Ubaldo arremessou outro punhado de areia nas águas:
– Muita gente – disse-o bem – mas poucos amigos. É como este punhado de areia que cai e desaparece num instante, deixando a superfície vazia. Não são poucas as pessoas que vivem na mais extrema solidão, embora rodeadas de gente. Ter amizades não é difícil, caro amigo, mas ter um amigo de verdade é como presenciar o nascimento de uma zebra sem listras. Não foi por menos que Diógenes já satirizava, procurando um amigo, de lanterna acesa, em pleno dia de sol.
– Está insinuando que me considera um amigo?
– A quem mais um homem tenta dividir sua carga ou partilhar suas alegrias? Quero que acredite que o tenho em grande apreço.
– Mas logo a mim, um bandido?
– Você não é um bandido. Está fazendo tudo para ser, mas não é, e dificilmente será. Sei que tem problemas e mais problemas, mas quem não os tem? Ninguém passa por este mundo sem sofrer. Aliás, sofre-se quase toda a vida. Já parou para pensar por quantos minutos já conseguiu se sentir livre, despreocupado, sem problemas de espécie alguma, sem dores de nenhuma natureza, sem compromissos nem horários, com a alma cheia de paz? Isto talvez fosse felicidade. Já teve muitos minutos assim na vida?
– Talvez, quando criança, em que todas minhas exigências limitavam-se a comer, brincar e dormir. Depois disto, não. Logo que cresci, a vida se me apresentou cheia de problemas, de responsabilidades, de normas, de leis…
– É mesmo assim: logo que se tem conhecimento das leis e se obriga a viver segundo elas, finda-se a liberdade do homem. Aí, em cada dia, a gente vai se sobrecarregando de problemas e só mesmo com um ombro amigo para dividir a carga, consegue-se levar adiante a pesada cruz da existência. Amigo de verdade é como um tesouro escondido numa extensa lavra: praticamente só o acha quem tiver a sorte de cavar sobre ele. Muitos, por isso mesmo, morrem procurando e não o encontram.
Neandro, sem tirar os olhos de uma onda imaginária, pensou alto:
– Amigo é um pedaço da gente que vive desligado. Tenho um e quando ele não está, parece-me faltar um membro, um pedaço qualquer. Vive arreliando comigo, mas gosto dele de verdade.
– Certamente é seu amigo. Tenho quase certeza que jamais discordou de você enquanto no bom caminho. Estes que nos recriminam, que nos mostram carinhosamente os nossos erros, são muito mais nossos amigos do que aqueles que lisonjeiam só para nos agradar. Quero que saiba, que um amigo é capaz de praticar atos heroicos, só para nos proteger. Demonstra desprendimento tamanho que deixa o mundo estonteado. Tal foi a amizade de Jesus pela humanidade inteira: alguém poderá explicar?
– Você acredita muito em Deus, não é mesmo?
– Há momentos que meu raciocínio e meu coração o negam. Não consigo entender como ele permite tantos desvarios neste mundo. Mesmo assim defendo sua existência como a coisa mais sagrada de minha vida. Sinto que preciso crer e quero crer e estou certo que isto é tudo. Ninguém consegue nada e nem chega a lugar algum, sem crer. E como o alimento: faz parte integral de nossa sobrevivência.
A noite caía. As suaves lufadas, qual vassouras macias, espanaram do céu as nuvens revoltas. Pequenos pontos luminosos começaram a aparecer diante do cenário eterno, em que uma lua cheia despontava. Neandro e Ubaldo continuavam ali, sentados na areia, sozinhos, procurando na beleza imensa do infinito, alguma coisa que justificasse a presença deles naquele lugar e no mundo.
Conversaram e conversaram. Quebraram o casulo duro da introversão que faz tantas pessoas apodrecerem dentro de si mesmas. Abriram-se, confessaram-se, dividiram as cargas em pesos iguais. Cada um representava o cireneu do outro, no conforto e na compreensão daqueles momentos duros. Quando se apartaram, cada um tomando o rumo de sua casa, Ubaldo apertou a mão de Neandro, dizendo:
– Nesta hora eu seria capaz de enfrentar o mundo com todas suas hostes e adversidades. Enxergo meu problema do tamanho de um grão de areia, e sei que milhões de afortunados cheios de saúde me invejariam, se pudessem ver o que está se passando dentro de minha alma neste momento. Haverá prova maior da existência de Deus do que esta que faz a gente enfrentar o fim, a morte, com a galhardia de um mártir?
– Sua vida já esteve em minhas mãos, nas mãos de um bandido, e foi preservada. Não pode crer que Deus seja melhor que eu?
– Na verdade, não foi você quem preservou a minha vida, naquela noite. Já lá, naquele dia, Ele estava, sempre criterioso e sábio, para salvar também a sua alma. Dois coelhos com uma cajadada só – brincou Ubaldo.
Ambos sorriram. Neandro pilheriou:
– Não acredito que o Criador esteja fazendo um investimento de benevolência tão ruim. Há coisas bem melhores por aí.
– Para Deus não existe pior nem melhor e sim, gente. Ele não olha o invólucro, mas o que tem dentro.
– Assim espero – disse já à distância, Neandro.
Enquanto caminhava, sentiu que se não se defendesse, acabaria sucumbindo aos conselhos de Orácio e Ubaldo, e isto ele não podia admitir. Se existisse um ponto de honra, para ele, uma ordem dos céus, era de que a justiça sobre Arseno e Josemar devia ser feita através de suas mãos.
A paz de sua consciência, o sossego de seus passos, a diretriz de sua vida, tudo isto estava estritamente ligado à eliminação de Arseno e Josemar. Era incrível sentir que o perdão não acalmava seu espírito. Donde lhe vinha esta justiça, esta determinação que apresentava a vingança como preço da paz? E Neandro não fingia, não mentia a si mesmo.
CAPÍTULO 19
Orácio estava fazendo um dos célebres mexidos, quando Neandro chegou. Fora buscar o carro que, mais uma vez, Arseno e Josemar haviam tomado emprestado. Estacionou, bateu a porta e entrou. Orácio, sempre alegre, observou brincando:
– Não esperava você tão cedo. Nunca vi pontaria melhor que a sua, ou melhor dizendo, olfato mais aguçado. Como descobre as horas em que estou gastando meus dotes culinários?
– Realmente, esta droga que está mexendo aí cheira lá no outro quarteirão – replicou Neandro sem laivos de contentamento.
Orácio percebeu:
– Alguma coisa errada?
– Bateram o meu carro.
– Está brincando?!…
– Antes estivesse. Sabe lá Deus o que andaram aprontando. Dia menos dia a polícia chega aqui.
– Também penso da mesma maneira. Pena não entender uma coisa tão evidente. Veja como a gente amansa! Já nem sequer lembramos que o delegado me soltou para ser morto e que você não está em melhores lençóis. Tão logo acharem conveniente, nos liquidarão. E você não quer fugir, desaparecer por este Brasil imenso. Que força é esta que enceguece e avilta o bom senso de um homem?
– Esta história de sair para morrer é suposição sua, invenção de sua cabeça.
– Invenção? Invenção! …. Você sabe que não é invenção.
Neandro empurrou uma cadeira tosca para um lado, pondo os pés em cima. Depois do massacre a que submetera a planta dos pés, sempre reclamava de certos incômodos que mais pareciam ser citados pelo mau costume de reclamar do que pelas sequelas deixadas. Exercitou os dedos, aceitou o prato que Orácio lhe estendia e falou com certo pesar:
– O dia está marcado, será na próxima quinta-feira.
– Daqui a cinco dias, portanto.
– Isto mesmo.
Orácio depôs o prato em cima do fogão. Aproximou-se do amigo, desolado:
– Vai mesmo intentar contra a vida deles?
– Vou matá-los como fizeram a meu pai: sem piedade. “Dente por dente, olho por olho”. Depois disto, prometo parar com esta vida.
– Se quiser parar, terá de ser antes disto. Se levar a efeito seu intento, sentir-se-á arrastado por uma poderosa avalancha, por uma torrente que o lançará ao abismo. Ainda que queira, não conseguirá parar ou sair mais. E continuou:
– Amigo, esqueça isto, ainda há tempo. Estou lhe pedindo, faça isto por mim. Você está com 23 anos. Ainda é muito jovem para desgraçar-se.
– Agora não tem mais como retroceder.
– Claro que tem. A gente arruma as malas, toma o carro e desaparece. Estes caras não irão procurar a gente em outros estados. Afinal, não têm motivos para isto. O perigo deles é apenas a nossa presença. Eles temem que a gente possa denunciá-los à Policia Federal ou a alguém que não seja do time do delegado. Se a gente desaparecer, tudo ficará bem. Não há nada que nos prende aqui, amigo.
– Não, o que planejei será cumprido.
Orácio desistiu, não sem uma última cartada. Parecia a voz renitente de uma consciência a fustigar, em última instância, a crosta dura do entendimento de Neandro.
– Reconheço que não significo nada para você. Sou um ano e pouco mais jovem, mas também me considero um homem capaz de tomar minhas decisões. Assim sendo, vou cumprir o que falei. Hoje mesmo irei embora. Quero que considere isto um adeus, que não esqueça jamais que fui seu amigo e que saio com o coração partido, principalmente porque me considero culpado por tudo isto.
– Fazendo chantagem, heim?
– Não, não é chantagem. Eu…, eu gosto de você…, gosto como se fosse meu irmão.
– Você não tem culpa de coisa alguma. O que faço, faço-o sozinho. Está fora disto. Quero que também leve consigo a certeza de que gosto muito de você. Sei que sempre quis o meu bem e que se falhou, foi com a melhor das intenções. Eu também gosto de você como se fosse o caçulinha que não tive.
– Irmão! A intenção é a única coisa que conta no julgamento de Deus – falou Orácio num sussurro e com lágrimas nos olhos.
Nada havia mais agradável para ele do que iludir-se com o devaneio de ter um pai, uma mãe, um irmão. Virou-se humildemente:
– Ainda tem alguma coisa daquele dinheiro que ganhou na corrida?
– Quase não mexi nele. É um dinheiro honesto que penso usá-lo somente em coisa que valha a pena.
– Importa-se de emprestar-me “cinco bandas”?
– Está no lugar de sempre. Aquilo é nosso mesmo. Apanhe quanto desejar.
Orácio sorriu com tristeza, bateu de leve no ombro de Neandro e entrou no pequeno quarto. Pouco depois saiu com uma valise na mão e um embrulho debaixo do braço. Fitou o amigo de frente. O prato dele também não havia sido tocado.
– Estou indo – disse com voz entrecortada e incerta.
Gaguejos de soluços tingiam a voz sofrida. Neandro baixou a cabeça. Apenas a perda dos pais lhe fora dor maior.
– Não vai comer? Seu prato está aí e…. bem, você devia estar com fome quando fez isto.
– A fome que sinto agora não dói no estômago. Sinto-me como naquele dia, dependurado no despenhadeiro, só que agora vejo que não posso contar com aquele ami…
Neandro ergueu-se de chofre, abraçando-o efusivamente. Ambos queriam ser fortes, mas seus rostos estavam banhados de lágrimas.
– Desculpe-me, vai. Se puder perdoar, perdoe-me. Não sei por que, mas tenho que levar adiante a minha sina. Ela faz parte de mim. Há uma força inexplicável que me impele, que me joga, que me arrasta. Se eu não fizer isto, não conseguirei viver em paz.
Orácio estranhou aquilo. Haveria mesmo circunstâncias no mundo em que a vingança seria admissível e aprovada por Deus? Haveria alguma exceção na lei da mansidão, do perdão e da bondade que justificasse a agressão e o crime de morte? Jesus Cristo agrediu os vendilhões do Templo; Moisés assassinou um egípcio que maltratava um dos seus; os próprios anjos desceram dos céus e dizimaram milhares de inimigos do povo hebreu, no tempo em que os ocupantes da Terra Prometida, sem saber das decisões do Eterno, defendiam legalmente seus direitos e limites…. Ah! Como ele gostaria de acreditar que se pudesse matar, ainda que o pior dos bandidos, e depois recostar a cabeça e dormir. Matar não, isto era um direito exclusivo de Deus. A interferência do homem modifica os planos do Criador. É como a construção de uma grande obra, cada um tendo sua função. Retirando-se um funcionário, toda a obra fica comprometida. Não, matar não!
Todos aqueles pensamentos passaram-lhe rápido pela cabeça. Quando afastou o amigo, percebeu-o tristemente abatido.
– Ainda há tempo, vamos. Diga que desistiu. Vamos lá, arrume suas poucas coisas, coma o mexido, tome o carro e vamos embora. Nada nos prende aqui. Tenha confiança em mim. Estou querendo seu bem. Na verdade, o nosso bem. Se não faz isto por você, faça-o por mim. Vamos, erga a cabeça. Isto vai ser a decisão mais importante de sua vida e da minha também.
– Adeus companheiro – disse Neandro, virando o rosto e indo debruçar-se na janela da saleta.
Orácio ficou parado. Depois deu dois passos, olhou para trás e respondeu: – Adeus. Sem virar-se, Neandro perguntou:
– Posso saber para aonde vai?
– Se soubesse lhe diria.
– Eu irei para o Maranhão. Já conheço alguma coisa de lá. Se algum dia precisar de mim, deverei estar na cidade de Imperatriz. Depois disto, vou largar esta vida. Lá poderá procurar um rapaz pacato e trabalhador.
– Está bem – disse Orácio, eclipsando-se na noite escura.
Não havia, senão Deus, capaz de separar o turbilhão de ideias incertas que povoava sua mente. Sentiu-se novamente aquela criança abandonada, descendo a encosta pedregosa da fazenda do senhor Ricardo, numa noite tristemente memorável. Começou a pensar na vida, tentando encontrar uma razão para ter nascido, mas por mais que vasculhasse os recônditos de sua alma, só via escrito uma determinação opaca, indecifrável, sem sentido. Doía-lhe, sobretudo, ser um bandido cujo coração conseguia apiedar-se, condoer-se, ser amigo. Os pensamentos redemoinhavam ao sabor das intempéries que avassalavam seu coração, deixando-lhe contínuas indecisões. Afinal, o que era certo, o que deveria fazer naquela circunstância? O que um amigo de verdade faria, estando em seu lugar? Qual seria o conselho de Deus numa hora daquela?
Tremendo drama, melancolia da alma… um homem perdido num mundo sem caminho. Um bandido?
E na desesperante instância daquela noite, Orácio procurava em Deus, o amparo de que necessitava. Procurou-o na escuridão dos becos, no infinito eterno das estrelas, no lamaçal dos mangues, nas luzes da cidade, na beira do porto, na catedral…. Em todos estes lugares só havia o seu abandono e a sua ausência. “Deus, ó Deus! Onde estás que não respondes? Em que céus…”
Passos trôpegos, alma ferida, pés cansados, lá ia Orácio à procura de si mesmo. A noite seguia. Lá no alto, a máquina dos astros rodava o tempo. Matizes claras anunciavam o fim daquela noite de tormento. Orácio já quase não andava, claudicava.
Às oito horas, um homem chega e ergue a porta de aço de seu estabelecimento comercial. Orácio olha: armas, muitas armas. Entra.
– Quanto custa esta?
– Mixaria, coisa pouca…
– Levo quatro cartuchos, chumbo 3T, no negócio?
O homem pensou, fez rápidos cálculos.
– Dá pra fazer.
– Vou levar. Embrulhe.
CAPÍTULO 20
Neandro acabava de lubrificar sua arma calibre 38. Rodou o tambor, fez pontarias de treinamento, manejou-o: tudo funcionava perfeitamente. Não queria correr o risco de uma falha irreversível. À noite, iria à Curva do Cotovelo acertar as contas com Arseno e Josemar. Estava perdido nestes pensamentos quando alguém bateu palmas. Foi atender. Era um dos rapazes que jogava com ele. Trazia um recado para que fosse, com urgência, à casa de Ubaldo que estava agonizante e desejava muito falar com ele.
Neandro enfiou o revólver sob uma tábua velha e saiu ventando, acompanhado do rapaz que também parecia muito aflito. Ubaldo era, então, um homem muito respeitado e querido, principalmente por reconhecer as fraquezas das pessoas, e compreendê-las. Sempre calmo e compreensivo, sabia a maneira e o momento exatos para dizer uma palavra de conforto, ou mesmo de crítica. Tornara-se difícil reconhecer nele, aquele adolescente irresponsável do passado.
Quando chegaram, já a casa estava cheia, com o time completo apinhado na sala de estar, vizinhos e outros amigos. Todos estavam cabisbaixos e abatidos. Quando viram Neandro, foi como se um sedativo milagroso aliviasse a grande tensão que reinava.
– Entre depressa – disse um dos companheiros de equipe – ele não para de chamar por você.
Neandro entrou. Na cama, estirado e pálido, Ubaldo agonizava. Bastante emocionado balbuciou:
– Como está, amigo?
Ubaldo, num esforço sobre-humano, meneou a cabeça, fitando-o no rosto:
– Ainda bem que você chegou. Já estava me cansando de esperar. Quero falar com você, sozinho.
Os outros que faziam quarto, foram saindo. Ele pediu:
– Feche a porta.
Neandro obedeceu. Ele falou, quase com pressa.
– Estou indo, “fi… filho”. Não se importa de chamá-lo assim agora, importa-se?
– Não, “pai”, não me importo não – redarguiu Neandro, muito comovido.
– Não sei o porquê, mas gosto muito de você, como se fosse meu filho.
– Não fale assim. Não vê que isto arrebenta comigo?
– “Morrer é quase nada; o horrível é não viver” – disse Ubaldo numa citação ainda de humor, arrancada numa de suas últimas forças.
– Você é uma lição de conformidade. Invejo-o também por isto. Como gostaria de ter esta coragem!
– A vida não termina aqui. Verá, e não tenha pressa nem medo. A coragem chega quando for exigida. Há momentos que a gente se sente um capim queimado, destruído, mas logo depois, com um simples chuvisco, brota um renovo e o capim renasce ainda mais viçoso. O sofrimento é um fogo necessário à nossa renovação. Também as mais belas e altas árvores têm suas raízes no chão; os mais belos lírios nascem nos lamaçais. Não perca as esperanças por estar, hoje, num mundo difícil, no chão, no meio da lama. Acredite na vida, meu filho.
Neandro continuava cabisbaixo, segurando a mão fria de Ubaldo. Parecia notar em cada minuto, a lividez invadir cada centímetro de seu rosto.
Ubaldo também percebia o fim e parecia ter muito a falar:
– Não se desespere com a pobreza, nem inveje os que parecem ricos. “Ainda que tenham um palácio com mil cômodos, em apenas um poderão dormir. Mesmo que tenham dez mil acres, só poderão comer uma medida de arroz.” Assim é a vida, “meu filho”, uma luta estúpida para ajuntar riquezas que no fim só trarão noites indormidas, brigas, desentendimentos, ódio e infortúnio aos herdeiros. Não ligue para este tempo de amargura pelo qual está passando. A felicidade é como a visão do azul celeste: uma ilusão de distância. Aqui parece mesmo que a gente vem para um desterro, para uma prova de obstáculos, para uma…
Notando a dispneia acentuada, Neandro interferiu:
– Acalme-se ami… “pai”, não faça tanto esforço.
– Preciso falar. Para isto chamei-o aqui. Diga, “meu filho”, ainda pensa em se vingar dos assassinos de seu pai?
Neandro tornou a baixar a cabeça, atingido em cheio pelo momento e pela pergunta do amigo moribundo. Percebendo a indecisão, Ubaldo estimulou-o:
– Por favor, não minta.
– Estou. Vai ser esta noite.
– Não faça isto, “filho”. Sei que está vivendo um tempo difícil de sua existência. Sei também que é muito fácil dar conselhos quando não se vive o problema. Hoje, porém, vejo-me numa posição privilegiada para pedir isto a você. Olhe para mim e veja em que se resume a vida: a um nada, a um fim humilhante sem altercação. A única coisa que conta aqui neste mundo é a luta honesta para se chegar a esta hora sem entrar em desespero. Nunca se torne um assassino. Nunca matei ninguém, mas acredito que não pode haver perseguição maior do que o abantesma de uma vida tirada.
Ubaldo começou a tossir, quase perdendo o fôlego. Neandro sacudiu-o um pouco, passou-lhe uma toalha no rosto e tornou a insistir:
– Não fale tanto. Suas palavras significam muito para mim. Pode ficar descansado que não irei esquecê-las.
Ubaldo meteu a mão no bolso do pijama. Retirou um pequeno papel que parecia estar ali há dias:
– Quando tiver tempo, procure o homem deste endereço.
Neandro passou uma olhada rápida no nome e colocou-o no cós da bermuda. Ubaldo piorava a cada minuto, sempre insistindo em falar.
– Ali – disse ele apontando para uma gaveta do consolo – abra e apanhe minha Bíblia.
Neandro obedeceu. Nunca havia visto uma Bíblia de verdade. Lera citações, ouvira, ao acaso, a explicação de alguns trechos evangélicos, coisas rápidas de momentos ocasionais. Ubaldo tomou-a, recostando-a sobre o peito arfante:
– Aqui está escrito, meu filho, toda verdade e sabedoria do mundo. Não há na terra, nenhuma citação, nenhuma descoberta filosófica que não tenha sido tirada daqui. Mudam-se as palavras, as frases, mas tudo vem daqui. Toda pessoa que ler, aprender e entender este livro, não precisa invejar nenhum sábio, nenhum gênio da razão, nenhum pensador. Tudo foi tirado daqui. Talvez seja por este motivo que devemos aceitar sua inspiração divina. Ganhei-a de minha mãe, ainda quando era estudante do primário. Depois fiquei sozinho no mundo.
– Não tem nenhum parente vivo? – arriscou perguntar Neandro.
– Lá onde passei minha mocidade, ficaram alguns parentes… esquecidos…, são lembranças vagas…, é, a gente não se afinava muito. Eles nunca aceitaram o fato de uma professora (Edna era seu nome) dizer que estava grávida de mim. Eles eram uns hipócritas moralistas. É uma história antiga que remonta há mais de duas décadas. Sei que a criança nasceu, mas nunca mais tive notícia dela. Quanto a eles, também nunca mais deram notícias e nem eu as procurei. Vim para cá pensando em me casar. Apaixonei-me por uma garota e tudo parecia que ia dar certo. Nunca pensei que se pudesse gostar tanto de alguém. Depois… bem, isto não importa. Não deu certo.
– Você já me falou sobre isto.
– Já falei? É, acho que sim. Deve ser amnésia da doença. Acredito que já não estou falando coisa com coisa.
Neandro baixou a cabeça, terrivelmente atingido. Partilhara da destruição de um homem e agora assistia seus destroços. Ubaldo continuou como se nem mais se lembrasse do incidente:
– Foi melhor assim. Não ia dar certo mesmo. Melhor uma separação do que uma desilusão. Se estivesse aqui agora, certamente estaria lacrimosa e desesperada aqui na cabeceira. Pode crer, “filho”, Deus consegue fazer um agradável suco, até mesmo com as cascas podres dos frutos. Minha família agora é vocês que me assistem nesta despedida. São meus irmãos, meus filhos, meus amigos e companheiros. Vejo-os aqui reunidos e quero usar deste momento importante de minha vida para desejar a todos, a curtição completa dos curtos momentos de felicidade e a resignação viva ao longo dos períodos de provação.
Eu queria muito, agora, poder reparar todo mal que fiz. Queria, aqui na cabeceira, os filhos que reneguei, para dizer que se pudesse desfazer o passado, jamais lhes repetiria o abandono. Se um dia os encontrar, diga-lhes que os amei todo o tempo em que vivi.
Embora não saiba, você é meu Benjamim de Jacó. Tenho por você uma amizade profunda e levo-o na saudade pelas caminhadas incertas que vou encetar. Entrego-lhe a maior riqueza que consegui: este livro. Foi ele que me ensinou a verdade, que me deu força para não sucumbir diante das adversidades, que me fez deixar a vida irresponsável que levava, que me fez perdoar e ser manso, que me faz enfim, neste momento, ter coragem para apanhar as malas e resoluto enfrentar a nova dimensão. Não sei quantas surpresas terei pelo caminho! Não sei como será a recepção – talvez nem haja recepção. Enfim, está chegando a hora da grande verdade, a única verdade que sempre preocupou a humanidade, desde o início de sua criação. Um pouco mais e serei mais sábio do que toda plêiade que enaltece as bibliotecas do mundo. Mais um pouco e poderei dizer quem é quem, quem sou eu, quem foram eles. É nesta hora que fico imaginando como somos estúpidos na ânsia insaciável de querer saber tudo antes da hora. Mais um pouco e chegarei ao limite de minhas curiosidades. É a hora que tanto estudiosos como letrados, ficam sabendo de tudo, tenham ou não procurado. Se soubesse, meu filho, quantas noites perdi imaginando o post-mortem! Fazia mil ideias da alma, de Deus, das coisas do além… Nunca cheguei a nenhuma conclusão sensata. Agora, querendo ou não, ficarei sabendo de tudo. Minha força para entrar calmo nesta nova descoberta, está aí, no livro que tem nas mãos. Guarde-o com o mesmo carinho com que sempre o protegi; leia-o todas as noites, faça dele sua diretriz, seu caminho. Todas as…
Sem terminar a frase, Ubaldo começou a tremer os lábios, já de uma lividez mortal. Neandro esfregou-lhe a toalha no rosto, enxugou o suor gelado e chamou pelos companheiros. A porta se abriu e todos se acotovelaram para entrar no quarto. O médico apenas apertou-lhe a mão com visível afeto e amizade: nada mais podia fazer diante daquele câncer evoluído e letal. Ubaldo correu os olhos lânguidos por todos os presentes, amortecendo-os em seguida. Deixava este mundo.
Neandro ficou paralisado, com a Bíblia aberta na mão. Enxugou as lágrimas que lhe embaçavam a visão e olhou o livro. Seu dedo estava, por acaso, em um ponto qualquer da folha. Ele leu: “Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás; e quem matar será réu de juízo. Pois eu digo-vos que todo o que se ira contra seu irmão, será réu no juízo…. Concerta-te sem demora com o teu adversário, enquanto estás posto a caminho com ele… E se tua mão direita te serve de escândalo, corta-a e lança-a fora de ti; porque melhor te é que se perca um dos teus membros, do que todo o teu corpo vá para o inferno…Vós tendes ouvido o que se disse: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, digo-vos, que não resistais ao que vos fizer mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quer demandar-te em juízo, e tirar-te a tua túnica, larga-lhe também a capa…tendes ouvido o que foi dito: Amarás ao teu próximo e aborrecerás a teu inimigo. Mas eu vos digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos têm ódio e orai pelos que vos perseguem e caluniam… ”
Neandro olhou ao redor: dezenas de cabeças estavam baixas. Quantos pensamentos divagavam naquele momento. Quão estranha era a vida.
“Não maldizei os céus, porque é a morada do Senhor; nem a terra, porque nela se firmam seus pés.”
“Os pés de Deus” – pensou, enquanto fechava o livro e saía apressadamente do quarto. Na pressa engastalhou o bolso da bermuda numa ponta da escada, danificando-a ao desuso. A tarde caía e uma voz peremptória incitava-o com a força que impeliu Judas à traição: “O que tendes a fazer, faze-o logo.”
Também Judas não tinha escolha: era um predestinado, um homem que tinha de cumprir as Escrituras e obedecer a uma força superior, ainda que lhe custasse a salvação. Coisa estranha, cuja justiça transcende a compreensão humana.
Há deliberações nos fastos do Eterno das quais nem um til poderá ser suprimido, embora nos pareça injusto.
CAPÍTULO 21
Neandro chegara cedo à Curva do Cotovelo. Arseno e Josemar deveriam estar ali, somente uma hora depois. Não fazia muito tempo que a noite havia chegado e já a lua despontava com seus afáveis e secos arco-íris, aureolando os horizontes distantes com nuanças carmesins. O céu começava a tomar forma de uma acústica em lantejoulas, de purpurinas brilhantes que pisca-piscavam serenas na distância infinita da nossa galáxia. Tudo ali parecia cheio de paz, menos o coração de Neandro.
Arrumou-se em seu esconderijo. Quebrou alguns ramos que poderiam dificultar-lhe a pontaria; examinou todos os detalhes: tudo estava de acordo com seu macabro plano de vingança. As exortações que lhe ocorriam da conversa que acabara de ter com Ubaldo eram dispersadas com nutos da cabeça e com lembranças revividas do grande mal que os dois bandidos haviam feito a ele e à sua família.
Ressoava-lhe nos ouvidos, os conselhos de sua mãe e de Orácio; e de Ubaldo que, naquele momento, estava estirado, rodeado de amigos, sendo velado em sua última despedida.
“Não mate, nunca seja um criminoso, acredite em Deus… Somente a mansidão e o perdão são capazes de fazer frente à violência… perdoai aos vossos inimigos…”
“Dente por dente, olho por olho; aqui se faz, aqui se paga; não há nada que se faça, sem que Deus permita; está escrito: assim será; não é justo que assassinos e malfeitores fiquem impunes… ”
Era a luta da consciência, da voz de Deus contra nossa inclinação malévola. Aqui diria Drummond de Andrade:
“Nem eu posso com Deus, nem pode ele comigo. Essa peleja é vã, essa luta no escuro entre mim e seu nome. Não me persegue Deus no dia claro. Arma à noite, emboscadas. Enredo-me, debato-me, invectivo e me liberto, escalavrado. De manhã, à hora do café, sou eu quem desafia. Volta-me as costas, sequer me escuta, e o dia não é creditado a nenhum dos contendores. Deus golpeia à traição. Também uso para com ele táticas covardes. E o vencedor (se vencedor houver) não sentirá prazer pela vitória equivocada.”
Sua cabeça ardia, sua mente tornava-se confusa. No meio de toda aquela agitação, pareceu ouvir um estranho barulho na moita logo abaixo. Afinou os ouvidos, prendeu a respiração. Tudo voltou ao mais terrível silêncio. Devia ter sido um coelho, uma raposa, um curiango…
Apesar da noite fria, o suor começou a brotar-lhe da fronte. Esfregou a palma da mão: seu nervosismo tornava-se visível. Faltavam vinte minutos para a hora marcada. Neste momento, Arseno e Josemar já deviam estar a caminho. Viriam no seu próprio carro. Miseráveis! …
Ultimamente ficavam mais com o fusca do que ele próprio. Já haviam batido a lateral direita e sempre o entregavam na mais irrestrita sujeira. As poltronas manchadas de sêmen e sangue e seu interior cheirando a cigarro e a álcool, numa proporção repugnante.
Mas tudo isto iria acabar, estava prestes a acabar.
“Não se torne um assassino! Nunca matei ninguém, mas acredito que não há perseguição maior nem mais furibunda do que os abantesmas de um assassinado.”
O tempo ia passando e Neandro desejava que tudo ocorresse o mais rápido possível. Os minutos, diante daquela insustentável situação, agigantavam-se em séculos. Não havia, para ele, tensão e dor maior do que a expectativa que se fundamentava naqueles minutos. Os pensamentos vinham e eram rechaçados com a mesma impetuosidade com que chegavam. Seu corpo tornava-se campo de uma batalha das mais sangrentas entre o bem e o mal. Ele também, como um país em guerra, assistia às hostes em luta e sentia destroçar-se em cada achaque que as facções lhe impunham.
Olhou para o relógio: oito horas. Seu coração acelerou-se, ficou trêmulo, sentiu medo. Entrara, de fato, num beco sem saída. Se Josemar e Arseno não viessem, talvez ficasse feliz. Estava transtornado, confuso e indeciso.
Apanhou o revólver: suas mãos tremiam. Estava prestes a se tornar um assassino. Em nada seria diferente de Arseno e Josemar. Uma leve dor de cabeça, acompanhada de afogueamento facial, denotava o desconcerto que se passava dentro de si.
Os carros que trafegavam pela BR, quando em vez, roubavam-lhe a abstração. De repente, percebeu que luzes de faróis alumiavam o pátio amarelo que os tratores haviam cavado. Crispou-se todo.
O carro veio e parou. Arseno e Josemar saltaram e ficaram em pé a menos de 10 metros dele. Pareciam desconfiados, embora jamais suspeitassem de Neandro, a quem achavam covarde e medroso. Neandro ergueu a arma. Suas mãos tremiam violentamente. Quis desistir, mas viu que seria pior. Não encontraria explicações para convencer os dois bandidos. Quando ergueu o cão, quase a arma disparou sozinha, tal o nervosismo que dele se apossara.
Fez rápida pontaria e puxou o gatilho. O eco cortou o silêncio profundo. Arseno e Josemar lançaram-se ao chão, gritando:
– É uma emboscada! Vem dali, daquela moita. No mesmo instante travou-se uma verdadeira batalha, com tiros partindo ininterruptamente dos dois lados. Nisto, duas fortes explosões de uma escopeta sufocaram os demais estalidos, vingando, apenas, sons guturais, grunhidos de porcos que agonizavam. A confusão era tão estapafúrdia, o momento tão desolador que Neandro nem pôde perceber direito o que havia acontecido. Pulou de seu esconderijo, passou por cima dos cadáveres que ainda se debatiam, tomou seu próprio carro e deixou o local em disparada.
Apesar da velocidade, do barulho que zunia no quebra-vento, seus ouvidos não podiam safar-se dos ladridos esganiçados de sua consciência que gritava: assassino! Assassino! Assassino! …
Entrou em sua palafita, apanhou os poucos pertences já arrumados, jogou tudo no porta-malas do fusca e saiu apressado. Vozes tonitruantes perseguiam-no em cada lugar, como uma matilha de cães raivosos.
Saiu sem fechar a porta e sem olhar para trás. Ao passar pela praia de Camburi, lembrou-se do amigo morto. Uma força, outra vez indomável, fê-lo virar o volante, e seguir para lá.
Havia muita gente na sala e no quarto. O serviço funerário já dispusera os castiçais, um em cada canto da cama e sobre eles tremelicavam luzes de velas. Na cabeceira, um lenho com uma estatueta de bronze de Jesus Cristo crucificado. À luz tênue das velas, parecia que aquela imagem revivia a agonia do Calvário.
Um dos companheiros dirigia as orações. Todos estavam absorvidos por aquele momento de solidariedade cristã.
Neandro entrou. Cada um que erguia os olhos parecia acusá-lo. Mesmo assim, ele encostou-se à cama, ajoelhou-se, tentou dizer alguma oração e logo depois saiu novamente. Não havia em sua alma, senão gritos e desassossego.
Como Judas tinha cumprido sua missão e lá não conseguia esconder-se dos olhos de Deus.
Embora imóvel, embora uma simples lembrança em estátua, o crucifixo de bronze parecia dizer: “Eu tentei, filho. Você sabe que eu tentei.”
Só lhe faltava, agora, arremessar as moedas da vingança aos pés do senhor do mal e pendurar-se numa árvore.
CAPÍTULO 22
“E lá vão os homens isolados, cada qual solitário em sua amargura, lado a lado pelas trilhas do destino” – diria Garcia Salve numa de suas mais melancólicas inspirações. Qual um gato na noite, um vulto esgueirava-se pelas sombras lúridas dos recantos menos iluminados como se estivesse fugindo de si próprio. Cada ruído, cada farol, cada luz da estrada, era um anjo terrível e acusador a persegui-lo.
O rapaz caminhava sofregamente: tinha de alcançar o único esconderijo capaz de livrá-lo da angústia que o perseguia. Quando se aproximou, notou que tudo era silêncio. A paz parecia morar ali, remanchar em cada canto da pequena gruta. Já não ouvia os sons dos carros, nem via as luzes denunciadoras. Parou um pouco a fim de recobrar o fôlego que quase lhe faltava na subida íngreme e longa do monte.
Quando era pequeno, fugiu de casa e foi encontrado faminto e enregelado, na beira daquela estrada, por um monge budista. O monge levou-o para sua gruta, falou-lhe do sábio de SAKAYAS que viveu 500 anos antes de Cristo. Ele era ainda uma criança e como tal, jamais esqueceu aquele momento de afeto e carinho.
– Um dia – falou-lhe o monge – um homem muito rico e educado encontrou à margem da estrada, um velho, um doente e um cadáver. Isto foi bastante para modificar-lhe a vida. Largou tudo (inclusive mulher e filho) e passou a meditar sob uma árvore que ficou conhecida como a Árvore da Sabedoria. Este homem não acreditava em nenhum ente supremo e criador, apenas no burilamento de cada espírito, através de sucessivas reencarnações. O Karma (alma) teria de voltar a viver e a sofrer, até se purificar e viver sossegado no Nirvana (céu). No Sermão de Benares, ele se pareceria com Jesus Cristo, mais tarde, no Sermão da Montanha. Pregava o bem na sua “Senda das Oito Trilhas” e não esquecia nunca de lembrar que a vida humana é feita de angústia e sofrimento e que somos sempre, o produto de nossos pensamentos. O rapaz lembrava todas aquelas palavras, mas preferiu muito mais seguir os ensinamentos de Jesus Cristo. No entanto, a doçura do monge, o desapego e a bondade, não deixavam dúvidas de sua boa intenção na convicção que abraçara. O caminho que trilhava, fatalmente, levá-lo-ia ao Nirvana, ainda que Deus tivesse que construir um, só para não o decepcionar.
Jamais esqueceria aquelas palavras e aquela noite em que, quase morto, fora levado montanha acima, ali permanecendo até o dia que achou conveniente. Agora voltava como o filho pródigo do Evangelho, e lá estava o velho monge, ainda com a porta aberta como se estivesse esperando por ele. Tudo seria igual, não fosse a presença de grisalhos tocos de cabelo na cabeça, há alguns dias por rapar.
Em cima de uma tábua serrada a mão, o monge budista, à luz de um pequeno lampião a querosene, escrevia alguma coisa, totalmente absorto em seus pensamentos. A ele não importava quem pudesse chegar e, chegando, encontrar a porta aberta. Não havia nada a temer. Segundo o monge, aquela gruta era a casa mais bem fechada do mundo.
Deixara o Tibet e viera buscar refúgio no alto daquela montanha, lá nos confins do Espírito Santo. Passava a vida meditando e ajudando os pobres com o que a acupuntura pudesse resolver. Cabeça raspada, túnica de um amarelo um tanto desbotada, um cíngulo bem arrochado como cilício…, o monge parecia ter encontrado a única razão de ter nascido: buscar, com todas as forças e meios, a purificação de seu espírito.
Apesar do frio, o rapaz estava suado e ofegante. O monge parecia estar flutuando. A luz do lampião esbatia-se quando em vez, pintando de serenidade, aquele ambiente em que o próprio silêncio podia ser ouvido.
O rapaz chamou. Sua voz, por si só, já justificava a absolvição de um sacerdote católico. O monge despertou de seu êxtase e calmamente se virou para a porta. Um tanto enceguecido pela idade e pela luz incerta do lampião, ele mal pôde divisar a figura abatida de quem chamava. Convidou:
– Entre, meu irmão. Que Buda arrefeça seu espírito.
O rapaz deu três passos com certa rapidez, como se estivesse fugindo de alguma coisa que o perseguia tenazmente lá fora, alcançando o recinto mais quente da caverna. Fitou o monge, muito confuso:
– Ainda aqui sozinho, meu bom padre?
– Nunca estive só aqui, você sabe. A paz vive junto comigo. Há alguém mais bem acompanhado neste mundo?
Em outros tempos, talvez, o rapaz duvidasse das palavras do monge, mas diante da perseguição invisível que sentia, esmoreceu:
– Acho que tem razão. O monge empurrou o papel e o lápis mais para o canto da tábua, firmou os olhos cansados e observou:
– Isto aí (e mostrou a arma que o rapaz trazia consigo) não o está incomodando? Deponha-a em algum canto e sente-se aqui. Não tenho cadeiras. Faz parte de nossos votos de pobreza.
– Vocês acreditam mesmo que o Nirvana exista? – perguntou o rapaz como quem busca, nessa fé, a última esperança.
Se também o monge estivesse duvidoso, não haveria, para ele, mais nada a tentar.
– Não sei se nos é posição vantajosa, mas na verdade continuaremos vivendo por toda a eternidade, sofrendo golpes de burilamento, até atingirmos, plenamente, a perfeição.
O rapaz colocou a espingarda no canto da alcova e, extremamente abatido, achegou-se:
– Estou arrasado. Matei dois homens para salvar um amigo. Não sei se pode entender-me. Eu precisava provar a ele minha gratidão e minha amizade. Este amigo é aquele que lhe falei há muito tempo, quando me encontrou quase morto de frio. Na época eu era apenas uma criança, mas mesmo assim percebia que ele era sincero e gostava muito de mim.
– Eliminar uma amizade verdadeira é suprimir o brilho de seu próprio universo. O amigo é um pouco da gente. O seu fim representa, para nós, uma grande e irreversível perda. Sem ele nós ficamos mutilados.
– É, é verdade. O senhor acha que “Deus” pode me perdoar?
– Se dependesse “Dele”, até o mais vil criminoso seria perdoado. Ele é moleirão, de coração mole. O problema está apenas na gente.
– O senhor diz isto para me confortar?
– Não, falo sério. Só depende de você.
– Matei para salvar meu amigo. Ele era para mim o irmão que nunca tive, o senhor me entende?
– A quem você matou mesmo?
– A dois criminosos perigosos.
– Eram mesmo dois criminosos?
– Juro por Deus. Dois criminosos dos mais frios e calculistas de Vitória.
– O seu Deus manda apenas dizer sim ou não, jamais jurar o seu santo nome – repreendeu o monge, e ciciou: “cinquenta por cento de suas penas já estão perdoadas.” O rapaz ouviu pela metade.
– O que foi que disse?
– Que todos somos “filhos de Deus”, bons e maus, assim como acontece, em geral, em todas as famílias. Ainda que todos venham dos mesmos pais, nunca há dois iguais.
O velho monge, percebendo a ignorância religiosa do rapaz, começou a usar linguagem familiar, esta de substituir “O Iluminado” por Deus, ou qualquer título de nobreza e poder com que a humanidade ameniza sua necessidade de crer. Para o monge só importava repartir aquela aflição esmagadora que estava comprimindo o coração do pobre rapaz. Ergueu-se, assoprou um monte de brasas e esquentou um chá que, naquela hora da noite, para aquele rapaz desassossegado, tanto podia ser café, chá, chimarrão ou uma taça de fel. Ele bebeu sofregamente. O monge esperou um pouco, depois dissertou:
– Não se aflija, arrependa-se apenas. Busque a paz e pratique o bem. É um espírito em evolução que terá de esperar um tempo. Não se aflija, tente melhorar sempre mais. Não tenha medo da morte. Ninguém morre, transmigra apenas. Neste exato momento, os dois que tirou a vida material, já estão vivendo outra encarnação. Terão de aprender, de se aperfeiçoar, pois só há um lugar de paz, e neste lugar, só entrará quem não possa prejudicá-la. Lá, só os perfeitos e bons entram. Sossegue-se, recoste a cabeça e durma. Não tema a vida, pois querendo ou não, jamais se livrará dela. Sobreviverá pela eternidade. Um dia chegará à perfeição e então descansará desta vida de angústia e sofrimento. Aqui somos…
As palavras do monge vinham macias e tépidas como raios de sol numa fria manhã de inverno. E no doce embalo de um anjo cantando, o rapaz cerrou as pálpebras, ainda sentado. O monge segurou-lhe o ombro e desceu-o em sua tábua de dormir. O rapaz entreabriu os olhos e deixou-os fecharem novamente, num doce devaneio. Talvez aquela proteção e paz fossem o Nirvana tão sonhado de tantos crentes de Buda. Dormiu.
Quando o dia amanheceu, Orácio ainda ressonava. O monge achegou-se de manso, bateu-lhe no ombro, despertando-o. Ele esfregou os olhos, voltando à dura realidade. Conversaram e conversaram. O monge mostrou-lhe que não devia desesperar-se, pois todo mundo tem dificuldades e só conhecendo o problema dos outros, poderemos ver quão pequenos são os nossos.
– Vim de Lhasa, no Tibet, no sudoeste asiático – disse o monge, pensativo. Lá a gente vivia em liberdade, mas com a revolução de 1949, a China voltou a ocupar o “Teto do Mundo” e aí…
– Teto do Mundo?
– É, o território lá é conhecido por este nome, por abrigar o Everest e o Himalaia, considerados os pontos mais altos da Terra.
– Deve ser muito frio, não?
– Montanhas geladas, filho! Por isto vim viver aqui no alto, nesta caverna. Lá embaixo, o calor me sufoca.
– Pretende voltar para lá?
– Só quando nos permitirem a liberdade religiosa e cultural. Estamos sendo absorvidos, eliminados como etnia. Milhões de tibetanos hoje se encontram exilados pelo mundo, dispersos como o povo judeu.
– E sua família?
– Meus pais foram dizimados no levante de 59, juntamente com mais de 80 mil pessoas. Um dos meus irmãos conseguiu escapar e hoje vive em Tóquio, no Japão. É tudo o que me resta em termos de família. Como vê, o mundo não está sendo duro e amargo só com você.
Orácio calou-se. Não era preciso dizer mais nada. Aquele relato foi-lhe mais conformidade do que uma absolvição. Todo sofrimento era, de fato, apenas uma consequência de nossos atos.
CAPÍTULO 23
Abatida, mais velha e mais pobre, a professora deixara o ônibus e seguia por um caminho estreito e empoeirado. A cor parda da terra entranhava-se na pele suada, dando um aspecto de rugas inflamadas. Já haviam passados tantos anos!
Como vítima de um sistema injusto, ela nunca conseguira, com seu nobre ideal de ensinar, senão as migalhas caídas do sistema político mais corrompido do mundo. “Escorchante exigência da patifaria nacional” – disse, certa vez, com muita probidade, Graciliano Ramos. Quando mais jovem, tais migalhas eram esticadas para atender suas vaidades de adolescente; agora, seus reumatismo e miopia.
Como todo mundo que embrenha por veredas tortas, Edna reconhecia, tardiamente, as falsas ideias de que se tem de viver a vida pensando apenas no presente. Quando deixara o filho recém-nascido na porta de uma casa, há 23 anos, imaginava que sua juventude jamais fosse acabar e que tais sentimentos que se apregoam de amor e amizade, não passavam de utopias de sentimentais desocupados. Agora a dor vinha-lhe forte.
Quanto mais os anos passam e a vida se extingue, mais as coisas nobres se agigantam dentro da gente, cobrando nossa inércia e apatia durante o tempo da juventude. Aquilo que para Edna – num tempo de sua vida foi tão natural e convencional – agora lhe desassossegava a alma, transformando-se na maior razão de suas noites indormidas.
Ia olhando, enquanto caminhava, os panoramas que se descortinavam. Em menos de 25 anos, as pessoas pareciam ter transformado os vales, modificado o curso dos rios, removido as montanhas. Tudo estava diferente e irreconhecível. No lugar dos velhos cafezais, cabeleiras marrons de capim peco, e onde vicejava os capões de mata verdejante, agora uma vegetação rala de cardo. Tudo era passado, tudo cheirava a abandono e desolação. Como o homem conseguia destruir as belezas naturais, cheias de lembranças e de história, em tão pouco tempo!
Da estrada, já na fazenda que procurava, ela lançou um olhar para a velha tulha de café: nada mais existia. Ali fora palco de um bonito sonho. Também em seu coração reviveram bonitos momentos, mas que hoje eram somente saudade e passado.
Na orla da estrada havia uma casa modesta. Apesar de não ter nenhuma esperança de encontrar ali o que procurava, seu coração acelerou-se quando chamou por alguém. Já era, possivelmente, o quarto dono da fazenda. Os Álvares, segundo soubera, haviam falecido num desastre de carro. O filho único que sobrevivera por não estar no carro, vivia, possivelmente, na Capital do Estado.
Edna tomou um copo d’água, agradeceu e virou nos calcanhares, retomando caminho. Estava um pouco confusa, mas se lembrava bem de um prédio que existia nas proximidades da casa em que deixara a cesta com seu filho dentro. Estava mais amarelecido, mas ainda com a mesma lanchonete funcionando. O edifício de quatro andares parecia não ter sofrido tanto quanto ela, os achaques daqueles vinte e três anos. Ela lembrava bem: uma casa bonita, com uma castanheira na calçada e um portão de ferro pintado de verde. Não foi difícil reconhecê-la, apesar de algumas modificações. Apertou a campainha. Um rapaz, de calção curto com uma apostila na mão, atendeu. Conversaram um pouco. Também ele pouco pôde ajudá-la. Lembrou, apenas, que o proprietário anterior dissera, certa vez, que havia adquirido aquela residência de um casal com um único e tenro filho.
Edna localizou esta pessoa. Morava em Vila-Velha, num beco labirintoso, mas muito bem cuidado. O homem já estava velho e um tanto surdo, o que diminuía a credibilidade do que afirmava. Vivia só com uma neta muita esperta, que sempre tentava traduzir os ronquidos confusos do velho.
– Na época, o Sr. Ricardo comprou uma fazenda nas imediações da cidade da Serra. Se não me engano, na margem esquerda…
– Direita, vovô – interferiu a neta, sempre atenta aos deslizes mentais do avô. Ela vivia ouvindo sempre as mesmas histórias e entendera que a margem direita levava alguma vantagem nas mil repetições contraditórias do velho.
– É…., acho que é do lado direito mesmo – pigarreou ele, sempre obtuso. Alguém deve dar notícia dele, lá mesmo. Afinal, Serra é quase um lugarejo!
– Lá é cidade, vovô!
O velho, embora contrafeito com as sucessivas interferências da neta, rosnou um advérbio de anuência. Afinal, direita, esquerda, cidade ou não, pouca importância tinha para ele. Serra estava lá, existia e pronto. Edna conhecia Serra e apenas se divertia com a discussão dos dois extremos da vida. Não emitiu nenhuma opinião.
Informando-se aqui e ali, ela subiu as veredas tortuosas da fazenda em que outrora Ricardo e Iracema viveram com seu filho que, embora ela não soubesse, chamava-se Neandro.
Ao lado de uma murteira, recebendo o sol da manhã, um velho friccionava os pés com as mãos, tentando ativar a circulação ao aquecê-los. Tinha a tez rosada dos sulistas, as cãs alvas como a neve. Edna não sabia por que motivo, mas lembrou do nascimento tardio de Lao Tse, que envelheceu no útero, nascendo já de cabelos brancos, mas com toda a sabedoria dos homens. Ele dissera: “O céu arma com amor a todos aqueles a quem não quer que sejam destruídos”. Oxalá Lao estivesse certo e seu filho vivesse sob a expensas do céu!
Olhou para dentro de si: tudo parecia estar definhando, perecendo. Percebia agora como também sua vida passara. Pessoas de sua geração estavam dispersas, envelhecidas, mortas. Uma rápida e frustrante retrospectiva trouxe-a de volta à realidade dura e irreversível da vida. Ela fazia parte daquelas pessoas envelhecidas e carcomidas pelo tempo.
– Bom dia – cumprimentou ela ao ancião que parecia paciente na sua fila de espera. O sol da manhã faz muito bem a quem o recebe, complementou.
– Esquenta – respondeu o velho sem muita preocupação com o que de bom ou ruim o sol da manhã pudesse oferecer-lhe.
– O lugar aqui é lindo e saudável. Deve ser maravilhoso viver aqui.
– Disse-o bem – redarguiu o velho sulista, apontando para o neto que corria desenfreadamente por sobre pedras desgarradas. E completou reticente:
– Viver! Já não me lembrava disto. Quando adquiri este pedaço de chão, estava cheio de vida e de sonhos. Naquele tempo, aqui era um lugar maravilhoso para se viver. O que faz a beleza das coisas que nos rodeiam é a nossa própria graça de viver e não as coisas em si. Que me adianta ver estas encostas verdejantes, ouvir estes pássaros que cantam, olhar esta torrente límpida que desce espumante… que me adianta se não tenho mais forças para usufruir delas? Muitos apregoam que o espírito não envelhece, que a gente deve sempre estar sorridente e alegre. Tenho certeza de que se eu tentasse dissuadir-me da realidade e me pusesse a rir, seria mais um arreganho medonho do que uma demonstração de alegria. Tudo tem seu tempo, e isto, filosofia alguma até hoje criada, conseguiu modificar.
O velho falou, falou e depois calou. O silêncio tornou-se constrangedor. Sem encontrar coisa mais adequada para dizer, ela reafirmou:
– Mas aqui é lindo demais!
– Um paraíso que encontrei pronto, conservei e passo à frente. Tantas coisas ainda por fazer, tantas para desfrutar!, mas, como? Bem, deixemos isto pra lá. Não vai resolver o problema de ninguém. Afinal, a que devo sua visita?
Edna falou. Ele ouviu a professora e comentou:
– Acho que ficará chocada com o que tenho a dizer – e contou tudo quanto sabia a respeito de Ricardo, Iracema e Neandro. Ao ouvir o último nome, Edna sobressaltou-se, embora se esforçasse por não demonstrar.
– Eles só tinham um filho?
– Sim.
– Neandro era o nome dele?
– Exatamente.
– Acha que o filho deles mora ainda em Vitória?
– Não vejo razão para ele estar em outro lugar.
– Alguma referência mais restrita: um logradouro, um…
– Isto, não sei. Talvez encontre o que procura no Departamento de Esportes e Lazer da Prefeitura. Neandro foi campeão de uma maratona.
– Campeão?
– Você não viu e ouviu os noticiários? Os jornais não se cansaram de comentar durante um mês inteiro. Eu mesmo estava presente naquele dia. Foi a coisa mais emocionante que pude presenciar na minha vida. Um rapazola raquítico, descalço…, bem, parecia um abandonado desnutrido. Venceu centenas de participantes. Muitos eram amadores despreparados, mas havia também gente que treinara o ano inteiro. Foi incrível: pareço estar vendo aquela face suarenta e rosada, os olhos firmes num ponto, os pés sangrando, deixando rastros de sangue pelo chão. A turba gritava, aplaudia. O moço cruzou a linha de chegada e caiu quase em cima dos meus pés. Ouvi… é, ouvi-o dizer: “Fiz isto, ou ofereço isto para a senhora, mamãe.” Logo em seguida desmaiou e foi levado para o hospital. Não ouviu falar deste dia?
Edna chorava em silêncio. Nem o direito de chorar ela parecia possuir. Face lacrimosa, mas firme, explicou:
– Neste tempo, certamente eu lecionava no interior. Lá a gente nunca sabe o que vai pelo mundo.
– Ah, sim, entendo! A mim também não interessa muito o que vai por este nosso pobre País. Os meios de comunicação, que em quase todos os países representam a salvação, aqui só servem para enaltecer e pôr em voga esta raça mesquinha que está sempre procurando evidência: os maus políticos. Uma Imprensa ativa e honesta, talvez pudesse amenizar bastante as tantas injustiças sociais.
– Como assim?
– Denunciando as falcatruas e elogiando a honestidade. Num país que só se pensa em poder e estar na crista da onda, até se mata para ser manchete.
– É, faz sentido. É mais ou menos assim mesmo – disse ela já picada pela revolta mordaz do velho sulista.
Afinal, ninguém melhor que ela, uma professora primária do interior, para sentir esse jogo sujo que os políticos engendram. Despediu-se. Aquelas informações, mescladas à natureza fresca e bonita, acendraram-lhe as adolescentes esperanças. Agora tinha por onde começar. Sabia que seria uma busca difícil, pois um rapaz sem família, sem lar, sem o carinho e a compreensão de uma mãe, torna-se uma folha seca à deriva dos ventos. Só Deus, em sua onipresença, poderia testemunhar os desvãos por aonde os ventos da necessidade, da fome e das incertezas, teriam levado a folha seca desprotegida: o seu querido filho Neandro.
CAPÍTULO 24
Sessenta dias após aquela visita inesperada de Orácio à sua gruta, o monge continuava debruçado em cima de sua folha de anotações, com a mesma ansiedade de um egiptólogo decifrando papiros recém-descobertos. A testa apoiada na mão esquerda espalmada, cabeça um pouco tombada, pensamento aquém dos muros da China. Nestes momentos, um vulcão poderia entrar em erupção que ele nada perceberia. Por isto, o delegado e seus dois acompanhantes ficaram muito decepcionados quando irromperam estrondosamente na caverna com as armas empunhadas, e o monge nem se deu conta. Entreolharam-se duvidosos. Um dos meganhas ciciou no ouvido do comandante da operação, exalando seu sopro de bolor:
– Está maconhado.
– Quê?!… – gritou o delegado, aborrecido. E completou: – Quantas vezes preciso repetir-lhe que não me fale ao ouvido com esta dentadura furada? Está cansado de saber que detesto estes psis, psis. Não vê que este padre é mais surdo que toupeira de caverna? Aliás, quantas vezes preciso lhe falar, também, que não suporto esta sua maneira de falar em sussurros?
O soldado quietou-se. O monge ergueu os olhos sem pressa. Fitou os três ao mesmo tempo. Dois estavam fardados ridiculamente. O conceito que o monge fazia de um policial, não se ajustava de forma alguma. Pensou sob recriminação de sua consciência sensível: “A polícia deve estar com grande escassez de material humano.” Deu-se conta:
– Em que posso servi-los?
Diante da serenidade impassível do monge, o delegado baixou a guarda, mas não diminuiu o sentido duro de suas palavras:
– Desde quando anda acoitando assassinos aqui em sua toca?
O monge percebeu que a generosidade de um mau-caráter era pior que a cólera. Apesar de seus constantes exercícios de autodomínio, controlou-se com esforço:
– Está falando de um rapaz que esteve aqui e deixou aquela espingarda ali no canto?
Os soldados olharam para o ponto indicado. O delegado ordenou que um deles fosse apanhar a arma com as mãos protegidas por um lenço. Trouxe-a. Ele examinou com cuidado. As duas cápsulas deflagradas ainda estavam nas câmeras.
– É dele mesmo que estamos falando. Qual sua ligação com ele?
– A mais fraternal possível – respondeu o monge sem nenhum constrangimento. E explicou: – Aqui recebo todas as pessoas que precisam de descanso e de uma palavra amiga.
– Não sabia que os religiosos tinham tais ligações.
– Como vê, têm sim – desabafou o monge, perdendo as rédeas.
Os três entreolharam-se como se tivessem entendido a investida. O monge quis saber do delegado:
– Tem notícias do rapaz?
– Está no lugar em que todo assassino e mau-caráter deveria estar: na cadeia.
Num polido resmungo de desabafo, o monge rumorejou:
– Que bom seria se Buda o ouvisse!
O soldado de dentadura postiça, esquecendo-se das eternas recomendações do chefe, achegou-se distraído, sibilando outra vez:
– Este padre é maluco. Acho que devemos…
Sem encontrar mais nenhum impropério para agredir seu subalterno, o delegado limitou-se a um olhar torvo e ameaçador. O soldado interrompeu a frase, incontinenti, recolhendo-se a um canto.
– O moço esteve aqui, numa noite fria, pedindo abrigo – disse o monge. Esta caverna não usa a porta, está aberta dia e noite. Até a um cão é permitida a entrada, quanto mais a um ser humano. Se querem saber, fiquei com muita pena dele. Estava arrependido, e abatido também.
O delegado sabia melhor que ninguém, que o velho monge, naquele lugar, com aquela idade e naquelas condições, jamais estaria envolvido em qualquer abjeção. Seria, certamente, um grande crime se, depois de tantas abstenções, não se apegasse e cresse em “Deus”. Por isso, com um nuto de ordem, fez um gesto com a cabeça. Os soldados apanharam a escopeta e sem se despedirem, deixaram a gruta. Ainda não tinham chegado ao sopé da montanha, quando o velho monge, em suas surradas sandálias de couro cru, deixou também sua clausura.
Surdo como uma anta decrépita, o carcereiro encostou-se ao monge. Estava acostumado com visitas de religiosos aos cárceres. Deu um bafo ácido no rosto escaveirado do sóbrio monge, autorizando e apontando a cela que procurava. Era mais uma taxa que se pagava por um lugarzinho ao tão almejado Nirvana. Risos e chacotas acompanharam a passagem do asceta. Uns pediam cigarros; outros, um trocado; outros diziam palavras obscenas, na vã tentativa de afetar os escrúpulos do monge. Impassível, ele seguiu até à cela de Orácio.
Era um cubículo de 3×2 que alojava sete pessoas. Os usuários tinham de ficar todos de pé, ou todos deitados, a fim de economizar espaço. Um beliche que subia ao teto, acomodava quatro deles. Dois se dependuravam em redes e Orácio ocupava o espaço imundo que sobrara no chão, cheio de escarros e hemoptises. O banheiro era contíguo à cela e não possuía porta. O mau-cheiro nauseabundo de fezes e amoníaco recendia, infetando o ar.
“Ali seria o início, a partida dos espíritos rumo ao Nirvana” – pensou pesaroso, o monge. Ajeitou os óculos e firmou o olhar. Não conseguiu reconhecer o rapaz que procurava. Sem que percebesse, um rosto escaveirado, cabeça raspada, com dois incisivos e um canino partidos por certeiro chute de coturno, lábio leporino fabricado a pontapés e muxicões, aproximou-se das barras de ferro. Fitou o monge desolado:
– Sou eu, meu bom “padre”.
O monge não podia acreditar no que estava vendo. Baixou a cabeça para não denunciar sua emoção. Toda sua filosofia de resignação, sofrimento e miséria, parecia desconhecer tais acintes. Sem erguer a cabeça, falou baixinho:
– Espere um pouco. Vou falar com o delegado.
Minutos depois, sentados no pátio de visitas, Orácio conversava com o monge budista. O religioso não se cansava de buscar, naquele traste, o menino esguio que um dia conhecera. Tocou-lhe o ombro:
– Não há pessoa que não sonhe neste mundo, meu rapaz. Os mendigos sonham com riquezas; os religiosos, com a salvação; os contendores, com a vitória…. Todo mundo sonha, mas apenas um, entre todos os sonhos, vale a pena: amar. Entretanto, amar é como plantar uma semente: se não estiver em condições adequadas, não nasce. Por isso, o único sonho que gostaria, hoje, de plantar em seu coração, sei que não vingará, pois deve estar cheio de ódio e o ódio é a pior das terras para se plantar o amor. Olhe para mim: um velho maluco que deixou a terra, a família e todos os demais sonhos para viver de uma crença. Quando me encontrou lá, deve ter ficado com pena de mim. Agora me inveja. Ninguém entende a vida. Lá dentro daquela gruta, dia e noite, procuro matar minha curiosidade. Já não sei se procuro ou fujo de alguma coisa. Há um turbilhão de interrogações que martela em minha cabeça e não posso viver sem ele. Não sei se isto é hora de tentar incutir qualquer sentimento em você, mas ficaria feliz se pudesse crer que não danificaram seu espírito. A vida passa depressa demais, meu filho. Tente acreditar nisto e a cruz se tornará mais leve.
Orácio não ousava erguer a cabeça. Mesmo cabisbaixo, desabafou:
– Nunca pensei que o ser humano fosse tão cruel. Posso entender que alguém mate, roube, furte, cometa todo e qualquer tipo de ato asqueroso e desonesto, num momento de irreflexão. O que não posso entender é a violência fria desses policiais. Ainda pela manhã chegam aqui, tiram a gente a pontapés, moem a gente de pancadas como se estivessem possuídos do maior dos ódios. O homem é, na verdade, o mais terrível e perverso dos animais. Lá dentro, há bandidos terríveis que ameaçam, usam a gente para seus desmandos sexuais e nos impedem de eliminar a nossa própria vida.
– Os outros não me parecem tão espancados!
– E não são, realmente. São perigosos e protegidos. Fui colocado lá para confessar o esconderijo de meu amigo. Na verdade, sei onde ele está, mas não pretendo dizer.
– Não seria melhor usar a verdade de uma vez?
– Ele é meu amigo. Salvou-me a vida quando eu era criança, o senhor sabe. Minha vida pertence a ele. Está, atualmente, em Imperatriz, no Maranhão. Se me matarem aqui, por favor, diga a ele que morri feliz e que gostava muito dele.
O monge ia dizer mais alguma coisa, mas o encarregado avisou que o tempo pedido havia se esgotado. Orácio, sem erguer a cabeça, seguiu para a cela. O monge dirigiu-se ao gabinete. Conversou muito tempo com o delegado. Os anos de intenso estudo na caverna alargaram-lhe a mente no delineamento da personalidade humana.
“Para tratar com bandido, o banditismo é válido” – que Buda o entendesse. Acertaram os detalhes. Logo que a importância fosse depositada em sua conta, Orácio seria posto em liberdade. O monge escreveu para seu irmão em Tóquio. Vinte e sete dias depois Orácio era posto em liberdade. Passou pela caverna, despediu-se do estranho protetor e desapareceu.
Na escuridão da noite fria, sem rumo nem destino, doente e quase mutilado, Orácio desceu a encosta. Estrelas brilhavam, os ventos sibilavam, a neblina fria molhava a pele febril. Buda! Quem seria este Buda? Certamente mais um destes tantos filhos de Deus, que embora no erro ideológico fora salvo pela boa intenção.
Quantos caminhos havia para se galgar o céu e, mesmo assim, Orácio parecia extraviado naquele emaranhado de estradas.
CAPÍTULO 25
1979. O militarismo no Brasil ia de mal a pior; dir-se-ia que agonizava. A corrupção atingia seu clímax naquela agonia como se fossem piolhos numa ave que definha. Os órgãos de divulgação, preocupados apenas com a rentabilidade financeira, viviam entrevistando os políticos. Estes, aproveitando a oportunidade, resguardavam-se sob o véu da hipocrisia usando, inclusive, o nome de Deus.
Do Chuí ao Oiapoque, firmavam-se os alicerces da displicência, do descaso social, da falta de todo e qualquer princípio moral. Os roubos, os crimes, a violência… tornavam-se meios legais de sobrevivência e eram praticados também pelos não políticos, sob a justificativa de legítima defesa.
A opressão faz nascer o desejo de oprimir. Isto é velho, público e notório. E o povo brasileiro, abandonado em suas próprias incertezas, buscava na corrupção, a maneira comum de competir com os mandantes. Deus parecia relegar, aqui também, o povo incrédulo aos seus algozes, fazendo reinar o hipócrita por causa da covardia dos excluídos.
Nesse tempo, Imperatriz ostentava a triste fama de ser a cidade do crime. Grupos de pistoleiros, de ladrões organizados, de gente bandoleira protegida pelo próprio poder público, que era pago pelo povo para velar pelos seus parcos direitos, constituíam a nata, a alta sociedade do lugar. Roubos, assassinatos, tráfico, sonegação, contrabando…, eram condições exigidas para que um “cidadão” fosse bem-sucedido. Imperatriz começava a pagar o preço de se desenvolver sem projeto, desorganizadamente.
Nessa época, Neandro retornou com seu fusca caindo aos pedaços: pálida justificativa à sua consciência melindrosa. Talvez temendo que obrigassem Orácio a confessar seu paradeiro, ou mesmo por uma intuição qualquer, Neandro perambulou por nove anos entre Belém e circunvizinhanças, sem nunca conseguir nada que lhe melhorasse a condição financeira. Fizera cursos de jornalismo e estudara bastante. Isto representava todo o patrimônio adquirido naquele tempo de quase uma década. Escolheu um hotel modesto, próximo à rodoviária de Imperatriz e por alguns dias tentou ordenar suas ideias e traçar novas diretrizes. Como havia prometido a si mesmo, não voltaria ao mundo do crime. Apesar de estar confuso com o tiroteio da tocaia da Curva do Cotovelo, estava certo que havia assassinado Arseno e Josemar e considerava os dois “estrondos de escopeta”, uma peripécia de sua mente confusa e tensa. Estranhava não sentir na consciência os vergastes da ação que praticara. Pouca coisa lhe era mais justa do que aquela vingança. Parecia aliviado e leve, com a sensação psicológica de quem, contritamente, se ergue de um confessionário. Era uma missão que tinha de cumprir e, não obstante fosse paradoxal aos ensinamentos de bondade e perdão, parecia ter a aprovação de Deus. Embora metesse a cabeça entre as mãos e tentasse arrepender-se, não conseguia sentir, senão, o doce alívio da missão cumprida.
Tinha adquirido o hábito de ler a Bíblia que Ubaldo lhe presenteara, todos os dias, pela manhã e antes de dormir. Sentia um grande prazer em poder buscar nela a justificativa para seu ato de vingança. É que Neandro ainda não entendia bem os fundamentos do Cristianismo, com sua lei de mansidão e perdão, e buscava conselho no Antigo Testamento. “Se algum matar alguém de caso pensado, e à traição, que morra; olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, pisadura por pisadura; qual o mal que tiver feito, tal será constrangido a sofrer; não terás misericórdia com ele, mas far-lhe-ás pagar vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”.
Arseno e Josemar estavam muito bem incluídos nas máximas desta Lei. Ele se tornara um instrumento na mão de Deus para aplicar a justiça mosaica. Amparado biblicamente, Neandro não sentia remorso pelo que fizera, provando, assim, que cada um é julgado pelo que acha certo ou errado e não por aqueles atos que, de fato, são certos ou errados. Aqueles crimes pareciam-lhe necessários à própria paz da consciência. Agora estava calmo, sentindo na alma a paz de quem cumpriu uma ordem peremptória do céu.
O tempo foi passando, as lembranças bruscas de todo um tempo de tribulação, rarefazendo-se. A vida parecia tomar um novo rumo. Algum tempo depois conheceu alguns rapazes e com eles dividiu o aluguel de uma república de quatro cômodos. A casa ficava na Rua Coronel Manoel Bandeira, nas proximidades do rio Tocantins. Os nove rapazes que a ocupavam eram adolescentes: estudantes, radialistas e repórteres amadores. Neandro cobria a seção de esportes do jornal da cidade. Isto lhe rendia irrisória quantia e mal dava para cobrir sua parte no aluguel. Suas reservas foram escasseando. Vendeu seu carro velho, pondo o dinheiro da venda na poupança. Os juros davam para suprir a defasagem entre a receita e a despesa.
Quase todos os dias havia visitas inesperadas de adolescentes que conheciam um ou outro da república. Os rapazes ficavam eufóricos e, como é próprio da juventude, quase todos tentavam atrair para si as atenções das espertas visitas. Neandro, porém, não se dava a tais acertos. Entrava, cumprimentava-as com certo ar de seriedade e enclausurava-se em seu quarto. Ali, munido sempre de caneta e papel, punha-se a estudar com afinco, surdo à zoada dos aparelhos de som e às críticas maldosas daqueles que não entendiam sua maneira de ser.
Num sábado, um dos rapazes que aniversariava promoveu uma pequena e modesta festa. A república ficou em polvorosa. Fitas e discos com ritmos regionais desafiavam o mais resistente tímpano. Rapazes e moças dançavam, riam e conversavam, como se o resto do mundo nada significasse para eles. Neandro passou pela sala, entregou um cinto de couro ao aniversariante, deu-lhe um forte abraço, cumprimentou os presentes com um passar de olhos e voltou para o quarto, amotinando-se, como de costume, em sua “cafua”.
Marcélia viu aquilo e ficou frustrada. Como aquele pirralho franzino ousava desconhecê-la? Ela era, afinal, Marcélia Diniz, a filha do homem mais rico e poderoso da região. Dera-se à humildade de acompanhar uma amiga àquele local e agora era desconhecida por um batoré qualquer. Aquilo feriu seu orgulho. Linda como uma fada, cabelos lisos castanho-escuros, olhos verdes, rosto fino, nariz aquilino e bem feito, dentes claros de nácar, lábios desenhados…. Um rosto que talvez desafiasse o pincel de Da Vinci. Não bastasse, suas pernas torneadas e bem-feitas e o seu corpo esguio completavam o desperdício de beleza com que a natureza a dotara. Contudo, só Deus sabia o que se escondia por trás de tanta beleza! Marcélia tinha um grande problema psicológico: o de se considerar a menina mais importante e bela da cidade. Estava convencida de que todos deviam prestar-lhe homenagens. A ela, primeiramente a ela, ou somente a ela. E aquele garoto, sem nenhum atrativo físico, ousava desconhecê-la.
Lá no quarto, porta entreaberta, ele escrevia sua resenha esportiva, alheio ao mundo de futilidades. Marcélia, como um aparelho regulado automaticamente, cadenciava suas olhadelas furtivas, cada vez mais intrigada. Entre as coisas que não admitia, uma era as pessoas não se curvarem a seus pés, venerando seu poder e beleza. E não tardou para que todos os participantes da festa notassem sua preocupação. A amiga que a convidara aproximou-se cautelosa:
– Não está gostando?
Sem importar-se com a pergunta, Marcélia apontou para a porta entreaberta do quarto e quis saber:
– Por que aquele rapaz não participa da festa?
– Ele é assim mesmo! Vive estudando e gosta de ficar isolado. E um cara muito esquisito.
Marcélia empertigou-se. Ali nascia um desafio. Estava cansada de ser cortejada, mimada por todo mundo com relativa facilidade. Não que ela não gostasse daquilo, mas não conseguia enxergar, na rapaziada, senão um magote de despersonalizados, de mundos vazios que a bajulavam à cata de migalhas de sua atenção e de seu dinheiro. A festa continuava. Neandro, absorto em suas ideias, não se dava conta. Marcélia não dormiria se não subjugasse a seus pés também aquele rebelde. Aproximou-se do quarto. Neandro, sempre absorvido por seus raciocínios, continuava com sua cabeça apoiada na mão esquerda, pensando. Não resistindo, ela interferiu, abrindo um pouco mais a porta:
– Seria indiscrição se lhe perguntasse o que faz de tão importante?
Neandro ergueu a cabeça. Marcélia estudou-lhe as reações: nenhuma. Ficou profundamente ferida. Entrou de vez no quarto e, como uma ave que corteja o parceiro, pavoneou-se toda, deslumbrando seu vestido e sua beleza.
– Sente-se – disse Neandro, sem nenhuma emoção exposta. – A festa não está boa?
Marcélia, com o aparente descaso de Neandro, parecia, a cada minuto, a cada olhar, a cada pergunta, ir à loucura. Apelou:
– Não vai perguntar o meu nome e quem sou?
– Se isto lhe agrada!… – retrucou, mordaz, Neandro.
Ela, que sempre dera as cartas, sentiu-se acuada:
– Sou Marcélia Diniz, filha do homem mais rico e poderoso aqui da cidade. Nunca ouviu falar de mim?
Diante de tanta imodéstia, Neandro revidou:
– Qualquer pessoa, olhando para você, deverá concluir o que acaba de afirmar. É muito fácil conhecer este pormenor em algumas pessoas que nascem em berço de ouro.
Não entendendo bem, Marcélia tentou aproveitar-se da ambiguidade para safar-se como podia daquele aguilhão penetrante:
– Isto é um elogio ou uma afronta?
Neandro sorriu, enjoado. Ela ofendeu-se:
– Você, quem pensa que é?
– Um joão-ninguém. Estou convencido disto.
– Pois é isto mesmo que é: um joão-ninguém desaforado.
– Desculpe-me, mas não a chamei aqui.
– O quê? Ousa dizer que vim de oferecida? Bah!…
Aquilo era demais para Marcélia. Nunca se sentira mais ultrajada. Visceralmente não admitia que algum rapaz da cidade pudesse procurar outra moça sem antes sonhar e apaixonar-se por ela. Neandro, além de desconhecê-la, tentava demonstrar desinteresse. Não bastasse, reforçou:
– Diz um provérbio que jamais devemos permitir a visita de uma raposa ao nosso galinheiro, por mais amistosa que pareça. Um dia ela poderá estar com fome e certamente sua índole natural prevalecerá.
Erguendo-se num sobressalto, Marcélia rodou nos calcanhares, bateu a porta do quarto, desligou o som da sala e desabafou o primeiro engasgue de sua vida. Todos se acercaram pesarosos e bajulativos. Neandro continuava imperturbável em seu quarto, trabalhando em sua resenha. A distância que havia entre ele e Marcélia era tanta, que nem sequer se deu à ilusão de sonhar.
Ela reclamou, inventou, disse asneiras, ofendeu… acabou com a festa. Era mais um entrave que, sem procurar, Neandro encontrava em sua estranha caminhada por este mundo. Há pessoas desajustadas no mundo. Há muitas. Essas pessoas, sem serem totalmente culpadas, são capazes de destruir a própria vida em prol de seus desajustes. Nenhuma pessoa normal admite, mas existe muita gente assim pelo mundo. Marcélia era uma delas.
CAPÍTULO 26
1980.
Em sua casa, Marcélia nunca deixara de ser problema. Acostumada a ter tudo quanto desejava, não imaginava existir alguém capaz de ameaçar-lhe a empáfia de ser arrogante e pretensiosa. Há muito seus pais haviam se acostumado, não levando tanto em conta o desprazer de terem gerado uma filha tão distante de seus princípios. Apesar de ricos (o que é pouco comum) os pais de Marcélia eram religiosos conservadores, destes que não abrem exceção para um divórcio, separação, aborto ou qualquer outra decisão que venha ferir as rígidas normas da tradição moral. Todos os domingos podiam ser encontrados na primeira fila dos bancos da igreja, mãos-postas e ave-marias sibilantes.
Marcélia não se lembrava da última vez que entrara numa igreja, tão distante iam os dias de sua última visita. No começo, seus pais arreliavam, aconselhavam, insistiam, mas depois, notando a índole arredia da filha, acabaram desistindo. Para desfazer-se da “revolta genética” ela descarregava seu sadismo religioso, impiedosamente, escandalizando seus pais com palavras de descrença e ataque a Deus.
– Se Deus existisse – dizia ela – não haveria tanta injustiça no mundo. Afinal, ele pode ou não pode? Se pode, por que permite? Se ele pode, mas não quer, então é um Deus ruim, mau, que nos criou para deliciar-se com o nosso sofrimento.
– Minha filha! – Retrucavam seus pais escandalizados.
Não ousavam alongar conselhos, mesmo porque as tentativas de demovê-la daquela inexplicável agressão já haviam se esgotado.
Marcélia só pensava em joias, vestidos, sapatos, carros, festas, tudo o que torna uma pessoa egoísta, desnecessária e até mesmo prejudicial ao mundo. Nunca perdera um só segundo com o semelhante e não admitia, em nenhuma hipótese, não ser o centro de todas as atenções. Numa festa seria capaz de um escândalo se um homem a olhasse com indiferença.
Os rapazes cooperavam com seu complexo, cortejando-a, disputando seu sorriso como se fossem bobos da corte. Não foi por menos que aquela festa de aniversário tanto afetou seu orgulho próprio. Imaginar-se derrotada, desafiada, era o mesmo que admitir Pelé, no auge de sua forme, chutando um pênalti para fora: fato quase inadmissível.
Sentada em frente ao espelho, ela curtia seu narcisismo sem muito entusiasmo. Sua beleza parecia ter recebido a primeira nódoa de imperfeição. A lembrança do descaso, e mesmo a agressão verbal daquele rapaz maroto, aborrecera-a no mais escondido da alma.
Longe de procurar entender, ela engendrava um plano de desforra. Haveria de pô-lo sob seus pés, subjugá-lo, fazê-lo implorar seus carinhos e beijos e depois, rir-se vingada.
Em seu quarto, Neandro, por mais que tentasse, não conseguia esquecer aqueles olhos verdes, inquietos, que rodopiavam com graça e beleza, num rosto demoniacamente belo e quase perfeito. Nem Holophernes viu-se mais tentado por Judith, que Neandro por Marcélia. Mas, ainda que pelo exemplo da história, Neandro sentia sua cabeça a prêmio, pois a própria vida bem cedo lhe ensinara, que somente a razão é capaz de livrar um homem dos vexames de uma grande paixão. Aprendera a medir, pesar, avaliar as coisas e as criaturas humanas pelo valor que continham na essência e não pelo aparato falso e artificial das aparências. Achara Marcélia, fisicamente, sem defeito. Examinara-a amiúde, não conseguindo descobrir, sequer, um dente fora do lugar. Até sua voz era meiga e suave, embora cheia de autoritarismo e altivo atrevimento: um afresco cujo delineamento excitava os homens – nada mais. Por dentro era vazia, dependente e cheia de complexos.
Neste momento, os dois pensavam naquele encontro casual.
Marcélia foi a primeira a erguer-se resoluta. Arrumou-se toda, tomou seu carro e forjou uma coincidência: uma amiga havia telefonado pedindo-lhe que fosse buscá-la na república dos rapazes.
Neandro não estava e ela voltou frustrada. Rodou pela cidade, olhando cada canto, sempre em vão. Por fim, desistiu.
Sempre, dia após dia, preferencialmente ao pôr do sol, ela passava vagarosamente pela Coronel Manoel Bandeira. Mesmo sem desconfiar de nada, Neandro esquivava-se coincidentemente. Um dia, porém, ela o encontrou. Ele vinha de uma pescaria: sandálias de dedo, um calção esgarçado, sem camisa, um caniço, uma latinha com minhocas dentro e uma vareta comprida cheia de lambaris, matrinxãs, pequenas piranhas e mandis. Fingindo coincidência, ela passou, olhando furtivamente a reação de Neandro, através de seus óculos escuros.
Como quem reconhece o esplendor e a beleza de uma estrela cintilante, mas entende a distância e a impossibilidade de tocá-la, Neandro continuou seu caminho, impassível. Marcélia alvoroçou-se como uma vitela recém-parida.
Curvou na primeira esquina, tornou a ganhar a mesma avenida, novamente passando por ele. Veio devagar, olhando as casas como a procurar um número qualquer. Neandro, percebendo-lhe a manobra, afastou-se um pouco da rua, ganhando a calçada e continuando cabisbaixo o seu caminho. Logo depois alcançou sua casa e entrou, sem olhar em qualquer outra direção.
Marcélia acelerou forte e desapareceu. Carregava consigo o peso de mais uma derrota. Aquilo já se tornara ponto de honra: ou ela humilhava aquele rapaz ou não se chamava Marcélia Diniz.
Quando entrou em casa, estava tão nervosa e intratável que sua mãe não pôde furtar-se a uma maldosa observação:
– Quem foi o herói que conseguiu feri-la?
Marcélia desviou um duro olhar à sua mãe e bateu a porta com veemência. Ela deu de ombros, continuando na arrumação de um ramalhete de rosas vermelhas e brancas. Apesar de tudo era mãe e as mães sempre perdoam os filhos, ainda que este filho seja Marcélia.
Dentro do quarto, imaginando-se só, Marcélia quedou-se quase em desespero. Mirou seus repuxos faciais e seu semblante endurecido pela raiva. Tirou a roupa, curtindo-se no grande espelho da parede. Mesmo ela, nos raros momentos de modéstia e humildade, não podia acusar-se de uma célula fora do lugar. Esguia, aprumada, cor de jambo alcançada no sol dosado e nos bronzeadores, bem podia lastimar-se de um hermafroditismo ausente. Doía-lhe não poder amar-se, possuir-se. Passava a mão pelos seios, pelas virilhas… contorcia-se. Veio-lhe a ideia: a seu corpo ele não resistiria. Tomou o telefone e ligou para Maria do Socorro, sua amiga mais íntima.
– Mas domingo logo? Hoje já é sexta-feira, está muito em cima! – disse Maria, estranhando a preocupação de Marcélia.
– Dá tempo. Mando preparar o iate, a carne, as bebidas… tudo estará pronto na hora exata. Domingo, às 8 horas, todos (olha que eu disse, todos) deverão estar no porto, às margens do Tocantins – retrucou Marcélia, autoritária.
– Vou falar com a rapaziada, à noite.
– Agora.
– Por que não à noite?
– Quero que seja agora.
– Está bem. Os rapazes já estão em casa?
– Se não estiverem, deixe o recado. Apanhe a confirmação dos que estiverem. Ah!, anote os nomes e a confirmação de todos eles.
– Meu Deus, quanta exigência!
– Exigência nada, é só para não acontecer uma desproporção nas compras.
– Está bem, vou lá.
– Logo que voltar, ligue-me.
– Pode deixar.
A própria Maria, apesar da amizade confidencial, estranhou a companheira, que nunca se mostrara interessada em tais passeios. Fazia parte do ritual, ficar mimando-a por vários dias, até que cedesse com relutância. No fundo, Maria a detestava, mas não havia outro jeito de usufruir de suas mordomias e confortos.
CAPÍTULO 27
Não houvesse conhecido Neandro, Marcélia ainda não saberia avaliar a dor de uma indiferença. Depois de um ano, com mil e uma peripécias, todas vãs e infrutíferas, ela podia sentir, em toda a extensão, o gosto amargo da derrota. Aquele rapaz sem nenhum atrativo físico, sem dinheiro nem porte atlético, desafiava seu poderio e arrogância.
Nunca aceitara ser a segunda, quanto mais a vencida. Em sua casa, tornou-se ainda mais insuportável. Desde a tenra infância fora uma criança mimada, azeda, arredia e presunçosa, e embora seus pais sempre mantivessem a esperança de que o tempo a curasse destas fraquezas, isto não acontecia.
O correr dos anos, normalmente, apenas torna mais proeminentes as inclinações da infância e somente Deus poderá fazer com que haja alguma transformação benéfica à pessoa.
Neandro, com sua maneira simples de ver as coisas, continuava aparentemente alheio às pretensões de Marcélia. Agia assim por considerá-la inalcançável, embora não dominasse seu coração na fraqueza de tê-la em cada segundo. Sonhava. Todas as vezes que ela ia à república, ele não conseguia mais estudar. Tentando disfarçar, metia o nariz nos livros, só o desviando quando alguém lhe tocava no ombro. Aí fingia sobressalto, embora ninguém estivesse mais atento do que ele às manobras de Marcélia. Essas coisas iam, não só acontecendo continuadamente, como também se agravando dia a dia. Estavam sendo inúteis os seus esforços e a sua crença de que, nas coisas do amor, vence e é mais feliz aquele que se deixa levar pela razão. Mas, as razões do coração eram mais fortes do que a própria razão.
Depois que deixara Vitória – ES e consequentemente o crime, Neandro havia tomado a séria decisão de tornar-se um homem honrado, estudioso e crente em Deus. Principalmente à noite, quando todos os rapazes saíam, ele tomava a Bíblia que ganhara de Ubaldo e ficava a ler e a meditar, buscando um pouco de fé naqueles baluartes que tanto propalaram e provaram a existência de um ser bom e criador.
Não havia uma só dor, uma só doença da alma que não encontrasse num daqueles livros o remédio eficaz. Estava agora correndo os olhos atentos pelos provérbios. Praticamente já conhecia todos, embora ditos com outras palavras. Que livro maravilhoso era aquele que não permitia nenhum pensamento filosófico novo no mundo? Ali estava, incontestavelmente, a sabedoria de Deus. “Não há nada que seja novo debaixo do sol e ninguém pode dizer: eis aqui uma coisa nova.”
“Tudo é questão de tempo e lugar: “Todas as cousas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada uma foi prescrito. Há tempo de nascer, e tempo de morrer…, há tempo de chorar e tempo de rir…, há tempo de calar e tempo de falar…, há tempo de amor e tempo de ódio…”.
Tudo o que se disse de sensato e verdadeiro no passado, e o que ainda hoje se fala, foi extraído da Bíblia e manejado de tal forma a parecer coisa nova aos desavisados.
Neandro pesquisou, comparou e comprovou os plágios disfarçados. Cada citação célebre dos maiores pensadores era sempre encontrada na Bíblia. De repente, parou pensativo, imaginando o grande tesouro que tinha nas mãos e também a possível farsa que envolvia tantas celebridades, cujo único esforço talvez tenha sido a leitura da Bíblia. Fechou-a, pondo-a sobre os joelhos. Só agora se dava conta do valor daquele presente que Ubaldo lhe dera. Seus pensamentos divagaram pelo passado trazendo boas e más lembranças. Tão precocemente, a vida lhe reservara tantas emoções! Lembrava Orácio, de quem nunca mais tivera notícias, e de Ubaldo, que jamais veria neste mundo.
Perdido em suas lembranças retroativas, começou a vasculhar seu passado. Durante todo aquele longo período de dez anos, não conseguira apagar a lembrança forte de Orácio. Nada lhe parecia mais renitente do que a recordação daquele bom amigo. Fazia conjecturas, planos, suposições…. Rezava por ele. A cada dia que passava, ao invés de livrar-se da saudade, tinha-a mais forte. Apesar disto, não se decidia a procurá-lo, imaginando que talvez fosse melhor cada um cuidar de si. Sua mente passeava agora por aquelas plagas de tristes e também agradáveis reminiscências.
Lembrou-se daquela despedida de Ubaldo e, como que desperto de um sonho, veio-lhe à mente o endereço que tanto o amigo lhe recomendara. Pôs o livro sobre um velho consolo e começou a revirar seus pertences. Estava sozinho. Distraído em sua procura, não percebeu que alguém entrara e o fitava, soberanamente. Quando ergueu a cabeça, assustou-se:
– Puxa! Conseguiu assustar-me.
– Que procurava com tanta sofreguidão?
– Nada importante.
– Não se procura coisas insignificantes desta maneira.
Acuado, Neandro tentou mudar de assunto:
– Deu azar, estou sozinho hoje. A rapaziada saiu.
– Não vim aqui por causa dos outros rapazes.
Neandro sobressaltou-se, erguendo a cabeça.
– Não acredito que posso ajudar ninguém. Nem a mim me asseguro!
Marcélia assentou-se num canto da cama.
– Vi-o só e vim tentar quebrar sua solidão.
– A minha?
– Por que estranha?
– Perguntei primeiro.
Marcélia sorriu.
– Vim convidá-lo para jantar comigo. Detesto comer sozinha.
Neandro pensou um pouco, depois disse:
– Não daria certo. Estragaria sua noite. Eu ficaria ridículo perto de você.
– Ora, deixe de bobagem!
– Você sabe que não é bobagem. Não tenho roupa adequada para acompanhar uma dama como você.
Marcélia, tomando ares de preocupação, ponderou:
– Se isto lhe constrange, vou trocar de roupa.
Sem pensar direito no que responderia, Neandro concordou. Imediatamente ela saiu, alegre e feliz em sua mórbida ideia fixa de vingar-se.
Uma hora depois estavam num modesto restaurante da cercania. Neandro sentia-se como um garoto de mansarda a limpar carro de luxo: tão perto, mas jamais seu. Embora ela não dissesse, ele sentia a prepotência e a superioridade dela. De fato, pouca coisa havia de mais intolerável do que uma mulher com muito dinheiro e, ainda por cima, arrogante. Fez menção de rir. Marcélia percebeu seus esquivos pensamentos:
– Que está pensando de tão absurdo?
Ele acomodou-se melhor, procurando uma evasiva:
– Não consigo acreditar que estamos aqui, sozinhos a jantar e a conversar. Sabe, estamos tão distantes um do outro, vivemos em mundos tão diferentes, pensamos de maneira tão diversa que isto me faz crer que, de fato, os extremos se encontram.
– Somos tão diferentes assim? – perguntou Marcélia com olhar de oferecimento. Neandro não pôde esquivar-se.
– Você sabe que sim – e tomando ar compenetrado: que está pretendendo, Marcélia?
– Não me faça duvidar de sua inteligência. Ainda não percebeu?
– É que fica muito difícil acreditar.
– Sou tão superior assim? – disse ela cheia de si. Parecia-lhe fácil chegar aonde pretendia.
– Talvez não. Diferente mesmo, sou eu.
– Concordo – disse Marcélia na defensiva e já um tanto preocupada.
De qualquer forma, qual o homem que não gostaria de estar perto de alguém rica e bonita como você?
Ela sorriu satisfeita.
– Então podemos continuar nos encontrando?
– Não sei aonde está querendo chegar, mas de qualquer forma, pago para ver.
– Acha que pode gostar de mim?
Neandro pôs-se em guarda:
– Gostar, até que não é tão difícil. Amar de verdade é mais complicado. Exige abnegação, desprendimento e ainda muitas outras coisas que independem da gente. Depois de tudo não podemos nos iludir diante do valor das disparidades sociais. Elas existem de fato e, na maioria das vezes, são responsáveis pelas uniões frustradas.
Marcélia o ouvia, forjando surpresa. Na verdade, o que ela desejava não era ouvir aquela lenga-lenga e sim apaixonar Neandro e depois realizar sua própria catarse. O descaso daquele moço raquítico, feio mesmo, não podia representar sua primeira derrota.
Conversaram bastante. Neandro confirmou um passeio de carro à Pedra Caída, recebeu um beijo furtivo e depois adentrou. Sozinho, em seu quarto, entrelaçou as mãos no cogote e ficou a espiar as telhas sujas, perdido em seus pensamentos.
Marcélia saiu vitoriosa. O mais difícil já tinha conseguido. Agora era apenas uma questão de tempo. Quando ele não coubesse em si de contentamento e paixão, ela iria rir-se, humilhá-lo diante de todos seus amigos e provar à cidade que dentro dela não havia um homem que não mendigasse sua atenção. Aí, então, estaria vingada e seria, novamente, Marcélia Diniz.
CAPÍTULO 28
Em dia útil – apesar de toda a beleza natural – Pedra Caída tornava-se um lugar ermo e vazio onde, somente os anjos cansados da árdua missão de protegerem o ser vivo mais arredio criado por Deus, podiam ser encontrados. Embora distasse apenas algumas dezenas de quilômetros da cidade de Carolina e encerrasse tanta beleza, naquela segunda-feira não havia ali viva alma, além de Neandro e Marcélia.
A água solitária e espumante despencava entre as pedras, chocando-se em outras tantas lá embaixo, minando o ar com gotículas geladas que transformavam o clima quente lá de fora, num ambiente agradável. Centenas de arbustos cresciam pelas anfractuosidades, oferecendo seus galhos e flores aos beija-flores e tangarás, que não se cansavam de musicar o pequeno chuá das águas que caíam. Flores silvestres apareciam lá e cá, recendendo o ar com suave aroma e criando um efeito cênico de puro aconchego. Apoiada no ombro de Neandro, Marcélia foi descendo o despenhadeiro pela tosca escada improvisada, ora de madeira, ora de pedras. Quando em vez, forjava um passo em falso e agarrava-se a ele, pressionando-lhe os seios hirtos, numa excitação pouco camuflada de suas intenções.
No pé da gruta, ao lado de um filete cristalino de água, eles se assentaram. Uma árvore descia a copa em arco e as pontas de seus galhos tocavam a água, formando o desenho de uma cabana acolhedora. Ali debaixo eles estenderam uma esteira de praia e, sobre ela, duas toalhas macias e felpudas. Ao lado puseram uma garrafa de vinho, alguns sanduíches e um toca-fitas pequeno, a pilhas. Marcélia pôs a rodar fitas que continham músicas cuidadosamente escolhidas à realização de seus planos.
Depois do cenário pronto, ela começou, furtivamente, a estudar as reações do companheiro. Lutando por um controle que já lhe tomava as rédeas, Neandro ergueu-se e foi à margem do filete de água e ficou a brincar com as mãos, distraidamente. Sentindo a apatia, Marcélia, sem que ele percebesse, tirou o vestido, ficando de biquíni, estirada sobre as toalhas felpudas. Deu um suspiro e falou docemente:
– Não vai tomar um banho de sol?
Neandro voltou-se:
– Você é maluca? Não vejo sol algum!
– Deu-me vontade de ficar assim e assim estou. É muito bom a gente fazer o que deseja, sem ter de se submeter aos vergastes dos hipócritas moralistas. Isto aqui é muito romântico, não acha?
Neandro aproximou-se. Olhou-a engolindo grosso, enquanto um calor estranho passeava por seu rosto. Era demais o que Deus exigia dele. Tirou os olhos e pôs-se a mexer nos pedregulhos ao alcance. Marcélia não se conteve:
– Você é um ator ou um frouxo?
Como que apunhalado em seu amor próprio de macho, ele se virou. Ergueu-se, tirou a camisa e a bermuda, deitando-se ao lado dela.
As águas continuavam a passar, borbulhando de leve. Um pássaro insetívoro, desconhecido, cantarolava sobre eles. Como derradeira instância, ele jogou sua última tentativa de livrar-se:
– Não posso crer que haja lugar mais acolhedor no mundo.
Disse isso sem virar a cabeça. Ao lado, Marcélia, embora não sentisse nada por ele, ofegava tentadoramente. Incitou-o:
– Vê esta marca aqui? – e apontou para a coxa, a fim de chamar-lhe a atenção.
Ele olhou rapidamente:
– Não, não vejo nada.
– É – disse ela – talvez tenha desaparecido. Eu ainda era criança quando me machuquei. Mas, com bom tato percebe-se a cicatriz. Passe a mão.
– Não! – exclamou ele com pressa. Ela riu:
– Está com medo de mim?
Neandro sentou-se. Num rápido pensamento imaginou a loucura que estava para cometer. Dentro de si, coração e razão engalfinhavam-se, numa luta de vida ou morte. Olhou então para Marcélia: não podia haver maior perfeição num corpo feminino. Ela começou a respirar em ofegos e então ele se inclinou. Puxando-o contra si, Marcélia apertou-o, correndo os dedos ociosos em suas costas. Mordeu-lhe o queixo e parecia consumir-se em desejo. Em poucos segundos – como tudo o que acontece de pior – a sorte de Neandro estava traçada. Agora, que Deus lhe desse uma longa vida para tentar desvencilhar-se daquele ato quase impensado.
Marcélia parecia feliz. Em sua alma não residia nenhuma preocupação. Era como uma cobra peçonhenta que dorme estirada na floresta, sem nada a temer. O que estava querendo, em parte conseguira. Foi ao riacho e começou a lavar-se. A água tingiu-se levemente de vermelho. Ela comentou:
– Você foi o primeiro homem de minha vida. Nunca esqueça este sangue. Que ele sirva de pacto entre nós. Quero que goste de mim, que me ame e proclame aos quatro ventos. Não vou sentir-me feliz se abafar o nosso amor.
– Está falando sério, Marcélia?
– Claro que estou. Por que duvida?
– Porque…. Bem, eu sinto alguma coisa aqui dentro, dizendo que tudo não passa de um louco sonho. Sempre fui levado pelo raciocínio. Gosto de fazer as coisas que acho viáveis, condizentes, coerentes. No nosso caso, não encontro uma razão sequer para estarmos aqui.
– Mas estamos.
– Seus pais não se importam de deixá-la sozinha por um dia inteiro, com alguém que não conhecem?
– Talvez se importem. Quem não se importa com o que eles pensam, sou eu. A vida é um dom que recebi de graça. É minha, logo, faço dela o que bem quero. Já basta a eles terem me jogado no mundo sem consultar-me. Depois de tudo, não dá para aturar os meus pais: são destes velhos caretas, quadradões… Ainda acreditam em Deus. Veja só, acreditar que depois que a gente morre neste mundo, passa a viver noutro! Não é engraçado que em pleno século XX, ainda exista gente tão estúpida e retrógrada?
Neandro fitou-a de alto a baixo. Ficou confuso. Sentia a distância entre eles cada vez maior. Não ousou afirmar que também acreditava, pois percebia que Marcélia fazia parte daquele terreno inóspito, pedregoso e cheio de espinhos de que falou Jesus, no qual nenhuma semente consegue vingar. Olhou-a enternecido: ela era bonita e sensual demais para que sua debilitada fé lhe abrisse os olhos. Aproximou-se, enlaçando seu corpo seminu.
– Sei que vou amar você, que minha vida, aqui, vai sofrer mais uma grande transformação, mas não posso evitar. Há certas coisas que são superiores às nossas forças: esta é uma delas. Não sei por que, mas sinto que sou sempre obrigado a fazer coisas que não condizem com meus princípios.
– Sua vida vai sofrer mais uma transformação? Quais foram as outras?
Como que delatado por suas próprias palavras, Neandro esquivou-se com evasivas chinfrins. Marcélia não insistiu. Afinal, pouco lhe interessavam as coisas e os problemas de Neandro.
E ali ficaram até a tarde cair. Neandro pôde reviver o éden perdido de Adão e sentir-se protagonista de um tempo histórico e divino. Águas cristalinas que serpenteavam; neblina gelada que arrefecia seus rostos cálidos; cheiro de flores silvestres que recendia; pássaros multicores que se despediam da luz do dia que esmaecia, num toque supremo de paz e amor.
Abraçados foram subindo a encosta. Neandro não podia acreditar no que estava acontecendo, principalmente porque desconhecia os mistérios que envolvem a alma de cada ser humano. A descrença de Marcélia ser-lhe-ia menos estapafúrdia do que a admissão de que ela se entregara para se vingar de um dia de desprezo. Não deve ter sido por questões maiores e mais estonteantes que Shakespeare afirmou os mil mistérios que existem sob nosso céu, os quais nossa vã filosofia ainda não desvendou. Schopenhauer não se veria menos confuso em sua “Metafísica do Amor”, se tivesse que definir tal relacionamento dentro dos interesses da preservação da espécie.
Neles se concluía a dura decepção daqueles que até hoje tentaram explicar o ser humano, mesmo porque, em nós, funcionam mais as anomalias e exceções do que a regra geral.
Entre Dáfnis e Cloé e Neandro e Marcélia, havia tanta disparidade, tantas intenções escusas embutidas, que se Schopenhauer tivesse imaginado, jamais firmaria os motivos de sua tese em tais alicerces.
Neandro não fora além daquele corpo esguio e tentador. Marcélia atendera a um desajuste da qual não podia inteiramente se culpar. Um e outro estavam felizes, sem imaginar o fim supremo preestabelecido por Schopenhauer, que imaginava ter a capacidade de definir todas as uniões amorosas conforme a frustração matrimonial de seus pais.
Quem tentar explicar a vida, generalizando as regras, fatalmente falhará. O silêncio é mais aconselhável que o falar. Se o primeiro esconde alguma verdade, o segundo expõe muitas mentiras.
CAPÍTULO 29
O iate cortava célere a débil correnteza do Tocantins. Dentro, o jargão da juventude ribombava, com todo mundo contando histórias e anedotas ao mesmo tempo. Algumas nuvens, quando em vez, passavam solitárias pelo céu azul, ofuscando um pouco o brilho intenso do sol.
Perdidamente apaixonado, Neandro não se desgarrava de Marcélia, acompanhando-a a todos os cantos e sendo-lhe um fiel caudatário de seus caprichos. Ela parecia mais feliz do que nunca, não permitindo que ele se descuidasse por um minuto sequer. Era o clímax de sua catarse, o ponto mais alto de sua vingança.
Queria que ele a chamasse de “minha paixão” e que dissesse a Deus e ao mundo que estava perdidamente apaixonado. Como todos que amam demais, Neandro desempenhava, com desenvoltura, o seu papel de imbecil.
Duas horas depois, em algazarra indescritível, todos estavam sob as árvores que ladeavam a piscina. Uns acendiam o carvão da churrasqueira, outros preparavam caipiroscas e porradinhas, outros se davam o prazer de saborear uma cerveja bem gelada. Era a juventude definindo a vida segundo sua capacidade de entendimento.
– Cara de sorte este Neandro – ciciou ao ouvido do amigo, um dos participantes. Sem atrativo físico algum e prender uma gata desta! E olha que ela parece estar no paraíso!
– Veja como sorri e está mais acessível e cordata que nunca – complementou o outro.
– É verdade! Ela mudou muito, já nem parece mais aquela Marcélia prepotente e arrogante.
Em cada canto via-se um grupinho. Embaixo de um pé de “seriguela”, sobre a relva verde e bem cuidada, Neandro se desmanchava em mesuras, colhendo os melhores frutos, lavando-os e pondo-os, carinhosamente, na boca de Marcélia. Ela falou:
– Amor, sente-se aqui!
Ele obedeceu, feliz.
– Pode falar, minha paixão!
– Quero lhe pedir uma coisa, mas conhecendo-o bem, sei que irá custar-lhe algum esforço.
– Não tenho um reino como Herodes e não há, aqui, um João Batista para que você me peça a cabeça dele, portanto, pode ordenar e seu servo atenderá prontamente.
– Quero que, antes do almoço, você peça silêncio, suba numa cadeira e depois de apaixonadas palavras, peça-me em casamento, anunciando o nosso noivado. Seja probo em palavras amáveis e não se acanhe em dizer que me ama e quer como nada mais nesta vida. Aqui estão as alianças, gosta?
– Alianças? Por que não me avisou? Puxa!, de brilhantes? São as mais lindas que já vi na minha vida!
– Está feliz, então? Ah, por favor, não diga que foram dadas por mim! Me deixaria muito constrangida. É costume aqui o noivo oferecer as alianças.
– Estou sem palavras. Sabe muito bem que já não saberia viver sem você. A incumbência que me dá é a melhor possível; é, em suma, tudo que mais quero agora na vida. Deus está sendo bom demais comigo. Depois de tantas provações, de 33 anos de obstáculos e sofrimentos, a felicidade.
– Então, vai falar?
Ele puxou-a para si, apertando-a contra o peito. Nada mais cobraria da vida. Não podia crer que alguém pudesse ser mais feliz do que ele naquele momento.
– Sinto apenas não ter decorado um discurso bonito, com palavras doces e amáveis para justificar tal graça do céu.
Ela sorriu. Ele curvou-se, beijando-a. Ela fez menção de desviar o rosto, mas acabou encenando bem seu papel de atriz.
Reunidos ao lado da piscina, todos pareciam famintos. Numa grelha de dois por dois, as bistecas fumegavam saborosamente e mesmo os mais sóbrios e educados não podiam safar-se de olhadelas ansiosas. Neandro pediu licença e em voz alta conclamou:
– Caros colegas…
Todos quietaram, curvando a cabeça em atenção. Ele continuou repetindo o prefácio:
– Caros colegas, hoje é um dia, para mim, muito especial, um dia que, tenho certeza, jamais esquecerei.
– Que seja especial, inesquecível e breve – pilheriou um companheiro, apontando para a barriga vazia que, justamente, fazia seus reclames.
– Já havíamos desconfiado – brincou outro, não sem um quê de chacota.
– Arranque as alianças logo – coragem.
– Inesquecível! Dia inesquecível – balbuciou Marcélia, numa clarividência sarcástica.
– É isto aí – suspirou Neandro, vencido. Estas alianças custaram-me muito suor e mortificação, mas aqui estão e servem para anunciar o nosso noivado oficial. Peço, pois, que a noiva jubilosa se aproxime.
Marcélia estava a poucos metros e fazia de conta que não estava ouvindo o que Neandro dizia. Conversava com duas amigas que não se cansavam de chamar-lhe a atenção para o que estava se passando. Enfim, depois de algum tempo em que o silêncio já se tornava constrangedor, ela foi aonde Neandro se encontrava.
– Que está dizendo nosso “Eclesiastes”? – perguntou ela aos demais.
Sem ainda desconfiar de nada, todos repetiram com graça:
– O jovem mancebo aspira à mão da jovem donzela.
Ela, como um camaleão em seu mimetismo de defesa, mudou de feição e cor. Encarou Neandro por alguns segundos, voltando-se, em seguida, para os demais:
– Para ser sincera, eu estava ouvindo toda esta palhaçada. No começo achei tudo uma brincadeira de mau gosto, um resquício de pessoa desequilibrada, que não pode dar, senão, o que tem dentro de si: idiotice. Parece-me, no entanto, que a imbecilidade é séria e merece compaixão.
Como quem recebe uma afronta inesperada e não está preparado para tal, Neandro entreabriu a boca, estupefato, lívido e apalermado. Seus companheiros, vendo a desdita do amigo, foram baixando a cabeça, evitando, assim, testemunhar a iminente humilhação. Ela continuou:
– Que este abobalhado imagine que uma “amizade filantrópica” cheire a amor, até que é admissível, mas que vocês pudessem acreditar que eu fosse me apaixonar por um pária destes, sinceramente, fico decepcionada. Vendo este meninote feio, abandonado, pobre…, bem, tudo isto me deu pena, criando em mim um sentimento de compaixão. Tentei ajudá-lo e eis no que deu: imaginar-me apaixonada. Surpreende-me a inocência, a insensatez e a estupidez de certas pessoas que não conseguem enxergar-se. Imaginem só, eu, Marcélia Diniz, noiva de um… de um… bem, deixemos pra lá.
O silêncio tornara-se sepulcral. Apenas a voz de Marcélia, como lâmina afiada, cortava os corações. Todos, indistintamente, conservavam-se cabisbaixos, aturdidos, feridos profundamente. Depondo as alianças em cima da mesa, sem ódio, com duas listras de lágrimas a riscar-lhe o rosto impassível, Neandro foi se retirando. Passos lentos, caminhada incerta.
Até o zumbido dos insetos e o sibilar macio da aragem agigantavam-se em mil uivos de alimárias a fustigar-lhe a alma. Possivelmente, ele era a única pessoa, desde a criação do mundo, que experimentava o inferno em vida.
Ganhou a margem do Tocantins e foi caminhando a jusante. Viu uma canoa que passava e acenou apenas. Não encontrava forças, sequer para gritar. O canoeiro encostou e também não disse palavra alguma. Ele subiu. Não viu o tempo passar, nem percebeu como chegou à sua casa. Por momentos tentou convencer-se de um pesadelo, mas seu esforço não vingou.
Parou um pouco, abrindo de vez as comportas do coração para a entrada da avalancha total de sua desdita. Num ato impensado, revirou os pertences dos companheiros à cata de uma arma que pudesse livrá-lo daquela humilhação e desespero. Nada encontrou. Lamentou, por instantes, a decisão de se tornar um homem honrado e ter vendido seu revólver. Agora ele seria seu sossego, a gazua milagrosa que o tiraria do desespero.
Assustou-se naquele trabalho. Se tivesse achado, certamente teria dado fim à própria vida. Deu-se conta da realidade. Começou a arrumar suas coisas, jogando tudo numa valise. De repente, viu o canivete que Orácio lhe dera quando criança: nova investida de desgosto perpassou-lhe o ser. Abriu a lâmina: ela tinha uma estampa miúda de Jesus, com os braços amparando uma criança. Assustou-se, pois nunca tinha reparado aquilo. Bem à frente viu a Bíblia: outro presente que ganhara num dia atribulado.
Seus pensamentos fugiram lépidos, indo buscar, nos fastos do Eterno, uma migalha de esperança. Lembrou-se do passado, do quanto já sofrera e como Deus sempre o livrara dos abismos, mesmo quando seus pés já escorregavam. Jogou o canivete sob a cama e chorou amargamente. Refez-se em seguida como pôde e começou a pôr na mala e na valise os seus poucos pertences. Do cós de uma velha bermuda em desuso, rasgada, viu cair um pedaço de papel dobrado. Tomou-o curioso. Viu escrito apenas: Elifaz Salume – Av. Dois Amores, 875 – Centro – Vitória ES.
Não demorou para que se lembrasse de que o endereço lhe fora dado por Ubaldo, em agonia. Lembrou que tanto o havia recomendado, embora ele não tivesse dado a importância que merecia. Tornou a dobrá-lo, colocando-o no canto da mala.
Sua vida parecia voltar à antiga insegurança. Que fazer dela agora? Sem dinheiro, sem rumo, sem determinação: um cão sem dono perambulando ao bel-prazer dos instintos. Sacudiu a mala e já ia deixando a república quando se lembrou dos companheiros. Procurou uma caneta e escreveu numa folha branca: “Adeus, companheiros! Desculpem-me pelas incompreensões e por ter estragado este dia de vocês. Fiquem com Deus. Neandro.”
Fechou a porta, empurrou a chave por baixo e saiu.
A noite já havia caído quando os demais companheiros chegaram. Entraram quietos como se tivessem vindo de um velório. Na feição de cada um, o não entendimento, a perplexidade, a estupefação. Conheciam Marcélia, sabiam que queria todos a seus pés, subjugados, mas não imaginavam que sua psicose pudesse ir ao limite que foi.
O resto da tarde foi horrível. Ninguém encontrava graça para mais nada. Em cada cabeça, os vergastes pela falta de companheirismo; pela submissão vergonhosa aos caprichos de uma mulher rica e cheia de manias; pela covardia de se verem despersonalizados ante uma tarde de cerveja, carne e música. Todos estavam envergonhados.
A própria Marcélia, que jamais se preocupava com quem quer que fosse, não estava conseguindo safar-se dos achaques de tão vergonhosa catarse. Entrou no quarto, olhou-se no espelho. Viu-se deformada, feia, triste e melancólica. Balançou a cabeça numa tentativa vã de expulsar os escrúpulos, mas em cada tentativa, mais se avolumava o grito da consciência. Por fim, sem imaginar o que lhe estava acontecendo, tomou o carro e foi à república dos rapazes. Encontrou-os acabrunhados, arrasados. Entrou:
– Isto é uma república de jovens cheios de vida, ou um velório? – perguntou sem muito entusiasmo.
Eles se ergueram, sucumbindo menos acentuadamente à covardia da bajulação. Ela sentiu no ser o poder do descaso e da humilhação. Cedeu:
– Onde está Neandro?
Alguém apontou um papel. Ela leu. Ninguém fez qualquer comentário. Ela saiu sem se despedir de ninguém. Tomou novamente o carro e partiu em disparada, relinchando os pneus. Parecia haver, ainda nela, um pouco de sentimento.
Na rodoviária não o viu. Soube apenas que um ônibus havia saído para Brasília há quinze minutos. Ele podia estar nele. Alguma coisa doía-lhe cada vez mais, impelia-a a procurá-lo. Acelerou forte, saindo em perseguição ao ônibus. Na primeira curva após Ribeirãozinho, o carro desgovernou-se, mergulhando espetacularmente num buraco fundo, em que os tratores haviam retirado bastante terra.
Depois do estrondo, apenas o silêncio tétrico dos acidentes, o festim das incertezas, a desilusão da vida, a iminência do fim.
CAPÍTULO 30
Depois de um tempo, recobrando a consciência, Marcélia foi arrastando-se com as mãos, agarrando-se na relva rala, em espinhos, em tudo o que lhe dava sustentação, sempre tentando galgar a orla do asfalto. Naquela ânsia infrene, não conseguia ainda se dar conta do que lhe acontecera. Suas pernas pareciam alguma coisa colada ao corpo, insensíveis, puro estorvo. Toda a parte inferior do corpo estava adormentada. As mãos sangravam, o sangue coagulado e resseco aderiu à pele como esparadrapo. Sem gemer nem chorar, aparentemente calma, ela usava forças que jamais imaginara dentro de si. Além de bela e atraente, era também corajosa e destemida.
Por fim alcançou o acostamento. Sem olhar se vinham carros, arrastou-se para o asfalto, parando bem no meio da pista. O primeiro veículo desviou, deu três buzinadas e seguiu seu destino. Era o preço que Imperatriz pagava pelos desmandos, banditismos e injustiças. As pessoas de bem andavam assustadas, precavidas. Fugiam de qualquer possibilidade de assalto. O relógio marcava 22h30min.
O segundo carro parou um pouco antes dela, clareando com os faróis. Logo em seguida, o motorista desceu, examinou bem e, com um revólver na mão, aproximou-se:
– Que aconteceu, mocinha?
Só então Marcélia desfez-se de sua intrepidez. Começou a tremelicar e sua voz não conseguia definir-se. O motorista voltou, encostou a camioneta, estirou-a na carroceria e voltou para a cidade de Imperatriz, deixando-a num hospital. Nervosa e descontrolada, Marcélia não conseguia articular uma só palavra. O médico de plantão, no entanto, reconheceu-a de imediato. Ligou para os pais e logo centenas de curiosos acotovelaram-se, todos querendo saber detalhes sobre o acontecido. A família Diniz, pioneira e conceituada, era conhecida de todos. No outro dia, os jornais e a emissora de rádio local encarregaram-se de passar a notícia aos mais distantes rincões.
A conselho do neurologista que cuidava do caso, Marcélia foi levada para um hospital de São Paulo, onde ficou constatada uma lesão vertebral irreversível. O pai de Marcélia procurou o médico para saber das esperanças. Ele era um homem muito rico e estava disposto a levar a filha a qualquer parte do mundo, se houvesse qualquer chance de recuperação. O médico dissuadiu-o:
– As lesões traumáticas que incidem sobre a coluna vertebral podem causar danos transitórios ou definitivos sobre a medula espinhal. No caso de sua filha, a lesão foi irreversível, pois secionou definitivamente a medula espinhal, provocando tetraplegia (paralisia dos membros inferiores). Lamento informá-lo, mas sua filha está, irrecuperavelmente, paralítica das pernas. Só um milagre poderá salvá-la.
Um milagre! Pensou o Sr. Diniz, que conhecia a fé minguada da filha. Se dependesse da crença e da amizade de Marcélia com Deus, certamente ela não se curaria de uma pereba. O Sr. Diniz entristeceu-se: sua filha não acataria as determinações dos céus. Ergueu-se pesaroso, estendeu a mão ao médico e deixou o consultório.
Passados alguns meses, diante daquele quadro não reversível, a revolta de Marcélia avolumou-se, atingiu o ápice, encorpou-se, fez-se acinte insuportável a quem tivesse de cuidar dela. Não se conformava, não admitia jamais não ser a rainha da cidade, trono que desfrutara por tanto tempo sem nenhuma concorrente a ameaçar-lhe o cetro. Sua beleza estonteante se encarregava de desculpá-la, pois não havia quem pudesse querer-lhe mal ou se desfazer do prazer de desfrutar de seus encantos. Mesmo problemática e cheia de defeitos morais, todos disputavam sua atenção, alimentando-lhe a índole prepotente.
Agora, porém, via-se humilhada, necessitada, carente. Até para desfazer-se de suas necessidades biológicas dependia dos outros. Quando em vez, ciente de seu estado lastimável, começava a gritar desvairadamente, nunca esquecendo de atacar a crença dos pais. Por isso, a família procurava sempre rezar às escondidas, a fim de não a excitar às blasfêmias. Levados pelo amor, os familiares faziam tudo para demonstrar naturalidade. Sempre atenciosos e bem instruídos, não a repreendiam. Ouviam-na debulhar as ofensas, sem revidar, sem conselho. Isto não agradava Marcélia, que mesmo naquele estado tencionava, além de agredir, angariar a atenção e a preocupação de todos.
Por fim, percebendo que suas palavras não estavam surtindo o efeito desejado, começou a quebrar as coisas que lhe ficavam ao alcance e a urinar, voluntariamente, na cama e no carrinho. Diante de tamanha revolta, os pais a internaram em Goiânia, numa casa especializada para doentes com tal comportamento.
Dois meses depois, Marcélia começou a vomitar sem motivo, a sentir repugnância das coisas e mudanças no próprio corpo. A barriga crescia, as pernas inchavam…
Os médicos, extremamente preocupados com aqueles estranhos sintomas que pareciam gravidez, não encontravam explicações, certos de que gravidez era uma hipótese totalmente descartada.
Os pais foram visitá-la e ficaram consternados. Cansada de revidar, de agredir, de acusar, Marcélia encafuara-se no silêncio. Apenas as lágrimas falavam, relutantes em retomar o cetro perdido. Não gritava, não falava mais. Sempre taciturna e lacrimosa, conseguia, em parte, formar um quadro de tristeza e angústia. Ninguém atinava para o que estava acontecendo. Nem ela, talvez, pudesse explicar. Depressão profunda.
Somente no quarto mês descobriram, estupefatos, que ela estava grávida. A enfermeira, ao massagear a barriga, recebeu um verdadeiro pontapé na mão e saiu como um tufão em busca do médico:
– Doutor – disse ela ofegante – descobri a doença da paciente do 104.
O médico olhou por cima dos óculos com certa reprovação, pois nunca duvidara do interesse mórbido daquela subalterna em levar-lhe estranhas notícias desastrosas e pessimistas. Estava pensando no que dizer, quando ela mesma assegurou:
– Ela está grávida.
Aturdidos com a descoberta e desconhecendo o tempo da gravidez, os familiares pensaram logo em processar o hospital. Marcélia, porém, demoveu-os daquilo, assegurando que, na verdade, mantivera relações sexuais com Neandro, um rapaz que conhecera pouco antes do acidente.
Por incrível que pareça, não o acusou de nada. Diante disto, confusos e sem rumo, seus pais quietaram, esperando que as coisas fossem resolvidas em seu devido tempo.
Longe dali, mais vítima do que Job na disputa de sua integridade e fé e mais martirizado do que Íxion em sua perene roda de fogo, Neandro não se dava conta de mais uma peripécia da vida.
CAPÍTULO 31
Neandro desceu do ônibus, tomou sua mala e valise e parou na plataforma, sem rumo a tomar. Novamente estava ali, no ponto de partida, sem dinheiro nem lugar digno para ficar. No entanto, estas dores maltratavam menos que a lembrança da humilhação que sofrera. Depois de muitos devaneios, deu-se conta da realidade, decidindo ir até a sua velha palafita. Do centro à praia, eram longos quilômetros a serem percorridos, mas Neandro não necessitava de tempo nem lhe faziam falta as forças para desfazer a distância. Enquanto caminhava, ia pensando. A lembrança de Orácio veio-lhe forte. Quando decidiu eliminar Arseno e Josemar, não pensou, senão, em sua mórbida vingança, não obstante seu amigo tanto lhe implorara para que retirasse da mente aquele instinto de vingança doentio.
Orácio fazia-lhe falta. Como seria bom se, naquela situação difícil e embaraçosa, tivesse alguém com quem dividir suas angústias. Tantas oportunidades ele tivera de refazer a vida e, no entanto, era sempre um eterno vaivém, um tempo de esperança que logo se desvanecia aos primeiros encontros com a realidade; uma flor sensível que não resistia ao sol ardente.
De longe, divisou sua palafita. Lá estava ela, triste e solitária, sombria e mais enfraquecida. Na água, o desenho esquálido do madeirame podre. Parecia-lhe o reflexo de sua alma na água turva do mangue. Parou em frente, fitando-a com angústia e certa saudade. Afinal, aquilo lhe representava um arquivo de duras lembranças.
No varal, um calção esgarçado estava posto a secar. Neandro olhou-o detalhadamente: fora posto ali há algum tempo: três a quatro dias. Era possível que alguém estivesse morando ali. Afinal, nos reinos deste mundo-cão, há mais necessidade de palafitas do que de mansões.
Neandro subiu os poucos degraus da escada de madeira. Ela ringiu, balançou. A água quieta da viragem da maré fez pequenas ondas que partiam de junto ao tronco. Ele apenas verificou isto, sem ir além daquelas minúsculas marolas que logo desistiam ante a caminhada eterna por um oceano sem fim. Pensamentos rápidos, inacabados, desistentes…
Achegou-se ao portal. Num estrado tosco, viu uma figura esquálida, um trapo humano que arfava. A dispneia sufocava-o, apesar do ar que corria suavemente. Pelo chão, hemoptises e migalhas de pão. Uma escumilha suja de sangue, repleta de moscas, estava no pé do estrado. Respirando em golfadas, forçando o peito com a ânsia de um sufocado, o homem debatia-se entre a vida e a morte.
Cabelos e barba bem grandes, dentes partidos, feridas disputadas pelas moscas-varejeiras, barriga rasa de fome: um molambo fétido, um troféu do descaso humano que o diabo ostentava com orgulho triunfante ante o olhar complacente de Deus.
Parado ali, ainda remoendo o estupor daquela cena degradante, Neandro não pôde furtar-se à lembrança da “Oração de um desocupado” que tão bem se encaixa no desespero da pobreza e da miséria extremas:
“Pai, desce dos céus! Esqueci as orações que me ensinou minha avó. Pobrezinha, ela agora repousa, não tem mais que lavar, limpar; não tem mais que preocupar-se, andando o dia todo atrás da roupa, não tem mais que velar de noite, penosamente; rezar, pedir-Te coisas, resmungando docemente. Desce dos céus, se estás, desce então, pois morro de fome nesta esquina. Não sei para que serve haver nascido. Olho as mãos inchadas, não têm trabalho, não têm. Desce um pouco, contempla isto que sou, este sapato roto, esta angústia, este estômago vazio, esta cidade sem pão para meus dentes, a febre cavando-me a carne, este dormir assim, sob a chuva, castigado pelo frio, perseguido. Digo-Te que não entendo, Pai! Desce, toca-me a alma, olha-me o coração. Eu não roubei, nem assassinei. Fui criança e em troca me golpeiam e golpeiam. Digo-Te que não entendo, Pai! Desce, se estás, pois busco resignação em mim e não tenho e vou encher-me de raiva e afilar-me para brigar e vou gritar até estourar o pescoço de sangue, porque não posso mais. Tenho rins e sou um homem, desce! Que fizeram de tua criatura, Pai? Um animal furioso que mastiga a pedra da rua?”
Neandro olhou-o ainda por instantes, depois o tocando no ombro, chamou:
– Moço, moço!
O homem inquietou-se, debateu-se em sua agonia, virando os olhos fundos e lânguidos, sem, contudo, conseguir ir além de ronquidos ininteligíveis. Neandro tentou acalmá-lo:
– Moço, acalme-se. Agora você não está mais sozinho, estou aqui. Vou cuidar de você, fique calmo.
– Pão, pão… água, pelo amor de Deus! – disse o homem moribundo, estendendo a mão, faminto.
Neandro estarreceu-se. O que fora feito do mundo de Deus! Até aonde os homens iriam atrair a Sua ira com seu descaso pelo semelhante? Quantas desgraças os homens já haviam atraído sobre si, continuavam atraindo e por certo iriam ainda atrair, por não terem sentimento, por não acreditarem em Deus!
Ele mesmo era um exemplo digno de tudo isso. Fitou aqueles olhos baços, sem viço, apagados. Pôde acreditar que ali, diante de si, tinha, de maneira clara e insofismável, toda a verdade da vida, mais cristalina e mais acessível do que as próprias palavras da Bíblia: pão, pão!
As lágrimas vieram incontroláveis aos olhos de Neandro. Afastou-se um pouco, enxugou o rosto e saiu para a rua. Trouxe alguma comida, dando ao homem que morria literalmente de fome. Depois começou a limpar o barraco.
Horas depois, em vista da grande sujeira que havia, poder-se-ia agradecer aos céus por aquele lugar aprazível. Com as forças que juntou, Neandro banhou o homem, pondo nele uma muda de sua própria roupa. Ficou curta e folgada. Ele não dizia coisa com coisa. Delirava.
Novamente Neandro saiu, comprando numa farmácia um antifebril. Ministrou-o ao homem doente. Ele teve uma modorra entrecortada de delírio:
– Neandro, Neandro…
Ao ouvir seu nome, Neandro estremeceu. Aquele homem o conhecia. Fitou-o aturdido, confuso, curioso. Passou uma toalha no rosto daquele molambo humano que transudava. Ele acordou, olhou ao redor, aturdido. Vagarosamente cravou o olhar sem brilho no homem que o assistia em sua agonia. Fitou-o, cerrou a meio-olhar os cenhos, buscou um passado. Depois foi abrindo os olhos e disse:
– Você…, você é Neandro ou estou delirando?
– Não, você não está delirando. Sou eu mesmo, Neandro.
– Como soube que eu estava morrendo? Quem enviou você aqui?
– Por favor – disse Neandro, já num fio de voz, pois era grande sua emoção – quem é você e de onde me conhece?
– Não sabe quem sou? Jura que não está me reconhecendo?
– Não, não estou.
– Sou Orácio, seu amigo.
Como se assistisse à reprodução de uma erupção vulcânica, Neandro sentiu trovejar em sua alma. Buscou, com todo o discernimento possível, alguns traços daquele rapaz esperto, de dentes alvos e fortes que conhecera, mas que, os desmandos policiais, mesclados à segregação de uma cela imunda, o transformaram num indigente desconhecido. Não conseguia encontrá-lo. Ali estava um trapo humano, mais um Deus crucificado em pleno século XX. Então disse:
– Não posso acreditar!
– Se eu disser que você me salvou a vida no despenhadeiro da Serra, quando éramos crianças?
Neandro conturbou-se. Curvou-se abraçando o amigo, entre soluços e dor.
– Amigo – disse sumidamente – o que foi feito de você!
– Agora estou bem, não se martirize. Queria apenas saber quem o mandou aqui, quem lhe disse que eu estava apodrecendo vivo neste barraco? Sabe, enquanto tinha lucidez, não pedi outra coisa a Deus.
Neandro desviou os olhos. Um pensamento intruso penetrou-lhe a alma, sem sua anuência. Tentou, com um nuto, expulsar o revide, mas ele lhe falava alto.
– Quanto jogo sujo usa com a gente, Deus!
Esta era a imprecação da qual não se conseguia livrar.
Deus tem um fim para cada coisa. Ele traçou o destino de seu reino e é bobagem entender que será de outra forma. Desviem os cursos d’água, edifiquem barragens, construam tabiques, entulhem os leitos…, as águas dos rios correrão sempre para os oceanos. Esperneiem os ascetas, rezem os tementes, matem os criminosos, espoliem os ladrões, semeiem os políticos as injustiças sociais…, façam e desfaçam os homens, o reino de Deus será construído.
A cada um será melhor não entender os desígnios Deus. Melhor é dizer como se fôssemos crianças inocentes: “Obrigado Deus por fazer as flores, os passarinhos, os brinquedos, os rios, as estrelas, o sol, a borboleta, o doce de leite, a mamãe…, e deixar as confusões teológicas para os Maimônides e os Ezras da vida.
Não há maneira de ajustar os parâmetros da sabedoria de Deus com nossa limitada razão. Não, não há. Acreditem.
Não se desespere com a dor, com as provações, com as injustiças… Não se perturbe por ser um assassino, um mendigo, um viciado, um vencido… Não blasfeme nem se revolte por ser explorado no trabalho, espoliado por víboras egoístas que manejam o poder… Não inveje os sábios, os santos, os campeões… Não, não irrompa contra Deus por ter construído um mundo assim; primeiro porque Ele sabe o que está fazendo; segundo porque queiramos ou não, assim será.
CAPÍTULO 32
Neandro contara e ouvira de Orácio o relato daqueles dez anos de ausência. Ao tomar conhecimento que o amigo ficara preso e fora espancado durante oito anos porque não queria delatar o seu paradeiro, não coube em si de remorso. Nem imaginava o verdadeiro motivo, ou seja, que Orácio lá estivera trancafiado por ter sido culpado do assassinato de Arseno e Josemar.
O prazer que Neandro sentia em ajudá-lo agora era bem menor do que a angústia que lhe roía a alma por ter abandonado uma pessoa que tanto o estimava e queria bem. Pensou: quem não tem nada a perder, tem tudo a ganhar. Apanhou o endereço que Ubaldo lhe dera e saiu de casa. Sobre um catre, pejado pela fraqueza e pela dor, Orácio mantinha-se com a conformidade de um justo. Já lhe era paz bastante poder morrer nos braços do amigo.
Neandro, com parcas economias e sem emprego, tornara-se um argueiro miserável, apegando-se às pequenas coisas com a ganância de um avarento. Não podia imaginar-se pedindo esmolas, e, trabalho, na atual contingência do País, era um privilégio que poucos desfrutavam.
Meteu a mão no bolso, contou e recontou: seria uma semana, no máximo, a pão e água. Com tantos infortúnios, poucas vezes se lembrava da humilhação recente por que passara. Os vergastes da vida de agora substituíam, a contento, aqueles que sofrera com Marcélia. Embora diferentes, as doses e dores equivaliam-se.
Neandro caminhava. Não se desfazia de um só centavo que não fosse extremamente necessário. A vida de bandalho era-lhe um duro pesadelo que não queria mais reviver. Estivera com os pés na orla do abismo, mas Deus, sem que ele soubesse o porquê, puxara-o de volta. Não ousaria contar com uma segunda oportunidade. Surpreendia-se imaginando onde chegara. Hoje não entendia o nível a que descera. Estes pensamentos faziam-lhe companhia, distraindo-o e encurtando a distância. Quando deu por si, estava na Dois Amores. Tirou o papel amarfanhado do bolso e conferiu o número: 875. Olhou a casa ao lado: 17. Verificou a direção em que a numeração crescia. Rodou nos calcanhares, tomando a direção do cais. Sempre verificando, chegou ao número indicado.
Era uma construção de dois andares, sem muito requinte: coisa de turco. Embaixo funcionava um restaurante. Informando-se, Neandro descobriu que o senhor Elifaz Salume era proprietário daquele prédio e que ele morava na parte de cima. Subiu.
O próprio Elifaz atendeu. Neandro fitou-o com estranheza. Esperava encontrar um homem idoso, esclerosado, diferente de alguém atlético e que não aparentava, sequer, 50 anos. Por isso perguntou:
– Por favor, o Sr. Elifaz está?
– Sou eu mesmo – disse o homem postado à sua frente.
– Você? – perguntou surpreso, Neandro.
– Por que não? Fui batizado assim e não encontrei motivos justificáveis para mudar o nome até então – retrucou o Sr. Elifaz, em tom de brincadeira. Concluiu em seguida: entre.
Neandro ameaçou descalçar os tênis, mas o Sr. Elifaz interferiu categórico e sempre com bom humor:
– Prefiro que me suje a casa, se é que tenho escolha. Meu nariz anda muito sensível.
Ambos sorriram. Neandro sentou-se num sofá individual que ficava ao lado. Foi direto ao assunto.
– Tenho aqui comigo o seu endereço. Foi-me dado pelo Sr. Ubaldo um pouco antes de morrer. Na verdade, eu nunca…
– Um momento – interrompeu Elifaz – você se chama Neandro?
– Sim senhor, sou eu mesmo.
O Sr. Elifaz saltou de onde estava como se tivesse sido espetado por uma garrocha.
– Que diabo andou engendrando durante todo este tempo, homem de Deus? Andei procurando-o por todos os recantos. Pus anúncios nos jornais, arrisquei até um aviso pela TV, no horário de maior audiência. Exatamente agora que já havia perdido as esperanças, você me aparece? Por favor, conte-me o que aconteceu. Preciso certificar-me de que realmente você é Neandro.
– Não poderei entender toda esta surpresa sem que me diga o que há de tão importante assim neste simples endereço.
O Sr. Elifaz recompôs-se afirmativamente:
– Percebo, sem dúvidas, que você é Neandro e que, na verdade, não sabe de nada. Depois, ser ou não ser Neandro, é uma coisa que terá de provar e para isto não há tanta pressa. O importante é que você apareceu e poderei, enfim, fazer com que se cumpra o último desejo do amigo Ubaldo.
– Desejo? – perguntou Neandro, cada vez mais confuso.
– Sim, um forte, grande e último desejo. Não sei se sabia, mas Ubaldo era um homem triste, rico e que vencia a frustração da vida pela confiança enorme que mantinha em Deus. Não se dera bem no amor, e o homem quando não é bem-sucedido no amor, torna-se uma criatura triste e desiludida. Ainda rapaz teve um caso com uma professora, mas não deu certo. Embora relutasse, morreu acreditando que tivera um filho, aliás…
– Já sei. Há outro caso.
– É, ele me falou superficialmente de um tempo atribulado em que possivelmente engravidou outra mulher.
– Eu sei. Também comigo ele comentou.
– Pois bem, quando viu o fim, isto lhe veio com a impetuosidade do remorso. Vendo a vida esvair-se e sem tempo para encontrar o filho, chamou-me. Fui estar com ele numa tarde de verão. Conversamos a noite toda. Só ao amanhecer nos despedimos. Fizemos uma frugal refeição e depois fomos ao cartório. Lá ele fez lavrar um testamento, passando metade do que possuía em seu nome e reservando a outra metade da fortuna para seu perdido filho, caso um dia ele aparecesse e isto fosse comprovado. Uma semana depois, falecia. Na época eu estava viajando para rever meus familiares na Turquia. Quando cheguei soube de tudo, mas não pude mais encontrá-lo. Em dados gerais, é isto que significa este simples papel dobrado que contém o meu endereço.
Completamente estarrecido, Neandro calou-se temporariamente. Ouviu aquilo como se fosse um delírio de quem não suporta uma febre alta. Olhos fixos, boca aberta, feição austera de quem envereda por enigmas e mistérios. Já o silêncio se fazia preocupante quando ele veio a si. Limitou-se a exclamar:
– Que coisa é esta vida!
O Sr. Elifaz assentiu, balançando a cabeça. Em seguida, Neandro narrou as partes principais de sua vida. Depois retirou do bolso alguns documentos, apresentou-os com sofreguidão. Elifaz retrucou:
– Não tenha pressa, tudo será seu. Sei que é a pessoa de que falou Ubaldo.
– É que não posso esperar nem mais uma hora – disse Neandro num misto de tristeza, certo contentamento e muita preocupação. Tenho um irmão que está morrendo e não tenho o dinheiro necessário para tentar salvá-lo. Só queria uma pequena quantia para interná-lo.
– Não tenho motivos para duvidar de suas palavras – obtemperou o Sr. Elifaz que, metendo a mão numa pasta, retirou um talão de cheques, e sem perguntar, preencheu um com vultosa quantia.
Também sem muitas explicações, Neandro apanhou o cheque e saiu ventando da sala. Tomou o primeiro táxi e nele mesmo apanhou Orácio, internando-o no melhor hospital da capital. Depois de tudo providenciado, voltou para seu barraco.
Entrou, suspirou fundo, abriu a janela, olhou a maré que enchia. Os arbustos aquáticos e retorcidos iam sendo cobertos pouco a pouco. As ondas molhavam os esteios da palafita. Uma mulher triste erguia um velho puçá e examinava, aflita, o fundo vazio. Um garoto chorava mais adiante, talvez com fome. Lá longe, o sol ia se pondo num delírio de cores. Era lá, para além daquele infinito, no trono de Deus, que se firmava a razão das coisas, aparentemente misteriosas. “Eu mesmo santificarei meu grande nome no meio de vós… Não é por vossa causa que o faço, mas sim por meu próprio nome…”
Quanto houvera se preocupado! Quantas horas passara em completo desespero por estar sem dinheiro e sem amparo. De pouco lhe adiantaram as exortações de Jesus de que não devia se preocupar com o amanhã, com o que comer, com o que vestir. Se naquele instante estava vivo, era o bastante. No outro dia, prometia Deus resolver o que não estivesse ao seu alcance.
Lembrou a fartura vinda no momento exato; o desajuste de Marcélia trazendo-o de volta para salvar Orácio; a arma que não achara naquela noite de desespero; a bala que não estava na agulha no dia em que rodou o tambor, naquele jogo estúpido de roleta-russa, enfim, lembranças e mais lembranças de acontecimentos que, embora parecessem massacrantes, sempre redundaram em seu próprio benefício. Certamente Deus estava por detrás de tudo, tirando proveito de suas fraquezas e fazendo delas os alicerces de seu amor.
O sol se declinava mais e mais, parecia tocar as águas. Chispas tênues infiltravam-se no infinito, incrustando em ouro o infinito azul. Deus era luz. Ali devia estar alumiando as mentes incrédulas de seus filhos. Neandro balbuciou em oração: “Obrigado meu Deus e me perdoe por tantas perguntas e indecisões de meu coração”.
As ondas, agora, batiam mais fortes nos esteios do barraco. O vento, os marulhos e as gaivotas concertavam-se em melopeia divina. E Deus parecia repetir, aos corações opressos e angustiados: “Haverá um dia que não me fareis mais perguntas, porque esclarecerei as intermináveis dúvidas de vossos corações.”
CAPÍTULO 33
Sem mais se importar com a vida, tomada pela ideia fixa de encontrar o filho, Edna abandonara o emprego e se tornara uma peregrina incansável em busca de seu único e último objetivo. Com 53 anos, mal alimentada e vivendo uma preocupação contínua, ela demonstrava uma senilidade precoce como se tivesse sido acometida pelo mal de Alzheimer. De porta em porta, pelos cartórios e fóruns, pelas delegacias, em todo lugar possível, procurava incansavelmente pelo filho. Há muito suas reservas haviam se esgotado e sempre que desejava comer ou viajar, implorava a caridade das pessoas. Não tardou em demonstrar traços visíveis de insanidade mental, embora estivesse longe da loucura. Perdera o prazer de viver; não parecia, psiquicamente, sofrer com a miséria; não se lastimava. O filho, apenas o filho lhe interessava. Diante de seu estado deplorável, poucas pessoas paravam para ouvir seu problema.
Meses depois de angustiante procura, alguém lhe informou que conhecera Neandro e que este, por motivos fortes, fora morar em Imperatriz, no Maranhão. Pedindo esmolas, passando fome, de caronas, sofrendo todo tipo de humilhação possível, ela foi parar na cidade que o moço lhe indicara.
Corria o ano de 1980. Edna esperava encontrar um vilarejo pobre, uma cidade pequena, modesta e inóspita. Contrariamente, viu-se em meio a centenas de pessoas, numa cidade que era bem maior do que imaginara. Um jato da Varig zoava por cima; dezenas de carros enroscavam-se no trânsito desordenado. Imperatriz assustou-a. Encontrar o filho ali talvez exigisse tanto esforço quanto despendera, inutilmente, no Espírito Santo. Felizmente era tempo de sol na região, mês de setembro. O Nordeste, neste período, parece um bom abrigo para indigentes. Faz calor durante a noite e praticamente não chove. Qualquer calçada é um abrigo razoável para quem só não está acostumado às coisas confortáveis e boas. Além do mais, estando no auge dos bamburros, Serra Pelada fazia correr dinheiro fácil, mormente em Imperatriz, onde 70% da população masculina lá trabalhava, tinha percentagem ou era dona de barrancos. Com o dinheiro fácil, apareceram os distúrbios, os absurdos, os ladrões, os aventureiros, os jagunços e todo tipo de gentalha sem qualquer princípio moral. Os próprios mendigos, vez por outra, recebiam reques fantásticos, que equivaliam a alguns salários de um bom trabalhador. Imperatriz nunca viveu um tempo mais inseguro, tenso e febril. Foi neste tempo que Edna chegou.
O movimento era intenso; os crimes, impunes. Em pleno século XX, verdadeiros coronéis agiam livremente, cometendo seus crimes a céu escampo, sob as vistas complacentes e covardes da polícia e da justiça.
Quando em vez, na calçada quente da Getúlio Vargas, um ser humano crivado de balas servia de repasto às varejeiras, sem que ninguém acusasse ou ousasse tomar qualquer iniciativa. Edna passava ao largo, olhava as pessoas, procurava alguém acessível, um rosto amigo, alguém de feição menos encrudelecida pela ganância do ouro ou pelo medo dos desmandos. Perguntava pelo filho. Ninguém lhe dava ouvidos, ninguém se preocupava com o problema dela. As semanas foram passando.
Uma noite, ao estender um jornal velho na calçada, viu o nome Neandro assinando uma crônica. Nem todo Neandro teria de ser seu filho, mas aquilo era, pelo menos, um começo, uma gota de azeite que avivava a chama esmaecida da esperança.
Logo cedo procurou a redação do jornal. O diretor, um baixote velho e retaco, embora altivo, atendeu-a. Confirmou que Neandro era espírito-santense, mas que há uns meses havia, inexplicavelmente, abandonado a cidade e tomado rumo incerto. Edna ficou parada, imóvel, fulminada. Chegara tão perto, mas atrasada. Para onde ele teria ido? Por que deixara o emprego? Onde estaria? E enquanto pensava, o diretor do jornal empertigou-se:
– Minha senhora, preciso trabalhar. Era só isto que desejava saber?
Edna ergueu os olhos. Não havia neles nenhuma necessidade de respeito. Eram olhos apagados, rugas fundas, cabelos desgrenhados, roupas esgarçadas e sujas. Mesmo assim, o velho diretor, sem saber por que, não conseguia tratá-la como louca. Parecia sentir nela, uma força peremptória, forte, que o desarmava em sua pressa e importância. Ela falou:
– Obrigada por ter acreditado que não sou louca.
Ele surpreendeu-se:
– Dizem que você é louca?
– Quem não diz, certamente pensa.
– Se não é louca, por que anda assim?
– Fui professora. Lecionei uma vida inteira. Não poderia precisar quantas crianças alfabetizei, quantos homens de hoje foram iniciados por mim.
– Professora? – perguntou o diretor, imaginando uma dessas tantas que a prefeitura arregimenta pelo Nordeste, pagando um décimo do salário mínimo.
Ela enfiou a mão num saco, arrancou dele um diploma amarfanhado e estendeu-o ao diretor. Ele olhou com pesar:
– A senhora é mais uma vítima do sistema político do País. Atualmente, os políticos já não pensam senão no poder, no prestígio, no dinheiro e nas ideologias partidárias. Descarnam a nação, empobrecem-na, extorquem até o mais ínfimo e primordial direito dos cidadãos pobres. Milhões e milhões de brasileiros sob a mesa de alguns, colhendo migalhas e se quietando ante as chibatas da miséria e da escravidão social.
Edna ouviu-o falar sem aparentar qualquer revolta. Já não lhe interessava o País, a luta pelo poder e pelo dinheiro. Queria encontrar seu filho, vê-lo, tocá-lo, dizer que fora uma desnaturada mãe, mas que esperava o perdão de que tanto precisava para morrer em paz. Por isso baixou a cabeça, até que a grandiloquência do diretor, estimulada pela revolta, amainasse. Ele percebeu e também quietou. Ela ergueu a cabeça, agradeceu e saiu.
Parou na calçada, esperando que os carros passassem. O último distanciou-se e então ela se deu conta que não precisava atravessar a rua: não tinha direção a tomar, nem lugar algum a chegar. Ficou olhando as ondas do mormaço que ondulavam no asfalto quente.
Um vira-latas que passava, assustando-se, passou a acuá-la freneticamente. Como que petrificada em seus andrajos, sentiu sua alma desfalecer. As lágrimas começaram a lhe escorrer pela face dura e enrugada, sem trejeito. Enxugou-as no rebordo das mangas. Qualquer mãe poderia aquilatar a dor que arrancava aquelas lágrimas. Bem podia ela, naquele instante de desespero, transmudar a mais linda oração do mundo, numa comunhão contrita com Marialzira Perestrello:
“Ó Pai Nosso, se estás no céu – e se santo é teu nome – por que não é feita tua vontade, assim na terra como no céu? Por que não dás a todos, seu pão de cada dia? Por que não perdoa nossos erros para esquecermos nossas queixas? Por que em tentação de ódio ainda caímos? Se estás nos céus, se és Pai Nosso, por que não nos livra deste mal para dizermos, então, amém”?
Alguns pivetes passaram correndo, puxaram-lhe o vestido e gritaram:
– Olha a doida – e curvaram gargalhando na esquina.
Ela caiu sentada, mão espalmada na calçada quente e suja. Ergueu os olhos para o céu e sua feição massacrada de abandono e dor parecia uma oração de desafio ao Senhor de Poder e Bondade, que morava acima das estrelas. Desabafou em pensamento: “Deus do céu, olhai a terra. Curvai vossos olhos para vossa criação. Não permitais que homens de pedra convivam com homens de carne. Colocai cada grupo em seu mundo. Deixai os que têm sentimento junto aos que têm coração; os homens de pedra, junto com o granito das montanhas.”
E com muito esforço se ergueu. Não bateu a roupa; simplesmente pôs-se a caminhar.
CAPÍTULO 34
Toda dificuldade, em pouco tempo, ficou parecendo entrave de novela: uma história inventada e triste que tentava soerguer, da desesperança, os sentimentos adormentados da fraternidade. Rico do dia para a noite, Neandro só tinha duas preocupações: salvar Orácio e voltar para Imperatriz. Ainda que relutasse para sufocar a mesquinha intenção de sublevar-se ante Marcélia, sentia que isto existia, que vingava e o impelia a também se vingar. Nunca entendera por que a justiça imediata lhe era tão forte.
Conforme o testamento e tendo comprovado sua identidade, Neandro tomou posse dos bens que foram de Ubaldo. Era tanta coisa, tanto dinheiro quantas foram as dificuldades que o cercaram depois da orfandade. O que era imóvel foi logo vendido, pois Neandro não tencionava viver mais em Vitória, onde tudo e todos lhe recordavam pedaços de uma vida incerta e atribulada. A distância, coadjuvada pelo tempo, por certo lhe ministraria as doses exatas para sarar-se daquelas feridas do passado.
Num Mercedes novo, ele agora chegava ao hospital. Entrou.
Dormindo serenamente e com a barba rapada, Orácio parecia alguém que se desfazia da máscara da miséria. Neandro fitou-o por instantes e depois tocou de leve o seu ombro desnudo. Ele acordou com a mesma serenidade com que fora chamado. Entreabriu os olhos e já se preparava para oferecer o braço à injeção, quando percebeu a figura amiga que lhe sorria.
– É você, grande amigo?
A voz saiu espremida, sibilando entre os dentes partidos pelas botas dos soldados.
– Está melhor? O médico disse-me que se estiver disposto, dará alta hoje mesmo.
Demonstrando avidez em libertar-se daquele antro de torturas necessárias, Orácio pôs-se de um pulo, de pé, esticando os braços e contraindo os músculos pelancudos e sem rigidez. Neandro sorriu, pilheriando com carinho. Orácio baixou a guarda, escondendo a lembrança de dias horríveis, marcantes, traumatizantes.
De repente, sua respiração tornou-se estertorosa, levando-o a momentos infindáveis em que se debatia no cirro da morte. Suas feições recrudesceram. Como que fulminado, encolheu-se de cócoras. Lembranças fortes chibatavam sua alma sensível. Fugiu da realidade, viu-se só, abandonado e angustioso.
– Não, não! – disse quase gritando, enquanto levava as mãos à cabeça, escudando-se de ilusórias pancadas.
Neandro acorreu surpreso pela fúria das apóstrofes. Agachou-se junto a ele, amparando-o em seus devaneios martirizantes. Ergueu-o, pondo-o na cama. Aos poucos, sua feição de desespero foi amainando, tornando-se serena e calma. Repuxos faciais denotavam a invasão de lembranças torturantes. Espichou, tremulamente, sua voz lamentosa:
– Desculpe-me, amigo! Não posso lembrar do que sofri na prisão, nem da fome que passei depois que saí dela. São lembranças amargas, dias e noites que não consigo apagar da mente.
– Eu sei. Bem posso imaginar a angústia dessas duras recordações. Talvez esta não fosse a hora oportuna para reavivar tais lembranças. Ter medo, ser vulnerável a traumas desta natureza é até mesmo normal. Ruim é ser vencido por essas fraquezas. Você dará a volta por cima, falará disto com a amargura do bíblico Jó, mas sem desespero nem revolta.
– Não sei se isto será possível. Acho que independe de mim – disse ele, complementando com um adverbial ronquido de revolta. Neandro percebeu. Tomou a toalha, soqueou, brincando, a barriga encovada de Orácio e entrou no banheiro.
Quando saiu, encontrou-o pensativo, debruçado no peitoril da janela, olhando imóvel, o movimento lento das docas, onde pisca-piscavam luzes em gradações estranhas. Tentando introduzir no ouvido o dedo enrolado na toalha, Neandro observou:
– Não está feliz por esta agradável reviravolta da vida? Somos, agora, dois homens ricos, sem problemas que o dinheiro possa resolver.
Orácio virou-se, suspirando desilusões:
– Estava pensando na morte. Estou certo que ela se faz a cada dia, a cada minuto. Logo que a gente deixa o útero, já começa a morrer lentamente, como a queda de energia de uma bateria sem reposição. É um amigo que se vai, um dente que parte, uma bactéria que nos rói, um espinho que nos rasga a carne, um sonho que não se realiza… A gente vai se desintegrando, implodindo, morrendo paulatinamente.
Neandro pensou, tiquetaqueando com os dedos, descompassadamente. Depois complementou:
– É…., não deixa de fazer sentido, porém tudo isso é necessário. Duas coisas contrárias não podem existir ao mesmo tempo, numa mesma pessoa. Para que alguma coisa nasça, outra tem de morrer. Se a gente está triste, terá que matar a tristeza para que brote a alegria. As duas juntas não podem existir. Tudo é assim, feito aos pares, segundo seus contrários, até mesmo o mal e o bem, Deus e o diabo. E por isto que a vida tem graça.
– Graça? – perguntou Orácio com certo ar de inocência. E continuou:
– Não vejo onde está a graça desta sua filosofia.
Neandro fitou-o entre a fumaça do cigarro que formava flóculos, num arremedo de nuvens vazias.
– A gente precisa ter fé, companheiro! Eu mesmo não acreditava nestas coisas, mas agora já não vejo nenhum motivo para duvidar. Lembro-me que minha mãe, um pouco antes de morrer, disse-me coisas mais ou menos assim: “Filho, tenha fé e não se revolte contra os desígnios de Deus. Acredite na oração, pois ela nunca deixa de ser atendida”.
Orácio ergueu os olhos deixando aflorar um sorriso amarelo de descrença. Depois, com todo o respeito, medindo as palavras, contestou:
– Não posso acreditar nisto. Quanto mais peço o bem, mais pareço ser castigado.
Mais uma vez Neandro o fitou apiedado.
– É uma questão de tempo, amigo! Depois, quando se pede socorro a Deus, pede-se, sem que se saiba, o que seja bom à alma. Por isso, às vezes se pede conforto e dinheiro e Ele manda provações e miséria, porque estas duas coisas são contrárias e representam, em última análise, a perdição e a salvação. Depois de tudo, sempre que se quer uma melhora, recebe-se os vergastes que essa melhora exige. Por exemplo: você chega de viagem e encontra o quintal imundo. Olha-o e imagina-o limpo, florido, sem lixo, todo verdejante. Que lhe custará mais naquele momento: limpá-lo e prepará-lo, ou deixá-lo como se encontra?
– Limpá-lo e prepará-lo, é claro.
– Pois bem, assim também são os nossos pedidos. Toda vez que a gente quer uma coisa, tem de lutar por ela e isto custa esforço e abnegação. O que se deseja só se realiza com trabalho e sacrifício.
– Mas isto não é Deus, somos nós.
– Aí é que você se engana. Ninguém sequer respira sem que Deus o ajude e permita. Até os fios de nossos cabelos estão contados por Ele, diz-nos a Bíblia. Deus não nos dá tudo que pedimos, mas sim os meios necessários para que possamos, com nosso esforço, conseguir o que de correto desejamos. O amor e o interesse de Deus pelos homens são um grande mistério, senão o maior deles todos. O problema é que muitos são malandros, querendo as coisas de graça, sem trabalho nem esforço, ou, no mínimo, querendo algo que será prejudicial à sua salvação.
– Sabe, amigo, às vezes não consigo entendê-lo.
– Não é preciso dizer, já sei aonde pretende chegar.
– É isto mesmo. Como ousa convencer-me de um caminho que você mesmo duvida? Ora me fala de Deus, ora O nega com suas ideias fixas de vingança. Fico imaginando…
– As únicas pessoas que poderiam esclarecer isto, certamente não o farão. Uma é Deus, que prefere deixar que cada coisa se faça a seu tempo; outra sou eu que, sinceramente, não sei explicar. Sinto que preciso acreditar em Deus, independentemente das minhas constantes fraquezas.
– Acho que é assim mesmo, confessou Orácio, convencido de que neste mundo, todos são iguais.
Isto já era o bastante para que ele não desse tanto valor a seu passado. Ergueu-se, então, soqueando debilmente o ar com seus braços mirrados. Abriu um sorriso inexpressivo: mais uma demonstração de abatimento do que de resolução. Tomou a toalha de Neandro e entrou no banheiro. Deixou a água fria cair sobre sua cabeça calcinada pelos pensamentos acirrados de revolta. Quando saiu, parecia que por aquela água desceram as bênçãos do céu. Estava alegre, resoluto e seus movimentos já não pareciam os da miséria que o vergastava. Olhou o amigo que dormitava, deitado de barriga para cima, com uma das mãos apoiando a cabeça no travesseiro. Parecia que sua alma abandonara o corpo e saíra a passear, ou quem sabe, para uma longa viagem. Apenas suas pálpebras, quando em vez, desciam para umedecer e limpar os olhos. Orácio olhou-o por instantes; depois, como a adivinhar seus pensamentos, desligou a lâmpada.
Apenas a luz moribunda do porto penetrava de manso ali, assistindo a tempestade que assolava aquelas almas. Embora estivessem bem acordados, ficaram em silêncio até que o sono, vagando à toa pela noite adentro, passou arrastando-se por ali e tornou tudo em silêncio profundo.
CAPÍTULO 35
Não foram poucas as horas em que Neandro e Orácio consumiram relatando as mil e uma coisas que haviam acontecido, enquanto distantes. Neandro não ocultou nada do amigo, mas Orácio fez questão de não falar sobre o massacre da Curva do Cotovelo. Gostaria muito de tirar da consciência de Neandro o peso daqueles dois assassinatos, mas parecia-lhe, então – em o fazendo – estar mais buscando gratidão e recompensa do que aliviando os tormentos do coração do amigo. Um dia talvez, em hora oportuna, contaria a verdade.
Com os dentes repostos e tratados e graças à alimentação, Orácio parecia outro homem. Engordara bons e necessários quilos e já não apresentava nenhum obstáculo para que viajassem ao Maranhão. Depois que jantaram, Neandro comentou:
– Bem, acho que mais nada nos prende aqui. Está pronto para se despedir de vez desta terra?
Orácio esfregou o guardanapo na boca, mais espalhando do que retirando o corante que grudara, estalou com a língua um som de sabor aprovado e sob afável condição, ponderou:
– Lembra-se do monge que lhe falei, não é mesmo?
– Lembro, sim.
– Gostaria de despedir-me dele.
– Amanhã bem cedo faremos isto. Levaremos nossos bagulhos e de lá mesmo seguiremos, concorda?
– Pelo Nordeste?
Alguma coisa em contrário?
De forma alguma. Estou maluco para conhecer a região.
– Concorda, então?
– Em número e grau – brincou Orácio, erguendo o polegar e entortando a cabeça para baixo em sinal de respeitosa aprovação.
Mal começaram a escalar, a pé, as curvas que se enroscavam entre os serrotes de pedra, Neandro observou:
– Nem assim o pobre monge se livrou de ser incomodado por você, heim! …
Orácio sorriu, permitindo que o sol refletisse curtas fagulhas numa incrustação em ouro que, a seu gosto, o dentista havia feito. Continuaram subindo.
Um quilômetro acima, pararam numa curva de noventa graus, em cujo bordo interno nascia um filete de água cristalina. Percebendo que o cansaço amolentava Neandro, Orácio observou:
– Um gole desta água não nos fará mal e por certo alentará o nosso velho vencedor de maratonas.
– Tenho certeza disto – retrucou ele, olhando interrogativamente para o cume da montanha.
Notando-lhe o desânimo, Orácio acalmou-o:
– O monge mora bem antes do cume, seu moleirão.
Agacharam-se. Um bando de tangarás dançador começou a ensaiar suas coreografias. Os dois olharam maravilhados. Diversos deles gorjeavam, tremelicavam as asas, todos em círculo, enquanto outro saltitava no meio, emplumando-se regiamente diante dos demais. A água pura que pulava de pedra em pedra borbulhava um som grave e uníssono. Um coração de pedra comover-se-ia diante da singeleza do ambiente.
Embora não se lembrasse de toda sua infância, Neandro sentiu um doce afago de felicidade na emoção daquele lugar de águas límpidas, correntes, de frutos e passarinhos. Seu inconsciente desenterrava escondidas lembranças.
– Isto é mais Deus do que mil tratados exegetas – desabafou.
Orácio não entendia bem dessas coisas, mas assentiu tacitamente. Tomaram água, ficando em seguida por alguns instantes sobre assentos de pedra, vendo, em silêncio, os pássaros ornamentais, alheios à presença deles, desenvolverem seu estranho ritual. O ar frio da grota nascente arrefecia seus corpos suarentos pelo esforço da subida.
– De que mais precisa um homem? – perguntou Orácio em sua santa ingenuidade.
Neandro ficou a pensar: “Verdadeiramente, como são estúpidos os seres humanos. Tanta beleza, tanto silêncio e paz… tudo, tudo está por aí, gratuitamente, ao alcance de todos. Mas, ao invés disto, os homens erguem o machado, metem os tratores, aceleram as motosserras, dizimam, modificam, enfeiam, destroem…. Seria tão simples se….”
– Acorda – disse Orácio, tocando-lhe o braço.
Sobressaltado, Neandro voltou a si. Justificou-se embaraçado:
– Estava pensando umas besteiras: utopia de desocupados.
– Ah, sim, acho que entendo!
Depois, virando a cabeça para o lado da gruta:
– Estou achando o caminho um tanto abandonado. Quando estive aqui, percebia-se o uso intenso da trilha. Tem-se a impressão que pouca gente, ou ninguém, está usando este caminho mais.
– Acredita que o monge não esteja mais morando lá em cima?
– Foi a ideia que me ocorreu. Embora sem nenhuma obrigação de visitar-me, estranhei que, de uma hora para outra, tivesse me esquecido.
– Não é difícil enjoar-se de você – brincou Neandro, arremessando com a mão em concha um pouco de água fria no rosto de Orácio e pulando de pé.
– Vamos até lá. Não vejo a hora de desfazer-me deste último laço que nos prende aqui.
– Estou estranhando esta sua ânsia toda de viajar.
– Estes lugares não me trazem boas recordações – finalizou Neandro, enquanto ganhava a vereda a passos lestos.
Logo chegaram à gruta do monge. O capim e os arbustos que invadiam a entrada responderam à curiosidade de pouco antes: o religioso já não morava mais ali. Entraram.
Teias de aranha, alguns morcegos dependurados, o velho banco que fora mesa, escrivaninha e cama, um toco de vela… Coisas tão insignificantes que nem ao monge argueiro haviam representado valor.
Numa parte plana da pedra, num fundo quase escuro, divisava-se alguma coisa escrita a giz, que o tempo ameaçava apagar. Neandro aproximou-se, afastando com a mão as teias que dificultavam ainda mais a leitura. Ficou por algum tempo decifrando a horrível letra do monge e depois chamou Orácio:
– Venha cá. Olhe isto.
Orácio aproximou-se àquela voz de consolação, pois estava sendo-lhe duro não encontrar nenhum indício do monge. Aquela incógnita estava deixando-o prostrado num mundo de saudades, gratidão e mistério. Não imaginava deixar o Espírito Santo sem dizer de sua gratidão ao eremita que salvara sua vida quando criança e o amparara no desespero da prisão.
– Veja isto, leia.
Orácio tentou, soletrou, buscou sentido: arabescos. Sua percepção e cultura traquejaram. Ergueu a cabeça, entortou o pescoço, coçou a nuca…
– Você consegue ler todos estes rabiscos que estão aí? – perguntou a Neandro.
– Consigo. Está escrito: “Acho que chegou a hora de aproximar-me de minha terra. Da Índia vem-me esperanças de libertação. Nosso Dalai Lama pede para ficarmos de sobreaviso e próximos. Sei que tornará aqui. Virá agradecer-me. É desnecessário, mas bom costume. Agradeça a você mesmo a oportunidade que se deu de deixar o erro e trilhar o áspero caminho da perfeição. Depois, além de tudo e de todos, há um lugar comum em que gostaria de revê-lo um dia. Lá o estarei esperando”.
Mal acabou de ler, Neandro pilheriou, decifrando o autor da assinatura: “Casa Desmantelada”.
– Casa Desmantelada? – perguntou Orácio, inocente. Neandro apontou os rabiscos embaixo, onde o monge, provavelmente, escrevera alguma coisa em sua própria língua. Orácio entendeu a brincadeira e riu a valer. Depois, suspirando fundo como quem traga o alívio de uma missão cumprida, deixou a gruta.
– Agora estou pronto, vamos lá, rumo ao desconhecido. Acho que nada, além das amargas lembranças, deixo para trás. Na verdade, se eu pudesse apagar tudo isto de mim, seria muito bom.
– Eu entendo – disse Neandro num suspiro de ansiedade.
– Eu também daria tudo para livrar-me das recordações que, tenho certeza, irão acompanhar-me por um bom bocado de tempo. Vamos confiar no tempo: ele é a gazua com a qual abrimos todas as portas da felicidade obstruída.
– O tempo! …. Uma homenagem a ele, e que seja longo e duradouro para nos curar.
CAPÍTULO 36
“Chegara a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas. Encostado a uma jurema seca, defronte ao juazeiro que a foice dos cabras ia pouco a pouco mutilando, Vicente dirigia a distribuição de rama verde ao gado. Reses magras, com grandes ossos agudos furando o couro das ancas, devoravam confiadamente os rebentões que a ponta dos terçados espalhava pelo chão. Em toda a extensão da vista, nem uma árvore surgia. Só aquele velho juazeiro, devastado e espinhento, verdejava a copa hospitaleira na desolação cor de cinza da paisagem. Sombras vencidas pela miséria e pelo desespero que arrastavam passos inconscientes, na derradeira embriaguez da fome. E além, uma família do Cariri velava um defunto duro e seco, apenas recoberto por farrapos de cor indecisa.”
Enquanto o carro deslizava macio furando o mormaço da região inóspita, Neandro relembrava a mais ilustre filha do Ceará, que aos vinte anos, num tempo não tão distante, assim sentira, presenciara e definira o drama da fome e da seca nordestina.
– Não é difícil, para quem tem veia, descrever a miséria do Nordeste em tempo de seca – falou Orácio ao passar por uma cabra esquelética que arrastava rebentos cambaleantes pela poeira tépida da caatinga.
– Estava pensando nisto – respostou Neandro. Lembrava há pouco, o primeiro livro de Raquel de Queiroz. Sabe, às vezes a gente lê um livro e até o desacredita, na certeza das mentiras e dos exageros que contém. Depois (quando se tem a rara oportunidade de comprovar) vê-se o quanto somos injustos. Olhe o que a vista pode alcançar…
Orácio obedeceu, aguçando os olhos perscrutadores.
Perto de uma tapera parecendo abandonada, animais esqueléticos, sedentos e famintos, olhar baço de morte e fraqueza, vasculhavam, sem presteza, a orla da estrada. Um jumento mastigava um jornal seco; um bode empoeirado remoía uma casca de laranja; um porco fuçava uma lata vazia, em busca de uma gota d’água. Mais adiante, no meio da estrada, um cabritinho desfalecia. Eles pararam o carro. Orácio descascou uma laranja, espremeu o líquido na mão em concha, achegando-a ao filhote. Ele bebeu languidamente, lambeu a mão e os dedos molhados, sem se mover. Orácio ficou naquela posição, extático, petrificado. Quando ergueu os olhos, viu que Neandro esfregava as mangas da camisa nos olhos. Ao lado, a mãe e os outros filhotes aguardavam o bagaço, uma folha de papel…, qualquer coisa que não fosse ramo seco ou poeira.
Em qualquer direção que se lançasse o olhar, tudo era deprimente e triste. Nem um renovo ousava enfrentar o sol causticante e abrasador. Sobre o asfalto viam-se ondas formadas pelo mormaço, que aos olhos sedentos dos animais talvez parecesse neblina milagrosa. Neandro pensou: deve ter sido fácil a Luiz Gonzaga, escrever Asa Branca. Desse-me Deus um pouco do dom poético, talvez não dissesse tão diferente o que ele disse, nascendo e convivendo com tamanho sofrimento: Quando “oiei” a terra ardendo; Qual fogueira de São João; Eu perguntei a Deus do céu, ai; Por que tamanha judiação? Que braseiro, que fornaia; Nem um pé de prantação; Por farta d’água perdi meu gado; Morreu de sede meu alazão…”
Afastou-se e entrou no carro:
– Vamos embora, companheiro, não posso entender nem ver mais estas coisas.
Orácio fitou o amigo na sã revolta de um mundo de sofrimentos inexplicáveis. Ergueu o filhote macilento e entrou no carro com ele no colo. Neandro não o repreendeu. Acabou de jogar tudo o que era alimento na estrada e ligou a ignição, desabafando:
– Passar pelo Nordeste foi a pior ideia que me ocorreu desde que nasci. Enquanto eu viver, jamais passarei por esta estrada em tempo de seca. Companheiro, estou confuso. Não consigo encontrar explicação para isto que estou vendo.
– Sei apenas que é um bom caráter, um homem que tem pena dos animais.
– Por que os animais? Que têm eles a ver com os nossos erros?
– Os animais não raciocinam, não preveem, não sabem medir as consequências. Isto quer dizer que não sofrem tanto quanto nos parece. Além do mais, eles não nasceram aqui: foram trazidos pelo homem. Não é Deus que os castiga (se é o que está imaginando), mas os homens que os trouxeram para esta região. Naturalmente, não estariam aqui, padecendo sede e fome. Não sou muito de ler, mas gosto de filmes. Já vi animais viverem normalmente, tanto no deserto, como nos polos gelados…. Estão lá, aparentemente sem água e comida, mas sempre saudáveis e bonitos. Vivem lá porque se adaptaram.
– Não deixa de fazer sentido, mas é que fico inculcado como a própria Natureza. Às vezes me parece injusta.
– Ainda mais ficaria, se lesse sobre as castas de abelhas, de formigas e de milhares de outros animais. O homem parece ser o ápice destes injustos desníveis sociais. Para ser sincero, eu comungo com aqueles que acham que os animais também pensam. E um raciocínio rudimentar, mas pronto a se desenvolver através do tempo. Revendo nossa história, percebe-se o quanto o homem já evoluiu. Éramos também idiotas e ignorantes e hoje, bem, hoje parece que somos apenas desonestos e injustos. Um elefante que parece chorar, que junta os ossos de seus semelhantes e os esconde num ponto da floresta, que quando decrépito, volta às origens…. Não será já um indício de evolução?
– Pode ser. E aí pergunto: como fica Deus nisto tudo? Por que os sofrimentos dos animais?
E conversando, trocando ideias sobre Deus e seus desígnios para o mundo, os dois viram o sol vermelho, seco e desolador, descer em sua crueldade, por detrás da vastidão cinza dos serrotes. Lá longe, misturando-se à noite fantasmagórica que chegava, o vulto de um cabra rijo que arrastava seu cavalo, tão mirrado como os troncos das caatingas ressequidos pela intermitência da estiagem.
Por fim, a noite desceu. A escuridão parecia ser o único conforto para a vida naquelas plagas. Era nela que os bichos se estiravam na poeira vermelha e caíam na dormência fraca da fome. O sereno umedecia o couro curtido; as línguas lambiam o ar à procura do sereno minguado.
Neandro rodou durante toda a noite na ânsia de deixar para trás, de esconder de seus olhos, aquele cenário desolador. Quando o sol reapareceu, já o panorama estava um pouco mudado. Nos valões, árvores viçosas ostentavam o verde da vida. Jandaias cruzavam o céu, alegres e barulhentas. O dia de tortura psicológica parecia terminado. Mais um pouco e chegaram a Santa Inês, no Maranhão. Encostaram num posto de gasolina, abasteceram o carro e foram em busca de um lugar para descansar. Às 10 horas retomaram caminho, enfrentando, à dura pena, o atalho que levava à cidade de Açailândia. Foram 400 quilômetros que não deixaram de receber as mesmas promessas da região árida de animais carcomidos pela fome e pela sede: jamais passariam por ali enquanto houvesse outro caminho.
Finalmente, às 21 horas, chegaram na cidade de Imperatriz, a segunda maior do Maranhão. Diante de tanta miséria e desconforto pelos quais haviam passado, a cidade pareceu-lhes maravilhosa e acolhedora.
O primeiro trabalho deles foi preparar, num dos cantos do quarto, um verdadeiro festim para o cabritinho convalescente: folhas de alface, leite e suco natural de laranja. Naquelas circunstâncias, naquele estado de fome, até um bife à milanesa iria bem. O que se punha em frente ao cabritinho, ele mastigava e engolia.
Orácio cuidava dele. Neandro olhava o companheiro com grande afeição.
– Amanhã procuraremos uma pessoa que possa adotá-lo.
– Se não se importar, eu mesmo cuido dele, até você se instalar.
Neandro concordou, ralhando:
– Amanhã mesmo estaremos instalados. E pare de dizer “você”. Aqui o pronome é “nós”, entendido?
Orácio ergueu os ombros e fez, com os lábios, uma careta de “como queira”.
Eram mais que amigos, eram verdadeiros irmãos.
CAPÍTULO 37
Quando Neandro empurrou, devagarzinho, a porta do quarto, Marcélia estava deitada de barriga para cima, acordada, mas com os olhos voltados para baixo, em sinal de orgulho ferido e de revolta. Ela parecia os orgulhosos do purgatório engendrados por Dante Alighieri, curvados sob o peso de grandes blocos de pedra, espezinhados, repostos ao nível justo da humildade.
Neandro ficou parado, olhando-a numa névoa de pensamentos retrospectivos. Sua face e olhos pareciam resistir aos achaques das desditas. Um lençol de linho muito branco cobria-lhe a barriga túmida que, quando em vez, mexia-se como se fosse um borbulhar de água entrando em ebulição.
– Marcélia – chamou ele, com a emoção de quem não consegue esconder, apesar de tudo, uma grande afeição.
Ela, trazendo a si os pensamentos dispersos, volveu a cabeça num impulso lesto:
– Neandro?!…
Mais uma vez, diante do impacto do inesperado, ambos ficaram em posição indecisa. Os olhos orbitavam inseguros, buscando respostas a cada pergunta que, silenciosamente se faziam. Neandro adiantou dois passos, ajoelhando-se ao pé da cama. Já não era possível, a um monstro, pensar em vingança! Ao invés de revolver o passado, Neandro atirou-se no “Lete”, esquecendo de vez as mágoas profundas do passado. Tomou-lhe a mão, fitou-a nos olhos:
– Marcélia, como está você?
Ela virou a cabeça para o outro lado, vencida, humilhada pelas contingências da vida. Num lampejo, seus pensamentos retornaram aos tempos em que se sentia a rainha do mundo: bonita, rica, esbelta, cheia de juventude e orgulho. Agora estava ali, jogada em seu leito de dor, deformada, paralítica, dependendo de tudo e de todos. A emoção penetrou fundo em sua alma e em suas faces eram visíveis os repuxos. Neandro apertou-lhe a mão:
– Marcélia, eu vim para ficar com você… se…. se você me quiser agora.
Ao ouvir isto e por já estar próximo o tempo, as dores do parto tomaram vulto e ela começou a sentir fortes cólicas. Entre lágrimas, sorrisos, gratidão e talvez ódio, ela apertou a mão de Neandro, e quando o médico chegou, já a criança havia nascido. Foi tudo rápido e inesperado.
Com a chegada do médico e dos familiares, Neandro retirou-se, sem poder dizer mais coisa alguma a Marcélia. Carregava consigo pensamentos desordenados. Durante os nove meses em que estivera ausente, outro objetivo não o perseguiu, senão o de se vingar da dura humilhação a que fora submetido. Tudo o que de bom lhe acontecera por ocasião de sua volta a Vitória, parecia-lhe obra do mal, fustigando-o à desforra. Armado assim voltara a Imperatriz.
Seria impossível, a qualquer ser humano, aquilatar o que se passou com Neandro, depois daquela tarde na piscina de campo dos pais de Marcélia. Quase chegou ao suicídio; abandonou o emprego, os amigos e todo o mais que havia conseguido com muito esforço e abnegação; fugiu da cidade…. Parecia mesmo que era levado por um braço estranho, a concluir a missão de um predestinado. De sua fuga resultou a recuperação de Orácio que apodrecia vivo sobre um catre; de seu encontro com o senhor Elifaz Salume, a posse da fortuna de Ubaldo Álvares e, agora, o reencontro com Marcélia.
Tudo demonstrava estranha coincidência ou o próprio dedo de Deus, mas disto não se lembrava Neandro. Contrariamente, ele tomava estas graças e procurava com elas fortificar sua eterna índole de vingança. Primeiro foi Arseno e Josemar; agora seria Marcélia?
A aplicação de pena a criminosos sem recuperação, como Arseno e Josemar, ou mesmo a desajustados como Marcélia e afins, para ele era obrigação de fóruns menores, tipo juízes de pequenas causas. E Neandro sentia-se um desses juízes. Por isso, vivia de consciência tranquila. De fato, Deus não fornece lista do que é ou deixa de ser pecado e, sim, aquilata nossa culpa de acordo com a nossa compreensão e entendimento. Que não duvidemos: há muitos no inferno por causa de bobagens veniais e muitos criminosos no céu, apesar das barbáries que praticaram.
Intrometer-se nos julgamentos e na aplicação de penas era uma fraqueza que jamais conseguiu dominar. Nem Orácio duvidou, quando ele disse que queria voltar com o fito de livrar-se das constantes e amargas recordações que ali vivera. No fundo mesmo, Neandro, mais uma vez, jogava tudo em prol de sua vingança doentia. Voltava para Imperatriz para se vingar de Marcélia.
Vendera todo o patrimônio que herdara e desembarcou em Imperatriz com vultosa conta bancária, certo de que ela seria suficiente para ressarcir-lhe daquela inesquecível humilhação. Pretendia esnobar, lutar, vencer e vencer, fazer Marcélia arrastar-se como uma cobra mansa acuada num beco sem saída. Queria vê-la no chão, implorando, investindo sem causar mal algum.
Agora, porém, estava ele seguindo devagar em seu Mercedes, lembrando ensinamentos encorajadores de Ubaldo, que sempre encontrava no Livro de Deus uma palavra para implodir as más inclinações.
Naquele tempo, Neandro não podia crer que aquelas sementes jogadas em seu coração árido pudessem germinar um dia. E tão logo um pouco de esperança e fé umedeceram sua alma, eis que aquelas admoestações ressurgiram virentes. Passo a passo Neandro se distanciava do mau caminho; passo a passo subia os longos e árduos degraus da mansidão e do perdão; passo a passo, distanciava-se do abismo. Agora já lhe era possível pensar, rezar e acreditar numa força maior, capaz de mudar seu destino. Muita dúvida ainda existia dentro de si; muitas interrogações ainda faziam parte de sua fé combalida, mas tudo era indício de que cria e que podia ter esperança de um dia ser feliz. Chegou à sua casa: uma esplendorosa mansão que comprara logo depois de seu regresso. Nesse tempo ele não sabia, ainda, do que havia acontecido a Marcélia. Pretendia fabricar um mundo de ostentação e riqueza e deixar que tudo viesse à tona, lentamente. Depois, quando soube, arrependeu-se, mas a casa já havia sido comprada.
No alpendre que dava guarida a quem chegasse em dia chuvoso, Orácio estava esparramado numa cadeira de balanço, fumando um cigarro despreocupadamente. Quando viu Neandro, ergueu-se curioso:
– E então, como foi? Ela está bem? Discutiu com você? E os familiares, como reagiram? O filho é seu mesmo? Vai trazê-la para cá? Amanhã mesmo? Diga, homem!
Neandro sorriu:
– Se tivesse viajado comigo para cá, há nove meses, não escaparia de minha suspeita.
– Você não responde?
– Como, se nem sei bem quais foram suas perguntas?
Já dentro de casa, conversaram. Orácio bateu-lhe no ombro:
– Que bela desforra, hein! Pediu tanto e veja no que deu.
Neandro virou-se, fitou o amigo, pondo-lhe ambas as mãos em seus ombros.
– A gente sempre acaba conseguindo aquilo que pede. Não percebe que minha vingança não poderia ser maior?
– Mas tencionava pisá-la, humilhá-la! …
– Tencionava, mas no fundo, não sentiria prazer nisto. Da mesma forma como nunca consegui dominar o impulso de vingança, assim também sempre pedi a Deus que me livrasse dele. Acho que fui atendido de uma maneira sábia, eficaz e divina. Na verdade, sempre amei Marcélia. Ela era linda, Orácio, e não me foi possível odiar uma coisa tão bonita. Depois… bem, depois fiquei sabendo daquele acidente. Fiquei arrasado, mas não pude odiá-la pela razão simples de gostar dela. Quem ama de verdade, jamais odeia, não isso que pregam? Hoje, quando abri aquela porta, percebi que a amava e que se ela não tivesse sido acidentada, eu não levaria ao fim meu projeto de vingança.
– Ainda não viu seu filho?
– Acho que ninguém neste mundo gostaria de estar a sós com ela e a criança mais do que eu, mas não me foi possível. Amanhã voltarei lá. Quero pensar bastante esta noite; quero amadurecer minha decisão, preparar-me para todo e qualquer imprevisto.
– Acho que você está certo. E um momento muito importante em sua vida. Aliás, jamais vi alguém com tantos momentos cruciais e importantes, como você.
– E verdade! – murmurou Neandro, e sua voz exclamativa registrava o desabafo de sua alma.
A noite fora-lhe lenta e trabalhosa. Quando o dia raiou ele estava mais exausto do que se estivesse num campo de concentração. Tanto pensara, ponderara, reagira e cedera que acabou não chegando a decisão alguma! Não adiantava buscar união entre duas forças contrárias, pois, se a razão logicamente o fazia desistir, o coração a superava pelo impulso humano e cego de amar. Restava esperar mais um pouco para ver qual dos sentimentos venceria.
CAPÍTULO 38
Era perto de seis horas e Neandro ainda se mantinha na escrivaninha. Olhos fixos na cor brilhante da parede em frente, dedos que tamborilavam automaticamente na mesa ressonante, ele pensava, buscava nos recônditos da alma, uma luz milagrosa que lhe alumiasse o caminho a seguir. “Um padre”… é, um padre poderá ajudar-me na decisão” – pensou consigo mesmo. “Se ele não souber o que é certo, quem mais poderá saber?” Ergueu-se, afinal, de sua cadeira. Orácio, que lia uma revista em quadrinhos, dispôs-se a arguir-lhe:
– Há mais de hora que venho, com o rabo dos olhos, tentando descobrir os pensamentos que lhe passam pela cabeça. Não consegui dormir direito a noite toda por causa desta lâmpada acesa e destes bulícios irritantes.
– Estava matutando.
– Disto eu não duvidei por nem um segundo.
– Não seja curioso e impertinente, Orácio. Afinal, minhas dúvidas não poderão ser dissipadas com sua ajuda.
– E por que, não?
– E preciso saber de muita coisa para se resolver determinados problemas.
– Está querendo insinuar que não tenho capacidade para lhe dar um bom conselho? Pois quero que saiba de uma coisa: posso não ter palavras bonitas e certas para me expressar, mas estou seguro de que posso ajudá-lo nesta hora. Não se esqueça, que nos momentos mais difíceis de sua vida, sempre estive presente. Conheço sua alma, sua cabeça e seu coração, melhor que qualquer padre.
– Está bem – resmungou Neandro, virando-se um pouco para Orácio. Se você quer dar sua opinião, não irei me opor. Sabe, eu sempre gostei de Marcélia. É um amor doentio, algo que não consigo explicar. Sempre achei que para se gostar de alguém, a retribuição fosse indispensável. Marcélia pisou-me, humilhou-me, fez tudo o que alguém diabólico faz para destruir um bom sentimento. O que Marcélia fez comigo, apenas os bandidos que matei, fizeram.
– Você não matou ninguém – interrompeu Orácio, num sobressalto.
– Como assim?
– Brincadeira minha – justificou-se Orácio, um tanto traído pelo impulso que não conseguiu dominar.
– Pois bem – continuou Neandro – mesmo assim, não consigo odiá-la. Depois veio o acidente. Ela está lá, destruída, revoltada, descrente e ofensiva. Mesmo assim não a esqueço; mesmo assim não vejo a hora de voltar lá e ficar pertinho dela e…. de meu filho. Bem, é isto aí. Que você acha?
Orácio coçou a nuca, ergueu-se com a testa enrugada, sorveu o ar numa demonstração de dúvida, e foi agachar-se bem perto de Neandro.
– Amigo – disse ele – em questões amorosas, dizem os entendidos, que ninguém deve meter o bedelho, mas mesmo assim atrevo-me a opinar. Juntos corremos o mundo; juntos sofremos e aprendemos a nos conhecer bem. Por isso penso que posso dizer alguma coisa de útil. Mostro-lhe, por exemplo, duas alternativas.
Neandro ergueu a cabeça um tanto inseguro. Orácio falou:
– Ofereço-lhe duas opções: uma paz sem fim num mosteiro, em que tudo é silêncio, no qual não há barulho, perturbação nem ódio; nele não precisa se preocupar com comida, roupa ou lugar para recostar a cabeça. Ofereço também uma vida atribulada, com mulher e filhos atazanando-lhe a paciência; pessoas pedindo favores e esmolas a você; gente cruzando seu caminho, tirando-lhe o sono, exigindo, pedindo. Qual das duas opções escolheria?
Neandro pensou por alguns segundos e retrucou:
– Não há nada neste mundo que valha a realização de meus desejos.
– Então não escolheria a paz e a tranquilidade de um mosteiro?
– Não, porque entendo que bom para mim é aquilo que quero, desejo, sonho e pretendo, ainda que me custe esforço e sofrimento.
– Assim sendo, por que perde horas de sono a pensar?
– Você é um bom amigo, concorda comigo, sabe que estou louco para estar com Marcélia, por isso montou este silogismo. No entanto, outros não concordam. Acham que vou destruir minha vida ao lado de uma… bem, de uma paraplégica descrente.
– Ora!, já ouviu dizer dos dissabores que enfrentou Galileu por defender as ideias de Copérnico, de que a terra girava em torno do sol? Lembra-se de quantos já foram martirizados por defender a existência de um único Deus? Dos tantos homens inteligentes que defenderam ideias e teorias estranhas à crença vigente da época e foram por isto mesmo humilhados, rejeitados, exilados e mesmo mortos? Pois bem, apesar da maioria ser contra, eles estavam certos.
Neandro, com trejeito de riso pela maneira engraçada de Orácio gesticular, adiantou-se uns passos, abraçando o amigo:
– Vejo que passou a noite arrumando argumentos. Mas não importa. Sua pesquisa valeu a pena, pode acreditar, principalmente porque acaba de salvar-me do cheiro acre de uma velha e suada batina. Quando interrompeu minha meditação, estava confirmando a sensatez de aconselhar-me com um sacerdote. Achava que somente um religioso consciente poderia, com acerto, mostrar-me a decisão correta. Percebo, agora, que estava enganado. Já não tenho dúvida alguma do que devo fazer.
– Espere aí – interrompeu Orácio, um tanto assustado – eu não disse que você deveria casar-se com Marcélia.
– Eu sei, eu sei. Pode ficar tranquilo, pois jamais irei acusá-lo disto… e nem agradecer por ter-me feito, agora, o homem mais feliz deste mundo – e dizendo isto, tomou a chave do carro e saiu apressado.
Orácio tentou ainda esboçar um novo argumento, mas apenas o ruído estridente do motor respondeu, com desdém, a seus intentos. Debruçou-se na janela e ficou a pensar na vida, nos seres humanos, no amor. Que força estranha e inexplicável é a do gostar. Podia-se apalpar o brilho dos olhos de Neandro, a solidez de sua alegria e felicidade.
Amor! … Inclinação irresistível dos seres, cegueira dos sensatos, martírio dos não correspondidos. Sorriso e lágrima que se misturam; prazer e sofrimento que se refazem em cada pulsar do coração. Somente Deus é mais inexplicável do que ele. Por isso, Ele é tanto amor.
Orácio pensava, enquanto olhava pessoas transitando pelas ruas, indo e vindo, calmas ou apressadas, semblantes alegres ou transtornados, mas todas tinham uma direção, um caminho, um objetivo: o amor. Um velho, dependurado em seu cajado, marcava passos pela calçada, tentando abraçar seus netos; um homem forte arremessava caixas sobre um caminhão, para defender o alimento dos filhos; uma donzela incomodava-se com o cabelo revolto, tentando suavizar a aparência na chegada de seu namorado; a mulher erguia a trouxa de roupa e se encaminhava para o Tocantins, pensando no neto que a filha, mãe solteira, lhe deixara; um pardal metia-se entre as frestas de uma varanda com um raminho seco no bico para construir seu ninho; e ali, há bem poucos minutos, um rapaz partia em disparada para achegar-se a alguém que precisava de solidariedade: coisas todas do amor, deste sentimento profundo, responsável por tantos atos de abnegação e também de loucura.
Orácio estava perturbado. Sentia que suas palavras haviam convencido o amigo e não sabia se tinha agido certo, dado o conselho devido, oferecido o melhor caminho. Olhou para um criado-mudo que sustinha a Bíblia Sagrada que Ubaldo presenteara a Neandro. Tomou-a nas mãos e, em oração, leu alguns versículos ao acaso. Depois a fechou, ergueu os olhos para o céu e balbuciou: bem sei que conhece minha intenção e meu desejo de querer o melhor para ele. Recostou-se depois ao travesseiro e nem sequer se deu conta de que o sono o dominava. Tivera uma noite horrível, preocupado com Neandro.
Lá adiante, ainda antes de o sol nascer, um carro freava em frente à maternidade. Um rapaz descia e, com passos inseguros, dirigia-se à portaria. Estava trêmulo, cheio de ideias e palavras embaralhadas. O coração batia forte, muito forte e descompassado.
CAPÍTULO 39
Neandro entreabriu a porta, calmamente. Não havia ninguém, além deles, no apartamento. O filho, enrolado em fraldas, dormitava ao lado, tendo no semblante a paz daqueles em cujo coração ainda não penetrara a maldade. Havia uma poltrona bege bem próxima à cama, com um travesseiro em cima bastante amarrotado, indicando que alguém ali passara a noite. Pela janela entreaberta, podia-se ver as manchas rubras do árdego sol que prometia despontar com todo rigor. No entanto, a brisa ainda era suave e trazia, nas lufadas esporádicas, um frescor de sereno que se diluía com a chegada do astro rei. Neandro assentou-se devagar, evitando qualquer ruído que pudesse interferir na tão rara fisionomia de paz de Marcélia. Deitada de barriga para cima, com o rosto um pouco voltado para a esquerda, livre das dores sofridas, Marcélia parecia, mais do que nunca, um anjo de candura e beleza. Sua tez rosada, seus lábios bem feitos e entreabertos, o lençol branco cobrindo seu esgalgo corpo pelos tantos sofrimentos…. Tudo implicava em fazer dela uma Júlia Feital, aquela moça maravilhosa que povoou tantos sonhos de Castro Alves nos atribulados tempos de sua juventude. Neandro pensou nisto. Ergueu a mão direita e, suavemente, acariciou com as costas dos dedos a pele macia e aveludada da mãe de seu filho. Ela respirou fundo, mastigou nada para umedecer a boca e voltou à sua modorra de paz.
– Marcélia, você está bem?
Lá longe, como tiranas de amor, o som veio-lhe macio, arrancando dos esconsos abismos da saudade, o som doce daquela voz. Ela parecia sorrir como se estivesse vivendo um sonho de amor. Neandro repetiu, tomando-lhe a mão:
– Marcélia, sou eu, Neandro.
Sua feição encrudeleceu, enquanto seus olhos se entreabriam bem devagar. Havia nela, sempre, uma autodefesa contra tudo o que lhe pudesse amenizar a revolta. Neandro apertou-lhe a mão, despertando-a inteiramente. Ela virou mais a cabeça, fitando-lhe o rosto. Seus olhos eram duros e acusadores.
– Ainda não está satisfeito com a vitória?
– Marcélia, não seja injusta. Não vim aqui senão porque a amo muito. Não me passa pela cabeça sentir prazer pela sua desdita. Por favor, vamos conversar sem rancor.
– Eu não acredito em você, saia daqui.
– Marcélia, tenha fé, nem tudo está perdido. Não existe nada impossível para Deus.
– Há, há, há! Deus, Deus! Quem é Deus?
– Deus é….
– Já sei: Deus é bom e misericordioso, é poderoso, é justo… Deus, Deus! Ele não é bom nem ruim, seu idiota, pelo simples fato de não existir Deus algum. Tudo isto é uma questão de acaso. Nada foi feito por ninguém. Tudo aconteceu por acaso, por evolução. Não percebe como os animais evoluem, o mundo evolui, os homens evoluem? Tudo está se fazendo por si; nada foi feito de vez. Se Deus queria criar a terra e os homens, por que não os fez de vez? Antes isto era uma bola de fogo. Depois foi esfriando, aparecendo células, bichinhos… e depois de bilhões de anos, o homem. Isto é criar ou acontecer?
Neandro baixou a cabeça. Ela descerrou sua ladainha de imprecações, deixando um som cavo de soluços contidos, cheio de nervosa emoção. Neandro continuava cabisbaixo, pensativo, buscando em algum lugar o dom da persuasão. Marcélia, recobrando fôlego, continuou:
– Já disse para sair daqui e, por favor, leve seu Deus também.
– Não sei o que dizer, Marcélia. Teria alguns argumentos a lhe apresentar, mas sinto que o silêncio, agora, é o melhor deles.
– Não, diga, por favor, quero ouvir seus argumentos.
– Não quer que eu saia mais?
– Fale primeiro.
– O meu Deus ou seu acaso talvez venham a ser a mesma coisa – disse Neandro, erguendo um pouco o rosto e mantendo os olhos fixos no soalho em que uma mancha de sangue parecia desenhar um perfeito sudário. Na verdade, os nomes não importam, desde que signifiquem a existência de alguma força maior que envolva tudo e todos. Marcélia – e sua voz revestia-se de lembranças longínquas, cheias de um tempo duro e semelhante – eu também já estive a um passo do inferno. Poder-se-ia dizer que o calor dele me queimava a face. Também eu, neste tempo, não via mais solução. Para mim, era o fim da linha. Olhava as pessoas sorrirem, cheias de vontade de viver, com a cabeça repleta de planos. Via que todo mundo encontrava uma razão para sorrir, para trabalhar, para atingir um objetivo. Eu não. Não tinha mais família, não tinha estudos suficientes, não tinha dinheiro, não tinha um lar. Meti-me em roubos, assassinatos… Nunca me passou pela cabeça que um Deus pudesse aperceber-se de mim. Não era admissível que Ele, tão poderoso e onipotente, pudesse estar se preocupando com um verme nojento como eu. Cheguei a puxar o gatilho de um revólver em meus ouvidos. Foi quando Ele apareceu. Estava revestido de um homem comum, um homem que falava simples, que dizia coisas que jamais imaginei pudessem tocar meu coração sem esperanças. A cápsula não deflagrou. Mais um tempo foi-me dado. Será que havia mesmo qualquer chance de reerguimento, de felicidade para um trapo humano como eu? Certamente que não. Mas mesmo diante de minha descrença, de minha ingratidão, Deus manipulou seu “jogo sujo”, levando o homem que me salvara e entregando-me a certeza de que Ele, embora não precise, preocupa-se com cada um de nós. Hoje, aquele farrapo descrente está aqui, cheio de vontade de viver, de fazer coisas bonitas, de amar, de pagar um pouco o tanto que Deus fez por ele.
Neandro ergueu-se um instante, enxugando uma lágrima que lhe descia desobediente. A emoção, mesclada à sinceridade, penetrava-lhe fundo, arrancando à força aquelas gotas tépidas de tristes recordações. Marcélia olhou-o com um aperto de cenho em que se denotava uma inconstância ressentida. Não sabia ao certo se queria ou não ouvir tudo aquilo. Entreabriu a boca como a dizer alguma coisa, mas logo se recatou, encafuando-se em suas dúvidas massacrantes. Neandro continuou:
– Seria uma pena se depois de tudo isto não sobrasse ao menos a esperança da existência de um Deus. Sim, Marcélia, em situações como as que vivi e também como as que você vive agora, é de fato uma grande insensatez não se acreditar num ser supremo. Pense positivo, queira muito, pois somos consequência do que pensamos e queremos.
Enquanto falava, Neandro olhava, ora para Marcélia, ora para o menino que dormia tranquilamente. Só Deus imaginava o quanto tinha vontade de tomá-lo nos braços, de olhá-lo de perto, de aconchegar-se com ele a Marcélia e dizer a um fotógrafo imaginário: assim está bem?
Ali estava, depois de longos e atribulados meses, o resultado de um dia que lhe marcara por toda a vida. No seu caso, a lei de Deus parecia-se com a velha norma do sertão nordestino, sem retorno, sem perdão. A honra teria de ser lavada, com sangue, com um alto preço, com a vida. Naqueles olhinhos cerrados, naquela face serena e cheia de paz ele podia ainda ver o afresco de um quadro real, com águas límpidas escorrendo entre pedras, caindo delas entre arbustos com pássaros cantando, no frescor de uma doce manhã em Pedra Caída. E a vingança dos céus por aquele amor ilegal desceria logo como os facões dos Castros, Medrados e Mouras e retalharia em fatias, não o corpinho sorridente de um inocente bastardo, mas todo o orgulho daquela moça prepotente.
E seus pensamentos tanto se dissiparam que, por alguns segundos, esqueceu-se que estava ali, lutando por sua própria felicidade. Por isto, quando Marcélia, num ronquido de impaciência deu conta da realidade, ele se voltou, como se tivesse sido desperto de um sonho, ou pesadelo, não podia, então, precisar.
– Desculpe-me, estava pensando…
– Você pensa demais. Imagino até que esteja pensando que me convenceu.
Ele estremeceu diante da clarividência. Marcélia sentia que Neandro era-lhe uma solução milagrosa caída do céu, mas resistia heroicamente ao sacrifício de seu orgulho, com quem sempre conviveu. E depois, obtemperou:
– Que céu?
– Não tem importância – conformou-se ele. Eu também vivi dias de extrema descrença em tudo e em todos. Também eu não imaginava mais qualquer espécie de esperança, qualquer amizade sincera. Vivi dias tão difíceis como os que vive agora e apressei-me em acusar Deus de tudo. Nesse estágio, a gente se torna uma criança pirracenta que se aproveita da bondade do pai. A revolta e o orgulho, juntos, são pesos equiparados a toda humildade e compreensão do mundo. É uma luta de igual para igual dentro de nós e só mesmo a parcialidade de um acaso poderá decidir a questão. Quer acreditemos quer não, Deus existe, e é estupidez procurá-Lo nos confins das galáxias. É por isto que a gente dificilmente O encontra, pois enquanto O procuramos tão distante, Ele está bem pertinho de nós, dentro de nossa cabeça, fazendo ninho em nosso coração.
– Bem…. Já estou indo, Marcélia. Quero que acredite que gosto muito de você, que estou cheio de esperanças de levá-la para minha casa para formarmos uma família. Quero cuidar deste menino, de você, puxa!, nem imagina quanta felicidade isto me daria.
– Vingança, você quer dizer.
– Não, não é vingança, é amor mesmo, tão forte como o dia em que estive com você em Pedra Caída.
– Pedra Caída! Amor! …
– Por favor, não explique nada. É passado, não existe mais.
Marcélia tentou desfazer aquela lembrança suja:
– Amor? Por uma aleijada e imprestável como eu?
– Sim, por uma aleijada e imprestável como você, se é assim que define um amor sem limites.
Marcélia sorriu com certo sarcasmo, embora notasse a singeleza da repetição, dita sem nenhum impulso de vingança ou humilhação. Neandro aproximou-se mais, beijou-lhe a testa, olhou o menino com profunda veneração e foi saindo bem devagar. Parou na porta. Pela fresta entreaberta dispensou um último olhar, cheio de esperanças. Viu a face firme de Marcélia, seus olhos quietos no lustre do teto e uma gota de lágrima fugir para esconder-se entre seus longos cabelos castanhos.
A porta se fechou. O ruído de passos incertos que se distanciavam pouco a pouco deixou de ser ouvido. Como se alguém estivesse arrancando devagarzinho seu coração, Marcélia sentiu a dor intensa da insegurança. Começou a soluçar, a desejar a morte como última instância para sua desdita. A morte, sim, a morte, parecia-lhe a única saída, a única válvula de escape naquela instância da vida. De repente ela não lhe causava mais temor. Num instante, a vida era-lhe o carrasco implacável, o torturador, o meio eficaz de fazê-la pagar por tantos desatinos. Quantas vezes, há alguns anos, ela olhava as estrelas sempiternas e distantes, e ficava imaginando fantasmas escondidos, cheia de medo por coisas que dizia não acreditar. Agora não, ela queria estar lá, entre elas, perdida naquele infinito, onde ninguém pudesse encontrá-la para rir de sua desgraça. Nada mais lhe importava. Apenas a vida era causa de seu sofrimento. Olhou em diversas direções. Viu a faca deixada sobre um prato com laranjas. Estendeu a mão, alcançando-a. Os pensamentos se misturavam, a cabeça já não podia pensar direito. Uma névoa de angústia e desespero entrou em sua alma. A mão apertou firme o cabo da faca e ela virou-a para seu coração. Começou a soluçar em extremo desespero.
Nisto, a criança acorda e começa a chorar. Não era bem choro, mas gritos de um recém-nascido em desespero. Ela se sobressalta e vê-se com uma faca apontada para seu peito, a mão rija, os olhos molhados de lágrimas, quase em convulsão. Incontinenti, uma enfermeira entra correndo, procurando saber a que havia acontecido.
– Que foi?
– Fui apanhar a faca e as laranjas, e com o barulho, o menino acordou assustado.
– Ah, sim!
Nunca ninguém esteve mais próximo do fim.
CAPÍTULO 40
Cinquenta e cinco anos. Já não havia brilho nos seus olhos. O martírio lento, mas constante dos últimos meses a envelhecera cem anos. Recurvada, triste e mais cheia de incertezas do que um ponto de interrogação, ela vivia rejeitada pelas ruas. Há muito já não perguntava pelo filho: todos a consideravam uma demente, uma velha indigente, solitária em seus infortúnios. Sob as sacadas, ao relento, nas sarjetas…. Onde a noite a flagrasse, aí seria seu ninho. Suas vistas cansadas fitavam as estrelas, que numa noite tinham sido tão lindas e cintilantes. Suas narinas já não sentiam o perfume das flores e seu coração relutava em prolongar aquela dolorosa agonia.
Quantas vezes, dos seus olhos, a lembrança de crianças alegres lhe roubava lágrimas. Quanto ensinara, quanto vivera! Antes, a poesia da vida, com graça nos rios, nos cantos alegres dos pássaros, na esperança de um amor eterno, no desabrochar de uma flor… Tudo lhe era motivo de felicidade, na calada oração de agradecimento por ter nascido. Agora, a poesia virava a folha: só falava do fim, da desesperança, da fome, da miséria extrema. Seu Deus parecia tê-la abandonado: era mentira que Ele conhecia cada fio de seus cabelos, a dor de seu estômago e o desespero de sua solidão.
Ergue meio corpo da calçada. A barriga ronca de fome, os ossos doem de tempo e desconforto. Assentada sobre as pernas, ela olha o povo num vaivém mirabolante. Um ancião passa e deixa alguns centavos a seus pés. Apanha-os. Já não há agradecimento a quem prolongue seus sofrimentos. Sustém-se custosamente, apoia-se num cajado e a passos incertos ganha a rua.
Um carro a tolhe. Ela rola sobre o capô, arrebenta o para-brisas e cai desmaiada e exangue no colo do motorista. O carro se desgoverna, bate contra um muro e para definitivamente. Gente próxima acorre curiosa, enquanto o motorista abre a porta e sai com a velha nos braços, como se fosse um deus mitológico. Estava lívido, assustado, cheio de temor.
– Outro carro, pelo amor de Deus! – fala ele desconcertado.
– Não se preocupe – retruca uma voz – esta velha é maluca mesmo. Vive pelas ruas procurando por um filho que não existe. Pode ficar tranquilo que isto vai dar em nada.
Neandro olhou rápido para o interlocutor. Mesmo em meio à confusão, não deixou de fulminar o homem com seu olhar de revolta. Logo em seguida, um voluntário parou seu carro e ele entrou com a velha nos braços, seguindo para o hospital mais próximo.
O médico de plantão examinou-a rapidamente:
– Acho que foi fatal.
Neandro coçou a nuca demonstrando visível sinal de desespero. Falou:
– Doutor, use todos os meios possíveis para salvar esta vida. Não quero matar mais ninguém.
O médico virou-se de chofre. Seus olhos eram acusadores; estavam surpresos com a revelação. Depois, não pareciam mais acusar: bem poderia ter acontecido outro acidente involuntário.
Enfermeiras chegam e levam a velha a uma sala de operação. Uma junta médica se prepara. Examina e constata uma esperança. Conversa com o atropelador:
– Vai ser uma tentativa cara e com remotas possibilidades de êxito.
– Não perca um só minuto – retrucou Neandro, incontinênti.
O médico olhou para a enfermeira. Ela entendeu. Fez um sinal convencional para Neandro e partiram para a secretaria para a vultosa caução. Voltou em seguida. O médico chefe a fitou. A cabeça assentiu. Ele tomou as ferramentas cirúrgicas. O anestesista entrou em ação.
Ao meio-dia, tudo estava findo e com parcas esperanças. A velha respirava: havia, dentro das impossibilidades, uma força maior, capaz de desmanchar as imperiosidades e criar os mistérios. Os próprios médicos não estavam entendendo, mas ela vivia.
A polícia chega, conversa com Neandro, ouve-o, faz anotações, fala-lhe ao ouvido: tudo resolvido.
Às 16 horas, a velhota volta a si. Às 18 horas, começa a ter plena consciência de tudo. Neandro se aproxima, toma-lhe as mãos. Uma estranha sensação penetra-lhe fundo na alma, talvez por se sentir, pela primeira vez, realmente útil e humano.
– Minha senhora, sabe que fui eu quem a atropelou?
– Estou sabendo agora.
– Queria que me perdoasse e que ficasse certa que tudo farei para remediar o mal que involuntariamente lhe causei.
– Não se preocupe comigo. Estou apenas aguardando que Deus me leve deste mundo.
– Como a senhora se chama?
– Edna.
– É maranhense?
– Capixaba.
– Engraçado, eu também sou do Espírito Santo. Quando e por que veio para Imperatriz?
– Ah, “meu filho”, é uma longa, longa história!
– Acha que pode me contar?
– Sim, eu estou bem. Conversar não me fadiga. Acho que foi só um agradável susto.
– Agradável susto?
– Sim, para mim, só o fim é esperança.
– A esperança não tem limites.
Ela sorriu sem presteza, ele enfatizou:
– Daqui para frente, vou cuidar da senhora. Não tem família?
– Sou sozinha aqui.
– Pois então, agora vai ter alguém para cuidar da senhora.
Ela tornou a sorrir. Era um sorriso apagado, murcho e triste:
– Ah, os jovens! – murmurou ela com voz rouca e sofrida. – Eu também já tive ideal, já sonhei…
– Não devia falar com tanta desesperança. A felicidade não escolhe tempo nem idade.
Ela tornou a sorrir, apertando de manso, os dedos de Neandro. Depois falou:
– Sou professora, ou melhor, fui uma destas professoras que andam pelo mundo ensinando. Destas que deixam a família e rumam para o interior, a fim de levar, aos mais distantes rincões, um pouco de saber.
– Isto é muito bonito.
– É sim, eu sempre achava meu ideal muito bonito. Um dia, porém, a juventude mostrou-me um rapaz e enchi-me de amor por ele. Apesar de estouvado, ele tinha alguma coisa que me fascinava, que me atraía. Entreguei-me a ele. Fiquei grávida e aí valeu a lei do sertão: a mesma que até hoje não perdoa essas coisas. Fui expulsa da fazenda e da casa. Enturmei-me com amigas numa república. Quando o filho nasceu, coloquei-o na porta de uma residência e nunca mais o vi. Os anos se passaram, a idade chegou. Aquela mesma saudade que invade os decrépitos elefantes quando o fim se aproxima, chegou-se a mim, e nada mais forte houve do que o desejo de desfazer aquele mal, antes de morrer. Abandonei tudo e todos e saí pelo mundo à procura de meu filho. Não trabalhei mais. Vagabundeei pelas estradas, fazendas e cidades. A fome e a miséria logo se achegaram e juntas fomos caminhando, seguindo. No começo davam-me ouvidos e esperanças. As pessoas me ouviam e tentavam ajudar-me. Depois, as vestes foram ficando rotas, a pele ressequida – trapo humano. Ninguém mais ia além de um olhar torvo e asqueroso. A última vez que me ouviram, disseram-me que meu filho estava em Imperatriz. Vim para cá. Logo, logo a miséria se abateu plenamente e ninguém mais quis ouvir-me. Até os cães acuavam-me. Calei-me então, apegando-me à tênue esperança de que Deus pudesse ouvir-me. Nas noites cálidas e chuvosas (nessas, parece-me que a presença de Deus é mais forte) eu me ajoelho e peço a Ele que não me deixe morrer sem ver meu filho. Os dias passam, passam, vão passando e levando com eles a última fímbria de esperança. Acho mesmo que Deus não se importa comigo. Chego a pensar que Ele também se enoja ao ver-me em meus andrajos, como um espantalho, ousando erguer os olhos lânguidos para pedir-Lhe complacência.
– A senhora acredita muito em Deus, não é mesmo?
– Faço tudo para crer.
– Então persista, porque Ele conhece bem a gente e sabe quanto nos deu de fé. Mas, por favor, continue.
– Não se importa em ficar perdendo tempo comigo? Há muito ninguém perde um segundo para ouvir minhas dores e saber dos meus sentimentos.
– Pode desabafar quanto quiser.
– Está com pena de mim? A consciência lhe dói por haver-me machucado? Se assim for, não precisa preocupar-se. Aliás, acho que esteve próximo de fazer-me um grande bem.
– Por favor, não fale assim. E muito doloroso ver alguém desdizer a vida, este dom maravilhoso que tantos não tiveram a graça de receber.
– É, acho que está certo. Desculpe-me. Na verdade, eu só queria uma coisa: ver meu filho antes de morrer. Dizer a ele que estou arrependida por sua orfandade. Há tanto tempo não peço outra coisa a Deus. Eu sempre… semp…
– Que foi?
Edna repuxou a face enrugada, como que fustigada por uma dor muito forte.
– Está sentindo alguma coisa?
Ela fitou Neandro bem nos olhos. Suas mãos foram apertando as dele cada vez com mais força. Depois foram, paulatinamente, afrouxando, afrouxando…
– Que foi, minha velhinha querida?
– Acho… acho que estou morrendo.
– Não, você não vai morrer antes de ver seu filho. Deus não deixará que isto aconteça. Ele mesmo prometeu que aquilo que a gente pede de coração, Ele atende.
Ela o fitava. Devagarzinho, os olhos foram esmaecendo, sempre cravados nos de Neandro. Os lábios, atingidos por um leve tremor de choro, foram se tornando lívidos. Quando seu corpo quietou em sono para sempre, ainda uma lágrima escorreu pelo rosto desfalecido.
Quando Deus a lançou como uma pedra na superfície calma da vida, ela a perturbou com incontáveis círculos. Agora, porém, a pedra estava no fundo e a superfície da água voltava a estar calma e tranquila. Sim, porque não há quem passe por uma praia sem deixar o rastro de seus pés na areia, mas também se há de crer que não há pegada que ali permaneça. A nossa existência passa, mas a vida continua. Poucos segundos manteve Edna na dúvida do amparo ou não de Deus. Logo sua alma pairou por sobre seu corpo inerte e a sabedoria do espírito viu claro que seu filho estava ali, pertinho dela e que Deus jamais frustrará qualquer de seus filhos que a Ele recorre. Sem o saber, ela recebeu a graça que tanto pedia: morreu nos braços do filho.
CAPÍTULO 41
Ah, o tempo!, esta magia de Deus que apaga vinganças, que cria a luz e as noites, que alimenta esperanças, que permite à flor desabrochar, que dá chances de perdoar, que rega a semente do amor para que estoure o duro endocarpo do orgulho e enfim desabroche. O tempo! Só ele pode explicar os reveses, desamuar os corações, fazer crer que, em algum lugar, Alguém, de fato, nos ama.
Tanto ele passou! …. Quantas coisas fez acontecer! Depois de tantas lutas e tantas provas de amor, Marcélia acedeu e se casou com Neandro. Sempre revoltada, estirada em sua cama, vivia, mesmo assim, atacando Deus e o mundo, sem jamais importar-se com quem quer que fosse. Ela era assim: havia nascido para a ostentação; crescido para ser amada sem gostar de ninguém. Era o espinho da roseira.
Sempre atencioso e com muito carinho, Neandro esforçava-se por compreendê-la, tentando amenizar um pouco toda aquela revolta. Compreendendo-a, não ousava falar-lhe muito sobre esperanças ou sobre Deus. Impertinente, ela puxava pelo assunto e parecia encontrar prazer em vê-lo baixar a cabeça, pesaroso. Calado, em oração, ele acreditava que Deus, um dia, pudesse resolver aquilo. Tantas vezes já o fizera! Não havia mais por que duvidar. O tempo passava.
Orácio, embora nunca conseguisse entender, respeitava os sentimentos inexplicáveis de Neandro. Sabia de seu amor cego por Marcélia e jamais deixava transparecer qualquer indício de sua opinião, às vezes, contrária.
Estélio Marcos, o filho, crescia forte e inteligente. Já se punha de pé e vivia mexendo em tudo. Dizia, precocemente, muitas palavras, enchendo de orgulho a Neandro, que não via hora de estar ali para correr pela casa brincando de esconder, de corre-corre e de tudo o que o menino desejasse.
Cor rosada (mais para o lado do pai), Estélio parecia ter nascido com todo o dom necessário para fazer com que as pessoas o amassem.
Marcélia, de sua cama, sempre com os olhos amargurados, não dava tréguas à lembrança dos dias áureos em que quase não conseguia livrar-se do magote de bajuladores. Agora, sem poder promover festas e excursões, parecia não ter mais amigos. Não fosse a presença constante de Neandro, talvez ela tivesse de curtir sua solidão de um modo insuportável.
Sempre que possível, Neandro puxava uma cadeira e ficava a conversar com ela, todo atenção e carinho. Neste dia, depois que Estélio dormiu, ele próprio tomou o jantar e entrou no quarto. Chegou alegre, aparentemente descontraído.
– Quentinho, só para a pessoa que mais quero bem neste mundo.
– Não seja hipócrita. Quando vai se cansar desta farsa? Pensa que sou idiota para acreditar que alguém pode gostar de mim neste estado?
Neandro sempre se cuidava em não dizer sequer a palavra Deus em sua presença, pois sabia que isto a incomodava e irritava sobremaneira. Nesta hora, porém, escapuliu:
– Estou sendo sincero, Marcélia, Deus é testemunha.
– Lá vem você outra vez com este Deus que não pode nada.
– Desculpe-me, Marcélia, eu não queria irritá-la, mas já que aconteceu, eu afirmo: Ele pode sim.
– Então porque Ele não conserta minha coluna e me tira deste inferno de suplício?
– Talvez porque você não queira.
– Esta é boa, eu não quero! …
– É isto mesmo, minha querida, muitas coisas não acontecem simplesmente porque a gente não as deseja e quer. Um dia irá compreender tudo isto, você vai ver.
– Eu não vou ter decepção alguma, porque não acredito nestas baboseiras, mas você irá ter uma grande decepção quando fechar os olhos e ver que tudo acabou. Céu e inferno são vividos aqui mesmo, neste mundo.
– Marcélia, pare de se perseguir. Não revolva o passado triste. As coisas ruins são como veneno: se você o manipula, um pouco dele sempre fica em você. Vivamos o presente e não as coisas ruins do passado. Entenda, minha querida, que eu a quero muito, que amo você como ninguém, que só você me faz o homem mais feliz deste mundo.
– Não acredito nem em Deus, quanto mais em você.
– Que prova quer mais de que eu a amo?
– Faz tudo isto para paz de sua própria consciência, não por mim.
Neandro baixou a guarda, um tanto atingido por algo que bem poderia ser a realidade. Tinha muita coisa acontecido em sua vida, coisas marcantes e tristes. Marcélia investiu:
– Pensa que não vejo você, principalmente nestes últimos tempos, desolado pelos cantos, olhando pela janela como quem busca alguma coisa perdida no infinito?
– Você percebeu isto, Marcélia? – perguntou Neandro, terrivelmente atingido.
– Quem não percebe?
– Pois bem, não é pelo arrependimento de ter tomado a decisão de viver com a pessoa que mais amo neste mundo, não.
– Por que seria então?
– Recorda-se daquele dia que atropelei aquela velhinha indigente?
– Lembro sim, faz uns dois anos. Mas que tem ela a ver com tanto abatimento?
– Não sei, Marcélia, não sei. O certo é que aqueles olhos cravados nos meus; aquelas palavras de frustração por ter que morrer sem ter encontrado o filho que deixara na porta de alguém; o murmúrio de lamentação por Deus não a ter ouvido em suas tão amarguradas preces…, tudo isso não me sai do pensamento. Um dia, assistindo a um filme que encenava a libertação do povo hebreu do jugo egípcio, chorei bastante ao ver a cena em que Moisés amassava barro para os tijolos que deveriam ser usados na construção da pirâmide do faraó, juntamente com seus irmãos hebreus, tidos, então, como escravos. Junto dos que estavam na labuta, havia um homem muito velho, que já não se prestava a qualquer esforço físico. Mesmo assim tinha de estar na lama, amassando o barro. O velho rogava a Deus, todos os dias, para que não o deixasse morrer sem ver o rosto do libertador de seu povo. O ancião já não suportava mais qualquer trabalho. A vida havia mesmo passado e nenhum indício existia de que o libertador tivesse sido enviado pelo Deus de Abraão. Estava ali, no meio da lama, com seus irmãos, batendo o barro para os tijolos. O velho estava cansado: já quase não pisoteava o barro imundo. De repente a chibata canta em seu lombo, exortando-o a trabalhar. Ele tenta, mais não há mais forças. O encarregado bate e bate, bate para matar. O velho cai. Um homem forte e também enlameado toma-o nos braços. O velho balbucia nos estertores da morte: “Morro triste porque Deus não ouviu minhas preces. Não queria morrer sem ver a face do libertador que Ele prometeu a nossos pais” – e tombou a cabeça nos braços de Moisés. Pois é, Marcélia, não sei por que, aquela velhinha me fez lembrar esta história. Sabe, fiquei um tanto decepcionado com meu Deus. Achei-O mais duro do que eu, naquela hora. Não sei mesmo, se fosse eu Deus, se não teria ouvido suas tantas preces.
– Por isto anda triste pelos cantos?
– Não é bem triste, mas sim, pensativo.
– Histórias para me engabelar.
– Não, eu estou sendo sincero. Afaste, de uma vez por todas, este complexo de rejeição. Eu gosto muito de você.
Marcélia deu-se instantes de curtas reflexões, voltando em seguida à sua mórbida defesa:
– Não acredito em nada, nem em ninguém, desta vida ou da outra, a não ser que me provem o contrário.
O sol descia lento e inflexível. Neandro foi à janela e ficou fitando o infinito azul e incomensurável. Quanta beleza, grandeza e mistério existiam além, numa distância temerosa aos nossos próprios pensamentos. Talvez Marcélia estivesse com a razão ao afirmar que o céu e o inferno eram vividos por nós, aqui na terra mesmo. Como era difícil acreditar, mesmo diante de tantas provas irrefutáveis da mão de Deus. “Ah!, povo de dura cerviz…” – lembrava-se agora. Como era difícil crer. Retirou-se da janela, foi ao jardim. Algo parecia tomá-lo pelos braços e levá-lo ao acaso. Vagava à toa, sem rumo, sem saber aonde estava querendo chegar. Os pensamentos iam e vinham, levavam e traziam lembranças. Sentou-se. A noite que se achegava, acabou fechando o palco com sua negra cortina. As horas passavam e passavam. A lua apareceu. O som de um atabaque buscou, no silêncio da noite, a necessidade de crer em alguma coisa.
Neandro estava ali, esperando que se desenrolasse o filme de sua vida. De repente, se viu trafegando pela rua, ao lado de uma velhota em seus andrajos, batendo o cajado, capenga. Uma dor e um sentimento forte fizeram pulsar seu coração, descompassadamente. Sua vida que se desenrolava, ali parou. Não conseguia ir além.
Toda sua existência sempre fora envolta em mistérios. Já era hora de tentar libertar-se deles. Foi então que se lembrou do último segredo, da carta que sua mãe lhe deixara nas mãos sob a promessa de só a abrir num dia muito atribulado e decisivo de sua vida. O momento era aquele. Ele a havia metido dentro de um saco plástico, juntamente com outras cartas abertas e lidas. Sabia onde se encontrava. Pensou mais um pouco. Ergueu-se, olhou ainda as estrelas que quase não cintilavam por causa do forte luar e entrou em seu escritório. Tomou o saco plástico, desatou a boca, procurou a carta. Em seguida voltou ao jardim, sob a luz debilitada de uma luminária.
A lua continuava forte. São Jorge parecia esporear seu cavalo fogoso, de pedra. Neandro abriu cuidadosamente o envelope amarelecido pelo tempo. As letras também haviam tomado uma cor alaranjada, mas ainda podiam ser decifradas. Suas mãos, trêmulas de emoção, seguraram a folha, enquanto seus olhos não tinham sossego nem método de leitura. Iam e vinham, sôfregos e afoitos, entre palavras e parágrafos.
Só quem já se viu diante de objetos estranhos e de visões fantasmagóricas podia entender os repuxos faciais e a fisionomia atoleimada e de espanto de Neandro.
CAPÍTULO 42
“Querido filho:
Hoje estamos aqui, sua mãe e eu, imaginando que não somos eternos. Entendemos também que, apesar de não devermos mentir, podemos guardar uma verdade até que chegue o tempo oportuno de ela ser dita. Por isto resolvemos escrever esta carta, este documento, esta verdade que não quero que desconheça, depois que não mais estivermos a seu lado.
Estamos certos que jamais duvidou do quanto nós o amamos. Você sempre foi tudo para nós. Para ser sincero, não sei o que seria da gente se você não tivesse aparecido em nossas vidas.
Não sei se estranhou nunca termos lhe dado um ou mais irmãos. Na verdade, ainda que quiséssemos, jamais poderíamos. Sua mãe é portadora de uma esterilidade irreversível e assim, nunca pudemos ter um filho de sangue. Mas não tem importância. Filhos e pais são denominações de amor e não de simples ato sexual. Filhos e pais se fazem no dia a dia, e não num curto lapso de tempo de paixão. O amor nasce da convivência, da compreensão e do carinho. Dar à luz uma criança, é fácil; cuidar dela, ensiná-la, desejar-lhe o bem, conviver com ela e seus problemas no quotidiano, é muito mais difícil e divino.
Foi numa madrugada bem fria, há alguns anos. Sua mãe e eu acordamos ouvindo um choro tênue e sumido no alpendre que dava entrada para a cozinha. Ficamos assustados e, muito temerosos, fomos averiguar. Sabe, sua mãe rezava muito, pedia sempre a Deus que lhe desse um filho e…. bem, por muito incrédulo que se seja, às vezes pensa-se que Deus ache por bem ouvir certas preces descabidas. O certo é que quando abrimos a porta, vimos você dentro de uma cesta de vime, todo embrulhado em panos de lã. Parecia ter nascido naquele momento e ficamos perplexos, pensando mesmo que os céus tivessem se compadecido da gente. Depois encontramos um bilhete conciso que dizia: “Sou professora e mãe solteira. O pai deste menino chama-se Ubaldo. Ele nasceu no dia 12 de julho. Cuidem bem dele, pelo amor de Deus. Edna.”
Levamos você para dentro. Iracema parecia morrer de alegria. Esquentou uma chaleira com água, deu-lhe banho, mamadeira, e depois chorou, chorou mesmo de pura alegria. Foi a melhor coisa que nos aconteceu em toda vida. Logo depois você dormiu, e nós ficamos admirando-o incansavelmente até o sol raiar plenamente. O dia parecia ter nascido só para você; tudo convergia para você; tudo era você em cada conversa, em cada plano, em cada minuto de nossas vidas.
Não sei mesmo se alguém tem amor maior para dar a um filho legítimo. Passamos a amá-lo em cada dia, em cada noite, em cada mês que passava. Fizemos o devido registro em cartório como nosso filho de sangue.
Para que tudo ficasse em sigilo, mudamos da cidade, do lugar em que nos conheciam como um casal que não podia ter filhos e evitamos sempre procurar saber quem seria Ubaldo.
Compramos uma fazenda na Serra, onde você cresceu sendo nosso filho, a criança que nos fazia feliz, a razão de termos nascido. Não podíamos mais entender a vida sem sua presença.
Esta carta está sendo escrita hoje, porque acho desonesto e injusto ocultar-lhe a verdade, num tempo em que já tiver condição de entender tudo isto. Acreditamos piamente que preferirá assim.
Não sei mesmo se chegará a lê-la. Enquanto estivermos vivos, terá seus pais. Tenho certeza que jamais duvidará que somos seus pais legítimos, por nossa dedicação e carinho. Foi Deus que o deixou em nossa porta.
No entanto, meu filho, se um dia isto lhe cair nas mãos e ficar zangado, só nos resta rogar-lhe que nos perdoe, pois, nossa intenção foi sempre protegê-lo e fazê-lo sentir-se amado e querido.
Se isto precisar ser-lhe entregue, rasgue-o logo depois de lê-lo e sepulte para sempre este segredo em seu coração. Ficaremos felizes se também nos aceitar como pais, assim como nós o quisemos como filho.
Seja sempre o menino dócil, amável e querido que vimos crescer, correndo pelos morros e cascatas e mostrando ao mundo a presença de Deus no seu sorriso de criança.
Tenho dito a Iracema que é bobagem estarmos escrevendo isto, que por certo jamais terá necessidade de ser-lhe entregue. A possibilidade é remota, porém existe. Se assim acontecer, queremos devolver você, filho querido, a quem o deixou em nossa porta, que outro não foi senão o próprio Deus, que ouviu as nossas preces e numa fria manhã acalentou nossos corações com sua presença tenra e inocente.
Ele cuidará de você, não deixará que nada de mau lhe aconteça; vai protegê-lo nas noites frias, nos momentos de desespero; vai tirá-lo do limiar dos abismos; tomar você pelos braços quando estiver enveredando por maus caminhos; armará planos mirabolantes com seu poder e bondade, para fazer de você um homem honrado e feliz. Estando com Ele, não precisará ter medo de nada, nem das coisas impossíveis aos homens. Com Ele será o homem mais poderoso e rico deste mundo. Ele nos deu; a Ele o devolvemos.
Ricardo e Iracema”
Neandro terminou de ler a carta. As mãos tremiam, as lágrimas caíam sobre as folhas. Ubaldo, seu pai; Edna, sua mãe! Soluçava, ria. A mais forte das emoções invadia-lhe a alma, soterrando-lhe o coração. Não ousava mexer-se. Mãos trêmulas, lágrimas, risos e soluços.
A lua brilhava. Lufadas de vento varriam-lhe a face. Naquele vento a fé cavalgava, estapeava-o, entrava fundo no seu ser. Balbuciou com voz incerta: “Indiscutivelmente, Deus existe.”
CAPÍTULO 43
Como estava lindo o dia! Era como se mil garçons celestiais houvessem se esmerado para uma garbosa festa ao Senhor do universo. Os pássaros pareciam mais contentes, o ar mais puro, o sol mais ameno, a aragem mais fresca, as pessoas mais amáveis. Em nada ou lugar algum se podia encontrar alguma falha na Natureza e na vida.
Neandro acordara feliz. Lamentava profundamente o destino, mas se submetia humildemente aos desígnios de Deus. Tudo o que lhe acontecera e ainda estava acontecendo, não podia, nem pela cabeça do mais ferrenho incrédulo, passar por coincidência. A mão de Deus estava por trás de tudo aquilo, de sua vida, das pessoas que o cercavam, das coisas que o rodeavam.
Diante de si não se apagava aquele olhar sofrido de uma esperança finda, o olhar daquela velhinha maltrapilha, que agora sabia, era sua mãe de sangue.
Como era estranha a vida! Ininteligível, confusa, cheia de vicissitudes, de surpresas: mistura eterna do bem e do mal, do sorriso e das lágrimas, das trampas e da sinceridade.
Da janela ficou a olhar a natureza em festa. Tudo lhe parecia tão bonito! Tanto estava distraído nestes devaneios que Marcélia teve de chamá-lo pela segunda vez. Sobressaltado, desculpou-se:
– Estava olhando o mundo lá fora, e pensando…
– Pensando bobagens – completou Marcélia, sem aquele eterno ar de desdém.
Neandro estranhou:
– Até você parece-me feliz, hoje. Sabe, o mundo lá fora cheira a festa, todo Universo parece conspirar em meu favor.
– Peça a ele para conspirar um pouco, também em meu favor.
Neandro, já acostumado ao mau-humor da companheira, fez de conta que não ouviu. E continuou:
– É, apesar de tudo o que me aconteceu, estou muito feliz hoje. Estava aqui pensando em comprar as flores mais lindas que encontrar para levá-las ao Campo Santo.
– Pensei que a tal carta fosse deixá-lo muito abatido.
– Talvez fosse assim com qualquer outra pessoa.
– E por que não a você?
– E que não posso mais duvidar da mão de Deus em minha vida.
Ao ouvir a palavra Deus, Marcélia esboçou indiferença.
– Hiiii, lá vem lengalenga!
– Não me leve a mal. Não foi minha intenção tirar o seu bom humor. Mais dia, menos dia, você irá entender tudo isto. Eu também não acreditava em nada. Ainda bem que Deus nem sempre nos dá o castigo ou a graça que merecemos. Ele faz aquilo que lhe apraz, pelo seu nome e sua glória. Somos meros tijolos em sua grande obra. Não há genocida ou santo que possa modificar seus planos. Assim foi estabelecido, assim será.
– Pago para ver – disse Marcélia, ainda fustigada pela consciência tonitruante de uma força rebelde que não se acalmava, nem desistia. Depois, contorcendo-se na cama, perguntou:
– Que constataram os exames que aquela junta médica pediu?
Neandro olhou enternecido para Marcélia. Aproximou-se tentando abraçá-la e beijá-la. Ela desviou o rosto:
– Não há a mínima esperança, não é mesmo?
– Não, quanto ao poder dos homens, não há – respondeu Neandro, apertando-lhe a mão e beijando-lhe o rosto.
– Eu sabia! – continuou ela, não sem mais um suspiro de tristeza e desesperança. A vida toda aqui, estirada nesta cama. Precisando dos outros até para fazer xixi.
– Eu estou aqui. Serei sempre suas pernas para aonde quiser caminhar.
Apesar de toda a revolta, Marcélia se conteve. Depois, engolindo seco, pediu:
– Gostaria de tomar um banho.
– Eu a levo.
Uma hora depois, Neandro se despedia e ia comprar as flores para levar à sepultura de sua mãe. Estélio já havia se alimentado e brincava ao pé da cama.
Quando ia saindo, a empregada pediu para ir até à casa de sua mãe, pois esta lhe mandara um recado por um garoto dizendo que precisava falar com ela. Neandro ia explicar que Orácio também havia saído e que não era bom deixar Estélio e Marcélia sozinhos, mas acabou se calando. Concordou.
Voltou ao quarto, explicou a Marcélia, encostou a porta para que o menino não saísse e foi comprar as flores.
A casa ficou quase deserta. Os pássaros continuavam cantando; a brisa soprava. O garoto maltrapilho que viera trazer o recado para a empregada, continuava na calçada, rente ao portão. Ao ver Neandro sair, sorriu-lhe e o seguiu até a esquina. Neandro tirou do bolso uma nota para lhe dar, mas o menino disse que não precisava.
No cemitério depositou as flores e se pôs de joelhos diante da cova simples, onde apenas uma tosca cruz de madeira, quase tombada, indicava o jazigo de sua mãe. Ele rezou:
“Mãe, por que fez isto comigo? Quanto podíamos ser felizes um ao lado do outro! Tanto tempo perdido por este mundo, debaixo deste emaranhado de coisas. Oh, mãe! Como desejava tê-la agora aqui pertinho de mim, para poder trocar seus andrajos, sua roupa esgarçada; lavar seus pés rotos pelas caminhadas; molhar sua boca ressequida pela sede… falar-lhe de amor, de minha orfandade. Como a vida é, mamãe! Por que ela faz isto com a gente? Será que nos imagina tão fortes? Será que não percebe esta carne fraca, este coração imbele a pulsar pela maior das felicidades, a de ter uma mãe que nos compreenda, que nos ofereça seu regaço nas nossas horas de desilusão e de mágoa? Estou confuso, mãe! Muito confuso. Agora estarei aqui todos os dias: a senhora não vai ficar mais sozinha pelas calçadas. Ninguém mais rirá da senhora. Aqui quero construir uma casa linda, com cruz de prata, dizeres lindos, protegidos pela docilidade do olhar de Nossa Senhora. Todo o carinho que tenho acumulado aqui dentro, vou trazê-lo aos poucos, dia a dia, aqui para a senhora. Não se esqueça de mim, mãe. Olhe lá de cima por minha família, principalmente por Marcélia.
Peça a Deus que nos proteja e perdoe. Estou aqui, confiante e esperançoso. O dia hoje está lindo, não está mãe? No céu também é assim? Há dias mais bonitos e outros menos interessantes? Acho que sim. Também Deus deve ter dias em que se compadece mais, ou menos, da humanidade. Aqui, hoje, está lindo, parece até que Deus veio visitar-nos.
Sabe, mãe, é muito bom acreditar nisto tudo. A gente parece voltar a ser criança e como criança é mais fácil entender essas coisas. Por isso eu penso que Deus, hoje, está aqui pertinho da gente.
Com a senhora aí, devem estar os meus pais adotivos. Eles foram tão bons comigo! Perderam noites, sofreram e choraram por minha causa. Eu gosto muito deles, mas é da senhora que eu não esqueço. Enquanto o mundo apregoa que mãe é a que cria, meu coração de filho nega. Para os meus pais adotivos, tenho toda minha gratidão; mas para a senhora, tenho todo amor e saudade do mundo. Isto independe de mim.
Eles que me perdoem por ser sincero. Veja só, mãe, eu que tive quatro pais, hoje vivo órfão. Mas não tem importância, pois sei que se não os tenho aqui na terra, tenho-os no céu, intercedendo por mim.
Estou com muita saudade da senhora e de papai. Sei que erraram, mas erro nenhum importa a quem é filho, a quem ama com sinceridade. Fique tranquila, mãe! A senhora me achou e nunca mais vai perder-me. Estarei sempre aqui, a seu lado. Estou indo agora. Até amanhã, mãe querida. Não esqueça de dar um abraço bem forte no meu pai.”
Neandro ergueu-se. O vento soprou mais forte. Estranho – pensou – pareço estar vendo coisas demais. Não vejo razão, mas o certo é que uma felicidade muito grande parece entrar em mim, invadir meu ser, dominar-me.
Ganhou o portão e foi saindo. Antes, porém, desviou o olhar para a cova e viu um beija-flor sugar o néctar das flores que depositara. Ele sorriu: estava vendo coisas, podia até não estar bom da cabeça. O choque poderia ter sido maior do que imaginara. Examinou-se: “Não, eu estou bem, sei que estou ótimo. Agora sou um homem que sabe de sua origem. Meu pai era um homem maravilhoso; minha mãe, uma obstinada: Ricardo e Iracema, dois anjos que Deus mandou para cuidar de mim.”
E com mil pensamentos a acompanhá-lo, foi voltando para casa. Que mais podia Deus reservar-lhe?
CAPÍTULO 44
Pela rua, em cada esquina, tudo lhe parecia sorrir. Estranha premonição esta que invadia seu ser. As pessoas passavam por ele, cumprimentavam, sorriam. Talvez não fosse o mundo que estivesse diferente, mas sim a disposição de seu espírito. A felicidade e a paz moram e vibram dentro da gente e não nas coisas que nos rodeiam. Por isso é possível ser feliz e resignado até mesmo no meio das adversidades. Provaram isto os mártires e os homens de ideal que hoje constituem verdadeiros modelos de vida para a humanidade.
Neandro trafegava devagar, deixando aquela sensação de prazer e felicidade invadir sua alma o quanto fosse possível. Não se lembrava do tempo que tal coisa acontecera a ele. Por isto abria seu coração, respirava fundo, sorria para Deus e para o mundo, deixava a alegria penetrar em toda sua alma com a impetuosidade das avalanchas.
Em casa, Marcélia continuava estirada na cama, vendo o filho andar de um lado para outro, empertigado com aquela sensação de prisão, restrito às paredes do quarto.
A empregada havia saído, Orácio e Neandro ainda não haviam retornado. Não tendo mais com que brincar, Estélio começou a mexer nas gavetas, perfumes…, em tudo o que pudesse distraí-lo naquele mundo estreito e conciso para o espírito afoito de uma criança saudável.
Marcélia acompanhava-o com os olhos. Via aquele menino cheio de vida, revirando tudo, precisando de carinho, apoio e companhia e, no entanto, ela nada podia fazer. Era uma imprestável, um cancro, um cisto humano, uma parasita da humanidade. Novamente os duendes da realidade se lhe apresentaram; novamente a angústia veio forte e indomável em sua alma.
“Aqui, a vida inteira aqui, numa cama” – pensava, deixando a dor do irreversível penetrar em seu coração, arrancando-lhe lágrimas de sentimento e revolta. “Deus, talvez Deus exista mesmo e possa fazer alguma coisa por mim” – continuava pensando. Mas logo entrava na defensiva: “Deus é criação de mentes covardes, de necessitados, de gente que não consegue ou não quer aceitar realidades adversas” – e novamente entrava numa barreira defendida pelas hostes da desesperança. O garoto continuava mexendo em tudo. Lá fora, bem devagar, Neandro ganhava a rua de sua casa. Falava consigo:
– Engraçado, esta rua! Nunca tinha observado. Tem plantas bonitas e verdes, pardais que esvoaçam e cantam…
Aproxima-se de sua casa. A empregada vinha chegando também.
– Já? – perguntou ele admirado. Sua mãe está com algum problema?
– Minha mãe nem estava em casa. Quando chegou disse-me que não havia mandado garoto algum dar-me qualquer tipo de recado.
– Estes meninos inventam cada coisa para passar o tempo! – observou Neandro, sempre sorrindo. Não parecia haver nada, naquele dia, capaz de subtrair-lhe a alegria que, misteriosamente, estava sentindo. Orácio desponta na esquina, quase correndo. Vinha ofegante. Neandro estranhou:
– Correndo da polícia?
Orácio sobressaltou-se em ofegos:
– Engraçado, estou andando com pressa e nem sei por quê. Senti apenas vontade de chegar logo.
– A hora e a fome talvez expliquem melhor.
Orácio sorriu, desabotoando a camisa e abanando-se com ela. Ultimamente parecia não haver comida para amainar-lhe a fome.
A empregada abriu o portão. Eles entraram. Neandro estacionou o carro e ainda ficou a ouvir a última música que tocava. Parecia-lhe inebriante: tudo estava bonito para ele.
Lá em cima, Estélio, querendo apanhar um objeto qualquer de um armário, pendura-se nele e tenta erguer-se. A mãe olha e ralha:
– Menino, desça daí. Você pode cair e machucar-se e estou sozinha em casa. Cuidado, filho, este armário é estreito e está com um pé danificado.
O menino virou a cabeça e começou a sorrir. Tantas vezes Marcélia o vira sorrindo, mas também ela pareceu sentir uma coisa diferente naquele sorriso. Era um sorriso puro, meigo, sem malícia: um sorriso de criança maquiado por Deus.
– Desça, já falei!
Ele meneou a cabeça para frente e forçou a subida. O armário, que era estreito, desequilibrou-se, quebrou de vez o pé danificado e veio com tudo em cima dele, prendendo todo o corpo de Estélio, deixando apenas a cabeça para fora. Marcélia quis gritar, mas o som ficou preso na garganta. O menino logo foi tomando a cor roxa, perdendo o fôlego.
O desespero parecia entrar de vez em Marcélia. Todo grito que ensaiava, morria-lhe na garganta. A criança ia ficando cada vez mais arroxeada, mais sufocada. Esmagada.
– Ajude-me, Deus! – exclamou ela e, esquecendo-se de seu estado, levantou-se da cama, ergueu o armário e retirou o filho de baixo. Sem aperceber-se de nada, foi à pia e borrifou-lhe água no rosto. O menino recobrou o fôlego e o choro veio forte e gritante.
– O menino – gritou Neandro para a empregada e Orácio. Deve ter-se machucado. Ele está sozinho com Marcélia e ela não pode fazer nada por ele.
Subiram a escada aos pulos. Chegaram juntos à porta. Neandro a abriu rapidamente. Marcélia virou-se com o filho no colo e, ainda sem perceber o que tinha acontecido, exclamou:
– O armário, o armário desabou e quase esmagou nosso filho!
Neandro, Orácio e a empregada ficaram boquiabertos, estatelados em suas posições, fulminados, sem saber o que dizer ou o que fazer.
– Meu Deus e meu Senhor! – foi a primeira exclamação que saiu da boca de Neandro, sem imaginar o plágio ao incrédulo Tomé.
– O que foi? – perguntou Marcélia, inocente.
A empregada saiu ventando do quarto, gritando histericamente:
– Milagre, milagre. Gente, aconteceu um milagre. Um milagre. Ah, meu Deus! Gente… venham ver, um milagre aconteceu aqui, agora…
Ao ouvir aqueles gritos, Marcélia deu-se conta. Olhou para o chão, para os lados, para a cama vazia: estava de pé, com o filho no colo. O menino sorria agora, um sorriso meigo, cheio de candura, um sorriso de anjo.
Neandro começou a chorar convulsivamente, um choro de fé e de alegria. Foi andando com os braços estendidos. O menino sorria, Marcélia sorria, o mundo sorria. Abraçaram-se efusivamente.
Lá fora, o garoto travesso que viera trazer o falso recado para a empregada começou a caminhar pela calçada, até eclipsar-se na distância, e nunca mais foi visto.
Não há nada que justifique a presença da tristeza e do desespero no coração das pessoas, porque quando estiverem esgotados todos os recursos humanos, ainda restará a força de alguma coisa inexplicável que alguns chamam de acaso, outros de poder cósmico da mente, outros ainda de fenômenos paranormais, mas que, de uma maneira ou de outra, sempre acabam oferecendo aos homens uma fímbria de esperança: DEUS.