APENAS RECORDAÇÕES FAMILIARES
Exercícios de adolescente
Romances e caçadas em busca do sonho de se tornar escritor

AO CLARO DA LAMPARINA
Cena 1
Lá, num cantinho da posse de Antônio e Maria, numa pequena abertura da mata – toda feita a golpes de machado, foice e facão – uma criança de quatro anos sobrevivia perigosamente, subindo e pulando sobre os troncos crestados, caçando calangos e lagartixas com estilingue, armando arapucas, sempre cheio de arranhões, hematomas, frieira, olhos e nariz vermelhos e inflamados.

Nesse tempo, a maior dificuldade de qualquer colono era queimar as derrubadas, porque chovia quase todos os dias e, mesmo árvores cortadas há muito tempo, não pegavam fogo; pelo contrário, germinavam brotos em toda a haste.

O menino nunca pensara que sua vida pudesse ser diferente. Como todo bichinho com vida, também ele buscava comida e diversão naquele ambiente hostil. Seu estômago comandava as ações, enquanto seus olhos mostravam a direção para conseguir seu intento.
Crianças para brincar, não havia, a não ser a mais de cinco quilômetros de distância: lugar em que residia um posseiro recém-chegado, pai de uma linda menina com a mesma idade que ele. Mesmo assim, para chegar lá haveria de seguir por trilhas perigosas dentro da Mata Atlântica, totalmente não aconselhável a qualquer criança desacompanhada.

Não conhecia carro, televisão, rádio…. O avanço tecnológico ainda não se tornara realidade, nem para ele, nem lá por aquelas bandas. Nunca lhe passou pela cabeça, perguntar a razão de estar ali, sozinho, naquele mundo inóspito. Nem os pais, nem ele, jamais ouviram falar de cuidados, de doenças, enfim, de tudo o que hoje é comum às crianças.

Qualquer um dos familiares, quando se machucava – depois de um ramerrão de palavrões – recorria à água com sal, bastante sumo de arnica e tempo que fosse necessário para que o ferimento sarasse, segundo a autodefesa do próprio organismo. Como lugar machucado é sempre aquele que esbarra em tudo, por algum tempo as imprecações eram ouvidas, até que, já não doendo tanto, iam sendo esquecidas. Infecções graves ainda não existiam no pequeno mundo do menino, porque ninguém infectado ainda passara por aquelas plagas para semear vírus e bactérias resistentes.

Ele foi registrado com o nome de Sinval – nome sugerido pelo tabelião da cidade mais próxima – porque seu pai compareceu para registrá-lo, sem qualquer opção ou preferência de nome. Mais tarde, quando foi matriculado na escola, corrigiram para Sinvaldo e, finalmente, para Livaldo. Na verdade, ele só foi saber que se chamava Livaldo no dia de sua matrícula, quando já contava com 10 anos. Até então – e mesmo por muitos anos de sua vida – sempre atendia pelo apelido de Alemão, ainda que fosse de origem italiana.

Cena 2
Tão logo surgiu a primeira escola e ele aprendeu a ler – sem jamais saber explicar as razões – Alemão começou, quase doentia e misteriosamente, a se interessar pelos livros. No quarto em que dormia, bem no cantinho esquerdo de sua cama, havia um amontoado de revistinhas, de folhas soltas e até de alguns livros que alguém havia jogado fora.

Quando um livro apresentava a fotografia do autor, ele ficava alucinado, fazendo conjecturas sobre aquele homem que conseguia escrever livros. Não devia ser um homem comum: talvez um anjo de Deus… ou do diabo.

Um dia, ele leu sobre um escritor que digitava suas ideias numa máquina de datilografia, e que mantinha ao lado da mesinha, dezenas de folhas de papel amassadas e jogadas ao chão. Eram capítulos ou parágrafos que, mesmo depois de prontos, não eram aprovados. Ao lado da máquina, sempre um pires cheio de bitucas e um copo de bebida alcoólica: isto não podia faltar a quem escrevesse. E tome sonhar!

Nenhuma palavra que desconhecesse o sentido podia passar em branco. Buscava o significado, lia e relia até decorar. Normalmente, dez palavras por dia eram aprendidas. Escrevendo, ele procurava sempre embutir as palavras que aprendera e, também, inserir algumas frases bonitas de livros que lera. Isto seria importante a quem lesse o que iria escrever. Afinal, ele iria ser escritor e escritor, tinha de escrever difícil, ainda que fosse plagiando.
Ansioso de nascença, logo Alemão quis imitar, mesmo não entendendo nada de livros nem de Língua Portuguesa. O importante, no entanto, era ele amassar folhas e jogá-las pelo chão e, de quando em vez, tomar um gole de café com leite. O tempo foi passando, passando…. Como era o único homem da sala de aula e o único a continuar os estudos, Alemão mudou-se com os pais para Colatina, para prosseguir seus estudos. Mas, seus pais eram pobres e ele logo procurou trabalhar, a fim de sustentar-se. O tempo coincidiu com a obrigação de servir ao exército e então, Alemão dividiu seus sonhos entre os livros, o Tiro de Guerra, o futebol e o trabalho. Claro que isto lhe roubou o natural caminho que é comum a todo jovem nessa idade: namorar.

Como as opções eram muitas, escolheu escrever como seu passatempo predileto. E, como para ele, “o que teria de ser feito, devia ser feito logo”, começou a imaginar o título de sua obra. Dezenas de sugestões a ele se ofereceram, mas acabou vingando mesmo, “Ao claro da lamparina”, porque, nesse tempo não havia luz elétrica na casa em que morava, e a noite era o horário mais propício para ele escrever. E mesmo sob as constantes reclamações de sua querida mãe – que vivia dizendo que aquilo iria afetar-lhe a visão – Alemão logo encontrou o nome para sua obra.

Sem sinopse, sem criar início, estabelecer enredo, nem prever o fim, ele começou, como se estivesse escrevendo uma novela, cujos capítulos iam se fazendo conforme o desejo de quem assistia. Não se preocupou, também, em criar personagens, nem sequer estabelecer-lhes o que representariam na obra. E jamais – talvez em boa parte do mundo – existiu alguém com tanta ansiedade para realizar logo as ideias que sua mente criava.

E, por isso, num caderno escolar – usando duas linhas em uma, para economizar papel – ele começou. Notar que, ao reproduzir os textos, tentei colocá-los sob a nova ortografia.

AO CLARO DA LAMPARINA

Dezenove horas. Um luar luzidio aplainava-se pelo céu, dando à vila um ar de esplendorosa noite. Sentados num tosco banco, membros da família Dolastos discutiam, como as mais das vezes, política. Era o mês de setembro, o antecedente às eleições federais que mostravam a concorrência entre as duas correntes partidárias, ambas entusiasmadas pelo ideal do poder e da vida fácil às custas do País. Esta era a consciência política dos dois partidos.

As parlas tinham suas explicações. Alguém, no entanto, parecia haver nascido para a consternação. Somente ele conservava-se mudo e sabia dos algozes que o torturavam, como traumas profundos de recalques desde a tenra infância. Mostrava-se insatisfeito todas as vezes que pensava em si e não cria em ninguém, a não ser Deus, e, mesmo assim, duvidava de sua preocupação para com ele.

Era um moço sisudo que até disfarçava bem sua lugubridade. Eu mesmo admirava sua constância de sorrisos
dados com tanta mortificação que só o divino poderia avaliar o mérito. Largas sobrancelhas lhe recobriam os olhos verdes, sempre semifechados de tristeza, que em nenhures eram pegos em flagrante.

Estatura mediana, magro, perspicaz e de muitos preconceitos. Se quisesse dar uma explicação ou fosse a isto forçado, não gaguejava, mas sempre conjeturava ideias mil de esbanjamento de egoísmo, que parecia exteriorizar-se nas palavras entrelaçadas de suas explicações.

Ali ele se mantinha distraído, meditabundo: ninguém faria ideia do que se passava naquela pequena cabeça de cabelos loiros.

As estrelas iam morosamente pontilhando o azul celeste e no seio sideral, parecia-lhe ver escrito, à tinta vermelha e em aramaico, aquela palavra que não sabia o que significava: destino.

Veio aos poucos dando em si, ouvindo o que falavam e notando que quase era pego em flagrante no seu pesar das horas de desolação. Correu os olhos pelas casas e foi amortecendo o olhar numa delas, modesta, mas que para ele tinha muito significado. No entanto, parecia ali ter vida: pensava ele na semelhança com uma pérola, que no ermo da vaidade, dorme sonhando com as vitrines e com os olhares admirados de uma população ávida de peixes achatados ou fosforescentes das profundezas marinhas.

Ficava claro que aquela noite não seria igual às demais. Sua cabeça parecia troar, tantas eram as ideias que lhe perpassavam pela mente.
– Por duas vezes me encontro assim – pensava ele. A primeira foi perecendo, diminuindo e hoje vejo tudo como escombros de um passado febril, cheio de imaginações e idealizações pueris. Mas, desta vez, pensava ele, não sei até onde irei. Gosto dela, ela tem tudo o que quero: beleza, simpatia, bondade…. Sim, sempre imaginei criatura semelhante para formar uma família.

– Francisco, vamos à rua?

– Ora, estava mesmo pensando em fazer algo, talvez exercitar-me um pouco mais ao violão ou, ao acordeão, mas aceito. Os instrumentos não ficarão zangados. E você, José, está indo bem com sua nova profissão de alfaiate?

– É, de vez em quando aparece alguma roupa! Hoje mesmo recebi duas calças de casimira e deverei entregá-las no próximo sábado.

– Não há de ser muita coisa, ainda faltam dois dias e as noite são grandes.

– É Francisco, as coisas estão mudando muito, ultimamente!

– Mas, José, deixemos de ambiguidade. Há muito venho notando que fala assim, misteriosamente.

– Sim, e não terei a mínima restrição em expor-lhe meus problemas. Você já deve ter ouvido dizer que estou pensando em me casar brevemente. É que agora eu encontrei a mulher que sempre quis: uma donzela branca, porque sempre achei que deveria misturar as cores para que os filhos não reclamem.

– Não diga: meus sinceros e antecipados parabéns e, sem mentiras, não fazia a mínima ideia disto. Posso saber quem é a felizarda?

– Felizarda não, Francisco, a infeliz.

– Isto não se deve dizer, você parece estar augurando uma infelicidade ainda antes de se casar?

– Não é isso, mas ela é bem pobre e eu, você conhece minha situação. Como irei sustentá-la?

– Mas, a riqueza é marco decisivo para uma vida feliz? Às vezes até coopera para a desunião e a desgraça da família, que logo se faz de importante e não tolera ver ferido seu amor-próprio. Espero que sejam ditosos neste lance que modificará suas vidas. José, desconte minha curiosidade, mas será indiscrição eu saber agora de quem se trata?

– Da filha do sr. Guilherme. Qual delas?

– A mais nova. Uma vez lhe falei que só casaria se fosse com uma mulher branca, você se lembra?

– Como seu amigo afianço-lhe de que é uma boa moça e que nunca pude saber nada de mal a respeito dela.

– Era mesmo esse o ponto em que eu queria chegar. Você sabe que ela é branca e eu um negro que só não fiquei pior porque o carvão acabou.

– Não seja preconceituoso. Você conhece o provérbio: uns gostam do verde, outros do amarelo.
– Olha, já quase atravessamos a Rua Amazonas!

– De fato, nem tinha percebido. A conversa estava muito concentrada e se não notasse, eu a atravessaria sem perceber. Veja, já estamos andando, não sei por onde, há quase dez minutos e não seria nada mal adicionarmos mais alguns minutos e irmos ao bar do Pedro tomar um refrigerante.

– Aceito a proposta, mas com a condição das despesas recaírem sobre mim. Isto não será empecilho, e mesmo pobre, poderei dispor de alguns cruzeiros, Francisco.

– Garçom, dois refrigerantes, por favor.

– Francisco, não sou atleta, nem tão pouco desportista e sinto-me distante de você, mas nesta oportunidade, vou empatar o jogo. Aquilo que me dizia de diferente, ou esquisitíssimo há poucos momentos, também venho verificando em você. É como num jogo de futebol: quem está de fora sempre observa as falhas de quem está com a bola. Como eu, também anda apaixonado?

Foi então que Francisco veio a si e percebeu que estava ultrapassando, ou melhor, relaxando sua defesa. Não queria receber esta admoestação de ninguém e sempre a havia contornado com hilaridades, ainda que forçadas. Mas José parecia espreitá-lo:

– Deve ser impressão sua, amigo. Meus momentos de reflexões são para eu refazer meus ideais, meus trabalhos diais e outros afazeres; mas isto é normal, creio sermos todos assim. Contudo, você sabe, não sou anormal e me excita ver determinadas meninas.

– Pode ser, e não quero ser tão cético a ponto de não acreditar na palavra de um amigo, mas hesito um tanto em aceitar.

– José, é a pura verdade que estou-lhe passando. E agora, voltemos. Amanhã bem cedo esperam você, os ternos, e a mim, os livros, que não são menos difíceis. A você que, além de amigo, parece muito interessado no que penso para o futuro, vou confessar: gosto muito de escrever, isto é verdade.

A noite continuava serena e convidativa, bem diversa daquelas estuantes de um verão rigoroso. Francisco entreabriu a porta e, antes de penetrar no aposento, deixou esvair um olhar na casa, por bem dizer vizinha, simples, mas, significativa para ele. Dentro dormia a causa de suas insônias.

“Onde estará ela, o que estará fazendo? Sonhando com os anjos: ainda bem! Mas se for com um diabo, meu concorrente? Não, não, a ingratidão tem também seus limites. Não irá a tanto. Eu não mereço.

Enquanto ia remoendo seus pensamentos, foi, pé ante pé introduzindo-se no quarto que ficava bem em frente à calçada e percebeu que seu mano estava acordado:

– Olá, Francisco, a estas horas?

– São apenas dez horas e trinta minutos. Mário, eu estava conversando com o José lá no bar, mas não houve nada de novidade.

– Olha, ali na mesa tem uma carta para você, enviada por alguém da capital.

– Deve ser da Normélia. Há poucos dias soube que ela iria escrever-me. Vamos abri-la e saciar nossa curiosidade. Hum! Está bem cheia. Deve haver notícias para toda a família e, se duvidar, até algumas notas graúdas.

– Não sei não, Mário. Vou lê-la em voz alta, quer ouvir?

– Que pergunta? Só não lhe pedi isto porque achava falta de educação. Mas estou curiosíssimo. Espero que contenha só boas notícias.

– Vejamos de quem é…. Prometo que se for de alguma enamorada, lerei do mesmo jeito.

– Não, Francisco, deixa o nome por último, talvez não seja conveniente eu saber de seus segredos.

– Nunca tenho segredos, Mário, principalmente com você, meu irmão. Vou cobrir o nome com o envelope e no fim, direi em tão de surpresa. Está bom, assim?

Vitória, 7 de agosto de 1960
Amigo Francisco:
É com muito pesar que recebo o encargo de passar esta lúgubre notícia, principalmente por se tratar de você, a que tenho grande admiração. Ainda não houve desengano por parte da junta médica, mas o cientifico, mesmo assim, que não se trata de banalidade ou infecção menos perigosa.

“Sua mana está internada no hospital há três dias e ultimamente não consegue nem mais falar. Suas últimas palavras versavam a respeito da família, por quem sempre demonstrou grande aflição em rever.

“Tenho medo de que talvez cheguem tarde, a não ser que a mão divina se interponha no caso. Se vierem, façam-no logo, do contrário reafirmo ser viagem perdida. Três médicos estão constantes na cabeceira dela, mas não é difícil notar neles a expressão de desânimo no salvamento de sua irmã.

“Peço-lhe muitas desculpas por tê-lo chocado com isto, mas foi de meu inteiro consentimento, apenas agir de acordo com minha consciência, informando-o do ocorrido com este ente querido de sua família.

“Não vou prolongar-me mais e dizer-lhe de novidades outras, visto estarem abaixo desta causa chocante que nos assaltou por meio deste acontecimento. Caso tudo corra bem, aqui poderemos conversar calmamente. Quero pedir-lhe conformidade com os desígnios de Deus. Você, mais que eu, reconhece a vontade do Senhor quando permite que tais fatos aconteçam. Sua sempre amiga, Normélia.”

A curiosidade perdeu todo o acatamento e nem mesmo se lembraram de concretizar a leitura da missiva. Fez-se completo silêncio. Impossível seria perceber o mínimo ruído. Ouvia-se, apenas, duas pessoas respirarem profundamente e com sofreguidão inalterável. Francisco foi o primeiro a retomar a palavra.

– Precisamos agir logo, Mário. Irei agora mesmo falar com o senhor Carlos Leite, a respeito da condução. Mamãe ainda não sabe do que está acontecendo. Você não diga nada a ela até que eu volte. Se eu conseguir a camioneta, então avisaremos a todos para sairmos ainda antes do albor. Por enquanto, deixe todos dormirem sossegados. Qualquer minuto que descansarem lhe será benéfico.
– Tudo certo, Francisco. Saia bem de leve. Tome este agasalho, a noite está muita fria e pode resfriar-se.

– Não tem perigo, Mário, estou vacinado.

A porta abriu-se paulatinamente deixando Francisco naquele ermo vazio da noite, a caminhar desorientado, a passos lépidos ao ponto 13.

– Senhor Carlos, Sr. Carlos Leite?

O sobrado silente mantinha-se imperturbável. Um vento frígido roçagava a face de Francisco, banhado em frio suor. A carta não podia trazer notícia mais triste.

– Meu Deus! Será que o sr. Carlos não….

– Quem chama?

– Heim, ah, é o Sr. Leite?

– Sou eu mesmo. Aconteceu alguma coisa grave?

– Algo imprevisível. O Sr. poderia me abrir a porta? A conversa precisará ser um pouco longa.

– Ah, sim! Desculpas por não a ter aberto antes.

– Não há de ser nada, senhor Carlos.

O trinco rangeu estridente, demonstrando o pouco uso.

– Entre, Francisco.
– Com licença.

– Afinal, o que o traz a estas horas aqui em minha casa?

– Recebi carta de Vitória, noticiando o estado gravíssimo de minha irmã Gersita e que está, por bem dizer, desenganada pelos médicos. E suas últimas palavras seriam de um desejo comum destas ocasiões: o de rever, pela última vez, os familiares. Eu poderia ter vindo aqui antes, mas cheguei em casa a poucos minutos. Foi quando me entregaram a carta.

– Compreendo perfeitamente. Veio ver condução, não é mesmo?

– Isto. Isto mesmo, sr. Leite.

– A que horas pretende sair?

– O quanto antes. Esta noite ainda, se for possível.

– Irá a família toda?

– Quanto a isto não estou certo ainda. Apenas Mário e eu sabemos do que está se passando. Irei noticiá-los agora, e ficarei sabendo quem irá ou não.

– Pode contar comigo, Francisco.

– Talvez, ao invés de irmos todos, irei apenas eu para trazê-la para casa onde poderá passar suas últimas horas de vida.

– Isto fica à sua inteira decisão.
– Sei, sei, apenas cismo que ela não suportará a viagem, mas não vejo outra solução. Se todos quiserem ir, seremos nove.

– Irei rapidamente verificar o carro e logo esteja pronto, irei à sua casa.

– Fica dito, sr. Carlos. Até logo mais.

Era difícil idealizar um quadro noturno de colorido mais triste do que este que estava sendo pintado. Quase cambaleante, Francisco retornou, encurvando-se pelos meandros das ruas retorcidas e naturais daquela vila remota, formada sem planejamento.

Até aquele momento não havia tomado nenhuma resolução e pensava consigo mesmo: falarei agora com papai? É, falarei com ele. Ele dará a última palavra sobre o assunto. Ah! Meu Deus, logo agora nos passa essa provação? Outros estão por aí, mesmo dormindo ao relento, mas, sem problemas para reconciliarem o sono novamente, se acordarem. Não sabem escrever, não têm notícia dos males que acontecem. Talvez vão saber da morte da mãe após uns dois ou mais meses. Coitados, pobres infelizes!

Mesmo quando em algures sentia-se embevecido deste nobre pensamento, ouvir uma voz fatigada a reclamar-lhe uma esmola, Francisco lembrava da caducidade da vida:

– Pelo amor de Deus, uma esmola!

Parou, meteu a mão na carteira, tirou uma nota de 20 cruzeiros e ofertou-a.

– Deus lhe pague e o faça feliz, bom jovem.

– Obrigado, senhora.

Pobre infeliz – retomava ele suas dores sentimentais – a esta hora acordada, à cata de algum dinheiro para comprar comida para seus três filhos. Eu a conheço. De fato, o reino Deus será, primeiramente, desses pobres infelizes.

“Sim, meu Deus, o reino dos céus será primeiramente desses, Jesus nos assegura esta justiça”.

Finalmente, ganhou a rua que dava acesso à sua casa e não tardou a abrir a porta deseducadamente, exatamente para provocar o barulho necessário para acordar quem estivesse dormindo.

– Quem está aí, perguntou logo dona Sara, que fora a primeira a acordar.

– Eu, mamãe, e trago notícias não muito boas. Não sei bem ainda se o caso é mesmo grave, mas Gersita está bastante adoentada, pedindo para ver a gente.

– Do que está falando?

– Deixemos de precipitação, mamãe, Gersita está, de fato, muito doente e pede para ver-nos como último desejo. Já aluguei a camioneta do sr. Carlos e pode ir acordando a todos que desejarem vê-la.

O pai de Francisco, que atônico ouvia a conversa, levantou-se ainda zonzo, e intercalou:

– Que conversas são estas, Francisco? Quem veio acordá-lo para transmitir esta notícia?

– Muitas coisas aconteceram enquanto dormia, papai. A missiva estava aqui desde cedo, mas saí com José à tarde e ficamos lá no barzinho, despreocupados, até pouco tempo. Depois disto, o sr. já deduz o que deve ter acontecido. Já aluguei a camioneta do sr. Carlos e vim acordar aqueles que desejarem vê-la.

O pai de Francisco, que atônico ia tomando consciência do que estava acontecendo, levantou-se aturdido, e ainda muito sonolento e quase repetitivo, intercalou:

– Que me diz, Francisco? Quem reteve esta maldita carta por tanto tempo?

– Muitas coisas aconteceram enquanto dormia, papai. A missiva estava aqui desde cedo, mas saí com José à tarde e ficamos lá no barzinho, despreocupados, até pouco tempo. Depois disto, o sr. já deduz o que deve ter acontecido.

– Sim, sim, estou entendendo alguma coisa. Vamos, vamos; Marta, Sérgio, Salmir, acordem e vão logo se aprontando. Por favor, não façam perguntas agora. Enquanto se arrumam ficarão sabendo de tudo.

Era indizível a balbúrdia reinante na casa de Antônio, a esta altura. Francisco caminhava exaurido, enclavinhando os dedos e alimentando ideias de mau agouro. Amava tanta aquela sua mana e nunca lhe negara encômios. Ela fazia jus à exemplar conduta. Ainda antes de concretizar estes juízos, ouviu a buzina da camioneta em frente à sua casa. Infelizmente, isto não impediu que entre “espere um pouco; só mais uns minutos ou observações atinentes”, ali ficassem por mais uns 20 minutos.

Finalmente, a viagem que nunca gostariam de tê-la feito, foi iniciada. Ninguém conversava. Nem uma observação, tão comum nos passeios da família, foi ouvida.

Nem quando o carro, tentando desviar de um cachorro do mato que utilizava a estrada para facilitar sua chegada ao galinheiro do fazendeiro, numa curva muito fechada, ameaçou descer pela pirambeira. Apenas o motorista, não esquecendo o costume italiano, vociferou um “sacramento” interjetivo, mas foi só.

Daí para frente, a viagem continuou silenciosa, ainda que houvesse mulheres dentro, que sempre pedem para o motorista dar uma paradinha para esvaziarem as bexigas. Nada.

CAP III
Domingo, 6h45min….. Os sinos repicavam alegremente convidando e animando os cristãos a glorificarem o Senhor. Francisco tinha por costume assistir, aos domingos, à primeira missa. Hoje faria o mesmo, embora o tempo chuvoso houvesse tornado o percurso bastante lamacento. Uma breve oração da manhã, pois nos dias em que ia cedo, a igreja fazia a maior parte das orações da manhã lá, comunitariamente. Puxou, pachorrentamente os sapatos que se encontravam debaixo da cama e enrolando uma grossa toalha ao pescoço, foi fazer sua higiene pessoal costumeira.

– Puxa, Francisco, como está barbudo hoje; dormiu destapado ou ficou sem dormir?

– Nem uma das duas, prima, apenas estou ainda com muito sono.

– Por que não continuou dormindo? Poderia ir à missa das 9h.
– Gosto mais das primeiras missas aos domingos. É sempre bom abastecer o carro antes de viajar.

– Hum, quanto embaraço para explicar uma coisa tão simples. Até desconfio que há alguma outra coisa que não quer dizer.

– Pense o que quiser – repreendeu Francisco, mostrando claramente que a prima estava com a razão. Creio que com minhas manias não deixarei de ser o Francisco que conhecem, filho de Antônio e Sara e que mora nesta casa.

– Por isto não deixará de ser mesmo, mas está sendo até grosseiro com esta resposta alapoada e bem dispensável.

– É bom ir cuidar do café e me deixar sossegado. Não estou para muitos pregões.

– Hum, Francisco está fuzilando, hoje! Posso afirmar que são muitos os anos que não o vejo tenso deste jeito. Logo cedo desvestiu a calça e a camisa que haviam sido passadas ainda ontem e, agora, está como uma pilha de plena carga e em curto.

Quando sua mãe Sara o chamou ao café, não mais o encontrou: havia saído para a igreja. Às 10h30min, depois de haver almoçado, convidou José para um embate de bola de pau e tendo este aceitado, partiram em direção ao campo de bocha. Francisco desabafou:

– Há certos dias na vida da gente que, francamente, seriam melhores se fossem suprimidos de nosso saldo de longevidade existencial.
– Ora, Francisco, nós todos somos assim, com altos e baixos, com alegrias e decepções.

– É, de fato, hoje é um dia de provação cruciante para mim. Infelizmente não estou sabendo reconhecer essa vicissitude. Dando-lhe uma boa surra agora, acho que vai melhorar meu astral. Deixemos agora esta conversa para depois e vamos ao confronto. Quais bolas você prefere:

– As furadas.

– Pois bem, eu ficarei com as riscadas…

– Okey, José, você ganhou a primeira.

Nisto, alguém o chama de longe:

– Francisco, Míriam está chamando você e vem bem acompanhada.

– Quem?

– Entre muitas, Suzana, a loirinha da esquina, por quem você é louco.

Por esta surpresa, Francisco não esperava. Já estava todo mundo sabendo? Sentiu um calafrio perpassar-lhe a espinha e todo azafamado, foi atender.

– O que está acontecendo mesmo, Míria?

– Bem, acho que não é nada importante. Você está jogando e eu falarei depois.

– Não, não! Nem pensar. Estava apenas passando um pouco do muito tempo que tenho disponível hoje. José veio somente para me agradar.

– Então escuta, porque vem aí uma boa nova: um convite que você não irá perder. Fale para ele, Maria.

– Trata-se de um convite para que você participe de um teatro.

– Vamos devagar. Que diabo de teatro é este e o que deverei fazer nele?

– Não estamos bem a par, mas creio que terá o papel de conciliador num bailado de ciganas, e “socorrer” Míria e Sédale ao cantarem músicas, ainda não cogitadas, pois deverão ser escolhidas pela irmã Josefa, diretora da peça.

– Bem, fiquemos no seguinte: eu irei ao próximo ensaio e conversarei com a irmã a respeito de tudo isso, certo?

– Ótimo, ótimo. Ah, tem lá também um papel de “coronel” e como é o único homem, certamente a irmã vai pedir a você que o interprete.

– Não, não, isto eu não vou aceitar. Já estou me sentindo um “bendito fruto entre as mulheres” e você sabe como isto me constrange. Um outro menino fará este papel, okey?

– Okey, okey! Não haverá problema, tenho certeza. Você não será obrigado a nada, garantiu Suzana, um tanto enrubescida, notando que Francisco sempre a tinha como “descanso de paisagem”.

– Então fiquemos assim: no próximo ensaio estarei lá e acertaremos os detalhes em tudo em que eu puder participar ou ajudar. E agora, Suzana, se me der licença, retornarei ao jogo, porque perdi a primeira e pretendo, pelo menos, empatar o jogo. Nunca aceitei perder.

E virando-se para o lugar de onde veio, Suzana, sorrindo, brincou, o que não lhe era comum:

– Se um dia você vier a gostar de mim, direi que não quero, apenas para contestar esta sua ideia fixa de não perder.

Francisco, com raiva de si mesmo, depois de amaldiçoar a timidez, voltou ao jogo, quando José já estava prestes a desistir. O ensaio seria na quarta-feira à noite e Francisco, como sempre desajeitado, compareceu:

– Boa-noite, irmã!

– Boa-noite, Francisco. Pelo que percebi, não foi fácil trazê-lo aqui hoje. E o pior é que não preciso apenas do ator Francisco, mas também, do violonista. Em suma, você é de total importância para a peça de nosso teatrinho.

– Ora, irmã, não espere muito de mim. Sou apenas um apaixonado por música e pelo violão, mas ainda não aprendi nada. Pretendo, um dia, aprender, mas já percebi que não será nada fácil, porque não vejo qualquer respingo de vocação. Há quatro meses venho estudando, ensaiando e ainda não consegui assimilar, sequer, as posições principais.

– Vai desculpando, porque este é nosso primeiro contato e, por isso, como aluna do Alzheimer, já esqueci seu nome…

– Francisco, irmã, Francisco.

– Ah, sim! Já me adiantaram que você é muito modesto e tímido, mas que é um rapaz muito inteligente.

– Não confie nesta gente, irmã.

– Bem, na verdade, eu só queria, hoje, saber se posso contar com você para nos ajudar neste projeto.

– Pode sim, irmã. Apenas me reservo o direito de faltar alguns ensaios, porque tenho compromisso assumido com o meu time de futebol. Mas, se a gente programar, isto não irá acontecer. Logo vou passar para a senhora, os compromissos dos dois próximos meses e, aí, é só a senhora não me incluir nos ensaios, ou mesmo apresentações, nesses determinados dias. Espero que compreenda e concorde.

– Plenamente, meu “nobre ator”. Sei que fará tudo o que estiver a seu alcance para nos ajudar.

– Disto a senhora não precisa duvidar. Até pedir licença ao clube para atender à senhora, eu farei. Gostaria muito de participar de seu teatrinho. “Na verdade, toda cordialidade de Francisco hasteava-se na possibilidade de estar perto de Suzana”.

– Bem, continuou a irmã: sua incumbência ou papel, na peça é a seguinte: haverá um bailado de ciganas, provavelmente com Míria, Suzana, Maria e Bety, e você, então, irá acompanhá-las ao violão. A seguir, entre as cenas, ou melhor, entre as partes do drama – que serão três – haverá cânticos, no qual também você acompanhará e, devo salientar que faço inteira questão de que Míria cante pelo menos uma das músicas. Também ela precisa vencer a inconcebível timidez que vive apregoando.

– Bem, se ela concordar, eu também concordo. Vou ter que incomodá-la com alguns ensaios.

– Quero que você me ajude nisto, porque ela sempre acha que não sabe cantar, e por isso afirma que não canta diante de plateia.

– Tentarei dissuadi-la, afirmando que só em ouvir a palavra “plateia”, também eu já começo a bambear as pernas. Mas, irei assim mesmo. Afinal, medo todo mundo tem, mas apenas os covardes não o enfrentam. A senhora vai achar graça, mas, afirmo como em confissão, que a partir de hoje já irei perder muitas horas de sono, só pensando que terei de participar do teatrinho.

A irmã sorriu bastante e pediu licença para se retirar, a fim de recolher os papéis mimeografados e distribuí-los a seu pequeno elenco.

– Esteja à vontade, irmã.

– Míria, por favor, apanhe aquela resma de papel. As folhas estão devidamente grampeadas e com os nomes de cada um.

Feito a entrega, a irmã disse:

– Agora vocês fiquem à vontade. O prédio é de vocês. Eu vou me retirar, porque os compromissos me chamam.
Francisco – lembrando mais aquela oportunidade – ficou ansioso por saber que estaria livre dos olhares espertos da irmã e, quem sabe, com a chance de dizer de sua atração por Suzana. Apesar de remotíssima, não deixava de ser mais uma oportunidade. Foi ficando por ali, olhando seus papéis e, principalmente, acompanhando cada passo de Suzana. Às vezes maldizia tanta timidez! Pior seria se, no dia em que criasse coragem e confessasse, ela aceitasse.

Os planos de Francisco eram sempre jogar na possibilidade que, ainda que por acaso, o pusesse num cantinho qualquer com Suzana, mas, ela, ainda que por coincidência, mantinha-se sempre longe dele. Sempre desajeitado, ainda que procurasse sempre pôr-se com Suzana, o encontro nunca coincidia. Se por alguma vez teve a oportunidade, sua timidez fez com que ele mesmo a desperdiçasse. Estava sempre preocupado em ocupar as mãos. Nunca aceitava a existência delas, desde que não estivessem ocupadas: preocupação própria dos tímidos. Fumar ele não fumava e sentia-se mal perto de quem fumasse. Depois de uns cinco minutos, enfim, Francisco resolveu falar:

– Míria, já escolheu a música que irá cantar? Não esqueça que sou um principiante e que precisamos ensaiar.

– É claro que irei cantar a minha preferida “Esmeralda”.

– Isto é muito bom. Esta música eu já sei acompanhar.

– E você, Suzana, o que vai cantar?

– Nada, Francisco. Infelizmente sou desafinada e seria uma lástima se tentasse.

– Quanto a isto não discuto, porque também sou horrível, desentoado, sem voz para música. Para você ter uma ideia, para acompanhar eu preciso decorar as posições. Não sei quem me pôs na cabeça que eu poderia tocar violão! Enquanto isto vou enganando por aí, dedicando-me apenas às músicas sertanejas que, por sorte, praticamente só exigem a aplicação da primeira, segunda e terceira posições, mais as passagens para a terceira. Aparecendo qualquer outra nota musical, terei de decorar. No colégio inventaram colocar-me no coral e eu deveria fazer a segunda voz. Como eram muitos os cantores, eu sempre acompanhava a voz que se sobressaía. Interessante que ninguém notava nada. E tem mais: sempre fui egoísta: só cantava pra mim.

– Hum, vejo que você hoje está expansivo de verdade, observou Bety. Sei que sempre foi mais ou menos assim, mas, hoje, está extrapolando.

– Não é bem isto, Bety, é que hoje estou maravilhado com a própria Natureza. E enquanto caminhavam, Francisco poetizou: “Pelas copas frondejantes, escapam espadas de luz que parecem penetrar nossos corações. Alguns pirilampos recruzam no ar, dando um quê de esplendoroso pisca-pisca de Natal.”

Assim foi tudo bem, e o curto percurso já se desfazia logo após alguns passos. Marilândia, nos últimos tempos, parecia exaurir-se, tal o desânimo externo de seus moradores. Parecia um marco na passagem triste da história. Fácil seria recordar as longas noites de movimento, mormente em maio, quando a população se reunia para ofertar brindes em benefício à construção da matriz. Não muito difícil seria também, reviver aquela irascível e inesquecível cena de 13 de julho.
Os sinos repicavam: era ainda o primeiro sinal e, mesmo assim, a rua já estava locupletada de fiéis que, embora adernados, rumavam para a matriz. Eram 18 horas, lembro-me muito bem. Marilândia, nesta época, tinha lá seus dissidentes de tradição, seus policiais bem exíguos de caráter, seus mandachuvas, que com o apoio de políticos inescrupulosos, faziam o que bem lhes passassem pelas cabeças. No fundo, porém, eram boas pessoas, apenas faltavam-lhes boa educação moral e religiosa.

No centro da rua podia-se ver um grupo arrogantes de homens bajuladores que, de comum acordo, apoiavam a execução que o policial havia tramado.

Francisco estava naquela multidão que seguia à igreja. caminhava curioso, cheio de dúvidas. Pelos rumores sabia-se que algo de repugnante tramava-se por detrás das rústicas ruas do vilarejo. Por coincidência, antes de penetrar na matriz, calmamente percebeu a trama. Marilândia era uma colônia italiana que herdara o catolicismo, quase por completo, de suas raízes: todos eram cristãos.

– Olá, Francisco! Que bons ventos o trazem aqui? Me diga, que confusão é essa lá no coreto?

– Não sei bem não, mas ouvi dizer que aqueles dois inimigos estão decididos a pugnarem em renhido duelo.

– É mesmo? Nem havia me dado conta.

– Pois bem, muitos saíram para ver o duelo de perto.

– E está mesmo combinado o duelo?
– Nada. Duelo é apenas o nome que estão dando para um assassinato covarde que irá acontecer. O mineiro manco será recebido de fuzil, revólver e faca, em plena tocaia, pelo soldado Luís (hoje promovido a sargento). Não bastasse, os protegidos da polícia, em número de seis, estão todos espalhados, em caso de o sargento falhar. Entre eles figura o filho do vereador, o delegado, o dono da oficina vizinha e muitos outros desclassificados, como você bem conhece.

– Não haverá um meio de impedir essa execução?

– Creio que não, amigo. Só se saíssemos a goelar pelas ruas e alarmar ainda mais a população que, a esta altura parece estar sedenta para ver o circo pegar fogo. A única solução está aí na nossa frente: o tabernáculo.

– É mesmo! E nós aqui, inertes, recompondo ortodoxias. Façamos o possível para, ao menos, descriminarmos o duelo aos olhos de Deus, repetiu Francisco, enquanto fazia sua genuflexão respeitosa para retirar-se da igreja.

– Ouviu, Francisco? Já houve quatro detonações e, no meu entender, não foram disparadas pela mesma arma. Meu Deus, a que ponto nossa vilazinha chegou!

Começava o verdadeiro tumulto. Na porta da igreja, encenava-se nova aglomeração:

– Alberto, não saia agora. Parece que hoje chegou aquele dia em que em algum lugar já se disse, que a vaca não reconhecerá mais seu bezerro. Está todo mundo desorientado, até aqueles que nem sabem o que está acontecendo. Aguardemos aqui dentro mais um pouco. Se você sair eles lhe tirarão a pele e nem saberão a razão. E dizendo isto, Francisco o forçou, empurrou mesmo para o banco de orações.

Passado o primeiro impacto, tendo abatido seu algoz, o sargento e sua gente se acalmaram. O vereador manteve-se sentado durante toda a bênção, soando aos borbotões e de olhos irrequietos. Finalmente, ora proclamado o “Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo” o povo foi se retirando, cada um abraçado a quem estivesse ao lado, querendo saber, a qualquer custo, os detalhes do bangue-bangue.

O mineiro – por sinal deficiente físico – estava executado numa tocaia, covardemente. A rua vingou-se, ficou deserta e ainda hoje grita, em altos brados, os protestos de indignação pela covardia que teve como coliseu, a terra batizada com o nome de Maria: Marilândia.

E é por isto que ainda hoje a vila está calma e tranquila. Ninguém consegue esquecer aquele triste dia do vergonhoso assassinato.

Depois deste acontecimento, às 20h30min, podia-se caminhar pelas ruas quase desertas e curtir o luar esplendoroso, a esvair-se em perenes poesias. Seria uma bela antífona querer mesclar o afável luar, à aparente indiferença da vila. Agora lá, entre as muitas noites envermelhecidas, podia-se ouvir surdos “mis” de um violão bem afinado que saía voando por orifícios em busca de ouvidos atentos.

CAP. IV
– Assim não, coronel; levante a cabeça e procure falar com naturalidade. Você parece encabulado. Vamos, erga esta cabeça com altivez.

“Murilo, seu papel é bem restrito. Você deverá apenas funcionar como hábil empregado da casa.

“Míria e este moço farão papeis de transviados, ou, em minha concepção, de “mal-educados”, visto nunca esta classe ter sido aceita por grande parte da sociedade.

“Tânia, você será Bety e protagonizará uma companheira dos trasviados com quem fará suas travessuras.

“Maria, você será a esposa do já cognominado coronel, que por suas partes terão como prole, a Suzana e o Maurício.
Estes serão os principais, salvaguardando ainda o de médico e de criada, Chiquita e outras. O nosso exímio amigo verá se consegue acompanhar as damas no bailado da cigana. Vocês poderão dar um primeiro ensaio agora, concordam”?

– É claro, responderam em coro as falsas ciganas.

E lá se foram as primeiras tentativas desentrelaçadas, as posições desencontradas e todo o mais possível na desarmonia. Francisco encontrava-se nervoso, procurando as posições adequadas para cada acorde. E, diga-se de passagem: não estava conseguindo.

– Irmã, assim de improviso tenho muita dificuldade, mas não haverá de ser nada. Eu darei conta do recado, pode ficar tranquila.

– Está muito bem, Francisco. De pleno acordo. Não estou exigindo nada por enquanto, não é?

– Bem, isto é, gaguejou Francisco, já ainda mais desajeitado e enrubescido. Disse isto apenas porque Míria me ensinará.

– Você está trabalhando em casa?

– Sim, irmã.

– E posso saber o que anda fazendo?

– Estudando! Estudando muito, esforçando-me para ver se consigo ser aprovado no vestibular para Farmácia. Ainda hoje, revolvendo as apostilas de Química, lembrei-me de Deus.
Sim, aquelas noções de valência, as leis de Lavoisier…. As reações bem estimulam o desânimo e eu, somente com o subsídio do sobrenatural consigo sobreviver.

– São muitas matérias?

– Quatro principais: Química, Filosofia, Botânica e Biologia e suas ramificações.

– Bem, o que posso fazer é prejudicá-lo, tomando-lhe o tempo de estudar.

– Isto não há de ser nada, porque as noites são grandes. Aliás, até me ajudará a esquecer o amontoado de noções que se amontoam em minha cabeça. É imponderável os quilos de paciência desperdiçados! Não sei se sou antimodernista, mas preferiria que, ainda hoje, prevalecessem os chás de arnicas e cidreiras. Ontem levei horas a fio estudando as miriápodes, quando uma simples linhazinha poderia falar sobre a lacraia, o que seria bem mais simples e fácil.

A esta altura, Francisco já quase discursava. Quando veio a si, sentiu todo o sangue vir-lhe ao rosto. Verificando que todos o escutavam boquiabertos, ouvindo verborreias e nomes elucidativos – para eles sem qualquer significado – foi amarelando, desfazendo-se em desculpas e retirando-se para o recinto contiguo, em que Suzana se encontrava. Já havia tido vários encontros com ela, e nos momentos de sossego, especulava se não havia um assunto qualquer para falar-lhe. Desta feita, perturbado com o que havia acontecido, aproximou-se misantropo e aéreo a tal ponto que parecia flutuar.

– Olá, Francisco!

– Heim! Ah, olá Suzana! Sozinha neste desvão a planejar travessuras? É, porque rezando você não estava.

– Bem, muitas coisas, você sabe: nossas cabeças sempre têm o que pensar. Pensamos para passar o tempo e para arranjar problemas. Bom mesmo se, sozinhos, aprendêssemos tudo o que os livros tentam nos enfiar na cabeça. Eu estava aqui, apática, mas agora estou curiosa por saber o que anda tomando tanto o seu tempo, pois sinto sua necessidade de descarregar sua carga de conhecimentos. Conte-me o que você tem tanto para pensar?

– Temo ser-lhe enfadonho, Suzana.

– Qual nada, pode contar e serei toda ouvidos. Gosto de coisas novas, vindas principalmente de você.

Francisco, que se mantinha impassível, começou a rir e sem dúvida, contra vontade.

– Há pouco você parecia ser um candidato político inflamado pela causa.

Novas risadas e muitas gozações. Por fim, Francisco afastou-se um pouco em direção ao jardim e ficou a fitar as flores que balouçavam serenamente, arejadas por curtos pés de vento, que arrefeciam sua face ainda enrubescida pelo esforço dos sorrisos. Lembrou-se de Cristina, personagem de Cronim em The Citatel, e pensava: não gosto de romances.

– Francisco, parece que algo está lhe faltando na vida. Sinto não poder preencher este vácuo e fazê-lo viver continuamente feliz.

– Sim, os romancistas são muito mentirosos. As histórias que acontecem, sempre com um final feliz, nunca refletem a realidade: ouvi isto de minha mãe. Deveriam não escrever romances, esses que esparzem ilusões e fatos fictícios, camuflados por imagens criadas em suas mentes ansiosas.

– Vejo que está perturbado, Francisco! Está espreitando alguma mariposa? A pouco, uma pousou sobre aquela flor e não sei se foi lá para descansar ou para beijá-la.

– Foi alimentar-se. As mariposas gostam muito do néctar das flores e por isso passeiam pelos jardins. É claro que, diante de uma flor bonita, ela não deixará de dar um beijo.

– Hum, gostaria de ser um lepidóptero noturno, só para olhar, de perto, as rosas que acho bonitas e beijá-las sofregamente.

– Quanta ambiguidade, amiga, parece mesmo que tem medo de falar o que sente. Não me leve a mal, Suzana, mas não há nada de errado em dizer o que pensa. Afinal, são simples devaneios da imaginação.

– Compreendo sim, pode ficar tranquilo. Olha, nossas colegas estão indo embora e veja que audácia: nem nos chamaram.

– Fique tranquila. Acho que posso protegê-la. Você não acha?

– Quanto a isto, eu diria que seria maravilhoso, porque nunca tivemos momentos especiais para falarmos de nós mesmos e esta seria uma boa oportunidade.
Depois das despedidas aos que restavam, Suzana e Francisco saíram bastante apressados para alcançarem a maior parte dos amigos que já iam adiantados. Como Francisco sonhara com o atraso para poder conversar com Suzana, sentiu que, por ela quase correr, indo bem à frente dele, certamente não lhe sentia qualquer afeto, aliás, parecia ter medo de ficar sozinha com ele. Logo que alcançaram o grupo, Francisco emudeceu, sentindo imensa frustração. A sorte parecia nunca lhe sorrir. Sentiu que seria apenas o amigo prestativo de sempre e com isto teria de se contentar. Às vezes ela parecia pedir para que ele se declarasse plenamente. Logo em seguida, demonstrava o contrário.

Novamente as ruas tranquilas, os velhos casebres à beira do rio Liberdade, muitas velhas lembranças. As águas do riacho serpenteavam permeio a vila e seguiam tranquilamente para o rio Doce, quando se misturariam para alcançar o mar. Os anciões que outrora cantavam velhas canções – herança das longínquas terras de aonde vieram – agora se transformavam em blocos a maldizerem a polícia e os políticos que, já nesse tempo, demonstravam interesse próprio, jamais o da comunidade. Parecia mesmo um castigo genético, porque desde a descoberta, nossos políticos eram corruptos.

Era proibido qualquer barulho, desde que o sol deixasse de brilhar. Nada difícil ouvir, clandestinamente, queixas dos antigos moradores contra essas censuras que se avultavam dia a dia. Desta vez – eram quase 21h30min – quando os ensaiadores chegaram, cada um tomando a direção de sua casa. Mário mantinha-se de pé defronte ao posto Esso, a tagarelar futebol, caçada e política. Francisco, então, descolou a língua e pediu licença para retirar-se e saiu, indo encontrar-se com o irmão.
– Que tal, Mário, como vão as novidades? Ah, domingo haverá jogo aqui no nosso campo?

– Não, lá na Barra do Triunfo, a velha terra do Almir.

– Você irá?

– Não sei, Mário. Ando muito pra baixo, mas se as coisas mudarem, irei. Pretendo conhecer aquele lugar.

– Dizem que é muito animado. Ah, sim, é mesmo, ainda que a alegria seja mantida graças aos dez alambiques de cachaça que há por lá. A alegria, agora, já faz parte do povo, que parece já ter no sangue, 50% de álcool.

– Tomara que a alegria de viver que demonstram por lá, chegue também até aqui… e fique para sempre…, mas, sem cachaça. Que seja, ao menos, vinho.

– Na verdade, a falta de alegria por aqui restringe-se mais às tantas proibições que nos são impostas pelo sargento. Uma comunidade italiana, sem jogo de bocha, moretinas e um pouco de vinho para goelarem as cantigas da saudosa península, nunca será alegre.

– Vamos, mas não sem antes um pãozinho com mel e refrigerante, lá no barzinho…

– E já que temos um tempinho para jogar conversa fora, você soube do ofício que chegou do Itaquari da capital, para o dia 17 de setembro, data festiva do clube? Sei que o ofício chegou, mas não sei ainda qual foi a decisão da diretoria. Provavelmente, farão como sempre: não aceitarão.

Observação:

Seguiram-se muitos e longos capítulos, porque para um escritor, não podia faltar assunto. O livro não podia ser um “manaquim”, como diz nosso humorista Chico Anísio, referindo-se a algumas páginas encadernadas. A maioria dos livros famosos eram grossos e Francisco, escondidinho, pensava ser um deles. Morria de medo que outros soubessem, mas, em sua cama, agarrado ao travesseiro, entregava-se à ilusão.

Todo enredo foi usado para preparar a história da aceitação de Suzana, que amava Francisco, mas era tão tímida quanto ele.

Veja, a seguir, parte dos últimos capítulos que narram o dia em que toda timidez se desfez e que ambos se entregaram ao amor, formando uma família.

Reforço a lembrança de que eu era um rapaz com lá seus 19 anos e estava escrevendo, digamos, o meu primeiro ensaio no mundo da Literatura. Também não pedi a ninguém para corrigir, nem sequer oferecer ideias para melhorar. Está aqui como escrevi naquele tempo, há mais de 60 anos.

CAP V
– Até que enfim, heim Mário! Os dirigentes aceitaram a proposta. De fato, está tudo pronto e amanhã estaremos na capital. O pior é que estou mal a três dias e tenho quase absoluta certeza de que isto não passará tão logo. Mas afianço-lhe que irei de qualquer maneira.

– Mesmo Deus não querendo?

– Ora esta! Ele não intervirá. Até os humanos respeitam o direito de ir e vir? Imagina Ele, com esses tantos filhos, cada um querendo uma coisa diferente do outro.

– Já compreendi, não precisa começar o sermão.

– Obrigado, assim não precisarei afiar a língua. Mário, vamos a uma partida de bola de pau ali no Olindo?
– Vamos, mas só apostado.

– Quanto?

– Dois torrões.

– Combinado. Iiii, olha lá quem está vindo. Aposto que virá conversar a respeito do teatro, quer ver? Ultimamente só sou chamado para servir.

– Francisco, faz favor. O que está havendo que você não mais apareceu?

– Muitas coisas! Nem imagina quantas…
.
– Hum, disfarçou bem, mas agora vamos ao assunto: você aceitou o encargo de violonista, não foi?

– Foi sim, mas….

– Acalme-se. Viemos aqui para darmos o primeiro ensaio. Precisamos ver como fica. Não podemos deixar tudo para a última hora.

Francisco que havia dado pela presença de Suzana, nem sequer lembrou-se mais de Mário e, deixando-o estupefato, de bolas na mão, saiu em companhia das pequenas.

– Êi, Francisco, goelou Mário, paga os meus torrões, seu malandro. Afinal, você iria perder mesmo!

– Ora, deixa disto Mário, logo eu desocupe virei aqui dar-lhe uma surra. Pode até, para adiantar, ir comprando os torrões.

– Com 700 diabos, cara, você vai me pagar esta sacanagem!

Rindo, Francisco ganhou o portão que dava acesso à sua residência. Depois de haverem experimentado bastante e de estar com os dedos doendo, Francisco teve uma excelente ideia, ou melhor, uma maneira de conversar com Suzana. Passou-lhe o violão e pediu para que ela tocasse, porque queria ouvi-la.

– Não me farei de rogada, Francisco, passe-me cá o violão, Maria. E, rindo-se a valer, correu os dedos aleatoriamente sobre as cordas do instrumento, devolvendo-o logo a seguir.

– Olha, Francisco, falando sério, eu tentarei acordeom neste curto espaço de tempo, pois meu papel exige. Terminando nossas apresentações teatrais, juro, nunca mais porei as mãos em qualquer instrumento. Não nasci para isso.

– Escuta, Suzana, violão é bem mais fácil. Você irá aprender, vai ver.

– É, mas não tenho nenhum e, sem exercício, a gente não aprende.

– Está bem, está bem! Aqui está, pode levá-lo. Numa alegria incontida, Suzana aceitou e Francisco marcou logo o primeiro encontro para averiguação da aprendizagem, ou seja, logo à tarde. Suzana, a quem, pelo desenrolar dos acontecimentos, já caía bem o ditado da “fome com a vontade de comer” aceitou sem qualquer objeção. Francisco continuou mais um pouco com Maria, Bety e Míria, divertindo-se com piadas próprias da mocidade. Agora teria mais oportunidade de dedicar-se ao instrumento, mas o que mais o animava não era bem isto e, sim, a certeza que teria sempre a oportunidade de ter Suzana ao alcance de suas mãos. Conquistá-la dependeria, então, apenas dele.

Mais tarde, estando sozinho, revirou os seus livros e retirou de lá uma porção deles e começou a folheá-los. Era véspera de feriado e por isto mesmo, na vila – cujo costume era deixar os trabalhos mais cedo, a fim de barbear-se, tomar banho e trocar ideias com os amigos, Francisco sentia-se muito à vontade. Lembrando-se de tudo isto, resolveu ler um livro de Química, onde teria que esquadrinhar a teoria moderna de ácidos e bases. Logo jogou-o ao lado. Apesar de contar com 19 anos, com toda a alacridade de justo orgulho de ser, um dia, alguma coisa na vida, Francisco resolveu ler Bronchain. Procurou lá o dia 6 de setembro e mirou o subtítulo, Malícia do pecado venial.

Começou a meditar, a pensar na vida. Desta feita ela tinha outro colorido. Não versava sobre atos inúteis. Pensou muito, olhou para si mesmo, para o céu azulado, sentiu vontade de chorar. Desanimado dos estudos, sentiu-se angustiado, mourejante e, de repente, viu-se caminhando como um urso enjaulado, de um lado para o outro sem parar e, sempre concluindo: sou um fracassado, não chegarei, como o urso, a lugar algum. Descontente, Francisco passou a se considerar dependente, um escravo, um homem sem personalidade. Saiu pela porta, sem destino e começou a caminhar sem olhar a direção, quando:

– Francisco, Francisco? Puxa, tudo isto é orgulho, ou surdez e cegueira?

– Oh, é você? Bem, vai desculpando aí minha distração. Como iria imaginar que você estivesse aqui?

– Três dias de férias, mas já estão terminando e não posso mais perder aulas.

– Ué, você anda perdendo aulas?

– Você é espirituoso, mas anda concluindo errado. É que estive doente e precisei, de fato perder algumas. Agora terei de recuperar.

– E como conseguiu a licença?

– Muito simples, inventei lá uma porção de mentiras e pronto, aqui estou.

– Achou tão importante assim esses dias de folga?

– Para mim, sempre são. Vou lhe contar: não existe trabalho mais árduo para mim, do que estudar e nada mais agradável do que reencontrar minha família e meus amigos, entre os quais, você é o principal.

– Obrigado, Normélia, mas confesso que estava aguardando o dia de amanhã, só para vê-la.

– Ah, sim, fiquei triste em saber que vocês irão para lá amanhã e não poderei estar presente. Contudo, espero que sejam muito felizes por lá.

– Depois de amanhã estaremos de volta. Normélia, sinto muito, mas você poderá me dar licença?
– Toda, Francisco. Apenas uma pequena observação: estou achando você abatido, parecendo desnorteado, sei lá, parece-me estranho. Está acontecendo alguma coisa que eu não saiba ou não possa saber?

– Está sim, mas não contarei nada agora. Contudo, não faltará oportunidade.

Normélia era a filha de um pobre camponês, antigo morador da vila, que vivia feliz num dos recantos do lugar. Tinha, felizmente, seu lar próprio e dois filhos trabalhadores e honrados, que o mantinham, pois era meio paralítico e conversava com dificuldade. Era bochechudo, bastante gordo, mas de uma cordialidade a toda prova. Não havia quem não perdesse muito tempo ao vê-lo tagarelar sobre qualquer assunto. Dificilmente deixava outrem falar na roda em que se encontrasse. Francisco tinha por ele grande admiração; sempre foi bom amigo e nunca – excetuando-se uma vez – sentiu vergonha de ser seu amigo. É claro que nunca se esqueceu de uma bofetada que ele lhe deu durante uma brincadeira. Para Francisco, a brincadeira naquele dia perdera a definição. Enfim, estava brincando e teve que ruminar suas mágoas, apesar de tremer de raiva e vontade de reagir, mas acabou apenas com mais esse recalque. Mas, já havia passado e raramente Francisco se lembrava do ocorrido. Esforçava-se para não reviver aquele momento, mas se a lembrança lhe ocorria, não conseguia sufocar a vontade de se vingar.

Às 17h30min Francisco apareceu para o jantar e quase nada comeu. Parecia um proscrito, tal sua consternação. Dona Sara, apesar de nunca revelar nada, nunca perdera o mal costume de vasculhar as coisas do filho e procurava, inutilmente, justificar seu péssimo costume. Debalde revistava
os bolsos de suas calças, sua maleta, relia suas cartas, enfim, nada escapava de sua bisbilhotagem. Francisco não ligava, mesmo porque nada mantinha que necessitasse sigilo.

Agora, estava chateado, porque, mais uma vez, Suzana não comparecera conforme havia combinado. Para ele que esperava ansioso, não deixou de ser um golpe dolorido. Quando, atrasada ela chegou, notando a cara de Francisco, explicou que, infelizmente não havia cumprido o combinado, porque seus pais exigiram que ela fosse à reza. Desculpou-se e foram ao violão. Francisco sabia pouco de música, mas o bastante para superar Suzana, que exatamente não sabia nada. Mas isto não fazia diferença, porque o que ele queria mesmo era conquistar o amor de Suzana, que como lebre espantada, esquivava-se de toda armadilha. Pior foi quando ao se despedir para voltar, ela não aceitou a companhia dele que aguardava aquela oportunidade para falar de sua intenção. Com seus amigos, falava sempre sobre futebol, caçadas e livros, porque, para ele, o mundo não teria sentido se não houvesse essas três coisas em sua vida. Nesse tempo, seu irmão fazia medicina no Rio de Janeiro e ele, como última tentativa de vasculhar a vocação, deu um jeito de retornar à possibilidade de se tornar sacerdote secular, indo para o Seminário Maior do Calafate, em Belo-Horizonte – MG.

Para falar sobre este acontecimento, levei seis páginas com diálogos e especulações, o que vale a explicação abaixo:

Bem, o capítulo é extenso e, pelo menos por enquanto, continuará no caderno. Serviu-me, ao menos, para convencer-me de que assunto nunca me faltaria para desenvolver qualquer tema. Em “AO CLARO DA LAMPARINA” por exemplo, eu escrevi seis páginas para falar sobre as tentativas de Francisco para conquistar Suzana que, apesar de gostar dele, nunca facilitava as coisas.

É que, nesses longos exercícios em busca de desenvoltura para um dia realizar meu sonho de me tornar escritor, eu seguia o roteiro de minha vida, dos 10 aos 19 anos.

Não tinha noção ainda das regras primárias para se escrever um livro. Por isso, como já foi dito no início, eu traduzia o pensamento de qualquer personagem, ainda que fosse analfabeto, com o pouco de conhecimento literário e ortográfico que eu possuía.

Nesses primeiros exercícios, indígenas, garis, professores, enfim todo personagem criado falava da maneira como eu falaria, caso estivesse no lugar de cada um deles.

Somente mais tarde, depois de ler bons livros de renomados escritores é que fui tomando consciência de que, cada personagem deveria se expressar conforme seu conhecimento e cultura.

Acho que melhorei bastante, mas não o necessário para, em vida, ser alguém no mundo literário. De qualquer forma estabeleci um meio de ser lembrado por algumas décadas, porque não será fácil destruir tantas asneiras que já disseminei pelas searas da Literatura.

Vamos aos últimos capítulos:

XII
Francisco voltava do café mais satisfeito e completamente alegre, apesar de não saber de onde emanava toda aquela satisfação. Estava risonho e, mesmo sem entender, não procurou subtrair a boa disposição. Sentou-se à mesinha, terminou a xícara de café e desceu ao banheiro para um banho reparador. Ia a passos lerdos pela escadaria, solfejando em bocca chiusa uma velha cançoneta que ele próprio cognominara de “Nostalgia”. Lembrou-se, então, de um dos dias de ensaio do teatrinho, em que Suzana praticamente obrigou-o a denominar a música que cantava de boca fechada. Foram curtos aqueles meses, pensava ele. Ele estava criando coragem e até já pensava em dizer à Suzana, sobre sua paixão por ela.

Subiu novamente as escadarias com a toalha enrolada ao pescoço, o cabelo alvoroçado, totalmente em desalinho. Como que por intuição, parou um pouco na porta do quarto, fitou-a, esquadrinhou-a de alto a baixo, depois resolveu entrar. Colou o dedo na chave, apertou-a sem precipitação e logo depois a escancarou, entrando despercebido. Colocou a saboneteira sobre a mesa, deu um leve soco na janela que oscilava ao vento e quando se virou para estender a toalha, deu de cara com uma senhorita, simplesmente trajada, com blusa branca e saia verde.

Sua respiração pareceu abandoná-lo e seu coração saltar do peito. Os lábios da moça estamparam-se num sorriso encantador e seus cabelos brincavam ao vento. Francisco permanecia petrificado e mal continha as lágrimas que brotavam à revelia. Por fim, deixou escapar um sopro de aflição:

– Suzana, querida!

A resposta não veio com menos emoção:

– Francisco, querido, Deus quis que você continuasse vivo.

– Sim, Suzana, somente Deus poderia ter me livrado da morte. Serei eternamente agradecido aos céus. De tudo, somente a triste lembrança de ser jogado ao relento e praticamente sem alimentação. Mas resisti e aqui estou, porque pedi a Deus que este momento acontecesse.

– Concordo plenamente, Francisco. Deve ter sofrido muito, porque é inegável o abatimento físico em que se encontra.

– É, percebo mesmo que os tantos dias que passei sequestrado, roubaram, temporariamente, o pouco de esbeltez que existia em mim. Na verdade, nunca fui forte, porém, nem esquelético como agora. Você também está me parecendo debilitada. Por acaso esteve, ou está adoentada?

– Não, eu não estive doente, mas confesso que sofri muito enquanto esteve desaparecido. A bem da verdade, comia para não morrer de fome.

– Mas, me diga: como me descobriu aqui? Para ser sincero, não queria que me encontrasse neste deplorável estado. Queria adquirir mais alguns quilos, arrumar os cabelos, vestir-me melhor para depois vê-la, mas você veio assim, digamos, inesperadamente.

E aí Francisco correu o olhar sobre si, enquanto Suzana sorria contente:

– Prefiro você assim; fica mais autêntico e bonito. Eu sempre gostei de ver você despenteado, usando aquela camisa remendada e corada, lembra-se?

– Sim, Suzana, como poderia esquecer? Aqueles dias serão sempre presentes em mim, porque foi naquele tempo que mais amei você na minha vida. Apesar de meu estado, apesar da emoção que estou vivendo, agora encorajo-me a lhe perguntar: Suzana, você gosta de mim? Você me ama?

Repentinamente, Suzana transformou-se. Corou, gaguejou, mas depois falou:

– Sempre soube que gostava de mim, Francisco! Pena que você nunca tenha percebido, nunca encontrou coragem para me falar sobre isso. Tantas noites perdi pensando em você, acariciando o travesseiro, amando o cobertor como se fosse você. Lembra quando quis aprender violão? Pois é, muitas coisas eu aprendia logo, mas sempre me fiz de burra para que você não dissesse que eu já estava pronta.

– Não fale assim, Suzana. Nem sei como pôde chegar a essa conclusão. Nunca ninguém amou tanto uma pessoa, como eu a você. Juro que, para reviver este momento que agora estamos vivendo, eu aceitaria ficar mais cinco anos sob as ordens dos sequestradores.

– O meu, também.

Vamos ao último capítulo

XXIX
Sentindo-se melhor com os dias de férias que tivera, Francisco parecia mais alentado para enfrentar o trabalho. Seu pessimismo – se assim se pudesse classificar sua maneira de ver as coisas – podia, afinal, lançá-lo de vez num outro patamar de fracasso. Seria, sem dúvida, a mais espezinhante das desilusões de que fora alvo nos 40 anos de vida. Mas teria ainda força para suportar a derrocada de suas ideias, embora sentisse calafrio a lhe correr nas veias, quando, mesmo de leve, entregava-se a esses pensamentos.

Desceu para o jantar: Suzana esperava-o com a mesma dedicação dos 15 anos de convivência. Pareciam cada vez mais jovens, cada vez mais compreensivos, reconhecendo sempre os defeitos como parte integrante do ser humano.

– Frans, objetou Suzana, observando que estava um tanto pensativo: você me parece com novos planos, ou novos problemas, não saberia definir.

– Meus escritos, Suzana. Estou pensando em me arriscar, mas receio o fracasso. O que você acha, minha querida?

– Não posso augurar-lhe fracasso e nem profetizar sucesso, apenas lhe asseguro que, para saber, você terá de arriscar.

– Acho que irei arriscar. O pior já está feito. Se não der em nada, perderei pouco, ficarei apenas com a frustração. Aquele dinheiro extra que me oferece, parece mesmo ter chegado como estímulo a me arriscar. Mas, não quero me precipitar. Ontem falei com aquele corretor e ele me disse que é bem possível vender bem a sua casa. Terei de capitalizar nosso dinheirinho, mas isto tenderá a valorizar e não comprometerá nossos futuros planos. Por este ano, ficarei no Nossa Senhora do Brasil. Darei algumas aulas e arrecadarei alguma coisa para ajudar.

– Não tenho nada a objetar, Frans. Acho muito pior não tentar. Você vive mudando de ideia e eu já estou acostumada. Ainda desta vez, vamos em frente. Sentirei sua estabilização até mesmo com certa indiferença, brincou Suzana, enquanto enlaçava-o num abraço afetuoso.

Os dias foram passando, lentos e calmos, até que num deles, Francisco se viu numa grande sala de aula, onde 45 alunos aguardavam ansiosos, o que aquele jovem teria para passar-lhes. Mas, Francisco, muito inseguro, restringiu-se a dizer-lhes que esperava contar com a amizade e a compreensão de todos; que estaria sempre ao lado deles, principalmente dos que ali estavam para realizar seus ideais de vida. Lembrou-lhes que nada se consegue sem sacrifícios, mas que, aos esforçados, com certeza, o futuro sorriria.
– A realidade da vida, caros jovens, é bem diferente daquela com que sonhamos. A vida é um lampejo: hoje engatinhamos, amanhã corremos atrás de uma bola, depois de amanhã já não temos tempo para nada: família, filhos e, doenças, que não apearão enquanto não ouvirem o réquiem. Portanto, vocês agora estão na melhor e mais complicada das fases, não se esqueçam. Quem mais sacrificar esta parte, mais sucesso alcançará na seguinte. No entanto, nem eu sei se vale a pena! Teremos um ano duro, porque não abrirei mão de cumprir minhas obrigações, preparando-os para o próximo ano. Apesar de sentir o sentido antipedagógico do que vou dizer, não deixarei de fazê-lo: não sou conhecedor profundo da matéria que lecionarei a vocês, mas prometo estudar muito mais do que toda a classe junta, para oferecer-lhes o melhor. Por hoje, fiquemos por aqui. Vim apenas conhecê-los. Fiquem à vontade.

– Professor, interferiu um rapazola avermelhado, provavelmente de origem italiana: o sr. poderia me informar, de antemão, qual o roteiro do programa que tenciona ensinar para este ano?

Em seus olhos lia-se aquela mesma preocupação de quem quer vencer a vida com o brio inextinguível da competência. Francisco fitou-o de alto a baixo. Não era de estatura alta, e seu corpo parecia maltratado. Por fim, Francisco sentiu necessidade de desembuchar.

– Sinto sua pergunta precipitada, meu caro aluno, embora reconheça que não foi feita em má ocasião. Para lhe dar um esboço completo de meus planos de aula, levaria muito tempo. Espero que a palavra “roteiro do possível” venha dizer-lhe tudo. Não quererei ir do início ao fim do livro, nem tão pouco o seguir religiosamente. Estudaremos com calma, sem ir adiante abandonando dúvidas. Não exigirei qualquer esforço sobre-humano, podem ficar tranquilos. Espero que o tempo os ensine que do esforço e trabalho desse tempo dependerá o sucesso futuro. A quem aprender e bem se formar, nunca faltará vaga nem emprego. Aconselho-os a, digamos, excluir alguns anos da vida de vocês, a troco de um futuro feliz. Sinceramente, eu acho que valerá a pena.

Enquanto Francisco achava que estava comovendo seus alunos, uma verdadeira e estranha ingratidão dominava muitos da classe. Jamais ele suspeitaria de tal complô. Voltou iludido para seu novo lar, com o coração aberto, transbordando de alegria. Suzana esperava-o curiosa, na janela lateral dos fundos:

– Pelo que me parece, tudo correu muito bem, não?

– Sim, Suzana, a vida parece sorrir-me. Tudo foi muito bem. Imagina o diretor oferecendo-me um local reservado para preparar minhas aulas. Um cômodo bem mobiliado, para meus trabalhos escolares. Ali poderei passar os recreios mais longos, ou mesmo possíveis aulas vagas.

Mas, como traição é sempre um mal que em geral apanha desprevenida a vítima, ela pegou Francisco de surpresa. A cada dia que passava, maior força cativava-o ao abandono e à vida rotineira da consternação. Ainda suportava as avalanchas de decepção, até que, um dia, sentiu-se obrigado a desabafar. Sentado em frente a um grupo de alunos, ele tentava, a todo custo, incutir-lhes algumas noções filosóficas, como que um aparte concedido a um grupo de curiosos. Desenvolvia com certo desembaraço, noções que recebera em Belo-Horizonte, sem notar que a falta de compreensão dos alunos o lançava ao ridículo. Quando se apercebeu disto, já uma humilhante supressão de risos ameaçava explodir. Isto poderia responder-se com dose de humildade, mas alguém deixava, em dado momento, escapar algo que o ferira no íntimo do ser e não havia lá a decente convenção de ser exposto ou de ficar aqui escrito. A degeneração alcançara o extremo para a expressão. Francisco solicitou a expulsão do prevaricador e, um mês depois, num abaixo assinado, solicitava, a todo custo, a rescisão do contrato firmado com o colégio. Sentiu necessidade de vingança e com menosprezo absoluto, reclamou objetivamente, seus direitos, permanecendo no emprego, até o fim do ano letivo.

…………………………………………………………………………………….

Fora uma tarde negra, aquela em que precisou dizer a Suzana, que nove missivas estavam prontas para serem enviadas, dispensando todos os clientes. Suzana não se cansava de fitá-lo com piedade e já não conseguia encará-lo de frente. Francisco insistiu:

– Suzana, esta é a última tentativa. Se eu fracassar, só me resta me lançar num precipício.

– Céus! Exclamou Suzana estarrecida: não diga mais esta tolice, querido, nem por brincadeira. Assim é que afirma que basta eu para você? Com que direito procura assenhorear-se do dom mais precioso que o Criador lhe deu, querido?

– Desculpa-me Suzana, se tanto a ofendi, mas isto é uma maneira especial de se dar ênfase ao desespero. Acabo me desmoralizando, se eu continuar desta maneira. Será, sem dúvida, a última tentativa e que Deus se compadeça de nós, Suzana. Na quinta-feira voltaremos para o nosso lar, lá em Marilândia. Lá, lançarei um olhar retrospectivo de minha vida e tentarei, como dizem, o plano B.

– Não se martirize tanto, querido. A maioria das pessoas são assim: um dia estão aqui, outro acolá; trabalham para fulano, depois para sicrano, ou seja, tem dificuldade em ajustar-se à vocação. Você nunca fracassou, nem na advocacia. Lembra-se de seus dias de cartório, no gabinete, na farmácia, no colégio, enfim, pelo vasto calendário de suas profissões já desempenhadas? Nunca saiu extremamente decepcionado, embora alguns dissabores nunca lhe tenham faltado. O dia em que realmente você amar alguma coisa de verdade, enquadrar-se numa profissão que realmente lhe foi estabelecida por vocação, você irá conseguir se realizar.

– Você bem sabe, sempre foi meu desejo embrenhar-me na Literatura, ou melhor, escrever romances, mas percebo que é muito difícil parir algo de valor. Meus filhotes são sempre tenros e perrengues.

– Nisto não vejo problema algum, Frans. Note que 90% dos grandes escritores só conseguiram fama depois de mortos ou, pelo menos, depois da idade avançada. Todos os escritores são assim, como cogumelos: há milhares de espécies, mas são poucos os comestíveis. Portanto, Frans, você tem de jogar, porque nunca vi ninguém ganhar nada sem jogar. Imagine quantos médicos fazendeiros; quantos padres professores; quantos camponeses poetas; quantos candangos dentistas por este mundo afora, porque não basta apenas a vontade, é preciso, também, o aval de Deus. Quando Deus quer, é apenas uma questão de tempo. Portanto, tenha fé, meu querido.

Suzana estava entusiasmada com suas palavras, quando o telefone tocou e ela mesma foi atender. É para você, Francisco, um tal de Dionísio.

Como quem leva uma semana para decorar, o Sr. Dionísio principiou o pedido com serena desenvoltura.

– Bom-dia, Francisco! Quem fala daqui é o Dionísio Rosa, lembra-se de mim?

– Sim, sim. Estou lembrando. Com anda o senhor?

– Você deve saber que meu filho se ordenou em São Paulo e logo mais retornará à Marilândia. Indo direto ao assunto, queria lhe pedir para escrever algumas palavras de saudação para ele.

Depois de pensar um pouco, de verificar as dificuldades, Francisco falou:

– Não haverá outro mais competente para fazer o que me pede?

– Não sei se há, Francisco, mas todos que consultei me afirmaram que você é o melhor e mais confiável.

– Se é assim, pode contar comigo e com as palavras da saudação.

– Pois bem, agora gostaria que você e a Suzana viessem almoçar aqui conosco um dia desses, não neste domingo, porque estou em São Paulo, a fim de buscar, por assim dizer, meu filho sacerdote.

– Neste caso, um feliz retorno. Suzana, goelou Francisco, ainda com o fone nas mãos, amanhã seguiremos para Marilândia. Um pedido do Sr. Dionísio, obriga-nos a isto.

Suzana respondeu com um nuto afirmativo e uma frase de intenso eufemismo, que quase chegava a humilhar o tom imperioso de Francisco. A calma, a paciência e a generosidade sabem subjugar o orgulho e o egoísmo com facilidade indescritível. Só o coração que isto sente pode dizer. Quantas vezes Francisco gritava em altos protestos contra a saída de Suzana à casa de uma amiga e depois de vê-la cabisbaixa e conformada, reconhecia-se sobre o peso da imaginação de Montaigne, a revidar seus próprios golpes com amenas frases de assentimento.

Quinta-feira, 16 horas. A praça da matriz estava superlotada e o zunzum frenético parecia retumbar-se. A cátedra de recepção permanecia incólume e o povo comprimia-se logo abaixo. Por fim, um vulto alto e inteligente apareceu pelos fundos, sendo recebido por uma salva de palmas. Marilândia tinha a honra e a devolução de um de seus filhos, considerado, por ser o primeiro, um herói. Francisco preparou-se para falar. Empurrou o colarinho mais para cima, afastou o canto do paletó e, simulando desembaraço, subiu mais calmamente, ao simples púlpito da campal. Fitou por alguns segundo as bocas incansáveis dos tagarelas e afinou ainda mais os ouvidos para cientificar-se de que o silêncio era completo. Só então, com o coração nas mãos, e as pernas tremendo de nervosismo, fez as referências protocolares:

– Quase coercitiva é esta tarefa a mim confiada, esta homenagem que seus pais esperam de mim, venerável sacerdote. É-me impossível a eloquência de Vieira para uma boa entronização, a fim de fazer-vos compreender melhor, as emoções que seus pais, parentes e amigos estão sentindo. Sois o primeiro padre, o primeiro filho e amigo capaz de conseguir de Deus, as graças das quais não poderemos viver sem elas. Vós sois o maior tesouro desta terra. Muito santos e anjos dos céus, neste momento, vos invejam e dariam tudo para usufruírem dos privilégios singulares com que fostes ungido. Hoje será conhecido como o dia em que resgatastes, com o preço de 13 anos de luta e mortificação, o prêmio de uma vocação sublime: o cargo de ministro da Igreja Católica: aquele que pode perdoar pecados, ministrar a comunhão, e assinar o documento sacramental da Unção dos Enfermos, que nos garantirá maior possibilidade da felicidade eterna. Indubitavelmente não posso esquecer os esforços desmedidos de vossos pais e de toda vossa família, desses que também coadjuvaram em vossa boa formação, na luta cotidiana, nos momentos difíceis em que precisáveis de alento para ultrapassar as provações e dificuldades da vida, que ameaçavam obstar vosso caminho.

“Creio que quem já experimentou as asperezas de um seminário, com suas exigências de estudo no Clássico, na Filosofia e Teologia, tem lá um pouco de critério para divagar sobre os méritos de um sacerdote que levou a cabo seu ideal. Recebais por intermédio destas palavras, a alegria sincera que vos devotamos: este povo em reconhecimento da sublimidade do sacerdócio. É-me difícil compreender a aspereza deste escopo que acabais de encimar e que encerra tanto poder divino.

“Mas, não nos será incompreensível conciliar esta autoridade com o espírito febril destas almas, que depois de tanto esperar, descansam seus olhares naquele que lhes trará conforto e amenidade nas provações. Somos almas simples, mas temos o mesmo Pai. É, pois, nele que vos tributamos esta homenagem. Não preciso riscar muitas linhas para disfarçar nosso contentamento e comprovar nossos votos de boas-vindas. Vós mesmo podeis ler nos olhos dos que aqui se encontram, a alegria que escapa dos olhos deles. Vós sois ministro do Senhor, padre, filho desta terra e o primeiro a ser lembrado daqui a milhares de anos pela história. Foi imensa a vossa conquista, Reverendíssimo Padre.

“Que vossa estadia em nosso meio seja mil vezes melhor do que esperáveis ou conjecturáveis ao meditar debruçado sobre a escrivaninha de vossa alcova. Que todas aquelas ideias, aparentemente ilusórias, revertam-se em realidade aqui, alegremente entre nós. Poderia passar horas aqui falando, caros ouvintes, mas é inútil vocês aturarem minhas palavras, quando elas tendem comprovar o óbvio”.

Francisco olhou nos olhos espantados dos ouvintes e quase se esqueceu de finalizar com o aliviado “tenho dito”, que ele modificou um pouco, dizendo que lamentava não poder ter dito o que disse, de maneira melhor. Um eufórico barulho de aplausos ribombou como se fosse um trovão em dia de tempestade. Mas, o céu estava azul, o sol parecia sorrir, já com o lábio inferior eclipsando-se por detrás do morro. Francisco desceu do púlpito com a impressão de haver agradado, mas a consciência doía-lhe por não ter preparado melhor seu discurso e por tê-lo feito quase que de improviso.

Mas, afinal de contas, tudo havia passado e o que tinha a ser feito, foi feito. Felizmente, terminaram os cumprimentos, e Francisco pode voltar para sua casa, já mais calmo e aliviado. Todos, de pé, o aclamaram por longos segundos, enquanto ele foi se afastando. Se não agradara, também não decepcionara. Isto já lhe bastava. Diante, mais uma vez de seu pessimismo, um grito e um fluxo de reanimação pareceram insuflar-lhe o último surto de vida. Um estigma de dor feria seu coração, marcava mais um entre os tantos esforços.

Amanheceu um novo dia. Foi à varanda dos fundos, olhou o céu. A Natureza incolor, o paiol, o cacifo empoeirado…. Neste último achou graça. Ali parecia estar encenada a doce recompensa de seus esforços. Foi seguindo cada vez mais. Agora já metia as mãos frias na tramela: não entre, cuidado! Mas ele insistia, esforçou, abriu a porta. Tudo ali dentro estava vazio, oco e imundo. Hesitou um pouco, depois entrou. Retirou alguns pedaços de pau, as teias de aranhas, lançou água à poeira e, por fim arrastou uma mesinha, uma cadeira, um dicionário, dois cadernos e uma caneta. Nada mais. Nisto, Suzana entrou com um sofá e pôs a cadeira de lado.

Veio a noite. Tudo parecia morto e as sombras que se mexiam eram como fantasmas debandando de um cemitério. Francisco sentou-se, olhou os cadernos e o dicionário, depois as janelinhas entreabertas. Não se podia ver, porque a imaginação preferia o ermo da solidão. Balançou a cabeça, e ostentou-a com impertinência para o alto. Apenas cinco estrelas piscavam entre algumas nuvens brancas que revoavam pelo azul alargado da Lua envergonhada. Não havia um cenário imaginário de Cronin, nada, apenas uma grande cruz no cimo de um morro, que velava pela vida.

Francisco fitou-a com medo, sua alma precisava de Deus. Apanhou um livrinho de orações. Suzana pareceu sorrir-lhe. Francisco rezou, rezou muito, depois fitou as paredes gélidas do paiol que pareciam augurar-lhe o fracasso e a morte. Mas, encarou-as com superioridade e ali se deteve, enquanto Suzana espreguiçava-se num desvão aguardando por ele.

Morreu também mais um dia. As cinco estrelas trouxeram outras. A noite parecia mais bela e as folhas do prólogo continuavam puras, brancas, como as nuvens que na noite anterior haviam voado pelo azul celeste. Sua mente não se cansava, porque uma alegria inexplicável parecia brotar a todo instante, apesar das folhas continuarem intatas. Mas já às 10 horas, um calor abrasante se fazia sentir e o céu enturvecido mostrou-se furioso. Relampejava, trovejava e permeio à escuridão, um clarão, quando em vez, podia mostrar uma grande cruz de braços abertos. A princípio, nada tinha de graça: eram apenas dois paus cruzados. Mas, a insistente perspicácia dos relâmpagos, lembrava-lhe Jesus, aquele que era por si, a própria inspiração.

Concentrou-se pela última vez, empunhando a caneta e abrindo, por acaso, um dos cadernos. Olhou Suzana na cadeira. A cruz de recordações e o claro de uma tênue luz de lamparina. Dos seus olhos rolaram lágrimas de intensa alegria. No meio dos braços da cruz, um vulto judaico de quase 2.000 mil anos, parecia soltar as mãos para oferecer-lhe amparo.

Cerrou as pálpebras, agradeceu e com uma das mãos a roçar-lhe os cabelos revoltos, começou está história que acabo de narrar.

Personagens reais que constaram desse romance:
Osório Ferreira, redondezas. Em Marilândia: Alberto, Pedro e Guerindo Ceolim, Luís Fregona. 1928 a 1930: desbravadores. Primeiros moradores: Pedro Ceolin, Sebastião Oliana, Luís Forte, João Palma, Carlos Franco, Zanoteli e, depois, Scarpats. Primeira Companhia Territorial. Terreno de papai: 7 alqueires e meio. Quando chegamos havia casas do Ceolin e do Piadossi. 1929 papai vem para cá – Avenida Getúlio Vargas. Absurdo: política Magnago x Ceolim. Soldado Passo Largo, Luís e Scarpat a mando, quase fuzilaram papai. Ricardo Magnago atira em José Ceolin de winchester ao fechar uma porteira. Uma tarde, Angelim Oliana e Angelim Scarpat: todo italiano que passasse por ali teria de pagar. Ezídio, Jovino Braço-Torto, Antônio sem Vergonha, Viana, Zé Benedito – suplentes do delegado que protegia esses bagunceiros. Lourenço Coelho orienta papai a não passar pelos bagunceiros. Mora num moinho velho do Nelson Maline. Ezídio o viu e deixou passar e o Meneguin ficou para trás, mas passou ileso. Praga de papai: tiroteio, mas só feriram o Lorenzo que ficou caído, baleado pelo Ezídio Ceolin. Foi atirado pelas costas, 2 tiros, e veio o policiamento e prendeu o Zago. Mais tarde mataram o Ezídio: supõe-se que foi o Zé Ceolin que o matou. No começo a polícia estava com o Ceolin, mas depois passou para o lado do Magnago e botou o Ceolin para correr. Ele foi abrigar-se no sítio do Luís Fregona.

Notar que já em meu primeiro exercício, eu procurava, ou pelo menos tentava ser coerente e precavido. Como roteiro, a vida dos habitantes daquela comunidade italiana.

Não irei digitar todo o romance, porque daria mais de 300 páginas e minha letra, nesse tempo, era bem pior que hoje. Qualquer um percebe que o “livro” foi escrito por um aluno que, se nasceu vocacionado por Deus, teria de fazer sua parte: estudar, pesquisar, burilar, ler grandes autores, aprender enfim.

Contudo, qualquer um que se dispuser a ler, os cadernos estão aqui num canto do escritório, bem guardados por uns, imagino, 50 anos ainda. Falecendo meus filhos, possivelmente meus netos o usarão para acender o fogo da churrasqueira. Não porque serão maus, mas, simplesmente porque este é o ciclo da vida. Hoje já não se derruba matas com machado, vocês sabem. Não se colhe milho, soja, algodão… com as mãos. O tempo anda, as coisas mudam e todo passado apenas representará curiosidade histórica.

Não sei se devo ser considerado um persistente, ou um teimoso. Hoje, com 80 anos, continuo do mesmo jeito: pedindo a Deus que não permita que eu escreva nada de que possa me arrepender depois.

A bem da verdade, estou desestimulado a escrever um romance inédito. Sofri um infarto, escapei “pelo rabo da gata”, enfrentei várias cirurgias no coração e, tendo escapado, resolvi deixar, para meus familiares, histórias que escrevi quando ainda era rapaz estudante, cheio de sonhos e vazio de conhecimentos literários.

Além dos cadernos, quero deixar em arquivo virtual, algumas histórias, ou parte delas, que apenas estão guardadas em cadernos manuscritos. Não irei digitar tudo, apenas partes. Aproveitarei, também, no tempo de vida que me restar, alguns escritos que nunca inseri nos meus livros.

Assim, morrerei despido como quando aqui cheguei. Subirei aos céus com tudo documentado. Espero viver na lembrança dos que conviveram comigo, pelo menos mais uns 50 anos. Antes disso, acho difícil apagarem minhas pegadas. Depois disto, meus entes queridos já devem estar lá na outra dimensão também.

Nem imagina como me é angustiante prever uma eternidade sem nada para fazer! Meu sobrinho Nini (Idelcides Falqueto), um dia, ao ser questionado sobre algo que não devia estar fazendo, foi enfático: “Bom, para mim, tio, é aquilo que eu quero”!

Eu nunca esqueci esta frase e, baseado nela, eu queria, quando morresse, que no meu céu houvesse uma imensa floresta cheia de pássaros, cachoeiras, rios piscosos e que, no centro, eu morasse, curtindo todas as fruteiras do mundo.
Como serei espírito encarnado – porque Jesus prometeu a ressurreição da carne – nessa minha nova e eterna existência, na minha nova moradia, não vou querer mosquitos, carrapatos, cobras… e já que há muitas décadas não caço: nem caçadores.

Mas, estou certo de que será tudo diferente porque, segundo “aqueles que sabem tudo sobre Deus”, nossa felicidade será muito maior e melhor do que nossos planos e sonhos. E…., que assim seja, porque, queiramos ou não, assim será.

VAMOS, AGORA, AO SEGUNDO EXERCÍCIO:

MEUS AMIGOS
Apresentação:
Quando um ser humano envereda pelos caminhos de sua vocação, descoberta com suores, nas longas e quentes noites de insônia, parece-lhe impossível refrear o surto de entusiasmo que o alenta ao novo caminho, principalmente quando este ser humano é ansioso como eu. É difícil ter certeza do porquê de nossa existência, mormente quando somos pobres e temos que nos sujeitar às profissões que se nos apresentam, e não ao trabalho que não cansa: aquele de que somos vocacionados. Sempre houve dentro de minha alma a incerteza e o pecado da inadaptação, o caminho que, por longo tempo trilhei nos braços da ansiedade. Porém, antes do fim me surgiu o atalho que abreviou meu caminho, lançando-me, ainda que, timidamente, ao trabalho de escrever.
Gosto de constatar no espelho, meus olhos cansados e o corpo abatido, porque me são a certeza de que estou lutando para levar a cabo, a função que me foi determinada por Deus. Em verdade, há para guiar nossa estrada esburacada, a macadame destes ensaios humildes, um cenário revérbero que nos ajuda. São os escritores que vieram antes ou que vivem presentemente, na experiência e no reforço dos conhecimentos adquiridos, possivelmente, no acúmulo de muitas noites de pesquisas. Ser escritor, para mim, assemelha-se à predestinação daqueles que lutam para se eternizarem em folhas de papel, em extrema e diuturna luta.

Por coincidência, antes de correr os olhos por cima da amplidão e de me entregar à procura de inspiração, dei uma olhadela no prefácio de um grosso volume, penso eu, escrito em estilo moderno. Nunca, até então, havia pensado em prefácios, na sua influência e utilidade. Alguém que muito admiro trouxe-me a realidade e precisei pensar sobre o assunto. Depois, concordei que nem todos eles são dispensáveis, simulados ou vazios.

Para os que não fazem propaganda mentirosa de sua obra, que não camuflam a verdade do conteúdo, mas apenas mostram ao leitor o que nele vai se tratar, tenho dupla admiração e deixo aqui meus elogios. Pretendo neste diagrama ou ponto de vista, alinhar-me a eles, carimbando-os como amigos que a meu lado, ou não, conviveram, desde a noite em que meus olhos puderam afixar-se no céu estrelejado em busca de inspiração. Em nosso viver, algumas pessoas se tornaram verdadeiros amigos, outros, apenas conhecidos. Houve até conhecidos e desconhecidos insinceros e fingidos! Muitos deles já deixaram esta Terra e convivem no além, desfrutando de seus merecimentos ao passarem por esta vida. Aos do céu peço alento para ser leal; e aos condenados, solicito que não me perturbem, para que possa levar a bom termo meu empreendimento. Quero mesmo que seja o céu, o testemunho presente do quando vou contar, afirmando ou negando. Sei que com isto, muitos demônios receberão coroas e muitos santos irão perdê-las. Todo homem, depois que morre, vira santo; até o pobre do Stalim “coitadinho”, agia com boa intenção! Aplicarei, no possível, minha justiça, ainda que isto venha tirar merecimentos daqueles que obtiveram glórias ao preço da exploração alheia. Serão amigos ou conhecidos, os que me enviaram um presentinho no dia de meu aniversário…. Aqueles que me amaram e ampararam meu jovem coração, que como ventoinha, estava exposto aos ventos mais diversos…. É, portanto, a esses que, com toda gratidão e reconhecimento, dedico parcialmente esta obra de incipiente. À minha mãe do céu e da Terra, de todo meu coração.

O autor.

Bem, este livro “MEUS AMIGOS” – assim como todos os exercícios feitos por mim na juventude – se juntos e transformados em livro, dariam milhares de páginas. Por isso, estão aqui apenas como demonstração de minha ideia fixa de um dia escrever, de preferência, bons livros. MEUS AMIGOS não é uma autobiografia, mas retrata quase que, fielmente, uma boa parte de minha existência. No princípio mostra as dificuldades religiosas e as conclusões errôneas a que sempre eu chegava. Depois do seminário, retratei a vida incerta de um ex-seminarista. Claro está que existem amigos representados pela minha imaginação, a fim de dar continuidade às minhas ideias, mas, no fundo, nada mais foi do que sugestão para completar meu pensamento. Lutas internas, incessantes e terríveis foram projetadas sucessivamente na tela de minha alma. Com todo carinho tentei relembrar aquelas ocasiões, sendo fiel às palavras que me tocaram e aquelas que proferi. Não há uma continuidade de encenação. Como podem ver, há um sem-fim de revoltas e arrependimentos, de propósitos e novas faltas, o que, singelamente dá ao trabalho, a certeza de que foi escrito por um jovem ansioso em busca de um sonho a longo prazo. Nada foi escrito com orgulho ou pretensão: para mim foram apenas mais exercícios em busca de um sonho. Se por vezes os fatos virtuosos ultrapassaram as minhas fraquezas, foi porque assim aconteceu.

Isto não é um livro: apenas um jeito diferente de lembrar minha persistência. Aqueles problemas com amigos, a grande luta do mundo contra minha consciência muito sensível, dá um cunho típico e geral dos jovens que esperam, depois desta vida, a realização das promessas de Cristo. Se Deus é verdadeiro, e seu evangelho o único caminho para se conseguir a salvação, e se eu não o segui estritamente, nada mais explicável do que minha ansiedade extrema em buscar a verdade.

Ser ou não ser, já dizia alguém. Por isso, procurei enquanto me foi possível, viver longe do desrespeito às criaturas femininas, mesmo porque eu me lembrava sempre de minha mãe, e de minhas irmãs.

E, finalmente: eu errava, mas não conseguia aceitar meus erros e nem acreditar que a misericórdia de Deus fosse menor do que meus pecados. Somente mais tarde eu iria entender que Ele era meu Pai e sua misericórdia, infinita.

– Não quero seu conselho, não quero seu conforto.

– Então, não precisa responder, apenas me ouça calado. Não sofra sozinho, sofra comigo, divida comigo a noite negra que o está amedrontando. Não era vontade minha vir importuná-lo, mas sou dono de seu segredo, sou dono de sua amizade, entre todos, sou seu melhor e mais verdadeiro amigo: sou seu Pai, aquele que o criou.

Foram tantos anos sofrendo, precisando de um poderoso amigo de verdade! Muitos anos vivi sem essa amizade, muitos anos acumulei tristezas, decepções, cansaços, frustrações, desilusões, amarguras, lágrimas, fracassos, pecados. Hoje, não suportando mais a carga, sinto que alguém me ajuda. E é assim que pude oferecer minha obra, ao maior amigo que tive na vida: Jesus Cristo, porque Ele é confiável e jamais me deixou na mão.

Mas, não podemos ter pressa:

Passei anos e anos fazendo projetos para mudar de vida. Todos eles eram estabelecidos pela manhã e desrespeitados à tarde. Milhares desses projetos eu fiz, milhares de vezes eu não os cumpri.

Numa noite, porém, tomei mais uma vez a bendita decisão de mudar de vida e, devo confessar, mudei bastante.

Isso para mim foi muito importante, porque acredito que não somos responsáveis por certas inclinações que nascem com a gente, mas sim por não as combater e melhorar com o passar do tempo.

O assassino que, pela índole ou genética poderia matar 20 pessoas, mas com seu próprio esforço se controlou em algumas ocasiões e só matou oito, já terá algum mérito. Nunca nos esqueçamos que a misericórdia de Deus é maior do que qualquer pecado. Na crucificação de Jesus, você deve lembrar, Ele se dirigiu ao Pai dizendo: Pai, perdoai-lhes, eles não sabem o que estão fazendo.

Por isso não se assuste se encontrar no céu muitos “diabos” e sentir falta de muitos santos que a eles recorreu pedindo intercessão”.

Foi pensando assim que, como uma criança, chamei e fui atendido por Ele. Sinto agora que não há prazer maior do que viver com a consciência tranquila. Sei que vou cair e levantar muitas vezes ainda, mas me alegra confiar na misericórdia de Deus.

Ter Jesus como amigo é obter a salvação ainda neste mundo.

1

Foi numa noite quente, em pleno verão, numa vila ao noroeste do Espírito Santo. As casas ancestrais davam a tudo um aspecto colonial, que predominava sobre o vilarejo.

Marilândia era seu nome e crescia lentamente, amamentada pelos peitos já cansados de uma honrada senhora, cujo nome se eternizou à margem direita do rio Doce.

Plantada no seio de uma floresta prolixa e de indizível beleza natural, ela florescia, vivendo seu pequeno núcleo em paz e harmonia. As terras ondeadas de um misto de planaltos e planícies, davam a quem as mirasse de longe, a impressão de uma madeixa, recentemente penteada. Nas frondes da corindibeira e nas pencas de jamelão, as saíras policrômicas gorjeavam do primeiro ao último raio de sol.

E ali, onde os animais saltavam pelas pastarias, roliços e cheios de vida, a berrarem como se estivessem festejando o bom ano, aonde os regatos calmos e sombrios mergulhavam
pacientemente sob os troncos crestados que desciam das derrubadas apenas sapecadas…. Onde as árvores virentes eram estapeadas pelas frescas aragens e a imensidão era acariciada pelo crepúsculo, atingindo nossos corações…. Onde havia, em profusão, mangueiras, pitangueiras, manteigueiras, oitizeiros, amoreiras, caramboleiras e centenas de plantas frutíferas que atapetavam o entorno da casa de meu pai…. Onde, de dia abancávamos diante da cátedra da Natureza para decifrar os reflexos de alegria dos irracionais e, à noite, quedávamos contemplativos, no cenário esbelto do luar, foi que despertei para a vida.

……
II
“Semeai um pensamento, ele produzirá um desejo; semeai um desejo, ele produzira uma ação; semeai a ação, ela produzira o hábito; semeai o hábito, ele produzirá o caráter; semeai o caráter, ele produzirá vossa sorte”.

Mas, para que tudo isso aconteça, é preciso tempo. Não sei se conseguirei com este diminuto capítulo, explicar o que desejo, ou seja, que cada frase, citação, repreensão ou elogio, faça parte ativa na minha formação, mormente psicológica. Longe da vida ser um sonho; bem certo, uma realidade. Contudo, é uma realidade irrefutável, misteriosa e que, só encontrou a definição nas palavras de Jesus: ‘Eu sou a vida”. É uma coisa fácil de se modificar, mas impossível de se destruir. E como se forma este engenho imperecível?

Uma palavra proferida andará sempre pelo Universo do nosso inconsciente, e só virá à tona por acaso ou por uma exigência intrínseca que a atraia. Isto também acontece com nossos pensamentos e as nossas ações, o que nos tira a razão de perguntar, por que acordamos tristes ou por demais alegres, sem um motivo evidente. É o passado que retorna casualmente, sem nosso consentimento.

Lembremo-nos que fomos pequeninos, que recebemos injustiças, repreensões, elogios, e o HD do nosso inconsciente não se cansa de registrar tudo. É na infância que germinam as sementes que deverão responder pela nossa idoneidade moral e pelas virtudes. O porvir será apenas, em escala maior, a consequência do que plantamos na infância. Uma semente mal regada dará lugar a uma falha psíquica. Daí os complexos, a timidez, a obsessão, a psicastenia ou o inverso de todas estas falhas. E os que conosco conviveram podem ser representados como auxiliares, responsáveis em grande parte pela estrutura do nosso caráter e da nossa personalidade.

Na infância e mesmo um pouco depois dela, nos assemelhamos a um recipiente que tudo acata com a mesma impassibilidade. E poderia dizer, torcendo um pouco as palavras e o sentido da célebre citação de Bernardes: “É mais fácil consertar a sombra de uma vara torta” do esquivar-nos das influências da infância.

Por isso considero, em grande escala, esses que me deram bom exemplo, que me alentaram diante das dificuldades, que povoaram meu inconsciente com palavras sãs. Desses, guardarei sempre boas e gratas recordações. Meu testemunho não é científico, mas, tenho certeza que é verdadeiro, ainda que se trate de uma particularidade. Manterão as lembranças de minha infância e tudo o que elas, para mim representaram.
Por isso, este ensaio de incipiente será como uma planta que cresce aos olhos de uma grande plateia de pesquisadores.
Todos verão essas lentas transformações no crescimento, os vendavais que as ameaçaram ruir e a bonança que trouxe de volta, novas esperanças.

III
A quem tomar a direção da grande pedra do cruzeiro, em Alto Liberdade, ou desviar à esquerda para o povoado de Sapucaia, irá, depois de 20 minutos a pé, encontrar um terreno pontilhado de velhas moradias e paióis, circundados, principalmente por fruteiras, cafezais e pequenas pastarias. Ali, fincada na confluência das estradas Liberdade/Santo Hilário, está o sítio de 18 alqueires do meu pai, doados pelo INCRA.

Mais um pouco e tudo estará desbravado e cultivado como se a séculos, por ali, a mão do homem tivesse passado. A malvada seresteira canguçu, que outrora roubava o sono dos primeiros imigrantes, será lendária história de caçador. Eu amava tudo aquilo: seus costumes e suas tradições. Dir-se-ia que todas as tardes me deixavam adormecer no meio da algazarra dos contos antigos. Aqueles homens rudes, tinham em mim, a criança mais entusiasmada para ouvi-los.

Quatro jaqueiras copadas, um campo de bochas à direita, um desvio do riacho Santo Hilário separando a casa do meu irmão deste cenário grotesco – que ainda tinha os retorques de dois bancos, feitos com largos pranchões de peroba. Era o lugar favorito para se reviver o passado. Se ali existissem coxilhas, se os homens usassem bombachas e camisas de couro de cor berrante ao pescoço e nos pés apresentassem grandes botas, eu diria que uma porção de gaúchos ali estavam curtindo seu chimarrão ou comendo seu churrasco, num recanto qualquer de suas terras. Uns agachados ou assentados no chão, outros recostados nos troncos das jaqueiras e outros, ainda, andando de um lado para o outro, com grandes cigarros de palha que infestavam o ar com pequenas nuvens sufocantes.

Ali estava tio Luís, com seu constante cinismo, bigodes cor de rutilo, cabelos de boa alvura e olhos azuis perscrutadores. Sua tez rosada e estatura um pouco além do normal, explicavam sua origem italiana. Era difícil qualquer um dizer uma palavra, sem que ele não ponderasse. Por isso mesmo não era muito desejado pelos demais contadores de lorotas.

Tio José era mais altivo e brincalhão. Ficava horas a fio abancado sobre seus próprios calcanhares, narrando suas pescarias que eram levadas a efeito no rio Pancas, afluente das sujas águas que banham Colatina.

Não se cansava de inventar coisas para alegrar almas tristes, como dizia. Se se pudesse diminuir seu rosto, iríamos encontrar os traços felinos de um bracaiá.

Meu pai, cuja diferença dos outros irmãos estava na obesidade apenas, não cedia seu lugar no meio do pranchão, lugar em que ficava a arredondar, com o polegar e o indicador, alguns grãos de arroz ou polenta que sobraram em seu prato, e a ritmar qualquer canção, batendo com os chinelos na sola dos calcanhares.

O velho Carapina, com seu sotaque mineiro e seu regionalismo a nós desconhecido, fazia contraste a todos os demais. Cabelos encarapinhados, olhos negros e duros, cor abacinada naturalmente, com alguns cacos de dente a pontilhar as gengivas pigmentadas, pés sempre descalços e o andar trôpego, eram suas mais destacadas características. Finalmente, aparecia o Cordeiro, que trabalhava para meu pai e cuja risada se assemelhava aos estalidos de um motor posto a funcionar. Preferia contar anedotas próprias do que repassar velhas conhecidas. Os demais que completavam os quinze que sempre ali se reuniam, eram, em geral, ouvintes curiosos.

A estranha assembleia tinha início quando o tio Luís, que era vizinho, farejava, qual cachorro de caça, a presença ainda cedo, de meu pai, sob a sombra convidativa das árvores. Tinham o péssimo costume de trocar ideias gritando, o que é comum e normal em toda comuna italiana. Pareciam sinos chamando os fiéis para uma cerimônia religiosa. Logo todo mundo se aconchegava e, em breve, um qualquer tomava a palavra. Se demorassem, eu mesmo pedia ao tio José para contar alguma passagem da época em que tudo era mata virgem.

– Qual você quer que eu conte?

– Uma qualquer. Todas as que conta são interessantes.

– Obrigado, obrigado! Sabe aquela da onça, dizia ele, correndo o olhar por toda a extensão da grossa tábua de peroba.

Como respondêssemos negativamente, ele retorquia:

– Pois bem. Naquele tempo, nossa única distração era caçar pacas. O finado meu pai tinha uma espingarda Geco, eta espingarda boa, igual a ela, nunca mais aparecerá outra!
Era só virar para o lado do bicho e ele já se estirava morto. Mas, Deus me livre, se o velho me visse com ela na mão! Eu era pixote, tinha uns 14 anos. Mas, influenciado mais do que o diabo para perder almas, não deixava escapar a oportunidade de sair com ela. Retirava a espoleta do vidro e enfiava a vareta no cano para ver o tamanho do carrego, para que, se atirasse, fizesse outro igual. A mata ficava perto do lugar em que a gente morava. O finado saiu para ir à reza e eu me meti no mato. Tinha um medo de onça tão grande que, certa vez, voltei dois quilômetros no galope, ao ver uma preguiça sobre a estrada. É que eu não conhecia o diabo da gata ainda.

– Mas, como foi isso, perguntei com insaciável curiosidade.

Tio José tinha o hábito de recordar as coisas, com o início de um sorriso que se assemelhava ao gaguejar de uma criança.

– Ah, suspirava ele, era costume entre os velhos, mandar um naco de carne para os conhecidos, quando se matava um porco pançudo ou uma vitela redonda. Havia um homem baixote do outro lada da mata, que era amigo recente do finado. Papai, então, mandou eu e o Tonho ir até lá com uma pratada de costelas sem descarnar. Nesta mata, uns dias antes, o Campana que passara por ali com um capado nas costas, foi seguido pela pintada até no fim da picada. Mas, não era por medo que se deixava de cumprir o que nossos pais mandavam. Lá fomos nós como dois namorados safados, grudados um no outro, quando o Augusto, regalando os olhos, gritou:

– Ó ela lá!
– Quem?
– A onça, sô!
– Onde?
– Ali em cima da embaúba.
– Pra quê, meus senhores! Virei de cambota e foi um Deus nos acuda que fazia medo. Logo abaixo havia uma descida que terminava no pasto. Ali, já encontramos o velho meu pai, que vinha à toda, com a Geco nas mãos, acionado pela gritaria que vínhamos fazendo.

– Que aconteceu, perguntou ele, com um misto de preocupação, espanto, raiva e descrença.

– A onça, disse o Alonso, com um palmo de língua esticada, que ia e vinha da boca por causa do cansaço da corrida.

– Onde?
– Lá no segundo tope.
– Seu avô, continuou titio, dispensando-me uma olhadela de soslaio, era um homem de coragem. Certa vez enfrentou uma porção de maus elementos, com um simples gramarim (uma espécie de bengala que nós, imigrantes italianos usávamos aqui no Brasil), mas esta é outra história.
– Como ia dizendo, tínhamos visto a onça.
Papai ia na frente e o Alonso e eu logo atrás, todos desconfiados. Quando chegamos no tope, o Alonso gritou:
– Ó ela lá!
– Aonde, retrucou o finado, enquanto retirava dos ombros, a espingarda.
– Em cima daquele galho que passa por cima da picada.

– É mesmo, ponderou ele com ar severo, mas quase sorrindo. Fiquem aí que irei entrar no mato para ficar em melhor posição para atirar.

– Sim, sim, retrucamos a um só tempo e agarrando-nos como se fôssemos o Elton e a Juca, quando vêm bêbados da rua.

Daí a pouco, a vara assoviava no nosso lombo como se fossem raios caindo dos céus em cima de nós. Uma semana depois ainda se podia ver os vergões em nossas costas, tudo por ter encontrado uma preguiça refastelando-se com os frutos da embaubeira.

– Afinal, nunca tínhamos visto uma onça e, por que aquele bicho não podia ser uma? Mesmo com a surra, melhor foi não arriscar.

– Bem, continuou tio José, atalhando as gargalhadas, como ia dizendo antes da onça, fui sozinho para o mato. Fazia um frio que meu queixo batia mais que monjolo novo. Meu pai tinha uma capa que trouxera da Itália, que era muito melhor do que estas capas vagabundas aqui do Brasil. Botei ela nas costas e lá fui. Uns 200 metros acima, encontrei um poleiro de quase 10 metros de altura e subi nele. A mata era tão limpa que se podia ver a 50 metros de roda. Depois de algum tempo, o macuco respondeu bem perto. Minhas pernas tremiam mais do que se estivesse com o tremor do impaludismo. Foi quando um grosso cipó que vinha da moita, começou a roçar no meu pescoço, até me incomodar de fato. Enquanto pude afastar o cipó, afastei, até que não podendo, resolvi olhar o que era que estaria fazendo aquilo. Por Nossa Senhora (este juramento era sua marca registrada), a onça estava com a cara na minha nuca, por cima do cipó.

Quando a história atingia este ponto, só o arquejar profundo das crianças podia-se ouvir. Que aconteceu, perguntávamos em coro? A onça não arranhou o senhor não? Ela era muito grande? Era daquelas vermelhas ou das malhadas?

– Virei a espingarda e atirei. Ela caiu para um lado e eu para o outro. Juro, por Nossa Senhora, que a capa agarrou um varão meio fino e me levou ao chão, sem nenhum arranhão. Sem pensar mais em nada, corri ver se tinha quebrado a espingarda, enquanto o bicho ia se batendo de morro abaixo. Com o susto que tomei, não quis saber mais de nada. Apanhei o pau de fogo e fui para casa, sem, sequer, olhar o bicho. Logo em baixo, encontrei o caboclo Idílio Santiago, que trabalhava não muito longe dali. Chamei:

– Ô Idílio!
– Que é, respondeu ele, parando de chofre.
– Você quer ver que bicho é que matei?
– Estou com pressa, meu sinhozinho. Preciso levar este aipim para o almoço.
– Não, é logo ali. Num minuto estaremos de volta.
Quando chegamos ao lugar, eu disse:
– Foi por aqui que o bicho rolou.
O caboclo saiu procurando e eu, com a espingarda na mão, atrás dele. Daí a pouco, ele deu um pulo para trás e disse:
– Nossa Senhora, veja o tamanho da onça que você matou!
– A arma me caiu da mão. Foi ali que fiquei sabendo o que era onça!

…………………………………………………………………………………….

Depois vinha papai, contando as peripécias do sobrinho com a polícia; o Cordeiro com o diálogo dos patos, ladrões do seu arroz, e tio Luís, que não tendo aparte, pois todos falavam a um só tempo, usava um golpe conhecidíssimo para consegui-lo. Dizia assustado:

– Vocês ouviram?

– O quê, perguntávamos?

– Que pulo um peixe deu aí na valeta? E, continuava: pode não ser nada, mas, certa vez….

E aí lá se ia uma longa narrativa do dia em que pescando piau, fisgou uma paca no anzol.
Assim eu ia bebendo aqueles princípios e aquelas maneiras simples de narrar fatos, desde minha tenra infância. E quando analiso meu caráter, encontro nele, indícios e tendências daquela vida sertaneja e, para o sossego da vida alegre dos sertões: consequências indubitáveis daquela tradição. Amo os esportes brutos, porque meus olhos gravaram, para sempre, a tenacidade dos sertanejos com quem convivi, a inviolabilidade da família, sagrada para todos da comunidade, como se fosse o Pereira da primorosa obra “Inocência”, de Visconde de Taunay.

Infelizmente, o que me proponho é um amontoado simplificado de acontecimentos. Se assim não fosse, creio que passaria minha vida escrevendo sobre os acontecimentos dos primeiros anos de minha vida. Se assim o fizesse, os amigos de hoje não me perguntariam, por que sou tão fanático pela cinegética ou por que prefiro o silêncio de minha alcova às boates, clubes e demais lugares em que a mercantilização do sexo é aparentemente legalizada, porque os que ganham a vida explorando este tipo de negócio, não param para pensar que terão de prestar contas pelos maus exemplos que oferecem.

Pelas tantas emoções que me ofereceu, registro tio José como um grande amigo.

IV
Ia minha infância ficando para trás e eu crescendo, passando pela adolescência. Avultava-se já em mim a não predileção de caçula. Vivia ainda na inércia e numa suave desobediência. Todos me consideravam um caso perdido, embora eu não atinasse bem pelo significado do que insinuavam. Ouvia meu pai dizer que só a Marinha poderia comigo, pois se lá eu não mudasse de vida, os tubarões teriam alguns ossos para roer. Nem tudo, porém, me era dito pessoalmente e mal eu descobri isso, comecei a espreitar os cochichos da casa. Ora atrás das portas; ora debaixo da cama… A paranoia parecia me abordar ainda antes da aceitação da ciência freudiana. E num silogismo próprio me justificava: chamam-me de malandro, preguiçoso e impossível e não quero que sejam injustos. E, assim, eu continuava a doce vida, cumprindo os ditames inquietos da sina que teria de cumprir.
Lembro, então, do velho casarão, alto, coberto com tabuinhas de ipê, com janelas de duas bandas, amplas como as portas. As paredes com apenas uma demão de água e pó de tijolo queimado, todas demarcadas de frinchas com urgência de amiúdes consertos. A sala e os quartos eram separados da cozinha por uma varanda de chão socado, em que estava instalada a moenda e o varal interno: usado, apenas, por ocasião das chuvas. Quantas vezes eu, ali, molhava o bagaço de cana na panela de caldo, enquanto minha mãe fazia rodar aquele engenho primitivo. Sentia-a me fitando com um sorriso tristonho e muito cansado, e eu, em pensamento, me redimia, justificando-me:

– Não tenho culpa se me fizeram assim!

Logo à direita da moenda ficava a entrada para a sala de jantar, ampla área de paredes sem caiação e em cujo oitão da esquerda se agregava os ramos tenros, floridos e cheirosos da rainha-da-noite. Uma prateleira de tábuas toscas, uma mesa e um banquinho para criança, eram os móveis da cozinha. O fogão tinha a aparência de um piano moderno, com grande cauda. Sob ela eram acumulados, à tarde, gravetos que deveriam facilitar o fogo quando amanhecesse. Ao lado ficava uma panelinha de cerâmica, já bem velha e destituída de boa parte, que continha água com batinga. Essa água era utilizada para dar nova cor às partes enegrecidas pela fumaça.

Durante o inverno, principalmente nos meses de maio e junho, as pequenas aves habitavam cada ramo das fruteiras. Era a época em que se viam, pelos cafezais, crianças de rostinhos rosados pelos raios do sol, tendo à mão, uma seta e, no ombro, um embornal de pelotas, pedrinhas ou goiabas verdes, andando ou correndo atrás dos alígeros inocentes.

Minha mãe erguia-se da cama, ainda antes que os galos, Rolete e o Sabuco, anunciassem a proximidade da arraiada. Da cama, envolto em um grosso cobertor, eu ouvia o tilintar das tampas e o estalido grave dos cabos das chaleiras. Mais um pouco, eu pensava, o Nego chamará por mim. Nessa madrugada eu estava mais ansioso do que em todos os outros dias. É que eu não esquecia um caga-sebo ferido.

Lá fora, o vento sibilava, trazendo e jogando de um lado para o outro, toda a ausência de calor e o abandono do astro rei. Era duro para uma criança deixar a cama naquelas manhãs, mas eu queria. Era bom para mim, era aquilo que eu queria.

O mano mais velho, companheiro de quarto, trabalhava longe e, por isso, antes que eu ouvisse aquela voz quase melancólica do meu amiguinho, ele já havia se retirado. Achava-o egoísta, porque ao se levantar, ele não pensava no meu sono. Escancarava a janela, deixando que o sereno viesse descansar e se derreter no meu rosto semidesperto. Retirava, então, o agasalho da cabeça e ficava a fitar o morro da Liberdade e um pouco mais à direita, o despontar do sol.

O arrebol mediano do infinito azulado e do rocio que caía como diminutos manás, dava-me a impressão de estar olhando para o péssimo aparelho de televisão do José.

– Dona Maria, ele está?

De um pulo postava-me de pé, enquanto mamãe resmungava sempre a mesma recomendação de sempre:

– Vocês, com estas caçadas! Um dia metem um estrepe no pé, arranjam um tétano e pronto.

– Hoje a senhora vai ver, dizia eu – entreabrindo a boca cheio de sono e já abotoando, com dificuldade, os suspensórios – como iremos facilitar o almoço.

– Va lá, vá lá! É sempre a mesma história: vai saindo sem tomar café? Eu já disse que, quando vier se queixar, vou lhe esquentar a bunda. Fica comendo porcarias o dia inteiro, não almoça e depois não me deixa dormir com suas dores de barriga.

– Mas, mamãe, as frutas não fazem mal. O doutor disse que elas constituem o melhor alimento, porque têm muitas vitaminas e são fáceis de serem digeridas pelo estômago.

– Qual nada, esse “cattivo dottore de la sampígola” não entende nada. Como que na Itália, que só vivíamos de carne e não comíamos fora de hora, quase não havia doentes? Hoje você vai voltar para almoçar, do contrário, boto sua seta no fogo.

– Sim, mamãe, respondia maquinalmente, sem saber ao certo o que havia prometido.

– Puxa! Que demora. Pensei que fosse conversar com sua mãe o dia todo. Ouça como os passarinhos cantam nos ingazeiros, nos biribás do mato, lá no pé de maracujá…. Ontem passei lá e vi que estava carregado de frutas maduras e bicadas. Vamos depressa, que já perdemos a melhor hora.

Nego era um amiguinho admirável e meu inseparável companheiro. Era loiro, de cabelos cacheados que pareciam flocos de algodão banhados em ouro. Seus olhos eram meigos, azuis e puros, assim como os de todas as crianças. Largas e cerradas sobrancelhas circundavam a parte posterior daqueles glóbulos azuis. Sua face tinha cor de laranjada e sua boca era bem desenhada, atrás da qual se resguardavam dentes luzidios de nácar. Era um menino muito bonito.

Eu o amava como o mais querido dos meus irmãos, mesmo porque, na infância não se sabe definir bem, quem nos recrimina apenas para nos ajudar.

Vivíamos divagando por aquelas campinas restrita e por aqueles infindáveis morros, enquanto os siriris, as rolinhas, a cambaxirra e o João de barro esvoaçavam temerosos, de um cume ao outro dos morros. Os quero-quero, sempre espalhafatosos, deixavam as pastagens ameaçadas e iam resmungando para outra manga. E lá estávamos nós, incansáveis e sequiosos para abatê-los, até que lá, no velho cafezal, cantasse o urutau, anunciando a caída da noite.

Entreolhamo-nos pesarosos, e fomos retornando para casa. Não havíamos conseguido nada durante todo o dia. Só o Nego conseguiu quebrar o rabo de um calango distraído e atarefado na perseguição de uma tanajura.

Em toda minha infância, nunca encontrei um menino mais amigo que o Nego. Ele gostava das coisas que eu gostava; ele nunca exigiu que suas opiniões prevalecessem. Se o sentisse chateado, eu logo contornava o problema e concordava com a opinião dele.

Devo confessar que eu o deixava ir até onde achava que podia, porque em toda dupla do mundo, inclusive marido e mulher, sempre tem aquele que manda e aquele que é mandado. Infelizmente, sempre fui mandão. Se eu percebesse que a minha opinião não seria acatada, logo procurava um meio de me distanciar. Ele percebia, achegava-se, acompanhava-me e não tocava mais naquele assunto em questão.

Talvez por ser mandão foi que fundei minha própria equipe de futebol, completando o time com os garotos da rua. E, é claro, lá, sempre eu escolhia os melhores. Éramos imbatíveis. No time, meu apelido era Pirilo, um dos melhores centroavantes da época e que, por grata coincidência, jogava no Botafogo, o time que, mesmo me fazendo sofrer, eu sempre amei.

Mais adiante – como eu era um péssimo violonista e nenhum conjunto me aceitasse – criei meu próprio conjunto. Na escola, o joguinho com bolas de gude era outro em que eu não me dava bem. Então, fiz logo sociedade com o Neno Nogueira, que conseguia dar secas a três metros de distância. Ganhávamos sempre e, terminado o jogo, fazíamos a divisão meio a meio. Com isso, as mais belas bolebas eram sempre as minhas, exatamente porque ele não fazia questão e eu sempre deixava algumas feias a mais para ele.

E assim, usando de malandragem e muito esperteza, eu ia levando minha vida.

V
No fim de novembro, eu notei que aquelas crianças com calçãozinhos azuis e camisas brancas, tendo no peito uma gravatinha branca com listras azuis, já não mais passavam com seus jogos de matança, pela estradinha que levava à vila. Não via, outrossim, as meninas que se vestiam com saias vermelhas e trajavam blusas brancas com gravatinhas. Minha vida, no entanto, continuava a mesma e até se tornara mais alegre, porque podia contar com mais colegas que, agora, estavam de férias.

Todas as manhãs eu ouvia aquela voz que me chamava e sentia aquele sorriso amigo. Um dia, porém, isso não aconteceu e na cozinha as panelas tiniam ao longe e meio sol já se mostrava luminoso. Que teria acontecido? Logo hoje que eu queria chegar cedo lá no mata-pau! Pobre tiziu, como deve ter doído nesta noite fria, a perna dele que machuquei com uma pelotada! Ele estava tão alegre, saltitando num galho seco do pé de café!
Ave-Maria, cheia de graças… recitava agora, sentado na cama, com a cabeça entre os joelhos e o cobertor enrolado… bendita sois vós entre as… e se ele não vier, como irei passar o meu dia? Não, agora mesmo ele chamará por mim… bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus… ah! Já sei: irei pegar o bigodinho lá do arroz… rogai por nós pecadores, agora e na hora…

– Dona Maria…

– Hei, eu respondi por mamãe, atirando os cobertores aos ares e correndo para a varanda.

Mas, para minha frustração, o olhar do Nego era tristonho desta vez. Recostado num dos cabos da moenda, a cabeça quase inclinada, ele disse:

– Desculpe-me, hoje tive que carregar 10 baldes de água para mamãe lavar a casa. Todo sábado é assim, você sabe.

– Mas, você obedece mesmo sua mãe? Deixe de bobagem! Não vê que elas não batem, que logo esquecem o que nos pediram? Isto não é motivo para perdermos a caçada de hoje.

Nego baixou a cabeça ainda mais.

– Bem, condescendi: agora já foi. Vou apanhar minha sacola. É rápido.

– Não, eu não disse tudo ainda. Hoje não poderei ir com você. A turminha lá de casa se reuniu e decidiu que irão fazer de mim um doutor.
– Mas, o que aconteceu, então?

– Terei de ir matricular-me!

– Mas, que é isso?

– Estudar! Você não quer aprender?

– Ora, eu já sei tudo. Não vê que o Alberico e o Joãozinho, apesar de estarem estudando a mais de um ano, não sabem nada? Falam igualzinho a gente. Além do mais, sem você, como irei passar o dia? Sabe, eu já havia desconfiado que algo estranho estava acontecendo.

Nego saiu pela mesma portinhola pela qual entrara, enquanto eu ficava extático, sem saber o que fazer da vida. Não sabia, também, se ia lavar o rosto ou tomar café e, pela primeira vez, optei pelo mais difícil: recostei-me, muito triste, na base do fogão e tomei uma xícara de café, continuando pensativo. Mamãe que lavava alguma coisa, só depois de muito tempo, deu pelo fato:

– Ah, eu não disse? Tenho certeza de que está doente. Fica o dia inteiro no sol, sem comer e, depois…

– Não estou doente não, mãe! Apenas o Nego hoje não pode ir e estou sem saber o que fazer para passar o dia. Sem fazer nada, os dias ficam muito compridos.

– Pois eu sei como ocupá-lo: vai varrer o terreiro pra mim!

Nada respondi, o que já era um pouco melhor dos automáticos e costumeiros nãos. Deixei a cozinha e fui ao pomar. Entre as mangueiras, caquizeiros, cajueiros e laranjeiras, havia uma trilha que levava ao ribeirão Santo Hilário. Desci por ela e fui sentar-me entre os caetés da margem daquelas águas cristalinas. Piabas, acarás, mandis e moreias, qual minúsculos submarinos cromados, nadavam cheios de paz, de um lado para o outro. Quando em vez debandavam lepidamente, fugindo ante o aparecimento de alguma traíra esfomeada, ou de alguma andarilha cobra d´água. Logo depois vinham retornando morosamente, reluzindo suas escamas prateadas nos raios do sol.

Por muito tempo fiquei perdido naquela cena do remanso. Via as árvores curvando seus galhos em forma de penachos, até às águas transparentes; os peixinhos que afocinhavam os barrancos das orlas e a água que deslizava sem lá muita pressa. A princípio fiz alguns barquinhos com as folhas de caetés e deixei que fossem descendo por entre os galhos do riacho. Depois me pus a pensar. O silêncio era invitativo para que, do infinito, Deus me falasse. Lembro-me perfeitamente como se, ainda agora, algo de estranho confabulasse comigo. Retruquei ao próprio Deus e depois de cansado, estirei-me ao largo, dormi e do leve sono, encontrei-me a sonhar.

“Estava a caminhar diante das três pedras do Alto Liberdade, numa tarde quase noite. Andava sem destino, transportado por uma espécie de instinto de fome. Logo depois, parecia-me transformado num esquisito animal que meu pai dizia ser demais travesso. Nesse instante, uma leve luz começou a se avultar mais e mais, à maneira que me remodelava num perigoso animal. Aquela luz me enceguecia, e não pude mais olhar, senão meu tétrico aspecto. Ouvi, então, uma voz imperiosa e, ao mesmo tempo, suave, a me chamar. Abri os olhos e notei que todo aquele esplendor tinha se restringido a um pequeno disco revérbero que irradiava chispas luminosas.

– Está me ouvindo? Uma voz perguntava.

– Sim, respondia, mas não continuava a conversa.

Volvi os olhos rapidamente e reconheci em volta de mim, um tenro cordeirinho. A luz se tornava inebriante e depois de algum tempo, eu já me sentia desfalecer perante o céu que se abria. Mas, tudo foi um abrir e fechar de olhos, pois logo o disco brilhante desapareceu e um rugido metuendo abalou todo meu ser. Parecia-me não querer despertar, ver mais adiante: meu futuro talvez.

Outro rugido ensurdecedor ribombou e sobressaltei-me com as mãos na garganta, cheio de temor, como se tudo fosse realidade. Nunca consegui desvendar esta incógnita, sem, contudo, perder um único detalhe dela. Minha fronte estava banhada de suor e meu coração parecia explodir dentro do peito. Estava ainda entre as largas folhas daquela relva virente à beira do riacho. Contudo, uma voz não cessava de sussurrar-me; “Não se esqueça, não se esqueça…”

Meu Deus, balbuciei, que aconteceu comigo? Então, uma gargalhada estrondosa se fez ouvir debaixo da tangerineira! Agachei-me ainda mais e pude lobrigar um homem em farrapos, tez abacinada, chapéu de palha em frangalhos, descalço, com as mãos enterradas nos espinhos, a me fitar furibundo. Gritei como louco e vim lançar-me nas pernas de minha mãe, que jamais acreditava nas minhas histórias. Por certo era obra de minha imaginação, forçada com as ameaças contínuas de meus pais:
– Olha, me diziam sempre: “Deus não gosta de crianças que não obedecem aos pais. Um dia você vai ver o diabo”.

Eu chorava agarrado em suas pernas e ela continuava a cozinhar, mais atarefada do que nunca. Por fim, retirou a panela da chapa e levou-a à mesinha:

– Solte-me, disse ela, não está vendo logo se o diabo vai mexer com criança?

– Mas eu sou uma criança má, mamãe. E se não era ele, que bicho era aquele?

– Algum homem que estava lá e resolveu dar um susto em você.

– Mas, mamãe, um homem não pode dar gargalhadas daquele jeito. Eu vi. Era alto demais e nos seus olhos, oh, mamãe, foi horrível.

– Bem, bem, vamos jantar e deixa de bobagens.

Durante a noite, deixei acesa a lamparina do meu quarto e não pude determinar a hora em que comecei a dormir. Aquela figura se desenhava na inconstância das chamas e gargalhava a me ensurdecer. Pela manhã, despertei irrequieto e cansado. Aquelas alucinações não me deixavam. A única palavra que eu pronunciava a cada instante, era o nome de Deus. Vi-o emoldurar-se na poeira, nas estrelas e nas águas. Pedia-lhe perdão, cheio de temor e acreditando cegamente em minhas visões. Daí para frente, minha vida tomaria outro rumo. Já não amava a solidão e queria ser bom, retirar, enfim, do meu coração aquele pesadelo horrível.

Meu cunhado, vendo a gravidade que a brincadeira havia causado, enfim, disse que foi ele. Estava chupando mexericas e quando me viu, resolveu me dar um susto. Mesmo assim, nada foi mais real do que aquela brincadeira, tanto que modificou a minha vida.

Em breve, Deus me proporia um estranho destino!

VII
Chega, afinal, o dia 26 de dezembro, início das férias finais para os seminaristas. A noite que o preludia é pouco condizente aos jovens que se destinam à vida exemplar. Ninguém consegue dormir e mal se davam aqueles que tentassem. Travesseiros e castanhas voam pelos ares, indo e vindo sempre com endereço do rosto de um distraído qualquer. E aquilo já se tornara tradição: tipo os trotes aos formandos das faculdades. O próprio diretor não intervinha, ou o fazia somente por praxe. Lá fora reluziam as últimas fagulhas da fogueira da despedida, acercada por vários rapazes que preferiam assar aipins e batatas a suportar a arrogância do Benício e do João Carlos.

Tudo era contentamento e algazarra. Em cada face se via um sorriso e em cada sorriso, o atestado de quão dura é a vida de um seminarista.

Agora, um carro estaciona no pátio. O reitor vem e avisa, não menos feliz do que nós:

– Alunos de Colatina!

Já sabíamos. Aprontamo-nos e uma hora depois, de malas em punho, penetrávamos na estação ferroviária. Lá atrás havia, para mim, ficado para sempre, o recesso féleo de minha infância. Para sempre me falariam daquele mar esverdeado e do céu azul. Sentiria a cada instante, as palavras singelas do cônego Acácio e reclamaria no mesmo instante, a brutalidade daquele regime.

Só mesmo uma criança pode dizer o quando era antiquado o regulamento daquele seminário. Fazer com que uma criança se prive dos divertimentos, quase na totalidade; exigir da mesma o sacrifício inexprimível, não edifica, mas, revolta. Tentar resumir todas as almas infantis e subjugá-las uniformemente debaixo de uma única prescrição é por demais desumano. É preciso que se saiba, que cada pessoa tem de ser tratada diferentemente, para que se sinta feliz. O que para alguém nada significa, para outro pode ser espezinhante. De todos os engenhos complicados, o humano é o maior de todos. E o seminário não reconhecia isso. Parece-me, mesmo, que se alguém me tivesse compreendido, hoje não seria o que sou. Mais tarde, nas páginas subsequentes, isto ficará mais claro.

Desembarcamos em Colatina, num dos dias mais quentes que já havia vivido, e tomamos o ônibus para Marilândia. Meus olhos não se cansavam de rever aquelas plagas em que vivi os melhores dias de minha vida. A ponte Sílvio Avidos, comprida e estreita, recobrindo as águas lamacentas do rio Doce; a serra do Pancas – verdadeiro pesadelo para os motoristas nas épocas das chuvas; O Chapadão, onde meu pai me escrevera que dois ladrões assassinaram o velho turco, covardemente; a encruzilhada para Taquaruçu e o morro da Paixão, que foi palco de outro duro assassinato, quando tudo ainda era mata. Depois, o vilarejo São Marcos e finalmente, as pastarias do Catelam, que atapetavam os derredores do vilarejo que me viu nascer.

Tudo estava diferente, mas minha mente pródiga mantinha o passado bem presente. Com prazer imenso eu via os pássaros flamenguinhos subirem verticalmente e cantar bem alto, voltando, em seguida, para o mourão da cerca. Quantas vezes recobrimos de visgos todos aqueles galhos, mourões e guaximas, para ludibriar o sábio alígero. Agora podiam passear pelas pastarias, despreocupadamente: seus inimigos estavam longe: haviam crescido, tomado juízo.

Desponta a Rua Dom Bosco, empoeirada e suja. Um vento insubmisso faz rolar os papéis de um lado para o outro. Faço parar o veículo e vejo que uma figura magra, rosto macilento e belo, e negros cabelos, corre ao meu encontro:

– Mamãe, minha mãe, a bênção!

Não sabia se chorava, se ria ou se ficava sério. Tudo se misturava indefinidamente. Não pensava mais como um ex-seminarista, nem como um filho malcriado. Sentia-me feliz permeio aquele amontoado de perguntas que me eram dirigidas a um só tempo. As crianças, minhas amigas, estavam todas apinhadas à porta, olhando-me curiosas. Naquela época, dificilmente um filho de lavrador era enviado para os colégios da capital. Por isso fitavam-me admirados. Mais ainda porque eu estava lá para me ordenar padre.

Atarcísio interpelou-me:
– Que tal, matou muito passarinho lá praquelas bandas?

– Qual nada, Atarcísio, lá não se caça: estuda-se e se reza das quatro às 22 horas.

– O que é que vocês tanto estudam?

– Ora, muitas coisas. Aprendemos a falar bem, a compreender a religião, a rezar. A fazer contas…

– Você não sentia vontade de pelotear os beija-flores, os caga-sebos, os tempos-quentes?

– Tinha, mas não podia. Não havia tempo e nem permissão. A vida lá é tão diferente! Não se pode tomar banho sem calção, nem trocar de roupa na vista dos companheiros.

– Ué, por quê?

– Porque lá, para eles, nem tudo o que Deus fez pode ser mostrado. O Deus de lá é diferente do nosso daqui. O deles quer que a gente respeite a Natureza, não mostre o piu-piu nem olhe para as meninas.

E conversando, chegamos à hora de deitar-se. Compreendi a simplicidade deles e reconheci-me um teórico banal. Quase não dormi durante a noite. Revivia meus dias de seminário, minha infância de traquinagens e minha situação presente. E agora que não mais voltaria, como seria minha vida?

Notava que tinha mudado e aprendido bastante, e não iria ser fácil acostumar-me às regras que lá me foram apresentadas.
No outro dia bem cedo, fui apresentar-me ao vigário paroquial, por ordem do reitor do seminário. Estava ele num trabalho pouco recomendável para um sacerdote: consertava um velho galinheiro, no fundo do quintal. Mal avistou-me, jogou o martelo ao chão e ainda com alguns pregos presos entre os dentes, abraçou-me efusivamente.

– Olá, meu filho, como tem passado? Sua última carta, por causa destes trabalhos que não me dão folga, não respondi.

– Não tem importância.

– Vamos entrar um pouco e tomar um leite gelado.

Eu fitava aquele trapo humano, todo banhado de suor, a olhar-me esperançoso.

– Hei de deixar tudo isto para você descansar mais tarde, falou-me depois no pátio, lançando um olhar autoritário por toda a extensão que pertencia à igreja.

– Queira Deus que assim seja, retruquei-lhe, transferindo por isso mesmo, o duro golpe para outra oportunidade.

Dias depois, eu retornei e fui direto ao assunto, dizendo como palavras de introdução, que eu iria sair do seminário. O golpe lhe fora duro, mas ele assimilou ponderando, abraçando-me fortemente:

– E por isso precisa ficar tão oprimido? Vamos, levante esta cabeça. Agora, mais do que nunca, precisará dela erguida. Eu nada posso fazer contra a vontade de Deus. Ou acha que quererei obrigá-lo a voltar? Não, não! Pode ficar descansado e tranquilo. Peço a você, apenas, que continue espiritualmente a ser o que era no seminário: sempre forte, honesto, autêntico e sincero.

Meus pais também ficaram decepcionados, principalmente minha mãe que sonhava ter um filho sacerdote. Mas eu não podia ser um ministro de Deus, eu não tinha vocação. No fundo mesmo, eu queria ser escritor. Até que eu poderia ser um padre escritor, mas nunca fui a favor de misturar as coisas. Eu vivia criticando os padres cantores!

Quando no seminário, eu estudava tanto quanto podia. Li toda a biblioteca da casa e já vivia ensaiando, escrevendo histórias, romances, quase sempre repetindo acontecimentos de minha infância. Apesar de malcriado, meu Deus da infância era pai. No seminário, mostraram-me um outro, mais exigente. Eu vivia querendo ficar com aquele de minha infância e por isso, tentava sufocar o do seminário. Mas, por mais que eu O deixava em segundo lugar – qual mau inquilino – Ele não acatava minha ordem de despejo. Lutávamos sem tréguas. Durante o dia eu o vencia facilmente, fazendo-o recuar, mas pela noite, com grande escolta angelical, Ele retornava, mais exigente do que nunca.

Eu rolava na cama, de um lado para o outro, escondendo os olhos e tapando os ouvidos. Mas o som e a figura não desapareciam:

– Eu sou o seu Deus!

– Quero dormir, quero paz.

– Eu sou a paz.

– Então, por que me inquieta?

– E você, por que me rejeita?

– Não, eu não me envolvo com o Senhor.

– A quem pensa que ofende, quando grita com seus pais, não obedece a sua mãe, briga com seus irmãos, critica o Jacó ou faz com que o velho Pedro se assente no excremento do gado?

– Eu estava apenas brincando. Além do mais, o velho Pedro estava de cócoras e perdeu o equilíbrio sozinho.

– Isto é verdade?

– Meu Deus, eu quero dormir. Diga-me, porque vive a me perturbar: veja ali como meus outros irmãos roncam. Por acaso ontem não estiveram arrombando a porta do grupo para pegar uma lata de Lactogênio? Por acaso não foram eles que amarraram dez bombinhas no rabo do gato, acenderam e depois o soltaram na rua? Não foram eles que soltaram o canário do Zequinha? Não foram eles que me puseram a vigiar papai, enquanto cortavam tiras de borracha com a navalha de rapar a barba? E o que o Senhor fez? Além do mais, eles não me deixam caçar com eles e….

– Se quer ser homem, deixe que lhe guie. Cumpra suas obrigações. Agora durma você também.

– Não, espere, quero ainda lhe fazer uma proposta.

– Qual?
– Deixa de apanhar balas comuns na venda da Dália; de furtar cigarros de seu pai só para fingir que está fumando, já que não suporta a fumaça; de surrupiar as pelotas do Aildo e de ler gibis não recomendados.

– Em troca, o Senhor, não se envolverá mais comigo, certo?

– Quero que amanhã você se encontre com o velho sacerdote e converse com ele mais uma vez.

– Mas, isto é chantagem.

– Boa-noite, meu filho.

– Boa-noite, meu Pai.

E aí eu ficava olhando para o teto, e havia vezes que eu chegava a acreditar que tudo aquilo havia acontecido. Bem, pode ser até que fosse, porque Jesus, quando enalteceu as crianças, dizendo, inclusive, que se não nos tornássemos como uma delas não entraríamos no reino dos céus, não separou os moleques sapecas da generalização, nem fez especificação do tempo.

Acho que era por isso que Ele não desistia de mim. Mas, eu iria crescer e, crescendo, com certeza iria perder o privilégio. E, aí, eu já começava a ficar preocupado com antecedência, porque, nas raras vezes em que me facultava vasculhar o futuro, não encontrava qualquer chance de mudar. Sentia que era daí para pior.

VIII
Quando minhas pálpebras se abriram pela manhã, deixei a cama num relance, temendo aqueles colóquios com a voz de minha consciência. Iria fazer tantas malcriações, tantas coisas proibidas, que aquela voz me abandonaria. Nada de estudar, de obedecer ou rezar.

À noite (era costume nas famílias de origem italiana) rezar o terço, mas minha preocupação era descobrir alguma coisa de engraçado para fazer todos rirem. Certa vez, minha mãe, exaltada com minha arrogância, tomou-me pelo braço e empurrou-me para a varanda, fechando a porta e deixando-me pelo lado de fora:

– Fique aí com o capeta, já que não quer rezar!

Logo que ela entrou comecei a esmurrar a porta e a gritar cheio de medo, porque estava desabando tremendo temporal. Nisto, um raio caiu em cima do pé de boleira a apenas 40 metros da varanda em que me encontrava. Houve gritos de “Nossa Senhora” e um silêncio tumular em seguida. Eu não conseguia mais gritar e então, abriram a porta. Eu entrei e, agarrado à saia de minha mãe, rezei o resto do terço.

No dia seguinte, nem sequer mais me recordava do que havia acontecido. Fazia o que bem entendia e dificilmente apanhava, porque eu era bom para correr e minha mãe logo me perdoava ou esquecia. Tudo o que me diziam ser proibido eu fazia com satisfação delirante. Um dia, recordo-me perfeitamente, chovia torrencialmente por toda a região. O riacho Liberdade se avolumava, transbordando e alagando todas as várzeas. Meus irmãos mais velhos, acompanhados de outros tantos amigos, saíram para um banho, logo abaixo de nossa casa.

– Eu também vou, gritei logo que descobri o que pretendiam.

– Ah, riu-se o mano Hildebrando, ele também quer ir tomar banho lá nas correntezas do Fundão, sem saber nadar. E, em coro, me gozaram: “Mamãe, ponha um balde de água na bacia que alguém quer tomar banho também, hahahahaha. Mas, não ponha muita água não senão ele se afoga.

Pois bem, deixei-os sair e fui à distância. O poço era fundo e o remanso, com o aumento das águas, formava redemoinhos assustadores. Meus irmãos brincavam, nadavam pulavam distraidamente. Sorrateiramente eu tirei a roupa toda (havia de ser contra os princípios do seminário) e saltei como uma pedra, e como uma pedra desapareci na água cor de lama do riacho.

– Quem pulou aí, goelou alguém?

– Não sei, respondeu um. Creio que foi o Alonso, dizia outro.

Todos ficaram de olho para ver quem iria boiar mais adiante, mas ninguém aparecia.

– José, falou o Pedrinho, o Alonso está aí?

– Está, por quê?

– Hei, explodiu num grito o Aildo, apontando com o dedo, olha lá…

Todos olharam. A uns 15 metros abaixo ia eu, boiando com os braços para cima e a barriga já cheia d´água. Sendo jogado pela correnteza contra o barranco – na ansiedade de um que se afoga – atraquei-me a uma moita de tiririca, só soltando quando já, em terra firme, senti a vida voltando. Havia escapado de uma das mais duras provas contra a desobediência. Por certo, aquela voz não me abandonaria nunca. E, de fato, Deus amainou sua preocupação e os anos subsequentes foram-me cheios de capricho e de egoísmo.

No final do ano completei o curso de admissão no Colégio Estadual da cidade de Colatina, onde fui aprovado como o segundo da turma. Iniciei o ginásio com a angústia de um proscrito. Sentia falta dos meus pais e irmãos, dos meus amigos de Marilândia, de tudo quanto formava meu mundo. Hospedei-me na casa de um parente, que não se cansava de misturar a hospitalidade, com gotas de venenosos provérbios. Certa vez me perguntaram se eu sabia que “parente era uma doença que dava no bolso da gente”. Doeu-me muito porque eu era obrigado a varrer e encerar toda a casa.

Uma hora depois eu já lambia o envoltório de uma carta, em que descrevia, aos meus pais, toda amargura de tantas humilhações. Meus pais, porém, não opinavam, senão, me pedindo paciência e resignação. Afinal, estavam nos fazendo um favor que valia o sacrifício. Passei ali um ano, quando iniciei prótese dentária, onde passava meus dias no trabalho de articular e dar brilho às pontes móveis.

Mesmo assim, a vida tomou, para mim, outro colorido. Não precisava mais sufocar meus familiares, escrevendo para casa a fim de pedir alguns cruzeiros para o cinema. Era ainda o tempo do pão a um cruzeiro e da cocada a 0,50. Consegui juntar dois mil cruzeiros, com o qual comprei uma espingarda americana de um cano, calibre 40, juntamente com a cartucheira. Era meu sonho que logo deixou de sê-lo, pelo simples fato de o haver conseguido. Passaram-se os meses e fui promovido à segunda série ginasial.

Sentia plena convicção de ser o maior pensante da terra, apesar de abancar-me na última cadeira da velha sala B, para ouvir um aluno do primeiro científico, falar sobre o encéfalo ou corda espinhal. Tinha tanta aversão àquelas palavras decoradas do “professorzinho”, que, ainda hoje, poderia recitá-las: “Comparemos nossos centros nervosos com uma companhia telefônica, que recebe e envia mensagens a todos os instantes. Desta ida e volta de mensagens é que surgiu a denominação de estímulos sensitivos ou motores. Quando alguma coisa nos estimula, um nervo qualquer de nossa periferia, dá-se….”

Sentia por tudo aquilo uma inveja e uma revolta ao mesmo tempo que, de tão grande, não poderia deixar de desafiar o Paulinho para uma disputa de “pontadas de lápis”.
Tinha certeza de que o moço nada entendia de Ciência, apesar de entrar por 45 minutos numa erupção escabrosa de termologia científica. Era eu, então, o gênio da era, o egoísmo personificado. Não estudava mais, nem sequer fazia rascunho ou caderno controlado. Preferia, pelas tardes, passear de bicicleta ou ludibriar o porteiro do cinema. Isto já era mecânico: vinha à porta central e pedia licença ao porteiro para dar uma olhadela, se um amigo qualquer ali se encontrava. Saía, então pela porta lateral, solicitando ao encarregado daquele setor, permissão para ir à lanchonete comprar alguma coisa. A seguir voltava ao porteiro da frente e dizia: olha, já saí. Muito obrigado. A seguir, retornava pelo corredor lateral e entrava sem cigarro, porque nunca fumei, e sem senha. Isto produziu efeito por um ano inteiro, quando completei mais uma primavera e minha gengiva concebeu o primeiro siso.

QUARTO EXERCÍCIO

BRAUXO – O MORUBIXABA

Desculpem a falta de modéstia, mas achei a historinha tão interessante para um jovem principiante no mundo literário, que ousei transformá-lo num livro à parte.

Quando tomei o caderno, cheio de poeira, já com a capa se soltando. Não imaginei que já havia mais de 60 anos! Como eu estivesse decidido a copiar partes de todo aquele velho material, comecei a lê-lo.

Já não me lembrava de mais nada. Os nomes me eram todos estranhos, as tramas, então, nem quando eu estava nos últimos capítulos, consegui imaginar o fim. Terminei a leitura e, imediatamente, comecei a reler.
Para ser sincero, como adolescente, admirei-me. Eram tantos os ardis, que precisei fazer uma sinopse para entender. Não quero dizer que foi algo que se assemelhasse à realidade, mas, mesmo como ficção, considerei a melhor de minhas tentativas para um dia escrever alguma coisa de valor.

Digitei tudo, imprimi e passei às minhas filhas, a fim de que lessem e me dissessem o que achavam. Bem, não demonstraram grande entusiasmo, e isto já era a mais convincente resposta de que a história não era lá essas coisas.

Não desanimei, tornei a ler, fiz algumas alterações e resolvi deixar para a posteridade. Por isso, quando verem um livro, tendo na capa “Brauxo, o morubixaba”, poderão lembrar logo dessas minhas considerações. Outro motivo de editá-lo separadamente, foi evitar engrossar ainda mais, este volume.

E agora, vamos para a melhor, mais ousada e mais irresponsável parte de minha vida: AS CAÇADAS.

XIX
Parei de dar o golpe no cinema, porque ainda não havia assimilado o valor da honestidade. Passava os dias às brancas nuvens, dormindo ou caçando. À noite (porque agora eu estudava à noite) ia para o colégio, com os exercícios ainda por fazer. Felizmente, no final sempre dava certo e meus pais até se orgulhavam de mim. Enganá-los era minha especialidade, principalmente depois que me tiraram do paraíso. É que minha felicidade se encontrava na plena liberdade de viver me divertindo nas terras de meu pai. Eu não queria estudar: queria ser um bichinho como todos os que me rodeavam, porque se havia uma coisa que logo aprendi, a certeza de que um dia iria morrer era uma delas, fosse eu iletrado ou culto.

A vida rotineira de inércia e negligência continuava. Sentia toda a Natureza sã depor contra mim em irrestrito protesto.

Eu estava hospedado, então, no prédio do amigo Padovan, do outro lado da ponte Sílvio Avidos. O lugar em que eu ficava era de alvenaria, com amplos compartimentos, e onde morava apenas uma família de recém-chegados. Ali eu passava os dias de folga e pernoitava, sendo que as refeições eram feitas ao lado, na casa de um conterrâneo. Confesso que jamais senti tanta solidão.

Ficava debruçado sobre o portal da janela, olhando o deslizar das águas lamacentas do rio Doce. Aos domingos, sentia-me só, olhando os pescadores de robalo, dispersos por toda a extensão da ponte; ou as lanchas com motor de avião, que praticavam esqui, com estranha velocidade. Não sei a razão, mas esperava sempre um desastre em cada manobra ousada que faziam, como se isso me deleitasse. Demonstrava não ter sentimentos, embora qualquer cena triste, real ou de ficção, me fizesse chorar. No fundo, eu percebia que todos se odiavam, procurando um sobrepujar o outro, sem olhar os meios. Ali sozinho, num antro inumano de escassez de espírito, meu coração era subjugado ao duro teste sobre as maldades e a malícia do mundo.

Por sorte, o meio em que fui criado, os ensinamentos e os exemplos deixado pela minha família, resistiram bravamente a todos esses achaques. Continuava sentindo necessidade de um amigo de fé que lançasse uma corda e me arrastasse da areia movediça em que me encontrava. Preferia, no entanto, confiar nas paredes gélidas do meu quarto, que só ecoavam as perguntas que sempre se referiam à incredulidade.

Numa noite, já não suportando a anormalidade de ser, alimentei a triste ideia de me entregar a tudo o que era ruim. Queria apagar, de uma vez por todas, a martirizante angústia de viver na dúvida. Mas Deus não me deixava, mesmo porque Ele sabia o quanto eu desejava acreditar nele sem reservas.
Encontrava-me assentado à cabeceira da cama. O rio Doce corria; dois carros transitavam pela ponte. Minha visão da janela era ampla, mas as angústias da alma, também. Não sei bem o que eu fiz naquela noite. Estava tão atônito, que mal posso lembrar de fiapos de ideias. Havia corrido uma olhadela pelas notas: não eram ruins. Meus pais já não me repreendiam e eu já me mantinha às próprias custas. O problema era sossegar a voz de minha consciência. Por que aquela ideia de Deus era, por vezes, tão presente em mim? E era sempre com esta procura vã que eu acabava dormindo. Pela manhã fui à cidade, sempre pensando naquelas ideias capilárias que se desenvolviam em grossas artérias. Era, então sábado, lindo dia, cheio de brisas e convites. No entanto, preferi continuar na janela e fitar o verde-cré desordenado dos feixes de luar sobre as águas tranquilas.

Observação: há mais 20 capítulos que não serão aqui registrados.

VIII
Quando minhas pálpebras se abriram pela manhã, deixei a cama num relance, temendo aqueles colóquios com a voz de minha consciência. Iria fazer tantas malcriações, tantas coisas proibidas, que aquela voz me abandonaria. Nada de estudar, de obedecer ou rezar.

À noite (era costume nas famílias de origem italiana) rezar o terço, mas minha preocupação era descobrir alguma coisa de engraçado para fazer todos rirem. Certa vez, minha mãe, exaltada com minha arrogância, tomou-me pelo braço e empurrou-me para a varanda, fechando a porta e deixando-me pelo lado de fora:

– Fique aí com o capeta, já que não quer rezar!

Logo que ela entrou comecei a esmurrar a porta e a gritar cheio de medo, porque estava desabando tremendo temporal. Nisto, um raio caiu em cima do pé de boleira a apenas 40 metros da varanda em que me encontrava. Houve gritos de “Nossa Senhora” e um silêncio tumular em seguida. Eu não conseguia mais gritar e então, abriram a porta. Eu entrei e, agarrado à saia de minha mãe, rezei o resto do terço.

No dia seguinte, nem sequer mais me recordava do que havia acontecido. Fazia o que bem entendia e dificilmente apanhava, porque eu era bom para correr e minha mãe logo me perdoava ou esquecia. Tudo o que me diziam ser proibido eu fazia com satisfação delirante. Um dia, recordo-me perfeitamente, chovia torrencialmente por toda a região. O riacho Liberdade se avolumava, transbordando e alagando todas as várzeas. Meus irmãos mais velhos, acompanhados de outros tantos amigos, saíram para um banho, logo abaixo de nossa casa.

– Eu também vou, gritei logo que descobri o que pretendiam.

– Ah, riu-se o mano Hildebrando, ele também quer ir tomar banho lá nas correntezas do Fundão, sem saber nadar. E, em coro, me gozaram: “Mamãe, ponha um balde de água na bacia que alguém quer tomar banho também, hahahahaha. Mas, não ponha muita água não senão ele se afoga.

Pois bem, deixei-os sair e fui à distância. O poço era fundo e o remanso, com o aumento das águas, formava redemoinhos assustadores. Meus irmãos brincavam, nadavam pulavam distraidamente. Sorrateiramente eu tirei a roupa toda (havia de ser contra os princípios do seminário) e saltei como uma pedra, e como uma pedra desapareci na água cor de lama do riacho.

– Quem pulou aí, goelou alguém?

– Não sei, respondeu um. Creio que foi o Alonso, dizia outro.

Todos ficaram de olho para ver quem iria boiar mais adiante, mas ninguém aparecia.

– José, falou o Pedrinho, o Alonso está aí?

– Está, por quê?

– Hei, explodiu num grito o Aildo, apontando com o dedo, olha lá…

Todos olharam. A uns 15 metros abaixo ia eu, boiando com os braços para cima e a barriga já cheia d´água. Sendo jogado pela correnteza contra o barranco – na ansiedade de um que se afoga – atraquei-me a uma moita de tiririca, só soltando quando já, em terra firme, senti a vida voltando. Havia escapado de uma das mais duras provas contra a desobediência. Por certo, aquela voz não me abandonaria nunca. E, de fato, Deus amainou sua preocupação e os anos subsequentes foram-me cheios de capricho e de egoísmo.

No final do ano completei o curso de admissão no Colégio Estadual da cidade de Colatina, onde fui aprovado como o segundo da turma. Iniciei o ginásio com a angústia de um proscrito. Sentia falta dos meus pais e irmãos, dos meus amigos de Marilândia, de tudo quanto formava meu mundo. Hospedei-me na casa de um parente, que não se cansava de misturar a hospitalidade, com gotas de venenosos provérbios. Certa vez me perguntaram se eu sabia que “parente era uma doença que dava no bolso da gente”. Doeu-me muito porque eu era obrigado a varrer e encerar toda a casa.

Uma hora depois eu já lambia o envoltório de uma carta, em que descrevia, aos meus pais, toda amargura de tantas humilhações. Meus pais, porém, não opinavam, senão, me pedindo paciência e resignação. Afinal, estavam nos fazendo um favor que valia o sacrifício. Passei ali um ano, quando iniciei prótese dentária, onde passava meus dias no trabalho de articular e dar brilho às pontes móveis.

Mesmo assim, a vida tomou, para mim, outro colorido. Não precisava mais sufocar meus familiares, escrevendo para casa a fim de pedir alguns cruzeiros para o cinema. Era ainda o tempo do pão a um cruzeiro e da cocada a 0,50. Consegui juntar dois mil cruzeiros, com o qual comprei uma espingarda americana de um cano, calibre 40, juntamente com a cartucheira. Era meu sonho que logo deixou de sê-lo, pelo simples fato de o haver conseguido. Passaram-se os meses e fui promovido à segunda série ginasial.

Sentia plena convicção de ser o maior pensante da terra, apesar de abancar-me na última cadeira da velha sala B, para ouvir um aluno do primeiro científico, falar sobre o encéfalo ou corda espinhal. Tinha tanta aversão àquelas palavras decoradas do “professorzinho”, que, ainda hoje, poderia recitá-las: “Comparemos nossos centros nervosos com uma companhia telefônica, que recebe e envia mensagens a todos os instantes. Desta ida e volta de mensagens é que surgiu a denominação de estímulos sensitivos ou motores. Quando alguma coisa nos estimula, um nervo qualquer de nossa periferia, dá-se….”

Sentia por tudo aquilo uma inveja e uma revolta ao mesmo tempo que, de tão grande, não poderia deixar de desafiar o Paulinho para uma disputa de “pontadas de lápis”.
Tinha certeza de que o moço nada entendia de Ciência, apesar de entrar por 45 minutos numa erupção escabrosa de termologia científica. Era eu, então, o gênio da era, o egoísmo personificado. Não estudava mais, nem sequer fazia rascunho ou caderno controlado. Preferia, pelas tardes, passear de bicicleta ou ludibriar o porteiro do cinema. Isto já era mecânico: vinha à porta central e pedia licença ao porteiro para dar uma olhadela, se um amigo qualquer ali se encontrava. Saía, então pela porta lateral, solicitando ao encarregado daquele setor, permissão para ir à lanchonete comprar alguma coisa. A seguir voltava ao porteiro da frente e dizia: olha, já saí. Muito obrigado. A seguir, retornava pelo corredor lateral e entrava sem cigarro, porque nunca fumei, e sem senha. Isto produziu efeito por um ano inteiro, quando completei mais uma primavera e minha gengiva concebeu o primeiro siso.

QUARTO EXERCÍCIO

BRAUXO – O MORUBIXABA

Desculpem a falta de modéstia, mas achei a historinha tão interessante para um jovem principiante no mundo literário, que ousei transformá-lo num livro à parte.

Quando tomei o caderno, cheio de poeira, já com a capa se soltando, não imaginava que mais de 60 anos haviam se passado. Como eu estava decidido a copiar partes de todo aquele velho material, comecei a lê-lo.

Já não me lembrava de mais nada. Os nomes me eram todos estranhos, as tramas, então, nem quando eu estava nos últimos capítulos, consegui imaginar o fim. Terminei a leitura e, imediatamente, comecei a reler.
Para ser sincero, como adolescente, admirei-me. Eram tantos os ardis, que precisei fazer uma sinopse para entender. Não quero dizer que foi algo que se assemelhasse à realidade, mas, mesmo como ficção, considerei a melhor de minhas tentativas para um dia escrever alguma coisa de valor.

Digitei tudo, imprimi e passei às minhas filhas, a fim de que lessem e me dissessem o que achavam. Bem, não demonstraram grande entusiasmo, e isto já era a mais convincente resposta de que a história não era lá essas coisas.

Não desanimei, tornei a ler, fiz algumas alterações e resolvi deixar para a posteridade. Por isso, quando verem um livro, tendo na capa “Brauxo, o morubixaba”, poderão lembrar logo dessas minhas considerações. Outro motivo de editá-lo separadamente, foi evitar engrossar ainda mais, este volume.

E agora, vamos para a melhor, mais ousada, mais arriscada e mais irresponsável parte de minha vida: AS CAÇADAS.

MINHAS CAÇADAS

Sobre os tantos exercícios que pratiquei na esperança de um dia ser escritor, tenho o relato de minhas caçadas. Naquele tempo, apesar de a lei já existir, poucos, ou praticamente ninguém do antigo IBAMA e da polícia de Marilândia, e logo depois, de Linhares, importavam-se com os caçadores.

A gente caçava em volta da vila e, posteriormente, em volta da cidade de Linhares e desfilava pelas ruas, com aves e bichos mortos pendurados à cintura. Alguns agentes do IBAMA ou da polícia, até pediam algumas aves abatidas, para “fazerem tira-gosto à noite”. Era livre e havia tantos caçadores, que poucos não o eram.

E eu – o mais dependente de todos eles – narrava em cadernos cada incursão que fazia, desde que elas durassem mais de três dias ou encerrassem fatos inéditos.
Nesse tempo, eu utilizava duas linhas em uma, para economizar papel. Hoje, ao transcrever partes, já com os olhos cansados, pago o preço da pobreza. Sinto, também, o pagamento de meus pecados por haver perseguido os bichinhos mais inocentes e belos da Natureza. Acreditem: não me é fácil ser autêntico e verdadeiro nessas horas.

Vou transcrever, abaixo, com a devida vênia, alguns trechos dessas minhas antigas caçadas, extraindo-os aqui e acolá, aleatoriamente, ilustrando-as com velhas fotos que ainda estão resistindo ao tempo. Se eu fosse copiar tudo o que escrevi neste tempo, com certeza, milhares de páginas não dariam. Como percebem, se hoje não escrevo bem, não foi por falta de exercício rsrsrsrsrs.

Noventa por cento dos amigos caçadores que aparecem nas fotos, hoje não existem mais: devem estar levando bicadas e mordidas de suas vítimas, lá no purgatório. “É que minha mãe sempre ameaçava a gente, dizendo que quando fazemos o mal às criaturinhas de Deus, do outro lado elas estariam lá, em fila indiana e, cada um de seus algozes, ao morrer, passarão por elas e levarão bicadas e mordidas, a fim de pagar pelos seus crimes. É….. Se for só isso, será bom demais!

PRIMEIRA CAÇADA QUE RELATEI:

Férias de julho de 1959. Condução: caminhão do Vitório Bona e camioneta do Zaudino Scarpat. Cozinheiro: Albertino Cordeiro; auxiliar: João Carapina. Componentes: Joaquim Bona, Hido Canal, Hildebrando, Livaldo, Jayr, Adalho e Dolmino Fregona, Egídio Mariani, Zaudino Scarpat, Dr. Joel Coelho, Orlando Scarpat (ainda menino nesse tempo) e Arlindo Falqueto.

Introdução:
Essas anotações procuram retratar a realidade. As belezas figuradas devem ser desconsideradas. A objetividade é algo que economiza tempo, indo mais diretamente ao que interessa ao leitor. Desprezando-se os subterfúgios, as pessoas terão mais rapidamente o fecho da história. Como se diz: começarei do início. Trata-se da recordação que faço de uma caçada realizada nas férias de julho do ano de 1959, nas matas do Espírito Santo, mas, que não deixa de ter em si, as aventuras concebidas a quem se embrenha em qualquer selva do mundo para caçar os habitantes selvagens. Como todo amante de caçadas, você retornará no tempo, ou por ter participado ou por ter sido testemunha do que está sendo narrado. Se nunca caçou, meus parabéns!

A partida:

Concretizados os estudos que fecharam o primeiro semestre do ano de 1959, abriram-se maravilhosas, as férias. Desta vez, a alegria de rever todos os meus não estava sozinha: vinha acompanhada de algo que me fazia reviver aqueles dias que antecederam a caçada. Era um sonho que passaria a viver pela primeira vez. Depois de longos preparativos, numa manhã fria de terça-feira, dia 7 de julho de 1959, resolvemos partir.

Consultamos o relógio: faltavam 10 minutos para as duas horas. Uma densa neblina pairava por sobre as árvores, como se estivessem temerosas de tocar o solo resseco pelo sol causticante do dia anterior. Soprava uma brisa frígida, que balouçava os galhos mais débeis e removia morosamente os flocos de neblina que iam de um lado para o outro, como se estivessem a brincar ao suave sabor dos ventos. No céu, cintilavam lourejantes, as estrelas, e as nuvens esparsas locomoviam-se para o noroeste, como advertindo-nos da partida, que estava em seu início.

Ouvimos o acelerar do carro, procuramos nossos lugares nos bancos da frente, ajeitamos nossas capas e travesseiros e, a seguir, esperamos pela partida. Viajamos por estradas pouco recomendáveis e, se não fosse a precaução que havíamos tomado, a viagem teria de ser cancelada. Caminhamos quatro horas e, até ali, tudo estava normal. Parecia mesmo, presságio de alguma controvérsia, porque carros velhos não aguentavam o tranco por muitas horas. Durante todo esse tempo, estávamos a tagarelar animadamente, relembrando ocorrências remotas que, muito nos animavam. Para alguns, as lembranças de caçadas anteriores eram sempre motivos para se aceitar todos os sacrifícios. Objetivando um descanso, pedimos para que parassem os carros a fim de que pudéssemos atender às necessidades fisiológicas e outrossim, constatar qual o motivo de umas batidas que uma das conduções vinha acusando.

A região era de propriedade do Carlos Lindenberg e como houvesse uma vasta pastaria propícia às pacas, o cachorro Navegante saiu disfarçadamente e, ao ser chamado de volta, não atendeu.

Os demais, Combate, Biriba, Fiel, Fondanga e Guri, portaram-se aceitavelmente. Bem, como falava, o cachorro que fugiu, ficou por lá, mais de duas horas. Enquanto isso, visitamos o extenso redil do lugar e ficamos pacientemente à espera do prevaricador. Por entre as árvores, alguns raios de sol já anunciavam a bela aurora.

E o Navegante, nada de aparecer. Indignando-se com a atitude do animal, o Adalho, chefe da caçada e do cachorro, prescreveu que fosse dada continuidade à viagem. Antes, porém, deixou com o morador do lugar, as informações sobre o fugitivo. E, já com o sol aclarando de todo o espaço, chegamos a Linhares, contemplando a vastidão de suas planícies. Ali fizemos uma breve parada, tomamos o desjejum reforçado e continuamos. Prolongamos ainda a viagem por 1h30min, até que nos abrigamos numa fazenda em que deixamos os carros e continuamos a pé. O capataz que já estava acostumado com caçadores por lá, não se opôs.

Eram mais ou menos 14 horas. Almoçamos modestamente, repartimos os pesos e partimos. Só mesmo o entusiasmo nos fez prosseguir ao ponto indicado, sem dar, sequer, uma parada para descansar, visto que foram duas horas de viagem com peso excessivo nas costas. Às 4h20min fizemos outra parada, numa abertura pequena, de propriedade de um médico de Vitória.

Ali morava um caboclo com a incumbência de velar pela posse. Estava prescrito que continuaríamos a viagem por mais uma hora, chegando, assim, à residência do Domiciano Scarpat, onde levantaríamos a tenda. Mas, por iniciativa unânime, resolvemos ficar ali, devido ao cansaço extremo em que nos encontrávamos, e porque o sol já estava sumindo e seria irresponsabilidade anoitecer dentro da picada que não conhecíamos.

Assim sendo, nada fizemos mais, a não ser ajeitar um lugar para dormir, ou passar a noite, e cooperar com o cozinheiro, a fim de que fosse feito um lanche estimulativo, intencionando a recuperação de nossas forças.

Estávamos ao sul e, ao mesmo tempo, ao norte do rio Doce. Bem acima, estava o rio Barra Seca e a lagoa Pau Atravessado; ao leste, a lagoa Monsarás e ao oeste, a confluência de um riacho que liga o Barra Seca às lagoas de Pau Atravessado e que, depois, deságua no rio Doce.

Jantamos e depois nos reunimos no terreiro, onde tomou a palavra o Adalho, comandante dessa excursão. Devíamos, segundo ele, empregar a parte da manhã numa breve caçada para, com sorte, conseguirmos alguma carne para almoçar. A parte da tarde, iríamos para o ponto determinado e edificaríamos a barraca definitiva. À noite ainda toquei um pouco de gaita, conversamos animadamente, deputamos o morador dali, Antônio, com sua debilitada égua, para apanhar o encerado que havíamos deixado no carro.

Em seguida, deitamo-nos, mas ninguém conseguiu dormir, porque estávamos muito cansados e, também, pelo incômodo incessante de nossos “colchões”. Eu olhava o céu cinzento, a Lua refletindo um verde crê desordenado, várias vezes obscurecida pela passagem de densas nuvens. Tudo parecia enlear-me em laços inquebrantáveis de doçura e gratidão, naquele filme da Natureza. Naquela mata interminável, a sombra da noite tinha, também, os seus deleites e as suas aventuras. De vez em quando, piados de macuco ressoavam mata adentro, como suave melodia aos meus ouvidos. Para mim tudo era novidade. Um leve clarão avermelhado ressurgia, afinal, por entre as frondes florestais e uma densa neblina descia umedecendo nossas vestes, banhando-nos com suas gotículas luzidias e frias. Já caminhávamos, Adalho e eu, mata adentro, com o auxílio de lanternas. Por se tratar mais de especular o lugar e por ser o tempo limitado, não nos afastamos muito do barraco.

Seguimos por um picadão cerca de 70 metros; depois ganhamos um valão e por ele piamos até as 10h30min, quando retornamos sem abater nem ouvir nada por ali. Piamos, mais adiante, um bando de urubas que estava lateralmente colocadas e foi com espanto que notamos que uma delas, levada pelo alvoroço, voou piando e pousou por cima de nós, numa folha de palmito. Tendo nos visto, tentou recuar, mas antes que levasse a efeito seu intento, eu atirei e, como era de se esperar, errei. Era o início de minha frustração. O bando, porém, era numeroso. Continuamos a piar e elas, levadas pela confusão vieram em desordem.

Notei, então, que duas delas se empenhavam numa luta feroz a 15 metros de mim. Aproveitando, fiz fogo. Vi várias penas flutuarem sobre as folhas e, a seguir, uma delas que corria por sobre um pau caído e podre. Novo disparo, acompanhado do bater agonizante de asas. Mudamos de lugar, se bem que não muito distante, e conseguimos abater mais duas delas. Precedeu os últimos disparos, um silêncio profundo, que acusava o desmembramento completo da grande família. As restantes, por certo, haviam percebido a armadilha. Recolhemos as aves mortas e depois, aproveitando o córrego que estava seco – devido a longa estiagem – fomos a uns 100 metros acima, onde eliminamos mais duas urubas.

Nesse tempo, não saberia precisar se, nas matas de Linhares havia mais chorões ou urubas. Mais tarde, já quase na hora de voltarmos, conseguimos mais dois chorões e depois, finalmente, retornamos para construir o barraco. Lá já nos esperavam, ansiosos e bem-sucedidos, nossos companheiros.

Aproveitando a numerosidade de pássaros abatidos, resolvemos guardar em foto, a triste façanha. Dispusemos as aves em fila, numa longa vara e, quando já estávamos todos prontos, demos pela presença do Zaudino Scarpat que acabara de chegar, acompanhado de seu filho Orlando. Retardou por ter vindo em sua própria camioneta, donde deveria voltar no sábado seguinte, juntamente como Dr. Joel Coelho, que não podia demorar-se, porque tratava um cliente em estado grave. Assim sendo, contamos, também, com a honrosa presença deles e acrescemos à vara, mais dois jacus e um chorão, abatidos por eles pelo caminho. Empregando todos os esforços, conseguimos ver edificada nossa moradia temporária. Ainda não havia o negro manto da noite descido, quando tudo estava pronto. Não sendo caçador, você jamais irá entender a emoção que estávamos vivendo.

Apesar de estarmos cansadíssimos, houve quem se mantivesse horas a fio disputando um triunfo ou um canastrão, à doce luz do lampião. Às 23 horas, no entanto, todos já ressonavam, sonhando com os macucos e por que não dizer, com a onça que, contudo, estava programada para o antepenúltimo dia. Muitas vezes, às altas horas da noite, acordávamos, trocávamos ideias, ou ficávamos silenciosos, ouvindo os ressonantes ladridos de nossos cães, que tocavam um bicho qualquer daquela mata prolixa. A aurora era sempre anunciada pelos cantores alados, que ainda no empalidecer das estrelas tímidas com o ressurgir do sol, entoavam melodias confusas e sonoras. Eram milhares deles, esvoaçando, brigando por alguma fruta madura encontrada.
O chorão, a uruba, o macuco e muitos outros, iniciavam os dias com piados álacres e tentadores e, quantas vezes nos puseram a usar as lanternas! À tarde, as jacutingas davam o toque de recolher, raspando as asas nos altos galhos secos, como se fossem matracas a avisar que, para os diurnos, era hora de se recolherem. Como era de meu plano matar um macuco, aconchegamo-nos bem do lugar em que teríamos ouvido um piar. No dia anterior, Egídio e Dolmino haviam abatido dois: o que fez crescer ainda mais minha esperança e, é claro, minha ansiedade. Fizemos a choça e ali permanecemos o dia todo, mas nada se denunciou. Os ponteiros dos relógios pareciam-me velozes, tal minha ansiedade. Meus olhos não se cansavam de vasculhar cada palmo do entorno, na esperança de divisar, entre os arbustos, algo que pudesse satisfazê-los. Não sentia fome.

Quando em vez nos aspergíamos com repelente a fim de evitar a perseguição furibunda dos mosquitos e das formigas. E, assim, piamos até a noite chegar e nada do soberbo galináceo. Alguns chorões e urubas fecharam mais um dia. Na barraca, o Velhão – apelido do mano Adalho e encarregado de me fazer matar meu primeiro macuco, brincou comigo: “É, acho que estou em decadência, porque os companheiros conseguiram 18 peças, com um macuco, abatido pelo Hido Canal, que nem caçador é”.

Não houve nenhum contratempo e isto já nos bastava. Ninguém se desnorteou gravemente e isto aconteceria até o fim da caçada. Houve pequenos embaraços, mas, felizmente, resolvidos com paciência e um pouco de trabalho.

Reunimo-nos, jantamos mais cedo e depois fomos ajudar o cozinheiro que não estava muito bem de saúde nesse dia. Vaguei pela barraca, auxiliando com isso a digestão e aproveitando para ouvir o relato de cada caçador. Boquiaberto, cheio de sã inveja, eu ouvia e anotava os fatos. As gozações eram sucessivas. O Hido Canal, por exemplo, gozou o Dolmino que, segundo ele, havia matado um macuco filhote que, de tão manso, precisou ser abatido com o cano da espingarda. Depois, furou o pescoço com um espinho, que representava os caroços de chumbo.

Veio imediatamente o protesto, acompanhado do fato verdadeiro. Disse-nos que vinha pelo sulco do riacho seco, pisando de mansinho na areia e quase engatinhando por sob o emaranhado de cipós, procurando descobrir um rastro de macuco ou mutum, quando ao se livrar da empuca, notou um vulto se movimentando a apenas cinco metros dele. Sem conferir a pontaria, puxou o gatilho e o macuco debateu-se. Com isso, justificou-se da acusação e seu rosto enrubescido, retornou à normalidade. Mais tarde, porém, confessou haver acertado um único chumbo no pescoço e precisou acabar com ele a troco de pau. A bem da verdade, foi uma verdadeira “cagada”.

À noite, um frio intenso desabou sobre a barraca, impedindo-nos de dormir. Do encerado ressumavam flocos de orvalho gelados, que pareciam aqueles tais manás do deserto relatado pela Bíblia. Levantei-me, vesti duas calças, duas camisas, dois meiões, agasalhei-me com a coberta e o frio penetrante continuava.

Resolvemos, então, apelar para um método artificial, mais ofensivo e primitivo. Juntamos, em plena noite, vários galhos de madeira e cercamos o barraco com numerosas fogueiras. Em volta delas, tremiam os cachorros e, não tardou para que o Dr. Joel Coelho os imitasse, escavando um buraco quase contíguo e se enterrando, ficando, praticamente, apenas com a cabeça do lado de fora.

Com essa caída brusca da temperatura, ficamos com a impressão de que iria chover, agouro este que iria se transformar em realidade no dia seguinte. Como, com a exceção do Dr. Joel, ninguém dormiu naquela noite, mal o dia amanheceu, todos já estava a caminho, cada qual para um lugar cuja intuição lhe parecia mais indicado. Pelo caminho, retiramos os bonés e rezamos à Nossa Senhora, pedindo que nos livrasse de algum contratempo. Quanto a mim, acresci o pedido para que ela me ajudasse a abater um macuco: motivo principal desta minha primeira caçada.

E, com a ajuda de nossa mãe celestial ou por coincidência natural, um macuco piou e foi bem localizado pelo mano Adalho. Fizemos uma grande choça, enquanto o galináceo (segundo o mano, uma fêmea excitadíssima em plena reprodução, cheia de ciúmes pelo território) piava a cada minuto. Diante da grande possibilidade de eu “tirar o dedo” já não conseguia me controlar. Estava nervoso e a espingarda quase me caía das mãos.

Recebi ordens do mano para me preparar para o disparo, porque, segundo aquela circunstância, a macuca deveria vir correndo. Estava enciumada e somente o macho poderia livrá-la. Mesmo assim, ele a desafiou para a briga, chororocando com o infalível “tio loló”. (Tio loló foi o nome que o mano Jayr deu à chororocadeira do mano Adalho. Ela emitia um trinado baixíssimo e perfeito, e raríssimos eram os macucos que resistiam). E, para minha frustração, o desgraçado do macho a socorreu: deu um piadinho e a fêmea correu para ele.
Os piados da macuca que a denunciava em nossa direção, foram se distanciando para o lado do “esposo” e, finalmente, o silêncio se tornou sepulcral. Olhei para o mano: sinceramente, com pena, porque mais ele queria chamar um macuco para mim, do que, talvez, eu abatê-lo. Não, acho que não! O mano piou todos os primeiros macucos que meus irmãos abateram e, enquanto quis, sempre foi o campeão das caçadas organizadas por equipes de todo o Espírito Santo, a todas as regiões do País. Era o cara!

E desta vez, nem atrair um galináceo à choça ele estava conseguindo. Ás vezes eu tinha a impressão de ser eu o causador daquela ocorrência, mas não encontrava coragem para me acusar ou, de deixá-lo. Sempre o acompanhava, procurando sugar os seus conhecimentos e realizar meu sonho, tanto de abater macucos, como ser herdeiro de seus conhecimentos. E ele, sempre bonachão, nunca se opôs; ao contrário mostrava-se sempre mais animado e confiante. Tal foi nosso descontrole ou falta de sorte nesse dia que abatemos uma única uruba. Devo salientar, entretanto, que tal fato ocorria, mais por ficarmos quase todos os dias abarbados na perseguição dos macucos, que ainda vivem, se é que um deles não quebrou a cabeça num madeiro, na antevéspera de nossa partida.

Já estava tarde e retornamos ao barraco. Ao recolher os resultados, notei que não constava nenhum macuco, se bem que havíamos superado, em peças, a quantia do dia anterior (21). Até aquele momento, nada de extraordinário. O mano mostrava-se perturbado por não conseguir chamar um macuco para eu abater. Depois do jantar em que constava conhaque com bifes, preparados com apetitosos temperos, e uma sopa estimulativa, todos se entregaram a animada palestra.
Um pouco antes das “roncadas” costumeiras, altos comentários acusavam um entrave sensacional de canastrão. Os jogadores, animados pelo conhaque, quase romperam a noite. Lá pela madrugada, um alto protesto se proclamou, acordando até os que já dormiam profundamente. Uns riam, outros mostravam-se mal-humorados, enquanto a vítima debatia-se inconformada. Eu que já dormia, também acordei e procurei saber o motivo da balbúrdia: haviam amarrado, com a corda da rede de balanço, o Hido Canal, da cabeça aos pés. Não conseguindo se desvencilhar, a vítima acabou por ameaçar cortar as cordas com o facão e, então, entre gargalhadas e gozações, ele foi libertado. Saindo da rede, demonstrando calma e aceitação da brincadeira, o Hido, disfarçadamente, apanhou o martelo e a marreta e os enfiou debaixo do colchão do Zaudino, que ainda estava curtindo, cheio de vinho, a peça que lhe havia passado.

Na noite seguinte foi um murmúrio infindável de lamúrias do Zaudino, que não conseguia entender como aquela raiz não havia sido percebida, quando ele arrumou a cama. Como a reclamação não parava e o próprio Hido não estava conseguindo dormir, irrompeu numa gostosa gargalhada. Levantou-se e foi lá: espera aí, Zaudino, que vou arrancar este diabo de raiz que não deixa você dormir. Enfiou a mão por baixo e retirou o martelo e a marreta e emitiu outra estrondosa gargalhada. Estando empatado o jogo, tudo se acalmou, veio a bonança e cada qual procurou dormir.

A bem da verdade, pouco se dormiu naquela caçada. Eram tantos os incômodos que mal podíamos descansar algumas horas. O frio, os mosquitos e os carrapatos não nos davam um minuto de tranquilidade. Por isso, ainda antes de ouvirmos os primeiros sinais do amanhecer, já havíamos acordado e começado a contar histórias. Falou-nos o Egídio, de uma passagem, um tanto humilhante, ou, hilariante, acontecido com ele mesmo.

Dizia-nos estar percorrendo o picadão, bastante distraído, quando lobrigou um macuco que caminhava apressadamente. Procurou certificar-se para não incidir num equívoco: tempo precioso para o macuco escapar. Quando deu por si, tentou, com gesto célere, recuperar os segundos perdidos: atirou, errou e o macuco voou espalhafatosamente. Mudou o cartucho e, cabisbaixo, ruminou suas mágoas que, ainda na barraca, estavam estampadas em sua fisionomia.

À noite, choveu copiosamente. A mata estava encharcada e gotejava muito. A chuva é excitante para os inhambus, mas não enquanto chove. Ela cessando e abrindo o sol, aí sim as aves piam e atendem melhor aos chamados. Os primeiros macucos, por serem mais mansos e viverem ao redor de nosso barraco e, também, pela quantidade de caçadores, logo foram abatidos.

Restaram alguns escorraçados e ariscos que até piavam, mas nunca chegavam às choças. Mesmo assim – confiante em suas técnicas – o mano Adalho me levou a um deles. Passamos por dezenas de choças. Numa delas, ele lembrou que no ano anterior esteve lá e ali abatera sete chorões e que, logo na frente havia piado um macuco. Fomos ao local e construímos uma grande choça. Se não conhecesse o local, não ficaria aqui, disse-me ele, porque macuco não gosta de morar em lugares de folhas largas. Mas sei que ele está por perto. Vamos tentar. Estávamos a três horas do barraco, com o tempo revolto e, para aumentar ainda mais a confusão, relembramos um lapso de nossa parte, por não ter feito uma boa picada em nossa vinda ao local. Estávamos quase decididos a voltar, quando distinguimos entre os rumores da floresta, um piado de macuco, bem próximo de nós. Quase petrificados, esquecemos o problema da picada e o temporal que da noite que retornava.

Piados incessantes se reproduziam das aves que já se acercavam da choça. Demos pela presença de diversos chorões, sem, contudo, abatê-los, a fim de não assustar o macuco, nosso alvo principal. O mano Adalho demonstrou uma descrença tal sobre a lealdade do referido macuco que me permitiu alvejar as caças que estavam por perto. Fiz alguns disparos e, a seguir, nos preparamos para mochilar. Apesar dos estampidos, ele continuava a piar e tínhamos a impressão de que se aproximava. Havia por perto do lugar em que nos encontrávamos, um grosso madeiro, cujo tronco se fixara sobre uma elevação, protegendo minha retaguarda para o lado do valão. Ficava longe da choça uns 10 ou 15 metros. Nesse lugar, depois de um longo silêncio, ouvimos a grande ave piar. Com o piado, todo mau tempo foi desconsiderado.

Levantei-me nervosamente, tomei, por bem dizer, a posição do mano, pois ele queria que eu atirasse. No entanto, o macuco veio à distância limite e parou. Esperamos bastante tempo, piamos, chororocamos e, nada. Nem a utilização do famosíssimo tio loló resolveu o problema. Nesse ínterim, desabou uma torrencial chuva, que não nos foi possível distinguir mais nada, a não ser um véu opaco e prateado. As folhas secas e arrepiadas se aplainaram sobre o solo e já não se ouvia, senão, um longo murmurejar de gotas a se projetarem verticalmente. Tomando toda sua proporção, penetrou na choça e nos molhou impiedosamente. Percebendo isso, resolvi vender caro a desistência, lançando-me ao encalço do macuco.
Deixei o mano na choça e aproveitando o barulho, projetei-me na mata. A chuva constante, quase não me permitia lobrigar nada. À minha frente era uma camada espessa e esbranquiçada que se defrontava. Procurando os lugares mais favoráveis, aproximei-me do local em que ele havia piado. Olhei cautelosamente sem, contudo, nada ver ou encontrar. E a chuva continuava a cair excessivamente. Eu já não sabia se era o mano ou macuco que estava piando. Já totalmente molhado, aconcheguei-me a um tronco convexo, o qual protegeu um pouco meus pios e a espingarda. Enquanto isso, olhava incessantemente, para todos os lados, à espera de algum bicho qualquer que me compensasse daquele sacrifício. Já fazia algum tempo que estava ali.

A chuva diminuiu, quase parou, quando um largo peito se mostrou de todo à minha frente. Sem pestanejar, virei a espingarda e atirei. Vi que, apesar de me encontrar atrás de um varão, eu o tinha acertado. Ele se debatia sobre as folhas. Corri, louco de contentamento. Quis gritar, mas, por fim, me contive.

Como foi bom eu me ter dominado! Baixei-me, apanhei-o e ainda não conseguia acreditar naquela verdade decepcionante. Era um simples chorão! Encostei-me a uma farinha-seca, respirei fundo: já considerando impossível abater um macuco. E eu sabia, pela lei dos caçadores que, se no currículo dele não constasse um macuco, não podia ser considerado caçador. Seria apenas, um caçador de juritis, e o que era pior: um caçador-marca-cu.

Assim pensando, dei por encerrado o meu expediente, mas, antes de voltar à choça, desci algumas dezenas de metros, descrevi um semicírculo e assoviei para o mano. Dentro de poucos minutos nos encontramos. Perguntou em que eu havia atirado, e eu relatei até com detalhes demais. Falei para o mano que preferia voltar, porque estava totalmente molhado e sentindo muito frio. Mas ele, também chateado por não conseguir atrair um macuco à choça, sugeriu uma última busca, por meio de um cerco. Para não o contradizer, concordei, sem qualquer esperança. Dispersamo-nos em duas ramificações diferentes e, por meio de sinais convencionados, fomos fechando o círculo. De repente notei um vulto cortando minha frente em grande velocidade. Encostei-me numa árvore e procurei definir o que a princípio me pareceu um macuco: eu já não enxergava outra coisa! Tinha até medo de confundir o mano, tal a ideia fixa.

Como por encanto ou instinto de defesa, o vulto parou sob uma folha de palmito emborcada, cuja ponta osculava a terra. Então, com muita calma apontei para o lugar e atirei. Com grandes saltos vi assomar, diante de meus olhos uma cotia, alvejada mortamente. Apanhei-a e fui encontrar o mano, que já me esperava.

Nesse dia ocorreria a nossa primeira desnorteada. Quando voltamos, fizemos uma picada muito ruim, seguindo, em geral, marcas de uma outra antiga, por ele mesmo feita na caçada anterior. Após uns 100 metros, perdemos totalmente os vestígios. Era prelúdio de um bom problema! Já o sol se inclinava e nós, em pleno chapadão, molhados, perdidos e bem longe. Mas, para nossa sorte, havia duas esperanças: uma era o rio que deveria passar perto do lugar em que havíamos partido; a outra é que nos valeríamos das precauções que havíamos tomado, ainda antes de nos separar dos outros dois irmãos, Jayr e Brando, que estavam bem além, mas na mesma direção.
Sem nos alarmarmos (nem tanto) viemos seguindo o curso do igarapé, mas, apesar das sinuosidades, o trajeto nos dificultava pelo emaranhado de cipós de seu leito. Não havendo outra alternativa, continuamos mais e mais e, de repente, nos defrontamos com uma elevação que se opusera ao rio, em tom, para nós, misterioso. Era, talvez, o completo embaraço. Ainda uma vez, confiando um no outro, nos “dominamos”. Aparentando calma, fizemos algumas buscas à procura de algum indício de nossa passagem por ali. Apartamo-nos por algum momento e, sem delongas, ouvi um chamado de meu parceiro. Ia ao encontro do chamado quando ouvi dois tiros consecutivos de meu parceiro. Apressei o passo e entendendo o sinal, tentei cercar alguma coisa que não sabia o que era.

Apesar das urubas continuarem por perto, não lhes demos ouvido, continuando na luta para desvendar aquele embaraço sem explicação. Enleamo-nos ainda mais ao descobrir uma barraca de caçadores e que ainda se conservava intacta. Seria isso esperança para nossa saída: por certo deveria haver um desvio naquela barraca utilizada pelos caçadores que ali estiveram. Lutamos incansavelmente sem obter qualquer resultado satisfatório. Apelamos, então, para um meio mais prático, se bem que humilhante: confessaríamos nossa humilhante perdida, atirando e gritando.

Gritamos várias vezes, mas não obtivemos qualquer resposta. Sentamo-nos e demos tempo ao tempo, pois confiávamos no Brando e no Jayr que acordaram um encontro por ali, para retornarmos juntos ao barraco. O diabo é que o Brando não era lá de cumprir tais acordos. E o sol já estava indo embora, a noite chegando, quando um estampido pôs fim à nossa agonia. Eram nossos manos que, sem se dar pelo ocorrido, nos doava tão prestimoso auxílio, atirando num tucano. Respondemos ao tiro e pouco depois já estávamos reunidos. Só Deus sabia que eu e Adalho os estava vendo como dois anjos salvadores! Mas, não dissemos nada, porque seria muito humilhante.

Com a noite chegando, os macucos estavam procurando poleiros para dormir e, normalmente, eles piam nessas horas, como a avisar seus parceiros sobre a posição em que se encontravam. E foi assim que fomos sobressaltados por um que piou próximo à picada em que iríamos passar. O lugar era horrível, parecia cheio de empucas de cipós. Nos escondemos rapidamente, enquanto o mano Adalho, na sua impassibilidade, tentava atraí-lo para mais próximo de nós. Creio nunca ter ouvido um macuco vozear tão perto! Até um pigarrozinho da garganta dele, ao piar, eu percebia.

Na realidade, a distância que nos separava não passava de cinco metros. Só mesmo a obscuridade impediu que eu o visse. Eu tremia a ponto de demonstrar minha presença e, naquela agonia pungente, suportei, por quatro vezes, os piados, cuja proximidade me desnorteava. Já me encontrava num desalento incontrolável, sentia obscurecer minha visão, ouvia piados diversos e indescritíveis e o macuco nem aparecia, nem voava ao poleiro. Era a noite que estendia seu véu de trevas. Num gesto desolador, olhei para o firmamento: vi estrelas cintilarem: pareciam olhinhos solitários a me fitar.

Pensei no reflexo da imagem do meu estado de angústia, por não conseguir meu intento. Então, tudo se quietou definitivamente. Recoloquei minha espingarda sobre as pernas, respirei fundo e desci do murundu. A caminho, relatei aos manos o que acontecera e eles, sem discreparem, confirmaram minha má sorte. Fizemos um propósito de voltarmos ali na primeira oportunidade, já que só iríamos embora daí a duas semanas. No barraco, depois do banho a litros d’água, roupa seca e um jantar dos deuses, tomei o caderno e a caneta e fui anotando, um por um, o que haviam conseguido. Na soma contei um macuco, dois chorões, cinco urubas e um tucano, o o bendito que nos salvou da perdida. A colheita foi razoável, mas assinalava um decréscimo brusco de sete peças, se comparada à do dia anterior. Por fim, acordamos que fora devido ao excesso de chuva. De fato, com tanta chuva, fica difícil caçar mesmo!

Era hora de narrar, principalmente a façanha de abater algo mais difícil. E foi assim que o Zaudino disse que ia pelo picadão, quando notou que um bando de tucanos voou para uma fruteira, bem ao lado. É sabido que jacus e jacutingas costumam acompanhar os bicudos: excelentes descobridores de fruteiras na floresta.

E, de fato deu certo: uma jacutinga fazia parte do bando e voou num galho bem perto, favorecendo o abate. Ainda antes das 22 horas, já não havia ninguém disposto a “contar mentiras”. Todos preferiram dormir, porque fora gelada a noite anterior e muito cansativa a caçada durante o dia debaixo de verdadeiros aguaceiros.

Enfim, amanheceu o quinto dia, mais bonito e promissor do que todos de até então. Do barraco já ouvíamos piados de muitos inhambus, incluindo os desejados macucos. Desta feita, fomos em quatro: Adalho, Brando, Jayr e eu. No local, usando a experiência do Adalho, dividimo-nos: Brando e Jayr ficaram em um dos macucos que estava piando e Adalho e eu, no outro. Por ali, todos os dias aqueles macucos eram piados e nem é preciso dizer por que ainda estavam lá.
Tendo desistido, juntamo-nos, quando o Brando disse que uma onça havia passado perto do lugar em que se encontrava. Adalho fez-lhe algumas perguntas e constatou que, de fato, ele vira a onça. Então, posicionou o Brando, Jayr e eu em volta dele e pediu para que ficássemos atentos, porque bem podia ser uma onça faminta que estava se humilhando na captura de passarinhos. Cada um tomou a direção indicada. Para trás estava o Adalho, nas laterais, o Brando e o Jayr. Logo, eu só precisava vigiar a frente. O posicionamento foi rápido e o Adalho começou logo a piar. Na verdade, minha preocupação já não era tanto o macuco e sim a suspeita do Brando. Creio não ter ficado 20 minutos no meu esconderijo, quando por simples casualidade, olhei à minha retaguarda.

Estava eu, sobre uma árvore podre, tombada, recostado a uma palmeira, por assim dizer, esquecido da responsabilidade de caçador, que consiste, sobretudo, na prudência indispensável para com os perigos selvagens. Lateralmente havia um amontoado informe de cipós que balouçavam ao sopro dos ventos; à minha frente, um vasto limpado que me auxiliava distinguir qualquer transeunte que por ali vagasse.

Pela retaguarda uma larga e alta trilha fazia um percurso de 15 metros mais ou menos, obstada por três varões que tinham no seu tronco, um pedaço considerável de madeira, corroído pelas intempéries. Uma abandonada estrada florestal cortava transversalmente aquele local. De início, meu olhar foi despreocupado e sem nenhum objetivo. Foi quando divisei algo que se locomovia inopinadamente por aquele caminho. Senti sucumbir as forças, só em pensar na vaga hipótese que seria o animal que, minutos antes, o Brando disse ter visto. E aquela alusão era a realidade. Sentindo naquele momento a presença humana, o irascível animal se deteve naquela encruzilhada de trilhas, acima descrito. Num gesto lancinante, que quase denunciou minha presença, devido ao movimento que fiz no momento de mudar de posição, virei a espingarda e quase puxei o gatilho. Por fim, controlei-me e vi a inutilidade do disparo, pelo menos naquele momento. Estava atrás dos três varões e, por isso mesmo, só me era possível contemplar seus grandes beiços caídos, a pá esquerda e suas ilhargas lourejantes. Sua cabeça inquieta fazia-me suspeitar de suas retas intenções. Armei o cão direito que continua um cartucho com chumbo 3T. calibrei a pontaria e fiquei aguardando, ainda, uma melhor posição, porque um dos varões continuava me prejudicando. Enquanto ela hesitava dar mais um passo à frente, eu fiquei admirando aquele enorme animal que brilhava ao sol.

Quando ela bocejou, percebi sangue em sua boca e concluí que ela havia apenas almoçado. Seus olhos que, às vezes, eu conseguia entrever, refletiam sua má índole. E, por mais que eu esperasse, ela continuava extática, como que pensativa, certamente farejando meu almíscar: o que não era nenhuma vantagem. Já irritado com aquela indolência inexplicável, resolvi pôr fim à minha angústia. Firmei a pontaria e fiz fogo.

O animal não desfaleceu. Deu um grande salto para acima, mantendo-se um pouco mais longe e ainda atrás dos três varões. Vi que tinha falhado na primeira tentativa. Partiria para o cano esquerdo. Esta tentativa seria ainda mais duvidosa, devido ao aumento da distância e ao decréscimo do chumbo que estava no cartucho do cano esquerdo. Nesse momento, certamente ferida, ela saltou um tanto desnorteada e resolveu fugir, tentando passar exatamente no local em que me encontrava.
Entendendo o que qualquer caçador de primeira viagem entenderia, imaginei que ela estivesse vindo para me pegar. Tendo reposto os cartuchos, atirei para o lugar em que a espingarda estava apontando. A onça brecou a três metros de mim e ficou imóvel.

Não hesitei em aplicar o meu plano B, abrindo a boca no mundo e chamando pelos irmãos. O Jayr que estava mais próximo, veio correndo pela mata e ainda a viu debandando. Não conseguiu alvejá-la, mas serviu-me de testemunha. Brando e Adalho também chegaram. Adalho, vendo minha tremedeira, foi logo tirando o cantil e me dando água. Em seguida, como a água era pouca, pilheriou: desçamos o valão. Pode ser que o riacho tenha água da chuva de ontem e isto será necessário para ele se lavar. Riram a valer, enquanto eu continuava com a marca humilhante de “caçador-marca-cu”.

Na picada principal nos deparamos com mais dois colegas, o Arlindo e o Joaquim Bona que, ouvindo os alaridos aproximaram-se a fim de ficar sabendo sobre o acontecido. Depois das explicações decidimos voltar à barraca para almoçar. Esse fato – o mais comentado da caçada – incutiu-me uma dúvida a respeito do animal atirado. Os companheiros viviam me atazanando, dizendo que meu medo fez com que uma cotia mostrasse rabo e crescesse tanto. Não estava sendo fácil livrar-me de tantos gozadores. Somente quando o Antônio Manqueta chegou ao barraco, dizendo que havia pegado uma enorme suçuarana na arataca e que ela estava bastante ferida por um tiro, é que os gozadores me deixaram em paz. Ufa!…

Por ordem do chefe Adalho, todos permaneceram no barraco descansando até às 16 horas, quando alguns saíram para empoleirar ou localizar macucos para o dia seguinte.
Eu permanecia cabisbaixo, arrasado, deixando transparecer apenas certos momentos de alegria dissimulada, ajudados pela imorredoura esperança de que ainda levariam alguns dias para eu me tornar um caçador, abatendo o tão sonhado macuco. Saímos, então, para as matas. Chegando ao lugar escolhido, nos amoitamos em esconderijos de dias anteriores e começamos a piar. Começaram as respostas, mas, até então, muito distantes. Então, resolvemos ir ao que estava piando, ficando mais próximo dele a fim de flagrá-lo subindo ao poleiro. Normalmente, eles escolhem cipós curvos sem nada por cima, com plena chance de escapar de predadores, voando livremente em caso de ataque noturno.

Eu permaneci na picada, permitindo ao Adalho a despreocupação de uma perdida. Com isso ele se aproximou bastante do macuco, sempre respondendo aos piados dele. Alojado sobre um monturo da orla da picada eu consegui ampla visão. O cume da pequena elevação que se sobressaía, permitia-me perceber quaisquer transeuntes que passassem pelas imediações. Por isso, encostei-me quanto pude à árvore e fiquei tranquilo, porque estava bem protegido e seguro. Havia um emaranhado de cipós bem à minha frente, propício e seguro à proteção do macuco.

A noite caía. Eram já, 18 horas: o momento exato das aves que dormem empoleiradas voarem para seus abrigos. O macuco que piava, praticamente aos meus pés, de repente calou-se: hora de alçar voo, a não ser que tivesse escolhido passar a noite no chão. Mas não fora sua escolha. Tendo escolhido o cipó grosso, ele apenas estava sem lá tanta pressa. E então, quase me fazendo cair a espingarda das mãos, vi e ouvi um forte bater de asas e o lindo galináceo alcançar o cipó que ficava sobre minha cabeça. Aí também já era demais: fui erguendo a espingarda. Entre mim e ele, não havia mais que 10 metros. Agachou-se de início e depois levantou-se, desfilando garbosamente ao longo do curvo cipó. Como eu ainda não soubesse dessa característica desses inhambus, imaginei que me havia visto e já iria voar para longe. Afobadamente, levei a espingarda e atirei. Triste interpretação! Emudeci. Olhei para as estrelas e na solidão paradisíaca que Deus as colocou, vi eclipsar-se entre elas, um meteoro alado de cor lourejante. Eu chorava no meu interior, o descalabro de minha incompetência.

Ouvindo o meu tiro, o mano, ainda rindo de alegria, desvencilhou-se dos últimos ramos herbívoros que o prendiam e se encaminhou em minha direção. Eu me encontrava extático diante daquela radiante fisionomia e mal consegui articular algumas palavras sem sentido. Elas diziam tudo ao experiente irmão: eu havia falhado mais uma vez! Contei-lhe, afinal, minuciosamente o que havia acontecido e, graças à compreensão dele, pude reanimar-me, também daquele fracasso. Em tão de professor, amigo e irmão, ele me disse:

– É mania dos macucos, andar de um lado para o outro do poleiro antes de agacharem definitivamente. Você podia – depois que ele fizesse isso – até cortar uma forquilha para firmar a espingarda. Mas, não fique preocupado: sofre-se muito para aprender, principalmente a entender as manias dos irracionais.

Não dormi a noite toda e ainda achei o tempo curto para justificar-me a mim mesmo. O mano Brando, que também remoía algum azar, aproveitou-se da costumeira palestra para relatar um fato muito curioso. Coadjuvado pelo Jayr – testemunho ocular – principiou a história, tendo antes tomado um golezinho de dois dedos “na vertical” da pinga que trouxeram. Dizia que ele e o Jayr aprofundavam-se pela mata, preocupados apenas em abrir uma boa picada, pois diziam não querer saber de perdida. De repente – entrou o Jayr na conversa – vi que o Brando pisava sobre brasas incandescentes. Parecia um milho de pipocas espocando. Deu vários pulos e passou por mim, gritando assustado: “Nossa Senhora, que cobra! Era uma serpente enorme que ainda ressonava ao bom sabor de seu poderio. Não havia com que se preocupar. Depois de passado o primeiro sobressalto, veio a calma e, então, o Jayr, fazendo pontaria, arrancou-lhe a cabeça. Derrotado o inimigo, resolvemos medi-lo, o que resultou em 10 palmos e uma chave. Era a maior surucucu-pico-de-jaca que já tínhamos visto.

Aproveitando a insônia, falei com o mano Adalho, que também andava um pouco chateado com sua performance em atrair os macucos. Sugeri a ele mudar de parceiro: eu iria com o Jayr e ele com o Brando. Seria uma simples questão de rodízio. No outro dia bem cedo nos levantamos e fomos todos os quatro juntos por uma mesma picada, até ao terceiro valão. Ali nos apartamos. Jayr e eu fomos valão abaixo e por ele descemos uns 300 metros. Nada respondia.

Tudo parecia calmo, o que achamos bastante estranho. Mas, pela perseverança de nossos piados, três urubas responderam a uns 30 metros de nós. Escolhemos uma mencionável posição e ficamos à espera. O casal respondia sem cessar, mas não arredava do lugar. Uma outra, solitária, aproximou-se rapidamente e, pela primeira vez no dia, reboou um tiro. As outras duas, continuavam a piar e resolvemos, por conseguinte, usar o plano B, mas que, poderia, sem dúvida, resultar positivamente. Descemos lateralmente uns 20 metros e subimos, a seguir, em direção às urubas. A estratégia foi sensacional. Sentimos a aproximação delas e a de um tururim. Enquanto isso íamos piando também os macucos. Sem esperar, vi o mano Jayr deslocar sua arma e disparar com indefinível agilidade, abatendo parcialmente um chorão. Estávamos sob um emaranhado de cipós e ao passarmos por baixo, percebemos galhos secos caindo sobre nós. Enquanto isso o chorão agonizava, debatendo-se nas folhas.

Para pôr fim ao sofrimento dele, preparei-me para lhe dar o tiro de misericórdia, substituindo o cartucho de fábrica por um de metal, exatamente carregado para tais eventualidades. Com o pequeno tiro que dei na cabeça do chorão, tudo quietou, inclusive nós. Foi quando a quantidade de galhos secos aumentou. Olhamos para cima e mal conseguimos divisar uma jaguatirica que descia atabalhoada.

Era confusão demais, inclusive para ela. Lançou-se do alto indo dar com o nariz no chão, bem aos nossos pés. Recuperando suas forças, fugiu em grande velocidade, não sem o estímulo de quatro disparos na traseira. Consideramos o caso com certa hilaridade, porque, com tanto barulho e confusão fizemos cessar até mesmo os grilos que cricrilavam pela redondeza.

Por isso mesmo, resolvemos mudar de posição, seguindo mais para frente. Na vanguarda ia o mano, enquanto eu me desviava um tanto para recolher o chorão. Quando seguia para me juntar a ele, senti-me estugado pela ênfase que ele ostentava no olhar curioso. Nisso, voou-me dos pés, uma das urubas: a mesma que havíamos piado um pouco antes. Estava pensando comigo mesmo sobre a oportunidade que havia perdido, quando a outra voou do mesmo lugar. Estavam ambas acocoradas no solo, protegidas pelo mimetismo e, certamente, se protegendo da jaguatirica. Fui então ao mano, a fim de averiguar seu espanto natural. Enquanto isso, numa distância de 10 metros, ele percebeu a carcaça de uma cotia. Havia sido devorada a poucos minutos, porque o sangue nem havia coagulado ainda. Entreolhamo-nos, deixamos aflorar um risinho sem graça e nos preparamos para voltar. Com certeza havíamos interrompido o almoço da jaguatirica!

Tirei da sacola o cantil que continha leite em pó dissolvido e retornamos à picada. Transpusemos o primeiro valão e fomos seguindo, sem que nada mais acontecesse. Enquanto caminhávamos, íamos piando, mesmo porque tencionávamos voltar àquela região e, sendo assim preparávamos o terreno, assanhando as aves. No segundo valão, depois de havermos caminhado uns 100 metros, um ruído se fez ouvir não muito longe de nós. No delírio de meus pensamentos, opinei por um macuco, contradizendo o mano que dava à minha opinião, a força do desejo. Mas, por insistência minha, ele decidiu penetrar um pouco para averiguar.

Devido ao seu pessimismo, fiquei de espingarda no ombro, se bem que atento. Mal havia dado alguns passos, vi passar maravilhado, o soberbo galináceo, que incontinenti desapareceu entre os arbustos desalinhados. Uma coisa era certa: ele não nos tinha visto. Afastou-se andando tranquilamente. Fiz sinal ao Jayr que logo ficou atento e arrisquei alguns piados rápidos e decrescentes e em seguida chororoquei com a boca, tão baixinho que quase não se ouvia. Aguardamos 10 minutos e como nada acontecesse, acordamos: deixemos para amanhã, quando retornaremos. Pode ser que ele nos tenha visto e apenas disfarçou. Às vezes a gente menospreza demais os irracionais!
E o dia seguinte abriu suas pálpebras e o Sol implacável focalizou a Terra com esplendor brilhante. Manhã serena e límpida. O céu se mostrava claro, encimando a eterna azulescência do infinito. Pequenos flocos de nuvens locomoviam-se sem pressa, caminhando para o ocidente. O dia estava favorável a que eu realizasse meu sonho. Era quase certo que seríamos felizes.

No dia anterior, com o tempo desfavorável, o grupo havia matado 24 peças, inclusive, um macuco. Hoje, com um macuco já localizado e o tempo favorável, não iria dar errado. Mas, deu. Passamos o dia vagando, sem ouvir nada. Ainda cedo, decepcionados, retornamos à barraca. Já nos esperavam, pois havíamos combinado que iríamos empoleirar macucos. Jantamos, apanhamos as lanternas e partimos. Chegando ao lugar que fora previamente determinado, o Adalho nos posicionou. Meu companheiro mais próximo era o Adalho, motivo pelo qual, mais uma vez, estive às voltas com o macuco, que passou a poucos passos de mim, acoitado pela penumbra noturna.

Em poucos minutos, dezenas de piados ecoaram mata adentro, trazendo-nos a certeza dos empoleiramentos. Nenhum tiro foi disparado, assegurando que ninguém flagrara a ave no poleiro. Mais um pouco, corujas, pica-paus avinhados, pirilampos, mariposas, grilos, ratos e urutaus avisaram que estava encerrada a hora dos diurnos. A macuca que nos rondava despediu-se com quatro piados simultâneos, mas, bem fora de nosso alcance.

Mesmo assim, tentamos encontrá-la, mas foi inútil. Isto foi um fato normal e bastante criticado, porque não nos demos o trabalho de procurá-la melhor. A verdade é que o cansaço acumulado pela correria dos dias anteriores, começavam aflorar. E a culpa não se sabia a quem atribuir e ninguém ousou assumi-la. Era apenas o início dos descontroles que sobreviriam. Como faltassem ainda alguns companheiros, foi dado o sinal para que desistissem. Logo, três ou quatro chegaram e concluiu-se que eram os que faltavam.

Mas, na chamada, o Brando não estava presente. Aí foi um Deus nos acuda. Começamos gritando, depois atiramos, depois rezamos e passamos a procurá-lo pelos derredores. Nada. Ali por perto havia sido alvejada a onça e morta a surucucu-pico-de-jaca. Reunidos no picadão e desesperados, resolvemos enviar dois caçadores, Hido e Dolmino, para retornarem ao barraco, tanto para dar a notícia como buscar reforço e mais pilhas para as lanternas.

Se em 30 minutos fossem disparados dois tiros (eles iriam correndo), o Brando estaria lá. Nossos corações estavam acelerados. Não nos contínhamos diante daquela possível separação fraternal. O mano Jayr consultava seu relógio a todo instante e o tempo ia se esgotando. Chegou-se aos 28 minutos e nada se alterava, nada se escutava. Um calafrio inexplicável perpassou-me pelo corpo e, de minha fronte, ressumavam gotas frias de suor.

Apagavam-se as luzes da esperança, sentíamos desvalidos diante de nossa pequenez e falta de fé. Mais dois minutos e estaríamos à procura do cadáver do Brando. Primeiro saímos, Jayr e eu, que juramos que não deixaríamos o irmão, mesmo morto, passar a noite ali sozinho naquele inferno de matas. Saímos rezando para que Deus nos guiasse até ele, vivo ou morto. Jamais alguém irá imaginar o que se passava com o Jayr e eu naqueles momentos!
De repente, o Jayr parou e disse ter encontrado sinais de que ele havia passado por ali. Fomos seguindo por eles e pouco
a pouco, o rastro foi se tornando indefinível e chegou a um ponto que mais nada se percebia. (É bom antecipar que, por cima do fim daquela picada, um macuco dormia tranquilamente, mas não olhamos para cima.) Mesmo assim, averiguamos todos os possíveis lugares da suposta tragédia, principalmente árvores com catanas: preferidas por nós caçadores. Depois de longas análises em vão, deixamos aflorar uma outra prece, solicitando a misericórdia de Deus. Na picada, todos estavam cabisbaixos e perplexos. O tempo esgotara-se!

Não era propriamente o desânimo, mas a confiança de que o Senhor nos pouparia dessa provação, em ocasião tão inoportuna. Fazendo rodízio, eu e o Jayr ficamos ali, enquanto os demais passaram a procurar. Foi então que veio do céu, a mensagem da misericórdia de Deus, na bênção do eco de dois tiros. Um grito unânime de aleluia, selvático de contentamento, escapou a um só tempo de nossas bocas. Os que havia entrado na mata, retornaram correndo e, juntos gritamos a uma só voz: Deus seja louvado! Para confirmar que não estávamos delirando, mais dois tiros, agora bem próximos, foram disparados. Cada um pulou ao pescoço do que estava mais próximo e muitos choraram.

Um vozerio tremendo de alegria sufocou as lágrimas daqueles corações que já pulsavam oprimidos pelo peso das amarguras que lhes infligíamos. E todo o sofrimento foi devido à avalição errada da distância. Na verdade, não dois, mais sete tiros haviam sido dados, mas, apesar do silêncio, não venceu as camadas aerosféricas da distância. Só mesmo uma explosão de pólvora comum expelida por um trabuco pica-pau, fez-se ouvir por duas vezes, o que trouxe a nossos ânimos, o conforto do céu. Creio mesmo que poderíamos estar ainda mais distantes, pois, realmente, o Antônio Manqueta caprichou no carrego. O Dolmino disse que eles chegaram no horário e que ele quase acabou com os cartuchos, mas que eles haviam sido carregados com pólvora forte, cujos sons são agudos e de pouco alcance sonoro.

Enquanto voltávamos, discutíamos se devíamos, ou não, repreender o Brando. Viajamos uns 20 minutos e distinguimos um sussurro que se abeirava de nós. Mais um pouco e nos encontramos, sendo que ninguém exteriorizou seu mau humor. A graça de Deus foi maior do que nosso possível desabafo. Só quisemos saber como ele teve coragem de nos passar um susto tão grande.

E o Brando, com toda inocência e simplicidade do mundo, explicou: quando os macucos empoleiraram, ouvi nitidamente um forte bater de asas à minha retaguarda. Num gesto lépido, escalei um cômoro que se erigia desconcertante naquela planície e lobriguei a ave venusta caminhando a passos incertos, ao longo do galho balouçante.

Acorri, de imediato a seu encalço e quando já podia fulminá-lo, sobreveio-me o pensamento de que vocês já tivessem voltado, deixando-me lá sozinho. Assoviei por várias vezes, mas não recebi a menor mensagem de vocês. Retrocedi à picada, fiz novos sinais e, nada. Sem hesitar coloquei-me a caminho da barraca, abalroando nos galhos e madeiros que se me opunham.

Quando já me aproximava do lugar em que abarracamos, ouvi três tiros, o que computei tê-los deixado para trás, mas não previ, nem sequer fiz menção do que estaria se passando.
Como sabem, eu estava sem lanterna, por isso mesmo, completei meu itinerário com algumas lesões externas, mas superficiais, e isso agradeço a Deus, porque bem podia ter fraturado uma canela. Quando cheguei, encontrei a barraca completamente desabitada. Nem o cozinheiro se encontrava. Mesmo assim, jantei tranquilamente e fiquei à espera de vocês. Só então assaltou-me a ideia do que estaria acontecendo lá com vocês, devido minha ausência ou desaparecimento. Desordenado, estava mesmo disposto a retornar, quando percebi a chegada do Hido e do Dolmino. Estonteado por tantas reclamações concernentes à minha irresponsabilidade, fui ao encontro deles, que logo esqueceram tudo e me abraçaram efusivamente.

Depois disso, fomos imediatamente ao barracão e demos muitos tiros, cuja sequência chamou a atenção do Antônio Manqueta, que logo apareceu. Sabendo que se tratava de coisa séria, ele voltou e preparou a pica-pau dele, dando o primeiro tiro, que deve ter sido ouvido lá em Linhares. Recarregou e deu o segundo, não menos ecoante que o primeiro.

– Então, retruquei eu, que via na história mais uma chance de “tirar o dedo”: você deixou o macuco no poleiro?

– Tanto o deixei que, se quiserem, poderei conduzi-los até lá.

Visando mais essa oportunidade que se me apresentava, comecei a incitá-lo para que voltássemos naquela mesma hora, pois temia adiar para o dia seguinte. Na oposição, destacou-se o mano Adalho que, finalmente foi derrotado por estar sozinho e não conseguir destruir minha ansiedade. Ficou decidido, então, que voltaríamos e, com isso, retornamos. – – Permeio à floresta, assomavam-se, de quando em vez, espetros de árvores que se locomoviam impulsionadas pela brisa indecisa. Também no céu, não repontava nenhuma estrela: tudo era um abismo etéreo que não tinha lindes entre o firmamento e a nossa Terra plantada nele. Estugados pelo entusiasmo, não tardamos em desfazer a distância. Logo que chegamos, projetamo-nos pela mata e como tardássemos a encontrar os sinais deixados pelo Brando, distribuímo-nos em diversas direções.

Com a noite escura, lanternas ruins, andando sem direção, logo o Jayr, o Hido, o Dolmino e eu nos desnorteamos a apenas 20 metros da picada. Mas, como havíamos deixado o Joaquim, por precaução, na picada, não nos foi trabalhoso reencontrar a picada feita pelo Brando. Estávamos pensando em desistir de mais aquela tentativa, quando o Arlindo encontrou o sinal deixado pelo Brando.

Encaminhamo-nos para lá e de lá, fomos seguindo os indícios deixado pelo Brando, até nos depararmos sob o cipó em que o galináceo dormia. O primeiro passo estava dado, restava, agora, identificá-lo no meio daquele emaranhado de cipós que se entrelaçavam por baixo, formando um verdadeiro esconderijo para o esperto macuco. Aquilo era estranho porque os macucos sobem praticamente a prumo e, por baixo, havia uma verdadeira empuca.

Perseverantes, continuamos procurando a melhor posição, até que o Arlindo conseguiu, detendo o foco de sua lanterna sobre o largo peito da ave. Como todos concordaram de que seria eu o atirador, sem me fazer de rogado, logo tomei posição. No íntimo de meu ser, eu sentia calafrios e meu coração acelerava quanto mais a hora do disparo se aproximava. A mira estava indefinível, o que fez com que eu mudasse de posição várias vezes. Finalmente, apertei o gatilho, dando fim àquela agonia por mim escolhida. Com o tiro, a ave, tomada de pânico, alou por entre as frondes, revoluteando pelos ares e subindo sempre mais, até assomar-se por cima dos mais elevados madeiros daquele socalco.

O céu, tingido de um fuscalvo bem enegrecido, agora me era inteiramente sem graça. Olhei estarrecido para a ave que se toldava na altura.

Mudei a direção do olhar um pouco e constatei que comentavam uniformemente sobre o ponto alvejado pelo meu disparo. Havia atingido o lugar em que o macuco dormia, mas o cipó era muito grosso e protegeu a ave. Por certo o chumbo havia lhe fraturado as pernas ou mesmo o ferido de morte. Indignado com tanta falta de sorte, detonei o outro cano da arma para o alto, inexplicavelmente. Preferia, naquele momento, não estar participando da caçada.

Um descontentamento tal se me infligiu que, apesar de meus esforços para dissimular alegria, ela não se refletia em meu comportamento. No lanche noturno não consegui participar. Ficava pensando sobre a razão de eu não conseguir realizar o meu tão ambicionado plano de me livrar da terrível denominação de “caçador-marca-cu”. Nunca entendi porque é tão difícil conseguir uma coisa pela primeira vez!

Notando minha angústia, o Brando tentou ajudar:

– Você acha, Livaldo, que se ele estivesse fácil, eu o deixaria para você?

– De fato, ele estava num lugar desgraçado, enfatizou o Dolmino.

– O tiro foi perfeito. Vocês podem verificar lá? Por baixo do lugar em que o macuco se encontrava, as cascas do cipó foram arrancadas.

Confesso: a pena demonstrada foi a pior parte da catástrofe! A noite voltou a ser gelada e apelamos para as fogueiras em torno do barraco. Entre o frio e minhas desditas, não consegui dormir. Aproveitando a insônia, combinei com o Jayr retornar àquele lugar em que vimos o macuco dias antes.

Ele concordou e, mal o dia amanheceu, já estávamos a caminho. Ouvindo nossa conversa, Adalho e Brando ofereceram-se em nos acompanhar e, então, saímos em quatro. Agora arejava agradavelmente, enquanto desfazíamos o caminho. Havia três valões em nosso itinerário, distanciados um do outro, mais ou menos 50 minutos. Até o primeiro valão, apenas algumas urubas – porque havia demais – conseguimos abater. Uma delas, depois de oferecer-nos um espetáculo sensacional, passando pelo Adalho e o Brando, veio aos dois cingidos pela urucubaca, recebendo uma dupla carga. Nosso objetivo era outro e, assim sendo, prosseguimos nosso caminho, transpondo o segundo valão e nos deparando com uma árvore em que tínhamos entalhado a inicial da futura vítima. Mas, não seria desta vez!

Demos as instruções devidas aos dois manos, que no dia anterior estavam ausentes, e o Adalho concluiu que, para tal ocasião, seria prudente um cerco, em que o piador ficasse centralizado. Ele subiu numa densa ramagem bem alta, enquanto o Jayr o precedia, ficando a retaguarda para o Brando. Como sempre, eu ficava na melhor posição, ou seja, a lateral direita em que, segundo minha opinião, o macuco fora visto.

Entrei numa catana, retirei a mochila das costas, apliquei o repelente de insetos, afastei as folhas mais próximas e fiquei imóvel, correndo os olhos sofregamente por todo o entorno. Enquanto isso, o mano ia aplicando o que dizia ser o “primeiro macete”: Seis piados fortes e decrescentes em curtos espaços; após o último piado, já bem baixinho, ele sacava o “tio loló” e chororocava umas 20 vezes.

Mal terminou, a fêmea enciumada protestou. Mas, uma ocorrência inexplicável – semelhante àquela de dias anteriores em que espreitávamos macucos nos poleiros – fez com que abandonássemos as posições, deixando o macuco piando e bem perto de nós. E quando chegamos à picada, interrogamo-nos reciprocamente, qual a causa de havermos menosprezado aquela tentativa. Ninguém sabia responder, apenas afirmávamos ter ouvido assovios para nos retirarmos. Mas, quem teria feito aquilo? Como não desvendássemos o mistério, disse que, diante do barulho que havíamos feito, o melhor seria seguir para o terceiro valão e deixar aquele lugar para a tarde ou para o dia seguinte. Mais tarde, talvez, o Caipora estivesse de melhor humor.

Chegamos lá, 30 minutos depois. Desunimo-nos aí. Jayr e eu seguimos para um suposto macuco que havíamos localizado e Brando e Adalho seguiram caminho. Logo em frente paramos e ficamos a piar por algum tempo. Nada respondeu. Já demonstrávamos desânimo, quando vários chorões piaram ao mesmo tempo, do lado esquerdo do valão. Descemos e fomos escolher um lugar mais próximo a eles.
Fizemos uma respeitada choça e em seguida quietamos para depois piar. Jayr, que vigiava a lateral direita, piava chorão, tururim e uruba, ficando os macucos sob minha incumbência. Não tardou eu divisar por entre as folhas, um vulto róseo que
se locomovia velozmente. Enfiei a espingarda no buraco da choça, apontei e disparei. O vulto, ainda não identificado, tombou por sobre si, ficando imóvel. Nesse mesmo momento, o macuco respondeu, acompanhado de uma porção de chorões, já todos próximos e excitados. No entanto, ao invés de encostarem, calaram-se e tudo ficou em silêncio.

Sussurrei nos ouvidos do mano, sugerindo que devíamos sair dali e ele, num salto, saiu da choça, dando graças pela minha sugestão, pois as formigas de correição haviam se descontrolado e invadido nosso esconderijo. Poderíamos expulsá-las com um restinho de Baygon que restava, mas ficaríamos sem antídoto para o resto da caçada.

Já do lado de fora, argui-lhe a respeito do local em que o macuco havia respondido, mas, como eu, ele não tinha certeza sobre a direção. Assim mesmo, concluímos que teria sido em frente e, para lá nos dirigimos. Descemos pelo talude que levava ao valão e lá, construímos nova choça.

O macuco não mais respondeu e como consolação, ficou-nos um avultado bando de urubas, bem à nossa frente. Piei duas vezes e uma delas veio abandar-se. Recebeu seu susto e, desorientada, empoleirou. Como as outras se mostrassem recalcitrantes, nos aproximamos do valão em que elas se encontravam e, ali, piamos. Não se deixaram iludir e, então, resolvemos nos integrar ao bando, invadindo o quartel general delas. Espalhado o bando, começamos a “assoviá-las”. Veio uma e voltou assustada com o tiro que levou. Sucederam-na mais três, acompanhadas de cenas fotográficas. Era o “caipora”, não restava dúvidas. A quinta havia empoleirado devido ao tiroteio: desceu em semicírculo à nossa retaguarda. Aí a coisa foi diferente: dois tiros ecoaram ao mesmo tempo e ela foi abatida. Não éramos caçadores de macucos, mas simplesmente meninos inexperientes que gostavam de atirar.

E foi assim que, em seguida encontramos outro bando de urus dentro de um estreito valão e, sem qualquer respeito, afastei o Jayr de minha frente e abri fogo no bando. Ato contínuo entramos no meio delas.

Era tiro para todos os lados, urubas esvoaçando, correndo sem paradeiro. Havíamos transformado aquelas junturas de divisas, em pleno campo de batalha. Como elas se dispersassem nas mais diferentes direções, dispus-me a perseguir algumas que debandaram à direita.

Perseguindo-as, consegui disparar mais tiros, apenas para me satisfazer, pois, realmente, era desvantajosa minha posição. Como o Jayr também não cessava de atirar, fui a ele quase correndo e, nessa díade, prolongamos o tiroteio por mais alguns minutos. Tudo serenado fomos averiguar o estrago. No lugar do primeiro tiro: apenas folhas secas perfuradas de chumbo; em alhures averiguamos o lugar em que havíamos alvejado algumas mais: encontramos uma com apenas um caroço de chumbo na cabeça.

Entreolhamo-nos entre sorrisos frustrados. O Jayr consultou o relógio e relembrou-me de que já havia passado a hora de matarmos a fome. Mas, quando levei a mão ao lado, constatei que havia perdido a marmita, ou melhor, a havia esquecido na última choça. Não poderia ter acontecido nada mais hilariante! Depois de nos gozarmos mutuamente, sem outra solução, retornamos à marmita. Deixamos sinais convencionais na picada para que o Brando e o Adalho soubessem que havíamos retornado. Refeito o percurso, encaminhei-me para a árvore e lá estava dormitando a merenda que parecia ter saído de um congelador. Apanhei-a, fui ao Jayr e comemos com grande apetite.

Já eram quase 14 horas e estávamos quase sem munição e com apenas duas urubas no picuá: nada podia ser mais humilhante. Resolvemos voltar, não sem antes perder umas duas horas piando o macuco que, sabíamos, vivia ali. Depois de uma hora de insistência, desistimos e pegamos a picada do barracão. A distância era grande, mas o tempo era mais que suficiente para desfazermos o caminho e, assim, vínhamos, alegres, resenhando nossas vãs tentativas. Chegamos ainda com o sol alto e, no barraco, encontramos quase todo o grupo. Os retardatários, Adalho e Brando também chegaram e com aparência desalentadora. Estando todos reunidos, apanhei o caderno de anotações e adicionei mais 23 peças. Constatei, então, que os últimos três dias haviam sido maravilhosos, pois tínhamos abatido 69 aves. O dia seguinte seria o penúltimo e, por isso, resolvemos aproveitar todos os segundos, até mesmo da noite.

Na barraca reinava o vozerio ensurdecedor. Todos falavam ao mesmo tempo, animados pelo “garrafão de vinho”; uns se davam a entraves emocionantes no canastrão; outros se conglomeravam e discutiam qualquer assunto e, finalmente, outros procuravam, em algures, casas de cupins para fumegar a barraca que, à noite receberia a infalível invasão de milhares de mosquitos. Eu era o único frustrado por perceber que tinha tudo para voltar com o “dedo atolado”, carregando o estigma de “caçador-marca-cu”. A noite estava muito bonita, com a Lua transferindo a luz do sol com maestria e delicadeza. O dia amanheceu como tantos outros: neblina densa e volumosa. De minha cabeça, não saía o sonho de abater um macuco, mas minha única esperança, o Adalho, não parecia preocupado. Não fez questão de minha companhia, nem de se dedicar aos macucos. Perseguia qualquer inhambu que piasse, não se importando com o tamanho. No último dia, inclusive, em que eu sonhei com sua companhia, ele decidiu caçar pacas com os cachorros que levara, em torno da abertura em que morava o Domiciano Scarpat, o que resultou na morte do Biriba. O inocente cachorro, totalmente inexperiente em caçadas daquele nível, encontrou e resolveu enfrentar uma canguçu.

Nessa caçada, matamos uma paca e um mutum que espantado pelos cachorros achou de pousar perto do Arlindo. Lastimando a perda do Biriba, retornamos ao barraco. Devíamos almoçar mais cedo, arrumar nossa bagagem e todo o mais que levamos; dormir mais cedo para, no dia seguinte, retornarmos à Marilândia.

Dr. Joel e Hido chegaram um pouco atrasados e com um macuco pendurado na cintura. Segundo eles, aquele era um macuco ruim da cabeça, porque veio correndo para cima deles, levou um tiro, voou uns 20 metros, piou e retornou correndo novamente. Aí o tiro pegou.

Segundo o Adalho, era um macho que estava com filhotes recém-nascidos e tentava protegê-los, como fazem as chocas quando alguém ameaça seus pintinhos. Somente eu era exceção, mostrando-me abatido. Na verdade, se a suposição do Adalho foi correta, preferia ficar com o “dedo atolado” a matar um extremoso “pai de família”. Preferiria, inclusive, ter ficado em casa.

Quando chegamos ao carro – o que era óbvio e costumeiro, aconteceu – ele não pegou. Passamos mais de uma hora empurrando-o de um lado para o outro e ele só veio a pegar quando o empurramos sobre uma elevação e depois o deixamos disparar morro abaixo. Aí, com a graça de Deus, ele pegou. Mas, estava longe de ter resolvido o problema. Agora, ele não conseguia subir a rampa, o que nos custou horas de trabalho e meio tanque de gasolina.

Enfim, iniciamos nosso retorno, almoçando em Linhares e depois passando na casa do gerente da Fazenda Lindenberg para saber sobre o Rondante. Ele estava lá e o apanhamos e levamos para casa, gratificando bem o gerente. Enfim, chegamos, sãos e salvos às nossas casas. Ainda abraçava meus familiares quando ouvi vozes que se despediam e o barulho do carro que saía: até o próximo ano, amigos!

MINHAS CAÇADAS

Sobre os tantos exercícios que pratiquei na esperança de um dia ser escritor, tenho o relato de minhas caçadas. Naquele tempo, apesar de a lei já existir, poucos, ou praticamente ninguém do antigo IBAMA e da polícia de Marilândia, e logo depois, de Linhares, importavam-se com os caçadores.

A gente caçava em volta da vila e, posteriormente, em volta da cidade de Linhares e desfilava pelas ruas, com aves e bichos mortos pendurados à cintura. Alguns agentes do IBAMA ou da polícia, até pediam algumas aves abatidas, para “fazerem tira-gosto à noite”. Era livre e havia tantos caçadores, que poucos não o eram.

E eu – o mais dependente de todos eles – narrava em cadernos cada incursão que fazia, desde que elas durassem mais de três dias ou encerrassem fatos inéditos.
Nesse tempo, eu utilizava duas linhas em uma, para economizar papel. Hoje, ao transcrever partes, já com os olhos cansados, pago o preço da pobreza. Sinto, também, o pagamento de meus pecados por haver perseguido os bichinhos mais inocentes e belos da Natureza. É-me horrível narrá-los.

Vou transcrever, abaixo, com a devida vênia, alguns trechos dessas minhas antigas caçadas, extraindo-os aqui e acolá, aleatoriamente, ilustrando-as com velhas fotos que ainda estão resistindo ao tempo. Se eu fosse copiar tudo o que escrevi neste tempo, com certeza, milhares de páginas não dariam. Como percebem, se hoje não escrevo bem, não foi por falta de exercício rsrsrsrsrs.

Noventa por cento dos amigos caçadores que aparecem nas fotos, hoje não existem mais: devem estar levando bicadas e mordidas de suas vítimas, lá no purgatório. “É que minha mãe sempre ameaçava a gente, dizendo que quando fazemos o mal às criaturinhas de Deus, do outro lado elas estariam lá, em fila indiana e, cada um de seus algozes, ao morrer, passarão por elas e levarão bicadas e mordidas, a fim de pagar pelos seus crimes. É….. Se for só isso, será bom demais!

PRIMEIRA CAÇADA QUE RELATEI:

Férias de julho de 1959. Condução: caminhão do Vitório Bona e camioneta do Zaudino Scarpat. Cozinheiro: Albertino Cordeiro; auxiliar: João Carapina. Componentes: Joaquim Bona, Hido Canal, Hildebrando, Livaldo, Jayr, Adalho e Dolmino Fregona, Egídio Mariani, Zaudino Scarpat, Dr. Joel Coelho, Orlando Scarpat (ainda menino nesse tempo) e Arlindo Falqueto.

Introdução:
Essas anotações procuram retratar a realidade. As belezas figuradas devem ser desconsideradas. A objetividade é algo que economiza tempo, indo mais diretamente ao que interessa ao leitor. Desprezando-se os subterfúgios, as pessoas terão mais rapidamente o fecho da história. Como se diz: começarei do início. Trata-se da recordação que faço de uma caçada realizada nas férias de julho do ano de 1959, nas matas do Espírito Santo, mas, que não deixa de ter em si, as aventuras concebidas a quem se embrenha em qualquer selva do mundo para caçar os habitantes selvagens. Como todo amante de caçadas, você retornará no tempo, ou por ter participado ou por ter sido testemunha do que está sendo narrado. Se nunca caçou, meus parabéns!

A partida:

Concretizados os estudos que fecharam o primeiro semestre do ano de 1959, abriram-se maravilhosas, as férias. Desta vez, a alegria de rever todos os meus não estava sozinha: vinha acompanhada de algo que me fazia reviver aqueles dias que antecederam a caçada. Era um sonho que passaria a viver pela primeira vez. Depois de longos preparativos, numa manhã fria de terça-feira, dia 7 de julho de 1959, resolvemos partir.

Consultamos o relógio: faltavam 10 minutos para as duas horas. Uma densa neblina pairava por sobre as árvores, como se estivessem temerosas de tocar o solo resseco pelo sol causticante do dia anterior. Soprava uma brisa frígida, que balouçava os galhos mais débeis e removia morosamente os flocos de neblina que iam de um lado para o outro, como se estivessem a brincar ao suave sabor dos ventos. No céu, cintilavam lourejantes, as estrelas, e as nuvens esparsas locomoviam-se para o noroeste, como advertindo-nos da partida, que estava em seu início.

Ouvimos o acelerar do carro, procuramos nossos lugares nos bancos da frente, ajeitamos nossas capas e travesseiros e, a seguir, esperamos pela partida. Viajamos por estradas pouco recomendáveis e, se não fosse a precaução que havíamos tomado, a viagem teria de ser cancelada. Caminhamos quatro horas e, até ali, tudo estava normal. Parecia mesmo, presságio de alguma controvérsia, porque carros velhos não aguentavam o tranco por muitas horas. Durante todo esse tempo, estávamos a tagarelar animadamente, relembrando ocorrências remotas que, muito nos animavam. Para alguns, as lembranças de caçadas anteriores eram sempre motivos para se aceitar todos os sacrifícios. Objetivando um descanso, pedimos para que parassem os carros a fim de que pudéssemos atender às necessidades fisiológicas e outrossim, constatar qual o motivo de umas batidas que uma das conduções vinha acusando.

A região era de propriedade do Carlos Lindenberg e como houvesse uma vasta pastaria propícia às pacas, o cachorro Navegante saiu disfarçadamente e, ao ser chamado de volta, não atendeu.

Os demais, Combate, Biriba, Fiel, Fondanga e Guri, portaram-se aceitavelmente. Bem, como falava, o cachorro que fugiu, ficou por lá, mais de duas horas. Enquanto isso, visitamos o extenso redil do lugar e ficamos pacientemente à espera do prevaricador. Por entre as árvores, alguns raios de sol já anunciavam a bela aurora.

E o Navegante, nada de aparecer. Indignando-se com a atitude do animal, o Adalho, chefe da caçada e do cachorro, prescreveu que fosse dada continuidade à viagem. Antes, porém, deixou com o morador do lugar, as informações sobre o fugitivo. E, já com o sol aclarando de todo o espaço, chegamos a Linhares, contemplando a vastidão de suas planícies. Ali fizemos uma breve parada, tomamos o desjejum reforçado e continuamos. Prolongamos ainda a viagem por 1h30min, até que nos abrigamos numa fazenda em que deixamos os carros e continuamos a pé. O capataz que já estava acostumado com caçadores por lá, não se opôs.

Eram mais ou menos 14 horas. Almoçamos modestamente, repartimos os pesos e partimos. Só mesmo o entusiasmo nos fez prosseguir ao ponto indicado, sem dar, sequer, uma parada para descansar, visto que foram duas horas de viagem com peso excessivo nas costas. Às 4h20min fizemos outra parada, numa abertura pequena, de propriedade de um médico de Vitória.

Ali morava um caboclo com a incumbência de velar pela posse. Estava prescrito que continuaríamos a viagem por mais uma hora, chegando, assim, à residência do Domiciano Scarpat, onde levantaríamos a tenda. Mas, por iniciativa unânime, resolvemos ficar ali, devido ao cansaço extremo em que nos encontrávamos, e porque o sol já estava sumindo e seria irresponsabilidade anoitecer dentro da picada que não conhecíamos.

Assim sendo, nada fizemos mais, a não ser ajeitar um lugar para dormir, ou passar a noite, e cooperar com o cozinheiro, a fim de que fosse feito um lanche estimulativo, intencionando a recuperação de nossas forças.

Estávamos ao sul e, ao mesmo tempo, ao norte do rio Doce. Bem acima, estava o rio Barra Seca e a lagoa Pau Atravessado; ao leste, a lagoa Monsarás e ao oeste, a confluência de um riacho que liga o Barra Seca às lagoas de Pau Atravessado e que, depois, deságua no rio Doce.

Jantamos e depois nos reunimos no terreiro, onde tomou a palavra o Adalho, comandante dessa excursão. Devíamos, segundo ele, empregar a parte da manhã numa breve caçada para, com sorte, conseguirmos alguma carne para almoçar. A parte da tarde, iríamos para o ponto determinado e edificaríamos a barraca definitiva. À noite ainda toquei um pouco de gaita, conversamos animadamente, deputamos o morador dali, Antônio, com sua debilitada égua, para apanhar o encerado que havíamos deixado no carro.

Em seguida, deitamo-nos, mas ninguém conseguiu dormir, porque estávamos muito cansados e, também, pelo incômodo incessante de nossos “colchões”. Eu olhava o céu cinzento, a Lua refletindo um verde crê desordenado, várias vezes obscurecida pela passagem de densas nuvens. Tudo parecia enlear-me em laços inquebrantáveis de doçura e gratidão, naquele filme da Natureza. Naquela mata interminável, a sombra da noite tinha, também, os seus deleites e as suas aventuras. De vez em quando, piados de macuco ressoavam mata adentro, como suave melodia aos meus ouvidos. Para mim tudo era novidade. Um leve clarão avermelhado ressurgia, afinal, por entre as frondes florestais e uma densa neblina descia umedecendo nossas vestes, banhando-nos com suas gotículas luzidias e frias. Já caminhávamos, Adalho e eu, mata adentro, com o auxílio de lanternas. Por se tratar mais de especular o lugar e por ser o tempo limitado, não nos afastamos muito do barraco.

Seguimos por um picadão cerca de 70 metros; depois ganhamos um valão e por ele piamos até as 10h30min, quando retornamos sem abater nem ouvir nada por ali. Piamos, mais adiante, um bando de urubas que estava lateralmente colocadas e foi com espanto que notamos que uma delas, levada pelo alvoroço, voou piando e pousou por cima de nós, numa folha de palmito. Tendo nos visto, tentou recuar, mas antes que levasse a efeito seu intento, eu atirei e, como era de se esperar, errei. Era o início de minha frustração. O bando, porém, era numeroso. Continuamos a piar e elas, levadas pela confusão vieram em desordem.

Notei, então, que duas delas se empenhavam numa luta feroz a 15 metros de mim. Aproveitando, fiz fogo. Vi várias penas flutuarem sobre as folhas e, a seguir, uma delas que corria por sobre um pau caído e podre. Novo disparo, acompanhado do bater agonizante de asas. Mudamos de lugar, se bem que não muito distante, e conseguimos abater mais duas delas. Precedeu os últimos disparos, um silêncio profundo, que acusava o desmembramento completo da grande família. As restantes, por certo, haviam percebido a armadilha. Recolhemos as aves mortas e depois, aproveitando o córrego que estava seco – devido a longa estiagem – fomos a uns 100 metros acima, onde eliminamos mais duas urubas.

Nesse tempo, não saberia precisar se, nas matas de Linhares havia mais chorões ou urubas. Mais tarde, já quase na hora de voltarmos, conseguimos mais dois chorões e depois, finalmente, retornamos para construir o barraco. Lá já nos esperavam, ansiosos e bem-sucedidos, nossos companheiros.

Aproveitando a numerosidade de pássaros abatidos, resolvemos guardar em foto, a triste façanha. Dispusemos as aves em fila, numa longa vara e, quando já estávamos todos prontos, demos pela presença do Zaudino Scarpat que acabara de chegar, acompanhado de seu filho Orlando. Retardou por ter vindo em sua própria camioneta, donde deveria voltar no sábado seguinte, juntamente como Dr. Joel Coelho, que não podia demorar-se, porque tratava um cliente em estado grave. Assim sendo, contamos, também, com a honrosa presença deles e acrescemos à vara, mais dois jacus e um chorão, abatidos por eles pelo caminho. Empregando todos os esforços, conseguimos ver edificada nossa moradia temporária. Ainda não havia o negro manto da noite descido, quando tudo estava pronto. Não sendo caçador, você jamais irá entender a emoção que estávamos vivendo.

Apesar de estarmos cansadíssimos, houve quem se mantivesse horas a fio disputando um triunfo ou um canastrão, à doce luz do lampião. Às 23 horas, no entanto, todos já ressonavam, sonhando com os macucos e por que não dizer, com a onça que, contudo, estava programada para o antepenúltimo dia. Muitas vezes, às altas horas da noite, acordávamos, trocávamos ideias, ou ficávamos silenciosos, ouvindo os ressonantes ladridos de nossos cães, que tocavam um bicho qualquer daquela mata prolixa. A aurora era sempre anunciada pelos cantores alados, que ainda no empalidecer das estrelas tímidas com o ressurgir do sol, entoavam melodias confusas e sonoras. Eram milhares deles, esvoaçando, brigando por alguma fruta madura encontrada.
O chorão, a uruba, o macuco e muitos outros, iniciavam os dias com piados álacres e tentadores e, quantas vezes nos puseram a usar as lanternas! À tarde, as jacutingas davam o toque de recolher, raspando as asas nos altos galhos secos, como se fossem matracas a avisar que, para os diurnos, era hora de se recolherem. Como era de meu plano matar um macuco, aconchegamo-nos bem do lugar em que teríamos ouvido um piar. No dia anterior, Egídio e Dolmino haviam abatido dois: o que fez crescer ainda mais minha esperança e, é claro, minha ansiedade. Fizemos a choça e ali permanecemos o dia todo, mas nada se denunciou. Os ponteiros dos relógios pareciam-me velozes, tal minha ansiedade. Meus olhos não se cansavam de vasculhar cada palmo do entorno, na esperança de divisar, entre os arbustos, algo que pudesse satisfazê-los. Não sentia fome.

Quando em vez nos aspergíamos com repelente a fim de evitar a perseguição furibunda dos mosquitos e das formigas. E, assim, piamos até a noite chegar e nada do soberbo galináceo. Alguns chorões e urubas fecharam mais um dia. Na barraca, o Velhão – apelido do mano Adalho e encarregado de me fazer matar meu primeiro macuco, brincou comigo: “É, acho que estou em decadência, porque os companheiros conseguiram 18 peças, com um macuco, abatido pelo Hido Canal, que nem caçador é”.

Não houve nenhum contratempo e isto já nos bastava. Ninguém se desnorteou gravemente e isto aconteceria até o fim da caçada. Houve pequenos embaraços, mas, felizmente, resolvidos com paciência e um pouco de trabalho.

Reunimo-nos, jantamos mais cedo e depois fomos ajudar o cozinheiro que não estava muito bem de saúde nesse dia. Vaguei pela barraca, auxiliando com isso a digestão e aproveitando para ouvir o relato de cada caçador. Boquiaberto, cheio de sã inveja, eu ouvia e anotava os fatos. As gozações eram sucessivas. O Hido Canal, por exemplo, gozou o Dolmino que, segundo ele, havia matado um macuco filhote que, de tão manso, precisou ser abatido com o cano da espingarda. Depois, furou o pescoço com um espinho, que representava os caroços de chumbo.

Veio imediatamente o protesto, acompanhado do fato verdadeiro. Disse-nos que vinha pelo sulco do riacho seco, pisando de mansinho na areia e quase engatinhando por sob o emaranhado de cipós, procurando descobrir um rastro de macuco ou mutum, quando ao se livrar da empuca, notou um vulto se movimentando a apenas cinco metros dele. Sem conferir a pontaria, puxou o gatilho e o macuco debateu-se. Com isso, justificou-se da acusação e seu rosto enrubescido, retornou à normalidade. Mais tarde, porém, confessou haver acertado um único chumbo no pescoço e precisou acabar com ele a troco de pau. A bem da verdade, foi uma verdadeira “cagada”.

À noite, um frio intenso desabou sobre a barraca, impedindo-nos de dormir. Do encerado ressumavam flocos de orvalho gelados, que pareciam aqueles tais manás do deserto relatado pela Bíblia. Levantei-me, vesti duas calças, duas camisas, dois meiões, agasalhei-me com a coberta e o frio penetrante continuava.

Resolvemos, então, apelar para um método artificial, mais ofensivo e primitivo. Juntamos, em plena noite, vários galhos de madeira e cercamos o barraco com numerosas fogueiras. Em volta delas, tremiam os cachorros e, não tardou para que o Dr. Joel Coelho os imitasse, escavando um buraco quase contíguo e se enterrando, ficando, praticamente, apenas com a cabeça do lado de fora.

Com essa caída brusca da temperatura, ficamos com a impressão de que iria chover, agouro este que iria se transformar em realidade no dia seguinte. Como, com a exceção do Dr. Joel, ninguém dormiu naquela noite, mal o dia amanheceu, todos já estava a caminho, cada qual para um lugar cuja intuição lhe parecia mais indicado. Pelo caminho, retiramos os bonés e rezamos à Nossa Senhora, pedindo que nos livrasse de algum contratempo. Quanto a mim, acresci o pedido para que ela me ajudasse a abater um macuco: motivo principal desta minha primeira caçada.

E, com a ajuda de nossa mãe celestial ou por coincidência natural, um macuco piou e foi bem localizado pelo mano Adalho. Fizemos uma grande choça, enquanto o galináceo (segundo o mano, uma fêmea excitadíssima em plena reprodução, cheia de ciúmes pelo território) piava a cada minuto. Diante da grande possibilidade de eu “tirar o dedo” já não conseguia me controlar. Estava nervoso e a espingarda quase me caía das mãos.

Recebi ordens do mano para me preparar para o disparo, porque, segundo aquela circunstância, a macuca deveria vir correndo. Estava enciumada e somente o macho poderia livrá-la. Mesmo assim, ele a desafiou para a briga, chororocando com o infalível “tio loló”. (Tio loló foi o nome que o mano Jayr deu à chororocadeira do mano Adalho. Ela emitia um trinado baixíssimo e perfeito, e raríssimos eram os macucos que resistiam). E, para minha frustração, o desgraçado do macho a socorreu: deu um piadinho e a fêmea correu para ele.
Os piados da macuca que a denunciava em nossa direção, foram se distanciando para o lado do “esposo” e, finalmente, o silêncio se tornou sepulcral. Olhei para o mano: sinceramente, com pena, porque mais ele queria chamar um macuco para mim, do que, talvez, eu abatê-lo. Não, acho que não! O mano piou todos os primeiros macucos que meus irmãos abateram e, enquanto quis, sempre foi o campeão das caçadas organizadas por equipes de todo o Espírito Santo, a todas as regiões do País. Era o cara!

E desta vez, nem atrair um galináceo à choça ele estava conseguindo. Ás vezes eu tinha a impressão de ser eu o causador daquela ocorrência, mas não encontrava coragem para me acusar ou, de deixá-lo. Sempre o acompanhava, procurando sugar os seus conhecimentos e realizar meu sonho, tanto de abater macucos, como ser herdeiro de seus conhecimentos. E ele, sempre bonachão, nunca se opôs; ao contrário mostrava-se sempre mais animado e confiante. Tal foi nosso descontrole ou falta de sorte nesse dia que abatemos uma única uruba. Devo salientar, entretanto, que tal fato ocorria, mais por ficarmos quase todos os dias abarbados na perseguição dos macucos, que ainda vivem, se é que um deles não quebrou a cabeça num madeiro, na antevéspera de nossa partida.

Já estava tarde e retornamos ao barraco. Ao recolher os resultados, notei que não constava nenhum macuco, se bem que havíamos superado, em peças, a quantia do dia anterior (21). Até aquele momento, nada de extraordinário. O mano mostrava-se perturbado por não conseguir chamar um macuco para eu abater. Depois do jantar em que constava conhaque com bifes, preparados com apetitosos temperos, e uma sopa estimulativa, todos se entregaram a animada palestra.
Um pouco antes das “roncadas” costumeiras, altos comentários acusavam um entrave sensacional de canastrão. Os jogadores, animados pelo conhaque, quase romperam a noite. Lá pela madrugada, um alto protesto se proclamou, acordando até os que já dormiam profundamente. Uns riam, outros mostravam-se mal-humorados, enquanto a vítima debatia-se inconformada. Eu que já dormia, também acordei e procurei saber o motivo da balbúrdia: haviam amarrado, com a corda da rede de balanço, o Hido Canal, da cabeça aos pés. Não conseguindo se desvencilhar, a vítima acabou por ameaçar cortar as cordas com o facão e, então, entre gargalhadas e gozações, ele foi libertado. Saindo da rede, demonstrando calma e aceitação da brincadeira, o Hido, disfarçadamente, apanhou o martelo e a marreta e os enfiou debaixo do colchão do Zaudino, que ainda estava curtindo, cheio de vinho, a peça que lhe havia passado.

Na noite seguinte foi um murmúrio infindável de lamúrias do Zaudino, que não conseguia entender como aquela raiz não havia sido percebida, quando ele arrumou a cama. Como a reclamação não parava e o próprio Hido não estava conseguindo dormir, irrompeu numa gostosa gargalhada. Levantou-se e foi lá: espera aí, Zaudino, que vou arrancar este diabo de raiz que não deixa você dormir. Enfiou a mão por baixo e retirou o martelo e a marreta e emitiu outra estrondosa gargalhada. Estando empatado o jogo, tudo se acalmou, veio a bonança e cada qual procurou dormir.

A bem da verdade, pouco se dormiu naquela caçada. Eram tantos os incômodos que mal podíamos descansar algumas horas. O frio, os mosquitos e os carrapatos não nos davam um minuto de tranquilidade. Por isso, ainda antes de ouvirmos os primeiros sinais do amanhecer, já havíamos acordado e começado a contar histórias. Falou-nos o Egídio, de uma passagem, um tanto humilhante, ou, hilariante, acontecido com ele mesmo.

Dizia-nos estar percorrendo o picadão, bastante distraído, quando lobrigou um macuco que caminhava apressadamente. Procurou certificar-se para não incidir num equívoco: tempo precioso para o macuco escapar. Quando deu por si, tentou, com gesto célere, recuperar os segundos perdidos: atirou, errou e o macuco voou espalhafatosamente. Mudou o cartucho e, cabisbaixo, ruminou suas mágoas que, ainda na barraca, estavam estampadas em sua fisionomia.

À noite, choveu copiosamente. A mata estava encharcada e gotejava muito. A chuva é excitante para os inhambus, mas não enquanto chove. Ela cessando e abrindo o sol, aí sim as aves piam e atendem melhor aos chamados. Os primeiros macucos, por serem mais mansos e viverem ao redor de nosso barraco e, também, pela quantidade de caçadores, logo foram abatidos.

Restaram alguns escorraçados e ariscos que até piavam, mas nunca chegavam às choças. Mesmo assim – confiante em suas técnicas – o mano Adalho me levou a um deles. Passamos por dezenas de choças. Numa delas, ele lembrou que no ano anterior esteve lá e ali abatera sete chorões e que, logo na frente havia piado um macuco. Fomos ao local e construímos uma grande choça. Se não conhecesse o local, não ficaria aqui, disse-me ele, porque macuco não gosta de morar em lugares de folhas largas. Mas sei que ele está por perto. Vamos tentar. Estávamos a três horas do barraco, com o tempo revolto e, para aumentar ainda mais a confusão, relembramos um lapso de nossa parte, por não ter feito uma boa picada em nossa vinda ao local. Estávamos quase decididos a voltar, quando distinguimos entre os rumores da floresta, um piado de macuco, bem próximo de nós. Quase petrificados, esquecemos o problema da picada e o temporal que da noite que retornava.

Piados incessantes se reproduziam das aves que já se acercavam da choça. Demos pela presença de diversos chorões, sem, contudo, abatê-los, a fim de não assustar o macuco, nosso alvo principal. O mano Adalho demonstrou uma descrença tal sobre a lealdade do referido macuco que me permitiu alvejar as caças que estavam por perto. Fiz alguns disparos e, a seguir, nos preparamos para mochilar. Apesar dos estampidos, ele continuava a piar e tínhamos a impressão de que se aproximava. Havia por perto do lugar em que nos encontrávamos, um grosso madeiro, cujo tronco se fixara sobre uma elevação, protegendo minha retaguarda para o lado do valão. Ficava longe da choça uns 10 ou 15 metros. Nesse lugar, depois de um longo silêncio, ouvimos a grande ave piar. Com o piado, todo mau tempo foi desconsiderado.

Levantei-me nervosamente, tomei, por bem dizer, a posição do mano, pois ele queria que eu atirasse. No entanto, o macuco veio à distância limite e parou. Esperamos bastante tempo, piamos, chororocamos e, nada. Nem a utilização do famosíssimo tio loló resolveu o problema. Nesse ínterim, desabou uma torrencial chuva, que não nos foi possível distinguir mais nada, a não ser um véu opaco e prateado. As folhas secas e arrepiadas se aplainaram sobre o solo e já não se ouvia, senão, um longo murmurejar de gotas a se projetarem verticalmente. Tomando toda sua proporção, penetrou na choça e nos molhou impiedosamente. Percebendo isso, resolvi vender caro a desistência, lançando-me ao encalço do macuco.
Deixei o mano na choça e aproveitando o barulho, projetei-me na mata. A chuva constante, quase não me permitia lobrigar nada. À minha frente era uma camada espessa e esbranquiçada que se defrontava. Procurando os lugares mais favoráveis, aproximei-me do local em que ele havia piado. Olhei cautelosamente sem, contudo, nada ver ou encontrar. E a chuva continuava a cair excessivamente. Eu já não sabia se era o mano ou macuco que estava piando. Já totalmente molhado, aconcheguei-me a um tronco convexo, o qual protegeu um pouco meus pios e a espingarda. Enquanto isso, olhava incessantemente, para todos os lados, à espera de algum bicho qualquer que me compensasse daquele sacrifício. Já fazia algum tempo que estava ali.

A chuva diminuiu, quase parou, quando um largo peito se mostrou de todo à minha frente. Sem pestanejar, virei a espingarda e atirei. Vi que, apesar de me encontrar atrás de um varão, eu o tinha acertado. Ele se debatia sobre as folhas. Corri, louco de contentamento. Quis gritar, mas, por fim, me contive.

Como foi bom eu me ter dominado! Baixei-me, apanhei-o e ainda não conseguia acreditar naquela verdade decepcionante. Era um simples chorão! Encostei-me a uma farinha-seca, respirei fundo: já considerando impossível abater um macuco. E eu sabia, pela lei dos caçadores que, se no currículo dele não constasse um macuco, não podia ser considerado caçador. Seria apenas, um caçador de juritis, e o que era pior: um caçador-marca-cu.

Assim pensando, dei por encerrado o meu expediente, mas, antes de voltar à choça, desci algumas dezenas de metros, descrevi um semicírculo e assoviei para o mano. Dentro de poucos minutos nos encontramos. Perguntou em que eu havia atirado, e eu relatei até com detalhes demais. Falei para o mano que preferia voltar, porque estava totalmente molhado e sentindo muito frio. Mas ele, também chateado por não conseguir atrair um macuco à choça, sugeriu uma última busca, por meio de um cerco. Para não o contradizer, concordei, sem qualquer esperança. Dispersamo-nos em duas ramificações diferentes e, por meio de sinais convencionados, fomos fechando o círculo. De repente notei um vulto cortando minha frente em grande velocidade. Encostei-me numa árvore e procurei definir o que a princípio me pareceu um macuco: eu já não enxergava outra coisa! Tinha até medo de confundir o mano, tal a ideia fixa.

Como por encanto ou instinto de defesa, o vulto parou sob uma folha de palmito emborcada, cuja ponta osculava a terra. Então, com muita calma apontei para o lugar e atirei. Com grandes saltos vi assomar, diante de meus olhos uma cotia, alvejada mortamente. Apanhei-a e fui encontrar o mano, que já me esperava.

Nesse dia ocorreria a nossa primeira desnorteada. Quando voltamos, fizemos uma picada muito ruim, seguindo, em geral, marcas de uma outra antiga, por ele mesmo feita na caçada anterior. Após uns 100 metros, perdemos totalmente os vestígios. Era prelúdio de um bom problema! Já o sol se inclinava e nós, em pleno chapadão, molhados, perdidos e bem longe. Mas, para nossa sorte, havia duas esperanças: uma era o rio que deveria passar perto do lugar em que havíamos partido; a outra é que nos valeríamos das precauções que havíamos tomado, ainda antes de nos separar dos outros dois irmãos, Jayr e Brando, que estavam bem além, mas na mesma direção.
Sem nos alarmarmos (nem tanto) viemos seguindo o curso do igarapé, mas, apesar das sinuosidades, o trajeto nos dificultava pelo emaranhado de cipós de seu leito. Não havendo outra alternativa, continuamos mais e mais e, de repente, nos defrontamos com uma elevação que se opusera ao rio, em tom, para nós, misterioso. Era, talvez, o completo embaraço. Ainda uma vez, confiando um no outro, nos “dominamos”. Aparentando calma, fizemos algumas buscas à procura de algum indício de nossa passagem por ali. Apartamo-nos por algum momento e, sem delongas, ouvi um chamado de meu parceiro. Ia ao encontro do chamado quando ouvi dois tiros consecutivos de meu parceiro. Apressei o passo e entendendo o sinal, tentei cercar alguma coisa que não sabia o que era.

Apesar das urubas continuarem por perto, não lhes demos ouvido, continuando na luta para desvendar aquele embaraço sem explicação. Enleamo-nos ainda mais ao descobrir uma barraca de caçadores e que ainda se conservava intacta. Seria isso esperança para nossa saída: por certo deveria haver um desvio naquela barraca utilizada pelos caçadores que ali estiveram. Lutamos incansavelmente sem obter qualquer resultado satisfatório. Apelamos, então, para um meio mais prático, se bem que humilhante: confessaríamos nossa humilhante perdida, atirando e gritando.

Gritamos várias vezes, mas não obtivemos qualquer resposta. Sentamo-nos e demos tempo ao tempo, pois confiávamos no Brando e no Jayr que acordaram um encontro por ali, para retornarmos juntos ao barraco. O diabo é que o Brando não era lá de cumprir tais acordos. E o sol já estava indo embora, a noite chegando, quando um estampido pôs fim à nossa agonia. Eram nossos manos que, sem se dar pelo ocorrido, nos doava tão prestimoso auxílio, atirando num tucano. Respondemos ao tiro e pouco depois já estávamos reunidos. Só Deus sabia que eu e Adalho os estava vendo como dois anjos salvadores! Mas, não dissemos nada, porque seria muito humilhante.

Com a noite chegando, os macucos estavam procurando poleiros para dormir e, normalmente, eles piam nessas horas, como a avisar seus parceiros sobre a posição em que se encontravam. E foi assim que fomos sobressaltados por um que piou próximo à picada em que iríamos passar. O lugar era horrível, parecia cheio de empucas de cipós. Nos escondemos rapidamente, enquanto o mano Adalho, na sua impassibilidade, tentava atraí-lo para mais próximo de nós. Creio nunca ter ouvido um macuco vozear tão perto! Até um pigarrozinho da garganta dele, ao piar, eu percebia.

Na realidade, a distância que nos separava não passava de cinco metros. Só mesmo a obscuridade impediu que eu o visse. Eu tremia a ponto de demonstrar minha presença e, naquela agonia pungente, suportei, por quatro vezes, os piados, cuja proximidade me desnorteava. Já me encontrava num desalento incontrolável, sentia obscurecer minha visão, ouvia piados diversos e indescritíveis e o macuco nem aparecia, nem voava ao poleiro. Era a noite que estendia seu véu de trevas. Num gesto desolador, olhei para o firmamento: vi estrelas cintilarem: pareciam olhinhos solitários a me fitar.

Pensei no reflexo da imagem do meu estado de angústia, por não conseguir meu intento. Então, tudo se quietou definitivamente. Recoloquei minha espingarda sobre as pernas, respirei fundo e desci do murundu. A caminho, relatei aos manos o que acontecera e eles, sem discreparem, confirmaram minha má sorte. Fizemos um propósito de voltarmos ali na primeira oportunidade, já que só iríamos embora daí a duas semanas. No barraco, depois do banho a litros d’água, roupa seca e um jantar dos deuses, tomei o caderno e a caneta e fui anotando, um por um, o que haviam conseguido. Na soma contei um macuco, dois chorões, cinco urubas e um tucano, o o bendito que nos salvou da perdida. A colheita foi razoável, mas assinalava um decréscimo brusco de sete peças, se comparada à do dia anterior. Por fim, acordamos que fora devido ao excesso de chuva. De fato, com tanta chuva, fica difícil caçar mesmo!

Era hora de narrar, principalmente a façanha de abater algo mais difícil. E foi assim que o Zaudino disse que ia pelo picadão, quando notou que um bando de tucanos voou para uma fruteira, bem ao lado. É sabido que jacus e jacutingas costumam acompanhar os bicudos: excelentes descobridores de fruteiras na floresta.

E, de fato deu certo: uma jacutinga fazia parte do bando e voou num galho bem perto, favorecendo o abate. Ainda antes das 22 horas, já não havia ninguém disposto a “contar mentiras”. Todos preferiram dormir, porque fora gelada a noite anterior e muito cansativa a caçada durante o dia debaixo de verdadeiros aguaceiros.

Enfim, amanheceu o quinto dia, mais bonito e promissor do que todos de até então. Do barraco já ouvíamos piados de muitos inhambus, incluindo os desejados macucos. Desta feita, fomos em quatro: Adalho, Brando, Jayr e eu. No local, usando a experiência do Adalho, dividimo-nos: Brando e Jayr ficaram em um dos macucos que estava piando e Adalho e eu, no outro. Por ali, todos os dias aqueles macucos eram piados e nem é preciso dizer por que ainda estavam lá.
Tendo desistido, juntamo-nos, quando o Brando disse que uma onça havia passado perto do lugar em que se encontrava. Adalho fez-lhe algumas perguntas e constatou que, de fato, ele vira a onça. Então, posicionou o Brando, Jayr e eu em volta dele e pediu para que ficássemos atentos, porque bem podia ser uma onça faminta que estava se humilhando na captura de passarinhos. Cada um tomou a direção indicada. Para trás estava o Adalho, nas laterais, o Brando e o Jayr. Logo, eu só precisava vigiar a frente. O posicionamento foi rápido e o Adalho começou logo a piar. Na verdade, minha preocupação já não era tanto o macuco e sim a suspeita do Brando. Creio não ter ficado 20 minutos no meu esconderijo, quando por simples casualidade, olhei à minha retaguarda.

Estava eu, sobre uma árvore podre, tombada, recostado a uma palmeira, por assim dizer, esquecido da responsabilidade de caçador, que consiste, sobretudo, na prudência indispensável para com os perigos selvagens. Lateralmente havia um amontoado informe de cipós que balouçavam ao sopro dos ventos; à minha frente, um vasto limpado que me auxiliava distinguir qualquer transeunte que por ali vagasse.

Pela retaguarda uma larga e alta trilha fazia um percurso de 15 metros mais ou menos, obstada por três varões que tinham no seu tronco, um pedaço considerável de madeira, corroído pelas intempéries. Uma abandonada estrada florestal cortava transversalmente aquele local. De início, meu olhar foi despreocupado e sem nenhum objetivo. Foi quando divisei algo que se locomovia inopinadamente por aquele caminho. Senti sucumbir as forças, só em pensar na vaga hipótese que seria o animal que, minutos antes, o Brando disse ter visto. E aquela alusão era a realidade. Sentindo naquele momento a presença humana, o irascível animal se deteve naquela encruzilhada de trilhas, acima descrito. Num gesto lancinante, que quase denunciou minha presença, devido ao movimento que fiz no momento de mudar de posição, virei a espingarda e quase puxei o gatilho. Por fim, controlei-me e vi a inutilidade do disparo, pelo menos naquele momento. Estava atrás dos três varões e, por isso mesmo, só me era possível contemplar seus grandes beiços caídos, a pá esquerda e suas ilhargas lourejantes. Sua cabeça inquieta fazia-me suspeitar de suas retas intenções. Armei o cão direito que continua um cartucho com chumbo 3T. calibrei a pontaria e fiquei aguardando, ainda, uma melhor posição, porque um dos varões continuava me prejudicando. Enquanto ela hesitava dar mais um passo à frente, eu fiquei admirando aquele enorme animal que brilhava ao sol.

Quando ela bocejou, percebi sangue em sua boca e concluí que ela havia apenas almoçado. Seus olhos que, às vezes, eu conseguia entrever, refletiam sua má índole. E, por mais que eu esperasse, ela continuava extática, como que pensativa, certamente farejando meu almíscar: o que não era nenhuma vantagem. Já irritado com aquela indolência inexplicável, resolvi pôr fim à minha angústia. Firmei a pontaria e fiz fogo.

O animal não desfaleceu. Deu um grande salto para acima, mantendo-se um pouco mais longe e ainda atrás dos três varões. Vi que tinha falhado na primeira tentativa. Partiria para o cano esquerdo. Esta tentativa seria ainda mais duvidosa, devido ao aumento da distância e ao decréscimo do chumbo que estava no cartucho do cano esquerdo. Nesse momento, certamente ferida, ela saltou um tanto desnorteada e resolveu fugir, tentando passar exatamente no local em que me encontrava.
Entendendo o que qualquer caçador de primeira viagem entenderia, imaginei que ela estivesse vindo para me pegar. Tendo reposto os cartuchos, atirei para o lugar em que a espingarda estava apontando. A onça brecou a três metros de mim e ficou imóvel.

Não hesitei em aplicar o meu plano B, abrindo a boca no mundo e chamando pelos irmãos. O Jayr que estava mais próximo, veio correndo pela mata e ainda a viu debandando. Não conseguiu alvejá-la, mas serviu-me de testemunha. Brando e Adalho também chegaram. Adalho, vendo minha tremedeira, foi logo tirando o cantil e me dando água. Em seguida, como a água era pouca, pilheriou: desçamos o valão. Pode ser que o riacho tenha água da chuva de ontem e isto será necessário para ele se lavar. Riram a valer, enquanto eu continuava com a marca humilhante de “caçador-marca-cu”.

Na picada principal nos deparamos com mais dois colegas, o Arlindo e o Joaquim Bona que, ouvindo os alaridos aproximaram-se a fim de ficar sabendo sobre o acontecido. Depois das explicações decidimos voltar à barraca para almoçar. Esse fato – o mais comentado da caçada – incutiu-me uma dúvida a respeito do animal atirado. Os companheiros viviam me atazanando, dizendo que meu medo fez com que uma cotia mostrasse rabo e crescesse tanto. Não estava sendo fácil livrar-me de tantos gozadores. Somente quando o Antônio Manqueta chegou ao barraco, dizendo que havia pegado uma enorme suçuarana na arataca e que ela estava bastante ferida por um tiro, é que os gozadores me deixaram em paz. Ufa!…

Por ordem do chefe Adalho, todos permaneceram no barraco descansando até às 16 horas, quando alguns saíram para empoleirar ou localizar macucos para o dia seguinte.
Eu permanecia cabisbaixo, arrasado, deixando transparecer apenas certos momentos de alegria dissimulada, ajudados pela imorredoura esperança de que ainda havia alguns dias para eu me tornar um caçador, abatendo o tão sonhado macuco. Saímos, então, para as matas. Chegando ao lugar escolhido, nos amoitamos em esconderijos de dias anteriores e começamos a piar. Começaram as respostas, mas, até então, muito distantes. Então, resolvemos ir ao que estava piando, ficando mais próximo dele a fim de flagrá-lo subindo ao poleiro. Normalmente, eles escolhem cipós curvos sem nada por cima, com plena chance de escapar de predadores, voando livremente em caso de ataque noturno.

Eu permaneci na picada, permitindo ao Adalho a despreocupação de uma perdida. Com isso ele se aproximou bastante do macuco, sempre respondendo aos piados dele. Alojado sobre um monturo da orla da picada eu consegui ampla visão. O cume da pequena elevação que se sobressaía, permitia-me perceber quaisquer transeuntes que passassem pelas imediações. Por isso, encostei-me quanto pude à árvore e fiquei tranquilo, porque estava bem protegido e seguro. Havia um emaranhado de cipós bem à minha frente, propício e seguro à proteção do macuco.

A noite caía. Eram já, 18 horas: o momento exato das aves que dormem empoleiradas voarem para seus abrigos. O macuco que piava, praticamente aos meus pés, de repente calou-se: hora de alçar voo, a não ser que tivesse escolhido passar a noite no chão. Mas não fora sua escolha. Tendo escolhido o cipó grosso, ele apenas estava sem lá tanta pressa. E então, quase me fazendo cair a espingarda das mãos, vi e ouvi um forte bater de asas e o lindo galináceo alcançar o cipó que ficava sobre minha cabeça. Aí também já era demais: fui erguendo a espingarda. Entre mim e ele, não havia mais que 10 metros. Agachou-se de início e depois levantou-se, desfilando garbosamente ao longo do curvo cipó. Como eu ainda não soubesse dessa característica desses inhambus, imaginei que me havia visto e já iria voar para longe. Afobadamente, levei a espingarda e atirei. Triste interpretação! Emudeci. Olhei para as estrelas e na solidão paradisíaca que Deus as colocou, vi eclipsar-se entre elas, um meteoro alado de cor lourejante. Eu chorava no meu interior, o descalabro de minha incompetência.

Ouvindo o meu tiro, o mano, ainda rindo de alegria, desvencilhou-se dos últimos ramos herbívoros que o prendiam e se encaminhou em minha direção. Eu me encontrava extático diante daquela radiante fisionomia e mal consegui articular algumas palavras sem sentido. Elas diziam tudo ao experiente irmão: eu havia falhado mais uma vez! Contei-lhe, afinal, minuciosamente o que havia acontecido e, graças à compreensão dele, pude reanimar-me, também daquele fracasso. Em tão de professor, amigo e irmão, ele me disse:

– É mania dos macucos, andar de um lado para o outro do poleiro antes de agacharem definitivamente. Você podia – depois que ele fizesse isso – até cortar uma forquilha para firmar a espingarda. Mas, não fique preocupado: sofre-se muito para aprender, principalmente a entender as manias dos irracionais.

Não dormi a noite toda e ainda achei o tempo curto para justificar-me a mim mesmo. O mano Brando, que também remoía algum azar, aproveitou-se da costumeira palestra para relatar um fato muito curioso. Coadjuvado pelo Jayr – testemunho ocular – principiou a história, tendo antes tomado um golezinho de dois dedos “na vertical” da pinga que trouxeram. Dizia que ele e o Jayr aprofundavam-se pela mata, preocupados apenas em abrir uma boa picada, pois diziam não querer saber de perdida. De repente – entrou o Jayr na conversa – vi que o Brando pisava sobre brasas incandescentes. Parecia um milho de pipocas espocando. Deu vários pulos e passou por mim, gritando assustado: “Nossa Senhora, que cobra! Era uma serpente enorme que ainda ressonava ao bom sabor de seu poderio. Não havia com que se preocupar. Depois de passado o primeiro sobressalto, veio a calma e, então, o Jayr, fazendo pontaria, arrancou-lhe a cabeça. Derrotado o inimigo, resolvemos medi-lo, o que resultou em 10 palmos e uma chave. Era a maior surucucu-pico-de-jaca que já tínhamos visto.

Aproveitando a insônia, falei com o mano Adalho, que também andava um pouco chateado com sua performance em atrair os macucos. Sugeri a ele mudar de parceiro: eu iria com o Jayr e ele com o Brando. Seria uma simples questão de rodízio. No outro dia bem cedo nos levantamos e fomos todos os quatro juntos por uma mesma picada, até ao terceiro valão. Ali nos apartamos. Jayr e eu fomos valão abaixo e por ele descemos uns 300 metros. Nada respondia.

Tudo parecia calmo, o que achamos bastante estranho. Mas, pela perseverança de nossos piados, três urubas responderam a uns 30 metros de nós. Escolhemos uma mencionável posição e ficamos à espera. O casal respondia sem cessar, mas não arredava do lugar. Uma outra, solitária, aproximou-se rapidamente e, pela primeira vez no dia, reboou um tiro. As outras duas, continuavam a piar e resolvemos, por conseguinte, usar o plano B, mas que, poderia, sem dúvida, resultar positivamente. Descemos lateralmente uns 20 metros e subimos, a seguir, em direção às urubas. A estratégia foi sensacional. Sentimos a aproximação delas e a de um tururim. Enquanto isso íamos piando também os macucos. Sem esperar, vi o mano Jayr deslocar sua arma e disparar com indefinível agilidade, abatendo parcialmente um chorão. Estávamos sob um emaranhado de cipós e ao passarmos por baixo, percebemos galhos secos caindo sobre nós. Enquanto isso o chorão agonizava, debatendo-se nas folhas.

Para pôr fim ao sofrimento dele, preparei-me para lhe dar o tiro de misericórdia, substituindo o cartucho de fábrica por um de metal, exatamente carregado para tais eventualidades. Com o pequeno tiro que dei na cabeça do chorão, tudo quietou, inclusive nós. Foi quando a quantidade de galhos secos aumentou. Olhamos para cima e mal conseguimos divisar uma jaguatirica que descia atabalhoada.

Era confusão demais, inclusive para ela. Lançou-se do alto indo dar com o nariz no chão, bem aos nossos pés. Recuperando suas forças, fugiu em grande velocidade, não sem o estímulo de quatro disparos na traseira. Consideramos o caso com certa hilaridade, porque, com tanto barulho e confusão fizemos cessar até mesmo os grilos que cricrilavam pela redondeza.

Por isso mesmo, resolvemos mudar de posição, seguindo mais para frente. Na vanguarda ia o mano, enquanto eu me desviava um tanto para recolher o chorão. Quando seguia para me juntar a ele, senti-me estugado pela ênfase que ele ostentava no olhar curioso. Nisso, voou-me dos pés, uma das urubas: a mesma que havíamos piado um pouco antes. Estava pensando comigo mesmo sobre a oportunidade que havia perdido, quando a outra voou do mesmo lugar. Estavam ambas acocoradas no solo, protegidas pelo mimetismo e, certamente, se protegendo da jaguatirica. Fui então ao mano, a fim de averiguar seu espanto natural. Enquanto isso, numa distância de 10 metros, ele percebeu a carcaça de uma cotia. Havia sido devorada a poucos minutos, porque o sangue nem havia coagulado ainda. Entreolhamo-nos, deixamos aflorar um risinho sem graça e nos preparamos para voltar. Com certeza havíamos interrompido o almoço da jaguatirica!

Tirei da sacola o cantil que continha leite em pó dissolvido e retornamos à picada. Transpusemos o primeiro valão e fomos seguindo, sem que nada mais acontecesse. Enquanto caminhávamos, íamos piando, mesmo porque tencionávamos voltar àquela região e, sendo assim preparávamos o terreno, assanhando as aves. No segundo valão, depois de havermos caminhado uns 100 metros, um ruído se fez ouvir não muito longe de nós. No delírio de meus pensamentos, opinei por um macuco, contradizendo o mano que dava à minha opinião, a força do desejo. Mas, por insistência minha, ele decidiu penetrar um pouco para averiguar.

Devido ao seu pessimismo, fiquei de espingarda no ombro, se bem que atento. Mal havia dado alguns passos, vi passar maravilhado, o soberbo galináceo, que incontinenti desapareceu entre os arbustos desalinhados. Uma coisa era certa: ele não nos tinha visto. Afastou-se andando tranquilamente. Fiz sinal ao Jayr que logo ficou atento e arrisquei alguns piados rápidos e decrescentes e em seguida chororoquei com a boca, tão baixinho que quase não se ouvia. Aguardamos 10 minutos e como nada acontecesse, acordamos: deixemos para amanhã, quando retornaremos. Pode ser que ele nos tenha visto e apenas disfarçou. Às vezes a gente menospreza demais os irracionais!
E o dia seguinte abriu suas pálpebras e o Sol inexorável focalizou a Terra com esplendor brilhante. Manhã serena e límpida. O céu se mostrava claro, encimando a eterna azulescência do infinito. Pequenos flocos de nuvens locomoviam-se sem pressa, caminhando para o ocidente. O dia estava favorável a que eu realizasse meu sonho. Era quase certo que seríamos felizes.

No dia anterior, com o tempo desfavorável, o grupo havia matado 24 peças, inclusive, um macuco. Hoje, com um macuco já localizado e o tempo favorável, não iria dar errado. Mas, deu. Passamos o dia vagando, sem ouvir nada. Ainda cedo, decepcionados, retornamos à barraca. Já nos esperavam, pois havíamos combinado que iríamos empoleirar macucos. Jantamos, apanhamos as lanternas e partimos. Chegando ao lugar que fora previamente determinado, o Adalho nos posicionou. Meu companheiro mais próximo era o Adalho, motivo pelo qual, mais uma vez, estive às voltas com o macuco, que passou a poucos passos de mim, acoitado pela penumbra noturna.

Em poucos minutos, dezenas de piados ecoaram mata adentro, trazendo-nos a certeza dos empoleiramentos. Nenhum tiro foi disparado, assegurando que ninguém flagrara a ave no poleiro. Mais um pouco, corujas, pica-paus avinhados, pirilampos, mariposas, grilos, ratos e urutaus avisaram que estava encerrada a hora dos diurnos. A macuca que nos rondava despediu-se com quatro piados simultâneos, mas, bem fora de nosso alcance.

Mesmo assim, tentamos encontrá-la, mas foi inútil. Isto foi um fato normal e bastante criticado, porque não nos demos o trabalho de procurá-la melhor. A verdade é que o cansaço acumulado pela correria dos dias anteriores, começavam aflorar. E a culpa não se sabia a quem atribuir e ninguém ousou assumi-la. Era apenas o início dos descontroles que sobreviriam. Como faltassem ainda alguns companheiros, foi dado o sinal para que desistissem. Logo, três ou quatro chegaram e concluiu-se que eram os que faltavam.

Mas, na chamada, o Brando não estava presente. Aí foi um Deus nos acuda. Começamos gritando, depois atiramos, depois rezamos e passamos a procurá-lo pelos derredores. Nada. Ali por perto havia sido alvejada a onça e morta a surucucu-pico-de-jaca. Reunidos no picadão e desesperados, resolvemos enviar dois caçadores, Hido e Dolmino, para retornarem ao barraco, tanto para dar a notícia como buscar reforço e mais pilhas para as lanternas.

Se em 30 minutos fossem disparados dois tiros (eles iriam correndo), o Brando estaria lá. Nossos corações estavam acelerados. Não nos contínhamos diante daquela possível separação fraternal. O mano Jayr consultava seu relógio a todo instante e o tempo ia se esgotando. Chegou-se aos 28 minutos e nada se alterava, nada se escutava. Um calafrio inexplicável perpassou-me pelo corpo e, de minha fronte, ressumavam gotas frias de suor.

Apagavam-se as luzes da esperança, sentíamos desvalidos diante de nossa pequenez e falta de fé. Mais dois minutos e estaríamos à procura do cadáver do Brando. Primeiro saímos, Jayr e eu, que juramos que não deixaríamos o irmão, mesmo morto, passar a noite ali sozinho naquele inferno de matas. Saímos rezando para que Deus nos guiasse até ele, vivo ou morto. Jamais alguém irá imaginar o que se passava com o Jayr e eu naqueles momentos!
De repente, o Jayr parou e disse ter encontrado sinais de que ele havia passado por ali. Fomos seguindo por eles e pouco
a pouco, o rastro foi se tornando indefinível e chegou a um ponto que mais nada se percebia. (É bom antecipar que, por cima do fim daquela picada, um macuco dormia tranquilamente, mas não olhamos para cima.) Mesmo assim, averiguamos todos os possíveis lugares da suposta tragédia, principalmente árvores com catanas: preferidas por nós caçadores. Depois de longas análises em vão, deixamos aflorar uma outra prece, solicitando a misericórdia de Deus. Na picada, todos estavam cabisbaixos e perplexos. O tempo esgotara-se!

Não era propriamente o desânimo, mas a confiança de que o Senhor nos pouparia dessa provação, em ocasião tão inoportuna. Fazendo rodízio, eu e o Jayr ficamos ali, enquanto os demais passaram a procurar. Foi então que veio do céu, a mensagem da misericórdia de Deus, na bênção do eco de dois tiros. Um grito unânime de aleluia, selvático de contentamento, escapou a um só tempo de nossas bocas. Os que havia entrado na mata, retornaram correndo e, juntos gritamos a uma só voz: Deus seja louvado! Para confirmar que não estávamos delirando, mais dois tiros, agora bem próximos, foram disparados. Cada um pulou ao pescoço do que estava mais próximo e muitos choraram.

Um vozerio tremendo de alegria sufocou as lágrimas daqueles corações que já pulsavam oprimidos pelo peso das amarguras que lhes infligíamos. E todo o sofrimento foi devido à avalição errada da distância. Na verdade, não dois, mais sete tiros haviam sido dados, mas, apesar do silêncio, não venceu as camadas aerosféricas da distância. Só mesmo uma explosão de pólvora comum expelida por um trabuco pica-pau, fez-se ouvir por duas vezes, o que trouxe a nossos ânimos, o conforto do céu. Creio mesmo que poderíamos estar ainda mais distantes, pois, realmente, o Antônio Manqueta caprichou no carrego. O Dolmino disse que eles chegaram no horário e que ele quase acabou com os cartuchos, mas que eles haviam sido carregados com pólvora forte, cujos sons são agudos e de pouco alcance sonoro.

Enquanto voltávamos, discutíamos se devíamos, ou não, repreender o Brando. Viajamos uns 20 minutos e distinguimos um sussurro que se abeirava de nós. Mais um pouco e nos encontramos, sendo que ninguém exteriorizou seu mau humor. A graça de Deus foi maior do que nosso possível desabafo. Só quisemos saber como ele teve coragem de nos passar um susto tão grande.

E o Brando, com toda inocência e simplicidade do mundo, explicou: quando os macucos empoleiraram, ouvi nitidamente um forte bater de asas à minha retaguarda. Num gesto lépido, escalei um cômoro que se erigia desconcertante naquela planície e lobriguei a ave venusta caminhando a passos incertos, ao longo do galho balouçante.

Acorri, de imediato a seu encalço e quando já podia fulminá-lo, sobreveio-me o pensamento de que vocês já tivessem voltado, deixando-me lá sozinho. Assoviei por várias vezes, mas não recebi a menor mensagem de vocês. Retrocedi à picada, fiz novos sinais e, nada. Sem hesitar coloquei-me a caminho da barraca, abalroando nos galhos e madeiros que se me opunham.

Quando já me aproximava do lugar em que abarracamos, ouvi três tiros, o que computei tê-los deixado para trás, mas não previ, nem sequer fiz menção do que estaria se passando.
Como sabem, eu estava sem lanterna, por isso mesmo, completei meu itinerário com algumas lesões externas, mas superficiais, e isso agradeço a Deus, porque bem podia ter fraturado uma canela. Quando cheguei, encontrei a barraca completamente desabitada. Nem o cozinheiro se encontrava. Mesmo assim, jantei tranquilamente e fiquei à espera de vocês. Só então assaltou-me a ideia do que estaria acontecendo lá com vocês, devido minha ausência ou desaparecimento. Desordenado, estava mesmo disposto a retornar, quando percebi a chegada do Hido e do Dolmino. Estonteado por tantas reclamações concernentes à minha irresponsabilidade, fui ao encontro deles, que logo esqueceram tudo e me abraçaram efusivamente.

Depois disso, fomos imediatamente ao barracão e demos muitos tiros, cuja sequência chamou a atenção do Antônio Manqueta, que logo apareceu. Sabendo que se tratava de coisa séria, ele voltou e preparou a pica-pau dele, dando o primeiro tiro, que deve ter sido ouvido lá em Linhares. Recarregou e deu o segundo, não menos ecoante que o primeiro.

– Então, retruquei eu, que via na história mais uma chance de “tirar o dedo”: você deixou o macuco no poleiro?

– Tanto o deixei que, se quiserem, poderei conduzi-los até lá.

Visando mais essa oportunidade que se me apresentava, comecei a incitá-lo para que voltássemos naquela mesma hora, pois temia adiar para o dia seguinte. Na oposição, destacou-se o mano Adalho que, finalmente foi derrotado por estar sozinho e não conseguir destruir minha ansiedade. Ficou decidido, então, que voltaríamos e, com isso, retornamos. – – Permeio à floresta, assomavam-se, de quando em vez, espetros de árvores que se locomoviam impulsionadas pela brisa indecisa. Também no céu, não repontava nenhuma estrela: tudo era um abismo etéreo que não tinha lindes entre o firmamento e a nossa Terra plantada nele. Estugados pelo entusiasmo, não tardamos em desfazer a distância. Logo que chegamos, projetamo-nos pela mata e como tardássemos a encontrar os sinais deixados pelo Brando, distribuímo-nos em diversas direções.

Com a noite escura, lanternas ruins, andando sem direção, logo o Jayr, o Hido, o Dolmino e eu nos desnorteamos a apenas 20 metros da picada. Mas, como havíamos deixado o Joaquim, por precaução, na picada, não nos foi trabalhoso reencontrar a picada feita pelo Brando. Estávamos pensando em desistir de mais aquela tentativa, quando o Arlindo encontrou o sinal deixado pelo Brando.

Encaminhamo-nos para lá e de lá, fomos seguindo os indícios deixado pelo Brando, até nos depararmos sob o cipó em que o galináceo dormia. O primeiro passo estava dado, restava, agora, identificá-lo no meio daquele emaranhado de cipós que se entrelaçavam por baixo, formando um verdadeiro esconderijo para o esperto macuco. Aquilo era estranho porque os macucos sobem praticamente a prumo e, por baixo, havia uma verdadeira empuca.

Perseverantes, continuamos procurando a melhor posição, até que o Arlindo conseguiu, detendo o foco de sua lanterna sobre o largo peito da ave. Como todos concordaram de que seria eu o atirador, sem me fazer de rogado, logo tomei posição. No íntimo de meu ser, eu sentia calafrios e meu coração acelerava quanto mais a hora do disparo se aproximava. A mira estava indefinível, o que fez com que eu mudasse de posição várias vezes. Finalmente, apertei o gatilho, dando fim àquela agonia por mim escolhida. Com o tiro, a ave, tomada de pânico, alou por entre as frondes, revoluteando pelos ares e subindo sempre mais, até assomar-se por cima dos mais elevados madeiros daquele socalco.

O céu, tingido de um fuscalvo bem enegrecido, agora me era inteiramente sem graça. Olhei estarrecido para a ave que se toldava na altura.

Mudei a direção do olhar um pouco e constatei que comentavam uniformemente sobre o ponto alvejado pelo meu disparo. Havia atingido o lugar em que o macuco dormia, mas o cipó era muito grosso e protegeu a ave. Por certo o chumbo havia lhe fraturado as pernas ou mesmo o ferido de morte. Indignado com tanta falta de sorte, detonei o outro cano da arma para o alto, inexplicavelmente. Preferia, naquele momento, não estar participando da caçada.

Um descontentamento tal se me infligiu que, apesar de meus esforços para dissimular alegria, ela não se refletia em meu comportamento. No lanche noturno não consegui participar. Ficava pensando sobre a razão de eu não conseguir realizar o meu tão ambicionado plano de me livrar da terrível denominação de “caçador-marca-cu”. Nunca entendi porque é tão difícil conseguir uma coisa pela primeira vez!

Notando minha angústia, o Brando tentou ajudar:

– Você acha, Livaldo, que se ele estivesse fácil, eu o deixaria para você?

– De fato, ele estava num lugar desgraçado, enfatizou o Dolmino.

– O tiro foi perfeito. Vocês podem verificar lá? Por baixo do lugar em que o macuco se encontrava, as cascas do cipó foram arrancadas.

Confesso: a pena demonstrada foi a pior parte da catástrofe! A noite voltou a ser gelada e apelamos para as fogueiras em torno do barraco. Entre o frio e minhas desditas, não consegui dormir. Aproveitando a insônia, combinei com o Jayr retornar àquele lugar em que vimos o macuco dias antes.

Ele concordou e, mal o dia amanheceu, já estávamos a caminho. Ouvindo nossa conversa, Adalho e Brando ofereceram-se em nos acompanhar e, então, saímos em quatro. Agora arejava agradavelmente, enquanto desfazíamos o caminho. Havia três valões em nosso itinerário, distanciados um do outro, mais ou menos 50 minutos. Até o primeiro valão, apenas algumas urubas – porque havia demais – conseguimos abater. Uma delas, depois de oferecer-nos um espetáculo sensacional, passando pelo Adalho e o Brando, veio aos dois cingidos pela urucubaca, recebendo uma dupla carga. Nosso objetivo era outro e, assim sendo, prosseguimos nosso caminho, transpondo o segundo valão e nos deparando com uma árvore em que tínhamos entalhado a inicial da futura vítima. Mas, não seria desta vez!

Demos as instruções devidas aos dois manos, que no dia anterior estavam ausentes, e o Adalho concluiu que, para tal ocasião, seria prudente um cerco, em que o piador ficasse centralizado. Ele subiu numa densa ramagem bem alta, enquanto o Jayr o precedia, ficando a retaguarda para o Brando. Como sempre, eu ficava na melhor posição, ou seja, a lateral direita em que, segundo minha opinião, o macuco fora visto.

Entrei numa catana, retirei a mochila das costas, apliquei o repelente de insetos, afastei as folhas mais próximas e fiquei imóvel, correndo os olhos sofregamente por todo o entorno. Enquanto isso, o mano ia aplicando o que dizia ser o “primeiro macete”: Seis piados fortes e decrescentes em curtos espaços; após o último piado, já bem baixinho, ele sacava o “tio loló” e chororocava umas 20 vezes.

Mal terminou, a fêmea enciumada protestou. Mas, uma ocorrência inexplicável – semelhante àquela de dias anteriores em que espreitávamos macucos nos poleiros – fez com que abandonássemos as posições, deixando o macuco piando e bem perto de nós. E quando chegamos à picada, interrogamo-nos reciprocamente, qual a causa de havermos menosprezado aquela tentativa. Ninguém sabia responder, apenas afirmávamos ter ouvido assovios para nos retirarmos. Mas, quem teria feito aquilo? Como não desvendássemos o mistério, disse que, diante do barulho que havíamos feito, o melhor seria seguir para o terceiro valão e deixar aquele lugar para a tarde ou para o dia seguinte. Mais tarde, talvez, o Caipora estivesse de melhor humor.

Chegamos lá, 30 minutos depois. Desunimo-nos aí. Jayr e eu seguimos para um suposto macuco que havíamos localizado e Brando e Adalho seguiram caminho. Logo em frente paramos e ficamos a piar por algum tempo. Nada respondeu. Já demonstrávamos desânimo, quando vários chorões piaram ao mesmo tempo, do lado esquerdo do valão. Descemos e fomos escolher um lugar mais próximo a eles.

Fizemos uma respeitada choça e em seguida quietamos para depois piar. Jayr, que vigiava a lateral direita, piava chorão, tururim e uruba, ficando os macucos sob minha incumbência. Não tardou eu divisar por entre as folhas, um vulto róseo que
se locomovia velozmente. Enfiei a espingarda no buraco da choça, apontei e disparei. O vulto, ainda não identificado, tombou por sobre si, ficando imóvel. Nesse mesmo momento, o macuco respondeu, acompanhado de uma porção de chorões, já todos próximos e excitados. No entanto, ao invés de encostarem, calaram-se e tudo ficou em silêncio.

Sussurrei nos ouvidos do mano, sugerindo que devíamos sair dali e ele, num salto, saiu da choça, dando graças pela minha sugestão, pois as formigas de correição haviam se descontrolado e invadido nosso esconderijo. Poderíamos expulsá-las com um restinho de Baygon que restava, mas ficaríamos sem antídoto para o resto da caçada.

Já do lado de fora, argui-lhe a respeito do local em que o macuco havia respondido, mas, como eu, ele não tinha certeza sobre a direção. Assim mesmo, concluímos que teria sido em frente e, para lá nos dirigimos. Descemos pelo talude que levava ao valão e lá, construímos nova choça.

O macuco não mais respondeu e como consolação, ficou-nos um avultado bando de urubas, bem à nossa frente. Piei duas vezes e uma delas veio abandar-se. Recebeu seu susto e, desorientada, empoleirou. Como as outras se mostrassem recalcitrantes, nos aproximamos do valão em que elas se encontravam e, ali, piamos. Não se deixaram iludir e, então, resolvemos nos integrar ao bando, invadindo o quartel general delas. Espalhado o bando, começamos a “assoviá-las”. Veio uma e voltou assustada com o tiro que levou. Sucederam-na mais três, acompanhadas de cenas fotográficas. Era o “caipora”, não restava dúvidas. A quinta havia empoleirado devido ao tiroteio: desceu em semicírculo à nossa retaguarda. Aí a coisa foi diferente: dois tiros ecoaram ao mesmo tempo e ela foi abatida. Não éramos caçadores de macucos, mas simplesmente meninos inexperientes que gostavam de atirar.

E foi assim que, em seguida encontramos outro bando de urus dentro de um estreito valão e, sem qualquer respeito, afastei o Jayr de minha frente e abri fogo no bando. Ato contínuo entramos no meio delas.

Era tiro para todos os lados, urubas esvoaçando, correndo sem paradeiro. Havíamos transformado aquelas junturas de divisas, em pleno campo de batalha. Como elas se dispersassem nas mais diferentes direções, dispus-me a perseguir algumas que debandaram à direita.

Perseguindo-as, consegui disparar mais tiros, apenas para me satisfazer, pois, realmente, era desvantajosa minha posição. Como o Jayr também não cessava de atirar, fui a ele quase correndo e, nessa díade, prolongamos o tiroteio por mais alguns minutos. Tudo serenado fomos averiguar o estrago. No lugar do primeiro tiro: apenas folhas secas perfuradas de chumbo; em alhures averiguamos o lugar em que havíamos alvejado algumas mais: encontramos uma com apenas um caroço de chumbo na cabeça.

Entreolhamo-nos entre sorrisos frustrados. O Jayr consultou o relógio e relembrou-me de que já havia passado a hora de matarmos a fome. Mas, quando levei a mão ao lado, constatei que havia perdido a marmita, ou melhor, a havia esquecido na última choça. Não poderia ter acontecido nada mais hilariante! Depois de nos gozarmos mutuamente, sem outra solução, retornamos à marmita. Deixamos sinais convencionais na picada para que o Brando e o Adalho soubessem que havíamos retornado. Refeito o percurso, encaminhei-me para a árvore e lá estava dormitando a merenda que parecia ter saído de um congelador. Apanhei-a, fui ao Jayr e comemos com grande apetite.

Já eram quase 14 horas e estávamos quase sem munição e com apenas duas urubas no picuá: nada podia ser mais humilhante. Resolvemos voltar, não sem antes perder umas duas horas piando o macuco que, sabíamos, vivia ali. Depois de uma hora de insistência, desistimos e pegamos a picada do barracão. A distância era grande, mas o tempo era mais que suficiente para desfazermos o caminho e, assim, vínhamos, alegres, resenhando nossas vãs tentativas. Chegamos ainda com o sol alto e, no barraco, encontramos quase todo o grupo. Os retardatários, Adalho e Brando também chegaram e com aparência desalentadora. Estando todos reunidos, apanhei o caderno de anotações e adicionei mais 23 peças. Constatei, então, que os últimos três dias haviam sido maravilhosos, pois tínhamos abatido 69 aves. O dia seguinte seria o penúltimo e, por isso, resolvemos aproveitar todos os segundos, até mesmo da noite.

Na barraca reinava o vozerio ensurdecedor. Todos falavam ao mesmo tempo, animados pelo “garrafão de vinho”; uns se davam a entraves emocionantes no canastrão; outros se conglomeravam e discutiam qualquer assunto e, finalmente, outros procuravam, em algures, casas de cupins para fumegar a barraca que, à noite receberia a infalível invasão de milhares de mosquitos. Eu era o único frustrado por perceber que tinha tudo para voltar com o “dedo atolado”, carregando o estigma de “caçador-marca-cu”. A noite estava muito bonita, com a Lua transferindo a luz do sol com maestria e delicadeza. O dia amanheceu como tantos outros: neblina densa e volumosa. De minha cabeça, não saía o sonho de abater um macuco, mas minha única esperança, o Adalho, não parecia preocupado. Não fez questão de minha companhia, nem de se dedicar aos macucos. Perseguia qualquer inhambu que piasse, não se importando com o tamanho. No último dia, inclusive, em que eu sonhei com sua companhia, ele decidiu caçar pacas com os cachorros que levara, em torno da abertura em que morava o Domiciano Scarpat, o que resultou na morte do Biriba. O inocente cachorro, totalmente inexperiente em caçadas daquele nível, encontrou e resolveu enfrentar uma canguçu.

Nessa caçada, matamos uma paca e um mutum que espantado pelos cachorros achou de pousar perto do Arlindo. Lastimando a perda do Biriba, retornamos ao barraco. Devíamos almoçar mais cedo, arrumar nossa bagagem e todo o mais que levamos; dormir mais cedo para, no dia seguinte, retornarmos à Marilândia.

Dr. Joel e Hido chegaram um pouco atrasados e com um macuco pendurado na cintura. Segundo eles, aquele era um macuco ruim da cabeça, porque veio correndo para cima deles, levou um tiro, voou uns 20 metros, piou e retornou correndo novamente. Aí o tiro pegou.

Segundo o Adalho, era um macho que estava com filhotes recém-nascidos e tentava protegê-los, como fazem as chocas quando alguém ameaça seus pintinhos. Somente eu era exceção, mostrando-me abatido. Na verdade, se a suposição do Adalho foi correta, preferia ficar com o “dedo atolado” a matar um estremoso “pai de família”. Preferiria, inclusive, ter ficado em casa.

Quando chegamos ao carro – o que era óbvio e costumeiro, aconteceu – ele não pegou. Passamos mais de uma hora empurrando-o de um lado para o outro e ele só veio a pegar quando o empurramos sobre uma elevação e depois o deixamos disparar morro abaixo. Aí, com a graça de Deus, ele pegou. Mas, estava longe de ter resolvido o problema. Agora, ele não conseguia subir a rampa, o que nos custou horas de trabalho e meio tanque de gasolina.

Enfim, iniciamos nosso retorno, almoçando em Linhares e depois passando na casa do gerente da Fazenda Lindenberg para saber sobre o Rondante. Ele estava lá e o apanhamos e levamos para casa, gratificando bem o gerente. Enfim, chegamos, sãos e salvos às nossas casas. Ainda abraçava meus familiares quando ouvi vozes que se despediam e o barulho do carro que saía: até o próximo ano, amigos!

ENFIM, MEU PRIMEIRO MACUCO!

Nas férias de julho de 1960, então com 21 anos, fui à minha segunda caçada. Estávamos em 12 caçadores: Adalho Fregona, Arlindo Falqueto, João Cassiano, Afonso Cassiano, Hildebrando Fregona, Vicente Falqueto, Albertino Cordeiro (cozinheiro), Jayr Fregona, Valter Cabral (auxiliar do cozinheiro), Bibi da Fonseca, Livaldo Fregona e Joaquim Bona. Fomos em dois carros: um do João Cassiano e outro do Joaquim Bona. A caçada nada teria de anormal, não fosse a notícia de que um empregado do João Cassiano havia lhe roubado e fugido. O Cassiano, então, limitou-se a avisar que estava indo embora e que não retornaria para nos buscar. Muito chateados, buscamos a solução enviando o Vicente para ir e retornar com outro carro alugado, no dia exato em que voltaríamos. Assim foi feito e este impasse, resolvido, ainda que às custas do pobre Vicente.

Como na primeira caçada eu não havia abatido macuco, o Adalho disse que, nesta eu tiraria o dedo, nem que ele tivesse de amarrar o macuco e arrastá-lo a meus pés.
Talvez tenha sido nesse momento que a humilhação da primeira caçada começou a desaparecer. Cheio de entusiasmo, ainda à noite, arrumei minha tralha, tendo todo o cuidado de não esquecer nada. Quando o dia amanheceu, o mano disse: hoje, (pode marcar no calendário) será o dia em que você entrará para a irmandade dos caçadores. Guarde seus pios e vamos achar o felizardo que jamais será esquecido. Cada palavra dele eu ficava excitado, porque sabia que ele era, no mundo, a pessoa mais indicada para cumprir aquela promessa.

Ele postou-se na frente, quebrando um galhinho aqui, outro acolá, examinando a mata, as folhas e, quando em vez, utilizando seu pio localizador. Eu prestava atenção em cada gesto que ele fazia, porque o tinha como o melhor caçador do mundo. E caminhando mata adentro, fomos indo. De repente ele parou, correu os olhos em volta e decretou: aqui tem macuco. E mesmo sem nenhum haver respondido, ele falou: está vendo aquele murundu ali na frente? Vai lá, ajeite-se o melhor possível, use repelente, não atire senão no macuco.

Fique atento até mesmo se ele não piar. Eu vou subir em cima desta galhada cheia de cipós e ficarei piando. Daqui verei você, portanto, não quero vê-lo se mexendo. Notando qualquer barulho, gire a cabeça bem devagarzinho e só movimente a espingarda se tiver certeza de que, de fato, é o macuco. Mesmo assim, erga a espingarda devagar, porque gesto brusco espanta as caças.

Dez minutos depois, ele deu o primeiro piado, o segundo, o terceiro, o quarto e, finalmente o quinto, como sempre fazia, decrescentes e em pequenos intervalos. Em seguida, a chororocadeira que chamávamos de “tio loló”, entrou em ação. Foram umas dez chororocadas quase inaudíveis e, depois, silêncio absoluto. Eu permanecia imóvel, girando apenas os olhos. Nisto, um chorão piou a 10 metros. Foi um dos piados mais lindos que já ouvi na vida. Veio passando, praticamente circundou meu murundu e continuou por ali. Eu que já não me mexia, agora parecia petrificado. Apenas os olhos giravam.

Então, ouvi, para meu desespero, um piadinho de macuco em cima de mim. Não sabia se estava na frente, atrás, à direita ou à esquerda. Seguindo a orientação, permaneci imóvel, mas as pernas já não me obedeciam: começaram a tremer a ponto de balouçarem alguns ramos nelas encostados. E, para minha felicidade, vi o macuco que vinha despreocupado, exatamente na direção do murundu em que eu estava em cima. Lembrando os conselhos do mano, fiquei de olho nele, mas não me mexi.

Esperei que ele encobrisse por detrás de uma pequena moita e, então, tomei a espingarda, armei o cão e apontei para o lugar. Como não poderia ser de outra maneira, o danado ficou ali quieto, atento, para mim, meia hora, mas na realidade, talvez dois minutos. Aí, o mano emitiu um chamado baixinho e ele ergueu a cabeça, dando um passo à frente. Firmei a pontaria, conferi e apertei o gatilho. Ele apenas se deitou, nem sequer se bateu. Aí já era demais. Troquei o cartucho e acorri.

Ao chegar nele, percebi que estava com a cabeça erguida e não hesitei: outro tiro. A cabeça e uma das asas desapareceram. Tomei-o nas mãos e saí gritando pela mata em direção ao Adalho: eu matei, eu matei o macuco! Eu matei, eu matei! Agora já posso ser chamado de caçador!

A alegria e a emoção eram tantas, que passei por baixo do poleiro do mano e nem percebi que ele me chamava, dizendo para que eu me acalmasse, porque por ali havia muita caça ainda. Só quando ele assoviou forte é que dei fé que ele já havia ficado para trás. Retornei e mostrei a ele o macuco. Ele me olhou emocionado e simplesmente disse: meu irmão, esta é apenas a primeira emoção de sua vida de caçador, mas você terá muitas outras maiores em sua vida.

Desceu do poleiro, tomou-me pelo braço e como o melhor irmão do mundo, disse: voltemos ao barraco, precisamos comemorar. Você ainda vai ser o melhor caçador do Espírito Santo.

Eu não respondia, porque estava com olhos cheios de lágrimas e a voz embargada.

O pecado e a maldade só existem no coração da pessoa que tem pleno conhecimento de que o ato que está praticando é mau. E, sinceramente, naquele tempo, eu não fazia a mínima ideia da crueldade que estava cometendo.

Por isso eu sonhava, lutava, e até rezava para que Deus me ajudasse a realizar meus intentos. Meu primeiro macuco foi uma das maiores alegrias que tive na vida, acredite.

Naquele tempo, se as caçadas não existissem em minha vida, sinceramente, ela não teria graça.

MINHA TERCEIRA CAÇADA: outubro de 1960.

Componentes: Hido Canal, Luiz Fregona, Arlindo Falqueto, Adalho Fregona, Luizinho Pratti, Dr. Joel Coelho, Agostinho Falqueto, Dolmino Fregona, Hildebrando Fregona e Livaldo Fregona. Condução: carro do Agostinho Falqueto. Chefe da caçada: Adalho Fregona. Cozinheiro: Valter Cabral.

Antes de partirmos, um mundo de alacridade parecia envolver-nos e isto, mesmo antes de ser dada a saída, o que perdurou durante toda a viagem. Porém, a cada quilômetro que o carro vencia e a mata de nós se aproximava, um nítido fluxo de frustração parecia contrastar com nosso contentamento. A terra ressequida de duas horas antes, começara a tingir-se de um glauco relentado, consequência de chuvas. E todos sabem: chuvas em caçadas é como areia dentro de um motor: não o deixa funcionar; torna insípido o mais apetitoso salgadinho. Mas, enfim, não podíamos mais retroceder, o que seria ainda mais dispendioso e frustrante.
Em Linhares chovia, intumescia nossas roupas, enquanto o céu em reboliço esmerava-se em ameaças. As chuvas, no município de Linhares, podiam ser consideradas as maiores protetoras das caças e as maiores inimigas dos caçadores. Que eu me lembre, uma única vez em décadas, caçamos por lá sem que chovesse e, é claro, o resultado foi catastrófico para os animais.

Voltando à chuva, estendemos o encerado e, apesar da escuridão que se gloriava da luz espavorida, podia-se concluir, pelo silêncio, o acontecimento frustrante que se aninhava em nossas cabeças. Deixamos a Rio-Bahia e, por meio de um picadão de carreteiros, fomos nos arrastando pelo matagal até a um ponto a duas horas de distância. Apenas os assovios estridentes e desrespeitosos dos “tropeiros” eram distinguidos permeio àquele embalo triste e melancólico das chuvas que caíam impiedosamente. Enfim, eis uma escarpa miúda: a casa tão nossa conhecida. Notei-a pela abertura do encerado.

Um grito asfixiado morreu em minha garganta, enquanto, lá longe, ao se perder de vista, um prolixo tapete esverdeado, protegido por um lençol esbranquiçado, recamava a região que iríamos caçar. Todo o entusiasmo ia imergindo paulatinamente, como se estivéssemos numa ilha sob o efeito de um tsunami.

Eu não conseguia organizar qualquer pensamento otimista, a fim de, mais tarde, escrever com alegria, nossa chegada à mais uma caçada. “A areia estava no motor; o salgadinho insípido; os confeitos, sem açúcar, enfim, a caçada, estragada”. E não adiantava apelar para a imaginação: aquele verde estampado, tão bonito num dia de sol brilhante, agora me era um suplício do qual não conseguia me livrar. A gente sonhou tanto com aqueles dias!
Espingardas, munições, alimentos, utensílios, cobertores etc. eram as cargas mais pesadas que levávamos às costas, mata adentro. De quando em vez, um chorão que cortava a picada, um macuco que piava ao longe, um tururim que choramingava num valão de caetés…

Recurvados sob as cargas molhadas, íamos passo a passo, lamentando a má sorte e abafando as lamúrias que escapavam de cada componente. Enfim, chegamos ao tugúrio. No sótão, ainda as varas, os taipas e cipós que tanto nos serviram em data anterior. As velhas espigas de milho roídas pelos ratos, o fogão improvisado, afinal, de julho a outubro, pouca coisa se modificou. Fizemos a limpeza, arrumamos quanto pudemos. O problema não estava no barraco, mas na certeza de que aquela seria a caçada mais frustrante de minha vida.

O caçador deve compreender – antes da teoria de prever as aventuras emocionantes – a possibilidade de imprevistos que pode pôr tudo a perder. Enfim, embora a chuva continuasse como nos tempos da arca de Noé, as coisas estavam molhadas, mas, arrumadinhas, e a comida no fogão. Jantamos, acendemos lamparinas, vestimos a própria roupa de caçada da manhã seguinte, porque ainda estavam secas e já continuariam no corpo logo que levantássemos para sair para o mato.

De um jeito ou de outro, a noite passou, o dia amanheceu e lá fomos nós, mata molhada adentro, tempo enfarruscado, nuvens negras, sem o mínimo sinal de mudança. Em suma, foram cinco dias de extremo sofrimento, sem sequer, o aparecimento de meia hora de sol. E o retorno ainda seria pior, porque, para variar, o carro, como sempre, não pegou e só Deus para aquilatar a ginástica que fizemos para retornar. E, é claro, o resultado da caçada não podia ser diferente: um desastre. Nossa sorte é que poucas florestas no Brasil possuíam mais inhambus que as matas de Linhares. Assim, mesmo chovendo dia e noite, conseguimos as proteínas necessárias.

QUARTA CAÇADA
Resumo ou pequenas lembranças de minha quarta caçada: fazenda do Dr. Alberico, de Vitória. Data: 9 de julho de 1961.

Componentes: Adalho, Brando, Jayr, Livaldo, Antônio e Dolmino Fregona, Arlindo, Gil e Vicente Falqueto, Ricieri Gomes, Hido Canal, Agostinho Camata, Luís Prati, Alberto Cordeiro (cozinheiro), Almir Cabral (auxiliar do Cordeiro), Guerino Bravim, Zaudino Scarpat, João Gaburro e Severino Caliman. Condução: carro Ford do Gil Falqueto; camioneta do Severino Caliman e camioneta do Zaudino Scarpat. Chefe da caçada: Adalho Fregona.

Nessa caçada com tanta gente, somente a presença do Guerino Bravim, o inesquecível Guói Dio, para salvar a excursão. Passava o dia inventando coisas e, mal penetrava no barraco, a gente se acercava dele para ouvir suas histórias.
Nesse dia, porém, ele chegou mancando, porque caíra do poleiro na hora de se virar para atirar nas urubas. No dia seguinte, o flagramos saindo do barraco com a cela do animal do gerente daquelas terras, às costas. E é claro, como ele esperasse, demos lá nossa força:

– Que diabos irá fazer, Guói Dio?

– Estou me prevenindo, porque aquele cipó negaceia demais e preciso amansá-lo.

Dito isto, retornou, pendurou a cela e deitou-se na rede.
No quarto dia, o previsto se confirmou: choveu. Era impossível caçar naquela região sem a visita de temporais. Mas a caçada seguia animada e produtiva. Com a exceção do Ricieri Gomes – eterno insatisfeito e reclamão – os demais estavam muito alegres. Com o Dr. Joel e o Hido aconteceu algo digno de menção.

Dentro de uma choça, depois de muito piarem, eis que apareceu uma ave grande, pulando com uma perna só. Foi abatida e, no exame cadavérico, descobriu-se que lhe faltava uma das pernas e tinha apenas um olho bom: era resquício da caçada anterior. E aí, é claro, a intervenção do Guói foi inevitável: acho bom refazermos os estatutos das caçadas, acrescendo um artigo assegurando aos inválidos, pleno trânsito e o direito de ir e vir.

– E aos caçadores “marca-cu”, a não observância desse artigo, defendeu-se o Dr. Joel.

No quinto dia, a chuva caía insistentemente. Relâmpagos contínuos, a mata molhada, as rampas escorregadias, as botinas cheirando mal, as armas enferrujadas, os cartuchos de papelão não entrando mais nas câmeras do cano, os pios engasgando e o bando de loucos insistindo.

Assim chegamos ao último dia e os reveses foram tantos que, se dependesse da maioria, não retornaríamos tão cedo. Para mim, para variar, a caçada estava ótima e cheia de surpresas. Foi morta uma uruba com uma grande bicheira; o Cordeiro, ao limpar um caça, percebeu uma jararaca agarrada em seu sapatão; Dolmino e eu alvejamos e abatemos, ao mesmo tempo, um macuco que ousou atravessar, a 30 metros de nós, o picadão; foi encontrado um pedaço de paca comido por uma onça; foram abatidos, num só dia, 6 macucos, sendo que outros 5 foram alvejados, mas escaparam; Luisinho, com sua famosa 20, erra um macuco a três metros de distância; Brando erra um mateiro e passa horas andando pela mata, com o cão do cano esquerdo engatilhado; Adalho, que era acostumado a chamar e deixar ir embora muitos pássaros, desta feita exagerou: encontrou um macuco no poleiro e, ao invés de abatê-lo, afastou-se um pouco, fez uma choça e esperou o dia clarear. Assim, ele mantinha a consciência tranquila e realmente curtia as férias.

Chamou-o e ficou apenas admirando a bela ave. E aqui abro um parêntese, para enaltecer o mano: ele não demonstrava interesse em matar as aves. Ou piava para os outros ou, às vezes, a chamava, admirava e deixava ir embora.

E assim encerrávamos mais uma caçada. O tempo continuava com chuvas intermitentes, mas, mesmo assim, tomamos o caminho de volta. O resultado fora sensacional. Todos estavam bem, excetuando-se o Ricieri, que sempre fora pessimista e muito reclamão. Vamos ao resultado:

Minha quinta caçada. Linhares, casa do Angelin Orlandi

Angelin Orlandi nos levava a capões de matas no entorno da cidade de Linhares e, no horário marcado, ia nos apanhar. Em sua casa chegamos no dia 18 de maio de 1962. Adalho exercia sua profissão de dentista prático, tratando dentes na casa do Angelim, enquanto Jadilson, Jayr, eu e, (o Adalho aos sábados e domingos), passávamos o dia em algum talhão de matas, ainda sem derrubar. Ficamos lá seis dias. Estas anotações são mais para esclarecer como eram vistos os caçadores e as caças nesse tempo. Entrávamos e saíamos da cidade, com as espingardas e os bichos abatidos nas mãos e apenas recebíamos a admiração do povo e das autoridades, inclusive ambientais. Resultado desse passeio/caçada:

MINHA SEXTA CAÇADA:

Sexta-caçada. Oito de julho de 1962. Quatro horas. Marilândia estava enlaçada por um frio cortante, aumentado pelo vento constante que cortava a vila em todas as direções. Um motor silencioso encostou, já com parte dos componentes. O restante seríamos nós – os últimos a serem apanhados. Certo é que poucas noites em nossas vidas de estudantes/caçadores, eram mais esperadas, estivessem elas chovendo, geladas ou não. Condução: camioneta do João Gaburro. Motorista: Tuim Gaburro. Cozinheiro: Ângelo Fregona. Duração: 12 dias. Componentes: Adalho, Brando, Jayr, Livaldo, Antônio e Luís Fregona, João e Tuim Gaburro, Eleotério Lorenzoni, José Gerlim, Orades e Angelim Orlandi. Semifixos: Gerlim e Eleotério (seis dias); Angelim Orlandi e seu sogro Orades: três dias. Local: parada no Paulo Gava e fixação nas terras dos Erlakers, vigiada pelo Domiciano Scarpat.
De agora em diante apenas anotarei alguns fatos inusitados dos tantos cadernos em que relatei as caçadas, porque se transferisse tudo o que escrevi neles – naquele tempo como exercício em busca do sonho de um dia escrever livros – daria vários compêndios com mais de 500 páginas. Sei que estou de partida, mas deixarei os velhos cadernos bem protegidos para que durem mais uns 50 anos. A partir daí, com certeza serão jogados fora, porque não há nada neste mundo que, como matéria não se transforme e como saudade não se esqueça.

Acontecimentos mencionáveis:

Nessa caçada, logo nos chamou a atenção, a percepção do Tuim Gaburro, um rapaz sagaz, sempre atento, esperto, mas, ruim de tiro como poucos que conheci: perdeu mais de 60 disparos. Dificilmente – depois de ele ter visto a caça – ela escapava sem levar um tiro, ou melhor, um susto. Até cotias ele conseguia abater, perseguindo-as mata adentro. Era, podíamos dizer, um bicho inteligente.

Um de seus primeiros investimentos no primeiro dia de caçada foi sair com uma foice às costas, a fim de abrir uma picada atravessando o pântano que divisava terras particulares da Reserva Federal. Lá ele andaria, praticamente, todos os dias da caçada. Era seu costume fazer uma picada bem larga e em linha reta, a fim de caçar também à noite e não correr o risco de se perder.

Logo na primeira investida, apareceu-nos com um lindo macaco da noite, que poucos conheciam. De fato, é um lindo animal, de carne saborosa e macia.

O primeiro dia foi de muita emoção: de alegrias para uns e frustração para outros. Trinta peças abatidas, entre elas, 2 macucos. Só um caçador para explicar essas vicissitudes. Em caçada, vale muito o ditado: “um dia da caça, outro do caçador”. No segundo dia – para variar – começou a chover. Como sempre, o Jayr, que já estudava Medicina no Rio de Janeiro, mas não perdia uma caçada de julho, goelou seu jargão de protesto: “Aí Linhares!” …. Quem se arriscou entrar na mata, em menos de três horas já estava de volta, batendo o queixo de frio.

Brando e eu fomos à margem de um “nativo” (área de capim, tipo lagoa que secou) e resolvemos escalar dois poleiros. O que escolhi media uns 15 metros de altura. Tinha a copa cheia de galhos, mas nada para auxiliar a escalada. Escolhi os pios, coloquei-os nos bolsos, amarrei um longo cipó na espingarda, atando-o também à minha cintura, consultei o cantil se estava bem preso à correia e, depois, confiando em meus 20 anos sem qualquer problema de saúde, comecei a escalada. Até aos 10 metros fui bem, mas nesse ponto, o cansaço mostrou as unhas.

Fiquei atracado à haste e respirando fundo. Quando alguma força me chegava, subia mais um ou dois lances, mas, um metro antes de alcançar um galho que seria meu descanso real, a vista enturveceu e senti que iria desmaiar. Como sempre em horas extremas, apelei para que Nossa Senhora interviesse porque eu iria cair. Como descer seria pior do que dar mais um arranco, optei pelo segundo e, com a ajuda de Nossa Senhora, alcancei o galho. Segurei com a mão, descansei um pouquinho e arranquei com coragem. Consegui alcançar o lugar confortável que almejava. Lá em cima, sentado como numa cadeira, com visão ampla de mais de 30 metros em volta, respirei fundo, tomei bons goles de água, rezei algumas ave-marias em agradecimento ao socorro que me foi prestado, apanhei o pio de macuco do bolso e piei. Nisto o Brando atira de lá do poleiro em que se encontrava. Concomitantemente, vi um macuco que corria para o meu lado, ao alcance de minha visão. Não pestanejei: atirei, ferindo-o de morte. Como disse o mano ao apanhá-lo, olhando para o lugar em que me encontrava: “bela cagada”!

Já ao anoitecer, todos foram para o picadão. Combinados, íamos a passos lentos, mantendo relativa distância, quando quase caí de susto: um macuco voou para o poleiro a 10 metros de mim. Era meu dia. Esperei os demais que também confirmaram: você é mesmo um cagão. Eleotério que ia bem à frente do grupo, resolveu nos passar um susto: escondeu-se e, quando chegamos, ele imitou um bicho pulando de um toco à nossa esquerda e saiu de quatro, bufando pela mata: seis espingardas apontaram para o mesmo lugar, mas um grito providencial salvou a vida do irresponsável Eleotério, que queria nos passar um trote. Quando voltou ao picadão, foi duramente repreendido por nós, porque, apenas por milagre eu não detonei, já que ainda não havia aprendido que só se atira no que se vê.

Foi no nono dia que aconteceu uma ocorrência extraordinária. Sete caçadores seguiam em fila indiana, rumo ao picadão. Tuim ia na frente e, na parte final, eu, tendo o Adalho como o próximo. Eis que o Tuim para de chofre e faz menção de atirar. Não desmerecendo a alcunha de Pim Scarpat (aquele que atirava até em folha que caía), lá detrás percebi alguma coisa correndo. Quase esfregando o cano na orelha do Adalho, disparei os dois tiros e gritei: corre Tuim, o chorão está ferido e pode voar. O Tuim, depois de tremenda gargalhada, pilheriou: este seu chorão nunca voou e jamais irá voar, porque é um veado mateiro. Enquanto isso, o Adalho, com a mão no ouvido, sentenciou: enquanto estivermos em fila, retire os cartuchos. Envergonhado, disse a ele que aquilo não iria se repetir. Mas, o pior ainda estava para acontecer. A caçada do dia fora fraca, o dia chuvoso e retornamos cedo para o barraco. Tomamos banho, boas goladas de vinho, enchemos os pratos e cada um escolheu o lugar para jantar sossegado.

Sentei-me sobre um toco na porta do barraco e comecei a comer. Inadvertidamente, o mano Adalho apanhou a espingarda, encostou o cano em meu ouvido esquerdo e puxou o dedo. Quase vomitei, perdi a fome e nunca mais fiquei curado da zoeira em meu ouvido esquerdo. Ao ser advertido pelo mano Jayr, que estudava Medicina no Rio de Janeiro, que aquilo podia ocasionar danos irreparáveis ao tímpano, o mano, que já estava com o dele estragado por causa do meu tiro lá no picadão, foi enfático:

– É para ele lembrar sempre, até à morte, que não se atira perto do ouvido de quem quer que seja, principalmente quando não sabe se o bicho que correu era um chorão ou um veado.

– Mas, vai servir para nós dois, não é mesmo?

No penúltimo dia, João, Tuim, Brando, Jayr e eu acompanhamos o Adalho, na ideia de pernoitar fora do barraco. Fomos bem longe, a mais de quatro horas de distância. Matamos muita coisa, mas quando chegamos à barraca improvisada, percebemos que os únicos líquidos que tínhamos, era os das bexigas, meio litro de aguardente e meia garrafa de água. Não havia outra saída. Adalho destrinchou as 11 peças, separou a carne mais limpa, jogou pra longe as fissuras do veado e toda parte muito ferida das aves. Aí entramos em ação: quem estava com bexiga cheia, mijou nas mãos dele. Depois ele esfregou, quanto pode, as mãos em folhas frescas de palmeira; aí, mijamos nós que estávamos com meia carga na bexiga; por fim, jogamos a meia garrafa de pinga, com ele esfregando bastante e, finalmente, um pouquinho da água que ainda tínhamos. E foi assim que, aquele deserto deixou de existir, com o surgimento de um pequeno oásis.

A noite descia bela e com o céu cheio de estrelas. As aves noturnas olhavam espantadas para as labaredas ateadas nas folhas secas dos imburis, milagrosamente encontradas, enquanto grilos seresteiros rodeavam a pequena lareira, cantando seus sentimentos amorosos. Quanta poesia havia por detrás de nossa falta de visibilidade noturna! Não há quem não ame aquele mundo, passando alguns dias dentro dele! Existem tantas árvores, tantas folhas, tantas estrelas, frutas, flores, animais, lagoas, riachos, ninhos, pássaros e mistérios, que nenhum ser humano pode compreender como, permeio a tantos seres, possa se viver infeliz.

Não há calúnias, palavras feias; não sentimos desprezo, nem vergonha, nem inibição. Perdemos todo o orgulho, porque tudo é simples e natural. Não vemos destroços humanos, desacato à pureza e não sentimos solidão, apesar de estarmos bem longe da humanidade. E não há lábios femininos que nos delicie mais do que um beijo nas cinzentas penas de um galináceo. Ali, a gente sente toda plenitude divina. Tornamo-nos intrépidos, batalhadores e incansáveis. Lembramos de Deus raramente, mas, nem um segundo é separado para o mal. Pela manhã, então, é que Deus se fraciona sobre os matagais, tornando-se ainda mais imanente. Deixa em cada plumagem, em cada gorjeio, o toque de sua perfeição. Não há nada que se compare à beleza deslumbrante de uma sairinha sete cores, de asas abertas nos primeiros raios do sol!

Procurem ver os bandos de maracanãs, periquitos, tucanos e orquestradores alados a cruzarem os ares em animado bate-papo. Se Deus é onipresente, esta presença é mais acentuada nas matas.

Quando recostamos a cabeça nas folhas das palmeiras, pareceu-nos sentir, nos ouvidos, um sussurro paradisíaco. E, então, compreendemos toda nossa ansiedade de viver em plenitude, todos nossos dias de férias, junto à Natureza. Aos animais que, por necessidade, transformamos em vítimas, pedimos perdão. Às vezes, eu mesmo não compreendo como, amando tanto a Natureza, eu a atacava.

Em nosso último dia de caçada, aconteceu a maior de minhas alegrias: meu velho pai conseguiu matar um macuco, ou seja, “tirar o dedo” no apagar das luzes. Ele estava feliz e, nós, seus filhos, muito mais. E aquela felicidade geral tinha toda razão de ser, porque aquela foi a última vez que papai foi a uma caçada.

E a minha felicidade também não podia ser maior, porque nela se cumpriu a profecia do Adalho que, ao piar o primeiro macuco que matei, diante de minhas lágrimas, predisse que eu seria seu sucessor, tornando-me o melhor caçador do Espírito Santo. Ainda não o era, mas estava muito bem encaminhado. Nessa caçada eu já me tornara campeão pela primeira vez.

Uma fugidinha:
Nunca acreditarei se me disserem que houve, no mundo, ou haverá, alguém mais dependente de caçadas do que eu e o mano Adalho! Minha vida era assim: um constante manuseio do calendário em busca de três ou quatro dias de folga para logo contatar o mano e estudar a possibilidade de uma fugidinha. E foi assim que, aproveitando os festejos do Dia da Independência, suprimindo o sábado de aula e deixando um substituto para a segunda-feira, convenci o Adalho a fugir para Linhares. Destino: Reserva Federal. Ponto de apoio: casa do amigo Paulo Gava. O tempo estava como sempre: chuvoso.

Tomando o ônibus no dia 6 de setembro de 1962, numa quinta-feira, chegaram à BR que corta a Reserva Federal, dois bem-vestidos viajantes. Usavam sapatos com meias de nylon, calças de casimira, camisas de linho e duas grandes mochilas às costas, e mais duas pastas de vendedores ambulantes.
Caminhando pela BR, falando alto sobre cultura, os dois “ilustres viajantes” tinham outros planos na cabeça. Era madrugada, noite ainda, quando a viatura dos agentes florestais passou em ronda, diminuindo a marcha, e cumprimentando os dois vendedores ambulantes que, tão cedo seguiam para o trabalho para poder criar os filhos. Que Deus os perdoasse!

Na verdade, não acredito que os agentes fossem tão inocentes: o certo é que eles não estavam nem aí para os malucos caçadores que, em plena madrugada chuvosa, arriscavam-se aos perigos da floresta. E foi assim que, tão logo a viatura passou pelo valão do igarapé Quirino e desapareceu na chapada adiante, os dois “ilustres viajantes” adentraram na mata “para vender seus produtos”.

Em minhas andanças pelo Brasil para caçar, só encontrei no rio Septuba, no Mato Grosso, quantidade de inhambus semelhante aos das florestas de Linhares, no Espírito Santo. Ainda estávamos dobrando nossas roupas de disfarce, e já macucos, jaós (é, jaós existiam muitos nesse tempo), urubas, chorões, tururins, em pleno amanhecer chuvoso, piavam por todos os recantos. Imagine o leitor o que tudo aquilo significava para mim de quem o mano Hildebrando sempre falava: se ao invés de caçada, o Livaldo pendesse para as drogas, nenhum traficante conhecido internacionalmente, seria maior que ele.

No primeiro dia abatemos tanta caça que já não sabíamos como carregar – por mais de dois quilômetros da BR – todo aquele peso às costas, sem contar que, agora, os agentes florestais, se passassem, nos flagrariam. Então, fomos para perto da estrada, limpamos tudo, retiramos só a carne, dividimos o peso, jogamo-lo às costas e retornamos à casa do Paulo Gava. No outro dia, os viajantes já estavam a serviço outra vez. Nesse dia, quando já estávamos com o macuco a poucos metros, eis que começamos, apesar da chuva, a ouvir “taquaruçus espocando na coivara”.

– Droga, disse o Adalho! Temos de nos prevenir, a porcada está aqui em volta da gente.

Nem acabou de falar, o macuco voou e a turminha chegou. Eu estava próximo a uma pequena árvore e me foi fácil subir. O mano, porém, só conseguiu um araçá do mato, liso por natureza, principalmente para quem quisesse escalá-lo estando de chuteiras. Não teve opção: subiu deixando riscos que qualquer canguçu assinaria em baixo. E a pressa foi tanta que nossas armas ficaram no chão. A porcada bateu os dentes, xingou, riu e foi embora. Nesse dia, nada conseguimos, a não ser 6 urubas e 2 chorões.

Mas, o pior estava por vir: quando já estávamos prontos para pular na estrada, eis que vimos, na orla, os guardas florestais. Era o fim, o cartão vermelho, o desemprego por justa causa! Como não saíssem, apelamos para o papo furado.

Nada seria pior do que aquele dia infrutífero e o estado em que nos encontrávamos: todos molhados, com fome…, doidos para tomarmos banho, jantar e dormir. Então, deixamos as armas, as aves abatidas, nossa roupa de caçada, traçarmos a estratégia de defesa, pedimos a intervenção de nossa Mãe do Céu e partimos para o confronto direto.

Mas, o imprevisível aconteceu. Passamos por eles e não disseram nada, nem nos cumprimentaram, exatamente porque não eram guardas, apenas três tocos camuflados pela chuva e pela penumbra da noite. Ufa! …

Transcrevendo nosso último dia dessa incursão. Oito de setembro de 1962, sábado:

Não sei mesmo se é preciso dizer que o terceiro dia fora também de chuva. Seria de citar se, no céu houvesse sol brilhante envolto num anil sem nuvens! Duas horas e trinta minutos. Partimos, os dois ilustres brasileiros – batalhadores responsáveis pela criação dos filhos. Que Deus os perdoe!

Em frente à guarita dos agentes florestais, vimos um carro com os faróis acesos. Desta vez não escaparemos: pensei comigo mesmo. Como já tínhamos decorado nossa estratégia, elevamos a voz e começamos:

– Não está sendo fácil vender bugigangas nestas casas à beira da estrada, andando a pé e em dia de chuva.

– Eu que o diga! Passar o dia molhado para mal faturarmos o pão das crianças, de fato é profissão pra doidos.

– Você soube que os últimos satélites artificiais nos trouxeram um novo conceito para o nosso planeta?

– Não, não sabia. Ando meio por fora dessas descobertas.

– Segundo operações efetuadas pelo observatório astrofísico, a Terra não é tão redonda e achatada nos polos. O formato é de uma pera, mais ou menos.

– Como conseguiram provar isso?

– Com as observações fotográficas do Vanguard I e II. A gente só fica sabendo pelos noticiários.
E mal passamos pelo carro de farol aceso, confidenciamos:

– Caramba, pensei mesmo que fossem os guardas. Confesso que devo até ter dito que a Terra tem a forma de um estilete, seguro por cabos de aço presos à mente dos físicos.

– Não acho que tenha dito tantas asneiras. O certo é que, pelo menos, você conseguiu aliviar a tensão. Já estava me vendo na porta da delegacia de Linhares!

Vinte minutos depois, entramos na mata. Desta feita não iríamos mais caçar no flanco esquerdo da estrada, ou seja, no valão da canguçu. Entramos à direita, aproveitando a própria estrada dos guardas, margeando o rio Barra Seca. Entramos ainda vestidos com nossas domingueiras, só trocando de roupa depois de um quilômetro de caminhada.

Ainda nesse início, espantamos um bicho que dormia numa moita por cima da estrada. Era um entupimento que logo nos aliviou: por ali não passariam, ao menos de carro, para nos apanhar.

Trocamos, logo na frente, nossas roupas, deixando-as num saco plástico debaixo das folhas. O mano conhecia a região e logo tomou a direção do epicentro dos jaós, que estavam em nossa lista. A chuva não cessava. Passo a passo, de 30 em 30 metros, parávamos e o mano, depois de secar os pios com penas apropriadas, emitia chamamentos.

O dia seguia. Já era meio-dia e havíamos abatido apenas um chorão, uma uruba e um tururim. Então, retornamos à BR, porque havíamos combinado com o Paulo que iríamos esperá-lo no lugar em que entramos. Sorte dele que cumprimos, porque mal pisou na mata, começou a se sentir mal: surto de febre violenta, talvez malária. Aí, sem pensar em guardas ou em qualquer outro contratempo, trocamos de roupa e voltamos com ele para casa. Estava finda a caçada? Ainda não.

Uma velhinha nos contou que, bem ao lado do casebre em que vivia, quase todas as semanas apareciam caçadores para perseguir um ladino macuco que sobrevivia lá. Para o Adalho, não podia haver desafio melhor. Sem o perigo dos guardas, melhor ainda. Utilizamos aquela tarde para, também, medir forças com o esperto galináceo.

O Adalho, no caminho, foi me passando as táticas para se lidar com macucos assim. Chegando ao local, pôs-me sobre um razoável poleiro e, afastando-se uns 20 metros, fez sua confortável choça. O mano começou utilizando o que chamávamos, “o primeiro macete”, ou o plano 1. Depois de cinco minutos de silêncio absoluto, ele emitiu o primeiro piado de macho, bem baixinho, quase inaudível. Afinal, o macuco era velhaco e já estava cheio de ouvir sopros irregulares de caçadores “marca-cu” em cartuchos de metal. Seguindo, ele sacou o tio-loló e iniciou a contenda.

Eu continuava apenas excitando os inhambus menores, com raros piados de chorão e tururim. De cima de meu poleiro, eu observava tranquilamente o movimento deles. Veja como traduzi a interpelação dos chorões aos tururins:

– Que estão fazendo aqui, disse o chorão ao primeiro tururim?

– E você, retrucou o tururim?
– Eu vim ver o visitante que está invadindo meu território.

– Eu e minha mulher, estamos aqui pelo mesmo motivo.

– Pois então, procure o intruso, senão ele acaba levando sua parceira.

– Pois é, piou por aqui, mas acho que é covarde. Não aparece para decidirmos a questão na asa. Darei uma voltinha e se o encontrar, acho que não vai ser nada fácil para ele. Moro aqui há anos e este território é meu.

– Pois não, respondeu o tururim macho. Também estou irritado.

O chorão vasculhou a redondeza e retornou logo, acusando o tururim da troça. Para iniciar a briga, começou a fazer gracejos com a mulher do tururim que, sem esperar pelo macho, desfechou-lhe forte asada. Estava formada a confusão. Enquanto isso, mais distraído que um leão de barriga cheia dormindo no Serengeti, encontrava-me eu, maravilhado com tudo o que via. Depois de renhida luta, eis que a fêmea do tururim viu que aquilo não era para mulheres e deu na asa, voando alguns metros para mais longe.

Aí apareceu o macho, dizendo que aquilo “era pra homem”. Nova luta. Percebendo que seu marido estava lutando, a fêmea retornou. Pensei com meus botões: agora o bicho vai pegar. Mas, para maior espanto, vi que outro personagem se interessara pela confusão. Parecia mais um policial local, pois entrou logo dando asadas. Era sua excelência, o macuco, o já tão caçado macuco, aquele que se vangloriava de conhecer tudo por ali.

O chorão que resistia ao casal de tururim com bravura e altivez, diante do gigante presente, deu no pé. Os tururins, também desapareceram como por encanto. Alguém mais forte acabara de chegar. E o macuco disse:

– Turma de desordeiros: não sabem que temos de ser uma turma unida que lute pela própria preservação? Nesta terra de tantas simulações, ainda pensam em brigar? Vai que um bicho maior se aproveite da distração de vocês e os transformem em petiscos? Há anos vivemos aqui e sempre conseguimos ludibriar os tantos caçadores que vivem querendo nossas peles.

E o maior caçador de macuco do mundo, estava lá, sem pressa, agora utilizando a cartada final, usando o seu “último macete”: o “tio loló”. Era um chororocado quase inaudível e bastante espaçado. O macuco estava debaixo do meu poleiro, inteiramente exposto e sem nada perceber. A espingarda já havia sido despendurada do galho e descia morosamente sobre ele, com muita emoção. Mas, a conversa, embaixo, continuava com fortes acusações:

– Ainda por cima, disse o tururim muito nervoso, porque não desvenda este mistério de sermos desafiado e não encontrarmos ninguém no local? Por que não desvenda este mistério? Há alguém logo aí embaixo também desafiando o senhor.

– Mistério qual nada. Vocês é que são uns bobões sem tino.

– Vossa Excelência – disse em tão de pilhéria o pequeno tururim – encontrou o intruso que está lhe desafiando também?

O galináceo emudeceu por um instante, lembrando que havia por lá passado e nada visto, senão, um amontoado esquisito de folhas que antes não existia. Por fim, explicou:

– Não encontrei porque não quis me dar o trabalho de vasculhar o interior da moita. Preferi passar ao largo.

– O senhor está é com medo, pode confessar.

– O quê? Você pretende me desacatar? Pois irei dar uma lição para que não volte a ter o topete de me desafiar. Sabe que aqui sou eu quem manda.

Nisto, no silêncio cortado apenas pelo admirável colóquio, um tiro se ouviu e o rei daquele recanto, mortalmente ferido, tombou sem vida. Em sua agonia notava-se um triste acesso de recordações que falava de alegria, quando na paz da imensa floresta, conversava com seus companheiros. Ainda agonizando, conseguiu falar:

– Corram, amiguinhos! E a última centelha de seu olhar penetrante, foi-se apagando paulatinamente.

Estarrecido, com os olhos pregados nos meus olhos, o pequerrucho tururim parecia chorar. Olhava-me no poleiro e a seguir, a imensa morada em que sempre viveu. A seus pés morrera o rei daquele território. Baixou, enfim, os olhos e, como que chorando, retirou-se em lentos passos. Toda a alegria de viver acabava de abandoná-lo. Firmei a pontaria e, como o mais terrível dos carrascos, disparei sobre ele. Ao tombar, entreabriu o bico e deu o último suspiro. Mudei rapidamente os cartuchos e novamente revisei a mata. Mais abaixo vi, imponentes, dois guerrilheiros. Com os peitos estufados, provocando a própria morte, desafiavam minha selvageria. Baixei o cano e fiz pontaria no chorão. Seus olhos continuavam fixos nos meus, tão fixos e inocentes que me comoveram. Desviei a espingarda da pontaria e, enternecido pela mensagem daqueles dois olhinhos selvagens, pus-me a chorar. Baixei os olhos pensativo. Em baixo, os dois corpos, quatro olhinhos lânguidos a acusar-me. Para baixo, a válvula aberta de minha consciência: a casa esfacelada. Todos repetiam ao mesmo tempo: desça, cruel e covarde! Desça fingido, traidor! E, com a angústia daquele triste momento, agarrei-me aos cipós e fui descendo, lentamente, até alcançar o chão. Estavam concretizados os meus três dias de fortes emoções, sorrisos, aventuras e, também, tristezas e angústias. Nesse passeio, Adalho abateu 2 macucos e 2 urubas e eu, 1 macuco, 1 jacupemba, 3 chorões, 1 caititu, 6 urubas e 1 tururim.

Três coisas desta viagem ainda vingam em mim: a técnica do Adalho para atrair macucos caçados; a certeza de que caçador sentimental não pode pensar na hora de abater a caça, e a coragem de um dependente, na hora de caçar a poucos metros da guarita dos Agentes Florestais. Hoje, aqui, pensando em todas essas loucuras, não consigo acreditar que fiz parte ativa delas. Agora, com 81 anos, perco o sono só em pensar que fui protagonista de tantas ousadias e contravenções.

MAIS UMA FUGIDINHA
Feriados e dias santificados de novembro de 1963.
Componentes: Adalho, Jayr e Livaldo. Local: Reserva Federal. Abarracamento: casa do Paulo Gava. Ali era nosso QG.

Para variar, os dias santificados não deveriam ser utilizados, senão, para rezar para os mortos, glorificar os santos e pôr nossas contas espirituais em dia. Mas, não havia, ainda, santo para me segurar: fiz a cabeça do Adalho e do Jayr e logo traçamos os planos. De ônibus, carona e até trechos a pé, saímos de Marilândia e fomos parar, debaixo de chuva, lá no Paulo Gava, cujas terras do Erlacher divisavam com a Reserva Federal. Perca de ônibus, condução quebrada e outros imprevistos, resultaram em dois dias de viagem.

Só agora estávamos compreendendo o porquê do riso do motorista e seu ajudante, quando precipitávamos para o interior do ônibus para tomar nossos lugares: havia apenas três passageiros: os dois manos e eu. Logo na partida, o motorista freou bruscamente o carro e já seu ajudante desceu pela porta de traz e foi recolher parte da lataria do flanco traseiro que se desprendera. Um pouco mais à frente, nova brecada, porque o motor não funcionava a contento.

Apesar do tempo com torós esparsos, havia parte da estrada que estava seca e, aí, o ônibus parecia uma galinha se espojando, jogando toda poeira da estrada em cima de nós. Bem, a batucada era digna de mil tambores na Sapucaí. Mas, enfim, mais contentes que “pinto no lixo”, fomos recebidos pelo amigo Paulo Gava. O “ônibus” então, seguiu vazio para São Mateus. Só quem não o conhecia, entrava nele.

Abracei o menino Paulinho, a Delma, o Adalberto, a Deia, a dona Angelina e o amigo Paulo Gava, que jamais demonstrara insatisfação com as nossas constantes “encheções de saco”. O mano Adalho era querido por todos que o conheciam e nós, seus irmãos, aproveitávamos do prestígio dele. Entregamos-lhes chocolates, balinhas e uma boa cesta básica e tudo virou festa. Para variar, o tempo continuava chuvoso.
Hoje, no fundo de nosso quintal em Marilândia vivem três macuquinhos, dengos de meu pai, nascido de ovos encontrados numa dessas fugidinhas do Adalho. Mas, à época, ele recolheu apenas os ovos e o macuco continuou lá. E foi ali que fizemos a primeira choça. Adalho se dizia contrário a caçar ali, porque haveríamos de ser gratos à distração de nosso velho pai. Mas, logo argumentei que, se havia ninho com ovos galados, uma fêmea vivia por ali também.

Era, de fato, a lei da selva que valia. O mano Jayr não conhecia nada daquela região e eu ia explicando: aqui foi onde vieram cinco macucos de uma vez para mim e se o Paulo ou outros predadores naturais não saborearam algum, devem estar por aí. Mais à frente: aqui o Paulo matou, enganado, dois tatuzinhos; aqui a porcada quase nos agrediu; aqui deixamos três macucos piando…. Depois de tantas explicações, resolvemos trabalhar, cada um escolhendo o lugar que mais lhe pareceu promissor.

Não ficamos muito longe um do outro. Eu entrei no brejo, escalei uma grossa árvore caída, toda carcomida pelo tempo e, na forquilha de dois grossos galhos cheios de folhas secas, sem cerimônia, assentei-me. Saliento que eu pulverizava Neocid ® por toda a roupa, vestia dois meiões para futebol, botas de soldado em guerra, duas perneiras que protegiam das botas aos joelhos; antes vestia uma cueca samba-canção, duas calças bem grossas, duas camisas com mangas compridas e um boné que cobria as orelhas e o cogote. Desnudos, apenas, a garganta, as mãos, o nariz e meia testa, sempre untados com repelente de insetos. Mijar não era fácil!

Mesmo assim, depois de alguns dias, já me encontrava com o corpo todo empolado. Os mosquitos eram tantos e ousados, que formavam uma nuvem frente aos olhos e me prejudicavam a visão. Os carrapatos – uma dezena de espécies – às vezes morriam sob o Neocid: mas não desistiam: morriam atracados e coçavam pelos menos uns dois meses. É claro que eu vivia molhado de suor, mas confesso que entre os amigos caçadores que me acompanharam em caçadas pelo Brasil adentro, fui o único que nunca foi acometido pela malária, nem por picadas de cobra.

No Pará, no rio Cajazeiras, estávamos em 21 caçadores. O calor era insuportável, todos ficavam de calção no barraco, mas eu continuava encapotado. Fedia como um porco do mato, mas continuava firme em minha prevenção. Conclusão: fui o único a não ser infectado pela malária, nem picado por cobras, apesar de ter arrastado algumas penduradas na perneira que me protegia. Aliás, nunca o fui. Só não posso afirmar se os tantos venenos com que me untava, e as fardas sufocantes que vestia, não foram piores que as malárias e as cobras.

Pois bem, depois de encerrar nossas tentativas, assoviamos para o encontro. O Jayr foi aonde eu me encontrava, apanhou o macuco que eu abatera e ficou aguardando que eu descesse. Foi quando notei que alguma coisa agonizava sob o lugar em que eu estava sentado: uma jararaca que não suportou meu peso e, possivelmente a catinga rsrsrsrs, desmaiara. O mano riu bastante e eu, feliz pelo macuco, lhe fiz coro. A cobra fora apenas mero detalhe!

Eis parte do relato de um dia de sorte e muito perigoso, acontecido com o Jayr e eu. Adalho havia ficado no Paulo Gava tratando dentes da família do anfitrião:

….. O macuco se aconchegava e, no momento de sua quinta piada, o mano atirava no terceiro jaó, sem resultado. Devo confessar que a cada estampido, um arrepio corria pelo meu corpo, na intuição de que algum guarda o ouvira.

O Jayr atira outra vez e o macuco me vê e se retira num curto voo. Então, mudei de lugar, afastando quanto possível da estrada dos guardas. Antes, piei chorão e consegui que o curioso voltasse para entregar-me a vida. Apanhei-o, assim como a mochila que havia deixado numa moita e desci para chamar o mano. Ouço outro disparo e, então, assovio. Macucos e jaós, sem distinção, piavam a cada minuto.

– Jayr, você me perdoa, mas já não suporto esta ousadia de arriscar tanto. Os guardas devem estar ouvindo todo este tiroteio.

– Com certeza, as coisas estão boas por aqui, mas lque isto é muito ousadia, confirmo.

Andamos por mais 30 minutos e fizemos uma boa choça. Utilizamos, então, um método bem novo e adverso aos nossos costumes: piar muito. Chorões, urubas e tururins responderam, mas nada de macuco. Foi então que sussurrei: tenho quase certeza de que ouvi um piado de macuco e, se foi, o próximo piado será aqui perto da choça. Isto foi como se uma ordem tivesse sido dada. O macuco piou, mas ainda não conseguíamos localizar a direção em que se encontrava. Cinco minutos depois eu o alvejava com sucesso. Mais à frente, fizemos outra choça e continuamos a piar. Aprendera com o Adalho: se houver muitos pássaros e se eles estiverem piando muito, devemos piar muito também. É claro que a lição valia também para o contrário.
E nosso medo tinha fundamento: um dos guardas que ia para São Mateus, estava esperando condução na variante e, consequentemente, ouvira todos os tiros. Pedira – na impossibilidade de ele mesmo efetuar o trabalho – que o cunhado do Sr. José (o mesmo que nos emprestara as bicicletas) avisasse aos demais agentes de que havia caçadores na Reserva, fazendo verdadeiro estrago. O moço nos conhecia e era nosso amigo. Ao invés de avisar aos demais guardas, foi direto ao mano Adalho e o cientificou do perigo que estávamos correndo. E nós, sem consciência do que estava se passando, continuamos caçando com prazer e satisfação. Piávamos muito, pois estava dando ótimos resultados. Os inhambus estavam excitadíssimos. Eis quando algo estranho nos chamou a atenção:

– Ouviu, disse-me o Jayr?

– Sim. Pareceu-me um grito de alguém nos chamando.

– Isso mesmo. Foi grito de gente. Estamos cercados.

A mata silenciou-se. Até os inocentes tururins pararam de piar. E antes que conjecturássemos alguma coisa, ouvimos a voz bem clara e familiar:

– Hei, Jayr, Livaldo. Sou eu, o Adalho.

Recolhemos as coisas e aguardamos. Quando chegou, ainda reclamamos:

– Caramba, que susto nos pregou. Pensei mesmo que fossem os guardas florestais. A coisa aqui está maravilhosa. Nunca ouvi tanto macuco e nem atirei tanto, disse o Jayr.

Acabando de chegar, vestindo-se com o jaleco de trabalho, foi logo se explicando:

– Pois é, você não está enganado não.

– Não brinque! Falamos a um só tempo, Jayr e eu.

– É a pura verdade. Tentemos escapulir antes que se organizem. Troquem de roupa, escondam as caças e tomemos as bicicletas. Depois da meia-noite voltaremos para apanhar a bagagem.

Fizemos isso a toda pressa, apanhamos as bicicletas e ganhamos a estrada para casa. Não andamos muito, passamos pela camioneta da Sooretama, apinhada de agentes que se limitaram cumprimentar-nos com acenos de mãos amigáveis. Acho que estavam chegando atrasados.

Pela madrugada recolhemos nossos objetos e as caças e, quando tudo estava em casa, juramos que jamais repetiríamos tamanha ousadia. Pelo menos até o próximo feriado, pensei cá com meus botões. E nunca uma dedução fora mais profética.

No dia seguinte, Jayr e eu visitamos o Zé Caboclo, o mesmo pequeno proprietário que já estivera nos Estados Unidos e que possuía um lindo pomar. Eu já o conhecia de outras caçadas. Numa delas deixamos a camioneta do João Gaburro ali guardada.

Depois de dar uma cusparada esverdeada, suco do fumo de corda, bem no único degrau em que estava assentado, veio e nos recebeu alegremente. Foi fácil eu conseguir com ele, tudo o que queria. O mano e eu nos adentramos na mata e cada um procurou o lugar que mais achou plausível.

O mano abateu alguns pássaros pequenos e depois assoviou, convidando-me a desistir. Fui recolhendo meus pios espalhados pela choça, guardando cada objeto no picuá e, ao dar a última revisão, olhando pelos buracos da choça, eis que vi um macuco que caminhava em minha direção. Fui feliz no disparo e, mais contente que nunca fui encontrar-me com o mano. Ao ver o galináceo, não perdoou:

– Você é um cagão mesmo! Agora acredito na profecia do Adalho: você será o maior caçador de macucos do Brasil…. Depois dele, é claro.

O último dia caiu no domingo, dia em que se votava, no Brasil, a sorte do parlamentarismo, levado a efeito por ocasião da renúncia do presidente Jânio Quadros. Os guardas estavam, como todos os funcionários públicos, obrigados a votar no plebiscito. Boa oportunidade para não cumprirmos o propósito de não mais caçar em volta da guarita dos agentes florestais, depois daquele aperto em que fomos salvos pelo Adalho.

Paulo Gava nos encorajou, assegurando que eles estariam votando porque, como funcionários públicos, eram obrigados, e que o caminho estaria livre. Mostrou firmeza assegurando que iria também. Adalho e Jayr ficaram temerosos, mas eu – não podia ser outro – funcionei como voto de Minerva. Jayr e Paulo formaram uma dupla, indo de flobé calibre 22; Adalho e eu, nos aprofundamos mais pelo lado direito, no mesmo lugar em que, pela primeira vez na minha vida, infringi tudo o que era norma elementar do código penal, caçando a 100 metros da guarita dos agentes.

Fomos entrando com o auxílio de lanternas. Depois de quase uma hora fomos obrigados a parar e deixar que o Sol expulsasse a negridão da noite. A esta altura, Jayr e Paulo sofriam a arrogância do destino: um sacana qualquer estava na encruzilhada da entrada, esperando condução. Em vista disso, foram obrigados a deixar as bicicletas na própria casa em construção de um dos guardas florestais, que estava sendo construída bem à margem do rio Barra Seca, no lugar em que estavam construindo a ponte. Em vista de tal imprevisto, entraram mesmo por lá, aproveitando-se da distração, como dizia o Paulo, “de um veado” que estava de plantão. Por estarem de flobé, nada conseguiram, a não ser míseros tururins e errar dois macucos.

Adalho e eu alcançamos a famosa figueira dos jaós. O dia ainda bocejava. Chorões e os próprios jaós piavam incessantemente. Não encontramos um poleiro plausível sequer e, então, aceitamos a oferta da catana de uma jendiba e apenas a camuflamos com ramos de arbustos. Não havia também, qualquer tipo de palmeira.

Como nada conseguíssemos ali, mudamos para adiante e um jaó foi abatido. Resolvemos adentrar mais, mas na hora do gole d’água, Adalho percebeu que havia perdido o cantil e, por ali, não havia uma gota d’água. Bebeu água de um cipó e logo lembrou de um velho macuco seu conhecido, resolvendo visitá-lo. Eu parei, aproveitei-me de um emaranhado de cipós e subi lá em cima, levando comigo, apenas a espingarda, quatro cartuchos no bolso, os pios e o repelente.

Quando estava me ajeitando lá em cima, o cipó partiu-se e eu desci como um quati chumbado, espocando no chão. Auscultei-me momentaneamente, quis gritar para o mano, mas percebi que não havia quebrado nenhum osso. Sentei-me, respirei fundo e a dor que sentia, percebi que seriam inteiramente suportáveis. Aí me contentei com um murundu, alguns ramos de arbustos e novas pulverizações do repelente.

Uma macuca, muito longe, respondeu. Imaginei que levaria o resto da tarde ali, caso ela não viesse correndo. E, todas as vezes em que eu tomava a decisão de sair dali ela piava mais perto, e eu, me dava mais 20 minutos de prorrogação. E o tempo não parava e eu queria encontrar-me com o mano porque, embora fosse suportável, a dor nas costelas continuava.

A macuca a tempo não piava. Resolvi abater o tururim e ir encontrar-me com o Adalho. Fui me erguendo até ficar de pé. Logo vi o tururim, que é um inhambu muito manso e pequeno e que, por esses detalhes, talvez se sentisse isento da perseguição de cavalões como nós caçadores. Por isso, morriam sempre sem saber a razão. Ele estava me olhando, com a cabeça alta: próprio para ficar sem ela.

Estava firmando a pontaria, quando o macuco piou bem pertinho. Baixei a guarda, dispensei o tururim e respondi baixinho. Estava tão perto que escorreguei as costas no madeiro e fiquei como que agachado, com boa visão e péssima posição. Mas, com um macuco tão próximo, eu suportaria ainda uma meia hora, ainda que estivesse com três costelas quebradas.

Diante da emoção, já não percebia os mosquitos nem sentia a dor nas costelas. E foi assim que vi, em passos de um urubu malandro de lixões, o macuco que vinha em minha direção. Levei a espingarda em sua direção. Ele me viu também. Bateu o pé no chão, ergueu a cabeça e tentou decifrar que diabo de macaco era aquele que nunca tinha visto: jamais ficou sabendo, porque arranquei-lhe a cabeça. Naquele tempo, para mim, aquilo era um grande feito: motivo de orgulho e vaidade. Fui ao encontro do mano. Ele não havia conseguido nada. Um tanto sem esperanças, ele disse que, com o tempo se formando, os bichos se calariam e que mais nada iríamos conseguir. Fomos voltando bem devagar, contando apenas com a sorte de encontrarmos alguma coisa de esbarro. A esta altura, negras nuvens passavam estugadas por ventos, encobrindo o céu azul. Os ventos foram cessando, o calor aumentando e pouco tempo depois, um temporal atípico desabou sobre nós. Apesar das folhas plásticas com que nos cobríamos, logo ficamos ensopados.

– E agora, mano, estamos ensopados e só poderemos trocar de roupa, à noite.

– Nem nela, disse-me ele. Agora lembrei que não protegi nossas roupas quando entramos. Nesta hora devem estar mais molhadas do que estas com que estamos vestidos. Caço aqui “há 200 anos” e ainda acredito no milagre de um dia sem chuva.

– É, por mim, sairemos agora mesmo. Com todo este temporal e dia de votação, os guardas nem porão o nariz na janela da guarita. Aliás, nem nela se encontram.

– Sei não! Já demos sorte demais, você não acha?

Limitei-me apenas a suspirar:

– Bem, teremos de arriscar mais uma vez. Afinal, ir para a cadeia é menos ruim do que morrer de frio por aqui.
Chegamos às nossas roupas que deveríamos vestir para retornar. Para vesti-las, tivemos de espremê-las. Como estávamos com uma só bicicleta e o mano havia vindo a pé pela manhã, agora era a minha vez de deixar a bicicleta com ele e meter o pé na estrada.

– Saia bem devagarzinho, com bastante cuidado, dando mostras de que entrou para aliviar a barriga. Saia apertando a correia.

Saltei a galhada, rastejei pela relva, divisei um trecho da estrada. Do outro lado da mesma, apenas um pouco mais adiante, dois vultos extáticos estavam na chuva, sem qualquer proteção. Jamais vi maior semelhança com o Paulo e o Jayr. Firmei o olhar. Eram eles que também haviam decidido sair. Cheguei a abrir a boca para chamar, mas, graças a Deus, me contive. Resolvi rastejar de volta, entrar na mata outra vez e caminhar pelo aceiro até ficar na direção deles. A esta altura, a noite chegara.

Aí, tornei a rastejar e, aproveitando um dos relâmpagos, vi claramente que, de fato, eram dois agentes florestais. O calor me subiu ao rosto. Rezei uma ave-maria e fiquei aguardando.

Depois de alguns minutos, os dois voltaram à estrada e foram embora. Disse: “obrigado, Mãe” e, tão logo desceram o riacho Quirino, eu pulei na estrada e fui atrás deles. Afinal, eu teria de passar por ali para ir para casa. Percebi que eles estavam vigiando, porque tinham certeza de que havia caçadores atrevidos por ali. Aí lembrei-me da brilhante ideia que tive quando, ao sair, escrever na terra molhada: “Mano, não saia de dia”.
Quando alcancei o início do valão formado pelo riacho, vi que os guardas já estavam parados do outro lado. Não sabia a razão, mas percebi que trocaram algumas ideias e continuaram o caminho andando mais depressa. Todo molhado, pensando pouco, apressei o passo também até alcançar o outro lado do valão. Imagine minha surpresa ao encontrar na frente, um aglomerado de pessoas no meio da estrada. Estaria mentindo se deixasse de assinalar este momento como o início de um sem-fim de mentiras que conjeturava para me defender das acusações que por certo me fariam. Não diminuí o passo e, externamente tentei não demostrar qualquer nervosismo. Pensava apenas na esperança de o mano ter lido minha mensagem “MANO, NÃO SAIA DE DIA”, que eu escrevera antes de alcançar a estrada.

Apesar do magote em frente, sinceramente, não fiquei aturdido. Quem poderia acusar de caçador, um jovem com meias de nylon, calças de casimira, camisa bossa-nova de fino tecido, sem espingarda, pios ou caças mortas? Mas, não precisou nada disso: o grupo abriu caminho, cumprimentou-me e seguiram o destino deles.

O mano, porém, viria atrás com as armas, os bichos mortos e tudo o que os guardas precisavam para prendê-lo em flagrante. Estava já a 50 metros da barreira estranha que se postara na estrada e nela, os guardas se misturavam. Fora do alcance deles, olhei para trás e vi, num dos relâmpagos, a figura de um homem sobre uma bicicleta, parado do outro lado do valão. Quebrei imediatamente um galho e comecei a acenar, tentando dizer-lhe que não passasse, se estivesse trazendo as armas e as caças. Mas, para, por meio de sinais à noite, com galhos na mão, transmitir esta mensagem, não era possível. Acender fogueira, sem combinar antes o significado dos tufos, também não iria dar certo. Na verdade, para o mano, apenas nossa pobre Mãe do Céu daria jeito. Apeguei-me, mais uma vez, à Ela. Preferia, mil vezes, estar no lugar do mano, porque o conhecia e sabia o quanto lhe doía qualquer humilhação. Ele tinha um nome a velar.

Depois dos acenos, desci correndo para a casa do Paulo, na esperança de encontrá-los (Jayr e ele), ou, caso ainda não tivessem chegado, outros amigos para traçarmos o que fazer. E ali perdido como criança malcriada, eu corria para a saia de
minha mãe do céu e pedia socorro. Pedi a Ela que não deixasse o mano passar por tamanho vexame. Aquilo não podia acontecer com ele!

O Paulo e o Jayr ainda não haviam chegado e eu fiquei com a cabeça entre as mãos, igualzinho quando criança, agarrado à saia de mamãe, para que ela não me batesse por causa de alguma malcriação. Nisto, alguém me bateu no ombro. Ergui os olhos: era o mano Adalho me dizendo:

– Puxa! Esta foi por um triz!

– Heim! Você? Como escapou?

– Escapei porque não eram os guardas, apenas auxiliares escalados por eles para anotarem os nomes de possíveis caçadores que por ali passassem. Os verdadeiros estão em Linhares, onde foram votar. Contudo, a denúncia virá. Estavam na estrada apenas para nos reconhecer. Teremos de partir amanhã, bem cedo.

– Caramba, suspirei, pensei mesmo que fossem até linchá-lo. E o Jayr e o Paulo, onde estão?
– Ainda não vieram, mas não devem demorar.

Chegaram sãos e salvos, às 20 horas, quando já não havia ninguém na estrada.

Graças a Deus, tudo ficou para o outro dia, o que nunca chegou, porque fomos denunciados a um guarda que conhecíamos por Zé, a quem sempre lhe dávamos bons nacos de carne de caça. Vivíamos os bons tempos para os caçadores! A denúncia foi feita a ele que, simplesmente a desconsiderou. Como ele morava perto de nossa casa em Linhares, no outro dia eu levei um macuco, limpinho e já preparado para ele usar como tira-gosto. Em contrapartida ele me disse:

– Quando forem caçar por lá, me avisem com antecedência, porque sei os lugares que iremos fiscalizar e passarei para vocês, para não coincidir. Lembrem que, se eles mudarem o local para o lugar em que vocês estiverem, eu darei três tiros seguidos num pau, apenas para avisar que mudaram os planos e que vocês deverão dar no pé.

Eu era, de fato, o verdadeiro produto do meio. Nesse tempo, sonegar impostos, corromper guardas e policiais, tirar tudo o que fosse possível do governo, não era crime: apenas habilidade de quem não aceitava a corrupção política vigente.

Então, eu que não era político, supria a desvantagem comprando favores mais baratos. Andava sempre com dinheiro no bolso e, havendo oportunidade, corrompia quem aceitasse me eximir do flagrante. Graças a Deus, meus pecados eram sempre de contravenção ou espertezas leves. Sei que tudo começa assim, mas graças a Deus, não evoluiu.

Para terminar este segundo caderno de minhas caçadas, transcrevo o comentário do Jayr sobre os caxinguelês. É que, na ideia fixa de me tornar escritor, eu vivia lendo e escrevendo. Vejamos as encrencas desses bichinhos com o mano Jayr, que não aprendera na universidade como lidar com bichinhos “aparentemente irracionais”:

Este animalzinho, também denominado de caxinguelê, quatipuru, caxinganga, quati-coco, caxixe, caxinxe, caxerenguengue, serelepe, papa-coco, guatiapé, quatimirim, stchec-stchec…, é o terror dos caçadores. Não há nenhum que não tenha tristes histórias para contar, principalmente nos momentos em que se encontra com alguma caça desejada perto da choça. Para mim, os caxinguelês são versões disfarçadas dos caiporas metamorfoseados da mitologia indígena.

Apesar de encontrarmos estes animais em todo o Brasil e com diferentes tamanhos e cores, vou restringir-me mais aos caticocos espírito-santenses. Têm a cor acinzentada, ou escura, fazem seus ninhos nas folhas ou ocos de pau e vivem, principalmente, de cocos diversos, amêndoas de todos os tipos e insetos variados. Nas épocas de grandes secas, eles fazem furos nas tabocas, a fim de buscar um pouco de água. Esse bichinho pula, salta, faz acrobacias, definindo-se como irrequieto e feliz. Sua característica principal é ser arrogante e teimoso: nunca se afasta sem a tarefa cumprida, ou seja, alertar tudo que há em volta de um bicho estranho a ele.

Não para, indo e vindo de um lado para o outro. Contudo é muito sonolento e dorme cedo. Os caboclos amazonenses chamam-no de acutipuru (mãe do sono) e costumam evocá-lo para ninar os curumins. Tem uma calda comprida e felpuda que serve de guarda-sol, guarda-chuva, cobertor e, principalmente para equilibrá-lo em seus saltos à distância. O acutipuru – caxinguelê amazônico – é chamado pelos selvícolas, de cotia emprestada, ou semeador, tanto pela aparência, como no costume de esconder cocos e mais semente sob as folhas. E, como é um bichinho muito esquecido, deixa sempre as sementes plantadas, originando grandes árvores de sapucaia ou de arizeiros.

Os caçadores de Marilândia, vila situada ao nordeste do Espírito Santo, cognominaram-no com um novo nome, muito bem aplicado, aliás. É que o animalzinho não gosta de ver, por onde anda, bichos diferentes daqueles que conhece ou, então, que são predadores: gatos, onças, gaviões e, principalmente, gente… Segundo o Jayr, o animal tem predileção por cheiros humanos e, o dele, não parece ser muito simpático ao acrobata das matas. Não há um dia que, estando caçando, um deles não o acua, a ponto de fazê-lo mudar de lugar. Como o Jayr é meu companheiro de caçada, posso afirmar muitos dos contos por ele narrados. Um dia, por exemplo, estávamos passarinhando num lugar denominado córrego São Bento. Não existia lá, senão, juritis, inhambus chintãs e chororós. Porém, sem termos explicação, um bando de urubas piou num capão de mata que havia bem perto. Como reza o ditado: na terra de cego, quem tem um olho é rei, e adaptando o acontecido, “na terra de juritis, urubas são macucos”. Fomos até lá, escolhemos um bom lugar e começamos a piar. Quando as mesmas já se aproximavam, o Jayr percebeu, ainda longe, um caticoco.

– Puta-que-pariu, vociferou ele! Está vendo lá um desgraçado de um stchec-stchec?

– Estou, mas está longe. Não virá aqui nos encher o saco, não.

– Garanto-lhe que só nos livraremos dele se o matarmos, você vai ver.

As urubas estavam quase no ponto de tiro e até já havíamos esquecido o bichinho. Certamente teria tomado outra direção. Nisto, ouvimos o característico stchec-stchec, no começo não tão irritativo.

– Pronto, disse o Jayr! Mas isto não vai ficar de graça não. Virou a espingarda e detonou duas vezes e depois foi lá e ainda pisou em cima. Das urubas, nunca mais tivemos notícia, assim como de qualquer inhambu que vivia lá.

Doutra feita (isso aconteceu na Sooretama de Linhares), piávamos macuco e, em volta da choça, já havia chorões e urubas. Fora os piados, a mata se encontrava silenciosa. Nisto, um macuco piou bem pertinho, no meio dos outros inhambus que não haviam sido atirados porque estávamos dando preferência a um possível macuco.

Nisso, atrás de nós, bem baixinho, começamos a ouvir os stchec-stchecs. Embora quase inaudível, o mano logo identificou:

– Com 700 gatos! Tudo perdido.

– Fiquemos quietos, retruquei-lhe. Ele se acalmará e irá embora. Precisamos ficar imóveis e evitar qualquer barulho. Eles têm uma audição maior que a nossa.

– Dou o….

– Não quero, brinquei. Você vai ver. Ele não nos viu e irá embora.

Mas, qual nada. De stchec-stchec baixinho, foi para stchec-stchec médio e finalmente, para o stchec-stchec máximo de 90 decibéis, espantando até um galinho do mato que passava por ali. O mano que já conhecia o bichinho, respirou fundo. Quando já tomava a espingarda, sugeri como última instância:

– Espere. Um tiro vai espantar tudo. Deixa eu jogar um pauzinho nele, talvez ele desista.

Qual nada. Mal joguei o pedacinho de pau, ele oiriçou o rabo e foram tantos os stchec-stchecs, que também apanhei minha espingarda e junto com o mano, esfarrapamos sua carcaça. O mano levantou-se, chutou a proteção das palhas, apanhou os farrapos e terminou o serviço com o facão.
– Grita agora, desgraçado, vociferou o mano. Eu só queria saber por que Noé colocou esta praga na arca!

Em 1958, quando ainda eu apenas sonhava com os galináceos, uma comitiva de fanáticos pela cinegética, de Marilândia, saiu para a tradicional temporada nas matas do rio do Norte, no Jundiá. O Jayr acompanhou esta comitiva que era, para ele, uma de suas primeiras caçadas. Levava consigo uma espingarda americana do cunhado Arlindo e, também ele, nesse tempo, o simples nome “macuco” fazia-o tremer de emoção.

O terceiro dia de caçada, contou-me, que foi a um local de mata limpa e bonita e ali subiu num poleiro para esperar o que o mano Adalho – sempre ele – chamasse a bicharada. Naquela época, nós não sabíamos piar ainda: éramos totalmente dependentes do Adalho. E ele, sempre com bondade de bom pai, piava o dia todo e ficava felicíssimo se algum de nós abatesse um tururim que fosse.

Pois bem, continuou o Jayr, eu estava em cima de um ótimo poleiro, inclusive com cipós auxiliando o encosto do joelho. Como era meu costume, estava quebrando galhinhos e me distraindo jogando-os ao chão, quando um macuco piou bem pertinho de mim. Meus joelhos, numa fração de segundos – acionados pelo automatismo do sistema nervoso – começou a balançar a moita toda. Notei, claramente, que o sábio pássaro me veria naquele estado, mas, não conseguia me dominar.

Foi então que, pela primeira vez, o stchec-stchec fracassou em tentar me prejudicar. Apareceu como por encanto, eriçou o rabo e começou a ameaçar-me. Ao invés de acuar como de costume, apenas roncava, vindo até mesmo cheirar as pontas dos meus sapatões e, confesso que, não sei como, suportou, pois, a turma do barraco me obrigava a deixar as botas fora do acampamento. E o desgraçado bufava e roncava, indo e vindo pelo pau com um nervosismo inexplicável. Afinal, eu não lhe tinha feito nada. Era até mesmo engraçado o que estava fazendo, tanto que meus joelhos se acalmaram e eu até nem lembrava mais do macuco. Somente depois de algum tempo é que me veio à lembrança, aquele piado que quase me derrubou da cipoada. Virei a cabeça e lá estava, com toda soberba, a figura marrom-acinzentada. Na hora do disparo é que as coisas se complicaram e veio o tremendo protesto do stchec-stchec. Mas veio tarde, porque consegui puxar o gatilho e abater meu primeiro macuco. Em agradecimento pelo calmante, deixei o stchec-stchec vivo. Após o tiro, ele deu no pé. Parecia algo elétrico a saltar de um lugar a outro.

Doutra feita, eu estava em Nova Venécia, piando um único jaó da mata de meu tio José Pupim. Tudo ia bem, com o jaó respondendo e descendo a encosta em minha direção. Vi, em dado momento, lá longe, um stchec-stchec mariscando, pulando despreocupadamente, abstraído em seus sérios trabalhos pela subsistência.

De minha parte, conhecendo a perseguição que tais bichinhos me dispensavam, fiquei imóvel, na esperança que ele não me visse. E até achei que minha estratégia havia funcionado, porque ele desapareceu. O jaó que não sabia de nada, continuou descendo e já estava movimentando meus joelhos incontroláveis. Coloquei a espingarda na direção quando, o infeliz caticoco explodiu numa verdadeira rajada de stchec-stchec. O jaó silenciou. Mesmo assim, os stchec-stchecs continuaram cada vez mais altos e irritantes, até que se quietou para o resto da vida, graças ao cartucho que seria do jaó.

SOBRE A TERCEIRA CAÇADA: julho de 1963 – Rancho Alto, Fazenda Magnago. Componentes: João e Tuim Gaburro, Ricieri Gomes, Dr. Joel Coelho, Joel Coelho Filho, Albertino Cordeiro (cozinheiro), Angelim Bravim (cozinheiro), Narciso Bona, Arlindo Falqueto, Valdemar Merlo, Antônio, Adalho, Hildebrando, Jayr, Livaldo, Jadilson e Luís Fregona (17 caçadores). Condução: camioneta do João Gaburro e Jeep do Valdemar Merlo. Duração: 12 dias.

Alguns fatos interessantes:

Nossas caçadas, praticamente nem deviam ser assim consideradas, visto que, quem quisesse participar era só assumir suas próprias despesas. Nessa caçada, por exemplo, havia 17 componentes, mas apenas oito caçavam. Os demais eram velhos e crianças que só atrapalhavam quem podia render alguma coisa. Até que esses calouros não atrapalhariam tanto, se não quisessem, sempre, acompanhar quem caçava de fato.
E, então, eles andavam pelas matas, conversando alto, contando histórias, não sabiam piar nada, aliás, nem tinham pios, e não ficavam quietos quando deviam ficar imóveis para não espantar os pássaros piados. Não possuíam armas, roupas ou quaisquer equipamentos adequados. Tudo que levavam era emprestado.

Tio Luís, por exemplo, escolheu-me como parceiro, desestimulando-me a ponto de passar dias sem sequer abater um tururim. Apenas o eterno e bondoso mano Adalho não se importava em abater caças: quem quisesse passear com ele pela mata, podia ir. Como se diz: ele vivia como um leão na savana. Todos sabiam que, se ele estivesse sozinho e quisesse, ninguém se igualaria a ele, porque era o melhor caçador de pássaros, no Brasil e no mundo. Apesar de viver emburrado por não o ter como parceiro, comecei a negacear a parceria do velho tio Luís.

O diabo é que ele, como dizem as mulheres, “me adorava”. Mesmo assim, comecei a inventar mal-estares, que logo passavam, desde que ele escolhesse outro e saísse do barraco. Aí, então, “eu melhorava” e ia caçar também. E foi assim que, juntamente com o Brando e o Jayr, parti (mesmo doente rsrsrs) para uma antiga derrubada do guarda florestal Domiciano Scarpat (não tinha qualquer parentesco como Zaudino Scarpat), numa caminhada de três horas.

Lá ainda encontramos de pé, dois esteios e o velho paiol, agora em estado deplorável. No terreiro, muitas fruteiras: laranjeiras sobrecarregadas, mas quase todas já passadas e muito bichadas. Chupamos mesmo assim. Por cima, tucanos, araçaris esvoaçavam em algazarra. Fizemos um bom tiroteio, abatendo vários deles em pleno voo.
Ultrapassamos a derrubada, tomamos um banho de orvalho e penetramos na mata. Era limpa e frondosa, muito promissora à primeira vista. Como sempre gostei de caçar sozinho, deixei os manos acomodados nos lugares por eles escolhidos e segui em frente. No entanto, o Domiciano e sua caboclada estavam caçando com cachorros e, a toda hora a matilha passava por nossas choças tocando as milhões de cotias que existiam por lá. Resultado: tivemos de mudar de lugar.

Ao retornar, tivemos a estúpida ideia de deixar o Brando seguir em frente: não deu outra. O Sol descia e, no lugar combinado, ele não se encontrava. Gritamos do lugar em que nos encontraríamos, demos dois tiros…. Nada. Pronto, vociferou o Jayr: estamos perdidos.

– Eu sempre achei que o Brando não é confiável nos tratos de caçadas! Na mata, estando bom para ele, os outros que se danem.

Decidimos, depois de maldizermos a própria sorte, retornar ao lugar da separação, para seguir pela picada já pronta. Como gato escaldado tem medo de água fria, assim fizemos, restando bons calos no fim do dia.

Refizemos todo o percurso e, no lugar do encontro, apenas uma folha assinalando que ele já tinha ido para o barraco: ele, de fato, era proverbial em descumprir tratos feitos aos companheiros de caçada. Sem dizer que este mal costume dele nunca foi deixado de graça.

No barraco, a euforia era geral. Haviam chegado os retardatários: Valdemar Merlo, Adalho Fregona e seu filho Jadilson e Antônio, meu pai, que nos traziam a grata notícia de que logo chegariam o Dr. Joel Coelho e seu filho Joelzinho. A presença da experiência do Adalho, junto à do médico Dr. Joel Coelho, que se somava aos conhecimentos do mano Jayr, garantiam a todos, mais segurança. Logo quiseram saber como estavam as coisas:

O frio está congelante, o vento impetuoso, os inhambus emudecidos. Estamos defendendo a comida, graças ao novo modelo de “esbarro”, ou seja, a gente vai andando pela mata e como aqui os pássaros não voam, a gente percebe que eles se afastam fazendo barulho nas folhas secas. Localizados, a gente se aproxima até enxergá-los e atira. Não sendo o Tuim, quase sempre a ave é abatida. Ao ouvir não sendo o Tuim, todos deram gargalhadas, porque ele era proverbial em errar 80 por cento dos disparos. Vocês sabem da fama de Linhares: mas, desta feita, nem nuvens brancas passeiam pelo céu. Pois é, aqui já não chove há meses. Não há água senão no Barra Seca. É de doer o coração perceber os macacos mordendo miolos de brejaúva espinhosas para se hidratarem.

Com a descoberta das caçadas por esbarro, conseguimos a maior carnificina de nossas caçadas. Saíamos do barraco apenas com os cartuchos nos bolsos e um cantil com bastante água. Cada um traçava uma reta mata adentro e saía andando na ponta dos pés. A uma distância de 20 metros, ouvia-se o pássaro que se afastava. Era só ir seguindo naquela direção, até enxergá-lo. Jayr era, então, meu companheiro. No dia anterior, comeu 15 amêndoas de sapucaia-mirim (estavam pelo chão sem bicho algum mexer, e mesmo diante desta minha observação), ele as comeu, e para completar, tirou a latinha de leite moça, furou-a com a ponta do facão e tomou metade dela. E a saber que cursava medicina!
O resultado de sua incúria vinha agora: de 10 em 10 minutos tinha de baixar as calças e adubar a mata, para não se borrar todo. Não bastasse, na primeira arrancada que deu atrás do barulhinho de um galinho da mata, deu com o joelho em um toco e já quase não conseguia caminhar. Logo dei a pontada: acho melhor te levar de volta e trazer o tio Luís!

Mas, tio Luís estava com o Arlindo, que soube lidar com ele sem qualquer problema, porque, além das conversas não atrapalharem o novo modelo de caçar, ainda era sempre deixado para trás, falando sozinho. E o Arlindo foi o que melhor se deu no esbarro. Começou a chegar no barraco com mais caças do que todo o restante do grupo junto. Os pobres chorões, por exemplo, só permaneciam vivos se ele não passasse por perto.

Acontece que no começo apenas ele estava usando o sistema. Os demais ainda permaneciam acreditando nos pios e viviam assoprando neles sem ouvir uma única resposta.

E foi aí que se deu a maior trapaça: invejando a quantidade de chororões que o Arlindo abatia todos os dias, resolvi comprar-lhe o pio. Fiquei admiradíssimo em conhecer o desapego do cunhado e não desconfiei de nada. Pediu-me a capa de minha espingarda, o meu pio, que era considerado melhor que o dele e mais algum dinheiro. Fechei na hora. No outro dia fui logo testar o milagroso pio. Achei-o horrível e nenhum chorão respondeu.

A esta altura, o Dr. Joel já havia tratado a diarreia do Jayr, só restando o joelho inchado, mas sem dor, devido a quantidade de analgésico. De fato, o Dr. Joel entrava de sola nos problemas: nada de gotas, o negócio era no balde mesmo. Quantas amigdalas ele extraiu no fundo de seu quintal, com o paciente sentado numa cadeira de pau, embaixo de um cajueiro! Receitava um caminhão de penicilina e logo o paciente estava comendo até arame farpado rsrsrsrs.

Eram conhecidas suas respostas a perguntas idiotas de pacientes. Segundo dizem, certa feita, um fazendeiro que jurava matar quem havia estuprado a filha dele, procurou-o para examinar e constatar se a filha não era mais virgem. Ele examinou e disse que, de fato, ela não era mais virgem. O velho fazendeiro ficou vermelho e quis saber:

– Doutor, foram quantas vezes?

– Meu velho, eu sou médico, não porteiro de b…..”

De fato, o Dr. Joel Coelho Ferreira era um homem singular que entendia muito de medicina, mas não deixava transparecer. Nenhum caboclo conseguia vencê-lo em modéstia e simplicidade.

Voltemos, agora, ao dia seguinte, porque, em cada dia, as novidades aconteciam. João Gaburro e seu filho Tuim, gostavam de viver perigosamente. Se houvesse lugares proibidos, eles iriam visitar. Partiram desta feita para a Reserva Federal, entrando num canto que beirava o lamacento Barra Seca. Partiram da propriedade do Magnago, anexa ao terreno do Alberico e seguiram em direção à estrada federal, aproveitando o picadão da Cia. Vale do Rio Doce. Este picadão terminava na divisa da Sooretama.

Uma estrada vinda do pântano, à esquerda, quase nas cabeceiras do riacho Mangueira, vem dar também ali, fazendo cruzamento de picadões de propriedades particulares e da Federação. Antes de alcançar a placa do Alberico, eles dobraram à direita seguindo por uma picada que levava ao canto da Reserva, na confluência com o rio Barra Seca. Fazendo parelha com tantos encontros de propriedades, há um atalho feito pelo Domiciano, que vem do curso inferior do Barra Seca, alcança a nova estrada de extração de madeiras de proprietários particulares e, finalmente, a Estrada Federal, que dá acesso, à esquerda, para a cidade de Linhares e, à direita, para São Mateus.

Mas, voltemos ao João e ao Tuim já caçando dentro da Reserva Biológica. Tuim ia sempre na frente, atirando e errando tudo o que encontrava. O pai apenas se satisfazia vendo o filho divertir-se. Percebendo, o Tuim resolveu fazer uma choça para o pai e foi caçar de esbarro no entorno. Foi quando encontrou um mateiro dormindo em cima de uma empuca: este morreu sem acordar. Mais alguns chorões e combinaram retornar ao barraco.

O Arlindo – que não conseguiu se livrar do tio Luís – também não se importou com a companhia, porque ia muito à frente, caçando normalmente. Tio Luís não conseguia se fazer ouvir e apenas tossia como se estivesse internado numa UTI em estado terminal. Mas isto também não incomodava o Arlindo, que estava a mais de 50 metros na frente e de ouvidos atentos a qualquer barulhinho da mata seca. Em determinado momento, mesmo para um brutamonte insensível como o meu cunhado, doeu o coração.

Esperou pelo velho, mentiu dizendo que ouvira um macuco e o convidou a fazerem uma choça. Entrou no mato e, encontrando no meio de uma empuca, uma cipoada razoável, ajudou o tio Luís a subir. O poleiro ficava baixinho e, ajudado, tio Luís se acomodou. Arlindo foi mais à frente, subiu num murundu e apenas ficou acalmando a consciência, dando-se bom descanso para logo voltar e sair dali. Entre ele e o tio Luís, não media mais que 20 metros.

E não é que o diabo de uma anta sem faro, veio passar exatamente entre os dois? Imediatamente o automático das diabruras do Arlindo foi acionado: Esperando que a anta ficasse bem na direção do tio Luís, correu para cima dela, atirando para cima e gritando: cerca tio, porque a onça é grande!

Desnorteada, a anta tentou fugir pela direção em que a tromba apontava, ou seja, exatamente na moita em que se encontrava o tio Luís. Assustado, tentando se arrumar, ele caiu da cipoada. Nisto, o Arlindo chegou, mas antes que dissesse qualquer coisa, tio Luís, ainda amarelo pelo susto e com um bom risco de aranha-gatos no nariz, desabafou:

– Você não presta mesmo, seu desgraçado!

Apesar de muitas emoções e casos para contar, o dia fora fraco. Mas isto pouco importava porque, na realidade, ninguém estava ali, senão, para descansar dos dias atribulados da cidade. No dia seguinte, já com o mapa na cabeça, Brando, Jayr, o cozinheiro Albertino e eu refizemos a caminhada do João e Tuim. Levamos comida e agasalho para passarmos a noite lá, esquecendo-nos do principal: muita água.

Também não nos saímos bem. Eu só pensava nos macucos, não me importando com outras caças: eu teria de ser o herdeiro das técnicas e das conquistas do meu professor e irmão, Adalho. Já na Reserva Federal, fizemos nosso pequeno abrigo. Deixamos nele o cozinheiro e nos separamos a seguir. Brando e Jayr atiraram umas dez vezes, e abateram chorões, urubas, jacus…. Eu procurei um bom poleiro, alojei-me nele e comecei a piar macucos.

Fiquei até entardecer quando, de repente, a resposta que eu tanto esperava chegou-me. Cheio de emoção, ouvi pisados que vinham exatamente aonde eu me encontrava. Tomei a espingarda e – como estava em ótima posição – mantive-me tranquilo. Foi quando vi o sacana do Jayr se aproximando, não deixando escondido nem o dente siso.

– Esta você ficará me devendo, seu desgraçado – foi tudo o que encontrei para xingá-lo.

Na barraquinha improvisada, jogamos as caças no chão e ninguém praticou a caridade de ajudar o Cordeiro. Vendo o problemão, ele logo sentenciou: se estiverem com a bexiga cheia, não mijem agora. É o único líquido que teremos para combater a bosta dos chororões. E assim foi feito: mijamos nas mãos deles e depois, pingo a pingo da água dos cantis, fomos retirando o mais grosso das mãos do cozinheiro. Este recurso era comum em situações idênticas. À noite, ninguém dormiu um segundo. Cocô de chororão, carrapatos, pernilongos, barulhos estranhos, sede…. Bem, como diriam nossos imigrantes italianos: “notte di cani”.

Um trilhão, quatrocentos e oitenta e nove bilhões, trezentos e oitenta e sete mil e quatrocentos mosquitos disputavam nossas carcaças. As entranhas da bicharada, mais a catinga com que poluímos a mata, logo fez com que aparecessem dezenas de saruês, todos metralhados sem piedade. Aumentamos a fogueira e passamos a noite comendo churrasquinhos de peito de chorões e urus, impregnados com aquele cheirinho das mãos do cozinheiro. Quando o dia clareou, antes de retornar, resolvemos dar uma voltinha para aproveitar a longa viagem. Eu logo procurei um bom lugar e fiquei a piar macucos. O Brando e o Jayr foram caçar de esbarro. O Jayr que estava mais próximo de mim, depois de uma hora retornou.

– Que houve, perguntei?

– Nada, respondeu-me com ar de quem tinha visto uma onça tomando guaraná de canudinho.

– Vamos lá, que houve afinal para você estar com cara de quem viu assombração.

– Os chorões, disse ele. Parecem fantasmas. Corro atrás, vejo-os a 10 metros, busco apenas a posição e eles desaparecem, sem voar. Os chororões daqui são assombrados. Se duvidar, vai aí pela minha picada e confira.

Como nunca acreditei em assombração, aceitei o desafio e acabei descobrindo o segredo. Os chorões, com sede devido à seca de meses e sem nunca terem visto um ser humano, não se assustavam. Paravam e ficavam aguardando que o intruso fosse embora. Aí era só apontar na cabeça e disparar.

A bem da verdade, eu também tinha medo de caçar em lugar proibido, mas não resistia a tentação. Por isso, logo procurei o Jayr para voltarmos à Sooretama. Ele relutou, mas acabou me acompanhando. O caminho incluía a divisa de uma estrada em que, um proprietário particular estava extraindo as madeiras de suas terras.

O guarda florestal vivia ali, vigiando para que não invadissem a Reserva Federal. E tantas curvas fizemos para evitar o imprevisto de encontrá-lo, que exatamente isso acabou acontecendo. Nem o mais eficiente GPS moderno conseguiria encontro mais perfeito.

E o pior é que estávamos todos mascarados numa festa que havíamos feito no barraco para ver quem ficava mais esquisito. O Jayr, com o bigode quadrado, desculpou-se:

– Não ligue para nosso estado estapafúrdio, seu guarda. Foi brincadeira que fizemos ontem lá no barraco para passar o tempo. É claro que tudo se deu devido alguns goles a mais de vinho.

– Sim, mas com bigode quadrado ou sem ele, aqui não é permitido caçar. Afinal de contas, nós somos velhos conhecidos e sei que se já não se formaram, estão bem perto. Pena que ainda não aprenderam a respeitar as leis.

– Bem, fuzilou o Jayr um tanto ofendido, e o senhor não anda caçando cotias por aí? Para o senhor a lei abre exceções?

– Quem lhe disse que ando caçando cotias?

– Ora, há poucos dias o senhor estava logo abaixo de sua morada, caçando debaixo do meu poleiro, espantando, inclusive, um macuco que já piava perto.

– Ah, então você já é velho nestas prevaricações, não é mesmo? Se eu não estivesse com muita pressa, iríamos acertar isso melhor. Por sorte sua, estou com um empregado muito doente e preciso fazer alguma coisa.

Tendo, mesmo sem querer, tocado no ponto fraco do mano, a conversa foi logo tomando outro rumo.

– Que houve com seu funcionário?

– Cortou o pé com o machado e a coisa inflamou demais. Fiz já vários emplastros com querosene, cinza e farinha, mas nada deu resultado.

– Escute-me, o doente pode montar a cavalo?

– Pode, ele é forte como um touro.

– Pois, leve-o ao nosso barraco. Lá temos o Dr. Joel Coelho, velho e renomado médico. Juntos acho que daremos jeito no seu funcionário. Trouxemos muito antibióticos, vermífugos e outros medicamentos de urgência.

– Posso levar meu filho também? Ele está cheio de vermes, opilado e só vive tossindo.

– Claro, pode levar. Estaremos amanhã, até ao meio-dia, aguardando o senhor.

– O menino deve estar com ancilostomíase, segredou-me o Jayr. Estes vermes, depois de circular no sangue, vão às veias e rompem os alvéolos pulmonares, sobem pelos bronquíolos, brônquios, tranqueia e laringe, alcançando a faringe, de onde descem novamente pelo esôfago. Este trajeto causa irritação e coceira na garganta e, então, a pessoa tosse.

– Ah, seu Cassiano, ia me esquecendo: é costume morando-se dentro do mato, as crianças fazerem cocô pelos derredores da casa. Faça uma fossa e os acostume, pelo menos as crianças a fazerem suas necessidades na privada, okey?

– Amanhã mesmo farei isto, pode acreditar. Até amanhã e, boa caçada para hoje, porque, depois de consultar meus doentes, de graça, se eu o pegar aqui outra vez, denunciarei. Ah, bem ali a uns 50 metros desse ipê, tem um macuco que vive piando o dia todo. Disse isso e saiu galopando feliz pela estrada que o levaria para casa.

– Boa está, heim mano? Andamos como uns filhos da puta, exatamente para ir aonde estava o guarda Domiciano. E o que é pior: um guarda gozador.

– Se ele me encher o saco demais, vou aplicar-lhe uma injeção de éter no músculo, você vai ver. Bem, esqueçamos este planejado e divino contratempo e vamos ao trabalho.

Em nossa caminhada, esbarramos com um macuco. Saí na perseguição dele, mas um cipó travou meu sapatão e caí de cara no chão. O macuco voou, não sem antes ser praguejado por mim. Pior fiquei quando vi o estrago na canela e as risadas do mano, que parecia ter presenciado a melhor piada da vida dele. Esperei um pouco e decretei: agora você vai na frente.

Não muito distante, esbarramos num casal de jacus que logo se escondeu em cima de um cipoal. Fomos embaixo e começamos a procurar. O pescoço já estava doendo quando ela voou do esconderijo, indo à uma moita mais distante. Sem desistir, parti para lá. No caminho, esbarrei noutro bicho que saiu correndo. Vi que era grande, mas não consegui definir a espécie. Para variar e não perder a chance, apontei e fiz fogo na direção em que o bicho estava correndo. Chumbado, começou a se debater. Ai, o Jayr correu e deu o tiro de misericórdia. Pegou-o e não perdoou:

– De fato, você é um cagão mesmo! É lugar e jeito de abater um macuco?

Continuamos caminhando. Ouvimos uma cotia roendo um coco e fomos chegando cautelosamente. Estava numa mata limpa e não conseguíamos vê-la. Disse ao mano: fique atento que farei um barulhinho para ela sair do lugar. Fiz o barulho, nada aconteceu. O mano continuou com a espingarda apontada e eu, que estava com a minha a tiracolo foi quem a viu debandando. Também foi para o picuá.

Enquanto isso, o Arlindo já não aguentava mais o peso de tantas caças abatidas. Foram 18 peças, incluindo um macuco e 11 chororões. O resto ele nem contava. E o que é estranho: nem pios ele levava com ele. Tudo era no esbarro. Bom ouvido, muita saúde, disposição e boa pontaria. E a saber que paguei uma fortuna no pio de chororão dele, imaginando que era ele o causador do milagre!

Enfim, chegamos ao último dia, para mim, o triste último dia! O mais animado de todos era o Arlindo que, com sua descoberta, tornara-se, pela primeira vez, campeão de uma caçada. Não havia mais como ninguém o alcançar, a não ser que chegasse ao barraco arrastando duas canguçus. E, muito alegre e espalhafatoso, foi entregando cada um dos participantes: o Tuim come para três caçadores; o Livaldo é o ladrão de doces do barraco; o Jadilson faz o prato na frente de todo mundo e escolhe sempre os melhores pedaços de carne; o Valdemar culpa os inocentes gambás do sumiço das três garrafas de cachaça; o Ricieri mais chora do que caça; o tio Luís enche o saco com os tururins e, finalmente, meu sogro anda pelas picadas, mas nunca consegue nada porque a saliente barriga vai na frente e espanta tudo. Arlindo sacaneava todo mundo, ria de todos, maltratava crianças e velhos. Ele media quase dois metros de altura, era forte e disposto como um touro encolerizado: não dava para competir.

Enquanto isso, a seca mais terrível que assolou a região, continuava. O sol já se mostrava inteiro no horizonte e esse era o nosso último dia: não podíamos desperdiçá-lo. Fomos nos dispersando, ficando o barraco apenas com os dois cozinheiros e o Jayr, que além de ficar à disposição do Domiciano, ainda curtia a joelhada que dera num toco. Não bastasse, papai, Narciso, Ricieri e Valdemar haviam retornado ainda no domingo. Como meu parceiro Jayr andava às turras com sua rótula deslocada numa perseguição tresloucada a algo que corria na frente no dia anterior, misturei-me ao Brando e ao Arlindo. Para variar, fomos em direção ao rio Barra Seca.

A caçada se tornara unicamente por esbarro. Combinamos que o que fosse na frente, tão logo cumprisse sua missão, passaria para a retaguarda e assim fizemos. Quando chegamos ao Barra Seca, traçamos nova estratégia: combinamos um sinal e fomos de “arrastão”. Assim, o pássaro perseguido, se não fosse abatido por quem o perseguia, certamente correria em direção aos outros dois e sempre acabava morto. Nem a cotia e o tatu escaparam de nosso plano. Logo na frente encontramos o Brando defecando de cima de um galho. Disse-nos que o Barra Seca estava logo na frente, porque a bicharada fazia uma barulheira infernal, todos disputando, possivelmente, alguma poça d’água.
Há um fato acontecido na noite do dia anterior, que preciso registrar. É que, nessa tarde, a caboclada vizinha foi ao nosso barraco. Arlindo saiu para o mato e logo voltou com um litro pela metade. O João Gaburro apanhou o galão com 9 litros que, a esta altura, já mostrava apenas cinco dedos de cachaça. Outros mais trouxeram as últimas reservas. Afinal, a caçada terminaria no dia seguinte. E a bebedeira começou. O Antônio Manqueta, morador do lugar, não esqueceu que, apesar da cor negra, seu sangue era italiano. Uma hora depois, a terra se abria e novas criaturas se incarnavam. Gritavam, dançavam e se atracavam em violentas lutas corporais. O caboclo Manqueta, em determinado momento, tirou o facão de um metro de comprimento da bainha e disse:

– Escuta aqui pessoal: eu sô massa negro e voceis, massa biancos. Mas, dentro das veias corre o mesmo sangue vermeio. Sou roliço, sem banda, rolo pra quarqué lado. Voceis pode crê. Aqui não tem sinal de caçadô. Tem seis anos que ninguém bota os pés aqui. Voceis veio. O dotô Arberico mi falô: Antonho, não deixa ninguém caçá aqui. Antonce, voceis podi vê, voceis estão caçando.

– Sim, sr. Antônio, arrefecia o Gaburro amedrontado, indo lá e cá com o corpo, sem tirar os pés do lugar: o que o senhor está nos fazendo, não iremos esquecer.

– Eu sou massa negro e voceis são massa bianco. Eu fui criado com os talhanos e mi parle la parole talhana, manho polenta com formaio e macarronada. Mi soi uma bestia, mas não tenho bandas, sou roliço. O Bastião Caititu, meu sogro, não queria mais me dá a fia dele pra eu casá. Quase nois se mata. A minina era pequena, 4 anos só. Mi soi massa vectho e ela pi nova de mim.
– Não, senhor Antônio. O senhor tem mais idade que ela sim, mas ainda é forte.

– Eu dô conta do recado. Pra mim tanto fais morrê como vivê, capisco?

E, enquanto a cachaça desempenhava sua função funesta, o caboclo, não falando mais coisa com coisa, pulava em volta da fogueira. Eu já havia escolhido a direção para me enfiar mata adentro. A coisa estava ficando insustentável. O diabo do Manqueta, a qualquer momento podia entrar em parafuso, sacar o diabo do facão-espada e investir contra nós.

– Não estou gostando nada disto, disse para o mano. Hoje, acho que teremos de dormir no mato.

– Que nada, interferiu o Brando, do jeito que já está, é só dar um empurrãozinho e tudo ficará bem. Já fui ali furtivamente e tirei a espoleta do canhão portátil dele. O Arlindo, eterno irresponsável, foi lá, abraçou-se com ele e lhe tirou o facão da mão, abraçou-o e começou a dançar uma valsa, executada pelo solista Tuim em sua gaita desafinada. A barulhada continuava. O cozinheiro Cordeiro rolava no chão de tanto rir, porque era, também, um eterno gozador. Não gostava de participar ativamente, porque preferia assimilar cada detalhe para, depois de algum condimento acrescentado, repassar as histórias. Nisto titio interferiu:

– Enquanto este caboclo estiver aqui, não me deitarei.

O Antônio Manqueta era cópia fiel de um mameluco original. Tinha a perna esquerda mais curta, não era muito magro, sendo sua altura, mais ou menos de um metro e sessenta. Os incisivos já não existiam e o resto da arcada, não sei como andava. Usava um bigode falhado e seus cabelos negros e lisos já cobriam as orelhas e ameaçavam escalar a gola da camisa. Nos pés trazia um pedaço de couro cru, atado por cima por fibras têxteis de embireira. A roupa vivia suja e servia para firmar o comprido facão que se arrastava ao chão.
Denominávamos a lâmina, de rabo de tatu. Nos seus olhos negros lia-se algo misterioso que nunca deciframos. Parecia inofensivo e, ao mesmo tempo, capaz de cometer crimes hediondos. Sentia necessidade de provar seu destemor e, somente com a ajuda da cachaça demonstrava isso. O certo é que a coisa estava tomando proporções incontroláveis. Foi quando o Jayr apareceu com nova ideia:

– Vamos lá: peguem um canecão, eu vou apanhar toda a cachaça que houver ainda e vamos dar a ele. Logo o problema estará resolvido.

E aí como bons garçons, começamos a distribuir os “aperitivos” em doses generosas. Não deu outra: em menos de 20 minutos, o Manqueta estava lá, deitado de pernas para cima, baba escorrendo pelos cantos da boca, roncando mais que surucucu em pé de cerca. Viu, disse o Jayr? Acham que estudo medicina só para passar o tempo? Vamos colocar umas ramas por cima dele, arrastá-lo mais próximo da fogueira, porque, senão amanhecerá morto, sem sangue. Olhem a mosquitada que o está devorando!

A esta altura, muitos dos nossos cachaceiros, também já estavam vomitando pelos cantos, berrando como vacas à procura de seus bezerros novos. Jayr pediu ao cozinheiro para passar um café sem açúcar, misturado com vários comprimidos de Melhoral e eles beberam.
Depois de algumas horas, o Manqueta acordou e veio se arrastando para dentro do barraco. Adalho providenciou um archote bem grande e foi levá-lo para casa. Os não bêbados do barraco ficaram com a incumbência de colocar na cama, os que ainda permaneciam caídos pelo mato.

Assim fizemos. O barraco se acalmou, todos nos deitamos e o penúltimo dia foi assim encerrado. Para carregar o Arlindo, precisamos de quatro voluntários: de fato ele era um hipopótamo bem nutrido.

Amanhecendo o dia, o Antônio Manqueta veio com seus animais a fim de transportar o encerado e outros objetos mais pesados, enquanto nós, também com pesadas cargas nas costas, também fomos deixando o barraco. Para trás, duas forças antagônicas se encontravam: a consciência pesada por haver utilizado o sofrimento dos irracionais, imposto pela longa estiagem e, também, a tristeza de ver terminada tantas emoções. É incrível para mim, hoje, e para todos os que nunca caçaram, admitir a cinegética como esporte.

Esta foi uma caçada totalmente atípica: a única em que não choveu durante toda nossa estadia. Sem contar que, segundo informações, o tempo já lá não chovia havia meses.

Já disse anteriormente, que se eu fosse narrar todas as caçadas em que participei, o livro ficaria grande demais. Estou deixando muitas para trás, outras com apenas citações de alguns detalhes. Agora, por exemplo, vou dizer um pouco sobre os últimos dias de 1963, quando Adalho, Jayr, Geraldo Zavariz e eu resolvemos passar alguns dias no velho amigo de sempre: o Paulo Gava. Ele não possuía um palmo de terra, mas sua casa fazia divisa com a Reserva Federal. A condução era a Rural do Geraldo Zavariz.

Vejamos:
Na tarde do dia 26 de dezembro de 1963, curvávamos, o mano e eu, a portinhola que dá acesso ao campo de bocha do Sylvino Magnago, quando esbarramos num jovem alto e moreno, de fala lerda e topete de Elvis Presley. O acontecimento que o acaso proporcionou, logo foi comemorado com abraços e apertos calorosos, com o milenar protocolo de Feliz Natal e próspero ano novo.
– Mas, homem de Deus, que bons ventos o trouxeram aqui? Há tanto tempo não vejo esta carcaça que, sinceramente, estou surpreso.

– Qual nada, estes ossos recobertos de pelancas estão mais firmes que nunca. Hoje à noite comemoraremos a vida com um triunfo (jogo de cartas), até ao amanhecer do dia.

– E amanhã, falou depressa ele, antes que o mano interferisse, reafirmaremos tudo com uma escalada no morro do Eurides Canal.

– Não adianta, observei com pesar. O Canalzinho já passou recibo até do milenar tatu-cavalo que a um século fuçava por lá. Na semana passada ele me disse que já havia pegado seis chororões, um tururim e quatro juritis em suas arapucas. Vocês acham que havia mais que isso lá em cima daquele morro seco? Agora, se concordarem, poderemos ir a Linhares com sua rural. Nós custearemos a gasolina.

– Negócio fechado. Mas, só poderei ficar por lá quatro dias, ou seja, 28, 29, 30 e 31.

– Ótimo, retrucamos em coro.

E, assim se fez.

Pelos céus, densas nuvens se movimentavam como se estivessem planejando traição sigilosa. O solo, ora extremamente molhado, ora apenas úmido, ia ficando para trás. O carro seguia veloz, sem se importar com a pouca estabilidade que lhe oferecia a estrada. Às 10 horas espanávamos nossas roupas, ajustávamos os colarinhos a fim de cumprimentar a família Coelho que, durante largos anos conviveu conosco em Marilândia. Dr. Joel Coelho era médico e amicíssimo de nossa família; sua esposa Maria, uma santa mulher que poderia ser canonizada. Dr. Joel tinha pelo mano Jayr, verdadeira admiração. Talvez pelo fato de o mano estar abraçando a medicina: sua dileta profissão do momento. Apresentava seus cabelos distanciados do frontal já quase uma polegada, o que fazia sério contraste com sua boca delgada e lábios grossos, arredondados e miúdos.

Poder-se-ia defini-lo como uma pessoa feia, embora fosse dotado de um coração à maneira de Tullog (personagem de Cronin em As Chaves do Reino). Falava baixinho, com profundo sotaque nordestino. Em reunião familiar, Joel e família nos lembravam um bando de anus-coroias, de asas abertas, festejando os primeiros raios de sol num amanhecer bem frio.

Ele estava em seu consultório, com estetoscópio ao pescoço e não menos preocupado do que quando militava em nossa Terra Natal, vivendo um sério problema. Seus olhos logo andaram pelo recinto, cheios de impassibilidade. Por fim, estampou um largo sorriso e caminhou para o mano, trocando efusivos abraços:

– Olá, estava mesmo pedindo a Deus que aparecesse, hoje. Dr. José viajou para o Piauí e Dr. Emir, depois que aceitou o cargo de secretário da Educação do governo do estado, raramente dá as caras. Isto sobrecarregou-me de tal forma que mal consigo respirar. Pelo cúmulo do azar, apareceu-me um paciente que, preliminarmente constatei, está com o apêndice na hora de supurar. Terei de operá-lo com urgência, hoje ainda. Vou contar para vocês: um médico apenas para atender clientes de cinco, não é fácil!

Neste ponto, parou para respirar, dando ao Adalho tempo para interferir, valendo-se, mais uma vez, da oportunidade de se definir como prestativo às custas dos outros.

– Se quiser, o Jayr o auxiliará e, amanhã seguiremos para o Paulo Gava para caçar. Aliás, é até melhor assim, pois dona Angelina e as crianças estão aqui para cuidar do impaludismo que contraíram. Chegar lá sem dona Angelina presente, vai ser muito pior.

Dr. Joel sorriu e agradeceu, enquanto o Adalho abria caminho entre nós para retirar as bagagens. Para mim, era uma afronta. Barrei-lhe a passagem:

– Nós iremos hoje, aliás, agora mesmo.

– Ora, deixe de bobagem. Vamos lá: ajude-me a tirar a bagagem.

Fitei-o de frente, com ares de desafio. Pareceu enrubescer. Afastou a mão da porta da Rural, curvando um pouco a perna esquerda em sinal de atenção. Sinceramente, acho que você deve considerar essa sua decisão. Não vê que o Dr. Joel está precisando?

– Você se ofereceu e, pior ainda, indicou o Jayr, que nem sequer foi consultado. Eu lhe serei eternamente grato, porque conseguiu me fazer um bom caçador, mas você tem de perder essa mania de fazer caridade usando os outros. Afinal, o Jayr já está com 28 anos e pode decidir por si, se deve ou não fazer alguma coisa. Ele veio para caçar, são poucos os dias e, agora, você o meteu nesta encrenca. Você deve mudar, Adalho! Afinal, o que foi que tratamos com o Geraldo?

Entusiasmado, eu pretendia continuar minha repreensão, mas o Adalho, sendo mais velho e não esquecendo o que tanto fazia por nós, terminou a conversa:

– Se quiserem ir, podem ir. Eu e o Jayr ficaremos para ajudar o Dr. Joel.

– Desafio aceito, disse eu, enrubescendo até o meio do pescoço.

No outro dia bem cedo – eu ainda me atrevia a discutir com o Adalho, mas ele nem ligava, porque sabia que a última palavra sempre seria a dele –, levantei-me para despertar os demais. Eram apenas duas horas. No entanto tínhamos que preparar as mochilas e entrar na floresta ainda antes que o dia amanhecesse. Enquanto um acendia o fogo e preparava o café, os demais se ocupavam em embrulhar as espingardas e a organizar os pios e cartuchos.

Felizmente, a manhã era cálida e seca. Metemo-nos por sob os seis fios de arame farpado que ladeiam as dezenas de quilômetros das matas da União e penetramos, na escuridão, por entre os arbustos seculares. Um real vigor de aventura nos incitava a mergulhar debaixo das moitas e correr o risco de sermos picados por patiobas ou uma cobra coral qualquer. Felizmente, o dia clareou de vez, tornando-nos cônscio de que estávamos à beira de um belíssimo nativo de mais de um quilômetro quadrado. Mesmo com a presença da luz, foi-nos difícil encontrar a antiga picada. Um após o outro, qual bando de urubas em êxodo, íamos pelos sinais de nossa última investida por lá. Notando que o mano Jayr mostrava-se muito abatido, e como por empatia sempre sabíamos o que o outro estava sentindo, quis saber o motivo.
– Não é nada não. Estou apenas pensando no pobre infeliz de ontem.

– Mas, o que houve com ele? Você e o Dr. Joel não se saíram bem?

– Não, não é bem isso. O pobre infeliz estava todo podre: peritonite adiantada e nada de apendicite. Mal costuramos a abertura que lhe fizemos, ele cravou os olhos confiantes em mim e disse: sinto-me melhor agora, doutor. Graças a Deus por tê-lo aqui nesta hora em que eu tanto estava precisando.

– Acho que, amanhã, ele terá a oportunidade de agradecer pessoalmente a Deus.

– É de fato lamentável, principalmente para uma pessoa sensível como você.

– Com certeza, suspirou aliviado, como se algo muito pesado tivesse lhe caído dos ombros. No mesmo instante franziu a testa para espantar um pernilongo que lhe pousara na ponta do nariz.

– Desgraçado, com tantos stchec-stchecs por aí, escolhem logo meu narigão?

– Isto aqui não é nada. Ontem, no finalzinho da tarde, fui com o Geraldo ali no aceiro da mata do Paulo, no mesmo lugar em que Adalho apanhou os macuquinhos que hoje vivem em Marilândia, no viveiro de papai. Como esquecemos o repelente, tivemos de voltar a passos largos.

– E o Geraldo, que achou dele?
– Um grande companheiro, mas inimigo de si mesmo. Sinceramente, nunca estive com alguém mais distraído, ou relaxado mesmo, do que ele. Pelo amor de Deus: ele esquece tudo, larga as coisas pelo chão, quebra tudo… Bem, ontem mesmo chegou de volta sem o cão esquerdo da espingarda do pai dele.

…..
Agora, eu gostaria de narrar um fato, não digo inusitado, porque, em se tratando do mano Jayr, era o mais comum das caçadas. É que ele e eu descobrimos um macuco, desses que, de fato estavam dispostos a defender o território; alojamo-nos: eu, em cima de um poleiro; Jayr, numa catana hermética. E começamos o trabalho:

Notei, então, que a ave se deslocava para a direita, atendendo ao piado, vindo inteiramente de frente. Ergui os olhos e empunhei a Rossi. Estava já no ponto de tiro. Mas, o diabo, com precisão cirúrgica, havia preparado a troça, acionando o automático stchec-stchec e, desta vez, com um bando de pica-paus avinhados como guarda-costas. Cinco pica-paus descobriram o Jayr, dentro da catana escura, toda camuflada por fora, e deram o grito. Depois de insuportável algazarra, o mano resolveu enxotá-los: aí foi o fim.

O maestro da banda que ainda não empunhara a batuta, tomou a frente de seus soldados. E foram tantos os coaches, criiics e stchec-stchecs que, até hoje, nunca mais se teve notícia de um macuco por aquelas bandas. Ao acampamento, chegamos com um caxinguelê e três pica-paus.

No entanto, o Geraldo, agora com apenas um cano da espingarda funcionando, chegou com um macuco. Contou que estava caminhando à cata de um tucano, quando resolveu olhar para o chão. Empinado, batendo o pé, lá estava o galináceo. No barraco, ele alisava as penas e comentava sem parar: valeu a viagem.

Com a conquista de um macuco ele animou-se a nos acompanhar ao rio Barra Seca. Depois de algumas horas de caminhada, chegamos à margem, eu diria, do grande igapó. Apesar de avisado que não podia atirar, senão em macucos ou animais que valessem a pena, a primeira ação do Geraldo foi disparar um tiro com pólvora comum em um tucano, que deve ter sido ouvido pelos guardas florestais até na sede do Jaguaré. E nem adiantava recriminá-lo: ele dava sua costumeira risadinha e continuava a fazer o mesmo:
.
– Atirou numa onça, Geraldo?

– Não, foi num tucano.

– Pelo amor de Deus, Geraldo, dar um tiro deste, num tucano, aqui nas barbas dos guardas florestais?

– É, esqueci.

Nisto, pia um macuco. Geraldo logo sentenciou: piou ali, e apontou o dedo em determinada direção. Não, retruquei, foi aqui. Fizemos duas choças e começamos a emitir piados. Nisto, ouço um grito:

– Ôôôôôi?

– Quem será, pensei? Isto é pior que os coaches, criiics e stchec-stchecs de ontem. Só espero que já não sejam os agentes florestais, atraídos pelo tiro do Geraldo no tucano. Na insegurança, não respondi. Mas, os gritos continuavam:

– Ôôôôôi?

Saí da minha choça e apurei a direção: era o Geraldo. Não podia ser outra pessoa. Enfim, melhor que os guardas! Fui até ele e perguntei:

– Que aconteceu?

– Quero o Repelex. Não aguento mais tantos mosquitos.

– Mas, o macuco já estava em cima. Quase na hora de ser morto.

– Ele volta?

– Talvez no próximo milênio, disse a ele. Vamos retornar, porque a caminhada é longa.

Foi então que ele se lembrou que estava desarmado, porque o cartucho em que atirara no tucano havia engastalhado na câmera úmida da espingarda e não saía. Já que agora, podíamos bagunçar à vontade, lutamos com uma vareta de aricanga e, tanto batemos que acabamos conseguindo. O cartucho saiu aos pedacinhos. Devia ter sido carregado a mando de Gerônimo de Albuquerque, durante a invasão holandesa. Os carregos da espingarda do Geraldo continham meio cartucho de pólvora comum e uns 5 chumbos cigano, ou 6, se o carregador não fosse bom de matemática. Ele, em sua proverbial risadinha sarcástica, forçou a entrada de outro cartucho e finalizou:
– Agora, até o próximo tucano.

Contudo, era um companheiro e tanto, apenas nunca havia entrado numa floresta para caçar. Ele, com pios, espingarda e demais equipamentos emprestados, era uma verdadeira ameaça a quem o acompanhasse. E como se não fosse ele não estaríamos ali, tentamos minimizar os contratempos.

Noutro macuco que piava e demonstrava que chegaria, deixei-o num bom lugar e me afastei uns 20 metros. Para chegar a mim, ele teria de passar pelo Geraldo. E, tudo indicava que o galináceo iria chegar.

De repente, ouço um barulho estranho atrás de meu esconderijo. Já desconfiado, apenas constatei o óbvio: era o Geraldo. Sem mais opção, deixei-o comigo, mas ele não parava de assoprar tudo o que era pio que apanhara emprestado e, da maneira mais horrível que se possa imaginar. Acredito não ser preciso narrar o fim deste episódio. Então, para satisfazê-lo, apenas concluí:

– O malandro é muito vivo. Aliás, está aí exatamente por ser velhaco e esperto. Não atender esses seus piados perfeitos, só mesmo sendo um bicho muito escolado.

A companhia do Geraldo assemelhou-se aos acontecimentos dolorosos da vida: são os piores, mas os mais inesquecíveis. Mesmo assim matamos 3 macucos, 2 jaós, 3 chorões, 3 urubas, 6 tururins, 2 lagartos, um pombo e UM TUCANO, aquele. Um resultado fenomenal, para quem contava com o Geraldo a tiracolo!

FÉRIAS DE JULHO DE 1964

Caçada na fazenda do Dr. Alberico (latifundiário de Vitória – ES) no Rancho Alto, nas férias de julho do ano de 1964. Duração: oito dias de mata. Componentes: Antônio, Dolmino, Hildebrando, Jayr, Livaldo, Jadilson, Joelson e Luís Fregona; Arlindo Falqueto, Eleotério Lorenzoni, Egídio Mariani, Guido e Ermando Caliman, Guerino Bravim, João e Tuim Gaburro, e, como cozinheiros, nosso velho chef Albertino Cordeiro e seu auxiliar Hernesto Zavariz, pai do Geraldo, aquele que atirou num tucano com um cartucho carregado com pólvora comum, nas barbas dos guardas florestais. Condução: carro do João Gaburro. Organizador: Livaldo Fregona. Aves e animais abatidos: 94.
Para não deixar esta caçada apenas em estatística, falarei de um fato inusitado em que, mesmo caçando em toda oportunidade, até então não havia acontecido com a gente.

Brando, Jayr e eu, em determinada parte da mata, começamos a ouvir dezenas de piados de macucos. Como era a primeira vez que nos deparávamos com tal comportamento, ficamos assustados.

Mal chegamos mais próximo, logo dois machos, como galos de briga, passaram por nós, com os pescoços trançados e piando baixinho incessantemente.

Tentamos alvejá-los, mas eles não nos deram chance para atirar. O Cranuto (Dolmino) estava no meio da confusão, viu diversos macucos correndo, piando, brigando, chororocando e somente quando anoiteceu abateu um no poleiro. Veio a nós lívido de emoção, rindo sozinho, feliz da vida. E nós, sem fingimento, participamos de sua alegria. Não acredito se me disserem que algum caçador não se emocionou ao abater seu primeiro macuco!

Aqui vou encerrar as descrições originais e apenas citar os casos principais de minhas caçadas, principalmente no município de Linhares. Não há como contar os detalhes diários, pelo motivo já mencionado. Se alguém desejar ler, os cadernos ficarão com minha filha Kizy, que os guardará pelo tempo que desejar. Bom seria que ela os queimasse logo, porque, pelos estragos que causei à Natureza, é bem possível que retirem meus ossos da sepultura, algemem um a outro e depositem num ossuário de segurança máxima.

Durante alguns anos, Arlindo, meu cunhado, e eu, caçamos na Reserva Federal, praticamente todos as semanas, indo sempre na madrugada (13 horas) da sexta-feira e retornando aos domingos (21 horas). Nesses anos tivemos a ousadia, até, de caçar a 100 metros da guarita dos agentes florestais. Hoje não consigo entender a coragem, ou a irresponsabilidade para tanto atrevimento. Para se ter uma ideia, a gente chamava o macuco e o deixava rondando a choça até que algum caminhão chegasse para carimbar a nota. Como os caminhoneiros têm o hábito de não desligar os motores de seus velhos caminhões já sem os canos de escapamento, e de conversar alto, nós, que caçávamos de flobé calibre 22, balas simples para diminuir o eco, atirávamos. A incursão mais desastrosa para os macucos – e mais humilhante para os guardas florestais – aconteceu no dia 15 de setembro de 1963.

Nesse tempo – sem desfazer de ninguém – podíamos nos considerar os mais astutos e irresponsáveis caçadores da região. Um completava o outro: meu cunhado conseguia localizar e achar quase todos os macucos que piavam no poleiro à noite, e eu, um exímio atirador: não me lembro de ter perdido nenhum. Nesses poucos anos a que me refiro, praticamente exterminamos mais de 80% dos galináceos que viviam no entorno da guarita dos agentes florestais.

Para abastecer a guarita, os guardas construíram uma casinha dentro da mata, a menos de 200 metros. Levaram energia, adaptaram bombas, instalaram canos, registros, torneiras e água encanada para a guarita. Arlindo e eu concordamos que não deixaríamos de caçar ali, porque sempre fingíamos urinar nas imediações e ouvíamos a macucada fazendo a festa.

Brando foi nos levar de Fuscão. Fingindo seguir em viagem, passamos pela guarita, constatamos que a rapaziada estava dormindo, atravessamos o rio Barra Seca, fomos até o alto, viramos o Fuscão, retornamos, confirmamos que dormiam e, logo na frente o Brando parou o carro, deixou-o ligado e fingiu examinar os pneus. A esta altura, Arlindo e eu já havíamos entrado na mata. O Brando acionou o carro, bufou dizendo que éramos loucos, e retornou a Linhares.
Arlindo e eu descemos, encontramos a casa, sentamo-nos na mureta e eis que, bem por cima, estava um macuco dormindo. Esperamos um caminhão passar e derrubei o primeiro; seguimos em frente. Antes de clarear, matamos mais dois no poleiro, sempre com a ajuda de velhos e barulhentos caminhões. Em suma, caçando o resto do dia, consegui abater sete macucos e o Arlindo, quatro. O último foi abatido quando já esperávamos o Fuscão chegar para nos apanhar. Por incúria, um macuco piou quase no aceiro da mata. Arlindo logo o achou. Mas estava tão próximo que a gente via os carros passarem na estrada.

Esperamos um caminhão barulhento passar e atiramos, digamos, tranquilamente. Ao pensar e examinar o estrago, porque, além dos 11 macucos mortos, ainda havia mais uma dezena de chorões, tururins, jacus e outros bichos, Arlindo e eu ficamos “meio” arrependidos. Então, pedi a Deus que os guardas não nos pegassem nesse dia: seria prisão perpétua. Não poderia esquecer, também, que ainda com a noite prevalecendo, comigo à frente fazendo a picada, nos deparamos com grande empuca. Olhei dos lados e concluí que romper a moita era a melhor opção. Ela era tão fechada que, por baixo, o sol não entrava: estava bem limpa e quase não era necessário agacharmos. Arlindo vinha na retaguarda, colado comigo.

De repente, ele agarrou meu fundilho, gritou “olha que cobra”, e me puxou para trás com tudo o que tinha de força: e ele a tinha com sobra. Como eu estivesse com o facão na mão direita e a flobé na mão esquerda, para não cair de perna para o ar, joguei as mãos para trás no intuito de agarrar alguma coisa para não cair. Não deu outra: fui com a coronha da flobé na testa do Arlindo, nocauteando-o.

Enquanto isso, a surucucu, vendo aqueles bichos malucos, já estava a um metro de altura, pronta para se defender. Iria me picar exatamente no rosto. Fiquei tão nervoso que precisei dar cinco tiros para acertar-lhe a cabeça, apesar da distância de um metro. Arlindo continuava sentado, com um galo do tamanho de um ovo de galinha na testa. Terminada a batalha, ele se ergueu e sentenciou:

– Pode acreditar, se encontrar outra nas mesmas condições, não avisarei!

A verdade é que, nessas caçadas arriscadas, somente dois loucos como Arlindo e eu tinham coragem para empreender. Nessa árdua e perigosa missão de vasculhar toda Reserva Biológica, um dia entramos, pela primeira vez, na estrada dos guardas que margeava o riacho Quirino. Não conhecíamos nada, mas a noite nos protegia.

Como sempre, meu sobrinho nos levou, deixou-nos no lugar, confirmou o dia e a hora de nos buscar, virou o carro ali mesmo e retornou. A madrugada era convidativa. Bem à vontade, fomos descendo pela estrada. De repente, uma pequena derrubada, com uma casa na beira do caminho. Paramos, pensamos…. E agora? Se o guarda possuísse cachorro, certamente seríamos flagrados. Bem, disse o Arlindo, que não tinha medo de nada: se tiver cachorro, a gente corre para dentro da mata e o guarda pensará que era um bicho qualquer. Com certeza, havendo cachorro, isso acontece todas as noites. Veja como a estrada está marcada de pisadas de antas, veados e tudo quanto é bicho, menos de cachorro. O problema e se o diabo do guarda estiver acordado.

– E então?
– Então, vamos em frente!

E assim fizemos. Bem no cantinho da estrada com o terreiro, havia um macuco agachado no chão. Com certeza ele fora espantado do poleiro e pousou ali. Atirar, nem pensar. Enquanto pensávamos, o macuco levantou voo e pousou uns 20 metros dentro da própria estrada, num lugar em que ela estava mais suja.

– Que merda, vociferou o Arlindo. Como faremos para não dispensar este presente?

– Já que não há como laçá-lo, vamos apelar para a caçada de nossos primitivos antecessores. Vamos cortar uma vara com uns 4 ou 5 metros de comprimento, grossura de um cabo de vassoura. Vamos, depois, de ponta de pé, até perto dele, numa distância em que a vara o alcance. Tendo-o visto, eu meto minha lanterna de seis pilhas nos olhos dele, você se prepara, eu apago minha lanterna e você faça o que tem de fazer.

Digo, apenas, que meu cunhado era, simplesmente, o cara. Enfiamos o macuco na sacola e seguimos a estrada. Bem à frente, muitos jaós piando, bem na beirinha. Logo sentenciei:

– Vou ficar por aqui umas duas horas. Vou subir naquele pau ali, disse apontando um razoável poleiro à beira da estrada.

– Bem, então vou subir aqui mesmo. Irei na frente, deixando o sinal e você depois me segue até me encontrar no chapadão. Estarei lá em cima piando macuco e chorão. De lá, seguindo a direção da bússola, iremos, sem picada, até encontrar a BR. Mesmo que os guardas percebam nossa presença, sem picada não nos acharão. Perto da hora de sair, a gente joga um rolinho de cipó na estrada, conforme combinamos com o motorista e o carro nos apanha. Tudo certo?

– Certíssimo.

Subi no poleiro e percebi que não deixaria um jaó vivo naquela região: enxergava a mais de 30 metros da mata em volta e os jaós piavam sem parar. Logo abati um, quando comecei a ouvir piados de jaós demais… e, péssimos piados.

Antenei-me e parei de piar, olhando para a estrada. Não deu outra: cinco guardas vinham pela estrada e iriam passar quase debaixo do meu poleiro. Não havia tempo para qualquer estratégia que não fosse sair urgentemente do poleiro e subir correndo morro acima.

Assim o fiz, deixando, inclusive, o jaó morto lá. Com o pesado picuá às costas, subi correndo como louco, morro acima, confiando, então, em minha mocidade e na forma atlética. Quando alcancei o chapadão, tive um princípio de desmaio. Joguei-me ao chão, respirei fundo, acalmei-me quanto pude, tomei bons goles de água e fiquei vigilante.

Não ouvi mais nada e, então, procurei os sinais do Arlindo, baseado em seus piados que eu já ouvia. Logo encontrei e parti para lá, agora, sem tanta pressa. Próximo, dei o sinal. Ele não respondeu porque o macuco estava próximo. Insisti e fui me aproximando, porque a situação requeria. Vi a choça, assoviei. Ele respondeu. Eu encostei.

– Que foi? Estava com o macuco aqui pertinho.

– Os guardas quase me pegaram. Estão em cinco bem ali embaixo na estrada. Vamos dar o fora daqui o quanto antes.

– Sem dúvida, confirmou o Arlindo. Logo juntou suas coisas e saiu da choça.

Eu, tirei a bússola e confirmei a direção. Quando ia sair, meu cunhado, sempre com sague frio e muito sacana, observou: espere aí um pouquinho. Vou alongar a picada exatamente na direção contrária em que iremos. Se eles vierem aqui, ficarão desnorteados e nós, caçando tranquilo. Depois, riu e eu o acompanhei.

Caçamos o dia todo, matamos muita caça e já as 17 horas podíamos ouvir o barulho dos carros passando pela BR. Seria o último lugar em que podíamos ainda atirar sem correr grande risco dos estampidos serem ouvidos. Como já estivéssemos satisfeitos, fomos logo para perto da BR. Antes de alcançá-la, encontramos um arrastão quase paralelo à estrada, feito pela Companhia que estava asfaltando a BR. O arrastão distava, no máximo 30 metros da estrada.

– Bem, esperemos aqui até faltarem 15 minutos, disse eu.

Arlindo subiu um pouco pelo arrastão e se esparramou no chão sem nem olhar o que havia embaixo. Se houvesse, com certeza o problema seria de quem tivesse invadido o lugar em que ele escolheu para tirar uma soneca.

Vendo um murundu convidativo, subi nele e fiquei como um suricato, inteiramente antenado. Afinal, “quem foi mordido por cobra, tem medo de minhoca”, não é assim que reza o ditado? Logo abaixo a uns 20 metros, havia um grosso pau caído e bem podre, atravessando o arrastão feito pela companhia de terraplenagem. Quando em vez, eu emitia um piado de macuco. Seria, apenas, para não perder o costume. Como na retaguarda havia o Arlindo, eu olhava mais para a parte de baixo, que já se inclinava para o igarapé Quirino.

Foi quando vi uma enorme pintada pular em cima do pau, espreguiçar-se e farejar o ar. Aí era demais: não dava para esperar nenhum carro barulhento passar. Empunhei minha flobé, fiz pontaria na cabeça, conferi e puxei o gatilho. A onça apenas tomou um susto, virou a cara para mim e continuou extática. Não era possível! Como a flobé estava com 9 balas no pente, refiz a pontaria, agora no pescoço. Espirei fundo e novamente disparei. Atingida, a onça deu um salto mortal, caiu em cima do lugar em que se encontrava, depois arrancou mata adentro. Arlindo levantou e veio a mim:

– Que está fazendo? Perdeu o medo também?

– Cara, era uma canguçu enorme, valia a cadeia. Vamos lá olhar.

Estavam lá as unhadas de desespero, os pedaços de casca arrancados do pau e, logo embaixo, manchas de sangue.

– Caramba, você acertou mesmo, mas, quem ousaria entrar pela mata já quase escura para encontrar uma pintada ferida?

– Eu não, apesar de ter certeza de que ela está agonizando por aí. Todo caçador sabe que não se deve procurar onça ferida.

– Pois é, em seu estado mais agressivo. Ela já não tem mais nada a perder e, como dizem, a “vingança dela poderá ser maligna”. Afinal, você come onça? Nem eu. Vamos para a estrada que já está na hora.

Jogamos o rolo de cipó no meio da estrada. Cinco minutos depois, vimos o carro vindo. Deu uma triscada na buzina, avisando que havia percebido o sinal. Foi bem à frente, além da guarita, retornou e tudo foi automático: parou em cima do rolinho de cipó, abriu a porta traseira, pulou ao volante e arrancou célere. Quando saímos da Reserva, meu cunhado e eu nos cumprimentamos com aquele toque de mãos fechadas que os adolescentes usam para comemorar, e ainda tivemos a ousadia de complementar: “Cum nois ninguém pode!”

…………………………….

Não posso deixar de lembrar, aqui, uma caçada que fizemos à direita do rio Barra Seca, no dia 28 de janeiro de 1973. Sabem quem constava do grupo? Nada menos que o concunhado Jonas Venturi. Ele não matou nada, mas foi quem mais atirou. Não justificou ele errar tanto, já que, à época, ele era militar em plena forma.

Um outro que enfrentou com a gente uma caçada no Porteirão (assim chamávamos uma estrada de vigilância que havia entre a sede dos agentes florestais e a então vila de Jaguaré). Chamava-se José Ferraz, tido como homem valente e perigoso. Ele possuía uma carabina de grande precisão, munida de luneta, com o histórico de já ter sido responsável por um homicídio. Essa arma foi comprada pelo meu cunhado Arlindo, que nunca se desfez dela enquanto pôde caçar. Nesse dia em que caçou conosco, fez questão de vir na frente pela estrada, sozinho, porque podia esbarrar com os guardas e ele se responsabilizava em abrir caminho na marra. Morrendo de medo, viemos atrás, rezando até sair de lá. Ufa!…

Agora, em Rondônia:
No dia 3 de agosto de 1974, num bonito sábado de sol, Arlindo, Osvaldo Guimarães, Brando, Euzébio, Livaldo e o Ermínio Valis (cozinheiro), partiram de Linhares com destino ao rio Pimenta Bueno, no estado de Rondônia. Partimos de Linhares às 3 horas e fomos pernoitar em Uberaba, perfazendo uma distância de 1.114 KM. A Kombi do Euzébio estava ótima, nova, o que favoreceu nossa viagem. No segundo dia, fomos dormir em Santa Rita do Araguaia, depois de percorrer mais 796 KM. No terceiro dia chegamos à Vilhena, em Rondônia, perfazendo 1.294 KM. Andamos a noite inteira e empurramos a Kombi por 10 KM, trecho de areia que estava sendo arrumado pelo exército brasileiro, bem na entrada para São Luís de Cáceres. Em Vilhena abastecemos a Kombi e fomos seguindo por uma estrada de madeireiros, abandonada havia muitos anos.

A Kombi foi em marcha primeira, o tempo todo. Havia muitos valões, e todos sem as pontes. Tivemos de fazê-las com varões, arriscando cair e nos criar um problema muito pior. A gasolina acabou antes de alcançarmos o rio. Carretel disse que já estávamos próximo e que ele tinha gasolina na beira do rio. Foi buscar, mas a gasolina era com óleo dois tempos, própria para seus barcos de aluguel.

A Kombi, aos solavancos, conseguiu chegar às margens do rio Pimenta Bueno. Era nosso quarto dia de viagem. Carretel – cujo apelido atestava seu comportamento enrolado – disse que o rio tinha muito peixe e que as matas eram ricas em pássaros e bichos. Bem, devia ser mesmo, mas nunca ficamos sabendo a razão de não ouvir, nem ver nada ali no lugar em que nos encontrávamos. Aproveitando um emissário que passava pelo rio, mandamos um recado para o Carretel, dizendo que precisávamos falar com ele.

Como recebia para enrolar caçadores, logo apareceu. Ouviu a história e logo se propôs resolver o impasse: nos levaria rio abaixo mais meio-dia de canoa a motor e disto, nunca mais iríamos esquecer. Nem Isaías profetizou tão bem! Deixamos a Kombi lá no meio do mato, pegamos o barco e descemos. Lá chegando, ele até nos ajudou a descarregar a bagulhada, combinou que voltaria na próxima semana para nos apanhar, acionou o motor e desapareceu rio acima. Lá ficamos nós: sem soro antiofídico, sem antibióticos, sujeitos a morrermos como cães sem dono, em plena floresta às margens do rio Pimenta Bueno. A estadia foi a mais inesquecível de minha vida! Na primeira noite, duas antas se desentenderam e, não sabendo que havia intrusos no território, adentraram em nosso acampamento e carregaram a barraca do Osvaldo Guimarães para dentro do rio Pimenta Bueno, com ele dentro. Foi uma gritaria infernal, porque muitos imaginaram que o Osvaldo tivesse sido atacado por onças famintas, dispostas a petiscos capixabas.
Bem… ali, de fato, havia muito peixe: a gente os via por sobre a água e eram enormes, mas, ninguém trouxera anzol. Mutuns, jacutingas, jacus, todo tipo de animal de pelo, milhares de psitacídeos, viviam num barreiro bem próximo do nosso acampamento, mas ninguém se interessava, porque havíamos ido lá para caçar tonas e, essas, ninguém vira nem ouvira até aquele momento.

Então, Arlindo e eu resolvemos desencantar. Marcamos para o dia seguinte, uma bandeira que até Antônio Tavares assinaria: iríamos caminhar meio-dia mata adentro para especular. E lá fomos nós. Nada de azulonas. Continuamos, até que o Quoque (Arlindo) resolveu adubar boa área de terras.

Fui mais à frente e, encontrando um toco na beira de um igarapé, subi nele e fiquei esperando. De repente, ele espantou uma anta sapateira que veio quebrando tudo até parar no pé do toco em que eu me encontrava em cima. Sem pensar, baixei a espingarda e fiz um buraco na testa da pobrezinha, aliás, pobretona. Mas, ela era grande e forte. Saiu cambaleando, caiu dentro do igarapé abaixo, prendeu-se entre as raízes de uma centenária embaúba e ali, acabou de morrer. Logo o Arlindo chegou:

– Não vai me dizer que você atirou naquela anta?

– Não, nem pensar. Foi numa azulona. Olhe ela lá dentro do igarapé.

– Espero que nem lhe passe pela cabeça, eu ajudar você a cuidar daquela imundícia.

– Você não vai fazer isso comigo, vai?

– Ah, só vou!

– Para carregar a carne dela, precisaríamos de todos os que ficaram no barraco.

– Não, vamos apenas aproveitar o filé e alguns nacos de carne maciça para um churrasco.

– E como vamos tirá-la de dentro da água?

– A gente tira o couro ali dentro mesmo.

Curvados sob o peso de mais de 40 quilos nas costas, conseguimos chegar ao barraco. Passamos o dia seguinte na rede: não conseguíamos nem andar. E foi assim que o Arlindo bolou um anzol de pau, algo tipo engasgo para jacarés, e conseguiu pegar um surubim de 35 quilos. Bem, macuco, somente eu mataria um, mas carne tivemos com sobra até o fim de nossa caçada.

No dia exato, o Carretel chegou. Subimos o rio até à Kombi. Tentamos acioná-la, mas a bateria havia descarregado.

O lugar era horrível para que fizéssemos o motor pegar no empurrão, principalmente com gasolina dois tempos. Empurramos a Kombi bem no alto da rampa, raspamos as folhas molhadas da estrada e empurramos o carro morro abaixo, em direção ao rio. Já com a dianteira dentro da água, ele pegou. Enfim, conseguimos. E, pipocando como metralhadora, conseguimos sair. É que as pontes já estavam feitas e a estrada mais conhecida.

E aí, gostaria de ir lá dar uma caçadinha também?

AGORA, NO MATO-GROSSO
Não satisfeitos – ou já cansados de caçar no Espírito Santo, Bahia e Pará, tendo já experiência em Rondônia, resolvemos ir além: caçar no estado do Mato Grosso. Tudo começou quando o Anacleto Sasso, comprador de jacarandá, passou por Linhares para ver um lote dos Calimans. Conversa vai, conversa vem: caçada marcada e logo organizada: iríamos em cinco: Guido e Elpídio Caliman, Anacleto Sasso, Adalho e Livaldo Fregona. A condução seria um Rural Willis, novinho, ainda sem placa, de propriedade dos Calimans. O dia da saída foi estabelecido: 10 de agosto de 1971 e, nesse dia, partimos. Para chegar ao lugar planejado, passamos por 109 cidades (sem contar com as que víamos um pouco além da estrada); percorremos vários estados: Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, Distrito Federal, Mato Grosso, São Paulo, Rio de Janeiro (Guanabara).

Nosso roteiro: saímos no dia 31 de agosto, num bonito dia de sol. A partida se deu às 3h30min, de Linhares, no Espírito Santo.

E aí começamos: João Neiva, Ibiraçu, Fundão, Serra, Vitória, Iconha, Safra, São José das Torres, rio Itabapoana, Itaperuna, Muriaé (entre essas duas cidades deixamos o Espírito Santo e adentramos no canto norte do estado do Rio de Janeiro). Logo após, deixamos também este estado e alcançamos Minas Gerais. Eram 12h30min: Realeza, Santo Amaro (rio Casca), Ponte Nova, Mariana, Ouro Preto, Cachoeira do Campo, Itabirito e Belo Horizonte, lugar em que pernoitamos. Às 5h50min recomeçamos a viagem: Matozinhos, Presidente de Morais, Sete Lagoas (aqui assistimos à missa e comungamos). Belvedere (cruzamento para Curvelo), Aliança (vimos o primeiro veado à margem da estrada). Ali almoçamos enquanto, no posto, era trocado o óleo do cárter da Rural. Então, a viagem prosseguiu com Elpídio ao volante, às 11h25min. Rio São Francisco, (Represa Três Marias), João Pinheiro, rio Paracatu, Paracatu. Cinquenta quilômetros adiante, entramos no estado de Goiás: Cristalina às 18h30min com placa indicando Brasília a 60 KM. Distrito Federal e às 19h10min, em Brasília. Ali dormimos. Bem cedo deixamos o Distrito Federal e continuamos: Anápolis, às 5h05min da segunda-feira, Alexandrina, Anápolis, com seus arrozais, bananas e cafezais; vila de Santa Teresa, Goiânia, onde mandamos lubrificar, lavar e abastecer o carro. Vera Cruz, Rio Verde e, 30 KM depois, começaram a surgir as primeiras seriemas e veados. Jataí, agora com profusão de animais pela orla da estrada. Portelândia, Santa Rita do Araguaia, rio Araguaia (divisa de estados). Alto Araguaia (primeira cidade mato-grossense). Ali reabastecemos o carro, jantamos e rumamos para Alto Garças, lá chegando às 21h40min e pernoitando. Rondonópolis, Teresópolis, onde já ouvíamos jaós do campo piando em todo lugar em que se parasse. Disseram que até escassas azulonas ainda existiam por ali. Fátima, Jaciara (cidade próxima ao Pantanal mato-grossense). Cuiabá às 10h30min, Jangada, Barra do Bugres, Nova Olímpia e, finalmente, a fazenda do Piovezan, às 18h30min….. Dormimos ali e, no dia seguinte, rumamos para o local da caçada, às margens do rio Septubinha. Consultamos o velocímetro: 3.290 KM haviam ficado para trás.

Era quarta-feira e a tarde estava bonita. Começamos, imediatamente – e de qualquer jeito – a construção de nosso barraco. Não caprichamos porque, nessa época, por lá, não chove. Era incrível a presença de vida em nosso entorno: eram bandos de pássaros pequenos e grandes, inhambus piando por todos os lados, macacos em cada dossel que se visualizasse. O rio apresentava águas cristalinas, com peixes que, nos pareciam, podiam ser apanhados com as mãos. Enquanto se arrumavam as coisas, o Adalho, chefe da caçada, designou-me para tentar alguma carne para o jantar. Saí menos de 50 metros do barraco, ainda ouvindo o falatório dos companheiros. Subi numa cipoada convidativa e, em menos de 50 minutos cheguei com duas azulonas na mão.

Nas anotações primárias, eu escrevi: 31 abastecimentos, 19 (almoços e jantares), 7 pernoites. Visitas e fatos inesquecíveis dessa caçada: Gruta de Maquiné, cidade de Brasília, canto do uirapuru, aldeia dos bugres, a caçada do Elpídio Caliman sem a espingarda, a quantidade de macucos abatidos, os campos gerais repletos de perdizes e codornas, os sapos que andam e não pulam, o roubo dos jatobás, a girafa do João Xavier, a bicharada gigante, o pio de porcos do Sasso, os veados do Elpídio Caliman, a quantidade de abelhas, o piado das choronas, aves até então desconhecidas por nós, a travessia da Rural por dentro de leito do rio Paraguai, e o dia em que matei 6 macucos em cima de um único poleiro.

Outro fato curioso foi o título de campeão. Ele, em nossas caçadas, era dado, tanto em pontos em como peças abatidas. Na noite que antecedia nossa volta, eu estava na frente e parecia não haver mais qualquer concorrente. Quase todos estavam com suas bagagens arrumadas, porque sairíamos pela manhã do dia seguinte. Mas, o Anacleto Sasso precisou sair para aliviar sua dor de barriga. Como a mata era imprevisível e perigosa, ninguém dava um passo fora do barraco, sem empunhar a espingarda. E foi assim que o Sasso apanhou a dele e, com o auxílio da lanterna, distanciou-se um pouco do barraco. Voltou arrastando uma jaguatirica, cujos pontos o tornaram campeão em pontos.

Observações:
No dia em que matei seis azulonas em cima de um único poleiro, o Elpídio estava comigo. Quando vi aquela árvore – a única em toda minha vida de caçador – logo sentenciei: vou ficar aqui, ao que o Elpídio completou: logo que subir e eu lhe passar as coisas, irei mais adiante.

A árvore era mesmo uma escada de mil opções: a gente podia ficar na altura que desejasse. Assemelhava-se a um pinheiro de Natal gigante. De meio a meio metro de altura, quatro galhos horizontais saíam do tronco, como se fossem construídos por bom serralheiro, dando, inclusive, a opção de você escolher o lado em que quisesse ficar de frente, sempre confortavelmente assentado e com os pés apoiados. Havia lugar para a gente dispor tudo o que carregasse. Logo subi, Elpídio me passou a espingarda e o picuá, despediu-se, tirou o facão da bainha e começou a picada. Ainda ouvia o barulho que fazia quando, dando um piado de macuco, ouvi algo que vinha em minha direção, fazendo grande estardalhaço. Pensei tratar-se de algum bicho grande, mas era apenas uma azulona afoita. Nisto, alguém que a acompanhava, apresentou-se, depois de um piado fino e agudo: era o macho. Logo chegou e foi abatido.

Eu estava ali a menos de vinte minutos e, então, novo barulho: agora seria uma ou mais antas: Elpídio voltava para buscar a espingarda que havia esquecido debaixo de meu poleiro. Rimos a valer e eu até pensei em descer e seguir com ele. Mas, o lugar era tão bom que desisti. Cheguei a ficar com medo de dormir e cair de cima. Não disse a ele sobre os dois macucos já abatidos.

Elpídio voltou para sua picada e depois de cinco minutos, comecei a piar novamente. Outro casal respondeu, dando demonstração de zelo pelo território. O macho piava baixinho e a fêmea respondia com duas ou três piadas consecutivas. Piavam e vinham correndo. Preparei-me e logo os vi, um atrás do outro, chegando sob o poleiro em que me encontrava. Matei o macho, porque sabia que a fêmea iria voar, mas, como toda fêmea enciumada, voltaria para tirar satisfações.

E veio mesmo, completando quatro macucos em menos de duas horas. Bem, querer mais ali, era presunção. Almocei, tomei água e, agora, pensava seriamente em mudar de lugar. Mas, como já disse, valia a pena ficar ali só para curtir o conforto e a visão daquela malvada obra da Natureza. Espreguicei-me. O dia já estava ganho. Se não precisasse esperar o Elpídio, com certeza eu retornaria ao barraco. Fiquei ali. Nisto, outro piado de azulona por perto. Santo Deus!, que está acontecendo? Estarei sonhando?

Percebendo que era uma fêmea, tentei o ciúme: piei macho e, em seguida, emiti dois piados de fêmea bem altos. Sempre tudo e conforme o mano Adalho me ensinara. Ela começou a chororocar e partiu para o meu lado. Nisto, vejo outra tona passando por baixo do poleiro. Executei-a e quietei. Alguns minutos depois, eis que a fêmea, enciumada desafiou: foram quatro piadas consecutivas. Respondi imediatamente, repetindo, como ela, os quatro piados. Veio correndo. Bem em baixo, ela agachou e começou a chororocar. Cruelmente, separei-lhe a cabeça. Juro que se aparecesse outra tona, eu não atiraria mais.

Já nem me lembrava se havia abatido cinco ou seis tonas, assim como já não me lembrava dos lugares exatos em que elas se encontravam ao ser abatidas. Pendurei a espingarda, fiquei em pé, subi mais três degraus da malvada escada.

Lá de cima eu enxergava grande área da mata. Vi, então, um mateiro que passava ao longe, transversalmente. Ele estava a mais de 50 metros e eu não senti qualquer desejo de o abater. Se estivesse com minha flobé, arriscaria um tiro na cabeça!

Por sorte, ouvi o Elpídio piando e vindo em minha direção, bem antes de nossa hora marcada. Como não ouvi nenhum tiro, imaginei como ele devia estar se sentindo. Quando chegou, eu ainda estava em pé, quase na ponta da árvore, mas muito bem acomodado. Logo perguntou:

– Que diabo de tanto tiro foi esse, parceiro?
– Um bando de urus, pilheriei.

– Porra, andar mais de três mil quilômetros para matar urus?

– Pois é! Conhece o provérbio: quem não tem cachorro, caça com gato? Não tendo macuco, vai uruba mesmo. E, por falar nisto, por favor, veja se consegue encontrá-las, porque não sei mais direito, os lugares em que as abati. Aí mesmo, bem perto do lugar em que você se encontra, tem duas, uma perto da outra.

– Filho de uma puta! Exclamou ele, você matou duas tonas?

– Ri a valer, dizendo que, pela altura em que me encontrava, pensei se tratar de urus.

– Onde mais tem urubas?

E eu fui orientando e, em cada macuco que encontrava, ele ficava estarrecido. Depois que juntou os seis, eu descontei:

– Você acha que eu iria andar mais de três mil quilômetros para matar urubas?

E, assim, achamos os seis macucos e retornamos. Gastamos quase uma hora para chegarmos ao barraco e, em todo este tempo, fui obrigado a narrar para o Elpídio, cada detalhe de minha triste façanha.

UMA TONA COM MAIS DE 100 QUILOS
Acontecimentos incríveis e hilariantes

Numa caçada no estado do Mato Grosso, havia um macuco que vivia não muito longe do nosso acampamento. Foi o primeiro a ser caçado, atirado e escapado por duas vezes. Aprendendo a lição, ele, embora respondesse, não encostava mais na choça de nenhum caçador. Como se tornara um desafio, estipulamos o dobro de pontos a quem o abatesse. Assim, fui o quinto a tentar. Já não era pelos pontos, mas sim pela biografia. Escolhi o dia e fui para o território dele, acompanhado pelo Arlindo que o tentara no dia anterior. Chegamos bem cedo. O Arlindo seguiu em frente e eu, que fora para lá para passar o dia, pus minha tralha no chão, tomei água, passei repelente, escolhi um bom lugar, fiz uma das choças mais bonitas que já fizera, adentrei, sentei-me na cadeirinha e tirei uma soneca de meia-hora. Despertando da modorra, espreguicei-me, retirei o pio emiti o primeiro chamado. Marquei no relógio: só piaria de 10 em 10 minutos. A mata estava quieta. Mesmo sem ser desafiado, um casal de chororão piou pertinho. E, cronometrando no relógio, eu ia cumprindo o que havia me prometido. Deu meio-dia e nem sinal do galináceo. Comi o que havia levado, tomei água, tirei nova soneca, acordando somente às 13 horas.

Como havia jurado a mim mesmo, que ali passaria o dia piando o mínimo possível, continuei cumprindo o que planejara. Era uma tona escolada, cujo instinto lhe assegurava não haver outra no seu território. Mesmo assim, às 14h20min ela respondeu, talvez até distraída. Animei-me todo, apesar de achar que ela estivesse muito longe. E aí começamos: ela piava e eu respondia, baixinho e sem pressa, mas notava-se que estava chegando. Animadíssimo, continuei. Nisso, o casal de chorão chegou sem ser chamado. Encostou, cruzou a um metro da choça. A fêmea agachou. Ele, como veio, subiu e, ato contínuo foi lançado para frente – como se tivesse subido numa catapulta – a 30 centímetros de distância. Nisto, toda arrepiada, ela correu para o macho e o agrediu carinhosamente. Depois, emproou-se toda e piou novamente. Aí saíram andando despreocupadamente. Estavam ali porque todos que ali iam pensavam apenas na esperta tona. Ninguém atirava em qualquer outra ave.

Esqueci momentaneamente do macuco, quando ouvi passos mais pesados e um piado esquisito. Pensei: tinha de ser assim! Vinha por trás da catana em que eu havia feito a choça. Ali parou, piou umas duas vezes e quietou. Enfiei o cano da espingarda para fora, emiti um piadinho e fiquei aguardando que ela aparecesse. Aí, o inesperado aconteceu: algo pegou o cano da espingarda e segurou firme, puxando-o para fora comigo pendurado.
Nem gritar eu consegui: o caipora existia! No susto, puxei os gatilhos, detonando os dois canos. Mas, não estava tentando intimidar o caipora que, certamente viera salvar sua inocente protegida. Sabia, pela mitologia indígena, que ele podia se transformar num homem agigantado, montado num porco-do-mato. Pela terceira vez, meu cunhado incorporara o Caipora, mesmo correndo o risco de ser morto por mim. O desgraçado veio pé-ante-pé, por trás da choça, subtraindo-me todo raciocínio. Como podia eu não diferençar uma tona de três quilos, de um caipora de 100 quilos e, ainda mais, a pé, sem seu porco do mato? É que eu estava tão enceguecido pela vaidade antecipada de ser o único que conseguiria abater a macuca desenganada que, se pela mata viesse um trator D-60, eu acharia que era ela. Olhei para o meu cunhado e disse:

– Esta é a terceira vez que me assusta de forma humilhante. Mais uma que fizer, me livrarei das quatro, jurando casualidade e matando você!

– É, de fato eu merecerei. Acho que desta vez eu me superei na sacanagem. Sei que ainda você me deve umas dez, mas irei passar uma borracha e esquecer tudo.

– Ainda tremendo, consegui gaguejar: acho bom!

No livro O CAÇADOR, e no de CAUSOS E CONTOS, relatei algumas peças que o desgraçado de meu cunhado aprontou comigo e, também outras histórias inerentes a este assunto que me propus. Para não reescrever com outras palavras, usarei apenas o copiar e colar. Ah, nos livros supracitados, há também as tantas que aprontei com ele.

UMA SURUCUCU ATREVIDA

Meu cunhado Arlindo, esse que eu lhe arranjara um caminhão de cognomes: “Esguatcherão, Quoque, Tu Quoque Grapii, Esbirlo, Fili Mi, Grapuá…”, era um adulto que não envelhecera. Mesmo agora, com mais de 80 anos, continua criança. Não se zanga com brincadeiras e nunca “come cru”, como diziam os italianos lá de minha Marilândia querida. Se eu lhe aprontasse alguma, não tinha pressa: esperava, ainda que anos, para descontar no momento certo.

Preparar um laço de cipó para travar-lhe o pé numa descida íngreme; apressar-lhe a passagem por baixo de um pau caído com um belo pontapé no traseiro; soltar a vara que lhe permitia o equilíbrio na travessia de uma pinguela; oferecer-lhe seis comprimidos de Purgoleite para debelar uma tremenda diarreia; esfregar pimenta malagueta nos bicos dos pios dele; perder meio-dia piando macuco perto da choça dele para mantê-lo lá sem macuco algum por perto; propor-lhe que deixasse uma cobra quieta dentro do sapatão dele, até que eu abatesse o macuco que estava já no ponto de tiro; foram algumas das tantas que aprontei a ele. Na verdade, não havia uma caçada em que eu não lhe fizesse uma sacanagem. Em dois de meus livros (O Caçador e Causos e Contos) quem quiser, lá encontrarão todas.

Ele nunca levou a mal, nunca reagiu no momento, nunca perdeu a esportiva. Mas, quando surgiam as oportunidades, ele descontava. E como descontava! Mais ou menos, dez vezes piores.

Depois que abandonei as caçadas, passei a capturar pássaros para criá-los em cativeiro. O prazer de agarrar vivo um inhambu passou a ser uma emoção mais forte do que aquela de tê-lo nas mãos, sem vida. Assim, minhas incursões continuaram no mesmo ritmo das caçadas. Meu cunhado caçava-os e eu tentava conseguir as espécies que faltavam para completar a coleção dos inhambus brasileiros. Para os leigos, é bom esclarecer que algumas espécies não dominantes de inhambus oferecem sérios problemas para a captura. É que as fêmeas dos jaós e das choronas; o macho do guaçu amazônico, do chororão e até dos chororós, apenas para citar alguns exemplos, quase não piam e raramente atendem ao chamado dos parceiros. Por isso, capturar uma fêmea de chorona (Crypturellus Strigulosus), de jaó da mata (C. Noctivagus noctivagus), do guaçu amazônico (C. Obsoletus griseiventris) … é algo que exige paciência e muito tempo. Já passei 30 dias na Amazônia tentando capturar (piando) uma fêmea de chorona. Voltei de mãos abanando. A única que veio até à choça não pisou onde precisava. Para apanhar na armadilha as espécies supracitadas, faz-se necessário a paciência do bíblico Jó. Para ter uma chance razoável é preciso passar o dia todo, do amanhecer ao anoitecer, piando pouco, dando intervalos e rezando bastante. Essas aves supracitadas, normalmente, só atendem ao amanhecer ou ao anoitecer, quando vêm para cruzar, mesmo assim, apenas no tempo da reprodução.

Certa vez, meus sobrinhos adquiriram uma mata perto de Açailândia (MA). Colocaram lá os tratores, abriram as estradas principais e armaram o barraco dos trabalhadores bem no centro da mata. Estradas novas, matas bonitas…. Lá fui eu tentar gravar o inhambu-poca-taquara para, depois, capturar alguns representantes da espécie.

Meus sobrinhos haviam me dito que os tinha ouvido piar por lá, principalmente ao anoitecer. Como não há pios para esse tipo de inhambu e como seus piados são muito difíceis de ser reproduzidos com a boca, eu precisava gravar o piado de um deles. Primeiro, anoiteci alguns dias na mata, até localizar um. Por sorte, as fêmeas, quando piam, o fazem por muitos minutos. Se tiver estrada, a gente tem tempo de se aproximar bem. E foi assim que consegui gravar alguns piados sofríveis, mas que serviram para atrair o inhambu para mais perto. Em menos de uma semana eu já tinha, na fita, um lindo piado de fêmea. O guaçu amazônico é o inhambu mais manso do mundo.
De posse do piado, fiz uma choça caprichada na sapopemba de um grosso angelim-vermelho, bem na orla da estrada recém-construída. O inhambu estava a uns 40 metros. Posicionei alto-falante e microfone numa sugestiva moita, ajeitei-me todo na catana, coloquei a fita e comecei a reproduzir os piados que gravara. Olhei o relógio e eram, exatamente, 17h30min. Alguns raios de sol ainda perfuravam o dossel da floresta.

Nesse tempo, a lugares possíveis, eu levava comigo uma escopeta, apenas como garantia para momentos imprevisíveis. É que eu já ficara com uma onça pintada parada a um metro da choça, coisa que até então nunca acreditara que pudesse acontecer. Escorei a espingarda na catana e fiquei ali, enxugando o suor da testa com o boné e emitindo alguns piados de quando em vez.

Em menos de 15 minutos, ouvi o chororocado de guerra do inhambu, bem próximo às armadilhas. Era aquela a primeira vez que eu teria contato com o Griseiventris e, por isso, o coração parecia sair-me pela boca. Como seria ele? Que tamanho teria? Eram algumas das tantas indagações que me fazia enquanto firmava o olhar para lobrigá-lo entre os taquaruçus de brotos perfurantes.

De repente, percebi que alguma coisa tocou no pano da choça (oito metros de um velho paraquedas que me foi dado pelo cunhado Dr. Fernando Silva, no tempo em que ele era paraquedista da aeronáutica no Rio de Janeiro), na parte lateral esquerda. Virei-me, prestei atenção e como nada mais se mexesse, desconsiderei o barulho. Certamente fora uma lagartixa, um rato ou coisa parecida. Voltei a vigiar o inhambu, já com o microfone ligado e a fita correndo.
Com certeza ele iria piar e eu faria outra gravação, mais nítida e perfeita. Nisso, o pano voltou a se mexer, demonstrando que alguma coisa estava pretendendo partilhar o esconderijo comigo. Afastei-me um pouco, firmei a visão, porque dentro da choça estava muito escuro. É que, além do dia que findava e do pano, eu ainda havia encostado algumas folhas de pindoba para camuflar. Ainda não sabia que estava tentando capturar o inhambu mais manso da Amazônia.

O pano continuava pressionado, dando-me a certeza de que o bicho estava ali, arquitetando um plano para adentrar. A seguir notei que o pano afrouxou um pouco, como se a “coisa” estivesse desistindo. O mais provável seria uma cobra. A sombra, embora sem presteza, delineava-me algo comprido e torto. Por vias das dúvidas, apanhei a espingarda e me preveni contra um possível ataque de surpresa. Já estava tenso e lastimando o imprevisto.

Imaginei a possibilidade de ser uma surucucu reclamando o lugar que eu ocupara, enquanto ela dera uma saidinha. E a “coisa” estava lá, a menos de meio metro de mim: eu via a sombra. Droga! Desabafei: não teria esta pico-de-jaca outro lugar para passar a noite? Nessas alturas, eu já não tinha mais dúvida: era uma surucucu. E foi aí que o imprevisível aconteceu.

O bicho foi metendo a cabeça por debaixo do pano e entrando devagarzinho. Vi-lhe a cabeçorra, os olhos fatídicos, a língua bifurcada por entre suas enormes presas… Era uma surucucu que não tinha mais para onde crescer. Dei um passo para trás, armei a espingarda e, quando fui fazer pontaria, ela avançou decidida para cima de mim. Diante do sufoco, arremessei-me para fora da choça, carregando no peito, o pano, as palhas, os fios com o gravador e tudo….

Fui parar a uns cinco metros de distância, arrepiado, pálido e tremelicante. O guaçu voou espavorido e eu, agora, nervoso, fui retornando à choça, disposto a arrancar a cabeça da surucucu. As mãos tremiam, mas eu estava certo de que, pelo calibre da espingarda, a cobra não teria a mínima chance.

Pé ante pé, espingarda engatilhada em riste, fui voltando à choça, então, toda desarrumada. Olhei, olhei e nada vi. Apenas comecei a ouvir um barulho esquisito, muito estranho, assim como alguém que tenta suprimir uma gostosa gargalhada. Era meu cunhado Grapuá que descontava uma das tantas que eu lhe aprontara.

Ele viera pela estrada de terra solta e úmida, há pouco feita pelos tratores. Como não houvesse folhas, não fez qualquer ruído. Não bastasse, eu estava com todas as atenções voltadas para o inhambu. Então, o diabo ofereceu-lhe uma raiz arrancada pelo trator. Acho que nem Michelangelo esculpiria um Moisés tão perfeito, como o Quoque, aquela cobra. Juro: eu vi os olhos penetrantes, a língua bifurcada, a cabeça triangular… Era uma surucucu!

Quando dei por fé que era meu cunhado, juro, pensei mesmo em matá-lo, como dizem os do ramo, como queima de arquivo. Teria o álibi da casualidade, diante da irresponsabilidade dele em fazer o que fez. Poderia provar que fora um crime culposo, sem intenção de matar.

Nem sei se estou feliz por ter perdido a oportunidade, pois até hoje o desgraçado não se cansa de me lembrar aquela tarde!

CAÇADOR “MARCA-CU”

Há mais de meio século, apesar de Haeckel já haver criado o termo Ecologia, poucos sabiam de sua finalidade. Apenas em alguns lugares do mundo os animais e o Ambiente eram respeitados. Nos tempos idos, os confins norte do Espírito Santo, onde meu pai resolveu tentar a sorte, era um mundo desabitado por gente e prenhe de todo tipo de animais silvestres. Onças, tamanduás, cobras de muitas espécies, antas, queixadas, barbados, enfim, a vida pululava em todos os lugares e, nesses lugares, um interminável mundo de desafios e perigos.

Meu irmão mais velho logo aprendeu a caçar e, estranhamente, ao invés de perseguir veados, porcos ou qualquer animal de grande porte, interessou-se mais pelos macucos: aves ariscas que desafiavam a argúcia de qualquer amante da cinegética.

Tínhamos tempo e havia muitos macucos por todos os grotões e encostas. Quando eu – como caçula dos homens – atingi meus 15 anos, fui levado por ele para minha primeira experiência. Nesse tempo, o mano já sabia tudo sobre a arte de caçar macucos. Era capaz de reconhecer até pela folhagem do chão, pelo tipo do terreno e pela presença de certas árvores, a morada deles. Mais tarde o cientista Werner C. A. Bokerman
também diria que as aves vivem nos lugares em que há comida para elas. Afirmava que cada animal mantinha preferência, ou mesmo necessidade de habitar em lugares em que sua alimentação predileta existia. E ele conhecia bem tais preferências, porque sempre solicitava aos amigos caçadores para que lhes remetesse o papo das aves abatidas. Assim, ele constatava a alimentação preferida de cada espécie.

O mano envelheceu… foi caçar no céu. Tudo o que sabia ensinou-me e, assim, tornei-me detentor de tristes troféus, sendo, durante anos, “Campeão de Caçadas” por quase todo o Brasil. E o tempo irreversível continuou sua caminhada. A mensagem de Haeckel atingiu-me e, com a graça de Deus, bem cedo reconheci o mal que estava fazendo à fauna e pendurei a espingarda para nunca mais tirá-la do fumeiro. Mas, quando parei, eu sabia muito sobre todo tipo de aves rasteiras, aquelas que normalmente os caboclos chamam de inhambus.

Na minha família de sete irmãos, cinco eram do sexo masculino, mas apenas dois foram dependentes de caçadas: Adalho e eu; o primogênito e o caçula. Com a partida do mano mais velho, todas as vezes que os outros meus irmãos queriam matar um macuco, insistiam para que eu os acompanhasse para atrair o galináceo até eles: o mesmo caminho que me fora ensinado.

E foi assim que, há algum tempo, entrei na mata acompanhando o mano Dolmino, 82 anos, para que ele abatesse um macuco (sonho que mantinha desde o abandono da juventude). Usando tudo que sabia, escolhi um lugar apropriado e, por azar, nele havia um poleiro que “o diabo havia preparado”. O mano olhou e logo decretou:

– Vou subir lá!

– É muito alto – observei. Além do mais, com este seu joelho destrambelhado e com sua idade, não é aconselhável que o faça.

– Conversa – obtemperou. Tenho tutano para subir lá sem qualquer problema.
E assim ele o fez, confirmando que ainda estava em forma. Depois que subiu com um cipó amarrado à cintura, eu amarrei a espingarda na outra extremidade e ele a puxou até onde se encontrava, numa altura de, no mínimo, 9 metros. Deixei-o lá se ajeitando e afastei-me uns 15 metros. Sentei-me no chão, sob uma moita e comecei a piar. Ele possuía uma ampla visão e por certo nem uma borboleta passaria pela adjacência sem que ele percebesse.

O macuco respondeu logo, mas era daquele tipo frio e covarde, que não está disposto nem a cruzar e muito menos a expulsar o intruso. Mesmo assim, veio chegando, lentamente. Depois de quase uma hora, percebi que ele piava debaixo do poleiro do mano e nada de o tiro sair. Foi quando aconteceu o que jamais eu poderia imaginar. Ouvi galhos quebrarem, cipós sendo arrastados e algo que despencava do alto e se esborrachava no chão. O macuco voou espavorido e, imediatamente supus o óbvio: o mano caiu do poleiro!

Chamei por ele, uma, duas, três vezes. Gritei e, em seguida corri para o local. Lá estava ele, debaixo de tudo quanto arrancara na descida e com o joelho deslocado, dentes serrados de dor. Com a demora, ele havia dormido e caído do poleiro e, agora, restava-me o grande problema de sair daquela situação embaraçosa. Retirei-o da folhagem, arrastei-o para um lugar mais limpo, examinei-o todo e, com a ajuda dele, constatei que apenas o joelho “bichado” não resistira à íngreme descida. Aquela não era a primeira vez que a perna destrambelhava. Ele sabia como recolocá-la no lugar, e depois de muitas bufadas, mesmo sem minha ajuda, ele o fez. Apoiado em mim conseguiu chegar ao barraco, onde não se livrou da observação sarcástica que tantas vezes eu ouvira de meu saudoso professor: “Ah, caçador marca-cu!”

Como fiel discípulo do mano Adalho e seu herdeiro-mor, não poderia deixar passar em branco.

AGORA, SÓ BRIGANDO MESMO!

Depois de uma semana correndo maior risco do que um albino de cuecas atravessando o Saara sem uma gota d’água no cantil; ou pulando do cume do Everest, pelado e sem paraquedas; ou estando sobre o Vesúvio na hora da erupção; ou passando a pé pelo Morro do Alemão, com a burra cheia de dólares, em plena madrugada, eis que descemos da velha Kombi e nos arrastamos, literalmente, até à margem do Septubinha: rio piscoso que atravessava uma densa floresta (hoje pastarias) no município de Nortelândia, no estado do Mato Grosso.

Dez maníacos italianos faziam parte da loucura. Entre eles, o Grapuá, um armário de portas abertas, um bicho: em força física e ignorância também. Sempre fora meu inseparável companheiro de caçadas. Nunca conheceu o medo nem as possíveis consequências que o excesso de coragem às vezes ocasiona. Pela mata, a qualquer hora, sentindo cansaço ou sono, ele se atirava nas folhas e dormia como se estivesse sedado para retirar o baço. Se houvesse alguma cobra, aranha ou inseto peçonhento embaixo, pior para eles. E, por incrível que pareça, fez isto a vida ativa inteira e nunca o imprevisto aconteceu.

O rio Sepotubinha ou Septubinha é afluente do Sepotubão. A distância entre eles, do lugar em que nos encontrávamos, era de oito quilômetros. Havia caça até na porta do barraco, mas, com certeza, a oito quilômetros haveria mais.
Um dia, Brando, Grapuá e eu resolvemos ir caçar lá. Acordamos bem cedo e partimos, chegando ao destino às oito horas em ponto. Descansamos um pouco e decidimos três direções para passar o dia. O primeiro que pretendesse voltar caçando pela picada que refizemos – porque ainda eram visíveis os vestígios – cortaria um galho e deixaria ali como aviso. O segundo, encontrando o sinal, aguardaria o terceiro, para que fizesse companhia ao retardatário, naquele fim de mundo em que tudo podia acontecer.

Como nenhum dos três era bobo, houve unanimidade em logo retornar caçando de volta. Cada um iniciou a picada conforme o acordo, mas, 50 metros à frente, parou e aguardou que os demais se distanciassem, a fim de não dar muito na pinta: como era comum designarmos tal situação.

Brando, proverbial em ser preguiçoso, foi o que parou primeiro, logo retornando. É que, naquela distância, e com várias tonas piando pela orla da picada em que viemos, ninguém era bobo de se cansar ali e depois andar de graça mais quatro horas para alcançar o barraco. Mais que razoável era ir voltando devagar, caçando e diminuindo o percurso.

Canso de dizer que, se Deus é grande, o diabo não é pequeno. Quando cheguei no cruzamento, já que era minha intenção ser o primeiro, a surpresa: lá estava o ramo verde combinado. Alguém havia sido mais ligeiro que eu. Sentei-me desolado. Teria de esperar pelo último. De repente, apanhei o galho e, qual não foi a grata surpresa ao perceber que aquele ramo fora cortado por uma besoura-serra-pau e não por gente. Acontece que o galho fora posto ali pelo mano Ildebrando, que resolveu aproveitar a ajuda da cerambicídea, talvez com preguiça de cortar outro.
Jamais imaginou que alguém se desse à curiosidade de examinar. Enganou-se. Foi a primeira coisa que fiz.

Diante da constatação, arremessei o galho fora, cortei outro novo, coloquei em lugar bem visível e me pus a caminho de volta. Logo depois chegou o Grapuá com o mesmo pensar. Só que, para ele, não havia mais alternativa. O ramo era autêntico e ele teria de esperar… e o fez até que a noite caiu. Depois, sozinho, por péssima picada, atordoado com a possibilidade de o pior ter acontecido, iniciou, quase correndo, a viagem de volta. Precisava avisar ao grupo sobre o incidente.

Às 20h, quando já saíamos à sua procura, ele chegou. Estava um bagaço: rasgado, molhado de suor da cabeça aos pés, mais possesso que um doido maconhado com 30 demônios entranhados. A cada pergunta que alguém fazia era um “Vai tomar no…”; “Vai a puta que…”; “Turma de moleques…”, e por aí afora. Nem o Rambo, depois de dizimar sozinho uma brigada inteira de russos, parecia mais machucado e furibundo.

Amuado, não jantou. Estirou-se em seu sujo, finíssimo e velho colchão de espuma e ficou bufando como boi peado. Imaginamos: amanhã ele estará mais calmo e entenderá que foi tudo um mal-entendido.

Qual nada! Durante três dias ele não conversou com ninguém e não saiu do barraco. Passava quase todo o tempo deitado com a cabeça encostada numa árvore que sustentava a lona do barraco e na qual havia vários pregos em que pendurávamos as espingardas. Ainda no quarto dia, ao retornar de minha caçada, ele estava lá, enrolando os cabelos com o indicador: era costume ou cacoete que perdurou até o fim de seus dias.
Cheguei. Ele nem virou o rosto. Quando pendurei minha espingarda no prego em que já havia outras, o desgraçado do prego não resistiu, porque o esteio era de um varão verde e de madeira branca. Os pregos não estavam lá tão firmes e o peso das tantas espingardas era demais para eles. Uma das coronhas foi bem no chamado “pau do nariz” do amuado Grapuá, descascando-o até à ponta. Ao ver o estrago, o sangue escorrendo e o clima pesado no ar, recuei alguns passos e fui enfático:

– Bem, não sei se tentar explicar vai valer a pena. Portanto, pode vir que estou esperando para decidir no tapa mesmo.

Para mim, a briga era inevitável… e, meu fim, próximo, já que o brutamonte podia esganar-me sem muito esforço. Mas, depois de alguns segundos de silêncio tumular, alguém deixou escapar uma fungadela de riso que contaminou a todos, inclusive a ele. Com certeza, o diabo não é pequeno, mas Deus é maior! Acho que o fato bem podia constar da coleção “Great escapes”, da Stouffer Productions Ltd., porque se o Grapuá resolvesse mesmo me pegar, eu não teria a mesma sorte do coelho das neves.

Mais tarde ele confessou que fui salvo pela minha posição ridícula de defesa. A humilhação não foi menor do que ter apanhado.

NENÉM CALDARA: UM MENINO GRANDE

Ser amigo, companheiro, amante de todo tipo de esporte… eram tendências que sempre superavam o temor de enfrentar as selvas e seus perigos. Era maluco por caçadas, mas não escondia o receio de cobras e onças. Como eu preferisse caçar sozinho, ele sempre aparecia com alguém para lhe fazer companhia.
Certa feita, ao ir de madrugada apanhar o companheiro, este inventou uma desculpa e o deixou na mão. Sem saída, ele foi comigo, sabendo que teria de ficar sozinho. Por isso, enquanto eu fazia a picada, ele examinava os cipós grossos e algumas árvores que lhe pudessem servir de poleiro. Qualquer gancho serviria. O certo é que, no chão, nem pensar. De repente, avistou algo que, na ausência de coisa melhor, estava de bom tamanho:
– Vou ficar por aqui mesmo. Espere-me um pouquinho, até que eu suba e você me passe as coisas.
Olhei para cima e observei:
– Você vai ficar em cima disso aí? Pelo amor de Deus, Neném! você não aguentará uma hora.
– Vou! Respondeu-me laconicamente.
– Mas, nem uma cobra ficaria ali por mais de uma hora!
– Estou acostumado. Se não piar nada, eu desço.
– Neném, sei que não gosta de ficar sozinho na mata. Sabe também que, ao contrário, gosto de caçar sozinho. Hoje, porém, abramos uma exceção: cacemos juntos. Sinceramente, não caçarei tranquilo, imaginando-o aí em cima.
– Não. De jeito algum. Vou subir aí e você segue.
Ao cair da noite, quando retornei, ele ainda estava lá em cima. É que, por baixo, logo que subiu, passou uma enorme surucucu, e ele não estava certo do paradeiro do bicho. Bem podia estar ali por perto, amoitada, aguardando a descida dele. E nem adiantou eu tentar convencer-lhe de que cobra não ataca, apenas se defende.
Ao descer, ele se apresentava abatido, arrasado, mal conseguia manter-se de pé. Até então, passar um dia inteiro pendurado num galho transversal, sem encosto, sem lugar para apoiar os pés, só mesmo para faquires altamente treinados, ou morcegos depois de dias de insônia. Quando chegamos ao Fusca, ele jogou a capanga na poltrona de trás e deu uma bufada que qualquer rinoceronte assinaria em baixo:
– Estou mais moído que cuim!
Com certeza ele não via a hora de chegar em casa e pular na cama. Logo ligou o Fusca, arrancou e não falava outra coisa senão na cobra que passara por baixo de seu poleiro.
– Se a gente pensasse nos tantos perigos que existem no mato, certamente não entraria nele. Uma cobra daquela se picar, a gente não anda 20 metros – comentava ele.
E foi assim que o imprevisto aconteceu. Enquanto o carro deslizava célere pela estreita estrada da mata, algo pulou no pescoço do Neném, que já vinha com a cabeça cheia de cobras. Nem precisava tanto para ele agir da maneira com que o fez: simplesmente abriu a porta, pulou do carro, deixando-o à deriva, comigo dentro. Para trás, apenas o eco sumido:
– Nossa Senhora, uma cobra me pegou no pescoço!
O carro entrou pela mata e foi batendo, por sorte, em varões finos, até parar. Ele ainda quebrava alguns galhos quando também dei no pé, saltando e tentando salvar minha pele. Fora do lugar perigoso, no lusco-fusco da pouca luz dos faróis ainda acesos, mas cobertos pela vegetação, não notei nada no pescoço de meu companheiro.
– Tem certeza de que uma cobra picou você aí no pescoço?
– Absoluta. Já estou até me sentindo mal.
– Droga! O soro está dentro do carro. Temos de tirá-lo de lá, urgentemente.
Na verdade, estávamos ali na estrada, sem sequer um canivete. Tudo estava no Fusca. Resolvemos quebrar uma vara fina com um gancho frágil na ponta. Com ela fomos arrastando o picuá para fora e, mesmo com medo de que a cobra estivesse nele, retirei a lanterna. De posse da lanterna, antes de apanhar o soro, examinei melhor o pescoço do meu companheiro: não havia sinal de picada alguma. Apenas uma espécie de goma viscosa havia na parte vermelha que o tapão dado formara.
– Acho que a “surucucu” não conseguiu picar, não! Comentei aliviado. Antes de lhe aplicar o soro, vamos examinar o interior do carro.
Com muita cautela nos aproximamos do Fusca. Na primeira clareada, vislumbrei uma espécie de decalque no vidro lateral: era uma perereca enorme e nojenta. Parecia feliz da vida por ter sido a causa da balbúrdia. Afinal, não era ela uma perereca qualquer.
É…. com certeza, se fosse na BR, ninguém ficaria vivo para contar a história. Nem a perereca!

BIOGRAFIA ATUALIZADA
Livaldo Fregona é filho de Antônio Fregona e Maria Pupim.

Nasceu num pedacinho de terra devoluta, no convívio pleno com a Natureza, próximo à atual cidade de Marilândia, situada no sudeste do estado do Espírito Santo, no dia 26 de novembro de 1939.
Completou o curso primário em Marilândia – ES; o Ginasial em Colatina – ES; o Clássico em Vitória – ES; Filosofia em Belo-Horizonte – MG; Contabilidade e Laboratório de Análises Clínicas, em Colatina – ES.
Para se sustentar, trabalhou como protético na Odontótica Capixaba, do amigo Neil Pacheco; deu aulas de Português e Biologia nos Colégios Nossa Senhora do Brasil e Estadual Conde de Linhares, ambos de Colatina – ES.
Jogou futebol na U.A.C.E.C., que disputava o campeonato estadual do Espírito Santo.
Voltando a Marilândia, exerceu diversas profissões: laboratorista (análises clínicas de laboratório); professor de Biologia, Português, Geografia e Religião no Seminário Menor Sagrado Coração de Jesus; foi guitarrista do conjunto musical “Os Corujas” e contador de diversas firmas de Marilândia e adjacências.
Mudou-se para Linhares – ES. Fundou novo conjunto musical, formou seu próprio time de futebol, continuou com laboratório e contabilidade, acrescendo, ainda, o comércio de madeira.
Em 1981 mudou-se para Imperatriz, trazendo consigo a maior parte dos familiares. Entre escrever crônicas e contos para “O Progresso” e, esporadicamente, para outros jornais e revistas, lançou seu primeiro livro:
CONTOS.

Obras:
01- Em 1983, CONTOS, 164 páginas narrando acontecimentos engraçados de seus amigos e familiares.
02- Em 1984, A PROCURA, 175 páginas narrando o início de sua crise existencial.
03- Em 1985, MENINO DA ROÇA, 255 páginas retratando boa parte de sua vida.
04- Em 1986, ESTRANHA PASSAGEM, 169 páginas narrando a vida de um homem bom envolvido nos males do mundo.
05- Em 1987, JABINO, O PREDESTINADO, 210 páginas de ficção, entrelaçadas nos mistérios da predestinação.
06- Em 1988, ABISMOS, 289 páginas contando parte da vida real de alguns amigos.
07- Em 1990, O CAMINHO, 242 páginas de crônicas e contos diversos.
08- Em 1992, OS HUMILDES, 172 páginas narrando a vida de homens pobres, humildes e analfabetos.
09- Em 1994, SIRIANO, 144 páginas sobre a vida real de “um menino de rua” da cidade de Imperatriz.
10- Em 1996, NUVENS PASSAGEIRAS, 252 páginas de crônicas e contos sobre os mais variados assuntos.
11- Em 1998, 18 ANOS DE IMPERATRIZ – O QUE VI, LI E OUVI – 420 páginas narrando, detalhadamente, o que aconteceu nesses dezoito anos.
12- Em 1999, A FAMA E A VERDADE DE JOSÉ BONFIM, 200 páginas sobre o considerado pistoleiro José Bonfim.
13- Em 2005, AO LADO DO TRAVESSEIRO, um livro que narra fatos incríveis produzidos pela fé em N. S. Jesus Cristo.
14- Em 2008, O CAÇADOR, 221 páginas narrando alguns acontecimentos do tempo em que caçava por todo o Brasil, excetuando-se os estados do sul do Brasil.
15- Em 2010, SIMBA, 189 páginas de um romance, ora real, ora fictício, ocorrido na Amazônia.
16- Em 2015, CAUSOS E CONTOS, 263 páginas narrando casos engraçados ocorridos no seu dia a dia.
17- Em 2016, O MAIOR MENTIROSO DO MUNDO, 100 páginas de contos escolhidos.
18- Em 2018, MARILÂNDIA: vale de sonhos e lágrimas, 226 páginas. Romance de ficção sobre seu torrão natal.
19- Em 2020, AO CLARO DA LAMPARINA, 306 páginas, condensando vários exercícios de um adolescente em busca do sonho de se tornar escritor.
20- Em 2021, BRAUXO, O MORUBIXABA – 193 páginas, narrando a história de um menino sequestrado pela mulher do cacique.
21- CATANDO PEDAÇOS – 254 páginas pinçando escritos perdidos, encontrados, gravados ou editados em revistas e jornais da região.
22- A MENINA DO LIXÃO – 250 páginas, romance.

Cooperou com três páginas discorrendo sobre a Mata Atlântica, no livro científico “A Preservação do Mutum de Alagoas”, do escritor, pesquisador e ornitólogo Pedro Mário Nardelli, da Zoobotânica Mário Nardelli, de Nilópolis – RJ, editado também em inglês.

No dia 26 de abril de 1997, por ter sido eleito o mais atuante escritor da Região Tocantina, recebeu o Prêmio Academia Imperatrizense de Letras, criado pela Prefeitura Municipal de Imperatriz.

Em 2011, recebeu o prêmio pela segunda vez, por ter seu livro Causos e Contos, ter sido considerado o melhor do ano da região tocantina.

Em 2018, recebeu-o novamente, pela terceira vez, por merecimento de sua obra Marilândia – vale de sonhos e lágrimas.

Em junho de 1997, recebeu da Revista Brasília, de Brasília – DF, a láurea cultural “Stella Brasiliense”, também pelo conjunto de suas obras.

No dia 11 de outubro de 1997, a Academia de Letras e Ciências de São Lourenço premiou-o com o segundo lugar no concurso “Obras Publicadas em 1997”, seu livro “Nuvens Passageiras”.

No dia 11 de dezembro de 1997, pelos serviços prestados à comunidade, foi-lhe outorgado, pela Câmara Municipal de Imperatriz, o título de “Cidadão Imperatrizense”, por sugestão do Dr. Arnaldo Alencar.

No dia 16 de julho de 2008 foi condecorado com a Comenda Frei Manoel Procópio: a maior honraria concedida a um cidadão imperatrizense.

É Membro Correspondente da Associação dos Escritores do Amazonas; da Academia de Letras e Ciências de São Lourenço; da Academia Itajubense de Letras; da Academia Internacional de Letras; da Academia de Letras da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul; da Academia de Letras de Uruguaiana; da Associação Uruguaiense de Escritores e Editores; da Federação das Entidades Culturais Fronteiristas; da Academia Espírito-Santense de Letras e do Clube Internacional da Boa Leitura.

É membro fundador da Academia Imperatrizense de Letras, na qual ocupa a cadeira 13, tendo como patrono o escritor carolinense Othon Maranhão.

É católico, casado com Corina Silva Fregona, com quem tem duas filhas: Kizy e Drielly, e duas netas: Sofia e Pietra. Atualmente, aos 84 anos e 10 meses, dedica-se com exclusividade a cuidar de árvores frutíferas, à informática, a ler e a escrever.

Justificação:
Não me culpem! Depois de três meses sem sair de casa, tive de ocupar o tempo com alguma coisa. Apesar da deficiência visual, o computador foi minha opção. Com o passar dos dias fui me adaptando. Hoje já convivo harmoniosamente com a percentagem visual que me restou e já não vejo a hora de correr para o computador. Bem à minha frente, sempre uma porção de velhos cadernos: resultado da ilusão de me tornar escritor, já aos 19 anos.
Apanhei-os, espirrei bastante e logo decidi: aqui vou passar minha quarentena! E foi assim que comecei a digitar o que escrevi há 60 anos. Nesse tempo eu estava com 19 anos. Sei que tudo nesses exercícios é ultrapassado: dos escritos às fotos. E eu agora – inteiramente suspeito – achei que não poderia desperdiçar as tantas horas que passei, ao claro da lamparina, escrevendo essas coisas. Não houvesse feito isso, certamente tudo acabaria em nada: os cadernos já estão soltando as folhas e as capas; os escritos também já estão pouco legíveis, devido à concorrência entre o tempo, a umidade e as traças. De qualquer forma, sempre haverá algum bisneto curioso que olhará este livro e, certamente, concluirá: que bisavô maluco Deus me deu! Como digo nessa experiência: é um dó que eu não consiga deixar coisa melhor para a posteridade. Naquele tempo tudo foi um sonho de adolescente; agora, apenas um saudoso passatempo. Mais adiante, alguém à janela, dois dedos no queixo e um olhar perdido.

Voltar