APRESENTAÇÃO
Certa vez, numa reunião acadêmica, o poeta Benedito Batista solicitou ao presidente, permissão para ler a primeira poesia que escreveu na vida. Achei a poesia ótima e quando ele terminou, brinquei: puxa, Benedito, como pode ter decaído tanto?

Agora chegou a vez dele, mas, infelizmente ele já não se encontra entre nós e terá de esperar mais um pouquinho para empatar o jogo. Mas, não tenha pressa, grande poeta, não irei demorar: com mais de 81 anos associados à diabetes, pressão oscilatória, três estenderes implantados, visão e audição limitadas e a COVID-19 rondando meu esconderijo, posso garantir-lhe que logo você poderá descontar a brincadeira.

Brauxo, o morubixaba, foi minha primeira tentativa de escrever um romance totalmente de ficção. Nesse tempo, eu contava, mais ou menos, 19 anos, vindo do seminário a que fui levado, sem nunca ter ouvido falar em Grego, Latim, Filosofia…, eu estudava como louco para não decepcionar o vigário que desconfiou que eu podia me tornar um bom sacerdote secular. Ainda bem que Deus estava atento!

Na biblioteca do seminário só havia livros de autores renomados, mas, mesmo sem entender nada, eu os li todos. Frases que me impressionavam, eu as compilava para que, havendo brecha, as inserisse em meus textos, já adaptadas com minhas palavras. Era um plágio disfarçado.

Foi nesse tempo que, assistindo a um filme sobre a vida de um escritor desenvolvendo suas ideias, surgiu-me a pretensão de me tornar um também. Nesse filme, mostraram um célebre escritor recurvado sobre uma velha máquina de escrever, fumando um cigarro, tendo ao lado uma garrafa de whisky. Em volta da escrivaninha, centenas de bolotas de papéis amassados, com capítulos que, depois de rascunhados, não haviam sido aprovados pelo autor. Aquilo, para mim, era fantástico. Chegava a imaginar que escritores não eram humanos normais. E já no dormitório, diminuindo até a intensidade dos pensamentos para ninguém desconfiar de tão ousada pretensão, eu sonhava em me tornar um deles. Bem…, fazer bolotas de papel eu já sabia.

E foi assim que surgiu meu primeiro romance, escondidinho, rascunhado em alguns cadernos e escondidos a sete chaves. Está cheio de falhas gramaticais, de incoerências, de uso desapropriado de linguagem, principalmente nos diálogos, enfim, com todos os defeitos de um incipiente. Apenas pedi às minhas filhas para lerem, sem grande preocupação com a correção. Não pedi a ninguém para revisar: apenas fui remendando os erros mais grosseiros enquanto digitava, aproveitando a ajuda do Word e adaptando a grafia antiga à nova ortografia.

Nesse tempo, para mim, o escritor havia de empregar palavras desconhecidas, porque era assim que eu lia nos livros e, para isso, eu vivia decorando sinônimos não compatíveis, nem recomendados no contexto. Outra falha inadmissível a um bom escritor, agora percebo, foi não manter a autenticidade da linguagem dos personagens: todos falaram e se defenderam conforme meu conhecimento literário. Era assim que eu pensava naquele tempo: um escritor não podia escrever “nóis vai”, num livro. Teria de dizer, nós iremos, ainda que o personagem não soubesse assinar o nome. Eu traduzia os dizeres de todos os personagens, segundo meus poucos conhecimentos gramaticais, culturais e literários.

De qualquer forma – como disse ao poeta Benedito – também acho que decaí bastante! A história é bem antiga, tanto que ao transcrevê-la, já não me lembrava de quase nada. Foi escrita mais ou menos há 60 anos. Tive de reler para assenhorear-me dos nomes dos personagens e dos lugares em que as cenas foram descritas. Na verdade, lugares e personagens são aleatórios. Muitas vezes aproveitei lugares do Norte que eu conhecia e os inseri em descrições do Sul. Na verdade, eu queria escrever. Mesmo assim, com tantas falhas, achei que fora um bom começo. Por isso, mandei imprimi-lo separadamente, já que ele estava inserido num outro compêndio de meus exercícios.

Trechos de minhas histórias de caçadas e de mais três romances escritos naquele tempo, mandarei imprimir também, mas apenas para distribuir aos familiares, para que os guardem como recordação. Sinto que estou apresentando meu último ato na cena da vida e, antes que a cortina se feche, quero deixar lembranças e saudades pelo tempo em que fui ator no drama da existência.

 

BRAUXO: O MORUBIXABA

– É o jornal, é o diário de Marites; é o jornal, olha o jornal com os últimos acontecimentos aqui e no mundo inteiro; Blue desponta para o mundo; a polícia prende em flagrante, trinta contrabandistas; um transatlântico submerge em alto mar. É o jornal, é o semanário de Marites….

– Mamãe, quem é este Blue?

– Blue ou Azul é a mesma pessoa. Chamam-no assim por ser de origem estrangeira e ter os olhos azuis. Blue, em inglês, significa azul.

– Estou curiosa porque sempre ouço falar nesse senhor.

– Enganou-se, minha filha, ele não é um senhor em termos de idade: ele é jovem, muito jovem. Não como você que é apenas uma criança.

– É o jornal. Azul abala as muralhas da política vigente, lançando, em profusão, a revolta dos sindicatos e defendendo a tese de que, só com a força, se conseguirá levar o proletariado ao poder; um navio foi a pique, levando com ele, 187 vidas; é o jornal…

– Garoto, veja aí um exemplar para mim.

– Sete cruzeiros, menina.

Às vezes fico pensando como a leitura instrui, mamãe. Estes moleques maltrapilhos e analfabetos goelam, falam em sindicatos, em política, em proletariado, como se estivessem mesmo a par destas coisas político-sociais.

Depois de lerem e relerem isto que Blue difunde todos os dias, chega-se à conclusão de que a instrução, embora puramente teórica, está chegando também a eles. A vila de Tares foi sublevada em quase todo o país e poucos são os conterrâneos que já não a veneram como titã.

– Vila de Tares?

– Então, boboca, nunca ouviu falar dela?

– Não, mamãe. No colégio só ouço falar em teorema de Pitágoras, álgebra, equação, conjunção, navegadores antigos, terras congeladas, evolução política… Além do mais, só saio de casa para ir ao colégio e esta é a primeira vez que me deixam comprar um jornal.

– Tares está a cem quilômetros daqui e é, como dizem, o quartel general dos adversários de Blue, o covil dos revoltados que pretendem continuar no poder.

– Olha, mamãe, o nosso carro já está ficando para trás e papai, você sabe, fica logo impertinente.

– Não é para menos, minha filha. Desde as três horas que estamos a medir as ruas e nada compramos. Voltemos. Amanhã teremos mais sorte e, com certeza, conseguiremos sua anágua.

– Demoramos muito, papai?

– Não, fuzilou o sr. André, já ligando o carro e pisando forte no acelerador. Até me admiro terem vindo tão rápidas hoje!

Minutos depois, já o automóvel parecia decolar, tal a velocidade que o sr. André lhe imprimia, enervado pela longa espera.

– Mamãe, conte-me mais sobre Tares e, também, sobre este tal de Blue. Ele é bonito, mamãe?

– Tal qual está aí na foto, filha.

– Mas, aí onde?

– No jornal, minha filha, na segunda página.

Virando a folha com frenesi, Alice deparou-se com um gaio rapaz de olhos azuis que se trajava impecavelmente e tinha, para ela, a aparência dos mitos. Cabelos em desalinho, traços fortes de autoritarismo e a expressão de esbeltez, incutiam em Alice, o desejo de vê-lo pessoalmente, de conhecer aquele jovem de quem tantas vezes ouvira falar. Aproveitando uma pequena distração de sua mãe, Alice levou o jornal à boca e beijou a estampa, pensativa, já prematuramente apaixonada. Depois, encarou dona Zélia com ares de intensa ansiedade: conte-me mamãe, conte-me tudo o que a senhora sabe sobre ele.

– Há uns 30 anos, Tares restringia-se a um pequeno núcleo de algumas cabanas, todas elas cercadas de matagais. Eram casebres rústicos, construídos com madeiras descartadas, papelões e plásticos. Não se podia quase conceber de onde conseguiam tantos refugos e, muito menos, como ali sobreviviam algumas famílias, como sempre cheias de filhos.

Marites, por sua vez, orgulhava-se de seu progresso e dizia-se mais culta e, de fato, ela era. Criara um grande mercado estatal, em que eram negociados, espuriamente, as pedras preciosas e o ouro existentes, tanto nas cercanias como nos longínquos rincões. Porém, a Terra não era cultivada e isto, somado ao desleixo dos exploradores de pedras preciosas, não produzia alimentos. Estava, assim, oscilando, quando certa tarde apareceu um senhor barbudo, alquebrado pelos serviços e recurvado sob o peso de uma pedra que estava dentro de um saco de estopa. O fiscal praticamente enxotou o pobre velho sem, sequer, ouvir o que ele tinha a dizer.

Desapontado, faminto e sem dinheiro, o velho foi ter à loja de um esperto comerciante que lhe comprou o diamante pela ínfima quantia de cinquenta mil cruzeiros. Logo, a população inteira ficou sabendo do acontecido, tanto que, logo nas primeiras semanas, caravanas desfilavam para Tares em busca da mina em que o velho encontrara a grande pedra.

Após cinco anos de vãs escavações, centenas de velhos barracos edificados permeio a mata já eram notados. Tares foi logo invadida pela ganância dos garimpeiros. Esses eternos sonhadores de riqueza instantânea, não conseguindo a localização da mina em que o velho encontrou o grande diamante, praticamente arrancaram, pela raiz, mais de 15 quilômetros de matas virgens. Quando pressionavam o velho, ele apenas dizia que encontrara a pedra por ali, bem por cima da terra, mas já não se lembrava mais do lugar exato. Não tendo encontrado nada e sem outra opção, os garimpeiros foram ficando por ali mesmo, construindo barracos mais espaçosos, trazendo suas famílias e, aos poucos, abandonando a garimpagem e cultivando a terra, a fim de se sustentarem. Nunca se soube muito sobre o velho, quem era, onde morava sua família, o que o levara a instalar-se ali. Somente mais tarde se ficou sabendo que toda aquela área pertencia a ele e que o diamante viera de outro garimpo e apresentado ali para que as terras dele fossem valorizadas. Entretanto, nunca se comprovou nada.

– E é bonito este lugar?

– Bem, eu – por não ser tão exigente – acho que é. Admiro ter sido implantada às margens do rio Serra, com imensas ramagens a lhe prestar culto dia e noite; ter matizantes belezas; o crepúsculo mais lindo que já vi; a Natureza preservada; o ir e vir de canoas e gôndolas velozes dos pescadores a descarregarem e venderem seus peixes. Para mim, minha querida, Tares é uma Versalhes em miniatura.

E veja como a ideia fixa de enriquecer rapidamente é forte: as gôndolas, por exemplo, são características de estrangeiros que vieram de muito longe para tentar a sorte. A notícia da pedra do velho não respeitou fronteiras.

– E como foram parar lá os pais de Blue?

– Quanto a isso, minha filha, pouco sei. São muitas as maneiras como contam. Creio que, mais tarde, até lendas serão criadas. Uns dizem que o pai de Blue se embrenhou nos sertões devido a um horrendo crime de assassinato. Aliás, isto parece até fazer sentido, porque, tanto o velho como os filhos, eram violentos e vingativos; outros afirmam que, como tantos outros, também ele foi atraído pelo grande diamante. Há ainda os que afirmam que o pai de Blue sempre foi adepto do silêncio e por demais misantropo: motivo principal que o fez afastar-se da vida atribulada da cidade.

– Esta última me parece vaporosa. Como pode um filho contrastar tanto com o pai? Um pai misantropo, que venera o silêncio, e um filho que loucamente adora a balbúrdia e a algazarra inaudível da revolta? Acho desproporcional e sem coerência, mamãe.

– Bem, filha, isto de dizer que para lá foram sedentos de calma, é muito relativo e digno de respeitosas antíteses.

– Mas, mamãe, por favor, quero saber mais. Estou curiosa.

– Puxa, minha filha! Juro-lhe que não estou entendendo bem a ansiedade que está demonstrando. Você não se acha ainda muito nova para se interessar tanto por um homem? Mas, enfim…

– A família de Peter veio da Inglaterra ainda antes que algum filho tivesse. Apesar de ignorar o motivo, sei que foram para a Alemanha, onde nasceu o primeiro filho, Klaus, que foi, por muito tempo, solícito advogado de um vilarejo. Acabou falecendo num desastre acidental. Depois disto, vieram para o Brasil, onde nasceu Blue, conhecido vulgarmente por Azul. O sr. Peter, pai de Blue, teve a infelicidade de ver seu filho crescer permeio às lutas e aos ataques vis de lutas internas, entregue inteiramente às influências selvagens. Com 17 anos, Azul viu o desassossego pousar sobre Marites, com asas tristes de quem deixa inculcado o gérmen revolucionário. E assim, apesar do tempo e da longa tribulação antes vivida, o jovem acabou asfixiado pela guerrilha que ele mesmo implantara.

Agora, o que nos resta é apenas esperar a época em que um desses postes receba o corpo de Blue que, dependurado em holocausto, venha dar ao populacho, a certeza de sua força e agressividade. Peter teve ainda um outro e último filho: Franz, que hoje deve estar com três ou quatro anos.

Depois de ouvir as palavras de sua mãe, Alice agarrou-se no ombro de seu pai e perguntou:

– O senhor é também contra o Blue, papai?

Esboçando um leve sorriso, quase de amargor, o senhor André meneou a cabeça, fazendo-a compreender que a estrada pedia precauções. Alice deixou-se ficar cabisbaixa e mal os freios seguraram o carro, ela tornou a interrogar, quase aflita:

– Mas, papai, percebo que também não lhe tem simpatia!

– Ora, filhinha, isto pouco importa. Você bem sabe que não me meto em política e, portanto, minha opinião não tem qualquer valor. Isso aí é briga de cachorro grande, de homens gananciosos e, como sabe, estou sempre fora desse grupo.

– Mas eu quero saber, papai. Por favor!

– Bem, o fato de a família ter um passado obscuro, não me agrada comentar. Sua mãe já deve ter-lhe dito, que o senhor Peter é separado da mulher legítima e que seu último filho, Franz, foi deixado numa cresce, sob ensinamentos de professoras de diversas personalidades. Ainda hoje você pode contemplar alguns tijolos corroídos pelas chuvas, que lembram um orfanato destinado apenas à manutenção de crianças desamparadas. O estudo dependia totalmente da boa vontade de quem ali se encontrasse. Franz, embora criança, deve ter se esforçado muito na busca pela sobrevivência. Hoje fala, como dizem, muito bem para uma criança e carrega nas palavras, como o irmão Blue, o dom do convencimento. Bem minha filha, você terá que cursar em Tares e, então, ficará sabendo de tudo, de coisas belas e feias, gloriosas e de horror. Não precisa se preocupar, pois a escola do Santuário é um colosso da arte moderna, apesar de a terem construído em Tares.

 

II
Mas, tanto em Marites como em Tares ninguém podia supor a identidade de tão misteriosa família. Só mesmo retrocedendo à época dos acontecimentos, seríamos dirigidos a uma esquina silenciosa em que, até um sussurro cortava o silêncio das 23 horas. Fora num bairro calmo, em que ninguém suporia haver, no silêncio das casas enfileiradas, uma tragédia incomum:

– Miserável, sua traição chegou ao fim.

Imaginando que a ameaça se dirigia a ela, Jorja, sua mulher, contra-atacou:

– Se der um passo em minha direção, gritarei alertando a vizinhança. Não se esqueça que está, apesar de tudo, em minhas mãos. Ninguém se preocupará em provar meu adultério; antes acharão normal. Os tempos mudaram, meu velho! Não bastasse, ninguém perdoa um chifrudo, você sabe que morrerá com este estigma.

Baixando a cabeça como se tivesse recebido o primeiro tiro, Peter retrocedeu dois passos, sacou e disparou sua arma contra o corpo do provençal, deixando-o estirado a poucos passos da cama.

Peter era um senhor de alta estatura, cabelos negros, mais ou menos ondeados e partidos ao meio, dentes amarelecidos e bigode bem disforme para recamar sua boca estreita: semelhante à de um bode em um de seus momentos raros de seriedade. Usava, quase como uniforme, sempre o mesmo estilo e as mesmas cores da roupa. Nesta noite, porém, encontrava-se de sobretudo e, por baixo, calça cinzenta e camisa esporte de fina lã, escolhidas para uma reunião que prometera participar.

Era um homem simples e fiel, amava a esposa, mas era de agressividade incontrolável e não queria aceitar a traição. Aliás, esta característica parecia parte ativa da genética dele e dos filhos. A frieza também lhe era conselheira nos momentos mais tribulados. E, mesmo tendo perpetrado o crime há alguns minutos, logo lhe ocorreu a saída: se eu me mudar daqui agora, ninguém saberá quem foi o assassino. No máximo culpariam sua mulher, mas ela também, estando a milhares de quilômetros do Brasil – ao menos neste tempo – não seria procurada. Aliás, 200 quilômetros já era muito para a polícia de Tares e Marites.

Permaneceu no quarto, deixou que tudo se acalmasse, a fim de evitar o tumulto comum a essas ocasiões. Depois de algumas horas, tudo silenciou, nenhum curioso foi ao quarto para saber sobre o disparo. Caindo a ficha e vendo-se perdido, Peter entregou-se de todo à confissão de humildade e conseguiu convencer Jorja a fugirem, logo em seguida, para a Alemanha.

Saíram dali e ficaram escondidos por um bom tempo, até que pudessem singrar as águas calmas do Tâmisa, em direção ao mar do Norte. Lá esperaram que os céus lhes dispusessem outra embarcação maior para alcançarem a foz do Reno e chegar à Europa Central. Podiam, por certo, parar num recanto qualquer da Bélgica, mas temiam a proximidade. O provençal era de uma família francesa, rica, violenta e sem escrúpulos. Impreterivelmente, Peter já pouco levava em conta a traição da mulher. O que mais interessava no momento era salvar a pele e livrar-se da prisão.

E sem merecer, o céu o protegeu; conseguiu, de um contrabandista de navegação costeira, cortar as águas que separam a Grã-Bretanha da Bélgica e deixá-lo em terra na foz do Reno. Alheio ao que se passava no andamento do crime, Peter, nem tanto se arrependia: deixava que os dias passassem e que o mesmo céu lhe voltasse a sorrir. E de fato, sorriu, propiciando a Peter subir o Reno durante dias e ganhar o afluente Lahn, para chegar à cidade de Marburgo.
Aí viveu anos, completamente desconhecido. Foi esquecendo um pouco o passado e deixando a vida correr a seu bel prazer. A bebida era a companheira que sempre buscava para esquecer seu delito. Jorja, no entanto, não mudou sua apatia para com ele. Na verdade, o traiu pela primeira vez porque já não sentia qualquer atração física por ele e era destas mulheres que parecem nascer para a luxúria. Tratava-o com estranha indiferença e parecia nunca ter presenciado o assassinato do seu amante provençal. Não ouvira dizer, nunca, que o crime fora misterioso e, também desconhecia qualquer ação policial para desvendá-lo. E neste mesmo clima de sobrevivência horrível, veio à luz, o segundo rebento do casal.

Estranho era notar como seu primeiro filho, Klaus, tenha se comportado na vida, como um autêntico homem de estranha coragem e honestidade. Trabalhou até aos 35 anos em Marburgo, quando, acidentalmente, veio a falecer. Com a morte do filho, a família de Peter procurou ainda mais se distanciar da Pátria, quando soube, por meio de um pobre gondoleiro, que uma tal polícia secreta da ONU andava na pista de um antigo crime em que fora assassinado um rico provençal. Foi amarga para Peter, aquela noite que o separou do início de uma nova viagem para a terra imaginária desta história. Com ele veio o adolescente Blue, de espírito revolucionário, e muito ligado às letras.

Quem praticamente contava essa história, era a mãe de Alice, quando em vez aparteada pelo marido.

– Mãe, como consegue guardar toda esta história na memória?

– Foi uma comadre muito íntima deles que escreveu e depois permitiu que eu lesse. Li uma dezena de vezes, tanto que acabei decorando, principalmente os fatos mais importantes.

– Só mesmo assim, mamãe. Tivesse eu uma memória desta, iria cursar o vestibular para Medicina, que é o sonho de papai.

– Seu pai esquece que não é ele quem traça os destinos dos filhos. Para mim, filha, eu queria mesmo que você cuidasse de sua felicidade, como médica, ou irmã de caridade.

 

III
– Como a história me prendeu, mamãe! Quantos cenários utópicos recamam estas plagas ocidentais. Nem Tomás imaginara em suas contemplações de mártir, um éden mais propício. Pasárgada de Bandeira seria apenas o camelo grotesco que daria ingresso à estrada feliz que a mão do Senhor traçou.

E, enquanto dona Zélia e o senhor André satisfaziam a curiosidade de Aline – cuja curiosidade já demonstrava paixão por um estranho que nem conhecia – Peter e Jorja reviviam um passado de sonhos e felicidade:

Entre banhos da tênue luz do luar, o casal se entreolhava ternamente. Pareciam jovens enamorados que ao mélico som campestre, entregavam-se ao prazer de uma união estreita e proibida. Os corpos se uniram no vácuo humano. Um novo ser humano, nesse dia fora plantado no útero de Jorja. Que noite maravilhosa, de luar inesquecível, principalmente para Peter, que sequer sonhava com o retorno do prazer dos primeiros meses do casamento! Pareciam entorpecidos, sonhando com delícias sem fim, sob um céu imerecido. O aroma das flores, levado pela brisa que dançava sem ritmo, amenizava o calor daqueles rostos cobertos de beijos e de desejo insaciável.

E a noite foi passando, mais e mais, até que os chilreios das saíras os despertaram. De fato, Peter amava Jorja e ela, ainda que em raros momentos, sentiu que podia amá-lo como no início do casamento.

O remorso de Peter, momentaneamente, parecia ter voado para bem longe, assim como se constituíra naquele instante obsessivo em que assassinara, por ciúmes, o provençal. Não ouvira, nesta noite, os acessos paranoicos que sempre estavam presentes, revertidos em dolorosas reminiscências.

E daí viria o rebento indecifrável, de estranha personalidade, mas com toda a genética do que é certo e direito. Não o sendo, a justiça seria feita com as próprias mãos. Seus maiores traumas vinham das constantes discussões dos pais, que lutavam como se estivessem numa guerra para permanecerem juntos. Demonstravam não se amar, mas permaneciam unidos. Quando nasceu, o menino foi batizado com o nome de Franz.

 

IV
Nascera o terceiro filho da família. Era uma criança muito inteligente e inquieta. Tinha aspecto saudável. Seus pais encetavam as discussões, quase sempre longe do menino, mas isto não o impedia de surpreendê-los trocando farpas. A tudo o menino ouvia perplexo. Jamais recebia carinho dos pais por longo tempo. Certa vez, já passados dois anos, viera a uma localidade próxima, um missionário que cativou a alma de Franz e incitou-o ao Batismo. Disto seus pais nunca souberam, porque o menino já nascera um perfeito guardador de segredos.

Um ano depois, vê-se jogado numa cresce, ao bel prazer de seus instintos. Não sabia o porquê, morando tão próximo do orfanato, teria de ficar nele. Seus pais enfim se separaram, quando Jorja fugiu com outro homem. Fora em vão, todo o esforço de Peter para tentar salvar o casamento mais uma vez.

Peter havia pago dois anos de seu internato, e antes que completasse o período, também desapareceu. Uma enorme angústia foi se avolumando, juntamente com a vergonha de ter por pais, pessoas tão medíocres e irresponsáveis. Contava, então, com 3 anos e já as irmãs de caridade, frequentemente o surpreendiam fazendo coisas erradas, acabando por não o aceitar mais na creche.

Como no orfanato ninguém sabia do paradeiro do pai, Franz foi para o mundo ainda criança. No começo ele aproveitava, por necessidade, o prato caritativo de algumas freiras que reconheciam suas traquinagens como coisa de criança. Franz vendia jornais de outras cidades, tendo uma porcentagem que ele usava para comprar chocolate e picolés. Via-se sempre envolvido em desavenças, surpreendido em quintais ou em botequins proibidos para menores.

Seu espírito ia, dia a dia, diante da revolta pela pobreza, do abandono dos pais e da incompreensão humana, tentando sobreviver. Já aos quatro anos, conseguia ler e escrever alguma coisa. Tinha talento, mas não tinha como desenvolvê-lo. Era um gênio, mas continuava na garrafa hermeticamente fechada. Andava sempre mal arrumado, vestindo-se com trapos doados por alguma família compadecida.

 

V
– Ei, menino, onde está seu pai?

– Não sei.

– Ora, como não sabe?

– Foi o que o senhor ouviu: não sei!
.
– Está com o irmão? Trouxe irmãs bonitas também, ou só a velhota rabugenta?

– Você é um homem miserável. Queria que meu pai estivesse aqui para ver se é mesmo homem para dizer estas coisas. Vale-se do tamanho para humilhar-me, não é mesmo? Um dia, talvez, quando estiver como uma araponga velha e recurvado sob o peso dos anos, quero ver se terá coragem de ofender uma criança.

– Há, há, há, riu-se o senhor Martins. Além de pixote ainda se faz de valentão. Não acha mais razoável olhar para sua roupa ou pensar na maneira de derrubar um palmito, ou um cacho de cocos para matar a fome?

– Sim, sim, concordo. É muito mais razoável pensar em futilidades do que conversar com um ser bruto como o senhor.

E dizendo isto, afastou-se com lágrimas nos olhos. Era ainda uma criança, mas que carregava no sangue a coragem de Peter, seu pai. Por causa deste aparente atrevimento e de Peter, seu pai, não haver pago a mensalidade da creche, fora mandado para o mundo. Notava-se, claramente, que apesar de criança, pensava e tinha as mesmas reações de um adulto. Jamais iria esquecer o abandono dos pais.

Durante os dias de viagem a lugar nenhum, tinha consigo, apenas, secos pães que a soror compadecida havia lhe preparado. Porém, a sacola estava agora vazia e à vista das centenas de pessoas que ceavam à sombra dos arbustos – como se estivessem num convescote – Franz começou a pensar no triste futuro que o aguardava. Os intestinos barulhavam, parecendo querer digerir o próprio estômago. A princípio pensou em solicitar a caridade, alguma sobra, mas depois de olhar aquelas fisionomias fechadas, preferiu mesmo seguir os sarcásticos conselhos do senhor Martins. Desceu da pedra em que olhava os homens entaipando seus tugúrios e foi ter a um jovem, pouco mais velho que ele, que cortava uma vara com seu facão.
– Você poderia me emprestar seu facão por um momento?

– Hum, para que quer mesmo o meu facão emprestado?

– Para nada não.

– Então não precisa dele.

– Bem, eu precisava cortar umas varas para armar minha cama para pernoitar.

– E seus pais já não fizeram isto para você não?

– Meus pais estão no exterior. Brigaram, se separaram e eu consegui chegar, sozinho, até aqui.

– E como pretende viver sozinho, com esta idade, num lugar deste?

– Bem, pode me emprestar o facão?

– Ah, sim, havia até me esquecido. Aqui o tem.

O menino estava triste e nem podia ser de outro jeito. No fundo, estava arrependido por não ter aproveitado a oportunidade de pular dentro do rio Serra que estava transbordando. Ele estava à margem, chorando desesperadamente. Estava com muito medo de enfrentar a vida sozinho.

Pensando assim, ele desceu a encosta e vagarosamente penetrou no paul que insulava centenas de palmeiras com miolos comestíveis. Bateu o facão, lutou desesperadamente até que a palmeira cedeu aos impactos, tombando sobre um emaranhado de cipós e não chegando ao chão.  Baldados haviam sido seus esforços, que só serviram para lhe aumentar a fome. Devolveu o facão, sentou-se sobre o toco da palmeira que havia decepado e se pôs novamente a chorar. Ali, sem amigos, sem ninguém e com muita fome. Os soluços cortavam o leve murmúrio de uma cachoeira ao longe, que parecia ainda mais chuá do mar banhando as areias da praia.

Abstraído e tristonho, Franz se imobilizara choroso sobre o toco da palmeira. Não percebeu nem um leve ruído para explicar que algo o tocava. Ia gritar, mas uma suave mão cobriu-lhe a boca e uma rede de embiras, os olhos. Nada mais do que sentir podia ele. Mãos macias seguravam-lhe os braços e as pernas e sobre seu peito e rosto, partes macias de quando em vez o socorriam. Não ouvira uma única voz e muitas horas depois, quando pôde abrir os olhos, viu-se em plena noite, ao lado de uma mulher que lhe passava frutos do mato e lhe dizia:

– Nunca mais será um menino triste. Jamais passará fome, porque eu irei cuidar de você. Nós vamos ter de passar o resto da noite aqui, mas eu irei cuidar de você. Pode dormir, porque nada o irá incomodar.

Vendo-o revigorado, a guerreira acaramaxá Jeré, mulher de Zatu, então grávida de dois meses, o tomou novamente na cesta e caminhou até a aldeia em que morava, deixando o menino numa oca estranha, sem ninguém por perto. Estava escuro e tudo o que via assemelhava-se a espetros. Soube, certa vez, que a morte vinha sorrateira e nem sempre dolorosa e que, no além, era sempre profundo silêncio e metuendo abstracionismo. Sentiu vontade, novamente de chorar, mas, mal fugiu-lhe da garanta o primeiro soluço, eis que se entreabre a portinhola e um vulto singelo se acerca dele, com um cesto nas mãos, ofertando-lhe frutos diversos. Pelo menos – imaginou ele naquele delírio – estou no céu.

 

VI
A tribo Acaramaxá fora, no passado, flagelo dos mineiros de Tares. Em Marites dizia-se até que o desconhecido ancião mentira quanto ao local do diamante, pois não se concebia que alguém se safasse das guerrilhas dos nativos. Segundo diziam, não passava de uma centena de índios tenazes que forçava os imigrantes a dividirem seus lucros. Mas, isto foi no passado.

Supersticiosos, estes índios mantinham a tradição de que nenhum casal silvícola podia dar ao mundo um filho, senão de cinco em cinco anos. Por esse motivo havia na tribo, sempre, o aproximado número de 100 pessoas. Viviam na inércia, contentando-se com a alimentação obtida da própria Natureza, que era pródiga. Seu chefe, Zatu, havia se empossado há pouco tempo, quando falecera Jareus. Casara-se com a própria filha do ex-morubixaba e conseguira, então, o recorde de rei mais novo da tribo. Sua esposa Jeré, muito gostava de errar pela floresta, contemplando a beleza da Natureza. Era muito amante da solidão, procurava compreender como aqueles casais conseguiam viver no celibato, dormindo juntos, durante cinco anos. Sim, porque, nesse tempo, por lá, não se tinha nem ideia de como se evitar a gravidez. Para eles, principalmente quando as mulheres estavam menstruadas, não se podia, sequer, dormirem juntos.

E Jeré pensava: não haveria maneira de quebrar aquela tradição? Jovem ainda, esbelta, lábios grossos, vivia à margem dos riachos, acariciando-se cheia de desejos. Nas primeiras tentativas, por esterilidade, sua ou do marido, não nascera o filho desejado e, então, numa de suas caminhadas, sem ainda saber que estava grávida, raptou Franz, que logo foi batizado com o nome indígena de Brauxo.

Notara na sua alma ingênua, algo de grande nos olhos azuis daquele menino, que comia avidamente as pitangas e manteigueiras que ela lhe dava. Tinha, então, 6 anos. Chamava-se Franz, mas Jeré dera-lhe o nome de Brauxo, que na língua acaramaxá significa “filho crescido fora do ventre”.

Depois de ceado, Brauxo quedou-se em profundo sono, ouvindo a voz de sua ama e recebendo dela, com grande desvelo, um beijo no rosto. Brauxo sobressaltou-se, tal o frescor e o perfume do hálito das frutas que lhe vinham ao rosto. Logo depois, dormia novamente sobre a rede da própria Jeré. Durante o sono, Brauxo sonhava, relembrando os reveses de sua vida.

Agora, com oito anos de vida cheios de aventuras. Parecia sentir nos ouvidos, as rixas de seus pais, e no coração, todo abandono à sua infância. Via a cada instante, aqueles rostos a fitá-lo e enormes selvagens a apontar-lhe flechas. E sempre quando pensava em gritar, aquela mão macia e terna cobria-lhe a boca e beijava-lhe a face. Por vezes sonhava estar sorridente em sua casa, embebido na falsa felicidade dos seus pais, ou então, vendo o rosto implacável e, às vezes bondoso, da soror a repreendê-lo. Acordava de repente e a seguir caía pelo cansaço, num sono sem paz, leve e cheio de contradições.

A vida parecia querer imprimir na sua alma, um caráter que, no futuro, tão bem seria justificado pela infância que tivera. Sua mãe agora era Jeré e tanto o protegia que às vezes se perguntava porque não nascera das entranhas dela? Jeré, mais feliz do que qualquer outra mãe no mundo, não se desapegava da filha que nascera de suas entranhas. Ela tinha mais ou menos quatro anos a menos que Brauxo e se chamava Indira, filha de Rudá, por livre consentimento de Zatu, cacique estéril. Dificilmente ela deixava a rede de Brauxo, que era incansável em distraí-la. Bem cedo já andavam pela floresta, sem que seus pais se preocupassem. Afinal, a floresta era apenas extensão de suas moradias.

 

VII
Ia crescendo o menino no seio da imensa floresta. Devido à proximidade dos mineiros que se amotinavam em Tares, a tribo afastou-se mais para o centro da floresta, distando do povoado 60 quilômetros. O governo havia traçado limites, outorgando direitos aos Acaramaxás, que passaram a dominar boa parte da região norte. Depois disto, a vida teve um tempo de normalidade. Os Acaramaxás pararam de explorar os civilizados e se acostumaram a viver pacificamente, vivendo das benesses da floresta.

Marites crescia paulatinamente, principalmente com os emigrados de Tares que, por sua vez, foram morar nas cercanias, formando uma favela de cabanas plantadas perto do rio Serra. Os Acaramaxás, ainda com suas superstições, conservando a antiga tradição, não haviam ainda superado seu percentual oscilatório de, aproximadamente, 100 índios.

Jeré, depois de muito tempo de espera, trouxe ao mundo uma indiazinha cor de jambo, com cabelos e olhos negros. A boca era bem delineada com toques de sensualidade, herdados, com certeza, da mãe. Amava os bosques e mal atingira os cinco anos, já caminhava alegremente pelas trilhas sem fim da floresta, tendo sempre ao lado o companheiro Brauxo. Sempre possível, ia, à lagoa Marxé, ou lagoa das Flores, não tão distante da aldeia. Marxé usufruía da particularidade de conservar as vitórias régias sempre floridas. Não bastasse, suas margens eram recobertas de flores diversas, muito cheirosas, com um verdadeiro gramado atapetando grande parte de suas margens. Era deitado neste capim que Brauxo e Indira passavam muitas tardes brincando como crianças inocentes que ainda eram.  E mal retornavam à aldeia, Indira já se enlaçava em seu pescoço e dizia:

– Amanhã a gente vai voltar, não vai Brauxo?
Ir lá era um costume diário que fizera Franz adaptar-se muito depressa, à condição de Brauxo. Achava interessante voltar de suas caçadas de zarabatana, com irerês nas mãos e ver a menina bater na água límpida cheia de flores silvestres, rindo-se como se no seu mundo nada faltasse. Aproximava-se cauteloso e vez por outra costumava assustá-la, imitando o esturro de uma canguçu, que fazia Indira apertar-lhe o pescoço com mais força ainda.

Brauxo transformara-se num adolescente forte e destemido, mas, pela sua cabeça, sempre a vontade de se vingar do pai que o abandonara. Aquele ar puro que respirava, a fartura de carne dos animais silvestres e as suculentas frutas da floresta o transformavam, dia a dia, no mais forte Acaramaxá. Até então, apenas se preparava, fisicamente, para o futuro com o qual se sentia predestinado.

Passava horas a fio acariciando os negros cabelos da indiazinha que, em seus joelhos dormitava, pensando, possivelmente, no dia em teria de abandonar aquelas plagas e voltar a Marites, para levar a efeito sua promessa de vingança. Pensava: onde estará minha adúltera mãe? E ele mesmo tentava adivinhar: por certo asfixiando a consciência em algum prostíbulo. Seu pai, porém, soubera, estava internado num convento, aguardando que o desligassem dos votos sacramentais do matrimônio para fazer parte da Congregação Franciscana.

Menos mal! Havia sofrido o impacto da voz divina e, arrependido, retirara-se para o mosteiro de Marites. Enquanto aguardava o momento dos desimpedimentos canônicos, cursava o Clássico, que incluía Filosofia e Teologia. Tinha saudades do filho – do qual jamais tivera notícia – e a mesma facilidade de reter o que lhe ensinassem. Sentia constantemente as lágrimas descerem, tão logo lembrasse aquele menino de olhos azuis penetrantes e sorriso esbelto, que havia desaparecido, sem que, ao menos, tivesse lhe dado a felicidade do batismo. Nunca estivera certo de nada.

Abandonara a loja em que ganhava a manutenção de Franz e, desesperado, dispôs-se ao suicídio. Viveu desregradamente por muito tempo, mas um dia o arrependimento tocou-lhe a alma. Voltou ao orfanato para buscar informação sobre o filho que ali abandonara. Assustada, a soror limitou-se a fitá-lo horrorizada. O tempo passara e nem as irmãs, nem o senhor Martins souberam dizer sobre o fim que o filho dele tivera. O Sr. Martins apenas se lembrou de um certo garoto, segundo ele, malcriado, que viu no garimpo de Tares, e que, pela característica, poderia ser ele.

A tarde caía lenta e preguiçosa sobre a lagoa. A menina ainda dormia sobre os joelhos do jovem caçador. Batendo-lhe levemente na face, Brauxo a despertou:

– Por que me acordou?

– Já é tarde. Temos de voltar.

– Não sabe que não pode acordar a filha de um cacique?

– Pois não. Da próxima vez vou deixá-la aí sozinha junto com as onças, as sucuris e os jacarés. Antes escreverei um bilhete dizendo que é filha do cacique.

– Não, não, jura agora mesmo que nunca fará isso!

Sorrindo com toda ingenuidade de um indígena e toda fugacidade de um universitário, Brauxo balbuciou: pelo deus Sol, não farei isso. Jamais qualquer bicho tocará em você eu estando a seu lado. Você é meu anjo da guarda, o anjo que me faz amar a vida e assegurar que Deus existe.

Brauxo já era um rapazinho forte e Indira, uma linda menina moça com lá seus 11 anos. Por isso, aquelas carícias que a princípio significavam apenas amizade, começaram a transcender para amor de verdade. Ao se recolher, Franz sempre pedia a Deus para que não lhe permitisse esquecer que Indira era, em seus conceitos cristãos, ainda criança.

Não foram poucas as vezes em que Brauxo pensou em um dia casar-se com Indira e viver em paz, ali mesmo no lugar em que agora se encontrava. Duas coisas o amedrontavam: uma para o mal e outra, para o bem. No mal, o guerreiro Kauê parecia não o suportar, talvez imaginando que ele pudesse ser entrave a seus planos de se tornar cacique dos Acaramaxás; e no bem, Rudá, um jovem de sua idade que olhava para ele como talvez não olhasse para Tupã em suas orações. Nunca fora inconveniente, mas estava sempre por perto como um anjo da guarda. Nos dias de caçada, era sempre o amigo escolhido por Brauxo para fazerem a dupla. Certa vez, ao ser enrolado por uma sucuri, Rudá deixou cair a faca e não encontrava forças para se desfazer do ataque. No grito de socorro, Brauxo apareceu como seu anjo da guarda, atirou-se no pântano e separou a cabeça da cobra que, lentamente foi afrouxando e liberando Rudá. Nesse dia, já a salvo do lado de fora, Rudá abraçou-o e chorando disse:

– Minha vida a mim mais não pertence. Ela estará sempre pronta a ser usada em seu favor. Ela é sua. A vida que era minha, terminou neste momento.

– Sempre gostei de você, Rudá, mas sou obrigado a dizer que faria a mesma coisa, fosse até mesmo o Kauê, que sei que me prefere morto. Jamais podemos ladear estes pântanos sem uma amolada faca bem presa à cintura: é a única arma que pode nos libertar desses monstros. Depois de se enrolarem na gente, se não lhe cortarmos o pescoço, elas quebram todos os nossos ossos, fazem um linguição e nos engolem inteirinhos.

 

VIII
Certa noite, Zatu caiu extremamente febril e toda tribo se reuniu na cabana do feiticeiro, homem perspicaz que bem conseguia iludir sua tribo. Mais do que ninguém, ele sabia que não entendia nada e que todas suas mágicas e previsões não passavam de meras suposições, hasteadas na ignorância cultural de seus comandados. Sabendo que Brauxo conhecia bem a farsa de seus conhecimentos curativos, chamou-o em particular e lhe pediu conselhos sobre a febre de Zatu. Compreendendo a situação do feiticeiro, Brauxo dispôs-se a consultar Zatu. Mal tocara-lhe, descobriu que se tratava de uma febre bem sua conhecida: a malária. Sabia, também, que não era todo tipo de malária que era perigosa, mas percebeu logo que, a que infligira Zatu era a do tipo Plasmodium falciparum. Sem tratamento adequado, este tipo de malária leva o infectado à morte.

A princípio, sentando, Zatu fitara-o praticamente em agonia. A seguir, abriu a boca, mostrando negros e toscos dentes e deixando um tal calor fugir-lhe do bafo, que uma folha nova de mamoeiro logo murchou ao ser exposta por alguns minutos ao seu hálito. Rosnando como uma canguçu ferida, Zatu estirou-se na rede de embireira, contorcendo-se de mal-estar e totalmente lívido: dores por todo o corpo, febre alta, calafrios, tremores e sudorese. Sentia tudo zunzunar e seus olhos não divisavam bem as coisas.

Alguns minutos depois, sentado com a cabeça enforquilhada entre os joelhos, tiritava de frio, apesar de seu corpo exalar um mormaço assustador. Espantados, os indígenas entreolhavam-se. Era a primeira vez que a malária era vista na tribo, e apenas o cacique Zatu agora experimentava os sintomas.

Era a vez de Brauxo profetizar. Sabendo que de duas horas em duas horas a febre retornava, Franz, virando-se para os olhos esbugalhados das mulheres, disse imperativamente: rezai ao Sol, pois que antes do amanhecer, nosso chefe tremerá ainda seis vezes e é provável que Deus o leve. Chorosas, como remuneradas carpideiras, aquelas índias de bustos dependurados e tez abacinada, voltaram às suas ocas. Franz dobrou a portinhola da cabana e deparou-se com Indira, a indiazinha cor de jambo. Trouxe-a ao largo de seu costado, dobrou-a para frente e apertou-a com todo carinho possível. Indira sorria e já habituada aos mesmos pedidos, disse, mesmo distraída:

– Vamos pescar na lagoa agora?

– Ô queridinha – respondeu o jovem e bom acaramaxá – não vê que já o Sol retirou-se para dormir?

– Mas, Brauxo, você não disse que a Lua tomava conta da mata, enquanto o Sol descansava?

– Devo ter dito isto, mas vamos dormir agora e, amanhã, se seu pai estiver melhor, iremos visitar as flores da bela lagoa e pescar.

– Sim, amanhã bem cedo. Agora toda mata cheira muito, por que Brauxo?

– É porque a Terra tem quatro estações, dividindo os 365 dias do ano em quatro partes, sendo uma fria, outra quente, e duas nem quente, nem frias, numa das quais, a Terra se enche de rosas e flores e elas exalam o cheiro que têm, e o vento se encarrega de perfumar a floresta.

– Por quê?
A pergunta veio a Brauxo no mesmo momento em que ele depositava a menina na pequena rede na grande casa de Jeré. Seus olhinhos negros como a noite sem luar, foram se fechando e seus lábios entreabriram para que um suspiro de inconsciência escapasse: dormia.

Puxando a corda de embira, Brauxo movimentou a rede num suave vaivém de acalanto, saindo logo depois para o pátio da aldeia. Foi sentar-se na penumbra de um oitizeiro, carregado de pequenos frutos. Seu olhar não pairava nas ocaras, nem na imensa floresta que lhe vinha aos pés. Lembrava que já estava crescido e forte o bastante para voltar à civilização. Quantas vezes, sobre um dos galhos do ingazeiro, fitava as claras águas que vinham aos pés de Indira.

Recordava, também, que já não era tão fácil deixar aquela criaturinha e partir. Ele a amava como, possivelmente, nenhum pai indígena ainda havia amado. Sentia a cabeça em ebulição. Indira contava já 11 anos de vida e Brauxo,15, e as idades já admitiam a intromissão de uma nova amizade. Não seria fácil deixá-la, quando tivesse de partir. Pelo costume acaramaxá, Brauxo podia desposar Indira, mesmo sendo ela de menor, mas ele não se sentia um índio ainda. Sua consciência não fora preparada para cometer, no seu entendimento, tamanho desatino, porque o seu Deus não era o deles.

Enfim, teria de esperar que o tempo – infalível juiz de todas as questões da alma – desse sua sentença. Era um homem saudável e, por certo, sua vida seria longa. Não desanimava e nunca deixou fraquejar a ideia de se tornar alguém no mundo civilizado. No entanto, embora nunca tivesse encontrado uma razão que justificasse, ele não se livrava da genética familiar de não perdoar a qualquer um que, como seu pai, houvesse cometido o pecado de tê-lo abandonado ainda criança. Haveria, por força da genética familiar, de vingar-se. Somente Indira, ultimamente, o fazia repensar seus planos. Pensava: se todos os homens sonham com a paz e a felicidade, por que estou pensando em buscá-las na civilização, quando elas estão aqui a meu inteiro dispor?

 

IX
O rufar de velhos tambores esculpidos na madeira e recobertos com couros de felinos, anunciavam a morte do grande guerreiro. Pelas frinchas dos galhos separados, descia o esplendor do Sol. Quando o feiticeiro elevou suas mãos e ergueu os olhos ao infinito, uma grande prancha de madeira desceu sobre Zatu, acompanhada de punhados de barro amolecido que o sepultava para sempre. Estava findo o reinado do grande Zatu! Não era tradição da tribo sepultar seus mortas com demoradas cerimônias. Ao lado da cova, Jeré e Indira choravam a perda do companheiro de tantos anos. Outro que não conseguia esconder sua dor sincera, era Rudá, então, verdadeiro pai de Indira.

Depois do tempo de luto preestabelecido pelas leis da tradição, a assembleia dos Acaramaxás reuniu-se para eleger o novo cacique. A votação, contudo, não se fizera, porque Brauxo dizia ser coisa muito séria e que era necessário mais tempo para que todos pensassem bem em quem deveria assumir o lugar de Zatu, já que, uma vez cacique, só com a morte o eleito deixaria de ser.  Não havia um só guerreiro da pequena tribo que não o considerasse o melhor substituto e por isso mesmo, Brauxo pediu mais um dia para tentar um meio de evitar tamanha encrenca em sua vida.

Sabia que Kauê sonhava ser cacique e que sentia nele um concorrente invencível, porque toda a tribo o venerava, não fazendo qualquer cerimônia em demonstrar sua opção. Conhecia também a lei da selva: se preciso fosse, Kauê não hesitaria assassiná-lo para ficar no cargo. Por isso, planejava fugir brevemente e não queria deixar os demais amigos frustrados, principalmente o guerreiro Rudá e a indiazinha Indira.

Foi à cabana da inconsolável Jeré – índia ainda formosa pelos tantos anos sem engravidar. Colocou os braços sobre os ombros da bela índia chorosa:

– Por que chora, Jeré? Não sabe que a vida tem de seguir certos rumos e que jamais poderemos modificá-los? A vida seguirá seu rumo. Zatu foi um homem admirável, um guerreiro que, de fato, conseguiu sufocar o orgulho próprio para lhe dar a alegria de um filho. E veja como Deus vela por você, porque ao escolher Rudá para ser o pai de sua filha, ele separou da tribo, o guerreiro mais honesto e valente que há entre os Acaramaxás. Rudá fará você aos poucos esquecer Zatu e você será a mulher mais feliz de nossa tribo.

Sem responder, Jeré abraçou-se a Brauxo e apertou-lhe com toda angustiosa dor de sua alma. Franz sentiu o palpitar do ainda jovem coração e a macieza daqueles seios formosos que lhe tocavam o peito. Confundiu todo dever de consolação com o prazer agradável de sentir, tão perto, um corpo feminino, bonito e atraente:

– Por favor, Jeré, não chore. O Sol reserva-lhe grandes alegrias para o futuro.

Desprendendo-se dos hercúleos e longos braços de Brauxo, Jeré correu para o bosque, desaparecendo entre os arbustos. Depois de ficar alguns minutos imóvel e pensativo, Brauxo sobressaltou-se e deu algumas passadas para a rede Indira.

– Pensei que não viesse me ver.

– Ora, por que que eu faria isso?

– Por quê? Vamos ao lago hoje? O Sol está bonito e papai deve estar lá, caçando as antas e as capivaras. Você poderia ajudá-lo, mas me parece que tem medo!

– Medo?

– Você teria coragem de ir caçar lá com o papai?

– Não, não, seu pai era muito mais corajoso do que eu. Por isso ele era o chefe.

– Vamos à lagoa, vamos? Por favor!

Sentindo necessidade de respirar o sossego do bosque, Brauxo partiu para Marxé, a princípio, com Indira no colo, comendo um cheiroso goiti. Depois a colocou no chão e foram vagarosamente caminhando de braços dados, como dois apaixonados amantes. O aroma das flores passeava de um lado para o outro da floresta, criando, na imaginação de Brauxo, um vídeo de crianças correndo e brincando de camon boy e de outras brincadeiras advindas da criatividade das crianças.

Chegaram, afinal, ao bosque já tão conhecido e visitado por eles.  As águas de Marxé ondulavam levemente, refletindo a cada instante, milhões de chispas de luz. Milhares de flores de vitórias régias valseavam sem parar. Um sabiá da mata, na paz da floresta e no ritmo dos ventos, cantarolava seu salmo. À sombra do umbral de um sofrido ingazeiro, Brauxo e Indira pararam. Uma relva fina e fresca recamava o chão daquele espaço. Brauxo sentou-se ali, encostando os largos ombros no tronco recurvado. Indira pôs-se de pé em sua frente. Seus olhinhos estavam semicerrados. O vento brincava com os seus negros cabelos, jogando-os de um lado para o outro. Sua fisionomia denotava necessidade de carinho, de brincar. Brauxo estendeu-lhe a mão com um leve sorriso:

– Que está se passando na cabecinha da mais bela indiazinha cor de jambo?

Abando os cabelos sobre os lábios, a indiazinha retirou-os do rosto e cheia de estranha emoção, desatou a correr, sem dizer uma única palavra.

Para um índio, correr desenfreadamente pelos matagais, não há nada de anormal. Afinal, que diferença há com um estudante de Oxford, que corre pelos corredores da faculdade? Era sua casa.

Brauxo não se preocupou. Continuou estarrecido diante das belezas naturais que se descortinavam. A tarde, como quase todas, estava muito bonita. Parecia mesmo acalmar a amargura existente em seu coração.

– Pobre Indira, pensava Brauxo! Tão carente e condenada a viver sob a tradição de apenas servir e procriar quando for preciso. Ela não nasceu para viver aqui. Vejo nos seus olhos irrequietos. Sua compreensão e sua formação psicológica jamais permitirá a imposição daqueles princípios tradicionais. Ela tem necessidade de muito carinho e amor.

Lá longe, com as mãos no rosto, Indira chorava amargamente. As flores roxas do maracujá tocavam-lhe a face molhada de lágrimas, dando um toque triste àquele quadro juvenil. Pela primeira vez ela chorava, sem qualquer motivo aparente. Logo acima, sobre um ramo da palmeira, a sabiá continuava seu canto apaixonado. Aquilo não era normal para uma criança. Brauxo a chamou e perguntou por que estava chorando:

– Não sei. Sinto que, em breve, não mais o terei para me acompanhar nos passeios.

– Mas, quem lhe disse isto, meu anjo?

– Não sei, juro que não sei, mas tenho certeza que você irá embora deixando-me aqui sozinha.

Meu Deus, exclamou Brauxo, como pode esta menina saber dos meus pensamentos!? E completou:

– Nunca a abandonarei, juro agora, minha indiazinha cor de jambo. Eu a amo e peço a Deus para terminar meus dias a seu lado, aqui, bem juntinho à Lagoa das Flores.

 

X
Amanhecia com orquestração esplendorosa dos bandos de passarinhos que recruzavam sobre os ramos das fruteiras, no dia em que os Acaramaxás escolheriam seu novo chefe. Nas alvoradas de grandes acontecimentos, o feiticeiro fazia rufar o grande tambor de guerra em espaçadas e medonhas batidas. De sua rede, Brauxo parecia ainda nada ter decidido. Indira havia lhe dito que todos o queriam por chefe e que logo isto acontecesse, gostaria de vê-lo caçando animais da mata, como seu pai fazia.

– Pobre menina!

Inflexível, o Sol brilhava e a Terra, como aves que abrem as asas para receber o calor, ia girando morosamente em volta dele. A Natureza, que por si só é linda e perfeita, nesse dia parecia exceder-se. Enxergar o Sol por trás das árvores, ora prateando as folhas, ora banhando em ouro os troncos hercúleos e cobrindo de diamantes as altas árvores que o sereno havia banhado, era, de fato, fantástico, principalmente para Brauxo que nunca esquecera suas origens.

De quando em vez, uma folha se soltava do ramo e, dançando na brisa, estirava-se ao solo para eternamente descansar. Ao redor das ocas, girassóis esparsos começavam a dar as costas para o ocidente, reverenciando o rei que lhe passara uma peça, despontando pela retaguarda. Brauxo desceu de sua rede. A grande assembleia já se apinhava no salão do velho e extinto chefe Zatu. Fazia parte da cerimônia. Logo depois se dirigiram para o lugar das discussões, onde seria eleito o novo chefe.

Devido à proximidade de Tares, a civilização havia penetrado nas mentes dos Acaramaxás, que já não escolheriam seus chefes entre os guerreiros mais tenazes e fortes fisicamente, mas sim, culturalmente. Brauxo parecia não ter escapatória, pois preenchia os dois itens que mais a tribo considerava.

Enfim, depois de várias reflexões levadas a efeito pelo pajé Jandir, começou a votação para o substituto do velho Zatu. Em semicírculo, os índios se apinharam de cócoras com suas varinhas que seriam quebradas na divulgação do nome do seu candidato preferido. Sentado sobre o trono direito da grande poltrona de jacarandá, o feiticeiro ia falando bem alto e compassado, os nomes mais cotados da tribo. Em cada nome pronunciado, o silêncio aumentava na assembleia, sem que nenhum caniço quebrasse o silêncio com seu estalido. A cada minuto, mais ainda aumentava a preocupação de Franz. Por fim, quando o último Acaramaxá foi designado, Franz levantou-se e com toda impassibilidade que lhe era peculiar, começou um estranho discurso:

“Bem sei eu – segundo a tradição desta tribo – que o eleito, sob pretexto algum, poderá renunciar ao deliberado. Perdoem-me a orgulhosa suspeita que minha atitude denuncia, mas antes que algo aconteça, e que por certo seja mal, quero cientificá-los que, se por acaso, em suas cabeças estiver sendo alimentada a ideia de quebrar os caniços no pronunciamento do meu nome, que isto seja retirado, para que o porvir não me torne um desertor, um ingrato perante os tantos amigos que aqui tenho. Todos nós temos nossos segredos. Peço, pois, baseado em meus segredos, que respeitem o meu pedido de não concorrer à posição de cacique. Levarei eternamente comigo, a amizade de vocês e quero que acreditem: muito mais farei por vocês não sendo cacique”.

Terminando as últimas palavras, Franz abancou-se sobre um toro ressequido e com o caniço a pular de uma mão à outra, ficou esperando. Os Acaramaxás entreolharam-se frustrados, enquanto um suor frio corria pela face do velho feiticeiro. Jandir passou, afinal, um pano na face, molhou os lábios ressequidos e, tomando posição correta, pronunciou:

– Brauxo!

Um grito uníssono ribombou no pátio da assembleia, enquanto os caniços voavam aos ares, despedaçados; menos o de Kauê, que cabisbaixo, retirou-se, indo lançar seu voto lá dentro da mata que margeava a taba. Kauê, em tupi-guarani significa gavião, mas o Kauê Acaramaxá era gavião sim, mas o da espécie: Carcará, talvez.

– Meu Deus, disse Franz, no mais profundo de seu ser!

A seguir foi tomado pelos rígidos braços Acaramaxás, que o carregaram em típica dança, por toda a aldeia. Despiram-no em plena praça e em seu peito, estenderam a larga faixa de junco. Não havia outro caminho, senão dar o sorriso de assentimento.  Tornara-se chefe da tribo, o menino que Jeré roubara nos palmitais de Tares. Correndo sempre no entorno, Indira o fitava, quase implorando a oportunidade de abraçá-lo. Por fim, ele se desvencilhou e foi ao lugar em que ela se encontrava e, parecia, iriam passar a noite agarrados. Nem uma preguiça se atracaria tanto ao tronco da embaubeira, tendo sob ela uma matilha esganiçada.

A luz ia esmorecendo com a chegada das trevas. Um bando de papagaios passou em animada palestra sobre os troncos seculares. A coruja, em sua constante meditação, assistia aos festejos com nítida impressão de dúvidas. O macaco da noite, espreguiçava-se dentro do gravatá da caneleira. Esfregou os olhos e saltou para o galho côncavo que descia às embaúbas de folhas prateadas. Chegara, em toda a plenitude, a singular e venturosa noite do jovem misterioso que fora abandonado pelos pais no orfanato de Tares, e depois raptado por Jeré, mulher do cacique Zatu. A família de Peter era misteriosa, mas encontrara seu ápice em Franz, agora Brauxo, seu terceiro e último filho.

XI
Naquela mesma noite em que Brauxo fora ungido com a mistura de óleo de capivara, que representaria serenidade e sobriedade, e com o da anta, mostrando a força e a impetuosidade nos sacríficos, Indira foi à sua tenda, muito temerosa. Não sabia se a amizade iria continuar, agora que Brauxo se tornara o mais importante Acaramaxá. Brauxo estava ainda na sua rede de embirema e acatou a adolescente com a mesma ternura de sempre. Alçou-a à rede e a cobriu de beijinhos, dizendo que não via a hora de voltarem à lagoa.

Indira sorria feliz e num momento de abstração, Brauxo, notando a ansiedade dela, perguntou:

– Que foi, minha cor de jambo? Quer dizer-me alguma coisa importante?

– Você continuará mesmo me levando para passear na Lagoa das Flores?

– Claro, meu anjo! Você será sempre a menina mais importante de minha vida.

– Mas, você agora é o chefe.

– Não estou esquecido não. Agora como chefe, não somente convidarei você, como exigirei que me acompanhe.

– Então, amanhã bem cedo a gente vai?

– Não, Indira, amanhã será meu primeiro dia como chefe e preciso tomar algumas providências, como deslocar-me para a taba reservada ao cacique.

– Quando então?

– No primeiro dia de Lua cheia.

– E quando será?

– No primeiro canto das urubas do pântano.

Passara o diálogo e, numa tarde, eis que, para os lados do paul ecoaram os longos dobrados das galinholas-mirins, como as chamava Indira. Macucos, chorões e tururins participaram da orquestração. Indira correu para Brauxo, chamando-o insistentemente:

– Eu estou ouvindo, Indira. Chegou o dia. Amanhã bem cedo, iremos lá. Não se preocupe, meu anjo, quando se cansar da lagoa Marxé, eu a levarei para passear a qualquer outro lugar. Me disse Rudá, que mais para o sul, existe uma outra lagoa, ainda maior e mais bonita. Ele a descobriu um dia, caçando lá para aquelas bandas.

– Você jura? Você jura?

– Sim, meu anjo, eu juro. Já jurei isso para mim mesmo, e sempre que quiser, jurarei outra vez.

 

XII
Brauxo sabia que, bem cedo teria de decepcionar todos aqueles velhos amigos que conseguira no meio dos Acaramaxás. Contava, então, 19 anos e grande era sua preocupação por saber que boa parte da vida passara longe dos livros. Partiria em breve, antes ainda que os bandos de arara voltassem a tagarelar pelos ares de Tares e a Jacutinga riscasse suas longas e negras aletas maiores nos galhos secos dos arvoredos.

Antes, porém, preferia dar àquela tribo, um pouco mais do que sabiam, porque ainda viviam muito aquém da dignidade de um ser humano. Acabaria com a infundada tradição da abstenção sexual e tentaria conciliar aquele povo com a civilização de Marites e de Tares, o que não era lá tanta coisa. Não tirava Indira da cabeça e do coração, imaginando que seria o homem mais feliz do mundo se a tivesse sempre pertinho de si. Quanta ternura sentia por ela! Contudo, já estava bem crescida e Brauxo bem entendia os eflúvios da mocidade. Ela já não era tão criança, e ele tinha medo de se apaixonar por ela, embora assim já se encontrasse. A diferença de idade entre eles não passava de quatro anos.

Chegara o dia da grande caçada. Os Acaramaxás tinham sua época de descanso anual, compreendida entre o dia 13 e 19 de abril. Viviam estes dias confinados em suas aldeias, rendendo homenagens aos seus antepassados. Para isto, faziam, antes, o que chamavam de larxa el trocá, a grande manutenção. Todos os guerreiros saíam para caçar e as mulheres se encarregavam de colher frutos. A pescaria era própria dos guerreiros mais idosos, porque os rios eram piscosos e os peixes muito fáceis de serem pescados.

A manhã fora um tanto atípica neste dia. Durante a noite, um calor abrasante dominou e por várias vezes os relâmpagos riscaram o espaço. Agora restava um céu seminublado e quente, próprio dos dias adequados à caça. Por estes tempos, já várias reformas haviam sido implementadas. Os Acaramaxás já haviam tido contato com os habitantes de Tares e possuíam deles, cães e armas, que mais facilitava perseguir e abater as caças. Brauxo amava caçar e era esmerado imitador de pássaros, mas usava sua técnica apenas para se divertir, porque os índios não abatiam pássaros, apenas animais de pelo. Havia sim raras exceções: mutuns, jacutingas e patos das lagoas.

Todos já haviam se embrenhado nas matas, menos ele. Por insistência de Indira, Brauxo concordou que ela o acompanhasse. Entregou sua esgaravatana, apanhou para si sua espingarda Geco, que conseguira recentemente de um comerciante maritense, e partiram. A região era longínqua e seria preciso uma cansativa caminhada para alcançá-la. No cansaço do percurso, o novo cacique já pensava em destituir, também, esta tradição. No entanto, era preciso ir devagar.

Tudo foi normal até as 14 horas. Brauxo fazia sempre uma grande choça em que coubesse, também Indira. Era tão espaçosa e bem fechada, que Indira podia dar curtos passos, olhar em todas as aberturas e, é claro, dormir. Enquanto isso, Brauxo atraía pequenas aves e deixava que Indira tentasse abatê-las com sua zarabatana.

Aí aconteceu um imprevisto: duas urubas, espavoridas, correram para a choça, muito assustadas. Indira colocou a seta no tubo, quando uma macuca piou bem próximo. Deixe os urus, Indira, vai chegar, agorinha mesmo, uma ave bem maior. De quando em vez as galinholinhas do mato insultavam os invasores que as haviam chamado para a briga. Um chorão respondeu pertinho e lá em baixo, num recanto frio da floresta, uma sururina piava tristemente.

O céu tingia-se de negras nuvens e relâmpagos clareavam o rosto irônico da Natureza. O que a princípio parecia algo de que várias vezes eles presenciaram, revestia-se, agora, de um novo acontecimento. Um eclipse ocasional provocado por nuvens sobrecarregadas e muito baixas. Nada mais se enxergava. Um suor frio e de medo tomou conta da pequenina Indira. Suando frio, ela se agarrou no pescoço de Brauxo com se tentasse sufocá-lo:

– Tupã está zangado comigo, porque vim com você caçar. É a primeira vez em que uma curuminha acompanha um cacique em sua caçada. Proteja-me, Brauxo. Estou com muito medo.

Aterrorizada Indira apertava com tanta força o pescoço de Brauxo, que ele foi obrigado a lhe dizer que também ele nunca havia vivido aquela situação, mas que sabia, por meio de leituras, que aquilo era um fenômeno natural. Nisto, um relâmpago alongado furou a grande floresta e deixou que se visse o rosto apavorado de Indira, cheio de medo e de angústia. No alto, o vento passava furibundo, ameaçando até os mais fortes e robustos troncos seculares. Exatamente com o atraso natural entre o raio e o som, ribombou o trovão e forte chuva começou a cair. Brauxo tomou Indira nos braços e sentiu todo calor e o coraçãozinho de Indira palpitando descompassado.

– Não tenha medo, meu anjo. É assim mesmo, logo vai passar e, então voltaremos rindo para a aldeia. Não chore, olhe, veja como do céu, já vem um leve clarão. Isto quer dizer que o temporal está indo embora.

– Brauxo, não estou ouvindo o que está falando.

– Por que não está ouvindo?

– Porque gosto muito de você. Se um dia você me faltar, eu me mato.

– Sim, sim, mas isto não impede que você não me ouça.

– Brauxo, leve-me para o lugar em que você irá.

– E quem disse a você que eu irei embora?

– Ninguém. Mas eu sei que irá fugir.

Desconversando, Brauxo a puxou para si e apenas observou:

– Veja como o céu clareou e como o Sol brilha novamente.

Fora da choça, já se preparando para retornar, Brauxo retirou a Geco dos ombros, fez rápida pontaria e disparou. Foi ao local do tiro e voltou com uma cambacica que, distraidamente, passeava por ali e, rindo, disse para Indira: como poderia um cacique e a menina mais inteligente da tribo, voltarem de uma caçada com as mãos vazias?

Indira riu, riu muito e foi seguindo os passos de Brauxo de volta à aldeia. Brauxo logo parou, amarrou os pés nas mãos do veadinho, enlaçou-o no pescoço, jogou às costas e, depois, pediu a Indira que se assentasse no ventre da caça. Indira ficou bem acomodada e Brauxo, imitando um pangaré, saiu correndo para a aldeia. Não resistiu por muito tempo, mas Indira nunca fora tão feliz. Aquela felicidade atestava a pureza de Indira e servia de termômetro para Brauxo conscientizar-se de que ela era ainda uma criança.

 

XIII
Findos os dias de retiro, o povo reuniu-se em frente à cabana do cacique. Este deveria sair e se dirigir aos subalternos, dizendo a eles tudo o que Tupã lhe transmitira para dirigir bem a comunidade indígena.  Ouvindo o leve rumor do lado de fora, Brauxo recordou-se. Pensou um pouco, tomou suas armas e paulatinamente apareceu ao vestíbulo que servia de púlpito sagrado. Depois de aclamações efusivas, um profundo silêncio baixou sobre toda a aldeia. Lá no interior da floresta ouvia-se a tocada da matilha que perseguia, animadamente, um bicho qualquer, mas os guerreiros não misturavam as coisas. O bicho estaria livre se se livrasse dos cães, porque aquele momento era sagrado. Era o dia em que, não somente os Acaramaxás, mas todos os índios guardavam como sagrado.

O novo chefe passou os olhos por toda a tribo presente. Em quase todos os olhares via-se submissão, menos em Kauê que nunca aceitara não ser o chefe.

– A cultura, como as árvores que vemos, acercou-se de nós. Em cada gesto se vê a compreensão e a serenidade. E Tupã tudo viu. Para um povo inteligente, são indispensáveis sábias leis. E eis que, com todo respeito aos antepassados e com toda submissão à inspiração divina, hoje queria propor aos meus nobres guerreiros que votássemos um novo estatuto. Apenas alguns pontos seriam modificados, porque a maior parte está ótima e serviu para manter a unidade da nossa nação. E assim não seria, se não tivesse dado certo.

Neste momento, um índio se aproximou com fogo, transformando velhas folhas e peles raras, em archotes. Todos se curvaram em sinal de respeito. Os juízes estenderam as possíveis modificações escritas por Brauxo, que continuou:

– Pelo poder a mim confiado e para maior felicidade e paz de nossa tribo, eis o que devemos fazer, segundo as instruções de Tupã a mim passadas, ontem à tarde, em assustadora visita que todos vocês acompanharam. (Referia-se à eclipse ocasional). As instruções e conselhos foram as seguintes:

  • Fica abolida a lei da abstenção temporária de cinco em cinco anos, podendo, marido e mulher se amarem duas vezes por semana, se o desejarem.

 

  • Perseverança do dia da grande caçada, com três de tributos e quatro de festas.
  • O uso de roupas, principalmente calções para os homens e shorts para as mulheres e de calçados para ambos, para protegerem os pés.

 

Neste momento houve murmúrios e, entendendo a razão, Franz explicou: as roupas e os calçados eu conseguirei para todos vocês, trocando-as com nossos produtos naturais (couros, carne, peixes e tudo quanto temos aqui sobejamente) não precisam se preocupar. Vocês receberão tudo em casa. Essa sugestão de Tupã irá servir para proteger nossos corpos contra as agruras da floresta.

  • Os casais terão casamentos mais festivos e poderão ter tantos filhos quanto acharem convenientes. Aí será abolida a tradição centenária, mas este é o desejo de Tupã.

 

  • Teremos plantações. Iremos preparar a terra e plantar as sementes das fruteiras e verduras que mais a gente gosta de comer. Assim ocuparemos todo mundo, a tribo irá crescer e seremos um povo forte e feliz.
  • Eu ficarei com a incumbência de conseguir as sementes e as mudas em Tares.

 

  • O adolescente que mais se dispuser a estudar e que sinta a vocação de cuidar da tribo, formando-se em Medicina – menino ou menina – será, imediatamente, matriculado no Santuário de Tares. Quando terminar os estudos ali, iremos providenciar para que vá para uma cidade grande, onde entrará numa faculdade e se formará em Medicina. Formado ou formada, retornará à tribo para cuidar de todos nós.

 

E assim, termo a termo, o novo cacique foi explicando as necessidades da reforma e o proveito dos novos regulamentos. Mais de cem leis foram elaboradas e obrigatoriamente ratificadas por todos os presentes.

– Em breve tempo já não seremos mais “bichos do mato”, mas colonos da grande nação brasileira e, por isso mesmo, mais independentes. Quero que todos pensem nessa proposta sugerida por Tupã para mudarmos alguns tópicos de nossa tradição. Tupã também foi claro, lembrando que se a tribo preferir manter os costumes tradicionais, que há séculos é como estamos hoje, que ele não ficaria magoado. A proposta é apenas para oferecer opção, porque, possivelmente, a maioria já estivesse cansada da mesmice e preferisse experimentar nova maneira de viver.

E, finalizou: sem pressa e com todo cuidado, iremos discutir todos os itens explanados no nosso dia a dia. Que ninguém se preocupe, porque temos todo o tempo de nosso viver para mudar, para melhor, nossos costumes. Não havendo consenso às sugestões de Tupã, retornaremos as antigas leis e costumes. Não se esqueçam que estou sendo apenas o arauto de Tupã e não um intruso.

 

XIV
Eram 15 horas quando Brauxo apareceu no pátio da aldeia, totalmente deserta. É que os Acaramaxás tinham por hábito a sesta da tarde, a fim de estar sempre descansados para possíveis emergências que aparecessem. O barracão de descanso estava apinhado de redes e todos os guerreiros dormiam tranquilamente. Eram quase 200 redes, porque ali, para descanso, dormiam também as mulheres e as crianças.

Brauxo olhou pela abertura da derrubada, o límpido dia que agonizava aos poucos. Os seus pensamentos estavam completamente desarvorados. Abancou-se no tronco hercúleo do angelim-vermelho, cuja dossel virente ascendia às nuvens, atestando sua longa e saudável vida. Ali estava, cheia de paz, pois constituía a maior força herbívora da floresta. Imbuído num misto de conformidade e angústia, Brauxo deixava sua cabeça tombada, enquanto, com as mãos, roçava as reentrâncias da árvore centenária. Estava triste, abatido completamente. E ficava matutando: que força é esta que o impele à vingança, como se o crime fosse uma ordem do céu, uma missão a cumprir? Sua vida só teria sentido depois que se vingasse do pai que o havia abandonado.

Poderia ir a Tares alegando negócios e não mais retornar, mas, a tradição Acaramaxá não abria mão quanto ao castigo a quem cometesse esta traição. Não bastasse, ele estaria localizado e sempre na mira daqueles que não aceitavam a deserção, punindo-a com a pena de morte. Já a fuga, era uma espécie de afronta em que o desertor seria a caça e a tribo, os caçadores. Se a caça escapasse, estaria livre para sempre e sem qualquer ato de vingança. Como fugitivo, ele poderia retornar à tribo até para passear e, quem sabe, até casar-se com Indira, sua constante admoestação nesse plano mirabolante. O amor que sentia pela indiazinha cor de jambo assemelhava-se ao clássicoda literatura mundial na obra emblemática de Willian Shakespeare, narrando o amor irresistível entre Romeu e Julieta.

E foi, exatamente esta opção que Brauxo escolheu. Franz nunca entendera porque a força da vingança lhe era tão dominante. Parecia mesmo ser uma determinação genética, porque assim acontecia com quase toda a família, que só se contentava com a justiça feita com as próprias mãos. Esta possível determinação genética agora alcança o ápice, com Franz planejando assassinar o próprio pai.

Indira que passeava pelo pátio, notou-o cheio de angústia e, vagarosamente se aproximou. Tinha, nas mãos, algumas flores silvestres e o short amarelo se contrastava com o cabelo negro revolto que lhe descia aos ombros. Olhava-se constantemente, achando tudo muito estranho. Qual uma borboleta feliz ela caminhava para aonde, cabisbaixo, o cacique ruminava seus problemas mais inconfessáveis.

Uma pega, que lá chamavam inhapim, que ficava sempre pousada num galho à entrada da tenda de Indira – porque ela nunca deixava o local sem restos de frutos – agora mostrava seu repertório de imitações, fazendo com que Brauxo voltasse ao mundo real, elevando os olhos e se deparando com a jovem silvícola. Indira curvou os joelhos assentando-se bem perto dele. Suspirou, mas nada articulou. Por sob as pálpebras, uma minúscula nascente ameaçava marejar.

– Diga o que está sentido, Brauxo, e tudo farei para você ser sempre feliz. Está com vontade de passear comigo? Oh, a quanto tempo eu não recebo mais seu convite!

Nos olhos de Indira já não andava a simplicidade de uma criança ingênua. Por força dos hormônios ela percebia que o morubixaba a amava, mais do que o amor paternal que ele sempre apregoava para livrar-se da tentação que o perseguia. Era interessante perceber como, para Brauxo, era mais criminoso atentar contra a pureza de Indira, do que assassinar o pai por vingança.

Andaram pelos caminhos da eterna cidade dos sonhos. Cada árvore centenária era um edifício construído pelos anjos do Criador. Relva e árvores apinhavam-se pelas ruas. E toda folha tinha a função de umedecer e proteger os grandes edifícios. A lagoa já despontava, ondulante, com a fresca brisa da tarde. Os ingazeiros balouçavam, brincavam contentes nas margens daquele éden de flores e perfumes. A relva e o capim nativos do flanco esquerdo, descia até tocar as águas, como dorminhoca víbora reinante.

Brauxo sentiu um grande medo ao divisar aquele jardim natural. As flores pareciam querer fugir e as ondas já se quebravam em marulhos sonolentos. Os raios do sol poente já mergulhavam nas águas, indo espelhar-se do outro lado. A Natureza e seus filhos desempenhavam o papel preestabelecido por Deus. Os passarinhos diurnos desciam do alto e iam tomar o último gole d’água para depois retornarem aos abrigos. Os inhambus também se despediam, os bugios guinchavam sobre os galhos escolhidos para passarem a noite e Indira, quase sumida entre as flores, olhava para Brauxo, respirando fundo.

Brauxo virou-lhe as costas e rogou ao seu verdadeiro Deus.  Abaixou-se depois encostando seu largo peito em Indira. Apertou-a com força contra si, tanto que ela tentou afrouxar-se, num ofego de dor e desejo. Lá longe, por detrás da mata, um outro rubor surgia. O céu parecia envergonhado. O rumor das águas aumentou, enquanto as próprias árvores pareciam reprovar os pensamentos de Brauxo. Num instante ele voltou a si, afastou Indira levemente e, para sufocar o grande desejo, disse carinhosamente:

– Filha, eu a amo demais! Eu quero tudo de bom para você nesta vida, mas ainda é cedo para fazermos certas coisas, porque nossos deuses são diferentes. Alguém já disse antigamente, que somos um produto do meio em que nascemos e vivemos. Você e sua tribo acreditam em Tupã; eu acredito em Deus Pai, criador do céu e da Terra. O seu Deus não se importa com certas regras humanas; o meu não deliberou assim. Para o meu Deus, temos de amar o próximo como a nós mesmos e, como sabe, nós nunca iremos querer o mal para nós mesmos. Para o meu Deus, o mal feito a uma criança, dificilmente será perdoado. Seja sempre uma criança cheia de simplicidade, porque ainda está vivendo este tempo. Não quero que nada aconteça antes do tempo, porque a amo como filha e hoje percebi que posso confundir e amá-la como mulher. Sei que, para a tribo, isto não significa nada demais, mas é que sou criado de modo diferente e meu Deus não aprova isto. De hoje em diante, me chame, sempre que puder, de pai, isto nos ajudará a esperar o tempo certo. Nos momentos em que os eflúvios aflorarem em você, peça ao meu Deus para dar um tempo. É muito cedo ainda, minha filha.

 

XV
Foi numa tempestuosa noite. Não havia no céu uma só estrela que pudesse ser vista a olho nu. No espírito de Brauxo, reinava incerteza. Ele mesmo não entendia como, sendo feliz no lugar em que se encontrava, iria em busca – poder-se-ia dizer – de sua própria desgraça. Dependia somente dele não levar a cabo a sugestão das forças do mal que o infligiam ao maior de todos os males que já o acometera. Ele sabia disto, mas não conseguia controlar-se. Enfim, estava decidido: era chegada a hora.

Desceu de sua rede, olhou os emblemas que o indicava como chefe da tribo e sem se ater muito aos seus direitos, esgueirou-se pela aldeia. Era curto o trajeto a percorrer. Indira dormia numa oca bem espaçosa e sua rede era separada da de Jeré por uma série de varões, em que estavam dependuradas peles de canguçus, veados, e de outros animais. Sobre a rede de Indira, desciam gramíneas de trepadeira. Pareciam fiapos simétricos de um tapete. Brauxo penetrou mansamente. Aproximou-se do leito. Nem um fio de luar diminuía a escuridão. Somente os contínuos relâmpagos é que perpassavam pelas frinchas e alumiava o rosto sereno de Indira. Num gesto rápido, Brauxo levou a mão à boca de Indira e a seguir foi retirando, bem devagarzinho, ao mesmo tempo em que dizia: sou eu, meu anjo. Trêmula com o susto e ainda sonolenta, limitou a dizer:

– Sim.

– Indira, disse Brauxo, quero lhe dizer e confiar algo de muita responsabilidade. Não podia deixar estas plagas, sem confiar a você meu grande segredo. Terei de partir, minha filha, e somente poderei aqui retornar, se os meus planos derem certo.

Cada vez mais confusa, Indira lhe suplicava:

– Por quê?

– É impossível contar-lhe tudo numa única noite, minha querida. Peço apenas que me compreenda e que nunca se esqueça que a amei como ninguém a amará até o fim de seus dias.

– Eu irei com você.

Não Indira, é impossível alcançarmos Tares sem que os demais Acaramaxás nos alcancem, prendam e matem.  Já pensou no que nos reserva se eles nos prenderem? Fique, por favor, eu lhe imploro, pelo nome de meu Deus e do seu deus Tupã.

Sem raciocinar direito, Indira pulou da rede e disse resolutamente:

– Eu irei com você, prefiro morrer com você do que ficar livre aqui sozinha.
E dizendo isto, postou-se ao lado de Brauxo, ameaçando gritar se ele não concordasse com ela. Brauxo tentou a última cartada, dizendo que a caminhada seria dura demais para uma, ainda, adolescente. Obtemperou:

– Meu anjo, não cave sua própria sepultura, disse Brauxo enquanto a tomava nos braços e a deixava sobre a rede. Mas, ela não ficou.

Os relâmpagos continuavam furibundos e era fácil notar o céu revolto a preparar o palco para a encenação da triste tragédia. Do canto de sua oca, bem encostado para não se molhar, Kauê urinava, e percebeu a trama.

Fazia frio e mal alcançaram a mata, já estavam completamente molhados. Um barulho metuendo rugiu por toda a floresta. Nem um grilo sequer cricrilava. Evitando toda conversa – que é o som que mais ecoa na floresta – os dois seguiam bem juntinhos, como se fossem um único ser humano. Depois de algumas horas, pararam para descansar. Indira já se apresentava bastante abatida e Brauxo sabia que ela não iria mais muito longe. As madeixas dantes tão numerosas e estendidas sobre os ombros, agora se assemelhavam a inúmeros rastilhos. As gotas d’água lhe escorriam pelo rosto gélido e se escorriam entre seus seios como leves torrentes. Não bastasse, ela estava sem agasalho. Brauxo tomou-a como se faz a uma criança. Beijou-a muito, apertou-a nos braços até que se podia sentir no rosto, um natural calor de excitação e amor. Indira fechou os olhos. Estava exausta.

Mas, teriam de prosseguir, porque a frente que mantinham se devia à demora dos guerreiros a descobrirem, segundo Kauê, que eles estavam fugindo. Se eles os encontrassem, seus crânios iriam servir de enfeite às cercas das tabas, pois apesar do grande avanço da civilização naquele meio, tinham a fuga como deserção imperdoável. Jamais a tribo teria um caso similar a julgar.

Indira ainda dormia nos seus braços, quando o forte guerreiro Acaramaxá abancou-se no tronco de uma figueira. A chuva havia diminuído, mas o barulho surdo das goteiras aninhadas no dossel da floresta, caíam pesadamente. Não relampejava mais.

Enquanto também descansava, Brauxo deixou que a jovem dormitasse nos seus braços. Precisava descansar e seguir sozinho, porque o caminho era longo e ele não conseguiria completá-lo carregando Indira nos braços. Depois de meia-hora ele a despertou.

– Brauxo, disse ela, que sonho maravilhoso eu tive. Vi-me numa rede toda de ouro, muito forte e bela, que sozinha oscilava, fazendo um barulho sonoro que me servia de acalanto. De repente, aproximaram-se vários guerreiros e diante de mim se curvaram. Um deles se adiantou. Tinha na mão um pergaminho cheio de diamante e flores melífluas. Aproximou-se e quanto mais se aproximava com aquelas coisas tão belas, mais minha rede de ouro desaparecia. A seguir entregou-me um papel e nele havia a própria ordem de Tupã para me passar um arco invencível e me convidava a caçar com meu pai Zatu. Apanhei-o e enquanto agradecia, senti que estava a sonhar em minha rede de ouro, mas então, cheia de flores roxas e brancas, bem murchas. Comecei a ouvir um novo barulho sonoro, mas já não era o mesmo de antes. Depois, quis acordar e não consegui. Tudo havia passado e novamente caí num sono profundo.

– E então, interpelou Brauxo, com um leve sorriso a brincar no canto da boca: então eu acordei você.

– Sim, você me acordou, mas juro que ainda me parece que tudo foi verdade.

– Antes de despertar, ia me esquecendo: pareceu-me estar, então, numa cama pequena e desabrigada.

– E, de fato, você assim está, minha querida. Veja onde está dormindo!

– Não, isto é melhor do que a rede de ouro do sonho. Se nunca mais acordasse, agradeceria a Tupã.

Depois de conversarem bastante, Brauxo observou:

– Veja como o céu agora está limpo e as corujas já não piam. Está próximo o romper de um novo dia. Caminhemos um pouco mais e preparemo-nos um lugar seguro para dormir. Você precisa descansar para caminharmos à noite. É muito perigoso continuar a caminhada de dia. Nossos irmãos Acaramaxás, como todo índio, tem a sensibilidade de perceber qualquer barulho ou protesto de aves e macacos a longa distância. Os animais silvestres sempre protestam diante da presença de seres a eles incomuns. Não bastasse, eles não irão nos procurar à noite.

Brauxo preparou um lugar confortável para Indira dormir e disse:
– Você fica aí descansando e, pelo amor de Tupã, não saia. Aqui eu vou tentar despistar nossos guerreiros quando aqui chegarem. Vou fazer de conta que fomos para o sul, quando, na verdade, estaremos indo para o norte. Vou deixar sinais, conforme nossos costumes de caçada, pelo menos a uns dois quilômetros. Tenho certeza que eles irão seguindo estes sinais, mas nós estaremos bem distantes, seguindo a mata intocável que nos levará à Tares. Daqui à Tares, eu conheço muito bem o caminho. Antes de sair, ele agachou-se beijou Indira e disse:

– Você jura que não irá sair daqui deste abrigo?

– Juro, Brauxo, eu juro pelo meu pai e pelo seu Deus.

 

XVI
Antes ainda que a noite estendesse seu negro véu, já os tambores de alarme dos Acaramaxás podiam ser ouvidos a longa distância. Kauê não perderia aquela chance de se livrar definitivamente de seu concorrente. Testemunhava a fuga, incitava os guerreiros a perseguirem os fugitivos e a mata-los, impiedosamente.

– Não tardarão a se aproximar, disse Brauxo. Também não há nenhum perigo por enquanto. Eles estão muito longe e, imagino, não nos perseguirão à noite. Mais uma hora e já os sapos começarão a coaxar. Sigamos, aproveitando um pouco deste dia. Eles, certamente, já estão retornando e nós, aumentando a distância. Ledo engano. Brauxo nunca tivera consciência sobre a força da vaidade daqueles que almejam o poder. E, Kauê, não abria mão de um minuto sequer daquela oportunidade. Incitando os guerreiros ele tomou a frente e partiu na perseguição dos fugitivos.

Enquanto isso, Brauxo e Indira foram caminhando lentamente. Indira nem observava nada, apenas confiava no tino de Brauxo. Com ele, ela seguiria para qualquer parte do mundo.

A noite chegou plenamente. Brauxo acendeu seu farol. Somente a claridade os denunciava, pois, a mata estava ainda bastante úmida. Caminhavam lentamente, como se nada estivesse ameaçando seus planos. Os tambores estavam se distanciando, quando um vulto o atacou. Houve uma luta feroz e encaniçada entre Brauxo e quem o atacava. De repente, ouve-se um tiro e tudo quietou. Brauxo encosta o farol no rosto do morto e reconhece Miros, um dos bravos guerreiros de sua tribo. Certamente, na luta corporal travada, ele teria disparado a arma contra si mesmo. Mas, Brauxo não conseguia encontrar a arma, senão a dele que, por imperdoável distração, continuava encostada no tronco ao lado. Na mão direita de Miros, apenas uma haste pontiaguda embebida no curare – próprio para as caçadas com zarabatana. Depois do aparecimento das armas de fogo, aquele veneno era raríssimas vezes utilizado.  Depois de procurar minuciosamente por alguma arma de fogo, Brauxo desistiu. Iria carregar aquela interrogação por um bom espaço de tempo, ainda.

Indira estava estendida, casualmente ferida pelo moribundo. Brauxo tomou-a nos braços e sua face sangrava:

– Indira, meu anjo, você está se sentindo mal? Vejo que está ferida e preciso que seja forte.

Os olhinhos meigos, quase cerrados, e os lábios não balbuciavam nada. Mas ainda respirava normalmente. Os tambores haviam cessado completamente. Agora nos perseguirão em massa, pensou consigo mesmo, Brauxo. Meteu a tocha entre as folhas molhadas e fez cessar o fogo. Com Indira nos braços tomou a direção do rio Jarus, afluente do Serra.

Foi penosa a caminhada. Acaramaxás fervilhavam em todas as direções. Num dado momento, Brauxo ouviu um assovio e de imediato respondeu. Conhecia bem aquele sistema da tribo de se dirigirem paralelamente em frente, num arrastão em distância relativa. Agachou-se a seguir na catana de uma árvore. Um índio passou a três metros e assoviou novamente. Uma centena de outros sons equivalentes foram ouvidos dentro da floresta, como se montanhas superpostas os ecoassem.

– Indira, meu anjo, vou precisar de sua coragem e de seu amor, mais uma vez. Permaneça aqui, quietinha. Somente se mecha quando eu a tocar. Preciso abrir caminho.

Os guerreiros Acaramaxás eram valentes e não temiam qualquer perigo. Perscrutavam tudo bem devagar e se comunicavam com curtos assovios.  Brauxo foi seguindo, despercebidamente entre eles; deu um curto assovio e todos responderam. Mas, o que lhe interessava mesmo, era apenas aquele do seu setor. Como no escuro ninguém reconhecia ninguém, ele se aproximou do primeiro sem ser reconhecido. Brauxo golpeou-a mortalmente com sua borduna, deixando-o por terra e sem vida. Seguiu, então, para o da esquerda. Tornou a assoviar e dentro em pouco, outro guerreiro subia aos páramos de Zatu.

Voltou rapidamente para Indira. Seu caminho estava escuro, mas ele conhecia bem cada árvore daquela região. Aproximou-se. Ela ainda respirava, mas estava tiritando de frio. Tomou-a nos braços e a aqueceu com seu próprio corpo. Minutos depois, já seguiam nas fileiras dos Acaramaxás, rumo ao rio Jarus.

Apesar de sua saúde e costume, Brauxo estava exaurido. Não sabia se poderia suportar aquela viagem até o amanhecer. Dentro em pouco chegariam ao Jarus. Quando em vez respondia ao sinal combinado. Aquelas planícies que pareciam intermináveis, agora inclinavam-se um pouco. É a pequena vertente do Jarus, suspirou, enquanto uma forte voz se misturava aos seus pensamentos. Era Tuzurk, outro bravo guerreio que intimava a tribo a retornar.

– Obrigado, meu Deus verdadeiro, disse Brauxo, relaxando os músculos tesos. Os Acaramaxás deixaram o silêncio e então confabularam. Brauxo parou um pouco e tentou ouvir o que diziam mais alto. Era a verificação dos guerreiros, chamados pelo chefe Tuzurk.

– Agora notarão a falta dos três guerreiros, pensou consigo mesmo, Brauxo. E, de fato, se soube, mas não levaram tão a sério. Imaginaram que, por qualquer motivo, eles tivessem se atrasado ou mesmo desistido. E conversando, retornaram à aldeia.

Brauxo desceu a encosta. Lá em baixo, apesar da noite, podia-se ver uma serpente cinzenta que se locomovia preguiçosamente: era o Jarus. O dia não tardaria a amanhecer: já se podia notar um leve clarão vindo do oriente. Tirando alguma coisa da cinta, Brauxo ofereceu à Indira.

– Não estou com fome não, falou ela pela primeira vez.

Deve estar melhorando, pensou Brauxo, muito satisfeito. Colocou-a no chão e desceu um pouco mais para encher uma concha de palmito com água. Deu-a a Indira. A água escorreu por todo o rosto de Indira, e então, o Sol reapareceu para mostrar o mais emocionante quadro da realidade:

– Obrigado por ter vindo, meu anjo. Agora poderemos viver juntos o resto de nossos dias, sem o risco de sermos mortos por nossos próprios guerreiros.

Tomou-a nos braços e ali a reteve por muito tempo contra seu peito. Acariciava-a com todo seu amor e quando voltou aquele rostinho tão meigo para ser beijado, deparou-se com a lividez de uma moribunda. Lágrimas desceram copiosamente dos seus olhos e ficaram dançando aos raios do Sol, dependuradas no seu rosto. Lá no alto, uma ave compromissada piava. Era um simples colibri que vigiava seu ninho: uma longa trança de cabelos dependurada numa vergôntea.

Pobre menina, suspirou Brauxo! Ficou com ela nos braços durante muito tempo, mas não o bastante para saber que Indira fora acometida por um longo desmaio, mas que suas reações vitais ainda existiam.

E com a ajuda de seu terçado e das próprias mãos, Brauxo escavou uma cova rasa, revestiu-a de ramagens, deitou Indira dentro, depois a cobriu com novas ramagens e, finalmente, a cobriu com areia. A seguir fez uma cruz e colocou em cima. Vendo um arbusto com flores, tirou galhos dos mesmos e plantou em volta. Seus olhos pouco enxergavam, porque os soluços contínuos, revertidos em lágrimas, já não permitiam ver as coisas direito. Brauxo se ajoelhou, pediu a Nossa Senhora que interviesse perante seu Filho por aquela criaturinha que mais amou na vida e, olhando sempre para trás, desceu a rama. Ainda na margem do Jarus, ele virou-se para contemplar, pela última vez, o lugar em que todos os seus sonhos de felicidade estavam enterrados. Nisto, sem que estivesse ventando, um arbusto balançou inexplicavelmente próximo à cova de Indira, mas como estava com seus olhos embaçados pelas lágrimas, não decifrou o que teria ocasionado aquilo. Mas, como não ventava, ele sabia que alguma coisa, algum bicho que dormia ali, acordara e fugira espavorido.

E caminhando rumo a Tares, soluçando sem cessar, Brauxo foi seguindo rumo ao cruel destino de vingança.

 

XVII
O Sol ascendia com a normalidade de sempre. Para Franz, essa precisão matemática do Criador superava toda e qualquer dúvida sobre sua existência. Brauxo atravessou para o outro lado do Jarus. De lá ele fitava um monturo de areia que cobria a criaturinha cor de jambo, a menina-moça que Brauxo mais amou na vida. O tempo poderia fazê-lo mudar, mas, agora, Brauxo achava que jamais iria gostar de outra mulher. O ferimento em Indira não fora tão profundo, mas a esgaravatana estava envenenada com curare. O veneno, assimilado ao cansaço e às tantas emoções, ocasionou o desmaio.

Se existia algum apego aos Acaramaxás, agora estavam eliminados para sempre, porque o espírito vingativo ainda não desistira de Franz. Naquele momento, só pensamentos de vingança lhe ocorriam. E ele pensou: como os extremos se encontram! Há poucos dias eu pensava em dar tudo de mim para a felicidade da tribo; agora, se pudesse, a exterminaria para sempre.

Depois de muitos pensamentos e divagações retrospectivas, o jovem guerreiro curvou-se de joelhos e pediu a Deus Pai, mais uma vez, por aquela alma inocente. Pediu também que Deus a tornasse seu anjo da guarda, porque, com toda certeza, ela já estava no céu. Enquanto extático ele fitava a humilde sepultura, lembrava cada momento em que andou com a menina mais querida de sua vida. Embora aceitando a vontade de Deus, ele não conseguiu evitar:

– Meu Deus, que pecado tão grande eu cometi para merecer tamanho castigo? Por que nasci predestinado ao sofrimento?

Deveria seguir o Jarus e alcançar o Serra, que o levaria a Tares. Porém, sabia das tantas curvas do rio e optou por um atalho. A sorte parecia tê-lo abandonado nos últimos dias, porque dispensara a companhia de Deus. Penosa caminhada ainda o esperava. Um tanto perdido na imensa floresta, com a fome a torturá-lo, andava incansavelmente como um desvairado. Nem sequer olhava o lugar em que colocaria os pés. No terceiro dia, já não havia em seu corpo, um só farrapo de pano.

Ele, que antes andava com desembaraço entre os espinhos, agora se encontrava exangue, por causa dos tantos ferimentos por todo o corpo. No quarto dia, porém, uma espiral de fumaça foi vista ao longe sobre as árvores. Um sorriso de contentamento lhe veio ao rosto. Até que enfim, meu Deus!

Parando, respirou fundo, procurou um lugar aprazível e depois começou a pensar nos seus dias da última semana. Só então se viu nu. Deitou-se no vão de uma grossa raiz de sapucaia e sem mais se lembrar de nada, dormiu. Foi acordar no outro dia, todo picado de mosquitos e de formigas. O corpo estava todo encaroçado, mas ele ainda não sentia dor alguma. Qualquer predador podia tê-lo comido enquanto dormia, sem qualquer esforço. Seu corpo cansado aceitou a inconsciência para o resto da tarde e durante toda a noite. Um bando de pipiras o acordou. Ele abriu os olhos, verificou-se quanto pôde sem se mexer, viu que não havia nenhuma cobra, escorpião ou tocandira e acocorou-se. Imediatamente se lembrou da fumaça, localizou-a, rezou por Indira e se pôs a caminho.

A certeza de haver encontrado a saída incutia-lhe calma. Caminhou a passos lentos na direção da fumaça. Horas mais tarde, deparou-se com outro regato, cujas águas se assemelhavam a um amontoado de lama deslizante. Num remanso, o amontoado de poluição vinda dos mal-educados moradores de Tares, tinha de tudo quando constitui afronta ao meio ambiente, inclusive farrapos de pano. Franz foi até eles: encontrou uma velha e rasgada calça Jeans que alguém, antes de jogar fora, transformou-a em bermuda. Franz lavou-a bem e depois a vestiu: parecia que o antigo dono tinha sua compleição física. Não demorou, ele ouviu um vozerio animado de moleques que pescavam com peneiras. Deu a volta para não ser visto e, minutos depois, um panorama inebriante estampou-se em sua frente. Era Tares.

– Meu Deus, o Senhor sabe que eu daria tudo deste mundo para ter Indira aqui do meu lado! Contudo, seja feita a vossa vontade. Se aquela esgaravatana tivesse pego em mim, o crâneo de Indira viraria troféu lá na tribo. Melhor assim, eu sei, meu Deus! Eu queria muito mais, mas, de qualquer forma, muito obrigado.

 

XVIII
O mar apresentava-se esverdeado, com a miragem profunda do Sol naquela calma manhã de julho. Parecia mesmo que o astro rei se apresentava para cumprimentar o mar. Algumas ondas vinham oscular as areias da praia Santa Helena, enquanto outras abalroavam nas pedras que não se cansavam de se lavar. Estavam quietos os abacateiros, sapotizeiros, mangueiras, araçazeiros e bambus-do-japão, que recamavam a encosta do grande mosteiro. Pela subida (estrada preparada com pequenos blocos de pedra) um vulto pensativo caminhava indefinido no meio da densa neblina que pairava sobre o pequeno monte. Lá longe, bem em frente, depois da baía, o convento fundado em homenagem à Nossa Senhora da Penha, no ano de 1558.

Os sinos repicaram pela terceira vez. Uma fila de frades desceu os 17 degraus da escadaria da direita, completamente compenetrados. Missais nas mãos, cabisbaixos, dobraram à direita e entraram na capela, não percebendo o vulto extático que estava debruçado no mirante, sobre os fortes canos de ferro do entorno.

Iniciaram em coro as orações da manhã. Peter Blue, não teve coragem de chamar um dos frades; retirou-se para o mirante. Era um pequeno compartimento ao ar livre, construído sobre a ponta de uma pedra com permanentes aragens e ampla visão do mar. Via-se, dali as belezas com que Deus constituíra a Terra. Logo abaixo, os grandes barcos penetravam na baía, velozes e cheios de gente. Eram pescadores, ou então mineiros que exploravam os túneis da ilha Trindade. Seus pensamentos foram sendo misturados com a monotonia das laudas e primas e com o borbulhar das ondas que quebravam antes de alcançar as praias.  Peter achava bonito ver a linha de espuma que cortava o lado esquerdo da baia, ocasionada pela batida das ondas no quebra-mar. Fora construído para impedir a aproximação da areia na baía.

Permeio àqueles contrastes da Natureza, ele agora meditava. Pensava no filho! Onde estaria ou, mais drasticamente, que fim teria levado? A mulher que vivia em Marites. Continuava na prostituição? Desde aquele dia, no qual se separaram, tudo fora obscuro. Oxalá não tenham tido a minha sorte. Agora, esfregava as mãos na longa barba e aspirava o odor da aguardente fermentada. Sua vida, o que fez dela?

O capelão que descia atrasado para a igrejinha, notou a figura estranha que mantinha os punhos cerrados nos canos que rodeava o todo especial caramanchel dos frades. Ficou a fitá-lo por alguns instantes e depois, notando que a missa deveria iniciar, retirou-se. Curvado sob o peso dos anos, Peter fez ranger o velho portão de ferro enferrujado e se dirigiu mais para o cimo da pedra. Com os olhos fixos na curvatura do horizonte, ele meditava a questão atordoante que fazia com que grossas gotas de suor escorressem sobre sua prolixa barba.

Frei Acácio, com lá seus 60 anos, caracterizava-se por sua alta estatura e nariz comprido e adunco. Não possuía barba como os outros frades, pois a mesma não lhe nascera, e interessante era ver sua larga batina que balançava como se, por si própria, caminhasse. Com sua voz grave e vagarosa, ele chamou, tocando de leve o largo ombro de Peter.

– Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, filho!

– Que Ele seja para sempre louvado, senhor frade.

– O que veio buscar aqui, filho?

– Queria falar com o superior do convento.

– Pois pode falar. Sou eu.

– Venho de um país longínquo; mais tarde, devido ao meu delito, fugimos de lá…. Meus dois primeiros filhos já morreram. Não sei do paradeiro do meu terceiro filho, que foi abandonado por mim e que, por certo morreu também. Minha mulher ainda vive, mas não sei como. Vim aqui para ver se vocês me aceitam me tornar frade também. Estou cansado de errar e quero pagar com algum bem todo o mal que já causei.

– Desculpas por interrompê-lo, senhor. Mas não é assim. É preciso que saiba que é impossível receber dois sacramentos como a ordem e o matrimônio. Eles existem para duas vocações distintas. Para um homem casado assumir o estado eclesiástico é preciso que a mulher e o papa consintam numa santa desunião ou, então, haja a mulher falecido.

– Padre, pelo menos eu poderia ficar aqui enclausurado?
– Apesar de depender muito de mim, não posso dizer nada por enquanto. Volte aqui noutro dia e então lhe darei a resposta definitiva. Bom-dia e que Deus o acompanhe.

– Eu voltarei brevemente, padre. Deus é testemunha de minha sincera decisão. Já tomei muitas decisões em minha vida e infelizmente, nunca as cumpri. Agora, porém, estou de fato arrependido e não posso perder esta grande graça que me dá a oportunidade de pagar pelos meus pecados.

Depois da missa, os frades voltaram ao refeitório. Era um amplo salão, com seis mesas para quatro pessoas. Após o “benedicamus dominus” proferido pelo superior e o “Deo gratias” dos frades presentes, um vozerio ensurdecedor se fez por todo o recinto. Na mesa da frente, assentavam os superiores, assim codificados pelo desempenho das funções: reitor, diretor espiritual, ecônomo, capelão e regente. Depois de haver pedido para que lhe passassem um naco de pão, o capelão, virando os olhos para o reitor, perguntou:

– Que desejava o homem barbudo, frei Acácio?

– Há, há, queria ser frade, não passando de um beberrão inveterado. Contou-me uma história muito longa e, por sinal, muito complicada, pecaminosa. Pareceu-me, contudo, muito sincero. Exalava um mal cheiro tal que nem sei mesmo se o meu desejo de que Deus o acompanhasse foi satisfeito.

– Eu conheço aquele ancião, retrucou o frei ecônomo. Lembro-me dele quando trabalhava no orfanato de Santa Lúcia. Tinha um filho de dois, três ou quatro anos. Era muito revoltado e acabou sendo praticamente expulso pelas irmãs. Já conversei com ele e posso garantir que é um homem muito culto. Infelizmente, reveses o transformaram. Creio mesmo que poderíamos aceitá-lo.

– Mas ele é….

– Já sei, casado! Neste caso, poderia ir estudando e depois aguardaria a morte da esposa infiel ou a liberação do papa. Desculpas pelo “infiel”, mas na verdade, a esposa dele o traía, disto, todo mundo sabia.

– Bem, não é preciso perder o nosso tempo ainda. Vamos devagar. Por enquanto tentemos acalmar a consciência dele. Não acredito que ele apareça por aqui mais. Estava bêbado e não notou que se equivocara na procura de um boteco.

– Ponho minha mão no fogo, retrucou o ecônomo, cravando os olhos repreensivos ao noviciando que devorava um segundo pão ao preço de sete cruzeiros. Um dia, depois de abraçar o filho na varanda da creche, disse-me que jamais voltaria a rever aquele ente e, de fato, assim se fez.

– Apostemos a geleia de domingo, frei Acácio?

Correndo os olhos para todos os frades presentes, o reitor pilheriou:

– O perdedor servirá ao vitorioso.

– Negócio fechado. Ah, prefiro de abacate.

 

XIX
Vibra a campainha. O frei ecônomo desce para atender e volta, a seguir, dirigindo-se à reitoria.

– Frei Acácio, a geleia de domingo é minha e será servida pelo senhor.

– Sem réplica: que faremos com ele?

– Minha ideia já foi exposta, ontem no refeitório. Além do mais, as almas precisam encontrar em nós a razão da vinda de Jesus a este mundo. Creio que devemos aceitá-lo, pelo menos por algum tempo. São tantas as almas de pouca fé que hoje em dia se perdem pela falta de ajuda de nós padres e religiosos! É impossível continuarmos cegos.

– Sem dúvidas, frei Luís. Lembro-me de quando deixei o seminário pela primeira vez e fui para o laicato. Tinha na alma os mais belos princípios e executava-os com ardor de um sacerdote. Procurei no mundo, mesclar-me às pessoas do mesmo ideal. Fui ter à prole de Champagnat, numa quente cidade além de Marites. Jamais vi maior ganância, desvios de impostos e nenhum objetivo cristão. Ali se fazia de tudo para poupar um mísero cruzeiro.

Os ricos eram auxiliados e os pobres menosprezados. Eu trabalhava como titular de uma classe. No final do ano vieram os exames com altos e baixos, de acordo com a capacidade financeira de cada aluno. Sinceramente, por três vezes tive que ver, no quadro, notas modificadas pela direção do colégio, com o intuito de auxiliar filhos de pais abastados. Mas isto era o mínimo. As ingratidões, a falta de piedade e a incompreensão fizeram-me considerar a religião um simples regime ou partido político/religioso. Graças a Deus, pude ainda separar Deus dos homens, o joio do trigo, enfim, dar a Cézar o que era de Cézar e a Deus, o que era de Deus.

Notando que o reitor se ajeitava melhor na cadeira para levar a cabo sua experiência religiosa, frei Luís interceptou:

– Devo mandar que o velho entre?

– Sim. Desculpa-me, irmão, mas há certas coisas que não podemos carregar eternamente. Foi um erro eu ter entrado no convento. Sinto a cada instante que sou como todos os que não têm fé e isto me frustra. Se em mim Deus não houvesse tatuado o indelével sinal da Ordem, hoje mesmo eu desceria por esta estrada e iria ser como aquele senhor que está ali fora esperando. Aumente um pouco os alimentos e peça a frei Marcos para arrumar o sótão. Quanto a mim, frei Acácio, eu seguirei a Jesus Cristo até o fim dos meus dias, acreditando ou duvidando, correndo, caminhando ou me arrastando em suas pegadas, porque, como disse São Pedro, só Ele tem palavras de vida eterna. Como propagandeia o vendedor ao comprador indeciso: “Está aí, freguês. Está barato. É pegar ou largar”.

 

XX
O antigo orfanato Santa Lúcia havia sido modificado com a criação do ginásio de Marites.Já não se aceitava, senão, meninas, que recebiam instruções das irmãs mais cultas da época. Era agora um suntuoso colégio, apesar de sua forma colonial e sua apagada aparência cor de tijolo nas paredes exteriores. Quem o visse de longe não fazia ideia do conforto que havia no seu interior. Ricos sofás esverdeados, cadeiras de couro em alto-relevo, sistema de comunicação interna admirável, cortinas multicores a balouçarem dependuradas em cada corredor, enfim, um luxo.

Logo abaixo havia o bosque dos recreios em que se podia definir como um imenso jardim traçado pelo capricho da Natureza. A piscina – assim como o galpão de esportes femininos – localizava-se mais à esquerda, onde se podia ter ampla e bela visão. Nas horas de recreio eram estrepitantes a algazarra e a alegria. Depois, vinham as horas de estudos, aulas, orações e os retiros semanais, com duração de cinco horas. O colégio era conhecido e sua reputação influenciava aos pais que pudessem pagar regiamente aquele conforto para as filhas. Por isso mesmo, dificilmente se encontrava uma criança ou moça que pertencesse, sequer à classe média baixa.

Ali naquele céu aparentemente esplendoroso, mas sem liberdade, vivia e aprendia Alice, filha do senhor André Sirlão e Zélia Mattos. Criança que era, não sentia, senão, a tristeza da falta de carinho da família. Contudo, mal se via acercada de colegas, ela sorria e goelava como um animalzinho sadio a poucos meses nascido. Seus cabelos loiros e sempre assanhados, passeavam de um lado para outro de sua face quase lívida, tão loirinha sem sol era. Tinha 15 anos apenas, poucos para que a responsabilidade aos estudos lhe desviasse os pensamentos das correrias do bosque. As irmãs a estimavam, apesar da inquietude que habitava aquele pequeno ser. Costumavam dizer que tinha um coração bem maior do que o do Zuzu: touro sisudo que ficava na campina ao lado, com seus olhos tristes e conformados, a pastar ou a puxar o engenho do velho Pedro.

Era indescritível a generosidade de Alice!  Por ocasião dos terceiros domingos de cada mês (dia em que era facultada a visita dos pais às filhas) via-se rodeada de colegas, em geral menores que ela, com as quais repartia as nozes, as barras de chocolates e os docinhos caseiros. Certa vez deu o próprio chapeuzinho vermelho, pelo simples fato de uma coleguinha lho pedir. Seus pais nunca reprovavam seus atos e, por isso, ela aprendia mais para a outra vida do que propriamente para esta.

Possuía uma colega inseparável, da mesma idade, com a qual passava todas as horas de recreio moderado. Era Márcia, moreninha de cabelos enrolados e de gênio dificilmente compreensivo. Sua índole intempestiva fazia com que somente uma pessoa paciente e generosa a aceitasse. Nos intervalos das aulas, ficavam assentadas perto do muro, a olhar a paisagem. Trocavam confidências de adolescentes, que logo depois eram esquecidas. Assim se passaram os primeiros anos de vida da pequena Alice.

 

XXI
Enquanto cada ser ia vivendo naquele mundo, alimentado pelo esforço de uma imaginação aturdida, outro cenário era pintado aos olhos de Brauxo. A tenacidade do seu espírito vivificado entre os Acaramaxás, fazia com que, dificilmente se habituasse ao regime monótono dos “brancos”. O riacho e a floresta lhe roubavam todo o encanto das primeiras leituras. Sentia-se desambientado como um teólogo que viesse para a vida mundana; ou um padre santo depois de ser beijado por uma prostituta.

A falta da barba prolixa e ruiva e dos cabelos compridos e desarvorados, davam-lhe a impressão de que seus planos atentavam contra sua personalidade. Só então veio a si, reconhecendo que estava com saudades dos velhos rufares e das carnes moqueadas da aldeia. Lembrava com saudade, do tronco do angelim-vermelho, que o despertou para o primeiro sonho de amor. O galinho-do-mato, com seu topete vermelho, a revirar as folhas emborcadas à procura do grilo arisco; os tangarás-de-cabeça-vermelha em suas danças sincronizadas sobre a estira dos galhos da sapucainha, tentando impressionar as fêmeas temperamentais.

As palavras dóceis de Indira, o desejo incontrolável de beijá-la e depois possuí-la inteiramente, mas que nunca se concretizava, porque ela o amava de fato e ainda não havia chegado a hora. As passeatas pela margem da Marxé, em que o Criador esmerou-se em pinceladas divinas, as belezas naturais; os seus estranhos amigos, as suas caçadas! Sim, lembrava com saudades e, como por encanto, revivia até os pequenos detalhes. Não conseguia apagar da mente, o dia em que tivera de se debater com a suçuarana, devido sua má pontaria: ele a ferira e, imaginando-a morta, aproximou-se e foi atacado; da tarde em que quase alvejara Indira, quando a mesma tentou pregar-lhe um susto, saltando de detrás da moita e correndo sorrateira à moda das canguçus…. Meu Deus, quantas recordações!

Tudo era um misto de imensa saudade e até desejo de que o tempo voltasse. Sentia que desaprendera bastante. Seus gestos eram diferentes e mais rudes do que os dos próprios montanheses. E aquela ira de selvagem acabou por prorromper em ameaças aos que deviam culpa por aquela situação de infelicidade: seus pais! Esmurrando a portinhola de seu quarto, saiu a caminhar pelos campos. Enquanto aguardava o momento oportuno para consumar sua vingança, Franz trabalhava numa fazenda a fim de manter suas despesas e despistar sua presença misteriosa pelos derredores de Tares.

Era domingo e o patrão havia saído para a missa. Como um fantoche, saiu a caminhar sem destino. Não sabia quem lhe guiava, apesar de sentir que as árvores o chamavam. De olhos quase que para o alto, foi seguindo, mais e mais, até que se sobressaltou com um botão imbele que florescia sobre um monturo de areia, à margem do Jarus. E ali, acordando de sua alucinação, ante o testemunho da água clara e cintilante da tarde, ele chorou copiosamente sua desventura e seus pecados. Estranhou a cova revolvida e a transformação dos dois raminhos que plantara, em lindas flores: as mais linda que já vira. Como era possível, na ausência da luz do Sol, um mato qualquer florescer com tanto vigor? Então, ajoelhou-se, rezou quanto pôde e chorou copiosamente: jamais deixaria de amar a pequena Indira!

 

XXII
No Bairro Aljubar II, numa casa abandonada pela decência e pela moral, numa sala ampla repleta de mesas superlotadas de bebidas excitantes e de seres ora marginais, ora marginalizados, uma antiga música romântica marcava o compasso do desânimo e da falta de motivação pela vida. Era naquele desânimo de espírito, que florescia a falta de decoro e a ausência de Deus. Duas pessoas confabulavam:

Ele está bêbado e bem trajado e a posição em que se encontra explica todo mal juízo. Ela se encontra debruçada sobre a eletrola sem nenhum ar de interesse.

– Uma quina vai bem, afinal você é coroa e não merece mais que isso.

– Bem, vamos para o quarto, lá combinaremos, okey?

– Não, passe-me a “amarelinha” aqui mesmo, do contrário, nada feito. Está vendo aquele senhor? Veja como me olha e é bem mais rico que você. Decida-se logo, do contrário ficará seco hoje.

– Aquele velho? Vou mostrar-lhe. Ele não passa de um curioso que nada mais resolve.

E tomando um violino pelo braço, dirigiu-se, cambaleante para o outro canto da sala. Seus olhos estavam enceguecidos pela aguardente, e sua alma, raivosa. Aconchegou-se do velho que, serenamente o fitava, sem nenhum temor.

– Velho rabugento, disse engrolado, inclinando-se para trás como se seu próprio sopro o desequilibrasse.

O velho sorriu e empurrando uma cadeira para o lado, tomou-o pelo braço, arrastou-o à porta e o empurrou escada abaixo. Ouviu-se o tinir das cordas e um surdo baque no último degrau. Então, o velho retornou e se dirigiu para a eletrola. Como quem está calejado ao desentendimento, permaneceu na mesma posição, com o mesmo ar de intolerância e angústia. Ergueu-se lentamente e caminhou para o quarto seis, onde uma plaquinha de plástico transparente se lia: Jorja dos Santos. O velho leu a inscrição e parou pensativo: algo parecia ter-lhe ocorrido, mas, afinal, que poderia haver de ligação entre um francês que viera a este esquisito mundo, com uma prostituta de Tares?

Como Aljubar II era um bairro elevado, dali se via Marites, cintilando suas lâmpadas. Via-se o povo ir e vir pelas ruas, numa quantidade tal que, despercebidamente, o senhor provençal perguntou-se:

– Onde e como vive tanta gente?

Lançando o último resto de roupa que lhe cobria a nudez sobre o tapete, ela respondeu sarcasticamente e cheia de desinteresse:

– Talvez aqui você ache melhor.

– Qual seu nome mesmo?

– Jorja, Jorja dos Santos.

– Ah, sim! Não sei o porquê, o nome me parece familiar. Sinceramente gostaria de voltar aqui em outra ocasião, disse ele depois de banhado e já pronto a deixar o aposento. Seu modo de ser me agradou, assim com agradaria ao mano, que foi o maior destruidor de famílias da Alemanha.

– E já não é mais?

– Não, respondeu denotando tristeza. Foi morto numa de suas tarefas. O único ideal que tínhamos era lutar contra as famílias organizadas. Infelizmente, agora estou sozinho no serviço e já pouco impressiono. O que me resta é vingar o mano, depois colocarei um revólver no ouvido e pronto: tarefa executada. E isto dizendo, bateu a porta, prometendo voltar outra vez.

De volta à janela, Jorja contemplava a cidade, tendo vivamente na cabeça o que dissera seu último freguês. Não seria ela a próxima vítima do desvairado? A cidade era má e o povo não fugia da definição. As mulheres não possuíam mais pudor e os homens não se importavam ao roubar, forçosamente, a virgindade das crianças. Aquela vida revoltante, com o povo vivento amontoado (uma família para cada quarto) evidenciava o caos.

Tares, por sua vez, orgulhava-se de possuir ricas igrejas, orfanatos, colégios e instituições públicas a serviço do bem-estar social. Tinha-se a impressão de que um povo diferente vivia em Marites. Os habitantes de Tares vieram de Marites, mas apesar de trazer o mesmo sangue nas veias, tornaram-se sóbrios e modestos. Mais tarde surgiria a rivalidade, na qual a grande e pecaminosa fera, símbolo do mal, tentaria devorar o bem. Para quem viu as duas transformações, era difícil entender a reviravolta acontecida. Marites decaía; Tares crescia.

 

XXIII
No mosteiro São Francisco, Peter crescia em conhecimentos e em virtudes. Frei Acácio, o reitor, admirava-o e ficava embasbacado diante das surpresas do Criador. Agora recordava-se de quando, desanimado talvez, preferiria ser aquele senhor que esperava do outro lado do portão. Percebia que sua observação não era a de um humilde que reconhecia sua insignificância, mas sim, de alguém arrependido que entrava no rol da graça de Deus.

Quantos jovens de bons princípios havia ali, cheios de piedade, cabisbaixos e retraídos, mas que acabaram retornando às suas casas! Recordava do trecho bíblico que lera em sua oração da manhã, sobre a parábola dos operários da vinha: “Porque são muitos os chamados e poucos os escolhidos”.

Frei Luís, no seu inconfundível fingimento, agora o olhava com olhos cheios de inveja. Vivia se mirando ao espelho e trazia debaixo da batina, todo resumo de ganância e falsidade. Peter pedia a Deus para não pensar assim dele, mas não conseguia. Notava que ele o bajulava diante da comunidade e quando o encontrava pelos corredores, virava o rosto. Aliás, que fazer se aquele rosto afilado, cabelo cheio de gomex, com óculos de lentes e armação brancas por sobre o fino nariz adunco, não lhe trazia simpatia? Sufocava suas tentações e acessos de desprezo para não ofender a Deus. No íntimo, seria capaz de amarrotá-lo. E por isso, perdia horas pensando: “Não será a religião um meio utilizado para abrandar os corações humanos, fazendo com que os crentes não matem, roubem nem sacrifiquem o próximo?

Não vejo nos religiosos a paciência ensinada por Jesus. Muitos são nervosos, gritam nos confessionários e têm, em geral, desmedido apego ao dinheiro. Afinal, se ensinam que daqui não levaremos nada, como justificar? Aquele colégio marista, por exemplo, tinha lá alguns meninos pobretões, para os quais o ensino era grátis, mas os demais, coitados, pagavam juros à pretensa caridade dos maristas. Pagava-se mal aos colaboradores e se queixavam da falta de dinheiro, enquanto confortos e objetos desnecessários eram adquiridos a todo momento. E as injustiças, o não cumprimento das leis fiscais, sociais e comerciais?

Quando rezavam, pareciam estar longe dos belos ensinamentos cristãos. Graças a Deus, aqui é um pouco diferente e traz-me a dúvida do que estou querendo. Perdão – dizia-se ao sobressaltar-se nesses pensamentos – perdão meu Deus, que hei de fazer para assim não pensar?

Certamente o mal o perseguia sem desatenção. Sabia que, se derrotado, seu reino perderia muitas almas e não se cansava de dizer-lhe que os padres eram a doutrina e que esta seria falsa se eles não fossem santos. Para combater suas tentações, Peter havia se acostumado a auxiliar frei Marcos nos trabalhos da casa. Ajudava-o a lavar, varrer e encerar a cozinha e limpar o pátio interno. Por isso mesmo, o humilde frei Marcos quase o venerava.

Desta feita, Peter o encontrou espanando os pequenos armários do dormitório. Pela maneira como estava sendo feito o serviço, Peter ficou admirado. O suor descia pelo rosto de frei Marcos aos borbotões, enquanto uma mancha escura lhe pintava o costado. Tinha a pesada batina com a orla passada pelos bolsos e repuxada para baixo. Peter aproximou-se como quem traz uma notícia não muito favorável. Frei Marcos, que concluía suas tarefas íntimas de noviço, que brevemente passaria a veterano, sem tirar os olhos do teto em que buscava uma teia de aranha, perguntou-lhe:

– Que houve desta feita, velho amigo?

– Nada de importante. Queria propor-lhe trabalhar aqui dentro, neste recinto abafado, sem a batina. Não seria mais confortável?

– Seria, mas a ordem não aconselha muito este tipo de prazer e, depois de tudo, já estou acostumado.

– Ah, sim! Mas que mal há em se trabalhar aqui, internamente, sem ela?

– Não há propriamente um mal, mas um perigo de mal. Alguém já disse com muita probidade: “Semeai um pensamento, ele produzirá um desejo; semeai um desejo, ele produzirá uma ação; semeai uma ação, ela produzirá o hábito; semeai o hábito, ele produzirá o caráter; semeai o caráter e ele produzira sua sorte”!
– Mas isto nada tem a ver com trabalhar em recintos fechados, sem a batina!

– Talvez tenha, respondeu frei Marcos, lançando ao chão o espanador e voltando o olhar para o teto, como a se certificar que estava tudo limpo. Eu penso em dependurar a batina para maior conforto e posso acabar semeando o hábito de, para sempre, deixá-la dependurada.

O sino bate. Hora do rosário. Peter acompanha frei Marcos, seguindo-o estupefato. A paciência de Deus para com a humanidade estava explicada: não haveria como arrancar a erva daninha, sem levar junto a mudinha de trigo. Para evitar a injustiça, Deus deixava ambos crescerem e somente depois de bem identificados, o joio seria arrancado e lançado fora. Frei Marcos era uma das mudinhas de trigo que Deus preservava.

XXIV
Três quilômetros acima de Marites havia vasta fazenda cortada por dois riachos, o Liberdade e o Santo Hilário. Ali havia de tudo, desde as mais diversas fruteiras aos rendosos cafezais. Pelo lado direito estendia-se a pastaria, com centenas de cabeças de gado a se movimentarem de um lado para o outro. Nas épocas da “panha do café”, dificilmente se encontrava nas casas, um único homem, o que era bem diferente dos últimos meses do ano, quando se cultivava o milho e o arroz. A fazenda progredia dia a dia, sem que nenhuma questão implicasse na serenidade dos patrões. Ali viviam os pais de Alice, que estudava no colégio de Santa Lúcia, em Tares.

Pelas tardes, André Sirlão e senhora passeavam pela estrada, a montante do arroio Santo Hilário. Em geral discutiam sobre o futuro da filha. Dona Zélia, sempre mais formal, esperava antes de criar fantasias, os eflúvios da vocação da filha. Com o Sr. André, porém, era diferente. Aspirava com grande orgulho, o dia em que pudesse ver a filha com o diploma nas mãos e à altura de casar-se com algum bom partido da região. Era sempre reprovado pela esposa, que achava precipitada qualquer previsão. Afinal, a menina poderia ser, até, uma irmã de caridade. Mediante esta possibilidade, o Sr. Sirlão irritava-se e jurava em nome de Deus, que preferia vê-la morta a assim se decidir.

Enquanto isso, lá longe, no bosque abaixo do prédio cor de tijolo, Alice brincava, correndo e gritando, longe da preocupação dos pais. Dificilmente se recordava de casa, onde seu pai prejudicava sua liberdade com exageros de mimo. Não a deixava sozinha e vivia preocupado com o que lhe pudesse acontecer. Um dia privou-a de assistir a um filme de desenhos animados sob o grande ventilador, só porque temeu que o mesmo se despendurasse. E a saber que ela quase adorava ver seus cabelos assanhados pelo vento!

– Minha filha, retrucava explicativo, procurando sempre justificar-se: está pendurado e pode muito bem cair, não é mesmo?

– E o teto, papai?

– Este não, minha filha, tenho certeza que não cairá, respondeu metendo o nariz para frente para despistar o mau jeito com que fora alvejado pela observação.

Essa criança, comentaria mais tarde com sua mulher, tem cada resposta que me deixa surpreso. Dona Zélia sorria sempre, como se cada vitória de Alice lhe dissesse de um ponto de vista seu. Agora, porém, as coisas estavam diferentes e temia-se somente a continuação dos estudos, quando ela retornaria ainda com maior presença de espírito. Cada qual vivia sua vida feliz e despreocupadamente. Alice não pensava nas dificuldades dos pais e estes não as tinha mesmo, pois as colheitas eram cada vez maiores.

 

XXV
Alguns meses depois, pelo caminho que leva a Tares, um jovem forte e desajeitado caminhava. Nos seus olhos lia-se toda falta de desenvoltura para o novo ambiente. Os anos entre os Acaramaxás haviam refeito sua personalidade. Vivia com a impressão de que todos o olhavam e já se sentia extremamente desconfortável. Iria comprar roupas com os honorários que obtivera com seu árduo trabalho no campo, e procurar um novo emprego mais perto da cidade, ou mesmo dentro dela. Na sua mente pululavam bem forte a ansiedade e a flama de seu ideal. Notava agora, que o mundo conspirava para impedir a realização de seu sonho, porque, força de vontade e desprendimento nunca lhe faltaram.

– Bom-dia, dizia a cada momento, com seu peculiar costume de ser gentil, a quem por ele passasse. A seguir, ele olhava os velhos sapatões do filho do patrão e as calças de caqui com cintura de couro cru. E pensava: aquele sorriso ao cumprimentar-me deve ter sido de deboche.

Lá longe, algumas cumeeiras das primeiras casas da cidade já podiam ser vistas. Brauxo as fitava encantado, cheio de admiração, como se aquele mundo lhe fosse completamente estranho.

 

– Bom-dia, senhores!

E divagando em pensamentos diversos, alcançou a cidade. Um mendigo, numa abertura triangular de lotes, estendeu a mão: uma esmola, pelo amor de Deus!

– Não tenho dinheiro pequeno.

– Deus o abençoe assim mesmo. Um dia será mais pobre, terá dinheiro pequeno e, quem sabe, eu ainda esteja por aqui.

Brauxo sorriu, como faz um vivente da cidade. Admirou-se, porém, e logo se lembrou do que era e voltou-se ao pedinte:

– Escute, poderia me informar onde eu poderia comprar alguma roupa sem me achegar ao centro da cidade?

– Não, senhor. Só existem lojas de tecidos no centro, na Rua dos Garimpeiros, do outro lado.

– Okey! Muito obrigado. Ah, é possível chegar à tal Rua dos Garimpeiros, passando pelos derredores:

– Por acaso, o senhor é novato aqui?

– Sim, venho de uma longínqua fazenda bem longe de Marites.

– Quem eram seus empregados?

– Estou com pressa para lhe contar esta história. Adianto-lhe apenas que não sou patrão, apenas o mais modesto dos empregados. Afinal, há ou não uma passagem?

– Siga por aquela rua ali na frente e depois dobre à esquerda. Na primeira rua que encontrar à direita, siga até o fim e depois se informe.

– Obrigado e até mais ver. Certamente irei esfacelar minha nota grande e, na volta deixarei alguns trocados com você.

Numa placa lia-se as inscrições da rua indicada. Ele entrou e continuou seguindo as instruções do mendigo. Pelo lado direito, depois de algumas casas, havia um extenso pântano a perder de vista. Brauxo recordou de sua vinda quando criança e de todo aquele mistério que envolvera sua vida entre os Acaramaxás e ao lado de Indira. Imóvel olhava as palmeiras balouçantes a brincarem alegremente. Cada folha parecia cumprimentá-lo e lhe dar boas-vindas. Ali, Jeré o raptara e esculpira seu destino, transformando-o no mais forte e sábio chefe Acaramaxá.
Agora, depois da provação que o destino lhe passou, nada mais parecia ser motivo para continuar vivendo. Mas, nas suas veias corria o sangue intempestivo de seus pais.

Um menino passa com as mãos cheia de exemplares do jornal local, intitulado, O NOTICIÁRIO.

– Um exemplar, menino.

O menino, como o mendigo, não tinha troco e ele, num relance, viu a única coisa que lhe interessava: alguém oferecendo emprego numa biblioteca municipal. Instruía o interessado a que procurasse o 1º secretário da prefeitura, Sr. Paulo Rubens.

 

XXVI
No dia 7 de julho, uma menina sobe a escadaria e cruza a porta da sala da biblioteca. Trazia nos olhos, a verdade clara de uma profunda tristeza. Franz ainda não havia disto tomado conhecimento, pois seu hábito de ler concentrado, agora o absorvia por completo. Aliás, devido a isto, muitos já tinham levado ao prefeito de Tares, muitas reclamações. Franz sabia que, dia menos dia, seria despedido. Seus olhos demonstravam cansaço, estavam sempre vermelhos como se estivessem infeccionados.

– Moço, disse a menina, deixando um lápis cair no assoalho, a fim de melhor chamar a atenção.

Assustando-se como de um sono desperto, Franz elevou os olhos. Por fim, ainda meio aturdido retrucou:

– Que a senhorita deseja?

– Um título que talvez aqui não tenha ou, quem sabe, que ainda nem foi escrito.

O bibliotecário sorriu confuso:

– Não entendi.

– Eu explico. Estou aqui em busca de sua amizade.

E sem que Franz tivesse oportunidade de interferir, continuou:

– Soube que é órfão como eu o sou também. Não poderíamos ser bons amigos?

– Bem, essa coincidência pode nos ajudar.

– Sou estudante do Santa Marta, onde curso o segundo ano de minha formação. Gosto imensamente de ler e escrever. Você não gostaria de ler alguma coisa que já escrevi?

‘Franz, num relance de aturdimento, fez um gesto de assentimento. Seus olhos denotavam uma perplexidade ímpar, tal a insistência que a menina demonstrava.

Confabularam bastante e depois Franz se viu sozinho na sala. Marta saíra risonha, com um livro debaixo do braço, cheia de contentamento como nos tempos em que saltava feliz junto a seus familiares. Esquecera por um momento aquele dia terrível em que um alto-falante da Praça 13 anunciava o horrível desastre de um carro que trafegava velozmente para um convescote ao rio Serra.

Depois de havê-la acompanhado com os olhos até à esquina primeira, Franz abancou-se pensativo. O vento frio penetrava pelas persianas e jogava as folhas da estante, abertas ao chão. Levantou-se e sem tirar os olhos de um mesmo ponto, passou a recolhê-las. Depois desceu para o almoço bastante apressado, pois queria terminar aquele volume, ainda antes do domingo. Não bastasse, na pensão todos riam de seus costumes de não usar talheres. E só Deus podia avaliar como aquela alma conseguia dominar-se e deixar que um leve sorriso se estampasse. No entanto, sabia melhor que ninguém, que tudo tem limite e não tardaria a se cansar de tantas humilhações.

Aliás, conseguir realizar seu grande ideal a tal preço, quase lhe era desvantajoso. Neste dia deve ter engolido alguma coisa rapidamente e retornado à biblioteca. Sentia a cabeça doendo, sendo imenso o desejo de não ter nascido. Subiu a escadaria, curvou o corredor e já levava a chave à fechadura, quando se sobressaltou com um vulto impassível que lhe obstava o caminho. Empalideceu e, depois, muito confuso, afastou-se alguns passos, desculpando-se:

– O senhor deseja alguma coisa?

– Desejava, mas não desejo mais. Queria conhecer o importante funcionário que tem o bom costume de atender mal as pessoas.

E, retirando a mão do bolso do paletó, fuzilou:

– Está vendo isto aqui? Está, não está? Pois são um pouco das reclamações que tenho recebido esta semana sobre seu atendimento. Considere-se um estranho nesta repartição. Logo mais estarei no meu gabinete. Espero vê-lo para ajustarmos as contas. Até lá.

Franz sentiu o sangue de Brauxo ferver-lhe nas veias. Suas vistas turvaram e num repente, temeu descontrolar-se e atirar-se sobre o chefe do executivo tarense. Graças a Deus, não aconteceu nada. Rodou a chave e cabisbaixo, com andar trôpego, novamente desceu a escadaria.
Uma profunda tristeza reinava em seu coração. Já não sabia distinguir, em si, nada que justificasse sua existência. Quando o sangue guerreiro Acaramaxá se sobressaía, ele se imaginava um grande covarde. Aquela vida não era a sua. Afinal, viver entre tanta gente sem receber um único cumprimento, doía e doía muito. Continuou andando, até que, cansado, levantou os olhos e deparou-se com a torre pontiaguda da capela de Santa Rita de Cássia. Impelido por alguma força que não sabia definir, entrou…. Entrou e pôs-se a rezar com todo fervor de quem há um bom tempo havia se despojado de um grande conforto: a paz.  Nem percebeu que estava completamente esquecido do que lhe acontecera a poucas horas.

 

XXVII
Repicavam os sinos da capela do Santa Luzia. As alunas, numa demonstração inequívoca de simpatia e juventude, encaminhavam-se para as orações matinais. Em cada rosto podia-se encontrar uma nova lição de sonhos a serem realizados. Olhos meigos, alegres e, às vezes, tristes, intercalavam-se a cada passo, oferecendo à madre Maria de Jesus, um novo capítulo de meditação. Que serão no futuro? Que querem dizer estes olhares diversos que ora nos fixam com piedade, ora nos fulminam com superioridade e, ora se deixam passar além, com um cunho marcante de perplexidade?

Madre Maria continuou absorvida por estes pensamentos, até o momento em que a algazarra do recreio a despertou de suas divagações. Iam e vinham, tal o devaneio de Rui Barbosa em as Andorinhas da Campina, pontilhando de cores e graciosidades, o grande pátio de recreação da escola. Lá embaixo, com uma vasta visão do Atlântico, havia um anteparo de pedras naturais, que o tempo pachorrento e persistente se encarregara de transformar num muro divisório. Era ali, que nos dias de angústia, Alice gostava de passar os recreios, solitária, a fitar desatenta, as ondas que morriam na areia da praia, enquanto as pessoas iam e vinham, sem jamais dispensar-lhe um mísero olhar.

Porém, neste 17 de julho, sem aragem e com um sol escaldante, havia banhistas por todos os lados. Dentre eles, quem sabe, um desse por sua presença? Era já a necessidade de ser notada, a certeza de que nascia em sua alma, o desejo natural das adolescentes. Sabia, agora, o que queriam dizer aqueles olhares apelativos que suas colegas, que jamais se cansavam de sussurrar-lhe coisas estranhas. Momentos outros distraía-se com o mergulho rápido das gaivotas alvacentas que vinham inspecionar os botes que aportavam na praia. Havia, como sempre, o som fino e irritante da sineta, lembrando para algum afazer e deixando em Alice, a sensação dorida de ser feia, “uma maria ninguém”.

Desta feita, porém, não receberia a derrota de braços atados. Mal terminou o almoço, retornou a debruçar-se sobre o muro, somente se retirando à tarde, ante um cenário divino de cores diversas, no qual se sobressaía o sorriso triste de um rapaz a desculpar-se por quase tê-la atingido ao lançar uma pedra sem direção. Para Alice era o fim de mais uma tentativa. Passou a noite acordada, de olhos abertos, pensando sem cessar no que havia com ela de tão desinteressante. Sabia que seus olhos eram verdes, as mechas, agora, mais ondeadas e de uma tonalidade quase castanha; seus lábios eram bem traçados, os dentes bem simétricos e o corpo gracioso, embora desprovido de atrativo sensual: era muito magra.

Muitas tardes ela passaria descansando na porta, na esperança de que um certo rapaz passasse por ali outra vez e lhe dispensasse mais um rápido olhar.

 

XXVIII
Chovera muito na região de Tares e Marites. O rio Serra, ora caudaloso, ora pachorrento, subira muitos metros acima de seu leito normal. As águas da chuva que desciam dos lugares mais elevados, alagaram repentinamente todas as planícies que margeavam o rio. Relâmpagos e mais relâmpagos, como é natural, sempre precedidos de fortes trovões, cortavam os céus de alto a baixo. O que a princípio parecia uma dádiva de Deus, revertia-se agora em catástrofe.

E nessa noite mesma, um senhor bem protegido, com chapéu “shantung” e um sobretudo que quase se arrastava ao chão, cruzou a cidade baixa e se dirigiu à boate. Tinha nos olhos a felicidade de quem desvenda um mistério, e a maldade de quem estava próximo a se “beneficiar” da descoberta. Subiu com dificuldade as escadarias que levavam às casas mais desoladas do bairro elevado da cidade.

Entrou como quem entra despreocupado em sua própria casa, um honrado pai de família. Colocou o sobretudo e o chapéu num cabide próximo à eletrola e se dirigiu ao quarto 6, batendo na porta e notando, então, que pela segunda vez se sentia nervoso e aturdido. Compreendera que assim se sentira na primeira vez em que seu irmão o levara a uma boate, há muitos anos, numa cidade interiorana da Alemanha. Tirou o pente do bolso, mas não se penteou; quis retirar-se, mas não conseguiu. Algo o dominava, algo o impelia e incitava. Estava certo de que seria naquele momento ou nunca mais. Sentia-se velho e pouco afeito às tribulações, mas não conseguia fugir à sina familiar de resolver as vinganças com as próprias mãos. A porta abriu-se:

– Boa-noite!

– Boa-noite, Jorja.

– Não me recordo de você.

– É natural. Eu nunca estive aqui no passado. Você conheceu bem o meu irmão! …. Posso entrar?

– A que veio, afinal?

– Sua pergunta é bastante oportuna. Tive medo de ficar imerso nas águas do Serra.

– Entre. Sei para o que veio. Os homens não vêm aqui para outra coisa. Quer amor comprado; está cansado da solidão, vejo nos seus olhos que sua vida é cheia de problemas. Posso dizer isso, pois levo quase a mesma vida. Há anos venho tentando assassinar minha própria consciência e a cada punhalada, ela mais se vivifica e grita, como se apenas fosse desperta. Sinto horrores pelas noites adentro. Vejo demônios cercarem minha cama, vejo olhos faiscantes cruzando com os meus, sinto o calor de um fogo estranho penetrando no meu coração. Quero chorar e as lágrimas não aparecem; quero enlouquecer e Deus não deixa, quero suicidar-me, mas parece que, com isto, estarei roubando o trabalho de outrem. É Deus e o demônio disputando minha alma. Percebo, pela manhã, que minha família se desfez. Vejo sempre um homem que sai e nenhum deles fica.  Os sinos repicam lá embaixo e minha alma chora sobre as torres das igrejas. Sofro tanto e vivo uma angústia tão desumana que parece mentira que um ser humano possa suportar tantos achaques.

O provençal a fitava atônito. Esperava que ela se calasse para levar a cabo sua missão. Era o poderio do bem contra o mal; era a intervenção divina. Jorja falava sem cessar, enquanto ia se despindo, sentada na orla da cama:

– Vejo a cada instante que fico mais velha. Isto me alegra, pois é o começo do fim. Espero com ansiedade que o sol logo desponte, não para – como os puros de coração – deleitar-me com o filme natural e alegre da Natureza, mas para saber que mais 24 horas me aproximam do fim deste martírio. É duro ser escrava de dois senhores! Procuro dedicar-me inteiramente ao bem, mas não consigo. Nunca pedi que Deus me ajudasse e, no entanto, Ele está sempre pertinho de mim.

Repicam os sinos do convento, lerdos e sonoros, como um coro de anjos. Um som veio subindo os morros e entrou pela noite, indo aos ouvidos de Jorja, como uma palavra de eterna bondade.  “Minha filha, minha filha! … E, num repente, como se o mundo viesse abaixo, um trovão cortou o silêncio da noite e a monotonia dos pingos d’água.

Jorja, estatelada, puxou o edredom sobre o peito desnudo e olhando para a negridão do espaço que novamente encobria a Terra, falou:

– Meu Deus! … Meu Deus! …

Ouviu-se a seguir um tiro e um vulto estranho correr pelos corredores. A polícia apareceu no portão e cercou a passagem do provençal.

– Não me importo, falou ele, notando-se perdido. Vocês são poucos para conseguir prender-me. Nem a polícia do mundo inteiro me levará preso. E, retirando do bolso uma navalha, degolou-se em pleno salão. O sangue vindo do quarto seis, escorrendo pelo corredor, foi unir-se à poça sanguínea do salão. Pasmos, policiais e presentes boquiabertos apenas se benziam.

Lá fora a chuva continuava. Os sinos haviam cessados e por ser tarde, os frades já haviam se recolhido.

 

XXIX
E os dias corriam. Haviam cessado as chuvas e Marites tomava sua vida rotineira. No mosteiro de São Francisco reinava a inquietude, notada, principalmente, pelo frei Acácio, que respondia pela direção. Peter, sempre perscrutador e reservado, vinha notando isto há muitos dias, fazendo, no entanto, a mortificação de permanecer calado. Esperava a oportunidade para perguntar sobre aquelas reuniões constantes que se faziam sem sua presença. Não entendia, outrossim, o porquê de tão frequentes saídas, naquela semana, de frei Luís. Passou a ler seu breviário pela parte lateral do convento, de onde divisava a reitoria. Vez por outra erguia os olhos por sobre os óculos e fitava a escrivaninha de frei Acácio. Era mesmo ocupado, o reitor! Dificilmente ficava sozinho. Era um aluno problemático, eram cozinheiras reclamantes, era Luís futricando…

Peter notava que mais aquele dia se esgotaria se continuasse apenas aguardando o momento oportuno. Tinha de sair daquela curiosidade. Sentia – por mais que evitasse – a sensação de um noviço prestes a discursar. Encaminhou-se, resolutamente à reitoria. Havia três alunos ali, sentados ao redor da escrivaninha. Um deles chorava, e os outros dois mantinham a fisionomia, ora de raivosos, ora de arrependidos. Peter teve a impressão de que havia escolhido o pior dos momentos para entabular conversa. Contudo, já era tarde, havia de falar e amainar tanta curiosidade.

– Boa-tarde, frei Acácio.

– Sente-se, irmão. Que deseja?

– Falar um momento a sós com vossa reverência.

– Pois não, retrucou ao mesmo tempo em que voltava o olhar para os consulentes, dando mostras de que deviam se retirar. Era uma questão de hierarquia.

– Pode falar, frei Peter.

– Ao ouvir, “frei Peter”, fez menção de rir, não entendendo, em nenhures o que aquilo significava. E antes que abrisse a boca, o reitor, abrindo a gaveta da escrivaninha, retirou de dentro um jornal, já amarrotado de tanto ser lido e o passou rapidamente a Peter. Lia-se, na primeira página, em letras garrafais: MORTE AOS COMUNISTAS; A LUTA PELA EMANCIPAÇÃO ECONÔMICA; BOM O TIME DOS FUZILEIROS; A MORTE RENTE AO PÂNTANO….

Depois de haver corrido os olhos pelas manchetes, voltou seu olhar provocante para o interlocutor que o fitava um tanto perturbado. Peter notou que seus lábios tremiam nas palavras de fervorosa prece. Virou a folha e como por encanto, sua tez perdeu o colorido, seus olhos anuviaram-se: sentiu faltar o equilíbrio e tudo o que pode dizer foi: Meu Deus!
Na segunda página, destinada aos crimes, havia, bem no alto da folha, os dizeres: JORJA DOS SANTOS, a inveterada prostituta deixou de semear o mal: foi assassinada por um velho francês provindo de Provença.

 

XXX
Chegara o dia da colação de grau. Alice – parecendo viver a parte mais feliz de sua vida – agora se encontrava acabrunhada, porque soubera que seus pais não poderiam comparecer. Haviam sido acometidos de forte gripe, cujo andaço grassava quase toda a região. Tentou falar com a irmã superiora a fim de que a mesma a dispensasse dos festejos, mas foi inútil.

E na sua vagarosidade eterna, o tempo passou e 25 de dezembro amanheceu. Era um dia sem sol, no entanto lindo como poucos. Os cânticos do Natal eram ouvidos por todas as emissoras e as igrejas revestiam-se do mais belo para comemorar a encarnação do Filho de Deus em nosso meio.

No pátio do colégio, as meninas passeavam felizes, porém nem todas. Bateu a sirene, indicando o início da missa. Moças recém-formadas e seus familiares apinhavam-se por toda a capela. Houve, a seguir, o café da manhã e o encontro das felicitações com os familiares, o que formou pequeno tumulto de parabéns, abraços e beijos…. Todos se abraçavam afetuosamente, todos sorriam, todos ganhavam presentes…. Para Alice, apenas foi entregue um embrulho que o criado da casa havia trazido. Tratava-se de um pequeno bolo que tinha sobre si uma carta com os seguintes dizeres:

“Minha filha, como Deus às vezes é estranho, ou “vendicativo”, como disse meu tio certa vez. Lembro bem: foi num jogo de bocha, quando ele precisava evitar os pontos do adversário. E ele era exímio “russador”, o cara do time. Houve silêncio e o meu tio lançou a bola. Ela ia direitinho conforme a direção imposta por ele. Já pertinho, um torrãozinho qualquer desviou o rumo da bola e o resultado foi fatal. Não sabendo como justificar, ele soltou lá o seu “Anche Dio è vendicativo quando vuole”: até Deus é vingativo, quando quer. Pois é, minha filha, tanto sonhamos com este dia, tanto esperamos por este dia, tanto sonhamos em estar aí para abraçá-la e beijá-la mil vezes, no entanto, veja no que deu: nossa saúde encontrou “uma pedra no caminho” e todos os nossos planos foram água abaixo. Restou-nos apenas remeter-lhe nosso coração, para que ele divida com você toda a alegria de ter conseguido realizar nosso sonho. Daqui da cama, sua mãe e eu rezamos por sua felicidade. Logo mais você estará conosco, não é mesmo? Boa viagem, venha o quanto antes. Faça uma boa viagem, chegue cheia de vida, porque estaremos de braços abertos esperando por você. André e Zélia.

Amassando a carta nas mãos sem perceber, Alice encaminhou-se para a portinhola que fazia divisa com as areias da praia. Afastou-se da multidão e ficou, com o costumeiro olhar perdido, na imensidão aquosa que lhe banhava os pés. A praia estava deserta, porque ainda era cedo. Apenas alguns transeuntes deixavam suas pegadas pela areia que havia sido esplanada pela maré alta da noite. E dentre eles havia um, cuja alma estava mais turbulenta do que o próprio mar que rugia ante o impacto das terras que lhe obstavam a passagem. Era Franz, o filho de Peter, que se encontrava encerrado no mosteiro de São Francisco de Assis.

Quanto ímpeto para refrear o ímpeto de um homem de alma indomável, cuja mãe fora prostituta e recém-assassinada, e cujo pai não lhe dera o carinho e a condição humana de que precisava, abandonando-o quando ele mais precisava de amparo! Franz parou, fitou o mar cheio de mágoas. Ali, de fato, era mais presencial o amigo que podia e tentava resolver os seus problemas mais íntimos. A imensidão do mar lhe lembrava o poder de Deus, por isso, Franz imaginava que o Criador vivia mais por ali. E como a força elétrica que faz vibrar cada vez mais forte uma corda horizontal, seu coração foi sentindo a força do mal que gritava em sua alma: mate-se, ou mata. Cumpra seu destino.

E no auge da tensão, lançando-se na areia semiúmida, Franz gritou fortemente: Santo Deus! Seu grito perdeu-se entre o vento sibilante que bafejava aquela manhã, indo aos ouvidos de quem havia sido chamado.

Alice presenciou o quadro, quis gritar também, mas sufocou seu grito ao notar que o rapaz, aos poucos se erguia. Ele sacudiu a areia que se enfiara entre na roupa e se encaminhou para a sombra de um bambueiro, bem próximo à praia. Recostou-se mais calmo e seus olhos foram de encontro àquela figura de vestes brancas que, solitária, fitava-o, e ao mar.

Pensou estar vendo um anjo, tal a meiga imagem de seus traços fisionômicos; seus cabelos confundiam-se com as espumas alvacentas que morriam na areia; suas mãos pequenas e singelas; seu rosto era frágil e seus olhos possuíam a cor esverdeada; Franz perdeu-se em pensamentos, esqueceu do que era e, mal Alice retornou, começou a rabiscar alguma coisa na areia, com um caniço que as águas noturnas haviam ali depositado.

“Foi entre as estepes de um complexo pensamento que a vi maravilhosa, bela imagem da vida. Era mais graciosa que as pombas em arrulhos e revoluteios, mais simples que uma alma santa, mais generosa ainda que as frases fraternas da ascética. Vi você triste e bela. Não havia nada mais que de mim tivesse tanta atenção. Pareceu-me um sonho que transitava entre a consciência esmorecida e o eterno imutável. De tudo que vi sobre esta Terra maldita… maldita…”

Ao escrever esta palavra, sobressaltou-se, esfregando os pés desnudos sobre o que escrevera. Como alguém quase fora de si, foi deixando a praia. Jamais se livraria da genética familiar. Qualquer um que causasse a ele um mal irreparável, teria de pagar. As imputações mais graves, seriam compensadas com a morte. Esta anomalia parecia generalizada na mente dos estrangeiros que visitavam ou moravam no Brasil.

 

XXXI
Enquanto as forças lhe faltavam, seus olhos podiam ver a multidão que se aglomerava para assistir à ordenação de Peter. Franz já não era dono de si. Sua alma perdera todo senso, seu coração não passava de uma bomba de metal: sem qualquer sentimento e acionada por controle remoto manipulado pelas forças do mal. Vingar-se-ia daqueles que preferiram abandoná-lo, quando podia ter-lhe dado a oportunidade de ser um grande homem. A mãe recebera o castigo merecido. Vingar-se-ia agora do pai, ou nunca mais. Afinal, foi para acertar esta conta, que perdeu Indira e praticamente as últimas esperanças de ser feliz, ao fugir para cumprir seu destino.

Voltou para seu recanto, num velho paiol de Marites. Queimou tudo o que havia conseguido, por vezes até desonestamente: jornais, livros, (pois era tudo o que possuía) tomou uma roupa rasgada, mas limpa, muniu-se de um punhal e partiu. Não planejava nada, salvo a morte do pai. Seria um golpe à altura para provar sua loucura. No primeiro botequim tomou um trago e, a seguir, dirigiu-se decididamente.

As cerimônias começaram: cantava-se a ladainha de todos os santos. De rosto ao solo, com uma veste alva recobrindo-lhe o corpo, Peter ouvia o desenrolar daquelas palavras que aos poucos davam-lhe o direito de se chamar ministro de Deus.

Franz parou a alguns passos, fitou seu velho pai e dele não afastou o olhar. Maquinalmente, meteu a mão à cintura, retirou a arma, mas uma força estranha fê-lo titubear. E enquanto essa força inexplicável agia, uma senhorita saiu do meio da multidão e postou-se à frente do neossacerdote, recebendo no ventre, a mortal punhalada. Caiu exangue ao chão, enquanto Franz, no meio do tumulto, procurava escapar. Teve apenas a desdita de ouvir, ao transpor os janelões da capela, uma voz desesperada:

– Alice, Alice, você não Alice!

Louco a correr, Franz embrenhou-se na primeira capoeira que encontrou, escondendo-se da fúria do povo e da polícia, que o buscavam acirradamente. Não sabia o que fazer, não podia pensar, não era possível organizar o menor plano. Fervia-lhe o sangue, o cérebro entrara em curto. Jogou-se permeio à uma moita de bananeiras que havia sido abandonada quase dentro da mata. Ficou ali, qual cão ferido, sentindo o fim de sua vida de sofrimento. Só restava uma saída para se livrar de todos os males e do castigo da prisão: matar-se. Procurou o punhal, mas não o encontrou, porque o havia perdido ao correr desordenadamente. Longe, o povo comentava furibundo o acontecimento. Alice fora imediatamente internada num dos hospitais e deveria ser submetida, de imediato, a uma complicada cirurgia. A ordenação fora suspensa e em toda Marites não mais se falou em outra coisa durante a semana inteira.

Franz perdera a mãe e, agora, – ainda que vivo – o pai. Indira, a mulher que mais amou nesta Terra, ele mesmo a sepultou…. Sua vida não tinha mais o menor sentido para continuar. Precisava acabar com aquilo, mas, por incrível que possa parecer, ele não encontrava ferramenta adequada para ceifar-se a vida.

Os últimos acontecimentos fizeram com que ele se afastasse de Deus, mas, pelos merecimentos de orações sinceras de outrora, Deus dele não se separou. Quando se é sincero, quando ao menos se tenta evitar o mal, Deus credita o esforço. E, ao invés de oferecer a Brauxo meios para acabar com a vida, enviou-lhe o anjo Rudá para socorrê-lo nos momentos mais desesperadores.

 

XXXII
Passando fome e sede, Franz continuava pelos matagais. Quando saiu da moita de bananeiras que o protegia, viu um terçado no chão. Aquela ferramenta “caída do céu” era tudo o de que precisava para sobreviver naquele momento. Estranhou ser o terçado, do mesmo modelo que usava na aldeia, mas não conseguia, sequer, terminar qualquer suposição. Não sei quem, nem a razão, mas agradeço a Deus por ainda se preocupar comigo, pensou. E já que mesmo a um bandido como eu sua misericórdia alcança, por favor, meu Deus, não permita que a menina que esfaqueei, morra.

Sobreviver naquela fuga, valeu-lhe a experiência que obtivera com os Acaramaxás. Com muita dificuldade, armou mundéus e comia, crua e sem sal, carne de cotias, tatus e pacas que neles caíam. Ao fim de 25 dias, quando somente a polícia operava, resolveu mudar-se. Deixou que a noite avançasse e depois veio cautelosamente saindo. Ganhou a estrada e, a passos largos, foi se distanciando da cidade.

Tinha na mente a esperança de encontrar uma casa com roupas enxaguadas ao bel prazer de quem quisesse pegá-las. Encontrou. Tomou duas mudas completas, ouvindo apenas leve censura da consciência. Que hei de fazer, afinal? Morreria nu se assim não agisse. Mais tarde, sendo possível, retribuirei. E sem destino continuou andando quase correndo, como se quisesse chegar a um lugar que não existia. Amanheceu o dia e sua caminhada continuava. Tinha os lábios ressequidos, a barba espessa, o cabelo revolto. Seus pés inchados, sangrando entre os dedos. A roupa molhada de suor: um suor frio que arrefecia seu corpo febril.

Olhar firme para a frente, foi andando. Não parava para, sequer, tomar um gole de água nas nascentes que encontrava. Incentivado por uma força estranha, foi prosseguindo. Não sabia onde chegar, não conhecia aquele caminho. Sofreu os achaques do Sol que descambava por detrás das montanhas. Quando a noite caiu plenamente, Franz entrou por uma floresta a perder de vista. Embrenhou-se nela e adentrou enquanto enxergava o possível para andar. Parou. O véu da noite o encobriu plenamente. Para trás ficaram, apenas, as manchas de sangue que deixavam no solo: comprovante de um desumano sofrimento, indescritível a qualquer ser vivo.

 

XXXIII
Seis horas Alice passou na sala de cirurgia do hospital Santa Marta. Dr. Gelson, afamado cirurgião e professor da melhor faculdade de medicina do país, que estava a passeio por Marites, assistiu-lhe, em vista dos insistentes apelos do Sr. André. Quando este saiu pela porta da sala de operações, com a fisionomia cansada, num gesto impulsivo, o Sr. André o segurou pelo braço, desculpando-se a seguir:

– Como está ela, doutor?

Dr. Gelson fitou-o de alto a baixo e, suspirou profundamente. O Sr. André implorou:

– Pelo amor que tem a Deus, Dr. Gelson, como está minha filha? Não resistiu à cirurgia?

– Ainda não posso afirmar nada, Sr. André. A paciente tem um organismo, o melhor que já pude examinar em toda minha vida. Contudo, o punhal fez um trabalho nefasto. Ela vai sofrer muito, antes de se recuperar plenamente.

– Santo Deus! Posso visitá-la?

– De nada adiantará. Ela dorme profundamente. Está sob o efeito da anestesia geral e somente daqui a um bom tempo, acordará. Entretanto se este é seu desejo, poderá vê-la. Venha, irei com o senhor.

Os dois entraram, ambos preocupados. As enfermeiras acabavam de retirar o material ensanguentado que fora utilizado na cirurgia e se preparavam para levá-la ao quarto 6 do hospital.

Alice apresentava uma fisionomia lívida, mas serena e tranquila. Os olhos fechados, os lábios um pouco entreabertos. O Sr. André curvou-se beijando-lhe o rosto e se voltando quase inopinadamente, acentuou:

– Dr. ela está fria, fria demais!

– Não se preocupe. Isto é normal. A cor e o calor virão com o tempo. Inegável, porém, que a coisa é séria bastante para que se peça a Deus todo auxílio.

Sr. André ouvia o que falava o Dr. Gelson, enquanto as enfermeiras retiravam Alice da sala de operações. A seguir, forçosamente, o Sr. André aceitou o convite para um cafezinho. Tentou levar, também sua esposa Zélia, mas ela, mesmo a tantos dias praticamente sem se alimentar, não aceitou.

– Prefiro ficar ao lado de minha filha, pedindo a Deus para que a ajude se recuperar.

– A senhora poderá ficar ao lado dela, se o desejar. Ela está no primeiro quarto após aquele corredor, finalizou o médico, apontando ainda com a mão trêmula, o quarto 6 do 2º corredor da enfermaria.

Os dois desceram para a rua e dona Zélia encaminhou-se apressada para o quarto em que Alice se encontrava.  Permaneceu ali até à noite, quando pode, então, notar que sua filha, aos poucos se movia. Levantou-se de chofre e colocou sua mão sobre a dela:

– Alice, querida, sou eu, sua mãe. Sente-se melhor? Quer alguma coisa?

Mas, Alice nada ouvia ainda. Entreabria os olhos quase lânguidos e só minutos depois balbuciou com os lábios secos:

– Onde estou? Quando vão me operar? Antes que o façam, chamam-me o frei Peter. Quero me confessar.

E a seguir, contorcendo-se, num esforço quase sobrenatural, gritou:

– Não, pelo amor de Deus, não o mate!

– Minha filha, falou a mãe com os olhos banhados em lágrimas, você está delirando devido ao efeito da anestesia. Você já foi operada e está fora de perigo. Agora é só uma questão de um pouco mais de sofrimento e de tempo. Aquele demônio desapareceu, nunca mais foi visto.

– Mamãe, a senhora chamou aquele homem de demônio?

 

XXXIV
Dez anos depois.

Tares e Marites haviam-se desenvolvido bastante e aquela animosidade primitiva, soerguida com a comum inveja política, parecia amainada. Jornais e comentários de ambas as cidades deixavam sempre algum lampejo de elogio à coirmã. Depois de tudo, nenhuma outra cidade podia ser encontrada, senão a muitas horas de carro, dali. Tudo parecia mais calmo e rotineiro.

Alice trabalhava em Marites. Era normalista de um grupo mantido pela prefeitura. Seus pais haviam vendido o torrão que era tão querido e vindo também para Marites. Só possuíam Alice e seus bens eram bastantes para deixá-la afortunada, quando, pela caminhada natural do tempo, eles deixassem este mundo. Mesmo assim trabalhava, ensinava com todo desvelo às criancinhas. Às vezes chorava de angústia, perante um pobre infeliz que vivia doente e nada tinha a se apegar. Era extremamente sentimental.

Nunca tivera um namorado. Não sentia atração por nenhum jovem com quem convivia todos os dias. Gostava de todos, mas reconhecia que não poderia passar o resto de sua vida ao lado de nenhum deles. Isto preocupava os pais, que chegaram certa vez a consultar um psiquiatra e logo a seguir, um clínico, a fim de saber qual a causa daquele comportamento.

Passava suas tardes na varanda, dedilhando o violão e cantando, só parando quando seus olhos começavam a se fechar de sono. Havia esquecido quase todo o passado. Lembrava, sim, o pobre rapaz que a esfaqueara, principalmente quando ouvia, boquiaberta, os sermões do frei Peter, que se tornara o mais santo e o maior orador do convento. Hesitava acreditar nos rumores de que a polícia o havia assassinado. Não o esquecia em suas orações. Recordava sempre as palavras do grande frei: “Meus filhos, a felicidade encontra sua razão de ser no esquecimento do nosso passado de erros e fraquezas e no avivamento de nosso passado de alegria e de bons atos praticados”.

Por isso, Alice fazia sua felicidade dentro deste conceito de retalhos. Prendia seus pensamentos forjados e dava vasão a tudo o que, em algum tempo, lhe fora de gratas lembranças. Ia e vinha de sua casa à escola e da escola à sua casa. Conhecia todos aqueles rapazes que lhe interceptavam o caminho com um “olá Alice”.

Certo dia, porém, vinha distraída, cabisbaixo e passou por alguém sem se dar conta. Depois, como que de um pesadelo desperta, curvou a cabeça e viu que se tratava de um rapaz que até então, nunca havia visto. Seus pensamentos não foram além disto. Aliás, não era muito raro deparar-se com turistas tarenses de quando em vez, porque Marites carregava o privilégio de primogênita.

Aquela noite foi para ela como todas as demais: violão e a seguir, sono profundo de quem vive honestamente e cheio de paz. No dia seguinte seguiu mais cedo e quando curvou a esquina da Rua Santa Maria, foi-lhe chamada a atenção: um ruído de porta que se abria. Um rapaz transpôs a soleira e Alice, apesar de não ter visto o rosto na tarde anterior, pensou tratar-se do mesmo jovem que lhe cruzara o caminho no dia anterior. Viu-o apenas de relance, pois que o mesmo tomou rumo contrário e desapareceu na primeira esquina. Esses encontros casuais com um desconhecido, que só andava cabisbaixo, começaram a preocupá-la. Nessa noite, quando cantava, tendo em frente aos seus olhos a beleza do céu azul bastante estrelejado, teve a impressão de que sua alma começava a inquietar-se. Também não conseguiu dormir logo, como sempre acontecia. Intrigava-se com aquela figura que, por mais que tentasse, dispensara-lhe um olhar diferente.

 

XXXV
Os dias foram passando e Alice sequer imaginava que iria sofrer mudanças em sua maneira de pensar, em tão pouco tempo. Esporadicamente via aquela figura de aparência tristonha, e se preocupava com ela, aparentemente sem explicação razoável. E sua tensão foi aumentando, a ponto de obrigá-la a comentar o caso com uma de suas amigas: uma criaturinha frágil que nunca desmerecera sua confiança. Era a Déa, professora docente que auxiliava as normalistas em caso de ausência necessária.

– Não sei a razão, mas preciso saber quem é aquele rapaz, onde trabalha e o que faz.

– Uau! Vejo, afinal que você não é anormal, Alice. Sinceramente, agrada-me vê-la “preocupada” com um rapaz.

– Não, não é o que você está deduzindo. Preocupo-me com as pessoas quando não sei a razão de andarem abatidas e tristes.

– Mas eu sei, Alice. É que vez por outra o coração não nos avisa de suas decisões.

– Déa, sinceramente, quer ajudar-me a saber quem ele é?

– Mas, como?

– Amanhã, bem cedo, você me espera na confluência da Rua Santa Maria com a Três de Março. Virei ao seu encontro ou mesmo chegarei primeiro.

– Está bem, eu virei. Espero que tudo dê certinho. Estava mesmo ansiosa por ver este seu dia chegar e, principalmente, participar dele.

– Por favor, Déa, não insinue tanto. Você só falta afirmar que estou apaixonada por alguém que nem, sequer, sei se possui dentes!

Déa ria amigavelmente, enquanto se retirava, ante o olhar fixo e pensativo de Alice.

No outro dia, as duas encontraram-se. Eram 5h30min. Alice encontrava-se toda agasalhada e Déa encobria-se com uma sombrinha azul-claro. Uma garoa fina caía sobre a cidade.

– Bom-dia, Déa.

– Bom-dia, Alice. Estava cansada de esperar.

– Mesmo, queridinha? Mil desculpas, sim?

– Brincadeira. Não tem três minutos que estou aqui. Pensei mesmo que você já estivesse chegado. A propósito, que preten…

– Olhe, Déa, o rapaz é aquele.

– Qual, menina?

– Aquele que está parado, olhando para o tempo.

– Ah, agora vejo. Agora ele voltou escada acima. É aquele?

– Isso mesmo.

– Ele me pareceu muito bonito, Alice: alto, tez rosada…. Engraçado, parece loiro e tem os cabelos pretos, não é mesmo?
– Sim, olhe, está voltando. Tem na mão um jornal. Colocou-o, agora, sobre a cabeça e saiu. Vamos segui-lo. Quero ver aonde vai.

– Cuidado, Déa, não quero que ele perceba que o estamos seguindo. Finjamos uma conversa qualquer.

– Sobre namorados?

– Não, outra conversa qualquer: você é danadinha mesmo! Ensino, por exemplo. E por falar nisso como vão os seus alunos? (Ah, eleve a voz um pouco, para ele não desconfiar de nada.)

– Muito bem. Quero dizer, não muito bem. Há um tal de Carlinhos que não sei mais o que fazer com ele. Não obedece, brinca a aula toda, fala que nem um papagaio….

– Olhe, curvou naquela rua. Andemos mais depressa. Isto…. Ali vai ele, olhando para o chão, esquivando-se da chuva. Atravessou a rua, por certo vai ficar por aí.

– Sim, paremos disfarçadamente em frente àquela vitrine. Você fica olhando os sapatos dos fundos e eu, estes de fora. Assim poderei notar melhor. Veja, você tinha razão. Está tirando uma chave do cós da calça. Abriu a porta e entrou.

– Eu também quero ver, disse Déa, saindo apressada.

– Déa, disse Alice beliscando-lhe o braço: cuidado para não estragar tudo.

– Que é que tem? Pronto. É ali que trabalha: Rua das Feiras, 315.

 

XXVI
E sem saber o porquê, Alice foi se preocupando com o jovem rapaz, a ponto de conseguir várias informações a respeito dele.

Certo dia, cansada de viver naquela tensão horrível, encaminhou-se ao escritório do rapaz. Muito modestamente foi recebida. Convidada a sentar, abancou-se ao lado da escrivaninha. Logo Alice sentiu certo transtorno, ao notar que, pela aparência, o jovem aparentava uns 28 anos. Estava absorta em pensamentos estranhos quando foi interpelada:

– Em que posso servir a nobre senhorita?

– Uma procuração.

– Tem os dados já copiados?

– Não. Se não se incomodar, vai perguntando e eu vou respondendo.

– Claro que não me importo.

– Outorgante: André Sirlão, casado, residente em Marites, ….

– Outorgado?

– José Soncin, solteiro, residente em Tares….

Depois de todas as perguntas e respostas terem sido preenchidas, ele disse:

– Ótimo. Creio não faltar mais nada. A senhorita tem pressa do documento?

– Não muita. Amanhã à tarde, pode ser?

– Amanhã estará pronto, poderá buscá-lo.

– Então, falou Alice, levantando-se atabalhoada: vou indo. Tenho os planos de aula para concluir ainda para esta noite. Boa tarde!

– Boa-tarde, senhorita.

Mal transpôs a porta, Alice suspirou profundamente. Tinha a impressão nítida de que, em algum dia de algum lugar, ela vira fisionomia semelhante. Pensou até no moço que a havia esfaqueado, mas logo anulou tal suposição, pois havia uma diferença fundamental nos cabelos: de loiro para preto bem acentuado. Não bastasse, se fosse ele não estaria em liberdade.

Amanhã, pensou consigo mesma, perguntarei seu nome. É um rapaz, à primeira vista, maravilhoso. Tão submisso, de aparência cansada e triste. Coitado, talvez viva lá seus problemas interiores. Bem, acho que estou dando importância demais a tão pouca coisa. Tomarei meu banho e tentarei, depois, dormir. Sinto que hoje contei uma bela mentira desnecessária. Se a tal procuração chegar às mãos de papai, ele ficará preocupado, imaginando que não estou batendo bem da cabeça. Aliás, se eu disser que tudo foi artimanha para me aproximar do rapaz, para mim interessante, ele ficará feliz. Afinal, vive preocupado por que eu nunca demonstrei interesse por qualquer rapaz.

– Olá, Alice? Aonde vai? Ao abrigo dos livros?

– Oh, mamãe! Estava tão distraída.

– Por que demorou tanto ontem?

– Estive conversando com a Déa e me esqueci do horário.

– Seu pai, impaciente, jantou primeiro e saiu. Disse que não podia deixar de assistir às comemorações do dia da cidade.

– Mas, hoje não é o dia da fundação da Marites!

– Sim, mas os festejos começam hoje. Haverá, no palco do Teatro dos Nobres, representação demonstrando como foi fundada a cidade.

– A que horas começa, mamãe, perguntou Alice, dirigindo-se à copa.

– Às 22 horas.

– Mas são apenas 19 horas e o teatro não fica tão longe.

– Você sabe como é seu pai: sempre afobado.

– Mamãe?

– Que foi, minha filha.

– Bem, eu queria perguntar à senhora se eu podia assistir à representação também?

– Mas, você nem sequer tomou banho ainda!

– Não tem importância. Camuflarei a “almíscar” com um pouco de loção e, quando chegar, tomarei banho. Quanto ao jantar, estou sem fome, não se preocupe.

– Bem, se quer ir, vá. Encontre-se com seu pai lá. Deve achá-lo bem acomodado, porque quando chegou, todas as cadeiras deviam estar vazias.

Muito feliz, Alice fez uma rápida toalete e saiu. Quando chegou ao teatro, deparou-se com uma enorme fila e os alto-falantes já anunciavam próximo o primeiro ato. Mesmo de fora ouvia-se o som ritmado da orquestra que distraía os espectadores. Alice correu os olhos por toda a extensão da fila e quase no início da mesma, teve sua naturalidade assaltada por um olhar de ternura que parecia dizer-lhe algo. Demorou-se a olhá-lo, permitindo um leve sorriso de cumprimento. Depois como houvesse chegado a vez de o rapaz adquirir o ingresso, desviou sua atenção e foi tomar o último lugar da fila. O rapaz encaminhou-se para ela e fez-lhe um curto sinal. Alice foi-lhe ao encontro:

– Boa-noite, Alice.

– Boa-noite. A propósito, como se chama?

– Carlos.

– Carlos? Alguma coisa contra os Carlos? Carlos dos Santos.

– Que deseja comigo?
– Comprei seu ingresso, porque notei que a fila está muito grande e você talvez nem encontrasse mais lugar para assentar-se. Se aceitar, aqui o tem.

– Oh, muito grata!  Foi muita bondade e percepção sua. Eternamente agradecida.

Depois disto, um bom silêncio invadiu aquelas duas almas. Carlos queria convidá-la a entrarem juntos, mas temia transparecer jogada intencional. Alice esperava pelo convite, mas também não sabia como dissimular. Finalmente, enrubescido e muito sem jeito, Carlos falou:

– Gostaria de convidá-la a entrar comigo. Lá você poderá escolher ainda um bom lugar.

 

XXVII
– Boa-tarde, Carlos!

– Boa-tarde, Alice.

– Dormiu bem a noite que passou?

– Não muito. Quis lembrar e reviver um pouco o passeio agradável de ontem.

– Engraçado. O mesmo aconteceu comigo. Tenho pensado muito em você depois que a conheci. Lembrei-me de alguns anos passados, de certos acontecimentos. Mas estou certo que tudo não passa de alucinação. São apenas lampejos que restaram. Quero esquecer o meu passado. Devo ter sofrido bastante, e, assim dizendo, baixou a cabeça. De sua fronte, um suor frio começara a brotar. Na retrospectiva do passado, Franz revivia, momentos de dores reais de um Gethsemani.

De fato, a vida fora-lhe ingrata e cruel. Tudo fazia para esquecer, como se isto fosse possível. Levantou os olhos. Alice o fitava com pena e dor, mas não encontrava meios para ajudá-lo.

– Bem, isto não lhe interessa. Estou sendo egoísta, não é mesmo? Reafirmou enquanto puxava a gaveta de sua mesa e passava o documento solicitado por Alice.

– Espere, disse ela, você não está sendo egoísta. Conheci uma pessoa que dizia sempre, que ninguém sabe o que calado quer. Conte-me, porque também eu sou cheia de problemas. Tenho um passado esquisito e cheio de tormentos. Quem sabe a gente não poderia se ajudar?

– Chega, Alice. Seria duro demais para mim, admitir o que ora estou pensando. Por favor, eu lhe peço, conversemos sobre outra coisa qualquer.

– Não, quero falar sobre isto mesmo. Minha mãe diz que um espinho dói menos se for arrancado num arranco.

– Desculpas, mas não posso atendê-la. Algo me impede de revirar meu passado. Mas, se de fato deseja contar-me sua vida e ficar sabendo da minha, espere-me amanhã, às 18h na Praça das Flores. Verei se tenho forças suficientes para ser sincero com você.

– Carlos, hoje é sábado. Disse a papai que iria ao cinema com a Déa, minha amiga.  Disse também, (e aqui menti e, para não passar por mentirosa caso ele me visse com você) que havia um rapaz (vai desculpando a mentira) que queria namorar comigo e que iria falar com ele.

– Alice, você é insinuante, é um anjo de bondade. Não sei por que se interessa por mim. Sou um ser sozinho na vida e carrego um passado negro comigo. Mas, por favor, vamos então a um lugar que, pelo menos, haja Natureza pródiga para encorajar-me a ser sincero.

– Por que tem tanto medo de ser sincero?

– Vamos andando. Não sei se devo fazer isto, mas sinto-me na obrigação de não a deixar magoada.

– Respondendo sua pergunta: tenho medo de ser sincero, porque acho que no meio de meu passado obscuro e terrível, você existiu.

– Carlos! …

– Alice, olhe-me bem de frente, assim. Meu Deus! Balbuciou Carlos (falava consigo mesmo) estes cabelos, estes olhos…. Sentemo-nos um pouco. Ali na frente tem um banco de cimento bem ao lado de um chafariz.

– Escute-me, você esteve em algum tempo estudando no colégio Santa Lúcia?

– Sim, há alguns anos. Nesse tempo era eu uma criaturinha muito complexa. Vivia só e gostava imensamente de ficar de pé naquela portinhola que dá ampla visão ao rio. Meditava, pensava muito no que seria de mim no futuro.

– Alice, não me fale mais nada. Você, de fato, é a criatura que pensei ser. É a moça que foi apunhada no lugar de frei Peter, no mosteiro de São Francisco, quando um louco quis assassinar o frei que lhe fora, até então, causa de vergonha, tristeza e de seu abandono.

– Carlos! ….

– Meu nome não é Carlos. Chamo-me Franz.

Neste momento as vozes se calaram, ficando tudo por conta de um vento frio que revolvia as folhas dos arbustos e levava de um lado ao outro, o perfume fraco e agradável das flores. Alice agora chorava agarrada ao braço de Franz, enquanto este, de olhos fixos num ponto qualquer do eternal, falava, como se estivesse sendo obrigado por uma força estranha.

– Depois que a deixaram no hospital, fugi como um cão danado. A polícia buscava-me sofregamente e eu, entrando nos matagais buscava sobreviver. Oh! Somente Deus sabe o que foi de mim naqueles dias! Fugi depois, para um misterioso lugar. Havia lá muita compreensão. Ninguém importunava ninguém, pois o único ser humano que existia lá, era eu. Longa etapa de reconciliação, minha querida. Ouvi Deus como ouço, agora, os seus soluços. Foi difícil convencer-me que o homem destemido se define pelas vitórias morais e não pela vingança. Sofri bastante, lutei contra mim mesmo. Entre a fome e o trabalho, consegui derrotar a maldade do mundo que se implantou dentro de minha alma e de meu coração. Depois disto, voltei. Voltei como um homem simples, mas bem mais perspicaz. Um homem que reconhece a realidade da existência e que se prontifica a ter uma vida simples e honesta. Aluguei um quartinho modesto e tratei de conseguir meu sustento, por meio de pequenos serviços prestados.

Neste ponto, Franz parou um pouco. Sentiu-se sobressaltado como de um pesadelo desperto. Baixou os olhos. Alice ainda soluçava agarrada a seu ombro, que molhado de lágrimas, dava-lhe a impressão de um bálsamo que lhe invadia todo o ser.

– Franz!

– Alice!

– Frei Peter sabe que você é o filho dele?

– Não, Alice. Só há uma pessoa que me reconhece em Marites: você, agora. Veja mais isso, Alice: e, então, Franz tirou a peruca que cobria seus cabelos loiros.

– Santo Deus! Reconheço-o agora, porque vejo seus cabelos naturais.

– A peruca é para ser Carlos e não Franz.

Alice agora o fitava de alto a baixo. Tomou-lhe a mão e olhou-o de frente. Franz deixou que os seus olhos também buscassem os de Alice. Falou depois, como se a voz não fosse a sua:

– Alice, vamos dar um tempo. Ainda não me encontro seguro para aceitar esta grande graça de seu perdão. Por favor, vamos dar um tempo. Já nos conhecemos o bastante para tomarmos a decisão definitiva. Não tenho nada para oferecer-lhe. Não bastasse, sou um criminoso “casado”, um fugitivo da justiça, o mais execrável ser humano que já nasceu. No entanto, somente Deus sabe o peso que você tirou dos meus ombros. Eu precisava confessar-me a alguém, porque sem o perdão, jamais obterei a paz. Nem imagina o quanto me sinto leve e feliz, agora. Muito obrigado, minha santa. Ainda que você saia daqui e vá à polícia, eu lhe serei eternamente grato, mesmo apodrecendo dentro de uma cela. Eu precisava falar, eu precisava, Alice.

 

XXXVIII
Carlos” acompanhou Alice até um lugar seguro e foi voltando para seu abrigo. Nisto, uma voz que o tempo não modificara, chamou-o pelo nome:

– Brauxo!

Franz parou de chofre e não teve qualquer dúvida sobre quem o chamava. Aquele sotaque ele reconheceria até se estivesse na Tasmânia. Por isso, respondeu como se fosse um chamado costumeiro e diário:

– Rudá? Meu Deus, amigo de fé, como conseguiu me encontrar?

– Nunca o perdi de vista. Desde o dia em me salvou a vida, nunca mais deixei de acompanhar seus passos. Estive sempre por perto, desde o dia em que fugiu da tribo raptando minha filha.

Nisto, Brauxo fez questão de interromper:

– Rudá, eu não raptei Indira. Pedi inclusive a Deus para que ela não me acompanhasse. Eu já estava mata adentro quando ela me alcançou.

– Acredito, Brauxo, acredito. Você pode ter todos os defeitos do mundo, mas, mentir nunca fará parte da lista. Desculpas.

A verdade é que você não estava a 50 metros da aldeia, eu já o seguia para protegê-lo. Com a exceção de Kauê, todos queriam que eu o protegesse, porque nunca perderam a esperança de um dia tê-lo de volta ao comando da tribo. Deram-me plena liberdade de ausentar-me o tempo que fosse preciso, mas que nunca o deixasse desprotegido. Acompanhei você desde o dia em que fugiu. Você já descobriu quem atirou em Anauri quando você foi surpreendido em sua primeira noite de fugitivo? Ele não tinha armas e a sua estava encostada num pau. Lembra-se? Mesmo assim, ele foi morto com um tiro.

– Meu Deus, Rudá! Nunca pensei que você seria tão bom pagador, quando disse que me devia a vida. Um momento, Rudá, você disse que Indira é sua filha por ser ela uma criança amada, ou porque ela carrega seu sangue?

– Sim, Brauxo, Indira é minha filha. Mas não veio por traição ao cacique Zatu, não. Foi ele quem me chamou, estando com ele sua mulher Jeré, e me falou: Rudá, eu nunca poderei ter filhos, mas Jeré precisa ter um. Já falei e ela concordou que você a engravide, mantendo segredo enquanto eu estiver vivo. E Jeré engravidou e da gravidez nasceu Indira, a menina mais linda da tribo. Eu via vocês sempre juntos, mas isto era o que mais eu queria para ela. Vi também quando você a sepultou, achando que ela estivesse morta. Mas, você ainda chorava à beira do Jarus, quando desci correndo para a sepultura, tropeçando, inclusive, num arbusto, porque pretendia levar o corpo de minha filha para a aldeia. Mas, quis Tupã que você deixasse muito espaço para ela respirar, cobrindo-a com muitos ramos de arvoredos. Quando a descobri, ela estava respirando. Coloquei-a no colo e desci ao Jarus. Molhei o rosto dela e ela acordou plenamente. A primeira coisa que falou foi o seu nome, Brauxo. Aí, eu expliquei:

– Ele a deixou aqui porque a imaginou morta, minha filha. Eu estava ali bem pertinho de vocês e juro, nunca pensei que um guerreiro tão destemido como Brauxo, pudesse chorar tanto por uma curuminha!

– Eu o amo, papai, eu o amo com todo meu coração. Lá enterrada, eu sonhei que Brauxo estava na porta do céu, esperando por mim.

– Pois é, Brauxo, Indira está viva e, desde a morte de Kauê, todos sonham com sua volta para reassumir a tribo. Kauê era o único que não gostava de você porque queria ser o cacique, você sabe, mas ele já está morto. Foi engolido por uma enorme sucuri num dia em que caçava patos sozinho. Ele não teve minha sorte! Não há um índio sequer que não sonha com seu retorno. Todos lamentam o dia em que Kauê forçou a tribo a persegui-lo de morte, o que quase resultou, também, na morte de minha filha Indira. Nós precisamos de você, Brauxo. Estamos no início da primeira quinzena de abril e, no dia 19 comemoraremos o nosso dia. Já fizemos uma grande reunião e todos estaremos esperando sua chegada nesse dia. Eu virei buscá-lo para entrarmos juntos na aldeia. Será a maior festa que nossa tribo já organizou. E se você de fato ama Indira, poderia casar-se com ela nesse dia. Será mais um motivo de alegria, principalmente para Indira, que o ama de coração.

Você sabe que não se consegue, em apenas um dia, saindo-se daqui, chegar à aldeia. Eu viria apanhá-lo no dia 18 e dormiríamos já próximos da aldeia. No outro dia, chegaríamos de surpresa. Na verdade, não será surpresa, porque todos estão contando com sua volta ao nosso comando e, caso não concorde, será a maior frustração para todos da aldeia, principalmente para mim e Indira.

– Rudá: você me dá o dia de amanhã, até ao meio dia, para minha decisão final?

– Desde que a resposta seja sim, poderá dispor até de uma semana. Ah, não esqueça de me devolver o terçado, porque foi presente de Zatu.

– Miserável! Então foi você que jogou aquele lá ao lado da moita de bananeira?

– Quem poderia ser? Tupã?

– Lembra quando eu o ajudei a se livrar da sucuri e que você me disse que sua vida, daquele dia em diante pertencia a mim? Pois bem. Aquele terçado pagou a dívida, porque ele também salvou a minha. Com ele abri picadas, fiz mundéus, limpei as caças…. Portanto, a dívida está quitada.

E ambos se abraçaram, riram a valer e depois selaram a amizade com lágrimas nos olhos.

 

XXXIX
Por mais que insistisse, Rudá não aceitou dormir no quarto de Brauxo. Disse que, durante todo o tempo em que o seguia, ele passava as noites num abrigo modesto da própria tribo e, desta feita, voltaria para lá. Antes, parabenizou Brauxo pelo disfarce que evitou que a polícia o reconhecesse.

Brauxo seguiu para seu quarto. Durante todo o trajeto, parecia flutuar. Quando adentrou, nem estendeu o edredom, porque sabia que seria inútil tentar dormir. E os pensamentos se atropelavam. Não havia concatenação. De tudo o que imaginou para sua vida, transformar-se, para sempre num cacique, com certeza era a última das opções. Até então, chorou, estudou, fez planos, imaginou-se alguém no mundo civilizado, revoltou-se, quase se tornou assassino do próprio pai e, agora, sem qualquer merecimento, ofereciam-lhe para terminar seus dias, a paz da Natureza e o amor da mulher que mais amava no mundo.

Contrapondo sonhos e frustrações; certezas e indecisões, percebeu que a felicidade sonhada por todos os homens se explanava a seus pés, exigindo como troca o fim de se tornar um homem rico e importante no mundo civilizado. Lembrava, também – e lhe parecia recente – que fora uma criança revoltada por ter sido abandonada pelos pais; que agora já havia passado o tempo ideal para realizar seus utópicos planos e que, sensato mesmo seria aproveitar o que a vida lhe oferecia. Por sua cabeça passava Indira, a menina que o enchia de desejos e que, não fosse Deus, ele teria cometido o que seria, para ele, um crime imperdoável. Mas, Indira estava lá, agora pronta para enchê-lo de felicidade e, com a aprovação de sua consciência.

Eram três horas quando ele se ajoelhou e deixou na mão de Deus, a resposta que daria a Rudá, às 12 horas. Tendo passado a incumbência para Deus, jogou-se na cama e, sem perceber, dormiu, acordando já perto da hora em que deveria encontrar-se com Rudá.

Lavou o rosto e mesmo sem o desjejum, desceu e se encaminhou para o encontro com Rudá. Não pensava mais em nada contra ou a favor da decisão que iria tomar, porque ele já se sentia um predestinado. Antes de deitar, deixou tudo na mão de Deus e Ele, numa rápida retrospectiva, deu a Brauxo a resposta: feliz e sensato é o homem que se liberta das coisas deste mundo, ajuda o próximo e perdoa aqueles que o magoaram.

E a paz e a felicidade estavam na aldeia Acaramaxá, longe da barulheira, da ganância e da violência. Que mais merecia ele – depois de tantos transtornos e loucuras que vivera até ali? O barulho agora seria das araras e papagaios e o compromisso maior, passar as tardes às margens da Lagoa das Flores, ao lado de indiazinha cor de jambo. Estava decidido: iria com Rudá e, diante da decisão tomada, já começava a viver a ansiedade de abraçar e beijar Indira, livre de qualquer achaque da consciência.

O curto prazo, que ainda tinha antes de viajar, seria todo ele ocupado no trabalho de escrever os estatutos da congregação indígena, para que, como cacique, implementasse a felicidade de todos. Uma coisa o incomodava sobremaneira: seria certo mudar a cultura milenar da tribo, ou deixar tudo como sempre foi? Sua inclinação era implantar o progresso, ensinando aos curumins tudo o que aprendera durante o tempo em que sonhava ser um homem rico e respeitado. Mas, isto seria benéfico, traria felicidade a todos? É…., teria muito a pensar antes de escrever cada parágrafo!

Por enquanto, a ideia era apresentar as duas opções e deixar que a tribo escolhesse a melhor para eles, porque, bom para qualquer pessoa é aquilo que ela deseja e quer. Teria de se esforçar muito para não influenciar na decisão, porque ninguém melhor que ele para saber que lhe era inato o carisma da persuasão. E, no turbilhão de planos, andando como um autômato, viu, apreensivo, o guerreiro Rudá que o aguardava.

– Rudá, vamos almoçar, porque minha decisão já foi tomada. Pensei a noite toda e cheguei à conclusão que esta é a última oportunidade que Deus está me dando para ter paz e ser feliz até o fim dos meus dias.

Ao ouvir isto, Rudá saltou-lhe ao pescoço abraçando-o efusivamente, e assim seguiram para o restaurante, agora mais amigos do que nunca.

 

XL
Estava clareando o dia 18 de abril, quando Rudá e Brauxo chegaram à sepultura de Indira, às margens do rio Jarus. Até aí o tempo fora curto para que colocassem todas as novidades em dia. E, com tanto tempo disponível, Rudá se achou no direito de perguntar a Brauxo sobre Alice.

– Você pode até não acreditar, Rudá, mas no dia em que possivelmente iniciaríamos o namoro, eu disse a ela que não seria possível, porque eu já era casado. Ela chorou muito, mas imagino que você se sentirá feliz em saber que tenho um juramento de jamais conhecer outra mulher, senão Indira. Fiz este juramento no dia que, imaginando-a morta, a sepultei.

– E Alice aceitou sua explicação?

– Ela chorou muito, mas também ela jamais aceitaria se juntar com um homem casado. Por isso, jurou que se tornaria freira. Sua decisão foi tão forte que logo procurou o orfanato Santa Lúcia, que agora trabalha unicamente com pessoas do sexo feminino. Ali estudará, também, a primeira indiazinha que, mais tarde, será a “feiticeira/médica” dos Acaramaxás, se minha sugestão for aceita, porque isto irei propor à nossa tribo. Mas, me diga, Rudá: como andam as coisas por lá? Alguma novidade que eu não conheça?

– Tem sim. Desde a liberação sexual, os casais estão fazendo a festa. O que há de índia barriguda por lá, não é fácil. Com a morte do cacique Zatu, eu me juntei com Jeré e ela já está com dois curumins correndo atrás dela o dia todo. A barulheira por lá está grande, mas você não poderá reclamar, porque foi você que decretou.

Brauxo riu e depois perguntou:

– Rudá, há coisa mais gratificante que uma penca de filhos saudáveis? É por isso que precisamos formar uma médica em nossa tribo. Com o aumento da criançada, muitas doenças aparecerão e será preciso contorná-las.

– A mulher de Omatu, por exemplo, mais se parece com uma tatua bem-sucedida em parição: aonde vai, uma verdadeira procissão de curumins a acompanha.

– Eu sei, eu sei, mas também eu vou querer uma porção de filhos; isto se Indira não tiver nada em contrário.

– Ela nunca lhe falará, porque as mulheres indígenas ainda não se acostumaram a ter qualquer direito.

– É, mas elas têm. Se você examinar bem aquele estatuto que aprovaram, há nele um artigo que diz que, na tribo Acaramaxá, homens e mulheres têm os mesmos direitos.

E, conversa vai, fofoca vem, Brauxo e Rudá alcançaram a barraquinha em que passariam a noite. Nela já se encontrava Bari, o barbeiro, já que Brauxo não quis correr o risco de cortar os cabelos e rapar a barba, em Marites. Poderia levantar suspeitas e prejudicar seus planos. Brauxo lembrava bem a navalha e a tesoura cegas de Bari (o arrancador de cabelos). Por isso, logo lhe entregou as duas ferramentas novas que havia trazido por garantia, e gracejou:

– Quero ver agora a desculpa que vai arranjar para me arrancar os cabelos, Bari!

Bari riu e disse que já não tinha raiva dele mais.

– Mas, então…

– Brincadeira, meu cacique. Você sabe que estou brincando. As ferramentas eram cegas mesmo…. E continuam sendo.

Aproveitando um tronco caído, Bari começou o trabalho de transformar Franz, em Brauxo. Enquanto Bari trabalhava, Brauxo ia conversando com Rudá:

– Que nunca nos esqueçamos, Rudá: não há viagem longa para dois amigos bons de papo! Sinceramente, não estou sentindo qualquer cansaço.
O Sol já estava se amoitando e a Lua – ciente de seu compromisso de guardiã – já se espreguiçava por trás da mata, pronta para embelezar a Terra enquanto o Sol descansasse.

Com aquela noite de Lua cheia, a mata ficava ainda mais bonita. Parecia que alguém colocara um grande refletor por cima da floresta. Bari terminou seu trabalho e voltou à tribo. Deitados de barriga para cima, os dois guerreiros/amigos, não sentiam o cansaço daquele dia de caminhada. Eram jovens, fortes e saudáveis. Para que pudessem dormir um pouco, Brauxo decretou:

– Agora, vamos descansar. É preciso dormir, porque amanhã o dia será muito mais atribulado. Estou imaginando quantos abraços terei de dar; quantos cumprimentos… se Indira deixar. Novos risos, mais algumas palavras sem nexo e, finalmente, silêncio absoluto.

Os animais noturnos não gostam de se expor às noites enluaradas. Ficam em seus abrigos, porque a vida lhes ensinou que é mais seguro. No entanto, as aves diurnas piavam esporadicamente e era, para os dois amigos, um verdadeiro acalanto. Por via das dúvidas, Brauxo deixou sua nova espingarda ao alcance das mãos e Rudá, apenas observou que, caso viesse uma onça, que ele não gastasse o cartucho: ele a pegaria com as mãos.

– Não arrisque, porque sou especialista apenas em sucuri. Novas risadas, novo silêncio.

E apesar daquela noite ter demorado um século, os cem anos também passaram. Brauxo mostrava-se tenso e ansioso. A decisão que tomara fizera dele o filho pródigo da Bíblia. Passou a noite se virando e brigando com um pigarro que nunca existiu. Quando os jaós responderam aos galos da aldeia, ele pulou de pé e cutucou Rudá: vamos à luta, meu irmão guerreiro. Acabo de nascer e chego ansioso para aproveitar cada segundo do meu respirar.

 

XLI
Um certo homem tinha dois filhos. E o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte da fazenda que me pertence. E ele repartiu por eles a fazenda. E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma terra longínqua e ali desperdiçou a sua herança, vivendo dissolutamente. E, havendo ele gastado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e ele começou a padecer necessidades. Então ele procurou um dos cidadãos daquela terra, o qual o mandou para os seus campos a apascentar porcos. Os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada. E, caindo em si, disse: quantos trabalhadores de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: pai, pequei contra o céu e perante ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus trabalhadores. E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão, e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço, e o beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e perante ti e já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, e vesti-lho, e ponde-lhe um anel na mão e sandálias nos pés, e trazei o bezerro cevado, e matai-o; e comamos e alegremo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu; tinha-se perdido e foi achado. E começaram a alegrar-se”.

Rudá não conhecia a história, porque Tupã não se resguardara com nenhum livro sagrado. Então, Brauxo aproveitou para explicar-lhe que a parábola bem podia ser adaptada para ele. Afinal, também ele abusou de todos os dons com que Deus o agraciou, mas a ganância, a vingança, o orgulho e a falta de humildade o fizeram bandido, a ponto de menosprezar a vida dos semelhantes. Nunca perdoara o pai por tê-lo abandonado, descartando os desígnios de Deus, que como aprendera ainda criança, “escreve certo por linhas tortas”. Passou o que poucos cachorros passam na vida e, por fim, estava de volta à tribo que lhe aguardava com a paz e a felicidade que todos almejam.

Mas, tudo passou! Os dois estavam chegando à aldeia. Faltavam ainda uns 200 metros, mas já era audível a barulheira que vinha de lá. Brauxo pediu a Rudá para que ficassem algum tempo escondidos às margens, a fim de ver o motivo de tanta alegria. O pátio estava cruzado com longas cordas de cipós, com folhas e flores dependuradas. Num canto, guerreiros terminavam uma grande e linda oca, que seria a casa de Brauxo e Indira. Pela lateral, dezenas de carcaças de animais dependuradas ao lado de uma grande fogueira. Indira protegia-se, apenas, com um short e uma espécie de sutiã: como se fosse uma citadina bem à vontade numa das praias em dia de sol. Embora, mesmo quando nua, ninguém pudesse apontar qualquer defeito em seu corpo, ela estava simplesmente deslumbrante. Em pequenos espaços de tempo, ela corria à entrada da picada na qual deveriam aparecer Rudá e Brauxo. Olhava disfarçadamente e retornava.
Tirando da tralha um foguete, Rudá, pedindo permissão a Brauxo, acendeu-o e o soltou. Como tudo já havia sido combinado, imediatamente toda tribo se organizou em dança de guerra e partiu para o início da picada por aonde foram entrando Brauxo e Rudá.

De fato, desde que Brauxo foi eleito cacique da tribo, nunca mais os Acaramaxás foram os mesmos, mas Brauxo ainda não havia se convencido se aquilo lhes era bom ou ruim. Precisava pensar bastante, porque, principalmente agora, ele amava aquela tribo e queria para ela, toda felicidade e progresso possíveis. Sentia-se um novo homem. Todo seu passado negro esvaiu-se como por encanto. Não havia mais outros planos para seu futuro, a não ser ter muitos filhos com Indira e cuidar de seus irmãos guerreiros e, principalmente, das mulheres, porque, até então, viviam exageradamente submissas a seus maridos.

E a festa continuava alegre e sem exageros, porque virara lei a determinação de Brauxo, quando cacique, que nenhuma bebida que afetasse a personalidade, fosse mais utilizada na tribo. Como bebida, muito suco e, como alimento, carnes à revelia e frutos à vontade. Às quatro horas, Brauxo pediu a palavra. Levou bom tempo em agradecimentos, jurou passar o resto de seus dias ali como Acaramaxá e, por fim, brincando, disse:

– Indira, por favor, chegue até aqui. E virando-se para todos da tribo, explicou: vocês devem estar me considerando um frouxo, mas somente Deus sabe quanta vontade estou sentindo de estar sozinho com Indira. E tudo farei para me controlar, porque nunca esqueci do dia em que ela me pediu para que, se um dia casássemos, nossa lua de mel fosse às margens da Lagoa das Flores. É que lá, passamos os dias mais felizes de nossa adolescência. Portanto, toquemos a festa até ao amanhecer.

E, tendo amanhecido o dia, Rudá entregou a Brauxo, a espingarda, sua faca e a lanterna, e Jeré, à Indira, uma cesta com frutos escolhidos, um sabonete e uma toalha. Ao ouvido, segredou-lhe algo concernente à experiência que estava próxima de viver. Indira sorriu e acalmou a mãe:

– Pode deixar, mamãe! Estas coisas a gente já nasce sabendo.

Mesmo desajeitadamente, Brauxo tomou Indira nos braços e, virando-se para trás, ainda gritou:

– Não se preocupem com a gente. Possivelmente, só retornaremos à noite. Ah, Rudá, meu anjo da guarda: você está dispensado hoje de me proteger.

Rudá riu e, abraçado à Jeré, tomou Indira pela mão, levou-a e a entregou a Brauxo, o Acaramaxá. E enquanto ele, tendo Indira nos braços, penetrava na floresta rumo à Lagoa Marxé, fogos e tambores ribombavam e toda tribo se regozijava.

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