O MAIOR MENTIROSO DO MUNDO
Contos escolhidos e editados pela Fundação Cultural de Imperatriz para serem distribuídos nas escolas por meio do Projeto Arte e Cidadania.
APRESENTAÇÃO
Ainda menino, vivendo na roça com meus pais e mal sabendo assinar meu nome, eu sonhava ser escritor. O dia em que me escapuliu tamanha pretensão, fui motivo de risos e troças de meus companheiros de escola.
Lembro que tomava um livro nas mãos e, se nele constasse a foto do autor, ficava admirando-a, como se ali estivesse a imagem de um ser de outro mundo.
Um pouco mais e minha querida professora Zilda Maziolli ensinou-me a ler e a escrever fluentemente. A vontade de escrever aumentou: inventava títulos e ia desenvolvendo histórias criadas por minha imaginação. Tenho ainda muitos cadernos assim aqui comigo. Deleitava-me fingir ser escritor! E, diga-se de passagem, ainda continuo fingindo e me deleitando.
O MAIOR MENTIROSO DO MUNDO
Um metro e sessenta de altura, magruço como um pica-pau, cabelos pretos e duros, naturalmente permanentes à escovinha, cor assim de azinhavre; olhos castanho-claros muito vivos e grandes, conversa sem quaisquer sinais de pontuação, barba esparsa como farripas de coco, sem nenhuma instrução escolar, mas de uma perspicácia de fazer inveja a certos homens fabricados a peso de ouro nas faculdades: destes tantos que ostentam alvacentos jalecos e andam disseminando heresias científicas por aí. Assim era o Zé. Se neste Brasil preguiçoso, Adagoberto já é Zé, que dizer do José Antonino das Cruzes?
Morava numa casinha de colono banhada pelo pachorrento riacho Santo Hilário, lá nos confins noroeste do Espírito Santo. Seus pais e irmãos eram lavradores. Lavradores! Falando assim, imaginamos logo uma família de esquálidos matutos, suarentos ao sol do dia e muito cansados à noite, sempre dedilhando uma viola tristonha à luz de lamparina. Esta a ideia que muitos desinformados que nunca saíram de sua selva de pedras, têm e infundem do matuto. Na verdade, assim como há muitos abestalhados na cidade, há também muitos matutos perspicazes no interior. O Zé era um destes.
Longe de perder as estribeiras, ele sempre apresentava uma evasiva à altura para safar-se da proverbial alcunha em que a força do hábito o havia prostrado. Mentiras, até mesmo de além-mar, traziam seu nome tão logo invadissem nossas duzentas milhas territoriais.
Naquele tempo, os imigrantes faziam suas estradas a picaretas, enxadões, pás, enxadas, vacas (rodo largo de madeira, tipo lâmina de motoniveladora), couro de boi seco, com o qual arrastavam terra para os aterros… enfim, luta primitiva de nossos ancestrais em busca da sobrevivência e do desenvolvimento.
Vamos lá, a alguns quilômetros acima de Marilândia, esbarrar com um mutirão estrompado que abre caminho na floresta. Eram uns 25 italianos, moradores do núcleo colonizador da região. Para Santo Hilário, onde morava o Zé, já havia uma vereda com aproximadamente dois metros de largura, em que se trafegava em lombo de burro ou cavalos.
Os italianos, extenuados pelo meio-dia de luta, encontravam-se sentados no chão, desamarrando sacolas e toalhas, donde retiravam polenta, queijo, puina, “cudeguim” (linguiça feita com couro de porco triturada, cozida e bastante temperada), ovos…, e conversavam, exatamente, sobre o mentiroso Zé, já conhecido na região:
– Quelo lá não digue una parole que no senza una buzia.
(Aquele lá não diz uma palavra que não seja uma mentira.)
– Le um bauco, poareto.
(É um abestalhado, coitado.)
– Ah, si, si, vá lá!
(Ah, sim, deixa pra lá!)
– A mi, lu no tchapa piú.
(A mim ele não passa a conversa.)
– No digue questa roba, Jijo. Lu son ei diaul a dir buzie.
(Não diga isto, Luís, ele mente como o diabo).
– Mi lo cognosso – a mi lu no tchapa.
(Eu o conheço bem – a mim ele não pega.)
– Verti ei otchi, Jijo.
(Abra os olhos, Luís.)
E a conversa engrolada de português miscigenado com o sofrível dialeto de Vêneto, abria um novo espaço linguístico como se fosse um afiado facão em plena selva de emaranhados e, em pouco tempo, com certeza, nem brasileiros nem italianos entenderiam mais a própria língua.
Foi então que se ouviu um repicar confuso de cascos que vinha se aproximando. Mal um tal de Scarpatti avistou-o, apoiou as mãos no queixo suarento, comentando mordaz:
– No se pol nhanca parlar del diaul que lu le cá rente a noaltre.
(Não se pode nem falar no diabo que ele logo aparece no meio da gente.)
– Le lu? – Perguntou alguém.
(É ele?)
– Si, si – urdelo, le lu própio.
(Sem dúvidas, é ele mesmo.)
– Demo vede cossa que lu dir ancuoi.
(Vejamos o que ele tem a dizer hoje.)
A montaria vinha ofegante e mal diminuiu o galope para que o Zé dissesse um “olá turma”. Um dos trabalhadores observou maliciosamente:
– Bepi, que buzia no la conta ancuoi?
(Zé, que mentira nos conta hoje?)
Ainda sem parar, apenas deixando o cavalo seguir estertorosamente, ele observou pesaroso e preocupado:
– Hoje não dá. Estou com muita pressa. Fico devendo. Meu pai foi picado por uma jararaca… daquelas miudinhas com anéis pretos e vermelhos. Aquilo é veneno puro. Se eu não encontrar remédio logo, ele morre. Pobre pai!
E foi seguindo a galope, não esquecendo de esfregar a curva do cotovelo nos olhos aljofrados. Não bastasse a vocação inata, ele era, ainda por cima, um ator perfeito.
– Maria Vérgena! – exclamou um dos italianos – Noaltre quá a parlar monade e nostro compare lá quel mor. Andiamo acudir-lo. Demo tuti quanti ajutar-lo.
(Nossa Senhora! Nós aqui a falar besteiras e nosso compadre lá fora morrendo. Vamos socorrê-lo. Vamos todos acudi-lo).
De onde se encontravam até à casa do pai do Zé, eram mais de quatro quilômetros, o que não impediu que fossem desfeitos em menos de uma hora de pernas batidas. Deglutindo a polenta com queijo e cudeguim, a italianada foi aos pulos, pois aqueles imigrantes eram como se fossem os cristãos dos primeiros tempos: se houvesse um com qualquer problema, todos acorriam fraternos.
– Enfim, arrivamos – disse o Jijo – exatamente o que havia dito que, a ele, ninguém, nem o Zé, passaria a perna.
Como todo matuto que se preza, o pai do Zé estava deitado na varanda, sem camisa, o chapéu de palha pendurado num pé de mateiro seco que havia sido pregado no portal de cedro, pitando um cachimbo em baforadas de causar inveja ao mais inveterado matintaperera.
A italianada parou no terreiro e, em ofegos, trocaram olhadelas temerosas. Ao ouvir o barulho do “tropel” que chegara, o homem ergueu-se assustado:
– Aconteceu alguma coisa, senhores?
– To fiol, quel maladeto dum desgraciato, buzier de uma figa.
(Seu filho, aquele desgraçado, mentiroso de uma figa.)
Era o Jijo – o mesmo que dissera que, a ele, o Zé não pegava.
E entre raiva e gargalhadas, a italianada desfez, cansativamente, os quase cinco quilômetros. Tão logo se distanciaram, o Zé puxou a montaria de detrás da moita e chegou ao terreiro. A quem o visse, não acreditaria que tivesse apenas 32 dentes: até os cacos brilhavam de felicidade!
QUANDO SE AGRADECE À LAVAGEM DOS PORCOS
Oh, minha doce irmã, quanto lhe devo de gratidão! Hoje, já falecida, na dimensão em que está vivendo, talvez não entenda a imensa saudade que sinto de você. É dever, é reconhecimento, é consciência pesada por tê-la explorado tanto! Fico imaginando como pessoas como você ficam fora dos altares.
Eu tinha lá meus 12 anos quando você se casou. Entre você e seu marido eu não saberia precisar quem possuía o coração maior. Vocês não se importavam… ou tinham pena, não sei, de um morto-a-fome como eu, quando adolescente. Você comprava Tody, Leite-Moça, biscoitos… fazia doces e um sem número de derivados do leite: tentações que extrapolavam minha resistência de biafrino nascido no Brasil.
Lá em casa, meu pai vivia do que plantava e jamais tinha dinheiro para comprar qualquer supérfluo. Meu cunhado, no entanto, trabalhava na Usiminas/MG e vivia de um bom salário. Alto, forte, saudável e trabalhador, logo angariou a simpatia do gerente que lhe recomendou aumento ao encarregado do setor. Sempre que conseguia folga ele vinha visitar a família, e chegava sempre carregado de guloseimas. Esses dias eram esperados por mim com mais ansiedade do que por minha irmã.
Na casa da mana, a despensa era fechada por tramela de madeira: um pedaço de pau, parecido com taco de assoalho, tendo um prego bem no centro. Qualquer um podia girá-la e entrar quando bem entendesse. Doces, queijos, puina, manteiga, biscoitos… tudo o que fazia ela guardava lá dentro: eu só tinha o trabalho de esperar que ela saísse para lavar roupa ou ir tratar os porcos. Aí eu invadia a despensa num verdadeiro e solitário arrastão. Com o tempo, a coisa ficou tão séria que ela precisou colocar uma chave, pois eu já não estava me contentando em ser meeiro: deixava apenas a rapa para ela e o marido.
A chave funcionou apenas até eu descobrir que a despensa não possuía forro e era ligada ao paiol de milho. Então, eu entrava pelo paiol, subia no monte de espigas, agarrava-me ao baldrame, pisava numa das prateleiras e descia como um rato sagaz. E aí, eram dentadas no queijo, na puina…. Enchia os bolsos de cocadas, balas e biscoitos, vasculhava tudo, experimentava de tudo e depois retornava sorrateiro pelo mesmo caminho.
Acontece que minha irmã era boazinha, mas não burra. Logo entendeu o que estava acontecendo e resolveu me dar um susto. Na orla do terreiro havia uma laranjeira. Era meu ponto estratégico predileto para acompanhar os passos da mana. Normalmente, às 15 horas, eu me postava debaixo dela, arredondando pelotas de batinga para disfarçar. É que a minha irmã sempre aproveitava esse horário para lavar roupas na bica atrás do paiol, ou se desincumbir de afazeres fora de casa.
Nesse dia, vi quando ela apanhou a trouxa de roupa, colocou nas costas e desceu o caminho que curvava atrás do moinho. Ainda se via parte da trouxa de roupas, quando disparei para a despensa.
Com tudo planejado, ela jogou a trouxa no chão e voltou de fininho, postando-se, pelo lado de fora, atrás da porta da despensa, olhando pela greta.
Como eu já conhecesse o caminho, até mesmo no escuro, logo subi ao monte de espigas armazenados, agarrei-me ao baldrame, alcei-me à parede e depois desci pela prateleira: como fazia sempre.
E a primeira coisa que vi foi uma lata de Tody novinha em folha, ainda fechada. Passei a mão numa colher, abri a tampa e, enquanto coube Tody na boca, fui enfiando… e socando, socando…
Nesse momento você, mana, que me vigiava pela greta, abriu a porta de chofre e gritou:
– Te peguei, ratão! Lembra?
No susto, aspirei o ar cheio do pó seco do Tody, perdi o fôlego e, juro, pensei mesmo que fosse morrer. Não saía a voz, não conseguia respirar: desespero.
Na ânsia da morte, passei-lhe entre as pernas e a primeira coisa que vi – bem no cantinho da varanda sob a pia de lavar pratos – foi a lata de lavagem para os porcos. Entrei de cabeça, enchendo a boca, engolindo banana verde cozinhada, soro de leite azedo, rapa de polenta fermentada há vários dias… tentando, por todos os meios, desentupir a passagem que estava congestionada.
Vendo que a coisa se tornara séria, você, minha irmã, começou a gritar, a me dar tantos socos nas costas, tão fortes que cheguei a duvidar de suas boas intenções. Enfim, a respiração voltou.
E aí, minha querida e inesquecível irmã, você me ofereceu um bombom Serenata, presente especial do marido recém-chegado, cheio de “más intenções” para a noite que se avizinhava.
O MISTERIOSO SUMIÇO DO PIVÔ
Vocês conhecem a história do homem que estava agredindo Deus e o mundo porque lhe haviam tirado o cachimbo do lugar, estando ele com o mesmo na boca? Pois é, essas coisas acontecem sim, apesar de ser enfeixadas no rol das histórias de pescador.
Hoje pela manhã esteve aqui o amigo Vito Milesi. Todas as sextas-feiras ele vem aqui. Temos algo em comum: sangue italiano correndo nas veias. De repente, ele deu falta da caneta que minutos antes estava usando. Bem, nós estávamos sentados um ao lado do outro e não havia explicação para o desaparecendo do objeto. Chamamos mais gente, tateamos-lhe todo o corpo e só faltamos desmontar o escritório: nada da caneta.
Aparentemente desistimos, mas a cada minuto e meio erguíamos um papel para ver se ela não estava embaixo. Vocês sabem como são essas coisas! E, quando menos esperávamos, Vito deu seu grito de heureca, achando-a dentro de seu bolso, protegida entre duas carteirinhas que impossibilitavam a localização pelo tato.
Bem, isto me sugeriu uma história parecida, acontecida há 50 anos com o meu irmão mais velho. Ele ganhava a vida como dentista prático lá em Marilândia, naquele tempo, uma pequena vila do interior espírito-santense. Certa feita estava ele manipulando um pivô, desgastando saliências, ajustando-o à estética do cliente, quando o mesmo lhe escapuliu das mãos.
O gabinete do mano era pequeno – media mais ou menos seis metros quadrados. O piso era coberto com cerâmica e dentro havia apenas um armário no canto, a cadeira em que ele se sentava e o gabinete propriamente dito. A maior parte da área era limpa e vazia. Mesmo assim, o dente sumiu.
E busca de lá, busca de cá, olha-se por tudo o que é canto… O cliente ajudava nas buscas e, um pouco mais, toda a família estava reunida lá dentro, cada um verificando os mais estranhos lugares. Não houve dobra da roupa dos dois (dentista e cliente) que não fosse vasculhada. Por fim, afastaram o armário e a cadeira do dentista, pondo os objetos pequenos para o corredor. Nada! O pivô havia desaparecido mesmo.
Não houve outra alternativa senão fazer outro. Depois de uma semana, o cliente saiu de lá com ele brilhando. A esposa do mano, durante muitos dias, ao fazer a limpeza do gabinete, refazia as buscas no afã de desvendar o mistério. Semanas depois, desistiu também.
Vários meses depois, quando mais ninguém nem se lembrava do fato, eis que os dois filhos mais velhos do mano se desentenderam no corredor. O mais novo acertou um direto no nariz do primogênito e, sabendo que não ficaria sem o troco, deu no pé. A única saída era o gabinete do pai e por lá ele entrou atropelando tudo o que tentava obstar-lhe a passagem. Entre outros objetos, a cadeira em que o pai costumava sentar-se, quando o tratamento permitia, foi jogada de pernas para cima lá num canto do gabinete.
Atrás passou o irmão mais velho com o nariz pelado e disposto a descontar. Na tentativa de apaziguar os ânimos, o mano tentou agarrar o perseguidor, mas ficou apenas com um trapo da camisa dele na mão. E os dois desapareceram rua afora, com o irmão mais velho numa perseguição digna de um tigre faminto nas estepes africanas, a uma gazela demonstrando cansaço.
Calmo como sempre fora, o mano deixou que os dois se entendessem à maneira deles e começou a arrumar o gabinete para continuar o trabalho. E qual não foi a surpresa quando, ao apanhar a cadeira que estava de pernas para cima, ele viu, bem no fundo, o maldito pivô preso a uma pequena teia de aranha.
O EMPLASTRO DA TIA DINDINHA
Não acredito que em Biafra – mesmo quando as tropas federais nigerianas retalharam a região vencendo os ibos pela fome – tenha existido uma criança mais faminta do que eu nos meus tempos de menino.
Solitária é um animal trematódeo. Há três espécies bem conhecidas e, com certeza, desafiando todas as normas científicas conhecidas, eu devia ter quatro ou cinco de cada espécie desses parasitas dentro de minha barriga, cada uma mais insaciável que a outra. E eu, para dar conta da “filharada” comia tudo o que se parecesse com alimento. É que na roça, sempre que alguém come demais, dizem que “está com a solitária”. Vocês conhecem bem o ditado. Eu, certamente, estava com “muitas”.
Naquele tempo, acompanhava as buchas de Bombril, um pedacinho de sabão quadradinho de cor marrom. O primeiro que vi, é claro, foi confundido com uma barrinha de chocolate e, como que hipnotizado, só notei a diferença quando minha boca se encheu de espuma. Como um gatinho que pula em cima de tudo que se mexe, e se dá mal quando o faz a insetos peçonhentos, também eu tive muito que apanhar para aprender o que podia ou não ser comido! Mas, entre todos os micos que paguei nessa aprendizagem, o pior veio de minha tia Dindinha, uma parenta que viera do Rio de Janeiro para nos visitar. Nascera na cidade de Muqui – ES e morreu acreditando em benzimentos, chás e emplastros, mesmo depois que se mudou para a cidade grande em que havia remédio para todos os males.
Emplastro!
Era uma mistura de farinha com vinagre, sal, azeite e sei lá que diabos mais. Devia ser alguma receita macabra perdida por uma bruxa num dia de temporal em que a vassoura deu pane. Aquilo era cozido numa frigideira velha e corrugada, enrolado num pano fino de algodão e depois colocado em cima de partes inflamadas. Tia Dindinha estava com um tumor na canela que mais se parecia com um joelho sobressalente em estado de putrefação. Antibióticos? Nem pensar. Foi para o fogão e fez o diabo do emplastro, usou-o quanto pôde em cima do tumor e depois deixou-o, sem o pano, dentro da velha frigideira, que era usada só para poções que serviriam de remédio aos porcos, gado, galinhas e…. velhas malucas.
Eram dezesseis horas! Hora fatídica! Nesse horário, até hoje, só abro a boca para bocejar, tal o trauma da lembrança. Voltando da mexeriqueira do tio Gin – com um espinho enfiado na sola do pé direito – adentrei na cozinha com a fome de sempre. Lá em casa não havia sobras, por isso, fiquei surpreso quando percebi aquele beiju ao ponto, inteiramente a meu dispor, ainda quentinho e com sinais de molho de tomate por cima. Nunca haviam feito aquilo comigo! Era bom demais para ser verdade! Em três dentadas, dei-lhe fim, já que podia ter de dividi-lo com algum intruso inesperado… E havia muitos na família! Não percebi nada de errado. Fui cuidar do espinho e depois saí para o fundão, um poço do riacho Liberdade. Tomei banho e, ao retornar, ouvi discussões na cozinha. Era a tia Dindinha, esbravejando, pirraçando como criança malcriada, querendo saber, a qualquer preço, quem lhe havia jogado o emplastro do tumor fora.
Minhas vistas escureceram, o estômago (mesmo sendo de avestruz), embrulhou-se. Corri para o quintal e comecei a rogar tantas pragas na tia Dindinha que, duas semanas depois ela teve de ser internada em Colatina. E digo mais, se 2% das pragas que roguei tivessem sido acatadas “por ele”, com certeza ela teria perdido a perna.
Ainda hoje nem posso ver qualquer bolo ou alimento que contenha farripas de coco por cima!
CAPIXABAS CAÇANDO NA BAHIA
Argeu é o nome de um dos meus primos que, hoje, já cansado, desfruta a velhice na paz de seu bangalô, na praia de Iriri – ES. Alto, forte, trabalhador e intempestivo, é o responsável por uma grande quantidade de belas construções que ainda hoje se mostram imponentes na cidade de Linhares – ES. Além de construtor, ele era maluco por caçadas de paca. Possuía uma matilha esganiçada que espantava vizinhos, pois eram tantos uivos e latidos durante as noites, que ninguém ousava instalar-se a um quilômetro de sua casa. Era também caçador de perdizes e, neste esporte nunca houve quem a ele se igualasse. Nem a pedido ele perdoava uma perdiz depois de levantada pelos seus perdigueiros.
O provérbio diz que “gado ruim por si se junta” e foi assim que ele formou um grupo de caçadores que sempre se reunia num boteco qualquer da cidade para contar “mentiras” e programar excursões. E como num grupo de homens desocupados reunidos sempre mulher acaba sendo o assunto preferido, alguém teve a triste ideia de marcar uma caçada na Bahia, levando prostitutas para as farras noturnas. A ideia foi aprovada unanimemente: aprovada e executada em menos de 15 dias. Nas primeiras vezes foi fácil enganar as esposas, sempre simples mulheres criadas no interior. Enquanto eles se divertiam por lá, as pobres e ingênuas esposas ficavam de terço na mão, rogando aos céus para que nada lhes acontecesse naquele ambiente hostil de cobras, onças e insetos peçonhentos.
Quando retornavam eram recebidos com todo carinho: banho quente, comida especial, roupa de cama limpinha… Diante de tanta ingenuidade, logo eles escolheram uma fazenda estratégica na Bahia. Convenceram o capataz e até conseguiram um barraco só para eles, com sete cubículos especiais para suas luas de mel, agora, mensais.
Para compensar a hospitalidade do gerente, eles sempre levavam, também para ele, uma mulher de programa. Com tal regalia, o capataz, logo que o mensageiro avisou que eles estavam para chegar, foi ao povoado de Santa Maria Eterna e comprou um “novo enxoval”.
Enquanto isso, ingenuamente, por pura intuição… ou sugestão do diabo… ou intercessão dos anjos, faltando apenas três dias para a saída dos “caçadores de paca”, as mulheres deles resolveram acompanhá-los. Devia ser um lugar maravilhoso – pensavam elas – já que seus maridos estavam tão ansiosos para partir.
Diante do imprevisto, o meu primo Argeu ficou em apuros. Depois de tentar em vão demover sua mulher daquela ideia inesperada, começou a contatar os companheiros que, por sua vez, também estavam com o mesmo problema. Bem, não tendo jeito mesmo, eles, sorrateiramente, avisaram às “outras mulheres” do ocorrido e assumiram o mico. Partiram com suas digníssimas mesmo, totalmente desorientados e desmotivados.
Ainda a quinhentos metros da sede da fazenda, eles, devidamente acompanhados de suas legítimas esposas, avistaram o capataz num verdadeiro uniforme de cowboy: calça jeans, camisa listrada de mangas compridas, correia com fivelões de metal, chapéu de couro, botas brilhando ao sol.
Ele veio correndo, abriu a cancela e já engolindo grosso, começou a conjeturar como seria a mulher que eles lhe haviam trazido. Argeu e sua turma entraram no terreiro e foram saltando, procurando um meio de despistar as mulheres e avisar o capataz do contratempo. Mas, para a infelicidade do Argeu, as legítimas esposas não tiravam os olhos daquele homem ridiculamente vestido, lá naquele cafundó do judas. E foi aí que o mico se consumou: o capataz enclavinhou a mão no queixo, passou em revista aquelas pobres mães desmazeladas, barrigudas e sofridas da viagem, e pronunciou a frase mais infeliz de sua vida… e da vida dos “caçadores de paca”:
– Putaquepariu, seu Argeu, desta vez o senhor trouxe uma putada runha que acho que não vai dá pra encará não.
Foi a última caçada de pacas que eles deram lá em Santa Maria Eterna. É…, bem dizia meu pai: “Quem muito faz, um dia cai.” Nem descarregaram as camionetas e, aí sim, durante meses, para suprir as necessidades sexuais, tiveram de procurar socorro nos prostíbulos do Pó, lugar promíscuo em que as serrarias de Linhares jogavam a serragem e que era habitado, principalmente, pelas tais “mulheres da vida”.
DENTRO DE CINCO MINUTOS, VOU SENTÁ O PAU
Quinze anos depois de fundada, Marilândia-ES inaugurou seu primeiro cinema: o CINE KID. O nome procedia, porque, enquanto existiu, nunca passou na tela um filme que não fosse faroeste. A bem da verdade, tentou-se algumas vezes Charles Chaplin, “Carlitos” e Oliver Hardy e Stan Laurel, “O gordo e o magro”. Mas, aqueles cowboys em seus cavalos, enfrentando os terríveis Peles Vermelhas lá no Mississipi, disparando mil tiros com o mesmo Colt sem recarregar, eram imbatíveis… nas cenas e na bilheteria. A qualidade nada devia às sombras chinesas projetadas sobre uma parede, cinco mil anos antes de Cristo.
Nós, crianças, já reconhecíamos a palavra western de cor e sauté. E se fosse John Wayne o xerife, aí até os agricultores montanheses de São Rafael, com seus sapatões descalcanhados, davam uma trégua à capina do café.
Era proprietário do cinema o comerciante Hilário Bérgami. Com dois metros de altura e pesando 170 quilos bem distribuídos, ele podia ser reconhecido rapidamente em qualquer ambiente. Sua força era descomunal. Certa feita, depois de vãs tentativas de oito passageiros para erguer um dos lados de uma D-20 que havia caído no buraco de uma ponte, ele o fez sozinho.
O cinema dele só passava filmes aos sábados e domingos. Aos domingos havia a matinê para crianças. Os ingressos custavam menos e o grandalhão proprietário aceitava frangos, ovos, jacas… qualquer coisa que representasse o valor do ingresso. O cinema lotava.
Mesmo sem estudos, era ele o locutor do serviço de som. Grudado num microfone que pesava quase dois quilos, ele sentava na calçada do cinema e transmitia as notícias através de um enorme alto-falante pendurado no poste da esquina. A gente ficava por ali, na frente de sua sorveteria, lambendo picolés de groselha ou de coco: suas duas especialidades. De repente se ouvia o tão esperado anúncio:
– Senhoras e senhores, queira adquiri seus ingresso que dentro de cinco minuto eu vo sentá o pau.
E aí era aquela correria, pois o Hilário era pontual. Tanto que anunciava e já se ia levantando para acionar a máquina. Numa noite, por causa da pressa, no caminho, ele pisou no pé do Eurides Canal, um baixinho garganteiro que também se espremia na fila para conseguir – como se fosse uma criança – uma cadeira bem na frente. Como só andava de lambretas – nome com que eram chamadas as sandálias de dedo naquela região – as unhas agredidas no labor da roça estavam avariadas e desprotegidas. O sapatão do Hilário, mais os 170 quilos de seu peso normal, mais a pressão do impulso para o passo seguinte, acabou “escalpando” o dedão do pé do Eurides. Sem se importar com a diferença física, ele reagiu furibundo:
– Não dá pra olhar onde mete o casco não?
– Ô, Canal!, mi desculpe. Eu tava com pressa para começá o filme e não vi seu pé.
Animado com o aparente retraimento do gigante, o baixinho tentou se impor. Afinal, não é sempre que se tem a oportunidade de encontrar um grandalhão educado e manso. Por isso, pulando pra cima da calçada, o baixinho começou a vociferar insultos, chamando a atenção de meio-mundo. O povo acercou-se curioso diante daquela cena espalhafatosa e patética.
Mas o baixinho deu azar, porque o Hilário, aos poucos, foi perdendo a paciência. Não percebendo que já passara da hora de cessar seu entusiasmo, o Eurides continuava ameaçador, dizendo que tamanho não era documento e que conhecia bem a passagem bíblica de Davi e Golias. A paciência minguada do Bérgami esgotou-se por completo. Reagiu contundente:
– Olha aqui, garnisé metido a besta, home de seu tipo eu enfio três no cu e ainda peido forgado.
O silêncio foi tumular. Só o chiado do alto-falante regulado sempre no volume máximo, lá pendurado no poste, era ouvido. Diante de tamanha humilhação, o Canalzinho resolveu arriscar sua última cartada. Riscou o pé no chão e fez menção de atacar: levou um mata-cobras na cabeça, dado de cima para baixo, que o encurtou mais alguns centímetros. Nocauteado, ele foi levado para dentro do bar, onde recuperou os sentidos depois de alguns litros de água fria no rosto.
O Bérgami, bufando como um touro peado, nem olhou para trás. Entrou no cinema, subiu a escada, ligou a máquina e, como havia prometido, “sentou o pau”.
O MARIMBONDO TUCANO
Todos aqueles que têm irmãs sabem que, dia menos dia, algum malandro ronda o terreiro. Se a irmã tiver os olhos azuis, cabelos dourados que brilham ao sol, seja inteligente e ainda cante muito bem, aí é o caos: já não é apenas um malandro que rondará, mas um verdadeiro exército deles. E eu tinha uma irmã assim. O tempo e os filhos já a desgastaram, mas não precisa ser perito no assunto para imaginar o que ela foi no passado.
Entre os “malandros” havia um muito determinado, tanto que acabou transformando-a na mãe de seus filhos. Antes, porém, ele comeu o pão que o diabo amassou porque, naquele tempo, lá na colônia italiana, conquistar apenas a moça não dava o direito de casar. O mais importante, mais difícil e imprescindível era cair nas graças do velho. E meu pai era ranzinza, exigente, calculista…. Até o time de sua simpatia tinha de bater, sem falar em outras opiniões dele.
Trabalhador. Ah, disto o velho não abria mão! Haveria de ser trabalhador, conservar os cabelos cortados e não usar tatuagens. Brincos? Nem pensar. Se aparecesse algum candidato com eles, era descartado na primeira entrevista. Nem direito a um cafezinho este tinha.
E o Vicente aceitou o desafio, adivinhando e tentando realizar todos os desejos de meu velho pai. Lembro bem sua última e derradeira investida. Embora fosse dentista prático numa cidade distante, abandonou a profissão e veio trabalhar no ramo de madeira com a gente. É…., podem até não acreditar, mas minha irmã era digna de qualquer sacrifício. E o Vicente chegou disposto a conquistar toda a família, trabalhando diuturnamente e não escolhendo serviço.
Com o tempo logo aprendeu a ser gozador como nós. Infelizmente, esquecendo-se da norma de que, em toda regra há exceção, num dia quente, com o sol a pino, ele resolveu acompanhar meu pai (seu futuro sogro) a um roçado que havíamos comprado lá na cidade de Linhares – ES. O que ele ainda não havia assimilado é que meu pai nasceu e morreu detestando piadinhas ou qualquer tipo de brincadeira. Em toda minha vida só o vi dar risadas duas vezes e, assim mesmo, envergonhando-se em seguida. Para ele as brincadeiras eram sinais de irresponsabilidade e de falta de respeito, e dar risadas, então, só aos idiotas admitia esse direito.
Nesse dia – como meu futuro cunhado quisesse conquistar o meu velho de vez – foi logo apanhando uma das estrovengas e golpeando a capoeira densa e espinhosa. Meu pai, já bem idoso e cansado de mandracas, determinou:
– Você vai roçando deste lado, que irei começar um eito do outro. Quando nos encontrarmos já estará bom por hoje.
Assim foi feito.
Em menos de uma hora, o perseguidor implacável de minha irmã olhou para o eito à frente e notou que o velho estava de cócoras, com as mãos nas têmporas, demonstrando algum mal-estar. Acorreu prontamente:
– Que aconteceu, senhor Antônio? Está passando mal?
Meu velho ergueu a cabeça e nem precisou dizer muita coisa. Parecia ter colado um tomate maduro na ponta do nariz, que já não era pequeno. Um marimbondo-tatu, da espécie que faz a colmeia agarrada nos troncos das árvores como as taciremas, ao ser incomodado com o barulho e as foiçadas do velho, achou por bem avisar que ali a bandeira territorial já estava fincada. E meu pai, para a desdita de meu futuro cunhado, resolveu valorizar o sofrimento, perguntando:
– Como se chama aquele marimbondo deste tamanho (e aí ele afastou as mãos demais, talvez 30 cm) e que tem um ferrão amarelo assim (e aí ele diminuiu um pouco, talvez uns 10 cm), que é preto e faz a casa nos troncos das árvores?
E o nosso pretendente, que nesse tempo, de tanto ser gozado por nós, já aprendera quase tudo, desferiu com total infelicidade:
– Tucano, seu Antônio. Marimbondo tucano.
Entendendo o chiste de mau gosto, meu pai que detestava brincadeiras, fulminou-o com um olhar de reprovação, levantou-se, colocou a estrovenga nas costas e voltou para casa. O Vicente veio um pouco mais atrás e foram improfícuas as tentativas de retomar o diálogo. A bem da verdade, meses foram levados até que ele pudesse ter certeza que ainda havia esperança de conquistar a loira de olhos azuis cujos cabelos reluziam ao sol. Mas conseguiu.
Obs.: mandraca, na região, é sinônimo de azar, moléstias; tacirema, o nome de uma formiguinha preta, fedorenta e agressiva que vive nas árvores, e estrovenga, uma foice de dois gumes que os imigrantes italianos estavam trocando pela tradicional foice, ao roçar capoeirões.
NÃO SEI COMO, MAS SOBREVIVEMOS!
Não acredito que Osama Bin Laden tenha passado maior perigo na vida, fugindo dos bombardeios americanos no Afeganistão, do que nós ao tentarmos desfazer os três mil quilômetros de estradas de chão que, há 50 anos, separavam Goiânia-GO, de Rondônia-RO, numa Kombi caindo aos pedaços. Apenas o motor mandamos retificar. O resto ficou como estava. A lataria apenas dificultava ao vento expelir a poeira que as rodas jogavam para dentro. As borrachas de vedação, quando existiam, não serviam para nada. Mesmo assim, oito loucos resolveram entrar naquela “coisa” e sair de Marilândia – ES, para ir caçar macucos em Rondônia – RO.
Nesse tempo, até Goiânia havia muito asfalto. Daí para a frente, o “bicho pegou”. Estrada horrível, cheia de areia e costeletas e, na ausência destas, palmos de puaca que a Kombi, como galinha ciscadeira, jogava para dentro de si com invejável maestria. Já no segundo dia só nos reconhecíamos após o banho. A boca da italianada foi logo ressecando e rachando toda, e pelos olhos vermelhos e irritados, qualquer maconheiro inveterado assinaria embaixo.
Tudo isso não representava, senão, sacrifício. O pior foi o perigo por que passamos, já que não havia no veículo um único motorista que tivesse qualquer prática com aquele tipo de furreca retirado da sucata. Levava minutos para, em estrada plana, atingir 80 km e, para parar, só com a ajuda dos atritos da areia e do vento. O freio, para pouco nos adiantava. Mas, todos os integrantes possuíam carteira, já naquele tempo compradas de um despachante mancomunado com funcionários corruptos do DETRAN de Colatina – ES.
Na partida saímos com o saudoso mano Ildebrando ao volante. Ele era considerado o pior de todos, mas sustentava, com orgulho, a sorte de nunca haver atropelado nenhuma criança nem descido ribanceiras. Animais atropelados, perdeu a conta. Ameaças e multas, centenas. Os demais não tinham essa recomendação curricular. O certo é que, com ele ao volante, nem pensar em dormir. Todos atentos, olhos na estrada, garganta afiada a cada curva ou ultrapassagem: “Cuidado! Olha a curva! Acho que não vai dar! Freie, pelo amor de Deus!”
De repente, quando conseguiu a proeza de atingir os 80 km, o inesperado: um trevo que nem nós, seus fiéis vigilantes, cujos olhos alcançavam um zoom de águia jovem, percebemos. Foi um tal de Nossa Senhora, freie, jogue pra direita, segura o volante firme…, que nem um computador dos mais modernos seria capaz de decantar a melhor opção. E aí foi como pôde. A Kombi pulou por cima do canteiro, atingiu a contramão e foi parar atravessada no meio da pista contrária. Meu cunhado, sempre espirituoso, embora gaguejando, pilheriou:
– A curva foi tão violenta que cheguei a ver a placa traseira da Kombi!
Tomamos-lhe o volante. Esperamos uma meia-hora até a última hemácia abandonar o refúgio do sangue medroso e previdente e resolvemos logo correr o risco que restava: entregar o volante a meu cunhado, completamente corredor e inconsequente. A esta altura, a italianada já estava com os narizes vermelhos de costume. O metabolismo se regenerara. Meu cunhado Arlindo entrou na boleia, tomou posição, acelerou fundo para ver se o motor estava em dia, engatou uma segunda e partiu relinchando os pneus, quase nos deslocando a cervical. Alguns se benzeram; outros acharam que ainda era cedo para incomodar os santos.
E lá fomos nós, agora por péssima estrada de chão. A Kombi ia devagar e, assim, os riscos de acidentes diminuíam. Mais à frente, um caminhão que, por certo, não era de propriedade de quem o dirigia. Andando forte, levantava tanta poeira que, mesmo distante dele 50 metros, não podíamos ver a estrada com precisão. Era necessário se livrar daquele incômodo. E se Deus é grande, diz o ditado, o diabo não é pequeno.
E o diabo assoprou uma rajada de vento lateral que limpou a estrada, mostrando que, logo à frente, havia uma descida íngreme.
– Vai ser lá – disse ameaçador o meu cunhado. Irei ultrapassá-lo naquela descida.
Acelerou quanto pôde e quando já estava no vácuo do caminhão, o diabo parou de assoprar e a poeira voltou para a estrada cobrindo tudo. Era como se tivéssemos mergulhando num espaço escuro e de olhos vendados. Em poucos segundos sentimos solavancos, impulsões, sacolejos, bordoadas de todo tipo, companheiros levitando como se estivessem numa nave espacial e (como não poderia faltar num bando de italianos em dificuldades) gritos de “Maria Vérgena” ecoando para todo lado.
Nesse momento, já havíamos cortado o estado de Minas Gerais, entrado no de Mato Grosso e, agora, perdido o rumo. Depois de entrar pelo campo como se fosse um aríete abrindo caminho em tudo o que os sertões mato-grossenses contêm, escorraçando perdizes, jacus, corujas, veados, seriemas, emas…, a Kombi parou.
Novamente o sangue que já conhecia o caminho, num prévio aviso da suprarrenal, retornou aos órgãos centrais em sinal de defesa. Mas, aos narizes sempre vermelhos da italianada, a última hemácia só retornou depois de dois dias, que foi o tempo que levamos para arranjar socorro, transportar a Kombi para uma oficina quebra-galho e recomeçar o rali. A partir daí o mano e meu cunhado só tiveram consentimento de entrar na Kombi pela porta dos fundos.
Enfim, nessa Kombi, fomos a Rondônia, caçamos e, não sei como, estou aqui para contar a história. O retorno levou uma semana. Quando as oficinas eram próximas, conseguíamos chegar nelas sem empurrar a maldita condução. Na verdade, mais nós a levamos do que ela a nós.
A MANIA DO AGENOR
O entretenimento dos imigrantes italianos mais idosos dividia-se entre: caçadas de pacas e veados, moretina, canções folclóricas como Oi Bionda, Oi Bela Bionda, Ninna Nanna, La Violeta, Bevé, Bevé compare, Giovenezza, Moretina Bela, Tchao e tantas outras improvisadas e, principalmente, jogo de bocha. Os fins de semana na vila de Marilândia ficavam minados de italianos que se agrupavam dando vazão à saudade peninsular e às tradições da velha Itália.
Perto de nossa casa morava um caboclo brasileiro que, além de “uma porta de vendas”, possuía um campo de bocha, onde todas as noites, e principalmente nos fins de semana, os velhos imigrantes reuniam-se animadamente.
A algazarra psitacídea – própria daqueles que se deleitam em ouvir o próprio eco – não era fácil! Meu velho pai, já com seus sessenta e poucos anos, era assíduo frequentador daquele local. Se na passagem de nossa casa até a cabana do Lucindo fosse armado um mundéu, ele não passaria incólume por mais de duas horas.
Um dia, vindo eu de um treino de futebol, mesmo longe do campo de bocha, ouvi a matraqueada: eram gargalhadas, altos protestos, observações maliciosas, gritos de “russa esta” “russa o bolim”, discussões acirradas sobre de quem era o ponto… que só mesmo o bom vinho de laranja podia explicar.
Ali eles disputavam frangos assados, vinhos, assados de porco e até mesmo dinheiro. Havia representantes de todas as freguesias adjacentes, como Santo Hilário, Alto da Liberdade, Limoeiro, Seis Horas, Córrego do Veado, São Pedro de Marilândia, São Rafael, Távora etc. Ao passar em frente, logo concluí que meu pai estava lá no meio daquela balbúrdia, mas ao chegar em casa fiquei deveras surpreso ao perceber que ele se encontrava numa cadeira, na varanda dos fundos. Enquanto descalçava as chuteiras, observei:
– Que houve, Tunico, não entrou na disputa?
– Não. Estou com um desgraçado de um furúnculo aqui na costela que está me maltratando como o diabo.
– Bobagem, a dor é uma reação psíquica controlável. Vai lá, jogue, distraia-se e nem se lembrará dele.
– Isto é filosofia de quem está bom, mas AFINAL… (este afinal, com o L bem acentuado, era uma aceitação sob protesto: característica de meu velho pai). Ele jamais acreditava no que lhe diziam e que não fosse comprovado com as regras da realidade da vida, mas como a vontade de ir era muito grande, abriu aquela exceção.
Contíguo à nossa casa, morava o Agenor Gava. Homem disposto, brincalhão e que se tornara muito inconveniente pelo cacoete de conversar dando cotoveladas no interlocutor, a cada frase que dizia. Meu pai detestava isso e sempre o evitava para não se aborrecer. Lembro ainda o dia em que o encontrei extremamente irritado: “Quel sacramento (dizia ele em seu sotaque peculiar), me roxeou o braço para narrar a caçada de pacas. Que costume desgraçado que pegou! Já não suporto conversar com ele mais por causa deste maldito costume, e parece que sou sempre o preferido. Não pode me ver que vem lá me cutucar”.
Em nossa casa, sempre foi costume jantar cedo. Por isso, após o banho, ainda com a toalha no pescoço, estava eu a equilibrar um prato fundo de polenta com leite, quando percebi que meu velho entrou, dentes cerrados, testa franzida. Veio, sentou-se recurvado para a frente, mãos nas costelas, respiração ofegante. Incontinenti, deixei o prato sobre a mesa e acorri:
– Que houve pai? Está se sentindo mal? Quer que chame o doutor Joel?
– Não precisa chamar ninguém.
– Mas o que está sentindo, então?
– Ódio, muito ódio.
– Por quê? De quem?
– O Agenor – disse laconicamente. Há anos que conheço e evito ele, mas me bastou um segundo de distração e pronto! E que pontaria, que pontaria, filho! Acho até que arrancou o carnegão com a cotovelada. Uuuuui! Aiiiiii!…
O DIA EM QUE MINHA MÃE TENTOU MATAR MEU PAI
Meu pai foi caçador; meus irmãos foram caçadores; eu fui caçador: o mais fanático de todos. Não faz muito tempo que, envergonhado, joguei no lixo os tristes troféus que consegui em minhas andanças pelo País.
Um dia, meu mano mais velho, numa de suas caçadas, achou numa sapopemba de jendiba, seis lindos ovos de uma macuca. Trouxe-os e os presenteou a meu pai. Postos sob uma galinha choca, onze dias depois nasceram, dando sinais incontestáveis de que estiveram sendo incubados pelo pai, havia oito dias.
Exatamente ali começou a “via crucis” de meu pai. O que dava o dia a gente podia vê-lo pelo fundo do quintal como se fosse uma dedicada choca, revirando paus podres atrás de grilos ou cavoucando lugares úmidos em busca de minhocas e vermes. Com os seis filhotinhos entre as pernas, meu velho era todo cuidado, a fim de não esmagar um num momento de distração.
Se alguém se aproximasse, logo alertava: “Cuidado com os macuquinhos!” Quando ficaram maiores e começaram as primeiras tentativas de voar aos poleiros, meu pai tratou logo de construir um viveiro em que eles pudessem viver sem o risco de se perder.
Só Deus poderia explicar o carinho e o amor que meu pai nutria pelas aves! Às vezes não viajava porque precisava tratar os bichinhos; às vezes levantava em madrugadas tempestivas e ia verificar se seus passarinhos estavam bem. No paiol ele guardava a ração corriqueira: milho, amendoim, grãos diversos e uma criação de larvas, se não me engano, de tenebrionídeos.
Um dia, minha mãe resolveu dar “uma geral” na tulha e achou por bem arrumar a comida dos passarinhos, ajeitando-as dentro de uma velha caixa, cuja tampa eram pedaços de tábuas improvisadas, soltas e com buracos.
A gata do vizinho que se encontrava gestante, no apuro do parto, encontrou a caixa, entrou por um dos buracos e aprovou a sala de parto.
No outro dia bem cedo, não encontrando a ração no lugar costumeiro, meu velho estrilou:
– Mariola (era o apelido de minha mãe), onde você escondeu a comida dos meus macuquinhos?
– Não escondi nada, apenas arrumei um pouco da bagunça que você anda fazendo por causa daqueles passarinhos. Está na caixa de pau, lá do canto do paiol.
Cabisbaixo, meu pai voltou ao paiol. Abriu a tramela e, sem pestanejar, foi enfiando a mão dentro da caixa. A gata que ainda lambia os filhotes recém-nascidos, reagiu peremptoriamente, enfiando as afiadas unhas no objeto que ousava invadir sua sacrossanta privacidade.
Ato contínuo, eu chegava da padaria. Ao vê-lo lívido, trêmulo e respirando em golfadas, acorri temeroso, já que nesse tempo meu velho não andava bem de saúde.
– Pai, pai, que aconteceu? O senhor está passando mal? Que aconteceu? Fale, pelo amor de Deus!
Escorando-se com as mãos no corrimão de uma escada de apenas três degraus, ele sentou-se num deles, apoiou a mão direita na testa e falou entre os dentes:
– So mare, fiol, so mare! A tanti ani la vuoi coparme e questo di, quase la conseguiste. (Sua mãe, filho, sua mãe! Há muitos anos ela vem tentando me matar… e hoje, quase conseguiu).
O que em seu desabafo de espinhado italiano ele tentou dizer é que, por causa das ranhetices ou corriqueiras discussões do dia a dia, minha mãe havia colocado a gata para criar dentro do caixote em que ele punha a ração dos passarinhos, premeditadamente. O susto, pelo que se pôde ver, de fato, quase o matou!
DOIS TERRÍVEIS CAÇADORES DE ONÇA
Fazenda Cajazeiras, à margem do rio do mesmo nome, a 70 km de Marabá no estado do Pará. Morávamos em Imperatriz e uma vez por mês íamos visitar a encrenca que havíamos adquirido do INCRA por meio de licitação. Da transamazônica à sede eram mais uns 20 ou 30 km de picada acidentada em meio à mata. A única coisa que jamais vou esquecer é que saíamos daqui antes do amanhecer e chegávamos ao terreiro da gleba, sempre quando os urutaus já se denunciavam no topo de cada pau seco.
Aquilo foi o pedaço da Amazônia mais lindo que já tive a oportunidade de conhecer. Mundo agressivo, Natureza selvagem… As belezas naturais se mesclavam aos perigos que pululavam a cada metro que se pisava. Lindas cachoeiras, gritos horríveis de corujas e urutaus, piados maviosos de sabiás, pegas e uirapurus, esturros de barbados e onças, cantos e gritos, gorjeios e coaxares metuendos…, tudo se misturava e se mostrava a cada instante com toda pujança. A esse lugar, enfim chegamos mais uma vez!
Nosso gerente nos recebeu, alojou-nos e só no dia seguinte cada um foi arrumando suas tralhas para fazer o que havia programado quando saiu daqui. A maioria foi pescar no rio Cajazeiras, mas meu sobrinho e um cunhado do irmão dele resolveram descansar durante o dia porque, à noite, iriam matar “uma onça”. E, de fato, antes de a lua surgir eles apanharam a camioneta e foram “matar a onça”. Havia muitas por lá! Só num mês elas comeram 14 bezerros do nosso rebanho.
Lá pela meia-noite, meu sobrinho Vilmar me cutucou na rede e, diabolicamente perguntou:
– Você trouxe aquela fita que o cientista gravou uma onça esturrando?
– Ela nunca saiu do meu picuá.
– Vamos lá assustar aqueles dois “matadores de onça”?
Eu estava cansado e sonolento, mas malvadezas e trotes sempre foram prioridades em minha vida. Levantamos, apanhamos o gravador, o alto-falante com 30 metros de fio e metemos pé na estrada, já que o carro eles haviam levado. Encontramos a camioneta bem na entrada da mata, andamos mais uns 500 metros pela estrada que eles haviam seguido, escolhemos duas grossas árvores com sapopembas para nos proteger, estendemos o fio e colocamos o alto-falante do outro lado da estrada, debaixo de uma moita.
Por azar, nosso esconderijo coincidiu com um ninho de formiga-fogo e os miseráveis só desistiram de “matar a onça” às três horas, quando a lua apareceu. Vinham sorrateiros e vigilantes, parecendo pisar em ovos. Espingardas em riste. Se uma folha caísse, seria alvejada. Segundo eles, no despontar da lua elas esturravam e se tornavam agressivas. Por isso vinham tensos e amedrontados.
Como dois diabos que se prezam, meu sobrinho e eu nos preparamos. Fita no ponto. Quando já estavam a cinco metros, liguei o gravador em todo volume e o esturro estremeceu a mata. Eles estacaram de chofre, apontaram e dispararam incontinenti. Eu desliguei o gravador e eles repuseram os quatro cartuchos mais rápidos que a equipe do Schumacher no tip stop e comentaram numa só voz como se tivessem ensaiado o grito antes:
– Tomou, bichona! Aqui não são os bezerros da fazenda, não!
Nisto eu rodo a fita outra vez e se o alto-falante estivesse exposto, eles teriam “matado a onça mesmo”: mais quatro disparos sem intervalo. Mas, quando iam repor os cartuchos eu recoloquei a fita e deixei rodando. Os esturros eram de arrepiar. Acho que John Dalgas Frisch, quando fez a gravação, pendurou o microfone no cogote da pintada, porque até o pigarro da garganta era percebido. Nunca ouvi nada mais típico e medonho…. Nem eles.
Na carreira, um perdeu a espingarda e o outro jurava que se não fossem bons de perna a onça que, segundo eles, era do tamanho do boi reprodutor da fazenda, teria liquidado com eles. Mas estava ferida, com oito tiros na cara. A gente iria ver os urubus descendo daí a uns três dias.
Depois de uma semana dando detalhes da onça: tamanho das presas, como ela avançou, como fugiu quebrando galhos depois que viu que tinha atacado dois machos peitudos, acabaram descobrindo que a onça deles eu a carregava numa fita dentro do picuá. O vexame foi tão grande que nem de estilingue eles caçaram mais.
“ME GOLPEARAM”
Cutuca, corruptela de tucano, foi o apelido que demos ao nosso primo Orlando, em razão das tantas similaridades. Tucano é um pássaro curioso, bagunceiro, mexelhão… praticamente impossível de ser criado dentro de casa. Amansam com facilidade e acredito que não foi à toa que Deus o muniu de um bico tão grande. Não há outro ser vivo que utilize tão bem algo que nos parece estorvo. Carrega relógios, carretéis e até tampas de panela. Todos os que já tentaram essa proeza, desistiram logo nos primeiros meses. Os tucanos nasceram para viver em liberdade ou trancafiados em presídios de segurança máxima, como bandidos de alta periculosidade. Manejam a “pinça” como nenhum faixa preta em Kung-fu o faz com bastões.
Pois bem, o Cutuca foi contemporizado com esta alcunha porque, além do nariz comprido, as demais características não são pura coincidência:
Na época do inverno, o rio Araguaia, no Bico do Papagaio, extravasa. Suas águas ocupam grande extensão das várzeas e formam lagoas. Cessando as chuvas, os peixes que se esquecem, ou não conseguem voltar para o rio, ficam aprisionados nessas lagoas.
Havia uma, de propriedade do senhor Raimundo: um senhor que ficamos conhecendo por meio de negócios. Contou-nos o fato, fez o convite e aceitamos. Mal as águas baixaram, partimos para lá. Éramos oito nas duas D-20. Uma levava barcos e outros equipamentos e a outra, mais confortável, transportava os pescadores. Perdemos meio-dia para desfazer os cinco quilômetros que separavam a lagoa da estrada principal. Aliás, praticamente fizemos os cinco quilômetros de estrada para alcançar as margens da famosa poça d´água. Mas, havia peixe sim, e grandes. Entre outros pegamos um pirarucu de 80 quilos e um de 37.
Entretanto, devo confessar, não foi só o árduo trabalho de “fazer a estrada” que nos atrasou. É que conosco estava o Manoel Mineiro, que vivia da venda de “nambuas” (inhambus do pé vermelho, ou chororós) que infestam as pastarias de quase toda região nordeste. Era conhecido por todos como Manel e vivia dizendo que, em dias favoráveis, ele abatia até “30 nambuas”. É claro, ninguém acreditava, até o dia em que o flagrei vindo de uma caçada. Ele morava além do nosso loteamento e sempre era visto quando saía ou chegava de sua casa. Interpelei-o:
– Êi, mineiro, hoje é o dia de tirar a prova. Mostre aí os inhambus que matou.
Ele veio chegando com mil e uma desculpas, dizendo que o dia fora ruim e que perdera horas aguardando o ônibus para chegar à fazenda Chaparral. E eu, que nunca acreditei, investi maldosamente:
– Conversa, Manel! Esse negócio de matar 30 inhambus num dia é papo pra quem nunca caçou, não comigo. Onde já se viu matar 30 inhambus num único dia?
– É – disse ele – de fato, ainda não é hoje que vô podê prová. Hoje matei só 21.
– O quê? Vinte e uma? Nem vendo acredito! – e completei:
– Então, mostre aí!?
E o Manel, tirando a sacola e a “por-fora” do tiracolo, começou a jogar nambus no chão. Quando terminou, lá estavam: 22 nambus. E para humilhar ainda mais, dando uma risadinha que nem Chico Anísio, em forma, conseguiria, completou:
– Heee, he, heeee… contei só 21! …. Nunca fui bom de conta mesmo.
Pois é, nessa viagem, o Manel estava com a gente e ao pararmos no Bico do Papagaio para comer uma panelada, ele se disse indisposto devido a uma dorzinha de cabeça. Incontinenti, o Cutuca disse que tinha com ele um ótimo sedativo e iria prepara-lhe uma boa dose. O Manel tomou o remédio “do Dr. Cutuca” e não comeu nada. Nós acabamos de comer e seguimos viagem.
Em menos de meia hora o Manel, além da dor de cabeça, agora era acometido de tremenda diarreia. De dez em dez minutos ele pedia para parar, corria para o mato e a gente tinha de esperar. Mas, enfim, chegamos à tão sonhada pescaria.
Apesar do lugar desconfortável, do mau cheiro e dos milhões de mosquitos, a pescaria ia bem. Não havia água potável e apenas eu (que até hoje não aprendi a gostar de cerveja), fui obrigado a beber dela, mesmo fétida e preta como café.
Mas, no segundo dia, algo estranho começou a acontecer. Com raras exceções, o pessoal foi acometido de violenta diarreia. Era um tal de disparar pela capoeira ou pular às pressas da rede que, no quarto dia começamos a nos preocupar. Como somente o Cutuca continuava imune, as suspeitas logo recaíram sobre ele. Não demoramos a descobrir: ele havia levado dois vidros de Gutalax e, como ninguém desconfiasse de nada, em qualquer distração, ele acrescentava ao café ou mesmo à comida, o maldito “tempero”. O efeito era rápido e fulminante. Se a correia engastalhasse corria-se o risco de sujar as calças.
Descoberto, ele escondeu os vidros e já não comia nem bebia nada suspeito. Assim ia se livrando e rindo de todos que, correndo ou saindo de fininho, não escapavam das gozações terríveis do Cutuca. “É cozinheiro, você vai acabar matando um! “
Reunimo-nos em caráter de urgência. Haveríamos de descobrir os vidros, e, não havendo outra alternativa, sete o segurariam e um enfiaria o Gutalax na garganta dele, na marra.
Depois de vasculharmos um hectare de terra, achamos os vidros. Estavam sob as folhas, em baixo das raízes de uma embaubeira. Retiramos o maldito líquido deles e substituímos por água, deixando tudo sem qualquer sinal de nossa presença.
Ele tinha a mania de tomar as latinhas de cerveja dos companheiros e isto nos sugeriu o plano. Abrimos uma lata de cerveja, jogamos metade fora, despejamos dentro um vidro inteiro de Gutalax e colocamos o Figurinha sentado na entrada do barraco, com a latinha na mão, fingindo que estava bebendo.
Bagunceiro como todo tucano, ele veio gritando, mostrando uma enorme caranha e falando de um jacaré que podia engolir uma pessoa inteira, a menos que estivesse com diarreia. E ria, dizendo que o jacaré era exigente.
Demonstrando admiração pela caranha, o Figurinha aproximou-se e, com uma das mãos ficou a apreciá-la, deixando a outra exposta. O golpe foi perfeito: o Cutuca tomou-lhe a lata e, rindo, sentou-se num tamborete e ficou a se deliciar. Se o Figura estava bebendo era porque não havia problema – imaginou. Depois, com um prato em que a comida caía pelas orlas, fez todo mundo jurar que não havia nada de errado nas panelas. Fui o primeiro a jurar e os demais fizeram coro. Era verdade: não havia nada de errado na comida. Ele deu a primeira “bicada” na cerveja, degustou, aprovou e passou a comer tranquilamente. Antes da décima garfada, ele parou, ficou em silêncio alguns segundos e, em seguida gritou:
– Putaquepariu, me golpearam!
Jogou o prato no chão e disparou desabotoando as calças. Não arriscou ir além de 20 metros. Não fosse o “tampão” seco que obstava a saída, ele teria se borrado antes de baixar as calças. Passou a noite toda correndo pro mato e até hoje não conseguiu entender como o Gutalax dele, depois desse dia, não fez mais efeito.
É, Cutuca, quem planta, colhe!
CANCÃO E MÊNEGO CANARIM
O Velhão, meu irmão primogênito, teve três filhos machos. O Zeca (Jadilson) teve uma infância pacata, sendo sempre uma criança amável, dócil e obediente. Os outros dois, Joelson e Cláudio, respectivamente conhecidos por Cancão e Mênego Canarim, Meneghin ou Mênego, saíram endiabrados.
Cancão, sempre indócil, bruto e pertinaz, vivia azucrinando a vida de uma vila inteira, chegando mesmo a preocupar o sargento Luís: austero policial que não hesitava resolver seus problemas à bala, caso o cassetete e a vara de guaxima falhassem.
O Meneghin, além de resquícios dos dotes do irmão, ainda mantinha em si a teimosia de todas as galinhas chocas do mundo juntas. Houvesse jegues do Paraná para competir!
Dália, sua mãe, não saberia precisar quantas vezes foi vencida pelo Meneghin, que não se importava apanhar 20 vezes seguidas, desde que não fizesse o que lhe havia sido imposto, ou mesmo pedido com todo carinho. Todos os problemas dele continham a mesma resposta: “Não!”.
Crianças do interior, costumes do interior. Marilândia surgiu encravada no meio da vegetação espessa, na qual pululavam alíferos mil: um convite irresistível para a criançada com seus embornais de pelotas e suas “setras”, como dizia o Cancão.
Sempre com seus estilingues pendurados no pescoço, eles viviam de Marilândia ao sítio que tínhamos e, no percurso de cinco quilômetros, peloteavam as lâmpadas do Campo de Experiência do Estado, cegavam cavalos do Tunico Ceolin, castravam reprodutores, quebravam canos d’água que transpunham as estradas por cima…. Uma verdadeira praga, semelhante ao bíblico relato dos gafanhotos do Egito. Reclamações acumulavam-se e o pobre Velhão já não sabia como resolver tantos impasses.
Na escola, uma lástima! Ficou notório o dia em que a professora arguiu o Cancão, depois de horas falando sobre capitais:
– Você aí, que está furando o companheiro com o lápis, qual a capital da Tchecoslováquia? Falamos a aula toda sobre isso, lembra?
Mais vermelho que escarlate, com seus fiapos de ralos cabelos finos e alvos revoltos pelo vento, ele, que de exemplar nunca tivera nada, ficou pensativo e cabisbaixo. A professora esperou, esperou e em seguida tentou ajudar:
– Meu filho, o nome da capital que lhe peço é algo semelhante às doenças que atacam as galinhas lá no terreiro de sua casa…
Antes que a mestra chegasse ao fim de sua ajuda, ele interrompeu eufórico:
– Já sei, já sei, professora.
– E qual é?
– Gosma!, respondeu vitorioso. (É que os italianos assim denominavam uma PRAGA que todos os anos infestava os terreiros. As galinhas pigarreavam até morrer sem se livrar dos vermes que se localizavam na traqueia).
Em casa, nada escapava. De uma fome digna de retirantes de guerras civis, a tudo devorava e jamais dispensava qualquer coisa que lhe fosse oferecida.
Um dia, sua mãe encomendou um bolo lindo e enorme para festejar o aniversário do filho mais velho, o Zeca. O bolo estava coberto e tudo parecia normal. O momento esperado chegou. Crianças em volta, gritaria, doces e música. Destapa-se o bolo e, nele, duas profundas valetas o cortavam de alto a baixo. Não foi difícil descobrir o profanador, pois o Cancão era o único que possuía dois enormes e solitários incisivos.
Outra feita, minha mãe deixou umas cocadas sobre a cristaleira. Para quem olhasse de longe era possível ver o prato, acontecendo isto com meu sobrinho que, no entanto, não tinha tamanho suficiente para alcançar o objetivo.
Alguns minutos depois, toda a família se dava o trabalho de desentulhar o faminto Cancão das vidrarias da cristaleira. Neste dia não escapou de uma boa surra.
Do outro lado, o Meneghin, também conhecido por Nanico, ia fazendo das suas, tendo a teimosia como ponto culminante.
Dália, a mãe dele, mata um porco e o escala para levar o quinhão de direito para minha mãe, que morava do outro lado da rua. O NÃO foi automático. Para desgraça do Meneghin, meu irmão Ildebrando, sincopado para Brando, estava debruçado na janela de nossa casa olhando o movimento e ouviu a cunhada sendo desrespeitada. Interferiu ferinamente:
– Como é, vai deixar este moleque desobedecer mais uma vez?
– Leva isto lá, Cláudio, gritou minha cunhada, agora com a moral em jogo.
– Não levo!
Oito correadas na bunda e um cocorote de destroncar o dedo.
– Não levo, continuou o teimoso e desobediente Nanico, ou Mênego.
E dizem que o diabo dá ideias a quem fica à toa. Deve ter sido ele quem inspirou o mano na frase apropriada para fazer o Nanico levar a maior surra da vida.
Mãe é sempre mãe e, apesar da teimosia do filho, já ia deixar por menos, quando o Brando interferiu lá de baixo outra vez:
– Não é possível! Vai deixar assim? Se fosse filho meu eu matava, mas tinha de levar.
E assim, surra após surra, vai e não vai, cocorotes e tabefes, se é filho meu ou se não é, o pobre Nanico ficou com a bunda e a cabeça mais cheias de ressaltos do que carambola defeituosa. E o que é mais importante: ele foi sim, mas arrastado pela mãe e com a carne numa sacola amarrada ao pescoço.
DE TROMBONE À FLAUTINHA
Baiano era o apelido de um homenzarrão que, logicamente viera da Bahia à procura de serviço. Dizia-se profissional em motosserra, falava grosso e ostentava um bigodão com a finalidade de cobrir a ausência de um dente incisivo. Era vaidoso e metido a valente. Sua voz tonitruante era calibrada ao grave, a fim de intimidar qualquer adversário que tentasse repeli-lo. A quem tivesse medo de trovoada não era aconselhável discutir com ele. Por todas estas “qualidades” o contratamos sem muita conversa. Nesse tempo, para conviver… e sobreviver naquele ninho de gozadores e encrenqueiros, só mesmo alguém com tais prerrogativas.
Nosso barracão de serviço ficava no centro de uma grande floresta pertencente à CIAMA – MA. Media mais de 40 metros de comprimento e, aproximadamente, seis metros de largura. O espaço dava para as 32 redes e, também, para o quarto das cozinheiras. Durante o dia, muito trabalho. À noite, do escurecer ao “Jornal Nacional”, tudo o que a mente mais pródiga pode imaginar, acontecia naquele fim de mundo. Era jogo de dominó, canastra, dama, discussões, desafios, duplas sertanejas improvisadas, histórias mirabolantes do presente e do passado.
O trabalho de extração de madeira é muito perigoso. Lida-se com árvores milenares, cobras venenosas, máquinas pesadas, lugares acidentados, objetos que comparativamente nos transformam em formiguinhas diante de elefantes. Qualquer distração ocasiona um grave acidente, ou a morte do envolvido. Perdemos alguns companheiros nessa lida.
Um deles foi o Jeová, um ajudante de motosserra que, num dia fatídico, resolveu acompanhar o patroleiro no acerto de um pequeno trecho da estrada. Na verdade, ele queria ser patroleiro e, sempre que possível, acompanhava o primo, que era exímio operador. Nesse dia, ao retornar, ele pediu para dirigir a patrol até o barraco. O lugar era acidentado e, num morro íngreme, ele não conseguiu passar a marcha exigida e a máquina voltou, atingindo logo uma alta velocidade e, em seguida, capotando. O Jeová ficou sob as ferragens e acabou esmagado. Logo depois, eu cheguei ao local e, com muita tristeza e dor, constatei o fato.
Três dias depois, algo estranho começou a acontecer no barraco. Todas as noites, logo que o Jornal Nacional terminava, o motor era desligado. O silêncio reinava quase soberano. Apenas os lamentos dos urutaus e os gritos metuendos das corujas feriam a quietude. Era aí que uma verdadeira chuva de saibros caía, misteriosamente, sobre as cozinheiras. Incontinenti elas saíam apavoradas do quarto e vinham se juntar a nós. Todo mundo (com a exceção do Cabeção) acordava, sem que ninguém conseguisse uma explicação razoável do que estava acontecendo.
Com o passar dos dias, a coisa foi ficando insustentável. Ninguém conseguia entender como aquelas pedrinhas caíam lá, já que as tábuas do quarto das cozinheiras encostavam no teto e a porta ficava trancada por dentro. Como podia alguém arremessar saibro lá dentro? Era o fantasma do Jeová: os caboclos não tinham mais quaisquer dúvidas. Terços, despachos, encomendas…, tudo foi rezado e feito sem qualquer resultado.
Alguns funcionários começaram a dizer que iriam embora, mesmo porque não aguentavam mais trabalhar de dia e se borrar de medo na hora de descansar. E todas as noites as empregadas saíam horrorizadas de dentro do quarto e vinham soluçar entre as redes dos funcionários. Para maior desdita, a minha, como chefe, era a preferida. Não havia um cabelo ainda para nascer, que não ficasse em pé. Lembro-me bem!
Numa noite, depois de as cozinheiras saírem apavoradas, o tal Baiano valente saltou da rede, engrossou o timbre da voz ainda mais, aprumou o bigodão desarrumado pela coberta e resolveu dar provas de sua valentia:
– Fantasma não existe, pessoal. Isso é sacanagem de alguém. Vou ficar lá dentro com as cozinheiras e quero ver se este fantasminha de merda vai ter a coragem de enfrentar o “baiano falado lá de Itamaraju”.
E lá foi o baiano para o desafio, escoltando as duas mulheres. Elas deitaram em suas redes e ele acomodou-se numa vaga da prateleira que não continha alimento. Apagaram-se as velas e as lanternas. Grilos, morcegos e toda sorte de sons fantasmagóricos foram preparando o ritual da chegada do fantasma. Por cinco minutos imaginamos que o fantasma, de fato, havia se intimidado com o nosso herói. Afinal, fosse mesmo o Jeová, conhecia bem a fama do Baiano de quem fora ajudante. Pura pretensão! Um pouco mais e uma chuva de saibro, mais forte que as anteriores, caiu sobre a cabeça do “Baiano falado de Itamaraju”, sujando de poeira até o prolixo bigodão dele.
Não precisou nada mais que isso. A porta se abriu violentamente e o nosso Baiano, como paca tangida por cachorro, saltou do quarto bufando, vindo parar no meio de nós. E sua voz, antes grave e rouca, pausada e amedrontadora, agora era de uma bichona em apuros, assustada e dependente. Falando fino, em sons recortados e gaguejantes, ele se entregou:
– Gente, a COISA É SÉRIA! Amanhã mesmo vou acertar minha conta e voltar para Itamaraju. E que o bicho me perdoe por ter duvidado dele!
Meus cabelos levantaram. A Tonha desatou a rede e correu pra junto de nós. Atrás e um pouco mais devagar, veio a Florisvalda. O silêncio era tanto que incomodava. Meu rosto parecia pegar fogo: nunca tinha vivido uma situação parecida. A única coisa que me salvava era a eterna incredulidade. Num ímpeto incontrolável, desafiei:
– Se é fantasma que jogue, agora, um punhado de terra na minha cara também. Fechei os olhos, mas nada aconteceu. Alguém, lá dos fundos, observou:
– Seu moço, não fais uma desgraça desta, não!
– Sabe o que é, gente – justifiquei-me – nunca consegui acreditar nestas coisas. Portanto, creio eu, esta é uma hora das mais propícias para tirar de mim estas dúvidas. Não estou mexendo com o além, estou apenas procurando minha verdade.
É bem certo que eu estava tenso, morrendo de dúvida e de medo. Acho até que falei aquilo sem pensar direito, mas o certo é que falei, e nada aconteceu.
Durante o resto da noite, nada mais de anormal se fez sentir. Cheguei a pensar que havia desmoralizado o fantasma. Nas noites seguintes, também nada mais caiu no quarto das meninas. Aos poucos fomos esquecendo que, de fato, fantasmas podem existir.
Quando já nem se falava mais no caso, numa noite de relâmpagos, trovoadas e chuva, talvez aproveitando o cenário perfeito para seu retorno, o fantasma voltou. O motor havia sido desligado mais cedo e com o acalanto dos pingos ressoando na cobertura do barraco, alguns já começavam a roncar.
De repente, a velha e quase esquecida rajada de saibros cai, outra vez, em cima das cozinheiras que, não esquecendo as rápidas escapadas a que já haviam se acostumado, saíram pela porta e esbarraram na minha rede:
– Seu Livaldo, quero minhas contas. Amanhã vou embora – disse a Tonha, tremendo da cabeça aos pés. Florisvalda, no entanto, agarrada à companheira, mostrava-se temerosa, porém mais controlada.
E eu, que não era de Itamaraju, mas carregava uma incredulidade bem mais forte que a do baiano, resolvi, também, desafiar o fantasma do Jeová. Tomei as cozinheiras pelas mãos e fui com elas ao quarto mal-assombrado. Sentei-me no mesmo lugar em que o “baiano falado de Itamaraju” sentou e fiquei atento, sempre protegendo os olhos, porque ainda não estava certo se o fantasma jogaria limpo.
Nada aconteceu até amanhecer. Quando elas se levantaram e o sol alumiou melhor o quarto sem janelas, examinei o chão: embaixo da rede da Florisvalda vi os arranhados com que ela juntava as pedrinhas de saibro para arremessar ao alto. Estava desmascarado o fantasma. A paz voltou a reinar e do fantasma, apenas piadinhas de que o “baiano falado de Itamaraju” não gostava.
E a Florisvalda, pela ingenuidade de suas ações, continuou lá, trabalhando como se nada houvesse aprontado. Nunca explicou a razão daquele comportamento e eu, que não sou psiquiatra nem terapeuta, preferi agradecer a Deus por não ter os olhos cheios de saibros.
CADÊ ESSE NEGO SAFADO?!…
Há cinco anos, meus sobrinhos resolveram tentar a sorte na Transamazônica, num fim de mundo a 140 km além de Altamira e a 40 km antes da cidade de Uruará, no Pará. No tempo em que cometeram essa loucura, gastava-se dois dias de carro pequeno para desfazer o percurso. Em tempo de inverno, normalmente não se conseguia de jeito algum.
E lá, com toda fibra da qual me orgulho participar geneticamente, eles começaram a trabalhar. Seria tentativa vã descrever os milhares de problemas que enfrentaram até constituírem uma das firmas mais poderosas da região: quase um império.
Com o passar do tempo, grande parte da estrada foi asfaltada, a energia passou por lá, o telefone chegou, a fiscalização era inexistente e o comércio de exportação melhorou. Com quase uma centena de casas para funcionários, logo pequenos comerciantes (principalmente quiosques vendedores de cachaça), instalaram-se pelos derredores, formando uma grande vila. Mais um pouco e uma boate típica desses cafundós foi inaugurada. O que era uma simples serraria foi tomando forma de cidade, com igrejinha, campo de futebol, boates e comércio variado. Todos queriam o dinheiro que os funcionários não tinham onde gastar.
A “boate” logo passou a ser o local mais frequentado, tanto pelos solteiros, que se achavam no direito, quanto por alguns casados furtivos que sempre encontravam uma desculpa para “mudar a refeição”.
E foi assim que o Bigode, um crioulo forte que fazia jus ao apelido, começou a visitar o ambiente, em detrimento das indiretas da mulher desconfiada com a mudança radical dos hábitos noturnos do marido. Até então, ele chegava, assistia um pouco de televisão e, dizendo-se alquebrado, recolhia-se em sua rede. De repente, parecia alguém muito preocupado com o futuro, tendo, quase todas as noites, problemas para acertar com o patrão.
E a mulher, cansada de guerra, com uma porção de filhos para cuidar, resolveu dar um basta àquela vexatória situação. Sob sucessivas ameaças, numa noite chuvosa de inverno, depois de acirrada discussão, o Bigode disse – mesmo debaixo de trovões e relâmpagos – que precisava “dar um pulinho” ao escritório da firma para resolver um problema urgente, que surgira no setor em que trabalhava. As ameaças da esposa foram vãs. Calçou os sapatos domingueiros, vestiu a melhor camiseta, apertou o cinto na jeans e se meteu na lama: o assunto era muito sério e urgente para ser adiado para o dia seguinte.
A mulher dele, uma crioula não menos destemida, lá pelas 23 horas, munida de um revólver e da faca da cozinha, resolveu “participar” da conversa do marido com o patrão, indo, sem fazer curvas, para a boate.
A farra estava animadíssima: carimbó, forró… saias esvoaçando, litros de cachaça sobre as mesinhas improvisadas e toda crioulada da serraria lá, como se não invejassem camas vibratórias ou quaisquer artifícios dos luxuosos motéis metropolitanos.
Ela veio sorrateira e, por uma fresta da parede de tábua lobrigou o Bigode, numa mesinha tosca de madeira, bebendo e contando vantagens às meninas que se refestelavam com torresmos e pinga.
Sem muito pensar, já sem um neurônio a auxiliar o bom senso, cega de raiva e revolta, a humilhada esposa que passou o melhor de sua vida criando filhos, lavando e cozinhando para folgar na velhice, sacou do revólver do próprio marido, empunhou a afiada faca de cortar cebolas e investiu num grito que qualquer lutador de Kung fu do século V a.C, especializado na arte, assinaria:
– Tu vai vê agora, nego safado, com quantos pau se fais uma cangaia!…
Na sala havia, pelo menos uns 20 crioulos, todos casados e ameaçados por suas mulheres – sabe lá Deus quantas vezes! De gente que estava no balcão para um cafezinho, ao soldado que mantinha a ordem, todos deram no pé, derrubando mesas, espalhando pinga, saltando pelas janelas, bufando como boi arredio peado.
É que quase todos eram crioulos, quase todos casados e todos atrás de safadezas. No grito “Tu vai vê agora, nego safado…”, nenhum deles ousou certificar-se de qual deles era a mulher. O momento não era de averiguar e sim de tomar decisão urgente para salvar a pele.
No outro dia, lá estava o Bigode, de motosserra em punho, no pé de um jatobá com cinco metros de circunferência, todo molhado de suor, ganhando o sustento da família e fazendo mil planos para resolver a enrascada em que se metera. Pra casa, só depois de alguns longos meses de celibato.
É…., o nego safado foi descoberto e pego com a boca na botija!
O PAUZINHO DO VALTER
O ditado: “Futebol: paixão nacional”, para mim, dos cinco aos 56 anos, representou, apenas, uma pálida definição desta modalidade de esporte. Quando criança – como não encontrasse companheiros para jogar 24 horas por dia – eu ficava angustiado todas as vezes que uma pelada terminava, na certeza de que teria de esperar até o outro dia para correr atrás da bola outra vez.
Morava na roça e, segundo diziam, demonstrava aptidão para o futebol. Aos 17 anos eu já fazia parte do time titular de minha cidade, Marilândia – ES. Era o melhor time do interior e, por isso, passamos a disputar o campeonato regional de Colatina, naquele tempo, a segunda maior cidade do Espírito Santo.
Como todo time da roça que se preza, também o nosso possuía um jogador “brabo”, aguerrido, “matão”, “caneleiro”… e que parecia não “bater bem da cabeça”. Era lateral esquerdo, o mais temido da região. De técnica não entendia nada, mas ai daquele que ousasse carregar a bola pela ala da qual ele era responsável. Aquela parte do campo, nem uma surucucu-pico-de-jaca vigiava melhor. Com poucos minutos de qualquer jogo, todos os ponteiros direitos adversários já se deslocavam para outra parte do gramado, levando nas canelas amargas e indeléveis lembranças.
Mas, “como toda araruta tem seu dia de mingau”, também o nosso temível lateral teve o seu dia aziago. Num jogo que fizemos contra a U.A.C.E.C. (um time de estudantes do Colégio Estadual Conde de Linhares, de Colatina – ES), um tal de Belo que, por sinal, acabou jogando em alguns times profissionais do Rio de Janeiro, enfiou três gols em nosso time em menos de 15 minutos. De fato, ele era “uma praga”. Driblava como Garrincha, tinha a impulsão do Dadá e a pontaria de Biguá para o cabeceio, além de chutar muito bem. É bom que se esclareça que, a cada dez partidas da U.A.C.E.C., normalmente ele participava de duas. Nas demais ele estava sempre bêbado num botequim qualquer, dedilhando seu inseparável violão, sempre rodeado de meretrizes do “Coqueiro”, zona da cidade.
Percebendo que durante os 90 minutos, segundo cálculo comparativo, chegariam a 18 gols, nosso meia-armador Zé Firme foi até a lateral do campo e cochichou no ouvido do Valter: Que diabo está acontecendo? Se não parar o homem, iremos sofrer a maior goleada da história! Pense nos dentões dos Buzzetis quando chegarmos a Marilândia! (Os Buzzetis dirigiam o América F.C., time que surgiu dos renegados e, consequentemente, revoltados do Marilândia E.C.. Eram dentuços e torciam sempre contra o nosso time, ainda que defendêssemos o nome da vila de Marilândia, jogando contra clubes de outras cidades).
Nosso lateral, cabisbaixo e envergonhado, confessou: “Não consigo marcar aquela peste. É mais liso que jundiá ensebado. “
– Pois dá um “pauzinho” nele, ora! – Recomendou nosso meia-esquerda.
E, na primeira bola que foi para o Belo, já deslocado como rei lá pela ponta direita, a desgraça aconteceu: nosso lateral, já todo pelado de esfregar a bunda no chão sem achar a bola, tomou distância, retesou os músculos, ergueu a chuteira e foi no meio das costas do Belo. Nas travas, um pedaço da camisa, o calção e a sunga. Belo caiu sem sentidos e entrou em coma, só voltando a si no outro dia pela manhã. A torcida pulou o alambrado, mas, convenhamos, com as mãos era difícil machucar aquele homem que passava a semana carregando sacos de café nas costas pelos morros da colônia. Contudo, listras de sangue e manchas roxas havia mais nele do que nos heróis de filmes americanos quando, sozinhos, resgatam um compatriota confinado num quartel alemão, com milhares de vigilantes armados. Mas, o recado estava dado: naquela parte do campo, para passar, só com licença do lateral.
Depois de tudo terminado, já em cima da carroceria do velho Ford do goleiro Gil, nosso meia-esquerda foi até ele:
– Valter, pelo amor de Deus! O que você fez?
E o lateral esquerdo, todo cheio de curativos e muito irritado, defendeu-se:
– Como me pergunta o que foi que aconteceu, se foi você quem mandou eu dar um pauzinho nele?
– Um pauzinho, sim – ponderou o Zé Firme – mas você matou o homem!
AGORA, SÓ BRIGANDO MESMO!
Depois de uma semana correndo maior risco do que um albino de cuecas atravessando o Saara sem uma gota d’água no cantil; ou pulando do cume do Everest, pelado e sem paraquedas; ou estando sobre o Vesúvio na hora da erupção; ou passando a pé pelo Morro do Alemão, com a burra cheia de dólares, em plena madrugada, eis que descemos da velha Kombi e nos arrastamos, literalmente, até à margem do Septubinha: rio piscoso que atravessava uma densa floresta (hoje pastarias) no município de Nortelândia, no estado do Mato Grosso.
Dez maníacos italianos faziam parte da loucura. Entre eles, o Grapuá, um armário de portas abertas, um bicho: em força física e ignorância também. Sempre fora meu inseparável companheiro de caçadas. Nunca conheceu o medo nem as possíveis consequências que o excesso de coragem às vezes ocasiona. Pela mata, a qualquer hora, sentindo cansaço ou sono, ele se atirava nas folhas e dormia como se estivesse sedado para retirar o baço. Se houvesse alguma cobra, aranha ou inseto peçonhento embaixo, pior para eles. E, por incrível que pareça, fez isto a vida ativa inteira e nunca o imprevisto aconteceu.
O rio Septubinha é afluente do Septubão. A distância entre eles, do lugar em que nos encontrávamos, era de oito quilômetros. Um dia, Brando, Grapuá e eu resolvemos ir caçar lá. Acordamos bem cedo e partimos, chegando ao destino às oito horas em ponto. Descansamos um pouco e decidimos três direções para passar o dia. O primeiro que pretendesse voltar caçando pela picada que fizemos, cortaria um galho e deixaria ali como aviso. O segundo, encontrando o sinal, aguardaria o terceiro, para que fizesse companhia ao retardatário, naquele fim de mundo em que tudo podia acontecer.
Como nenhum dos três era bobo, houve unanimidade em logo retornar caçando. Por isso, cada um iniciou a picada conforme o acordo, mas, 50 metros à frente, parou e aguardou que os demais se distanciassem, a fim de não dar muito na pinta. Brando, proverbial em ser preguiçoso, foi o que parou primeiro, logo retornando. É que, naquela distância, e com várias tonas piando pela orla da picada que fizemos, ninguém era bobo de se cansar ali e depois andar de graça mais quatro horas para alcançar o barraco. Mais que razoável era ir voltando devagar, caçando e diminuindo o percurso.
Canso de dizer que, se Deus é grande, o diabo não é pequeno. Quando cheguei no cruzamento, já que era minha intenção ser o primeiro, a surpresa: lá estava o ramo verde combinado. Alguém havia sido mais ligeiro que eu. Sentei desolado. Teria de esperar pelo último. De repente, apanhei o galho e, qual não foi a grata surpresa ao perceber que aquele ramo fora cortado por uma besoura serra-pau que obedecia às normas da preservação da espécie, e não por gente. Acontece que o galho fora posto ali pelo mano Ildebrando, que resolveu aproveitar a ajuda da cerambicídea, talvez com preguiça de cortar outro. Jamais imaginou que alguém se desse à curiosidade de examinar. Enganou-se. Foi a primeira coisa que fiz.
Diante da constatação, arremessei o galho fora, cortei outro novo, coloquei em lugar bem visível e me pus a caminho de volta. Logo depois chegou o Grapuá com o mesmo pensar. Só que, para ele, não havia mais alternativa. O ramo era autêntico e ele teria de esperar… e o fez até que a noite caiu. Depois, sozinho, por péssima picada, atordoado com a possibilidade de o pior ter acontecido, iniciou, quase correndo, a viagem de volta. Precisava avisar ao grupo sobre o incidente.
Às 20h, quando já saíamos a sua procura, ele chegou. Estava um bagaço: rasgado, molhado de suor da cabeça aos pés, mais possesso que um doido maconhado com 30 demônios entranhados. A cada pergunta que alguém fazia era um “Vai tomar no…”; “Vai a puta que…”; “Turma de moleques…”, e por aí afora. Nem o Rambo, depois de dizimar sozinho uma brigada inteira de russos, parecia mais machucado e furibundo.
Amuado, não jantou. Estirou-se em seu sujo, finíssimo e velho colchão de espuma e ficou bufando como boi peado. Imaginamos: amanhã ele estará mais calmo e entenderá que foi tudo um mal-entendido.
Qual nada! Durante três dias ele não conversou com ninguém e não saiu do barraco. Passava quase todo o tempo deitado com a cabeça encostada numa árvore que sustentava a lona do barraco e na qual havia vários pregos em que pendurávamos as espingardas.
Ainda no quarto dia, ao retornar de minha caçada, ele estava lá, enrolando os cabelos com o indicador: era costume ou cacoete que perdurou até o fim de seus dias. Cheguei. Ele nem virou o rosto. Quando pendurei minha espingarda no prego em que já havia outras, o desgraçado não resistiu. Uma das coronhas foi bem no chamado “pau do nariz” do amuado Grapuá, descascando-o até à ponta. Ao ver o estrago, o sangue escorrendo e o clima pesado no ar, recuei alguns passos e fui enfático:
– Bem, não sei se tentar explicar vai valer a pena. Portanto, pode vir que estou esperando para decidir no tapa mesmo.
Para mim, a briga era inevitável… e, meu fim, próximo, já que o brutamonte podia esganar-me sem muito esforço. Mas, depois de alguns segundos de silêncio tumular, alguém deixou escapar uma fungadela de riso que contaminou a todos, inclusive a ele. Com certeza, o diabo não é pequeno, mas Deus é maior. Acho que o fato bem podia constar da coleção “Great escapes”, da Stouffer Productions Ltd., porque se o Grapuá resolvesse mesmo me pegar, eu não teria a mesma sorte do coelho das neves.
Mais tarde ele confessou que fui salvo pela minha posição ridícula de defesa.
A humilhação não foi menor do que ter apanhado.
ESSA MUCURA AÍ É QUE É SEU MARIDO?
Gonçalez é o nome de um boliviano que, depois de não resistir aos encantos de uma linda imperatrizense, fez daqui sua terra natal. Embora desempregado, possuía tino musical e foi nos instrumentos que resolveu buscar o sustento de sua família. Em menos de três meses, sua agenda já andava ocupada por vários fins de semana. Não bastasse ter arrebanhado bons cantores e ótimos instrumentistas, ainda pode contar com a cultura festeira dos maranhenses. Nesse Estado, um traque governamental é motivo de batuque.
Também já tive um conjunto musical e sei como é penoso mantê-lo. São tantos problemas, tantas encrencas… que só mesmo não encontrando coisa melhor para ganhar a vida, uma pessoa se submete a tantos contratempos.
O Gançalez vivia contornando situações, enfrentando bêbados, discutindo com filhos de prefeitos do interior e trocando tapas com protegidos da polícia, que alegavam o direito de entrar sem pagar. Claro que, sempre, nessas situações, nosso Gonçalez era humilhado… e até mesmo, desmoralizado.
Certa feita, ele firmou um contrato para tocar ali do outro lado, em São Miguel do Tocantins, logo depois do porto das balsas do rio Tocantins. Cumprindo uma das cláusulas, às 22 horas em ponto, o primeiro acorde foi dado. A moçada estava animada e o conjunto também, pois o cachê pelo trabalho já se encontrava no bolso do grupo. Tudo transcorria perfeito e sereno, quando alguém resolveu se embandeirar para o lado da esposa do Gonçalez. Mas, como diz o provérbio, “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Deixando por menos, sua mulher ia se esquivando das cantadas e evitando um problema maior.
Acontece que o “Dom Juan” era persistente e atrevido, tanto que, para não ser agarrada à força, a digníssima teve de apelar para a proteção do marido, no caso, o pobre do Gonçalez. Ele estava lá supervisionando e administrando o andamento do baile quando alguém lhe disse que sua mulher o estava chamando urgentemente. Ele acorreu incontinenti:
– Que foi, mulher?
– É um cabra safado aí que está querendo me agarrar à força.
– O quê?!… Onde está este canalha para eu lhe arreben…
E, antes mesmo de terminar a frase, ele ouviu, atrás de si, uma voz rouca, grave e tonitruante:
– Estou aqui, cabra!
O Gonçalez virou-se de chofre, assim como quem vai lavar a honra a qualquer preço, mas, quando viu à sua frente, um “negão” que mais se parecia com um armário com oito portas abertas, ele negaceou, gaguejou um pouco, e tentou negociar, dizendo que esperava que o ilustre cidadão compreendesse que estava interessado numa mulher compromissada, mãe de seus filhos…
– O quê?! – Perguntou exclamando o negão, ao tempo que se virava para a mulher do marido ameaçado: esta mucura aí é que é seu marido?
Não dava mais para aguentar tantas humilhações. Era reagir ou ficar para sempre desmoralizado. Por isso, fechou os olhos e pulou no peito do negão.
Horas depois estava na UTI do Santa Maria. Por sorte, o coma só durou o tempo necessário para que os comentários diminuíssem e ele pudesse esquecer a ideia fixa de jogar todo equipamento no Tocantins e nunca mais falar em conjunto musical.
NESSE JEGUINHO, JESUS NÃO MONTARIA!
Acabo de chegar de uma incursão à Serra da Desordem – MA. Embora tenham escolhido alguns rios como divisão territorial entre Maranhão e Pará, ela não faria feio nesta incumbência, pois há muitos lugares em que os rios são mais largos que a área plana de seu cume.
Subir agarrado em árvores ou engatinhando morro acima me fez lembrar de Nova Alegria, um povoado que dista 60 km de Itamaraju, na Bahia. Se morro valesse dinheiro e fama, Gilberto Gil, Caetano e toda cultura baiana ficariam em segundo plano. Há deles em que se leva horas subindo de carro em marcha forte. Do topo, lá na vila, as pessoas se parecem com meras formiguinhas.
Estive lá algumas vezes pesquisando a presença de um pássaro que nenhuma literatura ornitológica registrara até hoje: o Cripturellus obsoletus obsoletus, ou inhambuaçu das regiões altas e frias, bastante comuns nas montanhas de Venda Nova do Imigrante, no Espírito Santo.
Lá pelas tantas da subida, num dos topes mais íngremes, bem no meio do estreito caminho, descansava um jeguinho pachorrento e fornido. Ao volante, o meu sobrinho Delcir, sempre avesso a animais. Como caronas, o mano Ildebrando, já falecido, e eu. Ao avistar o animal, nosso sobrinho desabafou resoluto:
– Já sei que nem vai olhar para trás. Vou passar por cima daquela peste!
O mano que viajava do lado da porta do carona interferiu:
– Você devia envergonhar-se! Por que passar por cima? Que lhe fez o pobrezinho? Buzina e ele sai do caminho.
– O quê? Sair do caminho? Jegue não sai nem se estourar um vulcão a meio metro dele.
E de fato, foram inúteis as buzinadas. O jegue nem olhou para trás. Continuou impassível em sua ruminação. Nosso sobrinho foi à loucura:
– Vou passar por cima!
Sem outra alternativa, o mano que defendera o “inofensivo animalzinho” e que estava sentado do lado da porta, disse:
– Aguenta aí que vou lá tirar ele da estrada.
Abriu a porta, desceu e, claudicando, foi ao jeguinho. (O mano sofria de uma artrose violenta no joelho, ocasionada pela ruptura dos meniscos num jogo de futebol. Foi um grande médio-volante nos seus tempos de atleta.) Nosso sobrinho, bufando de raiva como boi peado, com a cabeça para fora da boleia, continuava irascível e ameaçador:
– Taca uma pedra no traseiro dele. Se acertar na canela, melhor ainda. Não sei para que o Brasil foi se interessar por essa merda egípcia!
O mano se aproximou. O jegue direcionou as orelhas, aparentemente moucas, para trás, para apurar um possível perigo. Confiante e afável, o mano encostou-se a ele e antes de lhe dar uma tapinha na ilharga, ainda olhou para trás e comentou com o meu sobrinho:
– Não sei como pode haver gente como você! E dando uma tapinha na bunda do jeguinho, falou carinhosamente: vamos lá, meu bichinho. Um seu ancestral ficou famoso por carregar no lombo, o Filho de Deus. Às vezes até tenho inveja de…
E antes que terminasse a frase, o descendente pacato do único animal que teve a honra de transportar o Filho de Deus no lombo, acuou nas duas patas dianteiras e com maior precisão do que Davi ao acertar a cabeça de Golias com a pedra de sua funda, desfechou o casco esquerdo bem no joelho necrosado do mano. No chão, contorcendo-se em dores e com os impropérios um tanto prejudicados pelas gargalhadas de nosso sobrinho, ele se contorcia urrando de dor. Ao menos uma frase, eu lembro bem, pois acorri incontinenti para socorrê-lo:
– Ainda que tenha servido a Jesus, passe por cima desta desgraça. Mata ele sem piedade…
Já de volta ao carro, com o jeguinho, sob protestos, à margem da estrada, nosso sobrinho parecia estar vivendo seu momento de maior felicidade na vida. É que sempre o recriminávamos por causa de sua impaciência para com os animais e ninguém fora mais perfeito do que aquele jeguinho para provar que ele estava certo.
O LIXO MAIS CUIDADO DO MUNDO
Há certas coisas que a gente devia esconder a sete chaves, mas o diabo é que são exatamente aquelas que nos fustigam ao relato, como se passar por idiota, ou sendo mais moderno, pagar mico, fosse necessidade de sobrevivência.
Há seis anos moro na minha residência atual. Foi construída pelo mestre de obras Caxias, que da austeridade do nosso histórico marechal Luís Alves de Lima e Silva, nada tem. O que ele constrói, nem um terremoto com 9.0 na escala Richter, derruba, assim como, qualquer barraco de gueto se lhe compara ao acabamento do que constrói. Devo ter gasto mais cimento na casa do que usaram no Muro de Berlim rsrs. Falando sério, ele era um bom construtor, mas o excesso de preocupação pela consistência da obra, fazia com que os gastos se triplicassem.
Entre outras, ele fez os serviços “subterrâneos” de água, energia e esgoto, “superficialmente”. Podia-se ver aqui e ali, lombos de canos pra fora da terra. Isto me causava grandes problemas, pois, se ao cavar qualquer buraco em quintal minado de canos já não nos livramos das máximas de Murphy, quanto mais do azar evidente que me perseguia nesse mister. O certo é que entre Murphy e o caiporismo, nunca consegui dar um “enxadãozada” no quintal, sem levar um esguicho na cara. Nem as varas de araçá dos buscadores de água em terreno árido foram, até aqui, mais eficientes que meu enxadão.
E foi assim que, no primeiro inverno, o lombo de um cano de água ou energia aflorou bem na entrada da garagem. Exatamente aí começou minha via-crúcis! Tantas vezes carreguei carrinhos de terra para encobrir o diabo do cano; tantas vezes as enxurradas o apresentavam ameaçador, como se dissesse: “Proteja-me, senão o pneu do carro irá quebrar-me. Voará água ou sairá fogo, você sabe como é!” E lá ia eu em mais uma tentativa para adiar o problema. Em muitos momentos lembrei os conselhos de meu sobrinho Delcir: “Há coisas, tio, que são só uma questão de tempo! Um dia terá de ser feito e, se tem de ser feito, o melhor é fazer logo.” Mesmo assim, eu vivia adiando esse dia.
Enfim, depois de muitos carrinhos e pás de terra, resolvi acabar, de vez, com aquele problema que me fazia perder tempo matutando a solução ou maldizendo o construtor inconsequente. Comprei dez quilos de cimento e fiz duas proteções, uma em cada lado do cano que insistia mostrar o costado ameaçador. O tempo foi passando, passando. Há poucos dias, resolvi aumentar os bloquetes da garagem até o limite da casa, porque os respingos do telhado enchiam a varanda de terra. Quando os pedreiros chegaram, fiz questão de recomendar:
– Quando forem nivelar o terreno, tenham muito cuidado. Há canos na superfície em todas as direções, mas este aqui (e mostrei o tal problemático) é o mais ameaçador. Não sei se é de água, ou de energia que vai para o almoxarifado.
Os pedreiros olharam bem, começaram o serviço e eu voltei ao meu escritório. Duas horas depois fui chamado às pressas, pois haviam descoberto a função daquele cano desgraçado que me enchera o saco durante seis anos.
Quando transpus o umbral da cozinha e olhei para o lugar do serviço, vi mais dentes nos dois pedreiros do que na boca de um jacaré-açu em posição de ataque. No chão, um pedacinho de cano de meio metro… apenas meio metro.
– Óia aí, seu Fragoni, o cano que te deu tanto trabaio. Era só um pedacim véio que o construtô antigo jogô fora.
– Putaquipariu…, desabafei chula e laconicamente, sem qualquer escrúpulo ou cuidado com minha condição de acadêmico.
O DIA EM QUE VI O DIABO
Minha infância foi passada próxima a um vilarejo no interior espírito-santense. Como qualquer criança da roça, eu vivia de pé no chão, um calçãozinho seguro por suspensórios, sem camisa, cabelos despenteados, pele queimada pelos raios solares. Estudar era um castigo de que não me furtava, pois, os velhos imigrantes italianos, no lugar de prêmios, ofereciam uma violenta surra para o filhote que não passasse de ano.
Voltava do colégio (escolinha do interior), apanhava a tabuada, postava-me de cócoras num canto do quarto e em poucos minutos já podia levantar-me, apanhar o embornal de pelotas e sair para as capoeiras em perseguição aos alíferos, certo de que não ajoelharia sobre os duros caroços de milho da dona Zilda, minha exigente e inesquecível professora.
Segundo contam, eu era um filho-problema. Por isso, minha mãe vivia ameaçando-me:
– Não faça isto senão o diabo te pega; um dia o diabo te pega; cuidado com o diabo – e assim por diante.
Apesar de não demonstrar em casa, nas capoeiras eu vivia de olho em cada moita, e ao menor sinal estranho, meus cabelos arrepiavam e o coração disparava. Dias antes, acontecera um temporal e como me negasse a rezar, puseram-me na varanda e fecharam a porta. Era noite escura. Apenas os fortes relâmpagos davam curta e rápida visão das árvores retorcidas. Diante daquilo, meu tenro machismo fraquejou e só mesmo depois de ensurdecedores gritos consegui a piedade de que precisava. Não recrimino minha mãe por isto, pois sem o auxílio do diabo seria muito difícil ter algum sossego no lar.
E mais um dia raiou e com ele a escola, a volta, a tabuada, o embornal de pelotas… A rotina de sempre. Acontece que minha irmã havia, há algum tempo, se casado com um grandalhão que, apesar do tamanho e da idade, sempre se portara como uma verdadeira criança. Imitava tudo, inclusive a gargalhada metuenda do chifrudo.
Nossa casa era rodeada de cafezais, fruteiras, matas e extensos capoeirões. O dia estava límpido, os pássaros gorjeavam em cada copa, como se estivessem agradecendo aos céus o prazer divino da vida. Saíras, gaturamos, rolinhas, coleirinhas, tizius, caga-sebos, marias-bobas, tico-ticos, japus e mais uma infinidade de alíferos de uma das mais belas faunas do mundo, estavam ali, pertinho de mim. Eu era puro e Deus dava-me o céu, talvez por saber que só para os que não o avaliam, é facultado o privilégio de sua visão. Pela pureza que hoje sei que desfrutava é que percebo como era feliz. Entre um anjo e uma criança, só o poder diverge.
Fui ao paiol, escolhi as mais redondas pelotas de batinga, conferi a elasticidade da seta (estilingue) e saí ameaçador. Conhecia um mata-paus com frutos e encaminhei-me para lá. Fui atravessando as leiras de café; saltei a valeta do moinho; cruzei por goiabeiras e segui em frente.
Um joão-de-barro assentou-se na mira, mas não pelotei, pois minha mãe dissera que, como as cambaxirras, ele era um pássaro de Deus, gozando, pois, das prerrogativas de imunidade, podendo voar e pousar onde bem entendesse. Porém, não usufruíam do mesmo privilégio, os caga-sebos, e saí incontinenti na perseguição de um que me cruzou o caminho. De árvore em árvore, fui dar numa mexeriqueira antiga, de vasta copa. Nem sequer percebi os frutos, pois meus olhos fixos na minúscula caça, nada mais viam além dela.
Foi então que ouvi um gargalhar ensurdecedor e ininterrupto, diabólico, furibundo, tétrico. O boné elevou-se ante o ímpeto dos cabelos ouriçados, a respiração parou. Com o coração, não sei o que houve. Virei os olhos de relance apenas, pois não podia perder um só décimo de segundo na indecisão. Arranquei jogando folhas para trás; o grito ficou preso na garganta. Tinha visto o demônio, com todos os detalhes: chifres aguçados e pontiagudos, olhos faiscantes; pela boca, fogo e fumaça com cheiro de enxofre, calças esfarrapadas, tridente em riste, rabo bifurcado…
Como se estivesse num carro em alta velocidade, percebi as coisas ficando para trás, enquanto o som do gargalhar ia diminuindo, como se a força dos “valei-me Nossa Senhora” estivessem surtindo o efeito desejado. A valeta que sempre me parecia larga, foi ultrapassada com metros de margens a meu favor e o brejo adiante nem sequer afundou sob meu peso. Quando esbarrei na saia de minha mãe, senti que o embornal de pelotas, ainda atrasado, tocou-me as costelas. Apertei fortemente as pernas de mamãe num último alento. Ela não sabia de nada e vendo minha aflição, assustou-se. Tomou-me nos braços, deu-me água com açúcar, acalmou-me. Um dos pés sangrava, mas ainda não doía, na mais eficiente prova de que a tensão que estava vivendo era mais forte que a dor. Quando contei o que acontecera, ela riu, riu muito, pois sabia que podia ser tudo, menos o diabo.
– Mas vi, mamãe, foi horrível. Tentou agarrar-me, mas fugi correndo.
Quando meu cunhado, com a cara mais porca deste mundo, entrou na varanda degustando a última mexerica, percebi qualquer semelhança, mas por mais que tentasse, os chifres, os olhos faiscantes, o cheiro de enxofre… não eram percebidos.
Meu cunhado e, posteriormente, meu insubstituível companheiro de caçadas, hoje não está mais neste mundo. Deve estar aprontando lá no céu, brincando de diabo intruso com o anjo Gabriel. Confesso que nunca envelhecemos, ou melhor, nunca deixamos de ser “velhos moleques”. Sinto muitas saudades dele! Muitas!