LIVRO CAUSOS E CONTOS – APENAS TEXTOS
GRAVURAS E DETALHES NÃO CONSTAM AQUI

O EMPLASTRO DA TIA DINDINHA
Não acredito que em Biafra – mesmo quando as tropas federais nigerianas retalharam a região vencendo os ibos pela fome – tenha existido uma criança mais faminta do que eu nos meus tempos de menino.
Solitária é um animal trematódeo. Há três espécies bem conhecidas e, com certeza, desafiando todas as normas científicas conhecidas, eu devia ter quatro ou cinco de cada espécie desses parasitas dentro de minha barriga, cada uma mais insaciável que a outra. E eu, para dar conta da “filharada” comia tudo o que se parecesse com alimento. É que na roça, sempre que alguém come demais, diz-se que “está com a solitária”. Vocês conhecem bem o ditado. Eu, certamente, estava com “muitas”.
Naquele tempo, acompanhava as buchas de bombril, um pedacinho de sabão quadradinho de cor marrom. O primeiro que vi, é claro, foi confundido com uma barrinha de chocolate e, como que hipnotizado, só notei a diferença quando minha boca se encheu de espuma. Como um gatinho que pula em cima de tudo que se mexe, e se dá mal quando o faz a insetos peçonhentos, também eu tive muito que apanhar para aprender o que podia ou não ser comido! Mas, entre todos os micos que paguei nessa aprendizagem, o pior veio de minha tia Dindinha, uma velhota que viera do Rio de Janeiro para nos visitar. Nascera na cidade de Muqui-ES e morreu acreditando em benzimentos, chás e emplastros, mesmo depois que se mudou para a cidade grande em que havia remédio para todos os males.
Emplastro!
Era uma mistura de farinha com vinagre, sal, azeite e sei lá que diabos mais. Devia ser alguma receita macabra perdida por uma bruxa num dia de temporal em que a vassoura deu pane. Aquilo era cozido numa frigideira velha e corrugada, enrolado num pano fino de algodão e depois colocado em cima de partes inflamadas. Tia Dindinha estava com um tumor na canela que mais se parecia com um joelho sobressalente em estado de putrefação. Antibióticos? Nem pensar. Foi para o fogão e fez o diabo do emplastro, usou-o quanto pôde em cima do tumor e depois deixou-o, sem o pano, dentro da velha frigideira, que era usada só para poções que serviriam de remédio aos porcos, gado, galinhas e… velhas malucas.
Eram dezesseis horas! Hora fatídica! Nesse horário, até hoje, só abro a boca para bocejar, tal o trauma da lembrança. Voltando da mexeriqueira do tio Gin, com um espinho enfiado na sola do pé direito, adentrei na cozinha com a fome de sempre. Lá em casa não havia sobras, por isso, fiquei surpreso quando percebi aquele beiju ao ponto, inteiramente a meu dispor, ainda quentinho e com sinais de molho de tomate por cima. Nunca haviam feito aquilo comigo! Era bom demais para ser verdade! Em três dentadas, dei-lhe fim, já que podia ter de dividi-lo com algum intruso inesperado… E havia muitos na família! Não percebi nada de errado. Fui cuidar do espinho e depois saí para o fundão, um poço do riacho Liberdade. Tomei banho e, ao retornar, ouvi discussões na cozinha. Era a tia Dindinha, esbravejando, pirraçando como criança malcriada, querendo saber, a qualquer preço, quem lhe havia jogado o emplastro do tumor fora.
Minhas vistas escureceram, o estômago (mesmo sendo de avestruz), embrulhou-se. Corri para o quintal e comecei a rogar tantas pragas na tia Dindinha que, duas semanas depois ela teve de ser internada em Colatina. E digo mais, se 2% das pragas que roguei tivessem sido acatadas pelo diabo, com certeza ela teria perdido a perna. Ainda hoje nem posso ver qualquer bolo ou alimento que contenha farinha ou farelo de coco por cima!

A DU MOULIN MOCHA
Logo que surgiram no mercado capixaba as espingardas mochas, o Velhão, apelido de nosso primogênito Adalho, hoje falecido, adquiriu uma, francesa, calibre 32, Du Moulin. Aquela inovação, não era aceita, principalmente pelos imigrantes italianos acostumados com os velhos trabucos de cão.
A notícia logo se espalhou pelo vilarejo e, quando em vez, batia à porta um curioso qualquer que queria “ver e confirmar com as mãos”, a estranha arma. Meu pai, no começo, fazia parte daqueles que desdenhavam os franceses, achando “aquela coisa” sem qualquer versatilidade para as caçadas de pacas. Com o tempo, porém, foi adaptando-se e, um pouco mais, só participava de caçadas se aquela espingarda ficasse com ele.
Levava-a para onde ia, sem perdoar, jamais, o velho amigo Scarpatt que dissera, certa vez, que ele possuía um calo seco no ombro de tanto carregá-la. Mas, apesar das palavras do Scarpatt terem atingido em cheio o brio de meu pai, tínhamos de admitir que, o que insinuara, era a mais pura verdade.
Depois dos cinquenta anos, devido as constantes crises alérgicas de asma, meu pai parou definitivamente de trabalhar. Para não definhar de tédio, passou a ocupar o tempo perseguindo os chororões do morro do Canal, os tururins da chapada do Catelan e as pacas de um capão de mata dos Lorenzonis. Estas últimas eram seu eterno desafio, já que as pacas desfrutavam da vantagem do riacho São Pedro e da morosidade de meu velho. E os anos começavam e terminavam sem que o Chapocão (cão retaco, branco e cotó) se visse compensado de suas andanças por aqueles extensos chapadões, saboreando a cabeça do roedor perseguido. Aliás, o Chapocão já conhecia todas as tocas daqueles roedores e levava, acredito, tudo na mais sã esportividade. Contentava-se em fazê-los sair dos buracos e jogá-los nas águas frias do São Pedro, o que sempre lhe garantia, ao retornar, um naco suculento de polenta.
A fazenda dos Lorenzonis ficava a um quilômetro da vila, na estrada que ligava Marilândia ao distrito de São Pedro. Nela havia uma serraria em que trabalhava o clã Lorenzoni. Todos eles já estavam acostumados a ver meu pai com seu boné tipo inglês, calça de cáqui, facão Policarpo Pupim, camisa de mescla, cachorro cotó branco, espingarda no ombro, passar por ali a passos trôpegos, em direção à mata. Como sempre ia e vinha de mãos abanando, os Lorenzonis nunca se preocuparam em demonstrar ciúmes pelas pacas de suas propriedades.
Contudo, o boato da Du Moulin mocha havia corrido bastante e logo chegou aos ouvidos dos Lorenzonis que, nessa manhã, estavam aguardando aquela hora infalível da passagem de meu velho. Estavam sentados sobre os toros do tombadouro, quando meu pai chegou e os cumprimentou. Falaram por algum tempo de outros assuntos, chegando, por fim, ao motivo único daquela reunião dos Lorenzonis, ali em cima de toros estocados à beira da estrada.
– Soubemos que comprou uma espingarda sem cão.
– Foi o Adalho, meu filho.
Foi dizendo isso e passando a arma para os mais curiosos que, avidamente, correram mãos e olhos, detalhadamente.
– Isto deve ser uma porcaria – comentou o velho Henrique, alisando com a mão o lugar onde deveriam estar posicionados os cães.
– Muito perigosa – acrescentou o João, irmão mais novo do Henrique.
– Qual nada – retrucou meu pai, tomando a arma com o propósito de desfazer as tantas impressões pejorativas.
Os Lorenzonis acercaram-se como meninas que brincam de roda, enquanto meu velho, entusiasmado, enumerava as vantagens da arma:
– Esta não oferece qualquer perigo. É extremamente versátil, pois num único escorregar do polegar, a gente tem os dois cães internos engatilhados, prontos para um disparo duplo, se for necessário.
E em cada argumento e explicação, mais os Lorenzonis se agrupavam, formando um bloco compacto. No meio, meu pai falava animado, sem se importar com a impaciência do Chapocão, que latia afoito e desassossegadamente, de cima do barranco da estrada. E era tal a aglutinação de pessoas que a espingarda passou a ser examinada na vertical (graças a Deus que assim o foi) pois lhe era impossível dar outra posição.
E quando todo aquele palavreado já parecia surtir o efeito desejado, com alguns Lorenzonis já até admitindo os argumentos que estavam sendo apresentados, eis que um estrondo ensurdecedor se fez ouvir, cobrindo a todos com uma nuvem de fumaça embaçadora. Quando essa se desfez, o que havia de Lorenzonis arrepiados e boquiabertos, não era fácil! No meio, qual boneco de cera, meu pai se mantinha ereto, lívido e imóvel.
Realmente, ainda dessa feita, os franceses não convenceriam os velhos italianos: continuaria sendo uma porcaria perigosa, aquela arma sem cães.
Em casa, calmo e inconformado, meu pai procurava, sem encontrar, a razão daquela detonação misteriosa. Tinha sido um vexame, um grande vexame, capaz, inclusive, de fazer com que abandonasse, por completo, aquelas caçadas de pacas lá nos Lorenzonis. Os roedores devem ter mandado “celebrar missas em ações de graças pelo acontecido”, pois nunca mais precisaram acordar cedo, correr na frente de um cachorro idiota e mergulhar nas águas geladas do córrego São Pedro.

A TEIMOSIA DE UM CURURU
Tudo começou quando resolvi criar inhambus no quintal de mina casa. Os inhambus fazem parte da família Tinamidae. São pássaros que vivem no chão pelas florestas, capoeiras e campos e que somam menos de 55 espécies, sendo mais de 40, brasileiras. Para quem é caçador ou mero curioso, devo esclarecer que o pé-de-serra, a tona, a perdiz, a codorna, a sururina, a chorona, o chororó, o chintã…, para citar os mais comuns e conhecidos, são membros dessa família.
Pois bem, tentando criá-los em cativeiro num espaço grande e sem cobertura, operei-lhes uma das asas e deixei-os pelo quintal. Havia aprendido a técnica com um amigo de Guarapary – ES, Dr. Aulus Sevinius de Vasconcelos. Num canto adequado coloquei uma vasilha com água. Não demorou para que eu começasse a encontrar, todas as manhãs, dentro dela, um “recado” promíscuo e fedorento.
Só na segunda semana preocupei-me com o fato e resolvi vigiar, a fim de descobrir o autor daquela brincadeira de mau gosto. Ainda antes das 22 horas fui dar a primeira verificada: lá estava, todo escarranchado, no sossego dos justos ou folgados, um velho sapo cururu. Para ser sincero, só fui acreditar ser ele o autor daqueles “recados”, depois de constatações oculares. Eu não sabia, até então, que os cururus… bem, “vai lá”: cagavam tanto e tão grosso. Com a calma de toda primeira vez, delicadamente, tirei-o da água, fustigando-o carinhosamente com a ponta do pé.
Com boas maneiras, logo percebi, não iria convencer aquele velho sapo a escolher outro lugar para suas necessidades fisiológicas. No dia seguinte, o “recado” estava lá outra vez. Apanhei um saco plástico, protegi a mão da sensação desagradável de tocar um animal frio e, tradicionalmente asqueroso, e levei-o para a outra extremidade do quintal.
No dia seguinte, outra vez estava ele lá, só com o “nariz” do lado de fora. Um pouco mais atrás… bem, eu só queria saber por que tinha que ser dentro de minha tigela! Já ciente da pouca simpatia que lhe devotava, ao perceber-me, ele pulou da vasilha e tentou escapar. Peguei-o no segundo pulo, e já sem a mesma paciência de dias anteriores, lancei-o por sobre o muro.
Uma semana depois, talvez se metendo pelo buraco do esgoto de águas pluviais, o velho e teimoso cururu, voltou. Numa onomatopéia tácita trocamos alguns insultos. Demonstrando sensatez, ele tentou dar no pé, mas agarrei-o na terceira tentativa, apertando-o com raiva. Enfiei-o dentro de um saco plástico e levei-o a uma poça d’água a mais de cem metros de minha casa, atrás da Tocauto, revendedora de carros.
No mês seguinte, chegando o inverno, depois de uma noite de chuvas e trovoadas, quando eu já nem mais me lembrava dele, a surpresa: de pernas abertas como se estivesse cansado de uma longa caminhada, dentro de minha tigela com a água que servia os inhambus, estava o cururu. Um pouco mais magro e, pareceu-me, mais realizado, ele chegara. Atrás dele, nenhum “recado”. Quem sabe, teria ele aprendido bons modos? Apesar da raiva não contive o riso e chamei meus familiares:
– É outro, seu bobo! – pilheriaram eles tentando convencer-me.
A falta daquela inconfundível, fedorenta e enorme cagada dentro da tigela era um álibi que deixaria confuso o mais veemente acusador. No entanto, aqueles olhos semicerrados e cínicos não se cansavam de lembrar-me de um velho e renitente sapo cururu que me causara certo transtorno.
Vinte e quatro horas depois, a prova incontestável e definitiva: dentro da vasilha, mais grossa, preta e fedorenta que nunca, o palpável sinal da desforra. Sapo nenhum do mundo conseguiria tal façanha. Era ele.
Agarrei-o, enfiei-o dentro de uma caixa, coloquei-o em cima da camioneta e dei ordens para deixá-lo na sede da fazenda Cachoeirinha, lá no Pará, a 200 quilômetros daqui. Segundo meus cálculos, ele só deveria retornar pelo ano dois mil, caso não lhe ocorresse algum acidente ao longo do penoso percurso.
Diante de tanta teimosia e determinação, sinceramente, não direi que foi trazido por alguém se o vir, em 2013, dentro de minha tigela.

AMILTON: UM CHATO DE GALOCHA
Amilton era um funcionário que trabalhava como revendedor numa fabriqueta de picolés de minha esposa, na cidade de Imperatriz, no Maranhão. Extrovertido, falante e tendo como escola conhecida apenas aquela em que ia vender os picolés, acabou se tornando um grande estorvo para nós, patrões, e para os demais colegas de trabalho.
As reclamações eram constantes porque, infelizmente, era um chato em potencial: daqueles que cutucam as pessoas enquanto falam; que contam tudo, tim-tim por tim-tim, e ainda conseguem explicar os detalhes; que chegam sempre na hora errada e só deixam você falar nos segundos em que têm de engolir a saliva. Não dava qualquer atenção a quem o repreendesse: era como se não fosse com ele. Em três dias de trabalho já entrava na cozinha, servia-se de café e me puxava pelo braço como se eu fosse um de seus filhos.
Enquanto todos reclamavam, minha esposa pedia paciência, alegando que ele era um pobre sofredor que nunca tivera a oportunidade de receber qualquer tipo de educação.
Não obstante os nobres princípios apregoados e sugeridos por minha esposa, o Amilton continuava sendo olhado de través por todos nós. Minha filha Drielly, de apenas dez anos, não assimilava os gritos deseducados, os repelões inoportunos e as brincadeiras rudes e quase atrevidas do Amilton. Mal ele se retirava empurrando o carrinho, minha filha interpelava:
– Mãe, a senhora tem de dar um jeito no Amilton!
Minha esposa já estava para desistir de sua proteção cristã quando, na missa do domingo seguinte, o padre Felinto lembrou Marcos 10, 42-44: “Sabeis que entre as nações quem tem poder manda, e os grandes dominam sobre elas. Assim, porém, não há de ser entre vós; ao contrário, se alguém de vós quiser ser grande, seja vosso servidor, e quem dentre vós quiser ser o primeiro, seja escravo de todos”.
– Ouviu o que disse o Evangelho? – sussurrou ela aos ouvidos de minha filha que estava com ela, lembrando-a da falta de paciência que sempre demonstrava com o Amilton.
–É, defendeu-se minha filha, o “Evangelho” diz isso porque não conheceu o Amilton!

CAPIXABAS CAÇANDO NA BAHIA
Argeu é o nome de um dos meus primos que, hoje, já cansado, desfruta a velhice na paz de seu bangalô, na praia de Iriri – ES. Alto, forte, trabalhador e intempestivo, é o responsável por uma grande quantidade de belas construções que ainda hoje se mostram imponentes na cidade de Linhares – ES. Além de construtor, ele era maluco por caçadas de paca. Possuía uma matilha esganiçada que espantava vizinhos, pois eram tantos uivos e latidos durante as noites, que ninguém ousava instalar-se a um quilômetro de sua casa. Era também caçador de perdizes e, neste esporte nunca houve quem a ele se igualasse. Nem a pedido ele perdoava uma perdiz depois de levantada pelos seus perdigueiros.
O provérbio diz que “gado ruim por si se junta” e foi assim que ele formou um grupo de caçadores que sempre se reunia num boteco qualquer da cidade para contar “mentiras” e programar excursões. E como num grupo de homens desocupados reunidos sempre mulher acaba sendo o assunto preferido, alguém teve a triste ideia de marcar uma caçada na Bahia, levando prostitutas para as farras noturnas. A ideia foi aprovada unanimemente: aprovada e executada em menos de 15 dias. Nas primeiras vezes foi fácil enganar as esposas, sempre simples mulheres criadas no interior. Enquanto eles se divertiam por lá, as pobres e ingênuas esposas ficavam de terço na mão, rogando aos céus para que nada lhes acontecesse naquele ambiente hostil de cobras e insetos peçonhentos.
Quando retornavam eram recebidos com todo carinho: banho quente, comida especial, roupa de cama limpinha… Diante de tanta ingenuidade, logo eles escolheram uma fazenda estratégica na Bahia. Convenceram o capataz e até conseguiram um barraco só para eles, com sete cubículos especiais para suas luas de mel, agora, mensais.
Para compensar a hospitalidade do gerente, eles sempre levavam, também para ele, uma mulher de programa. Com tal regalia, o capataz, logo que o mensageiro avisou que eles estavam para chegar, foi ao povoado de Santa Maria Eterna e comprou um “novo enxoval”.
Enquanto isso, ingenuamente, por pura intuição… ou sugestão do diabo… ou intercessão dos anjos, faltando apenas três dias para a saída dos “caçadores de paca”, as mulheres deles resolveram acompanhá-los. Devia ser um lugar maravilhoso – pensavam elas – já que seus maridos estavam tão ansiosos para partir.
Diante do imprevisto, o meu primo Argeu ficou em apuros. Depois de tentar em vão demover sua mulher daquela ideia inesperada, começou a contatar os companheiros que, por sua vez, também estavam com o mesmo problema. Bem, não tendo jeito mesmo, eles, sorrateiramente, avisaram às “outras mulheres” do ocorrido e assumiram o mico. Partiram com suas digníssimas mesmo, totalmente desorientados e… desmotivados.
Ainda a quinhentos metros da sede da fazenda, eles, devidamente acompanhados de suas legítimas esposas, avistaram o capataz num verdadeiro uniforme de cowboy: calça jeans, camisa listrada de mangas compridas, correia com fivelões de metal, chapéu de couro, botas brilhando ao sol.
Ele veio correndo, abriu a cancela e já engolindo grosso, começou a conjeturar como seria a mulher que eles lhe haviam trazido. Argeu e sua turma entraram no terreiro e foram saltando, procurando um meio de despistar as mulheres e avisar o capataz do contratempo. Mas, para a infelicidade do Argeu, as legítimas esposas não tiravam os olhos daquele homem ridiculamente vestido, lá naquele cafundó do judas. E foi aí que o mico se consumou: o capataz enclavinhou a mão no queixo, passou em revista aquelas pobres mães desmazeladas, barrigudas e sofridas da viagem, e pronunciou a frase mais infeliz de sua vida… e da vida dos “caçadores de paca”:
– Putaquepariu, seu Argeu, desta vez o senhor trouxe uma putada runha que acho que não vai dá pra encará não.
Foi a última caçada de pacas que eles deram lá em Santa Maria Eterna. É…, bem dizia meu pai: “Quem muito faz, um dia cai.” Nem descarregaram as camionetas e, aí sim, durante meses, para suprir as necessidades sexuais, tiveram de procurar socorro nos prostíbulos do Pó, lugar promíscuo em que as serrarias de Linhares jogavam a serragem e que era habitado, principalmente, pelas tais “mulheres da vida”.

DENTRO DE CINCO MINUTOS, VOU SENTÁ O PAU
Quinze anos depois de fundada, Marilândia-ES inaugurou seu primeiro cinema: o CINE KID. O nome procedia, porque, enquanto existiu, nunca passou na tela um filme que não fosse faroeste. A bem da verdade, tentou-se algumas vezes Charles Chaplin, “Carlitos” e Oliver Hardy e Stan Laurel, “O gordo e o magro”. Mas, aqueles cowboys em seus cavalos, enfrentando os terríveis Peles Vermelhas lá no Mississipi, disparando mil tiros com o mesmo Colt sem recarregar, eram imbatíveis… nas cenas e na bilheteria. A qualidade nada devia às sombras chinesas projetadas sobre uma parede, cinco mil anos antes de Cristo.
Nós, crianças, já reconhecíamos a palavra western de cor e sauté. E se fosse John Wayne o xerife, aí até os agricultores montanheses de São Rafael, com seus sapatões descalcanhados, davam uma trégua à capina do café.
Era proprietário do cinema o comerciante Hilário Bérgami. Com dois metros de altura e pesando 170 quilos bem distribuídos, ele podia ser reconhecido rapidamente em qualquer ambiente. Sua força era descomunal. Certa feita, depois de vãs tentativas de oito passageiros, ele ergueu, sozinho, um dos lados da parte traseira de uma D-10 que havia caído no buraco de uma ponte.
O cinema dele só passava filmes aos sábados e domingos. Aos domingos havia a matinê para crianças. Os ingressos custavam menos e o grandalhão proprietário aceitava frangos, ovos, jacas… qualquer coisa que representasse o valor do ingresso. O cinema lotava.
Mesmo sem estudos, era ele o locutor do serviço de som. Grudado num microfone que pesava quase dois quilos, ele sentava na calçada do cinema e transmitia as notícias através de um enorme alto-falante pendurado no poste da esquina. A gente ficava por ali, na frente de sua sorveteria, lambendo picolés de groselha ou de coco: suas duas especialidades. De repente se ouvia o tão esperado anúncio:
– Senhoras e senhores, queira adquiri seus ingresso que dentro de cinco minuto eu vou sentá o pau.
E aí era aquela correria, pois o Hilário era pontual. Tanto que anunciava e já se ia levantando para acionar a máquina. Numa noite, por causa da pressa, no caminho, ele pisou no pé do Eurides Canal, um baixinho garganteiro que também se espremia na fila para conseguir – como se fosse uma criança – uma cadeira bem na frente. Como só andava de lambretas – nome com que eram chamadas as sandálias de dedo naquela região – as unhas agredidas no labor da roça estavam avariadas e desprotegidas. O sapatão do Hilário, mais os 170 quilos de seu peso normal, mais a pressão do impulso para o passo seguinte, acabou “escalpando” o dedão do pé do Eurides. Sem se importar com a diferença física, ele reagiu furibundo:
– Não dá pra olhar onde mete o casco não?
– Ô, Canal!, mi desculpe. Eu tava com pressa para começá o filme e não vi seu pé.
Animado com o aparente retraimento do gigante, o baixinho tentou se impor. Afinal, não é sempre que se tem a oportunidade de encontrar um grandalhão educado e manso. Por isso, pulando pra cima da calçada, o baixinho começou a vociferar insultos, chamando a atenção de meio-mundo. O povo acercou-se curioso diante daquela cena espalhafatosa e patética.
Mas o baixinho deu azar, porque o Hilário, aos poucos, foi perdendo a paciência. Não percebendo que já passara da hora de cessar seu entusiasmo, o Eurides continuava ameaçador, dizendo que tamanho não era documento e que conhecia bem a passagem bíblica de Davi e Golias. A paciência minguada do Bérgami esgotou-se por completo. Reagiu contundente:
– Olha aqui, garnisé metido a besta, home de seu tipo eu enfio três no cu e ainda peido forgado.
O silêncio foi tumular. Só o chiado do alto-falante regulado sempre no volume máximo, lá pendurado no poste, era ouvido. Diante de tamanha humilhação, o Canalzinho resolveu arriscar sua última cartada. Riscou o pé no chão e fez menção de atacar: levou um mata-cobras na cabeça, dado de cima para baixo, que o encurtou mais alguns centímetros. Nocauteado, ele foi levado para dentro do bar, onde recuperou os sentidos depois de alguns litros de água fria no rosto.
O Bérgami, bufando como um touro peado, nem olhou para trás. Entrou no cinema, subiu a escada, ligou a máquina e, como havia prometido, “sentou o pau”.

VÍCIO É VÍCIO
Há 30 anos, o marido de minha irmã mais velha era meu companheiro inseparável nas caçadas e pescarias. Só Deus sabe quanto aprontamos para manter o vício! Nessa época ele era forte como um touro e mais cheio de manias do que uma atriz temperamental. A mais interessante delas era meter o facão em tudo o que estivesse próximo. Um dia perguntei-lhe:
– Por que corta tudo o que vê por perto?
Ele não soube responder. Disse que nunca havia percebido isto, ainda que o mundo todo já o soubesse.
Em setembro de 1970 conseguimos permissão de um fazendeiro baiano para caçar nas matas dele. A fazenda, com mais de cinco mil alqueires, quase todos em matas, ficava na Bahia, bem próximo de Porto Seguro. O diabo é que na Bahia o tempo é sempre imprevisível: na mesma hora em que o sol brilha prometendo um lindo dia, o horizonte escurece e um verdadeiro temporal se abate. Não bastasse, os ventos frios vindos do sul também costumam estragar o prazer de qualquer aficionado pela cinegética.
Bem, todo o preâmbulo é para dizer que chegamos ao local, às 16h, debaixo de uma garoa fria: daquelas que desanimam qualquer caçador não dependente. Para nós, no entanto, aquilo era apenas um pequeno imprevisto para valorizar o esporte.
Enrolamos o que pudemos em plásticos e entramos pela mata. Era norma: nada de descampado. Caçador que se preza tem de ficar dentro da floresta, sujeito a receber um pau na cabeça.
Como a claridade, enfraquecida pela presença de densas nuvens, esmaecesse rapidamente, o primeiro brejo que encontramos foi escolhido como ideal para o barraco: a presença de água é fundamental nas caçadas. Jogamos as tralhas nos monturos menos encharcados do brejo e, quando a noite caiu de vez, já estávamos sob um grande encerado, protegidos da chuva. Afinal, para caçar valia qualquer sacrifício.
Aquele que conseguiu uma modorra deu-se por satisfeito. O frio e os mosquitos deram-nos, mais uma vez, mostras do que sofrem os condenados ao inferno. Mas, como tudo, também a terrível noite passou. Logo cedo, todos os caçadores se arrumaram e tomaram uma direção.
Ao meio-dia, meu cunhado Vicente retornou, dizendo que havia encontrado uma linha de energia elétrica abandonada, ainda com os fios de alumínio, com cabo de aço no centro, espalhados pela clareira. Segredou-me:
– Você conhece a mania do Arlindo, não conhece? Pois bem, na minha picada, arrastei um fio de alta tensão bem em cima de um toco de cabiúna. Vou dizer a ele que piaram dois macucos lá. Você vai ver: quando passar pelo fio ele vai estragar o facão Corneta dele. Você acha que ele vai deixar de dar uma boa “facãozada” no fio?
Laconicamente, respondi: “Juro que não!” Afinal, aquele mau costume era mais velho que pé de serra.
À noite ele falou com o Arlindo sobre os macucos, reforçando o embuste com a afirmativa de que uma fêmea estava chororocando. Para os leigos devo esclarecer que, quando uma macuca chororoca, sempre atende o piado do macho, mesmo porque uma lei natural a obriga: aquela que trata da preservação da espécie.
No dia seguinte, já mais ciente do tipo de mata e da presença de inhambus que possuía, cada um saiu cedo, com a intenção de passar o dia todo na mata.
Ainda era dia quando retornei. O Vicente estava enxugando a espingarda, e os demais, todos ocupados em secar pios e cartuchos e arrumar as tralhas para o dia seguinte.
A noite caiu de vez. Estávamos jantando, sentados em cima de varões, cada um contando como fora seu dia, quando uma lanterna piscou no mato. Era o Arlindo, o último a chegar. Vicente e eu nem mais lembrávamos da trama, mas ele, mesmo a 20 metros da chegada, gritou enfarruscado:
– Escutem, alguém trouxe lima de amolar facão?
– Lima? – perguntamos em coro.
– É, lima, porra! Acabei com o meu facão Corneta de estimação.
Ele tinha achado o fio arrumado pelo Vicente em cima do toco de cabiúna.

O CANTINEIRO
Bem perto de Nova Vida-MA, há uma estrada que leva à Fazenda Amazônia, comumente tida como “Terras da SAMBRA”. Há muitos anos tomava conta lá um português: pagamento tardio dos lusitanos, que tanta escória nos enviaram no tempo da colonização. Este era um homem correto, honesto: um homem com H maiúsculo, como se costuma dizer.
Todos sabem que numa fazenda que se preza há muitas coisas indispensáveis: gado de raça, bons reprodutores, montarias adequadas…
A SAMBRA possuía dez mil alqueires de mata que, nessa época, por causa de ultrapassada e estúpida lei do país, estavam sendo destruídos para a formação de pastarias a fim de assegurar o direito de posse do latifúndio.
Foi nessa época que a firma importou o Cantineiro, um jegue reprodutor famoso que, talvez, nem os egípcios tenham tido similar. Os peões da fazenda, que sabiam da chegada do garanhão, ficaram extremamente frustrados ao ver descer da gaiola, um asno de aparência estúpida, cabisbaixo, raquítico e abatido pela viagem. E a saber que teria a incumbência de cobrir centenas de éguas fogosas que andavam saltitando pela recente pastaria!
– Este aí não aguenta nem a mula veia lá do Jacó das Antas – foi logo observando, cheio de malícia, um mulato sarará.
O jegue foi colocado num curral apropriado e tratado com certo desvelo. Depois de apenas duas semanas de adaptação e descanso foram-lhe levadas algumas éguas… depois, mais algumas… depois outras e todas foram cobertas com a mesma sofreguidão da primeira. A fama de IMPORTADO que a incredulidade dos caboclos da fazenda parecia querer derrubar, logo foi reconquistada.
Com o tempo, as mangas ficaram cheias de burrinhos, que cresciam belos e fortes. O pai estava lá, sempre cabisbaixo e aparentemente apático. Nunca uma aparência enganou tanto! Quem olhava aquela figura esquálida, não acreditava no potencial que resumia.
Um dia, porém, certamente indisposto ou doente, ele não ligou para uma égua que lhe fora apresentada: não precisou mais que isso para que o Português (era assim conhecido o Sr. José Manoel) chegasse à dura e, pela primeira vez, injusta conclusão de que o jegue era bananeira que já havia dado cacho. Além de suprimir suas mordomias, ainda o relegou ao humilhante serviço de carregar marmitas para os derrubadores de mata. Daí veio-lhe a alcunha de Cantineiro. Caído em desgraça, ele foi levado para uma pequena e abandonada manga. Só saía de lá na hora do almoço, quando, sob o peso de duas enormes quiçambas cheias de marmitas e carotes d’água, desfazia 10 quilômetros de estrada.
Mais gordo, passos trôpegos, cabisbaixo em sinal de protesto… lá ia ele todos os dias para o trabalho rotineiro. Afinal, viera da África para “trabalhar” e não era justo que negasse fogo. Mas, deixa que o tempo é sempre o melhor veredicto de um fato com duas versões. E o Cantineiro, cabisbaixo, pastando o capim peco de uma estiagem danada, ia passando os dias aparentemente resignado, esperando o momento propício para provar que o Português estava errado.
Era lá umas dez horas mais ou menos – e ele sabia – por instinto, que o encarregado de pegá-lo para jogar-lhe o jugo de uma centena de marmitas às costas estava pra chegar. Por isso, quando ouviu o ranger da velha porteira, nem ergueu a cabeça para constatar aquilo que, para ele, seria o óbvio.
Mas o tempo foi passando e o Cantineiro, em seu apurado instinto, “pensou” que o encarregado já devia estar com o cabresto sobre suas orelhas. Foi aí que resolveu examinar, levantando a cabeça para entender o motivo da demora. Viu então a porteira escancarada e, já dentro de sua área privada, um potro roliço.
Depois de tanto tempo naquele celibato forçado, desacreditado e humilhado, o Cantineiro virou os olhos nas próprias órbitas e, como visionário que delira de sede no deserto, viu no poldro distraído, uma linda égua fogosa. Um frio esquisito perpassou-lhe a espinha. Ergueu-se, arrepiou-se, relinchou, “sacou da arma” e partiu em desenfreada carreira para suprir a defasagem.
O cavalo pastava calmamente. Não imaginava que aquele velho asno ainda se desse à devassidão de tal promiscuidade. O Cantineiro veio e, como veio saltou em cima, disposto a desfazer a injustiça impingida pelo capataz da fazenda.
Percebendo as intenções obscenas do anfitrião, o poldro procurou dar no pé, na certeza de que sua juventude o livraria facilmente daquele afoito, velho e tarado jumento. Como estava enganado!
Saltando cerca, quebrando tronqueiras, atropelando peões que tentavam obstar-lhe o caminho e a intenção, o Cantineiro foi perseguindo o poldro.
Já ofegante e quase pronto a entregar-se à difamatória comprovação, o cavalinho tentou seu último recurso: saltou para dentro da sala de aula em que a professora, por acaso, falava da força incontrolável dos bichos por ocasião do cio. Explicava também que os irracionais eram mais sensatos, que só procuravam as fêmeas no tempo da reprodução; que o homem era o único ser criado por Deus que burlava as leis naturais…
Exatamente nesta hora e nesta aula, o Cantineiro injustiçado se atracou com o cavalo, bem na frente do quadro negro, dos alunos, da professora e da responsável pela merenda. Um peão tentou evitar o estupro, mas não conseguiu.
O Português, que já havia sido avisado em seu escritório, chegou incontinenti. Verificou os estragos, as difamações, o desrespeito à moral e aos costumes e, sem aceitar o irrefutável argumento de que o Cantineiro havia sido aposentado antes da hora, desabafou furioso:
– Agarrem este tarado e desapareçam com ele. Não quero mais ver esta praga por aqui.
E, horas depois, passos lentos, cabeça baixa, dócil e submisso ao cabresto do Zé das Éguas, lá foi o Cantineiro para outra fazenda. Foi satisfeito. Afinal, não se fere a reputação de um jumento egípcio. O troco estava dado.

O MARIMBONDO TUCANO
Todos aqueles que têm irmãs sabem que, dia menos dia, algum malandro ronda o terreiro. Se a irmã tiver os olhos azuis, cabelos dourados que brilham ao sol, seja inteligente e ainda cante muito bem, aí é o caos: já não é apenas um malandro que rondará, mas um verdadeiro exército deles. E eu tinha uma irmã assim. O tempo e os filhos já a desgastaram, mas não precisa ser perito no assunto para imaginar o que ela foi no passado.
Entre os “malandros” havia um muito determinado, tanto que acabou transformando-a na mãe de seus filhos. Antes, porém, ele comeu o pão que o diabo amassou porque, naquele tempo, lá na colônia italiana, conquistar apenas a moça não dava o direito de casar. O mais importante, mais difícil e imprescindível era cair nas graças do velho. E meu pai era ranzinza, exigente, calculista… Até o time de sua simpatia tinha de bater, sem falar em outras opiniões dele.
Trabalhador. Ah, disto o velho não abria mão! Haveria de ser trabalhador, conservar os cabelos cortados e não usar tatuagens. Brincos? Nem pensar. Se aparecesse algum candidato com eles, era descartado na primeira entrevista. Nem direito a um cafezinho este tinha.
E o Vicente aceitou o desafio, adivinhando e tentando realizar todos os desejos de meu velho pai. Lembro bem sua última e derradeira investida. Embora fosse dentista prático numa cidade distante, abandonou a profissão e veio trabalhar no ramo de madeira com a gente. É…, podem até não acreditar, mas minha irmã era digna de qualquer sacrifício. E o Vicente chegou disposto a conquistar toda a família, trabalhando diuturnamente e não escolhendo serviço.
Com o tempo logo aprendeu a ser gozador como nós. Infelizmente, esquecendo-se da norma de que, em toda regra há exceção, num dia quente, com o sol a pino, ele resolveu acompanhar meu pai (seu futuro sogro) a um roçado que havíamos comprado lá na cidade de Linhares – ES. O que ele ainda não havia assimilado é que meu pai nasceu e morreu detestando piadinhas ou qualquer tipo de brincadeira. Em toda minha vida só o vi dar risadas duas vezes e, assim mesmo, envergonhando-se em seguida. Para ele as brincadeiras eram sinais de irresponsabilidade e de falta de respeito, e dar risadas, então, só aos idiotas admitia esse direito.
Nesse dia – como meu futuro cunhado quisesse conquistar o meu velho de vez – foi logo apanhando uma das estrovengas e golpeando a capoeira densa e espinhosa. Meu pai, já bem idoso e cansado de mandracas, determinou:
– Você vai roçando deste lado, que irei começar um eito do outro. Quando nos encontrarmos já estará bom por hoje.
Assim foi feito.
Em menos de uma hora, o perseguidor implacável de minha irmã olhou para o eito à frente e notou que o velho estava de cócoras, com as mãos nas têmporas, demonstrando algum mal-estar. Acorreu prontamente:
– Que aconteceu, senhor Antônio? Está passando mal?
Meu velho ergueu a cabeça e nem precisou dizer muita coisa. Parecia ter colado um tomate maduro na ponta do nariz, que já não era pequeno. Um marimbondo-tatu, da espécie que faz a colmeia agarrada nos troncos das árvores como as taciremas, ao ser incomodado com o barulho e as foiçadas do velho, achou por bem avisar que ali a bandeira territorial já estava fincada. E meu pai, para a desdita de meu futuro cunhado, resolveu valorizar o sofrimento, perguntando:
– Como se chama aquele marimbondo deste tamanho (e aí ele afastou as mãos demais, talvez 30 cm) e que tem um ferrão amarelo assim (e aí ele diminuiu um pouco, talvez uns 10 cm), que é preto e faz a casa nos troncos das árvores?
E o nosso pretendente, que nesse tempo, de tanto ser gozado por nós, já aprendera quase tudo, desferiu com total infelicidade:
– Tucano, seu Antônio. Marimbondo tucano.
Entendendo o chiste de mau gosto, meu pai que detestava brincadeiras, fulminou-o com um olhar de reprovação, levantou-se, colocou a estrovenga nas costas e voltou para casa. O Vicente veio um pouco mais atrás e foram improfícuas as tentativas de retomar o diálogo. A bem da verdade, meses foram levados até que ele pudesse ter certeza que ainda havia esperança de conquistar a loira de olhos azuis cujos cabelos reluziam ao sol. Mas conseguiu.
Obs.: mandraca, na região, é sinônimo de azar, moléstias; tacirema, o nome de uma formiguinha preta, fedorenta e agressiva que vive nas árvores, e estrovenga, uma foice de dois gumes que os imigrantes italianos estavam trocando pela tradicional foice, ao roçar capoeirões.

NÃO SEI COMO, MAS SOBREVIVEMOS!
Não acredito que Osama Bin Laden tenha passado maior perigo na vida, fugindo dos bombardeios americanos no Afeganistão, do que nós ao tentarmos desfazer os três mil quilômetros de estradas de chão que, há 50 anos, separavam Goiânia-GO, de Rondônia-RO, numa Kombi caindo os pedaços. Apenas o motor mandamos retificar. O resto ficou como estava. A lataria apenas dificultava ao vento expelir a poeira que as rodas jogavam para dentro. As borrachas de vedação, quando existiam, não serviam para nada. Mesmo assim, oito loucos resolveram entrar naquela “coisa” e sair de Marilândia-ES, para ir caçar macucos em Rondônia – RO.
Nesse tempo, até Goiânia havia muito asfalto. Daí para a frente, o “bicho pegou”. Estrada horrível, cheia de areia e costeletas e, na ausência destas, palmos de puaca que a Kombi, como galinha ciscadeira, jogava pra dentro de si com invejável maestria. Já no segundo dia só nos reconhecíamos após o banho. A boca da italianada foi logo ressecando e rachando toda, e pelos olhos vermelhos e irritados, qualquer maconheiro inveterado assinaria embaixo.
Tudo isso não representava, senão, sacrifício. O pior foi o perigo por que passamos, já que não havia no veículo um único motorista que tivesse qualquer prática com aquele tipo de furreca retirado da sucata. Levava minutos para, em estrada plana, atingir 80 km e, para parar, só com a ajuda dos atritos da areia e do vento. O freio, para pouco nos adiantava. Mas, todos os integrantes possuíam carteira, já naquele tempo compradas de um despachante mancomunado com funcionários corruptos do DETRAN de Colatina-ES.
Na partida saímos com o saudoso mano Ildebrando ao volante. Ele era considerado o pior de todos, mas sustentava, com orgulho, a sorte de nunca haver atropelado nenhuma criança nem descido ribanceiras. Animais atropelados, perdeu a conta. Ameaças e multas, centenas. Os demais não tinham essa recomendação curricular. O certo é que, com ele ao volante, nem pensar em dormir. Todos atentos, olhos na estrada, garganta afiada a cada curva ou ultrapassagem: “Cuidado! Olha a curva! Acho que não vai dar! Freie, pelo amor de Deus!”
De repente, quando conseguiu a proeza de atingir os 80 km, o inesperado: um trevo que nem nós, seus fiéis vigilantes, cujos olhos alcançavam um zoom de águia jovem, percebemos. Foi um tal de Nossa Senhora, freie, jogue pra direita, segura o volante firme…, que nem um computador dos mais modernos seria capaz de decantar a melhor opção. E aí foi como pôde. A Kombi pulou por cima do canteiro, atingiu a contramão e foi parar atravessada no meio da pista contrária. Meu cunhado, sempre espirituoso, embora gaguejando, pilheriou:
– A curva foi tão violenta que cheguei ver a placa traseira da Kombi!
Tomamos-lhe o volante. Esperamos uma meia-hora até a última hemácia abandonar o refúgio do sangue medroso e previdente e resolvemos logo correr o risco que restava: entregar o volante a meu cunhado, completamente corredor e inconsequente. A esta altura a italianada já estava com os narizes vermelhos de costume. O metabolismo se regenerara. Meu cunhado Arlindo entrou na boleia, tomou posição, acelerou fundo para ver se o motor estava em dia, engatou uma segunda e partiu relinchando os pneus, quase nos deslocando a cervical. Alguns se benzeram; outros acharam que ainda era cedo para incomodar os santos.
E lá fomos nós, agora por péssima estrada de chão. A Kombi ia devagar e, assim, os riscos de acidentes diminuíam. Mais à frente, um caminhão que, por certo, não era de propriedade de quem o dirigia. Andando forte, levantava tanta poeira que, mesmo distante dele 50 metros, não podíamos ver a estrada com precisão. Era necessário se livrar daquele incômodo. E se Deus é grande, diz o ditado, o diabo não é pequeno.
E o diabo assoprou uma rajada de vento lateral que limpou a estrada, mostrando que, logo à frente, havia uma descida íngreme.
– Vai ser lá – disse ameaçador o meu cunhado. Irei ultrapassá-lo naquela descida.
Acelerou quanto pôde e quando já estava no vácuo do caminhão, o diabo parou de assoprar e a poeira voltou para a estrada cobrindo tudo. Era como se estivéssemos mergulhando num espaço escuro e de olhos vendados. Em poucos segundos sentimos solavancos, impulsões, sacolejos, bordoadas de todo tipo, companheiros levitando como se estivessem numa nave espacial e (como não poderia faltar num bando de italianos em dificuldades) gritos de “Maria Vérgena” ecoando para todo lado.
Nesse momento, já havíamos cortado o estado de Minas Gerais, entrado no de Mato Grosso e, agora, perdido o rumo. Depois de entrar pelo campo como se fosse um aríete abrindo caminho em tudo o que os sertões mato-grossenses contêm, escorraçando perdizes, jacus, corujas, veados, seriemas, emas…, a Kombi parou.
Novamente o sangue que já conhecia o caminho, num prévio aviso da supra-renal, retornou aos órgãos centrais em sinal de defesa. Mas, aos narizes sempre vermelhos da italianada, a última hemácia só retornou depois de dois dias, que foi o tempo que levamos para arranjar socorro, transportar a Kombi para uma oficina quebra-galho e recomeçar o rali. A partir daí, o mano e meu cunhado só tiveram consentimento de entrar na Kombi pela porta dos fundos.
Enfim, nessa Kombi, fomos a Rondônia, caçamos e, não sei como, estou aqui para contar a história. O retorno levou uma semana. Quando as oficinas eram próximas, conseguíamos chegar nelas sem empurrar a maldita condução. Na verdade, mais nós a levamos do que ela a nós.

TÔ MORTO!
Vicente é o nome de meu cunhado que hoje vive na cidade de Uberlândia/MG. É pai de dois filhos e pretendente a uma vaga no Guiness Book por ter sido o homem que mais sofreu cirurgias neste planeta. Só que me lembre, 14, ora na coluna, hipófise, hemorroidas, lipomas cancerígenos…, sem contar as malárias, tifo, icterícia e paralisações temporárias que o prostram, até hoje, por meses na cama. Esses mal-estares ele desconsidera. Sobreviveu a tudo isso e ainda mantém o espírito brincalhão e observador de um jovem de bem com a vida. As tiradas dele, nos momentos mais cruciais e inesperados, são proverbiais.
Desde criança ele perseguia minha irmã caçula, mas só conseguiu seu intento depois de 12 anos de buquês, serenatas e muitos calos nas mãos. Mas, segundo minha irmã, ele não a convenceu e sim a venceu pelo cansaço. “Já não suportava mais, em plena madrugada, aquela péssima interpretação de “O Ébrio”, de Vicente Celestino!” Enfim, casou-se com ela, passando a morar em (Linhares-ES) e a trabalhar com a gente no serviço de carreto de madeiras em toros. Isso foi há mais de 50 anos, quando Linhares era uma cidadezinha inexpressiva encravada na imensidão de selva atlântica que havia no município.
Lá, nesse tempo, só moravam aqueles heróis cujos fígados resistiam a uma malária por mês. No entanto, ninguém falava de febre amarela ou dengue. Apenas o Falciparum e o Vivax reinavam absolutos. O tempo foi passando, passando e também o Aedes Aegypty começou a ser comentado por lá. Para nós, era um pernilongo carijozinho que pousava de ponta-cabeça e se picasse, transmitia a mortal febre amarela.
Bem, nós, apesar de pobres, vivíamos intensamente. Possuíamos um Ford-de-bigode e uma Mercedes-cara-chata e, com aquelas duas fubicas, todo fim de semana saíamos para algum lugar. Caçadas, futebol, pescarias, convescotes…, alguma coisa sempre inventávamos a fim de aproveitar o pouco que havia de diversão.
Nesse dia, marcamos uma pescaria de tucunarés (peixes trazidos da Amazônia por um inadvertido qualquer e que dizimaram as espécies autóctones de toda a região. Hoje, lá, só se pega magruços tucunarés mutilados. É que o desavisado soltou também, dois anos depois, as vorazes piranhas).
Nossas diversões – nem sei se podiam ser assim chamadas – eram mais estafantes do que qualquer dia de sol batendo catracas para elevar os toros sobre o estrado do caminhão. Às quatro horas já estávamos de pé, redinha de pegar piavas enroladas nos paus de arrasto manual, rumando para as cabeceiras do Bananal: um dos poucos riachos cujos peixes miúdos ainda sobreviviam aos famigerados tucunarés.
Às nove horas já estávamos com nossos isopores cheios de piavas, acarás, camarões, mandis e moreias, procurando um lugar promissor na margem da Lagoa do Meio. Esta lagoa distava 15 quilômetros de Linhares e suas margens ainda mantinham a vegetação natural: lindas árvores cujos galhos, como cabelos bem cuidados, inclinavam-se sobre suas águas límpidas.
Eu, como achasse um bom murundu para assentar-me, fiquei por ali mesmo; meu cunhado Vicente, seguindo uns 50 metros, subiu numa árvore inclinada e também se alojou. Os demais espalharam-se por toda a extensão. Em pouco tempo, os urras de êxito e os palavrões de frustração intercalavam-se. A mosquitada parecia mais faminta do que em outras vezes. Apesar das partes desnudas estarem encharcadas de óleo diesel ou mesmo de outros repelentes mais adequados, os milhares de pernilongos não respeitavam. E foi aí que, depois de uns 15 minutos de silêncio, o Vicente, lá de cima de sua árvore, gritou:
– Hei, o mosquito que transmite a febre amarela é um carijozinho, todo malhadinho como um dominó e que pousa na gente como se fosse um fincão de madeira?
– Esse mesmo – respondi laconicamente – reconhecendo o vocabulário tão nosso naquele tempo.
E ele, sem delongas, enquanto recolhia a linha para sair de lá, arrematou desesperado e conciso:
– TÔ MORTO!

A MANIA DO AGENOR
O entretenimento dos imigrantes italianos mais idosos dividia-se entre: caçadas de pacas e veados, moretina, canções folclóricas como Oi Bionda, Oi Bela Bionda, Ninna Nanna, La Violeta, Bevé, Bevé compare, Giovenezza, Moretina Bela, Tchao e tantas outras improvisadas e, principalmente, jogo de bocha. Os fins de semana na vila de Marilândia ficavam minados de italianos que se agrupavam dando vazão à saudade peninsular e às tradições da velha Itália.
Perto de nossa casa morava um caboclo brasileiro que, além de “uma porta de vendas”, possuía um campo de bocha, onde todas as noites, e principalmente nos fins de semana, os velhos imigrantes reuniam-se animadamente.
A algazarra psitacídea, própria daqueles que se deleitam em ouvir o próprio eco, não era fácil! Meu velho pai, já com seus sessenta e poucos anos, era assíduo frequentador daquele local. Se na passagem de nossa casa até a cabana do Lucindo fosse armado um mundéu, ele não passaria incólume por mais de duas horas.
Um dia, vindo eu de um treino de futebol, mesmo longe do campo de bocha, ouvi a matraqueada: eram gargalhadas, altos protestos, observações maliciosas, gritos de “russa esta” “russa o bolim”, discussões acirradas sobre de quem era o ponto… que só mesmo o bom vinho de laranja podia explicar.
Ali eles disputavam frangos assados, vinhos, assados de porco e até mesmo dinheiro. Havia representantes de todas as freguesias adjacentes como Santo Hilário, Alto da Liberdade, Limoeiro, Seis Horas. Córrego do Veado, São Pedro de Marilândia, São Rafael, Távora etc. Ao passar em frente, logo concluí que meu pai estava lá no meio daquela balbúrdia, mas ao chegar em casa, fiquei deveras surpreso ao perceber que ele se encontrava numa cadeira, na varanda dos fundos. Enquanto descalçava as chuteiras, observei:
– Que houve, Tunico, não entrou na disputa?
– Não. Estou com um desgraçado de um furúnculo aqui na costela que está me maltratando como o diabo.
– Bobagem, a dor é uma reação psíquica controlável. Vai lá, jogue, distraia-se e nem se lembrará dele.
– Isto é filosofia de quem está bom, mas AFINAL… (este afinal, com o L bem acentuado, era uma aceitação sob protesto: característica de meu velho pai). Ele jamais acreditava no que lhe diziam e que não fosse comprovado com as regras da realidade da vida, mas como a vontade de ir era muito grande, abriu aquela exceção.
Contíguo à nossa casa, morava o Agenor Gava. Homem disposto, brincalhão e que se tornara muito inconveniente pelo cacoete de conversar dando cotoveladas no interlocutor, a cada frase que dizia. Meu pai detestava isso e sempre o evitava para não se aborrecer. Lembro ainda o dia em que o encontrei extremamente irritado: “Quel sacramento (dizia ele em seu sotaque peculiar), me roxeou o braço para narrar a caçada de pacas. Que costume desgraçado que pegou! Já não suporto conversar com ele mais por causa deste maldito costume, e parece que sou sempre o preferido. Não pode me ver que vem lá me cutucar”.
Em nossa casa, sempre foi costume jantar cedo. Por isso, após o banho, ainda com a toalha no pescoço, estava eu a equilibrar um prato fundo de polenta com leite, quando percebi que meu velho entrou, dentes cerrados, testa franzida. Veio, sentou-se recurvado para a frente, mãos nas costelas, respiração ofegante. Incontinenti, deixei o prato sobre a mesa e acorri:
– Que houve pai? Está se sentindo mal? Quer que chame o doutor Joel?
– Não precisa chamar ninguém.
– Mas o que está sentindo então?
– Ódio, muito ódio.
– Por quê? De quem?
– O Agenor – disse laconicamente. Há anos que o conheço e evito, mas bastou-me um segundo de distração e pronto! E que pontaria, que pontaria, filho! Acho até que arrancou o carnegão. Uuuuui! Aiiiiii!…

O DIA EM QUE MINHA MÃE TENTOU MATAR MEU PAI
Meu pai foi caçador; meus irmãos foram caçadores; eu fui caçador: o mais fanático de todos. Não faz muito tempo que, envergonhado, joguei no lixo os tristes troféus que consegui em minhas andanças pelo País.
Um dia, meu mano mais velho, numa de suas caçadas, achou, numa sapopemba de jindiba, seis lindos ovos de uma macuca. Trouxe-os e os presenteou a meu pai. Postos sob uma galinha choca, onze dias depois nasceram, dando sinais incontestáveis de que estiveram sendo incubados pelo pai, havia oito dias.
Exatamente ali começou a “via crucis” de meu pai. O que dava o dia a gente podia vê-lo pelo fundo do quintal como se fosse uma dedicada choca, revirando paus podres atrás de grilos ou cavoucando lugares úmidos em busca de minhocas e vermes. Com os seis filhotinhos entre as pernas, meu velho era todo cuidado, a fim de não esmagar um num momento de distração.
Se alguém se aproximasse, logo alertava: “Cuidado com os macuquinhos!” Quando ficaram maiores e começaram as primeiras tentativas de voar aos poleiros, meu pai tratou logo de construir um viveiro em que eles pudessem viver sem o risco de se perder.
Só Deus poderia explicar o carinho e o amor que meu pai nutria pelas aves! Às vezes não viajava porque precisava tratar os bichinhos; às vezes levantava em madrugadas tempestivas e ia verificar se seus passarinhos estavam bem. No paiol ele guardava a ração corriqueira: milho, amendoim, grãos diversos e uma criação de larvas, se não me engano, de tenébrio.
Um dia, minha mãe resolveu dar “uma geral” na tulha e achou por bem arrumar a comida dos passarinhos, ajeitando-as dentro de uma velha caixa, cuja tampa eram pedaços de tábuas improvisadas, soltas e com buracos.
A gata do vizinho que se encontrava gestante, no apuro do parto, encontrou a caixa, entrou por um dos buracos e aprovou a sala de parto.
No outro dia bem cedo, não encontrando a ração no lugar costumeiro, meu velho estrilou:
– Mariola (era o apelido de minha mãe),onde você escondeu a comida dos meus macucos?
– Não escondi nada, apenas arrumei um pouco da bagunça que você anda fazendo por causa daqueles passarinhos. Está na caixa de pau, lá do canto do paiol.
Cabisbaixo, meu pai voltou ao paiol. Abriu a tramela e, sem pestanejar, foi enfiando a mão dentro da caixa. A gata que ainda lambia os filhotes recém-nascidos, reagiu peremptoriamente, enfiando as afiadas unhas no objeto que ousava invadir sua sacrossanta privacidade.
Ato contínuo, eu chegava da padaria. Ao vê-lo lívido, trêmulo e respirando em golfadas, acorri temeroso, já que nesse tempo meu velho não andava bem de saúde.
– Pai, pai, que aconteceu? O senhor está passando mal? Que aconteceu? Fale, pelo amor de Deus!
Escorando-se com as mãos no corrimão de uma escada de apenas três degraus, ele sentou-se num deles, apoiou a mão direita na testa e falou entre os dentes:
– So mare, fiol, so mare! A tanti ani la vuoi coparme e questo di, quase la conseguiste. (Sua mãe, filho, sua mãe! Há muitos anos ela vem tentando me matar… e hoje, quase conseguiu).
O que em seu desabafo de espinhado italiano ele tentou dizer é que, por causa das ranhetices ou corriqueiras discussões do dia a dia, minha mãe havia colocado a gata para criar dentro do caixote em que ele punha a ração dos passarinhos, premeditadamente. O susto, pelo que se pôde ver, de fato, quase o matou!

MISTURADO AINDA É PIOR
Em 1973, quando abandonei as caçadas em respeito à Natureza, podia afirmar que era alguém que conhecia profundamente as manias da maioria dos inhambus brasileiros.
As caçadas foram abandonadas, mas não minha vivência com os passarinhos. Construí um viveiro que funcionou durante três anos como entretenimento, contendo mais de trezentos pássaros, a maior parte, capturada por mim. Todos os anos eu partia para algum estado brasileiro à cata de novas espécies. As dificuldades eram grandes, mas a teimosia, maior. E no exato momento em que abandonava as caçadas, o mano Adalho o fazia também, enredando pelos mesmos caminhos de proteção à fauna danificada pelos desmatamentos desenfreados que se faziam em toda Mata Atlântica.
Bolamos uma sofisticada rede de apanha, cognominada pelo saudoso naturalista Werner C. A. Bokerman, da seção de aves do Parque Zoológico de São Paulo, de EQUIPO FREGONA, que depois de centenas de modificações, chegou ao LACINHO, considerado por mim como “quase perfeito”.
Deixei de lado a parte esportiva e passei a me preocupar com o cunho científico da questão. E o mano, sempre por perto, dando-me apoio e as últimas lições de como reconhecer, localizar e atrair um inhambu.
Um dia, preocupado em obter uma fêmea de jaó do litoral, o mano e eu fomos numa faixa de matas próxima à Reserva Biológica Sooretama – um dos poucos lugares em que ainda existia essa ave. O lugar era perigoso, pois devido à proximidade da Reserva, os agentes florestais viviam fazendo continuadas e diárias rondas preventivas.
Saímos de Linhares às duas horas e, quando desligamos o carro, ainda era noite escura. Distanciei-me alguns metros do mano, pois já não portava condições de responder por mim, depois das extravagâncias do dia anterior com vitaminas de abacate e sobremesa de mamão.
Ali esperamos amanhecer, emitindo piados de jaó e já obtendo resposta, ao longe, de um macho afoito. Retomamos nosso alforje e, com o auxílio de lanternas, fomos adentrando até próximo a ele. Escolhemos, logo ao amanhecer, um lugar adequado e iniciamos a preparar as armadilhas, na esperança de que o macho estivesse devidamente acompanhado dos costumeiros haréns.
Mais de hora depois, estava tudo como manda o figurino: choça espaçosa e quase que hermeticamente fechada, alto-falantes posicionados lateralmente, redes de apanha bem camufladas. Tudo estava em ordem. Entramos na choça, ajeitamo-nos e iniciamos o desafio de atrair a ave às armadilhas.
Minha barriga, no entanto, por causa do excesso de abacate e mamão da tarde anterior, roncava, criando gases horríveis, deixando-me em situação deprimente. Enquanto estava fora da choça, aliviei-me sem grandes problemas, sempre buscando uma folha mais distante para não afetar as narinas do mano que detestava traques. No entanto, dentro da choça, seria impossível que ele não percebesse a “mudança do clima”.
Enquanto pude, fui resistindo, prendendo, contorcendo-me, evitando que o mano ficasse decepcionado comigo. Depois de algumas horas eu já estava com a barriga mais tensa que um baiacu zangado, e o diabo do jaó, que costuma ser uma ave agressiva a qualquer invasor, não aparecia.
Um suor frio começou a brotar-me da fronte e, então, no desespero da insegurança, tive uma ideia que pareceu-me, em princípio, digna de um gênio. Lembrei que tinha comigo um repelente spray da Raid, de odor horrível e, embora não houvesse muitos mosquitos, o mano não perceberia a estratégia. Retirei a lata, em aerossol, do picuá, reclamei da voracidade dos pernilongos, pulverizei o ambiente e, ao mesmo tempo, desafoguei, ficando atento às reações do mano que, tranquilo e atento, vigiava o lado contrário.
O mano não esboçou qualquer reação. Permaneceu imóvel, com seu pio na mão esquerda, os olhos pela abertura da choça, as pernas cruzadas. O ar ficou impregnado de um malcheiro jamais sentido. Foram muitos minutos necessários para que a poluição se desfizesse. Quietei-me mais tranquilo e não tive o mínimo escrúpulo em repetir a dose, na primeira reviravolta dos intestinos. E, mais uma vez, o mano permaneceu imóvel, talvez apenas recriminando consigo mesmo, meu velho costume de, desnecessariamente, destruir a camada de ozônio.
Achei-me um “gênio” pela ideia, pois se não tivesse descoberto um jeito de ludibriar o mano, talvez a barriga explodisse antes de o dia terminar. E era só os gases se juntarem que, sem qualquer escrúpulo, eu repetia a dose, deixando o ar irrespirável.
Na quarta ou quinta investida – não me lembro bem – veio o imprevisível: movendo-se para a frente, o mano enfiou o nariz pela abertura da choça e, sem olhar, colocou o pio sobre o picuá, deu seu sinal característico “hummmm!” e observou:
– Nunca suportei traques mas, misturado, ainda é pior!
A choça era bastante escura, mas não o bastante para não se perceber o enrubescimento que se espalhou por todo meu rosto.

O PODER DA MENTE
Entre os que já falaram do óbvio, Joseph Murphy talvez tenha sido o que mais perdeu tempo. Que somos um produto da mente, qualquer um sabe por experiência própria. Ponha uma coisa na cabeça, acredite nela e pronto: a imaginação se transforma em realidade. Muitos dos santos, bandidos, internos de manicômios ou velhos serelepes que pulam a cerca do vizinho, são exemplos expressivos da força da mente. Acreditou, a coisa acontece. Raiz passa a ser cobra com olhos, presas e língua bifurcada. E tem mais, se na arrancada se ferir em alguma ponta de pau, terá de tomar soro antiofídico urgentemente, senão, morre. Foi picado.
Depois que entendi que caçar por esporte era um contrassenso, pendurei a espingarda por um bom tempo, pelo menos até o dia em que uma canguçu faminta ameaçou entrar dentro da choça, confundindo-me com um bando de urus. Quase perdi a vida, mas não o vício.
Nesse dia, aproveitando a visita à extração de madeira, levei meu equipamento e resolvi capturar um casal de Cripturellus obsoletus griseiventris, um tipo de pássaro rasteiro que os caboclos maranhenses chamam de inhambu poca-taquara. É o pássaro mais manso do gênero. Não se importa com a presença do homem, mesmo porque nunca fora perseguido por ele.
Depois de localizar um casal, aproveitando um grosso jatobá na orla da estrada recém-construída pelo trator, fiz uma choça, armei os laços e comecei a piar. Encostei a espingarda numa das catanas e fiquei aguardando. A fêmea da espécie é mais ciumenta do que todas as mulheres possessivas juntas e, por isso, logo se aproximou para expulsar a intrusa.
Nisso, percebo algo mexendo no pano da choça, bem atrás de mim. Dei uma olhadela de soslaio e voltei à minha posição de atalaia. Seria um rato, uma lagartixa, um pica-pau avinhado, um jabuti ou mesmo a própria inhambu afoita. Mais um pouco, outra mexida mais acintosa. A coisa era maior do que eu pensava. Afastei-me e fiquei de olho no inimigo. Em seguida, outra investida de algo que insistia em entrar, na marra, no meu esconderijo. Passei a mão na arma e fiquei atento. Pelo vulto percebi que era algo comprido, grosso e roliço. Imaginei: uma surucucu pico-de-jaca sem tamanho. Acreditei.
Preveni-me, ficando em posição plena de defesa, com a espingarda na mão. O que eu não esperava é que o diabo da cobra entrasse de vez, vindo para cima de mim como um raio. Também como um raio meu cérebro acionou as pernas. Dei uma arrancada de Tyson Gay, carregando a choça no peito, esparramando os pios e espantando os inhambus da área por algumas décadas. Terminava, naquele momento, a proverbial fama de serem os mais mansos da espécie.
Corri uns oito metros, armei a escopeta e me virei ameaçador. O coração parecia sair do peito, o suor pingava da fronte e eu ali, tenso, tentando agradecer a Deus por ter-me livrado da picada mortal da descomunal serpente. Eu vi, juro que vi, até a língua da cobra eu vi.
Um pouco mais e comecei a escutar um barulho estranho, parecendo gente prendendo o riso. Que diabo seria? Os cabelos eriçaram. A coisa ficara fantasmagórica e eu, bem, eu estava como você estaria se estivesse no meu lugar.
No clímax da tensão ouvi uma tremenda gargalhada explodir. Era o desgraçado do meu cunhado Arlindo, que chegara ali pé ante pé pela estrada recém-construída. Saía detrás do jatobá onde, com o diabo, tramou a possibilidade de me matar de susto. Ao vê-lo com a cara mais porca do mundo, tive vontade de puxar o gatilho, mesmo porque, na cadeia, sofreria menos do que as gozações dele pelo resto dos meus dias.
Já mais conformado, apanhei a raiz que ele enfiara por debaixo do pano e, juro: não tinha nada a ver com cobra. Era uma raiz esfiapada pelo trator, quase uma lasca. Um pau qualquer. Mas, se eu tivesse dado no pé, deixando todas as coisas lá no mato, o mundo todo hoje saberia que uma surucucu atacou-me dentro da choça.

DOIS TERRÍVEIS CAÇADORES DE ONÇA
Fazenda Cajazeiras, à margem do rio do mesmo nome, a 70 km de Marabá no estado do Pará. Morávamos em Imperatriz e uma vez por mês íamos visitar a encrenca que havíamos adquirido do INCRA por meio de licitação. Da Transamazônica até à sede eram mais uns 20 ou 30 km de picada acidentada em meio à mata. A única coisa que jamais vou esquecer é que saíamos daqui antes do amanhecer e chegávamos ao terreiro da gleba, sempre quando os urutaus já se denunciavam no topo de cada pau seco.
Aquilo foi o pedaço da Amazônia mais lindo que já tive a oportunidade de conhecer. Mundo agressivo, natureza selvagem… As belezas naturais se mesclavam aos perigos que pululavam a cada metro que se pisava. Lindas cachoeiras, gritos horríveis de corujas e urutaus, piados maviosos de sabiás, pegas e uirapurus, esturros de barbados e onças, cantos e gritos, gorjeios e coaxares metuendos…, tudo se misturava e se mostrava a cada instante com toda pujança. A esse lugar, enfim chegamos mais uma vez!
Nosso gerente nos recebeu, alojou-nos e só no dia seguinte cada um foi arrumando suas tralhas para fazer o que havia programado quando saiu daqui. A maioria foi pescar no rio Cajazeiras, mas meu sobrinho e um cunhado do irmão dele resolveram descansar durante o dia porque, à noite, iriam matar “uma onça”. E, de fato, antes de a lua surgir eles apanharam a camioneta e foram “matar a onça”. Havia muitas por lá! Só num mês elas comeram 14 bezerros do nosso rebanho.
Lá pela meia-noite, meu sobrinho Vilmar me cutucou na rede e, diabolicamente perguntou:
– Você trouxe aquela fita que o cientista gravou uma onça esturrando?
– Ela nunca saiu do meu picuá.
– Vamos lá assustar aqueles dois “matadores de onça” ?
Eu estava cansado e sonolento, mas malvadezas e trotes sempre foram prioridades em minha vida. Levantamos, apanhamos o gravador, o alto-falante com 30 metros de fio e metemos pé na estrada, já que o carro eles haviam levado. Encontramos a camioneta, andamos mais uns 500 metros pela estrada que eles haviam seguido, escolhemos duas grossas árvores com sapopembas para nos proteger, estendemos o fio e colocamos o alto-falante do outro lado da estrada, debaixo de uma moita.
Por azar, nosso esconderijo coincidiu com um ninho de formiga-fogo e os miseráveis só desistiram de “matar a onça” às três horas, quando a lua apareceu. Vinham sorrateiros e vigilantes, parecendo pisar em ovos. Espingardas em riste. Se uma folha caísse, seria alvejada. Segundo eles, no despontar da lua elas esturravam e se tornavam agressivas. Por isso vinham tensos e amedrontados.
Como dois diabos que se prezam, meu sobrinho e eu nos preparamos. Fita no ponto. Quando já estavam a cinco metros, liguei o gravador em todo volume e o esturro estremeceu a mata. Eles estacaram de chofre, apontaram e dispararam incontinenti. Eu desliguei o gravador e eles repuseram os quatro cartuchos mais rápidos que a equipe do Schumacher no tip stop e comentaram numa só voz como se tivessem ensaiado o grito antes:
– Tomou, bichona! Aqui não são os bezerros da fazenda, não!
Nisto eu rodo a fita outra vez e se o alto-falante estivesse exposto, eles teriam “matado a onça mesmo”: mais quatro disparos sem intervalo. Mas, quando iam repor os cartuchos eu recoloquei a fita e deixei rodando. Os esturros eram de arrepiar. Acho que John Dalgas Frisch, quando fez a gravação, pendurou o microfone no cogote da pintada, porque até o pigarro da garganta era percebido. Nunca ouvi nada mais típico e medonho… Nem eles.
Na carreira, um perdeu a espingarda e o outro jurava que se não fossem bons de perna a onça que, segundo eles, era do tamanho do boi reprodutor da fazenda, teria liquidado com eles. Mas estava ferida, com oito tiros na cara. A gente iria ver os urubus descendo daí a uns três dias.
Depois de uma semana dando detalhes da onça: tamanho das presas, como ela avançou, como fugiu quebrando galhos depois que viu que tinha atacado dois machos peitudos, acabaram descobrindo que a onça deles eu a carregava numa fita dentro do picuá. O vexame foi tão grande que nem de estilingue eles caçaram mais.

“ME GOLPEARAM”
Cutuca, corruptela de tucano, foi o apelido que demos ao nosso primo Orlando, em razão das tantas similaridades. Tucano é um pássaro curioso, bagunceiro, mexelhão… praticamente impossível de ser criado dentro de casa. Amansam com facilidade e acredito que não foi à toa que Deus o muniu de um bico tão grande. Não há outro ser vivo que utilize tão bem algo que nos parece estorvo. Carrega relógios, carretéis e até tampas de panela. Todos os que já tentaram essa proeza, desistiram logo nos primeiros meses. Os tucanos nasceram para viver em liberdade ou trancafiados em presídios de segurança máxima, como bandidos de alta periculosidade. Manejam a “pinça” como nenhum faixa preta em Kung-fu o faz com bastões.
Pois bem, o Cutuca foi contemporizado com esta alcunha porque, além do nariz comprido, as demais características não são pura coincidência:
Na época do inverno, o rio Araguaia, no Bico do Papagaio, extravasa. Suas águas ocupam grande extensão das várzeas e formam lagoas. Cessando as chuvas, os peixes que se esquecem, ou não conseguem voltar para o rio, ficam aprisionados nessas lagoas.
Havia uma, de propriedade do senhor Raimundo, um senhor que ficamos conhecendo por meio de negócios. Contou-nos o fato, fez o convite e aceitamos. Mal as águas baixaram, partimos para lá. Éramos oito nas duas D-20. Uma levava barcos e outros equipamentos e a outra, mais confortável, transportava os pescadores. Perdemos meio-dia para desfazer os cinco quilômetros que separavam a lagoa da estrada principal. Aliás, praticamente fizemos os cinco quilômetros de estrada para alcançar as margens da famosa poça d´água. Mas, havia peixe sim, e grandes. Entre outros pegamos um pirarucu de 80 quilos e um de 37.
Entretanto, devo confessar, não foi só o árduo trabalho de “fazer a estrada” que nos atrasou. É que conosco estava o Manoel Mineiro, que vivia da venda de “nambuas” (inhambus do pé vermelho, ou chororós) que infestam as pastarias de quase toda região nordeste. Era conhecido por todos como Manel e vivia dizendo que, em dias favoráveis, ele abatia até “30 nambuas”. É claro, ninguém acreditava, até o dia em que o flagrei vindo de uma caçada. Ele morava além do nosso loteamento e sempre era visto quando saía ou chegava de sua casa. Interpelei:
– Êi, mineiro, hoje é o dia de tirar a prova. Mostre aí os inhambus que matou.
Ele veio chegando com mil e uma desculpas, dizendo que o dia fora ruim e que perdera horas aguardando o ônibus para chegar à fazenda Chaparral. E eu, que nunca acreditei, investi maldosamente:
– Conversa, Manel! Esse negócio de matar 30 inhambus num dia é papo pra quem nunca caçou, não comigo. Onde já se viu matar 30 inhambus num único dia?
– É – disse ele – de fato, ainda não é hoje que vô podê prová. Hoje matei só 21.
– O quê? Vinte e uma? Nem vendo acredito! – e completei:
– Então, mostre aí!?
E o Manel, tirando a sacola e a “por-fora” do tiracolo, começou a jogar nambus no chão. Quando terminou, lá estavam: 22 nambus. E para humilhar ainda mais, dando uma risadinha que nem Chico Anísio, em forma, conseguiria, completou:
– Heee, he, heeee… contei só 21!… Nunca prestei mesmo pra fazê conta.
Pois é, nessa viagem, o Manel estava com a gente e ao pararmos no Bico do Papagaio para comer uma panelada, ele se disse indisposto devido a uma dorzinha de cabeça. Incontinenti, o Cutuca disse que tinha com ele um ótimo sedativo e iria prepara-lhe uma boa dose. O Manel tomou o remédio “do Dr. Cutuca” e não comeu nada. Nós acabamos de comer e seguimos viagem.
Em menos de meia hora o Manel, além da dor de cabeça, agora era acometido de tremenda diarreia. De dez em dez minutos ele pedia para parar, corria para o mato e a gente tinha de esperar. Mas, enfim, chegamos à tão sonhada pescaria.
Apesar do lugar desconfortável, do mau cheiro e dos milhões de mosquitos, a pescaria ia bem. Não havia água potável e apenas eu (que até hoje não aprendi a gostar de cerveja), fui obrigado a beber dela, mesmo fétida e preta como café.
Mas, no segundo dia, algo estranho começou a acontecer. Com raras exceções, o pessoal foi acometido de violenta diarreia. Era um tal de disparar pela capoeira ou pular às pressas da rede que, no quarto dia começamos a nos preocupar. Como somente o Cutuca continuava imune, as suspeitas logo recaíram sobre ele. Não demoramos a descobrir: ele havia levado dois vidros de Gutalax e, como ninguém desconfiasse de nada, em qualquer distração, ele acrescentava ao café ou mesmo à comida, o maldito “tempero”. O efeito era rápido e fulminante. Se a correia engastalhasse corria-se o risco de sujar as calças.
Descoberto, ele escondeu os vidros e já não comia nem bebia nada suspeito. Assim ia se livrando e rindo de todos que, correndo ou saindo de fininho, não escapavam das gozações terríveis do Cutuca. “É cozinheiro, você vai acabar matando um!”
Reunimo-nos em caráter de urgência. Haveríamos de descobrir os vidros, e, não havendo outra alternativa, sete o segurariam e um enfiaria o Gutalax na garganta dele, na marra.
Depois de vasculharmos um hectare de terra, achamos os vidros. Estavam sob as folhas, em baixo das raízes de uma imbaubeira. Retiramos o maldito líquido deles e substituímos por água, deixando tudo sem qualquer sinal de nossa presença.
Ele tinha a mania de tomar as latinhas de cerveja dos companheiros e isto nos sugeriu o plano. Abrimos uma lata de cerveja, jogamos metade fora, despejamos dentro um vidro inteiro de Gutalax e colocamos o Figurinha sentado na entrada do barraco, com a latinha na mão, fingindo que estava bebendo.
Bagunceiro como todo tucano, ele veio gritando, mostrando uma enorme caranha e falando de um jacaré que podia engolir uma pessoa inteira, a menos que estivesse com diarréia. E ria, dizendo que o jacaré era exigente.
Demonstrando admiração pela caranha, o Figurinha aproximou-se e, com uma das mãos ficou a apreciá-la, deixando a outra exposta. O golpe foi perfeito: o Cutuca tomou-lhe a lata e, rindo, sentou-se num tamborete e ficou a se deliciar. Se o Figura estava bebendo era porque não havia problema – imaginou. Depois, com um prato em que a comida caía pelas orlas, fez todo mundo jurar que não havia nada de errado nas panelas. Fui o primeiro a jurar e os demais fizeram coro. Era verdade: não havia nada de errado na comida. Ele deu a primeira “bicada” na cerveja, degustou, aprovou e passou a comer tranquilamente. Antes da décima garfada, ele parou, ficou em silêncio alguns segundo e, em seguida gritou:
– Putaquepariu, me golpearam!
Jogou o prato no chão e disparou desabotoando as calças. Não arriscou ir além de 20 metros. Não fosse o “tampão” seco que obstava a saída, ele teria se borrado antes de baixar as calças. Passou a noite toda correndo pro mato e até hoje não conseguiu entender como o Gutalax dele, depois desse dia, não fez mais efeito.
É Cutuca, quem planta, colhe!

NÃO TEM CONDIÇÕES!…
Depois de 23 dias enterrados na selva amazônica, resolvemos voltar. Não havia como caçar. Chovia ininterruptamente. Os pios já não funcionavam, as cápsulas não deflagravam, a roupa estava cheia de bolor, os fósforos não acendiam: caos total. Reunimo-nos numa rápida assembleia e resolvemos desistir: São Pedro vencera.
A camioneta que nos transportara estava lá num canto, cheia de folhas nojentas, com algumas sementes caídas das árvores já brotando em todas as anfractuosidades. Quando abrimos a porta, já uma verdadeira torrente nos veio em cima. Como sempre, naquele tempo, para caçar, só usávamos veículos muito velhos. Era mesmo para não ter pena de enfiá-lo em atoleiros e picadas cheias de tocos e mato. O resultado disso, você conclue: mais a gente levava o carro do que ele a nós. Era sempre a mesma história ou, se preferir, o mesmo sofrimento.
Quando o motorista deu na chave, nem sinal. Tentou acender os faróis e o que vimos foi uma tênue luzinha de lanterna com pilhas descarregadas. O negócio era empurrar até que a miserável pegasse. Mas aí veio o pior: a lama era tanta que os pneus não aderiam ao solo para fazer girar o motor. Fomos obrigados a mil e um estratagemas para que isto acontecesse. Fria, velha, com o diesel cheio d’água, injetora sem revisão há anos, a camioneta ficou mais de 30min rateando, pipocando, engasgando… A via crucis começava. A gente já conhecia a história.
Com menos de um quilômetro percorrido, a primeira entrada de ar e, como não podia ser diferente, bem no meio de uma poça de lama. E há quem apregoe que Murphy foi um blefador! Em fila, cada um que cansava de bombear, cedia o lugar ao seguinte, até que o ar fosse retirado dos caninhos. Agora, empurrar novamente, pois as baterias jamais carregariam com o alternador pifado.
Deixamos o barraco logo depois do almoço e deveríamos alcançar uma estrada melhor, já fora da floresta, antes do anoitecer. Isto se a estrada estivesse seca e a camioneta funcionando normalmente. Por isso, já extenuados, caindo pelas tabelas, lá pelas 21 horas, a décima primeira entrada de ar aconteceu. Só que, desta vez, a uns 500 metros do lugar em que, pela lamparina acesa, supomos a existência de um ser humano. Empurramos a fubica até uma descida e alguns foram para a operação que já faziam até com os olhos vendados. A maioria, porém, foi à suposta casa do caboclo, disposta a pagar a safra de café do ano seguinte por uma galinha ensopada com qualquer coisa. Os “mecânicos”, que só sabiam bombear, continuaram lutando para resolver o problema. Entre eles, o Vicente, aquele meu cunhado mais azarão do mundo.
Depois de não mais aguentar acionar a bomba para retirar o ar, eis que ele, protestando e fazendo arrepiantes juramentos de que jamais participaria de outra caçada, resolveu sentar-se no barranco da estrada.
Cansado como estava, nem olhou para trás, descendo com a velocidade que a gravidade impunha. Ainda chuviscava e, entre suor e respingos, a roupa estava bastante úmida. Mesmo assim, tomamos um susto quando ele arrancou como se fosse o Valentino Rossi numa corrida de moto velocidade.
Enquanto esfregava a mão no traseiro e substituía as respostas às nossas perguntas com mil e um palavrões, íamos supondo que ele havia sido picado por uma surucucu. E como não parasse de xingar, agarramo-lo e exigimos:
– Que foi, homem de Deus? Que lhe aconteceu agora?
E ele, sem conseguir explicar direito, apenas dizia:
– Tem condição? Tem condição?
– O que é que “tem condição ou deixa de tê-la, porra!” – vociferou o Quoque (Arlindo), seu irmão brutamonte.
Pois é, amigos, em plena floresta amazônica, depois de um mês de chuva, num espaço de dois metros quadrados extraídos de milhões de hectares, o meu cunhado, o cara mais azarento do mundo, achou de sentar-se bem em cima de uma pequena caieira para carvão que o caboclo havia feito. E como estava em brasas sob uma fina camada de areia, quando ele afastou a proteção, uma labareda subiu com se embaixo houvesse um dragão enfurecido, queimando-lhe a bunda toda. E que queimada!
Completou o “enduro” de pé, em cima da carroceria. De fato, convenhamos, ele estava coberto de razão: “não tinha condição!”

O MALUCO RUÇO DAS PEDRAS
Quando criança, eu morava no interior. Como dizem as pessoas, por ignorância ou usando sentido figurado, adorava festinhas, leilões de maio, enfim, tudo o que reunisse muita gente. A vila em que eu morava, Marilândia – ES, era habitada quase que exclusivamente por brasileiros de origem italiana. Como tal, lá e naquele tempo, guardava-se uma centena de “Dias Santos”, mais usados para convescotes e outras distrações do que para lembrar os heróis da fé cristã.
No dia 20 de janeiro, dia dedicado ao protetor dos animais, São Sebastião, alguém teve a ideia de promover uma corrida de cavalos numa estrada sinuosa, ladeada por matas, rampas e despenhadeiros. O que apareceu de inscrição não estava no prognóstico dos Fabriqueiros da Igreja: um grupo de anciões encarregado de arrecadar fundos para a construção da igreja e da casa paroquial. Cavalos magros, burros empacadores, éguas cujo condão sempre fora procriar; até jumentos desaforados que desafiavam o sargento Luís (um policial de folha-corrida que faria inveja, hoje, há muitos inquilinos das prisões de segurança máxima) emitindo longos e barulhentos esturros em plena madrugada silenciosa, somavam-se ao plantel responsável pelo sucesso da programação.
Entre os jóqueis também havia os tipos mais excêntricos, indo do gigante Hilário Bergami, ao louco Alemão das Pedras. Este carregava a alcunha porque residia numa localidade denominada Alto da Liberdade, incrustada no sopé da pedra mais alta da região. Mesmo assim, o padre José Brasil, hoje falecido, resolveu construir, no cume, uma cruz de cimento armado que podia ser vista, a olho nu, a 20 quilômetros de distância. Durante anos a italianada devota pôde mostrar, no lombo, as pisaduras ou estigmas resultantes do transporte da areia, do cimento, dos vergalhões, da água e das ferramentas para a construção da enorme cruz. Até o Santim, do distrito de Alegria, conhecido como o Hércules da redondeza, só aguentava transportar, até o local, dois sacos de cimento por semana.
Fogos, gritarias, quermesses, moretinas, bochas, cânticos folclóricos italianos e outros entretenimentos adultos típicos, intercalavam-se com a correria das crianças que, sem o mínimo de educação, pisavam os sapatões empoeirados dos adultos. Foi neste clima que se ouviu do único alto-falante da vila:
– Senhoras e senhores, dentro de poucos instantes terá início a corrida de cavalos, lá na estrada da Curva Braba. Queiram se deslocar para lá. O vencedor será premiado com um conto de réis e uma linda montaria. O segundo colocado…
E, antes que fossem esclarecidos os prêmios e ditadas as regras da corrida, a multidão, qual estouro de boiada, direcionou-se via Colatina, onde ficava o trecho mencionado pelo organizador.
A estrada era sinuosa, embarrancada e também com despenhadeiros ameaçadores, além de ser excessivamente estreita e por dentro de matas e capoeirões. O povo posicionou-se pelas orlas dos dois quilômetros de pista. Os cem metros iniciais estavam ocupados pelas montarias que, fogosas e perplexas, sapateavam ofegantes. Na frente, postavam-se os quatro primeiros colocados por sorteio prévio, ala que contava com o incrível Alemão das Pedras. Era um fogoió de baixa estatura, cabelos ruivos, inclusive as sobrancelhas, dentes amarelecidos pelo excesso de fumo de corda, nariz comprido, inteligência de uma ameba – um pouco mais, talvez. Era famoso e conhecido em toda a região por suas loucuras, entre as quais escalar frondosos jequitibás e troncos secos, à cata de orquídeas e filhotes de psitacídeos, excluindo toda e qualquer consequência que pudesse advir.
Montava um cavalo alto, saudável, fornido e tão doido quanto ele. Apresentavam-se inteiramente atônitos diante daquela balbúrdia vesuviana.
Mais um pouco, alguém gritou:
– Senhoras e senhores, vai ser dada a largada. Que cada um apóie e incentive seu jóquei…
Houve um silêncio tumular, seguido do espocar de um foguete tiro-canhão. Uma nuvem de poeira, qual gases sulfurosos eliminados por um vulcão, embaçou as visões para, em seguida, do meio dela despontar o Alemão das Pedras. Ele gritava, gesticulava, esporeava, surrava o cavalo que, a cada instante, dava mais de si, ganhando logo uma dianteira respeitável. Foi quando apareceu a tal curva muito fechada. Alemão, sem prever nada, entrou nela com velocidade total, incitado pela multidão que já o conhecia e apoiava suas loucuras. O animal, na direção que vinha, continuou. Derrapou, capotou e desceu perambeira abaixo, misturando jóquei, burro, sela, capim-gordura, poeira, arranha-gatos, bananeiras e tudo o mais que germinara por ali.
O fiscal da curva quase foi atropelado. Deu o alarme e, exatamente ali, a nuvem de poeira parou. Todos queriam saber o que havia acontecido com o louco Alemão. Logo abaixo havia um córrego e, dentro dele, qualquer coisa ainda se mexia. Era o que se podia concluir vendo a ponta de uma imbaubeira balouçar. Estrepitosamente os mais afoitos foram descendo e mais um pouco, noticiaram:
– Ainda está vivo! O Alemão está por baixo do cavalo, mas vivo. A água está toda vermelha. Venham logo. Temos de tirar o cavalo e o mato de cima dele.
Uma hora depois, o bravo fogoió estava esticado sobre um banco da farmácia do Leandro, que tentava recolocar uma das pestanas que um galho, na descida, tirara do lugar em que Deus achou que deveria ficar quando o fez.
Horas depois, em cima de seu cavalo-prêmio e com o dinheiro na mão, o Alemão retornou para o Alto da Liberdade, enfaixado como uma múmia egípcia e puxando seu pangaré vencedor, claudicante, também bastante ferido. Todos concordaram que, pela arrancada, ele seria imbatível e, por isso, merecia o prêmio.

AS VELHAS BOTAS DO AMBRÓSIO
Ambrósio é o nome de um italiano retaco – parrudinho, como dizem lá na minha terra – que ainda vive na cidade de Venda Nova do Imigrante, no Espírito Santo. Hoje, apesar da idade avançada, mantém um vigor físico de causar inveja a muitos jovens. É bem verdade que suas visitas anuais têm diminuído, mas há décadas, todos os anos, ele aparecia em Imperatriz, acompanhado do filho Edélcio e de mais alguns bons bebedores de vinho.
É fácil reconhecer o Ambrósio, ainda que o encontro se dê em Uganda: tez rosada, sangue quente, resposta sempre na ponta da língua, histórias enfileiradas sobre caçadas de pacas e jogo de bochas. Se na Itália já há uma centena de dialetos, caso o Ambrosio retorne, haverá mais um, adquirido com os tantos anos de Brasil.
Em sua última viagem programada com anos de antecedência, como nas copas do mundo, ele veio acompanhado de mais seis companheiros. Entre eles o inseparável filho Edélcio, exímio perscrutador: nada de estranho lhe passava ao redor sem uma observação maliciosa e inteligente. Nunca conheci alguém mais ligado que ele. Qualquer olhar furtivo era captado por ele, mesmo de costas. Era incrível. Acho que possuía um sentido a mais que as mulheres.
Bem, depois de um dia de descanso em Imperatriz, rumamos para o rio Cajazeiras, no Pará. À margem esquerda desse rio possuíamos uma fazenda, sem qualquer dúvida, um dos lugares naturais mais lindos que conheci. Eram centenas de pequenas cachoeiras que desciam dos morros entre pedras e grossos troncos centenários, abrigando milhares de pássaros e animais.
A turma do Ambrósio não vinha para destruir nada. Queria apenas pescar um peixe grande ou abater uma paca por dia para, à noite, no contar das histórias, encher a cara de vinho e lembrar a velha Itália. Desde que pescassem um jaú, um surubim ou algumas caranhas grandes; ou abatessem uma paca na espera do pequizeiro, nada mais de sair do barraco. Acendiam um fogo, improvisavam uma tosca mesa para a moretina, abriam logo um litrão de vinho seco e, alguns minutos depois, segredos que já estavam até mesmo fossilizados eram descobertos e expostos com maestria de paleontólogo.
Ambrósio não abria mão de uma mala antiga que continha objetos que o acompanhavam havia anos e que, segundo ele, jamais lhe haviam causado problema. Logo ao amanhecer, ele abriu sua velha mala e foi-se equipando. Nada faltara. Conforme havia deixado depois de sua última excursão, estava naquele momento. Sentou-se, enfiou as meias, os sapatões, ajeitou a gola, conferiu os cartuchos… Tudo em ordem. Escolheu uma direção e embrenhou-se no mato. Com ele, o Evaristo, um gozador exímio que até os cartuchos esquecia em casa quando saía para caçar. Esse, então, só vinha mesmo para beber e contar histórias. Antes de saírem, combinaram: o primeiro que abater algo que possa dar para o jantar deve retornar e soltar um foguete tiro canhão para alertar aos demais. Em seguida deverá acender a churrasqueira: um buraco cheio de carvão feito logo no primeiro dia.
E o dia foi passando, passando… Nada de tiro, nada de foguete. Com isso, às 16 horas apareceu o primeiro, e antes das 17h, quando quase todos já estavam sentados e frustrados, veio chegando o Ambrósio, mancando muito e, praticamente apoiado nos ombros do Evaristo. A 20 metros do barraco já começara a lamentação. Quando entrou, foi logo sentando num varão arrastado para esta finalidade e começou a descalçar as botas:
– Vejam vocês – desabafou inconformado – há uns 20 anos uso estas desgraçadas botas para caçar e, exatamente hoje elas acharam de me encher de calos. Estou com os pés em frangalhos, cheios de bolhas… Acho que minha caçada termina aqui pois, pelo jeito…
E antes que terminasse a lamentação, o Edélcio, num acesso de riso incontrolável, com o dedo apontando para os pés do pai, fez-nos entender que as botas estavam trocadas. Havia mesmo de machucar, mesmo depois de tantos anos de uso.
Tudo terminaria aí se o Evaristo não tivesse a infeliz ideia de afirmar que havia percebido a troca desde manhã. Como castigo teve de passar emburrado o resto da caçada, porque o velho Ambrósio era sistemático e não suportava brincadeiras… quando eram feitas com ele. Foram alguns dias de amuo, mas nada que alguns copos de vinho não resolvessem.

A AMOREIRA DO LÚCIO
Na cidade de Linhares – ES, morava a maioria de meus parentes mais próximos. Um deles, o primo Lúcio, conhecido por sua prestimosidade, que, de tanto, tornara-se enjoativa; vivia procurando oportunidade para demonstrar sua virtude. Num belo dia (nem tanto), recebi uns amigos que vieram visitar meu criadouro de pássaros: diga-se de passagem, o mais completo do Brasil em termos de Tinamídeos: aves rasteiras vulgarmente conhecidas por inhambus.
O viveiro ficava na parte dos fundos de minha casa e a arborização precisava ser melhorada. Alguém que visitava atentou para o problema e sugeriu que eu plantasse amoreiras, pois, além das sombras, ainda alimentariam os inhambus com suas frutinhas deliciosas.
– É, confirmei, amoreira seria ótimo, porém, não sei como conseguir mudas.
Para meu azar, o Lúcio, meu primo prestativo, sabia, e a promessa de me resolver o problema foi logo feita.
Até aí, tudo bem. Até fiquei satisfeito, pois se havia alguma coisa com que eu pudesse contar como certa, as benditas mudas de amoreira eram uma delas. O problema seria apenas em que circunstâncias, a que horas ou em que dia isto iria acontecer.
Bem, invariavelmente, todos os dias após o almoço, eu me assegurava uma sesta reparadora. Para não ser importunado, mantinha a porta do meu quarto trancada. Avisava a todos para que não me incomodassem naquele período, pois, caso contrário, passaria o restante do dia com dores de cabeça. Sou hipocondríaco velho e assumido! Tudo me acontece conforme imagino.
Nesse dia “memorável”, por ter jogado canastra quase a noite toda, reforcei o pedido aos meus pais, já que, para se chegar à minha casa, as pessoas teriam de passar por lá. Almocei, liguei o condicionador de ar e em poucos minutos adormeci. Minha mulher havia saído para lecionar, e filhos ainda não os tinha. Tudo ideal para descansar sonhando com os anjos. Descuidei-me, apenas, da admoestação bíblica: “Vigiai e orai, porque não sabeis o dia nem a hora”.
Esqueci de amarrar o cachorro no portão e o Lúcio, com verdadeira carga de galhos de amoreira, penetrou por ele, disposto a tudo para fazer a entrega pessoalmente. Desta particularidade ele não abria mão.
Minha mãe, sempre amável, confirmou minha presença, esquecendo-se das recomendações quase ameaçadoras. E a tortura não demorou:
– Toc, toc, toc, ô, seu Livaldo! – Toc, toc, toc, ô, primo! – Toc, toc, toc, ô, seu Livaldo!
Silêncio tumular! Bem que eu tinha ouvido, mas escorraçaria o intruso com uma demonstração de sono hibernal.
– Toc, toc, toc, ô, seu Livaldo! – Toc, toc, toc, ô, seu Livaldo! – Toc, toc, toc, ô, primo!
Aí, pela milésima vez mais ou menos, já com os nervos à flor da pele, levantei-me e, não fosse meu primo, ingênuo, inocente e prestativo, teria corrido ao deparar-se com minhas feições transformadas – aliás, nem se deu conta, apesar de poucas fazendas abandonadas apresentarem aspecto pior do que minha cara naquele momento.
– Vim trazer as mudas de amora que prometi.
– Estou vendo – respondi com um rosnado que qualquer Pitbull mal-humorado assinaria embaixo.
– É para plantar logo, senão não pega bem.
– Está certo!
Eu conhecia bem o Lúcio e nem ousei implorar-lhe para deixar para mais tarde. Apanhei o enxadão e com raiva suficiente para enfrentar uma onça ferida, encaminhei-me para um ponto qualquer do quintal. Minha intenção era enfiar o monte de varas em qualquer lugar e livrar-me, o quanto antes, de tudo aquilo. Mas, a cada lugar em que eu levantava a ferramenta, ele interferia:
– Aí, não!
Depois de várias tentativas, perdi a paciência:
– Onde, então, droga!?
– Tem que ser num lugar sombrio, bastante úmido. Ali me parece ideal – disse ele apontando com o dedo.
O lugar designado ficava atrás de uma caixa d’água, ou melhor, de um reservatório que havíamos feito para suprir os tantos desleixos do serviço de água da cidade.
Indicado o lugar, levantei a “arma” e a impulsionei com a ira própria de alguém que estivesse se vingando de seu inimigo figadal. A lâmina do enxadão penetrou até esbarrar no cabo, momento em que um jato de água, com a pressão de um esguicho de baleia sufocada,veio-me aos olhos, enchendo-os de areia, cavacos e todo tipo de impurezas que havia por cima do cano.
E, naquele dia – não podia ser em outro – o SAAE estava com os reservatórios de água, no limite. Era um dia de sábado; as lojas já estavam fechadas; eu não sabia do endereço de nenhum encanador; registro de socorro, não havia… Passei o resto da tarde lutando para vedar o vazamento, ora com tuchos de cabo de vassoura, ora com tiras de borrachas de velhas câmaras de ar.
Perdi minha sesta, não dormi durante a noite e, para variar, nenhuma muda vingou. O ódio foi tão grande e traumatizante, que me fez perder, por bons anos, o costume de tirar uma soneca depois do almoço.

O ARÍETE E O REBOLO
Na minha família, 80% dos rebentos nasceram machos. Não é de se estranhar, portanto, que logo procurássemos nos adaptar à defasagem de sexo. As fêmeas, em desvantagem, descontavam como podiam. Marcavam presença em todos os lugares e não hesitavam em definir como galinha ou moleirão, o lado que perdia. Com homens saindo pelo ladrão, logo partimos para o lado dos esportes, se não radicais, ao menos transformados assim. Qualquer disputa era considerada de vida ou morte: perder, nem pensar. Os meios? Qualquer um que assegurasse o fim almejado, sempre, é claro, a vitória.
Assim, formamos dois times de futebol. Para jogos “oficiais”, escolhíamos os mais versáteis ou aguerridos; entre família, no entanto, tentava-se o equilíbrio, dividindo os considerados melhores. Com o tempo, logo duas duplas ficaram inseparáveis. De um lado, Jadilson (Zeca, Aríete), eu e mais nove; do outro, Joelson (Cancão), Delcir (Cirão) e mais nove. E ai de quem perdesse! Só se livraria das gozações na pelada seguinte, caso vencesse. Assim passávamos a vida, sempre gozando, rindo, enchendo o saco quanto possível uns aos outros. Sempre digo que se praga pegasse não haveria por lá, naquele tempo, melhor negócio do que venda de muletas.
Meu parceiro e sobrinho Jadilson era conhecido por muitas qualidades. Chutava igualmente com as duas pernas, possuía um potentíssimo e certeiro chute, além de driblar razoavelmente. Chegou a ser chamado para treinar no Flamengo do Rio de Janeiro. Na véspera de sua ida, num jogo contra o Governador Valadares – MG, numa dividida, arrebentaram-lhe os meniscos, os ligamentos e tudo quanto segura o fêmur à tíbia e ao perônio: estava encerrada uma carreira promissora. Devo confessar que jamais torceria – mesmo sendo ele meu sobrinho e companheiro de guerra – para que se tornasse um outro Zico: o Botafogo já sofrera demais com um.
Do outro lado, o Joelson, irmão dele. Também chutava forte, mas apenas com a perna esquerda, a que apelidou de “venenosa”. Era um dos grandes goleadores do nosso time “oficial”. Possuía uma colocação invejável. Quantos lançamentos fiz sem olhar pra esquerda! Quando eu apanhava a bola, já sabia, de cor e salteado, o lugar em que ela deveria ser lançada; ele, por sua vez, já partia em disparada, certo de que o lançamento iria exatamente em determinado espaço do campo.
Pois bem, estamos, agora, lá na quadra da Prefeitura de Linhares – ES, disputando mais um racha. Graças ao Jadilson, que também se cognominou de Aríete, dificilmente nossa dupla perdia para a deles. Nesse dia, então, foi a glória. De qualquer parte do campo ele fulminava a trave adversária sem qualquer chance de defesa para o goleiro. E, em cada gol, ele disparara: “Ponha portão de aço aí na frente da trave pra resistir meu aríete”.
O Cancão, embora fosse atacante nato, resolveu por ordem na defesa, abandonando sua posição e postando-se de zagueiro central. Sempre ficava nervoso diante de qualquer derrota. Quantas vezes, por causa de seu descontrole, tivemos de arriscar nossos “pimentões” (narizes vermelhos) em campos sem alambrados, nos quais a torcida era a divisória de proteção! Por isso o apelidamos de “Cancão”, um pássaro agressivo, incapaz de viver associado.
E a pelada prosseguia, com o Jadilson sempre se desvencilhando e desfechando suas “arietadas”, e o “Cancão”, cada vez mais enfezado e vermelho de raiva. Lá pelos oito a um, o Aríete escapou do meio do campo. Atrás, apenas o Cancão, disposto a tudo para evitar mais uma humilhação. E, quando o Zeca ergueu o aríete, o Cancão apresentou a sola, descascando a canela dele do joelho ao “quichute”.
Ali, é claro, o jogo foi interrompido. Brigar de soco, nem pensar, mas de língua, foi confusão até à entrada do hospital.
No outro dia, mais enfaixado que a galinha da cachaça “Ximbica”, estava a perna do Aríete. Embora mancando, ele continuava lembrando a ação de seu aríete, segundo ele, mais potente do que aqueles que os romanos utilizavam para baixar os portões dos cartagineses nas guerras púnicas, lá no século III a.C.
– É!…, disse o Cancão – o aríete dos romanos funcionava porque os cartagineses ainda não conheciam a ação inibidora do meu “rebolo”.
De fato, o aríete do Zeca ficou danificado por muitas semanas até que voltasse a ameaçar novamente o rebolo da fortaleza inimiga.
Ah, tempo que já não torna! Como cantava Ataulfo Alves: “Eu era feliz e não sabia”.

O CAFÉ DO BUZETTI
Certa feita, levei meu amigo Francisco Andrade – nesse tempo proprietário da Madeireira São Marcos aqui de Imperatriz – para “marcar” um tombadouro de madeiras em toras. Nosso barraco de apoio ficava dentro da mata, bem perto das madeiras extraídas. Chegando lá, levei-o ao barraco e ofereci a ele uma caneca de café. Ele aceitou prontamente. O cozinheiro veio com um canecão de plástico contendo, no mínimo, meio litro de café, quase sem açúcar, dormido e frio. Ao perceber que o meu amigo apenas molhava a boca com o “purgante”, observei:
– Francisco, se estiver ruim, não faça cerimônia. Pode jogar fora. Fique inteiramente à vontade.
E ele, depois de um “graças a Deus” comovente, arremessou o terrível líquido a mais de dez metros pela mata adentro.
Pois bem, hoje me lembro do Buzetti, um “amigo” com quem quase me engalfinhei por causa de futebol. O desgraçado, ladino como uma raposa do deserto, resolveu, só para me pirraçar, fundar um outro time num lugar em que não havia mais de 15 rapazes que gostavam de futebol. Resultado: fiquei sem time. Mas isto é uma longa história que deixarei para outra oportunidade.
Nesse ano, o Buzetti era comprador de café do Passamani, um rico comerciante da vila de Marilândia – ES. Ele vivia dentro de um Chevrolet de bigode, visitando pequenos colonos e comprando café a varejo para o seu patrão.
Certa feita, ele visitou um caboclo que morava na encosta de uma pedreira, perto do povoado Japira. Entrou por uma estradinha péssima e encostou o carro no terreiro da casa. O terreno era tão acidentado que a porta da cozinha se nivelava ao chão, mas as janelas contrárias ficavam a dois metros de altura. No sótão ou vão formado pela diferença do terreno, ficavam as ferramentas de trabalho e o café já seco. Ali, também, os filhos pequenos do colono passavam a maior parte do tempo a brincar, aproveitando a sombra da própria casa.
Era costume por lá, um bom papo informal antes de se falar em negócios. Fazia parte da sondagem comercial. Por isso, o colono, que já sabia o motivo da visita, convidou o Buzetti a entrar, oferecendo-lhe uma cadeira na sala, bem perto da janela. Em seguida, deu “ordens” à mulher para que preparasse um café suculento ao visitante. Quinze minutos depois de muitas histórias, lá estava a mulher, trazendo dentro de uma velha bandeja, quatro canecões de plástico: daqueles do Francisco Andrade. Havia uma diferença marcante: este café borbulhava de quente.
Já na primeira degustada, o Buzetti percebeu que estava numa grande enrascada: o café parecia mais um chá de fel levado ao fogo.
Mas, se por um lado (como no caso do Francisco) eu não estava lá para dispensá-lo do sacrifício extremo de engolir o purgante, por outro, o Buzetti era mais atrevido e criativo. Por isso, na primeira oportunidade em que ficou com apenas o colono e os que estavam com ele para carregar o caminhão em caso de negócio, ele pediu ao anfitrião que lhe trouxesse um copo d’água. Por sorte, o “machão” não gritou para a sofrida esposa para fazê-lo. Levantou-se e foi, ele mesmo, apanhar a água. Era o curto espaço de tempo de que o Buzetti precisava.
Mal o homem deu as costas, ele arremessou o canecão de café fervendo pela janela, sem imaginar que as crianças estavam embaixo, brincando na terra. O café fervendo foi cair exatamente na cabeça de uma das crianças. A gritaria foi grande, a queimadura, não menor que a gritaria.
Com aquela situação embaraçosa, o Buzzeti nem sequer falou mais sobre o motivo de sua visita. Apanhou a criança, virou o carro e acelerou quanto pôde para Colatina, a cidade mais próxima em que havia hospital.
Apesar das cicatrizes, a criança ficou curada, mas o Buzetti perdeu o emprego e ainda teve de pagar as despesas médicas e hospitalares.

CANCÃO E MÊNEGO CANARIM
O Velhão, meu irmão primogênito, teve três filhos machos. O Zeca (Jadilson) teve uma infância pacata, sendo sempre uma criança amável, dócil e obediente. Os outros dois, Joelson e Cláudio, respectivamente conhecidos por Cancão e Mênego Canarim, Meneghin ou Mênego, saíram endiabrados.
Cancão, sempre indócil, bruto e pertinaz, vivia azucrinando a vida de uma vila inteira, chegando mesmo a preocupar o sargento Luís: austero policial que não hesitava resolver seus problemas à bala, caso o cacetete e a vara de guaxima falhassem.
O Meneghin, além de resquícios dos dotes do irmão, ainda mantinha em si a teimosia de todas as galinhas chocas do mundo juntas. Houvesse jegues do Paraná para competir!
Dália, sua mãe, não saberia precisar quantas vezes foi vencida pelo Meneghin, que não se importava de apanhar 20 vezes seguidas, desde que não fizesse o que lhe havia sido imposto, ou mesmo pedido com todo carinho. Todos os problemas dele continham a mesma resposta: “Não!”.
Crianças do interior, costumes do interior. Marilândia surgiu encravada no meio da vegetação espessa, na qual pululavam alíferos mil: um convite irresistível para a criançada com seus embornais de pelotas e suas “setras”, como dizia o Cancão.
Sempre com seus estilingues pendurados ao pescoço, eles viviam de Marilândia ao sítio que tínhamos e, no percurso de cinco quilômetros, peloteavam as lâmpadas do Campo de Experiência do Estado, cegavam cavalos do Tunico Ceolin, castravam reprodutores, quebravam canos d’água que transpunham as estradas por cima… Uma verdadeira praga, semelhante ao bíblico relato dos gafanhotos do Egito. Reclamações acumulavam-se e o pobre Velhão já não sabia como resolver tantos impasses.
Na escola, uma lástima! Ficou notório o dia em que a professora arguiu o Cancão, depois de horas falando sobre capitais:
– Você aí, que está furando o companheiro com o lápis, qual a capital da Tchecoslováquia? Falamos a aula toda sobre isso, lembra?
Mais vermelho que escarlate, com seus fiapos de ralos cabelos finos e alvos revoltos pelo vento, ele, que de exemplar nunca tivera nada, ficou pensativo e cabisbaixo. A professora esperou, esperou e em seguida tentou ajudar:
– Meu filho, o nome da capital que lhe peço é algo semelhante às doenças que atacam as galinhas lá no terreiro de sua casa…
Antes que a mestra chegasse ao fim de sua ajuda, ele interrompeu eufórico:
– Já sei, já sei, professora.
– E qual é?
– Gosma!, respondeu vitorioso. (É que os italianos assim denominavam uma PRAGA que todos os anos infestava os terreiros. As galinhas pigarreavam até morrer sem se livrar dos vermes que se localizavam na traqueia).
Em casa, nada escapava. De uma fome digna de Biafra, a tudo devorava e jamais dispensava qualquer coisa que lhe fosse oferecida.
Um dia, sua mãe encomendou um bolo lindo e enorme para festejar o aniversário do filho mais velho, o Zeca. O bolo estava coberto e tudo parecia normal. O momento esperado chegou. Crianças em volta, gritaria, doces e música. Destapa-se o bolo e, nele, duas profundas valetas o cortavam de alto a baixo. Não foi difícil descobrir o profanador, pois o Cancão era o único que possuía dois enormes e solitários incisivos.
Outra feita, minha mãe deixou umas cocadas sobre a cristaleira. Para quem olhasse de longe era possível ver o prato, acontecendo isto com meu sobrinho que, no entanto, não tinha tamanho suficiente para alcançar o objetivo.
Alguns minutos depois, toda a família se dava o trabalho de desentulhar o faminto Cancão das vidrarias da cristaleira. Neste dia não escapou de uma boa surra.
Do outro lado, o Meneghin, também conhecido por Nanico, ia fazendo das suas, tendo a teimosia como ponto culminante.
Dália, a mãe dele, mata um porco e o escala para levar o quinhão de direito para minha mãe, que morava do outro lado da rua. O NÃO foi automático. Para desgraça do Meneghin, meu irmão Ildebrando, sincopado para Brando, estava debruçado na janela de nossa casa olhando o movimento e ouviu a cunhada sendo desrespeitada. Interferiu ferinamente:
– Como é, vai deixar este moleque desobedecer mais uma vez?
– Leva isto lá, Cláudio, gritou minha cunhada, agora com a moral em jogo.
– Não levo!
Oito correadas na bunda e um cocorote de destroncar o dedo.
– Não levo, continuou o teimoso e desobediente Nanico, ou Mênego.
E dizem que o diabo dá ideias a quem fica à toa. Deve ter sido ele quem inspirou o mano na frase apropriada para fazer o Nanico levar a maior surra da vida.
Mãe é sempre mãe e, apesar da teimosia do filho, já ia deixar por menos, quando o Brando interferiu lá de baixo outra vez:
– Não é possível! Vai deixar assim? Se fosse filho meu eu matava, mas tinha de levar.
E assim, surra após surra, vai e não vai, cocorotes e tabefes, se é filho meu ou se não é, o pobre Nanico ficou com a bunda e a cabeça mais cheias de ressaltos do que carambola defeituosa. E o que é mais importante: ele foi sim, mas arrastado pela mãe e com a carne numa sacola amarrada ao pescoço.

DE TROMBONE À FLAUTINHA
Baiano era o apelido de um homenzarrão que, logicamente viera da Bahia à procura de serviço. Dizia-se profissional em motosserra, falava grosso e ostentava um bigodão com a finalidade de cobrir a ausência de um dente incisivo. Era vaidoso e metido a valente. Sua voz tonitruante era calibrada ao grave, a fim de intimidar qualquer adversário que tentasse repeli-lo. A quem tivesse medo de trovoada não era aconselhável discutir com ele. Por todas estas “qualidades” o contratamos sem muita conversa. Nesse tempo, para conviver… e sobreviver naquele ninho de gozadores e encrenqueiros, só mesmo alguém com tais prerrogativas.
Nosso barracão de serviço ficava no centro de uma grande floresta pertencente à CIAMA – MA. Media mais de 40 metros de comprimento e, aproximadamente, seis metros de largura. O espaço dava para as 32 redes e, também, para o quarto das cozinheiras. Durante o dia, muito trabalho. À noite, do escurecer ao “Jornal Nacional”, tudo o que a mente mais pródiga pode imaginar, acontecia naquele fim de mundo. Era jogo de dominó, canastra, dama, discussões, desafios, duplas sertanejas improvisadas, histórias mirabolantes do presente e do passado.
O trabalho de extração de madeira é muito perigoso. Lida-se com árvores milenares, cobras venenosas, máquinas pesadas, lugares acidentados, objetos que comparativamente nos transformam em formiguinhas diante de elefantes. Qualquer distração ocasiona um grave acidente, ou a morte do envolvido. Perdemos alguns companheiros nessa lida.
Um deles foi o Jeová, um ajudante de motosserra que, num dia fatídico, resolveu acompanhar o patroleiro no acerto de um pequeno trecho da estrada. Na verdade, ele queria ser patroleiro e, sempre que possível, acompanhava o primo, que era exímio operador. Nesse dia, ao retornar, ele pediu para dirigir a patrol até o barraco. O lugar era acidentado e, num morro íngreme, ele não conseguiu passar a marcha exigida e a máquina voltou, atingindo logo uma alta velocidade e, em seguida, capotando. O Jeová ficou sob as ferragens e acabou esmagado. Logo depois, eu cheguei ao local e, com muita tristeza e dor, constatei o fato.
Três dias depois, algo estranho começou a acontecer no barraco. Todas as noites, logo que o Jornal Nacional terminava, o motor era desligado. O silêncio reinava quase soberano. Apenas os lamentos dos urutaus e os gritos metuendos das corujas feriam a quietude. Era aí que uma verdadeira chuva de saibros caía, misteriosamente, sobre as cozinheiras. Incontinenti elas saíam apavoradas do quarto e vinham se juntar a nós. Todo mundo (com a exceção do Cabeção) acordava, sem que ninguém conseguisse uma explicação razoável do que estava acontecendo.
Com o passar dos dias, a coisa foi ficando insustentável. Ninguém conseguia entender como aquelas pedrinhas caíam lá, já que as tábuas do quarto das cozinheiras encostavam no teto e a porta ficava trancada por dentro. Como podia alguém arremessar saibro lá dentro? Era o fantasma do Jeová: os caboclos não tinham mais quaisquer dúvidas. Terços, despachos, encomendas…, tudo foi rezado e feito sem qualquer resultado.
Alguns funcionários começaram a dizer que iriam embora, mesmo porque não aguentavam mais trabalhar de dia e se borrar de medo na hora de descansar. E todas as noites as empregadas saíam horrorizadas de dentro do quarto e vinham soluçar entre as redes dos funcionários. Para maior desdita, a minha, como chefe, era a preferida. Não havia um cabelo ainda para nascer, que não ficasse em pé. Lembro-me bem!
Numa noite, depois de as cozinheiras saírem apavoradas, o tal Baiano valente saltou da rede, engrossou o timbre da voz ainda mais, aprumou o bigodão desarrumado pela coberta e resolveu dar provas de sua valentia:
– Fantasma não existe, pessoal. Isso é sacanagem de alguém. Vou ficar lá dentro com as cozinheiras e quero ver se este fantasminha de merda vai ter a coragem de enfrentar o “baiano falado lá de Itamaraju”.
E lá foi o baiano para o desafio, escoltando as duas mulheres. Elas deitaram em suas redes e ele acomodou-se numa vaga da prateleira que não continha alimento. Apagaram-se as velas e as lanternas. Grilos, morcegos e toda sorte de sons fantasmagóricos foram preparando o ritual da chegada do fantasma. Por cinco minutos imaginamos que o fantasma, de fato, havia se intimidado com o nosso herói. Afinal, fosse mesmo o Jeová, conhecia bem a fama do Baiano de quem fora ajudante. Pura pretensão! Um pouco mais e uma chuva de saibro mais forte que as anteriores caiu sobre a cabeça do “Baiano falado de Itamaraju”, sujando de poeira até o prolixo bigodão dele.
Não precisou nada mais que isso. A porta se abriu violentamente e o nosso Baiano, como paca tangida por cachorro, saltou do quarto bufando, vindo parar no meio de nós. E sua voz, antes grave e rouca, pausada e amedrontadora, agora era de uma bichona em apuros, assustada e dependente. Falando fino, em sons recortados e gaguejantes, ele se entregou:
– Gente, a COISA É SÉRIA! Amanhã mesmo vou acertar minha conta e voltar para Itamaraju. E que o bicho me perdoe por ter duvidado dele!
Meus cabelos levantaram. A Tonha desatou a rede e correu pra junto de nós. Atrás e um pouco mais devagar, veio a Florisvalda. O silêncio era tanto que incomodava. Meu rosto parecia pegar fogo: nunca tinha vivido uma situação parecida. A única coisa que me salvava era a eterna incredulidade. Num ímpeto incontrolável, desafiei:
– Se é fantasma que jogue, agora, um punhado de terra na minha cara também. Fechei os olhos, mas nada aconteceu. Alguém, lá dos fundos, observou:
– Seu moço, não fais uma desgraça desta, não!
– Sabe o que é, gente – justifiquei-me – nunca consegui acreditar nestas coisas. Portanto, creio eu, esta é uma hora das mais propícias para tirar de mim estas dúvidas. Não estou mexendo com o além, estou apenas procurando minha verdade.
É bem certo que eu estava tenso, morrendo de dúvida e de medo. Acho até que falei aquilo sem pensar direito, mas o certo é que falei, e nada aconteceu.
Durante o resto da noite, nada mais de anormal se fez sentir. Cheguei a pensar que havia desmoralizado o fantasma. Nas noites seguintes, também nada mais caiu no quarto das meninas. Aos poucos fomos esquecendo que, de fato, fantasmas podem existir.
Quando já nem se falava mais no caso, numa noite de relâmpagos, trovoadas e chuva, talvez aproveitando o cenário perfeito para seu retorno, o fantasma voltou. O motor havia sido desligado mais cedo e com o acalanto dos pingos ressoando na cobertura do barraco, alguns já começavam a roncar.
De repente, a velha e quase esquecida rajada de saibros cai, outra vez, em cima das cozinheiras que, não esquecendo as rápidas escapadas a que já haviam se acostumado, saíram pela porta e esbarraram na minha rede:
– Seu Livaldo, quero minhas contas. Amanhã vou embora – disse a Tonha, tremendo da cabeça aos pés. Florisvalda, no entanto, agarrada à companheira, mostrava-se temerosa, porém mais controlada.
E eu, que não era de Itamaraju, mas carregava uma incredulidade bem mais forte que o bigodão do baiano, resolvi, também, desafiar o fantasma do Jeová. Tomei as cozinheiras pelas mãos e fui com elas ao quarto mal-assombrado. Sentei-me no mesmo lugar em que o “baiano falado de Itamaraju” sentou e fiquei atento, sempre protegendo os olhos, porque ainda não estava certo se o fantasma jogaria limpo.
Nada aconteceu até amanhecer. Quando elas se levantaram e o sol alumiou melhor o quarto sem janelas, examinei o chão: embaixo da rede da Florisvalda vi os arranhados com que ela juntava as pedrinhas de saibro para arremessar ao alto. Estava desmascarado o fantasma. A paz voltou a reinar e do fantasma, apenas piadinhas de que o “baiano falado de Itamaraju” não gostava.
E a Florisvalda, pela ingenuidade de suas ações, continuou lá, trabalhando como se nada houvesse aprontado. Nunca explicou a razão daquele comportamento e eu, que não sou psiquiatra nem terapeuta, preferi agradecer a Deus por não ter os olhos cheios de saibros.

CADÊ ESSE NEGO SAFADO?!…
Há cinco anos, meus sobrinhos resolveram tentar a sorte na Transamazônica, num fim de mundo a 140 km além de Altamira e a 40 km antes da cidade de Uruará, no Pará. Há sete anos, quando cometeram essa loucura, gastava-se dois dias de carro pequeno para desfazer o percurso. Em tempo de inverno, normalmente não se conseguia de jeito algum.
E lá, com toda fibra da qual me orgulho participar geneticamente, eles começaram a trabalhar. Seria tentativa vã descrever os milhares de problemas que enfrentaram até constituírem uma das firmas mais poderosas da região: quase um império.
Com o passar do tempo, grande parte da estrada foi asfaltada, a energia passou por lá, o telefone chegou e o comércio de exportação melhorou. Com quase uma centena de casas para funcionários, logo pequenos comerciantes (principalmente quiosques vendedores de cachaça), instalaram-se pelos derredores, formando uma grande vila. Mais um pouco e uma boate típica desses cafundós foi inaugurada. O que era uma simples serraria foi tomando forma de cidade, com igrejinha, campo de futebol, boates e comércio variado. Todos queriam o dinheiro que os funcionários não tinham onde gastar.
A “boate” logo passou a ser o local mais frequentado, tanto pelos solteiros, que se achavam no direito, quanto por alguns casados furtivos que sempre encontravam uma desculpa para “mudar a refeição”.
E foi assim que o Bigode, um crioulo forte que fazia jus ao apelido, começou a visitar o ambiente, em detrimento das indiretas da mulher desconfiada com a mudança radical dos hábitos noturnos do marido. Até então, ele chegava, assistia um pouco de televisão e, dizendo-se alquebrado, recolhia-se em sua rede. De repente, parecia alguém muito preocupado com o futuro, tendo, quase todas as noites, problemas para acertar com o patrão.
E a mulher, cansada de guerra, com um porção de filhos para cuidar, resolveu dar um basta àquela vexatória situação. Sob sucessivas ameaças, numa noite chuvosa de inverno, depois de acirrada discussão, o Bigode disse – mesmo debaixo de trovões e relâmpagos – que precisava “dar um pulinho” ao escritório da firma para resolver um problema urgente, que surgira no setor em que trabalhava. As ameaças da esposa foram vãs. Calçou os sapatos domingueiros, vestiu a melhor camiseta, apertou o cinto na jeans e se meteu na lama: o assunto era muito sério e urgente para ser adiado para o dia seguinte.
A mulher dele, uma crioula não menos destemida, lá pelas 23 horas, munida de um revólver e da faca da cozinha, resolveu “participar” da conversa do marido com o patrão, indo, sem fazer curvas, para a boate.
A farra estava animadíssima: carimbó, forró… saias esvoaçando, litros de cachaça sobre as mesinhas improvisadas e toda crioulada da serraria lá, como se não invejassem camas vibratórias ou qualquer artifícios dos luxuosos motéis metropolitanos.
Ela veio sorrateira e, por uma fresta da parede de tábua lobrigou o Bigode, numa mesinha tosca de madeira, bebendo e contando vantagens às meninas que se refestelavam com torresmos e pinga.
Sem muito pensar, já sem um neurônio a auxiliar o bom senso, cega de raiva e revolta, a humilhada esposa, que passou o melhor de sua vida criando filhos, lavando e cozinhando para folgar na velhice, sacou do revólver do próprio marido, empunhou a afiada faca de cortar cebolas e investiu num grito que qualquer taoístas do século V a.C, especializado na arte do Kung fu assinaria:
– Tu vai vê agora, nego safado, com quantos pau se fais uma cangaia!…
Na sala havia, pelo menos uns 20 crioulos, todos casados e ameaçados por suas mulheres – sabe lá Deus quantas vezes! De gente que estava no balcão para um cafezinho, ao soldado que mantinha a ordem, todos deram no pé, derrubando mesas, espalhando pinga, saltando pelas janelas, bufando como boi arredio peado.
É que quase todos eram crioulos, quase todos casados e todos atrás de safadezas. No grito “Tu vai vê agora, nego safado…”, nenhum deles ousou certificar-se de qual deles era a mulher. O momento não era de averiguar e sim de tomar decisão urgente.
No outro dia, lá estava o Bigode, de motosserra em punho, no pé de um jatobá com cinco metros de circunferência, todo molhado de suor, ganhando o sustento da família e fazendo mil planos para resolver a enrascada em que se metera. Pra casa, só depois de alguns longos meses de celibato.
É…, o nego safado foi descoberto e pego com a boca na botija!

GALPÃO PEQUENO PRA DOIS
Para quem nunca se deu à emoção de passar tempos no mato, isolado do mundo dito civilizado, em contato direto com a natureza, convivendo com pessoas de outra cultura, ouvindo histórias e mais histórias, deve achar que o que vou contar não passa de mais uma balela de contista. Vocês sabem que é proverbial a fama dos pescadores e caçadores no que se refere a inventar fatos, mas posso garantir-lhes que nada é mais imprevisível do que a reação de um animal em situação embaraçosa. Eles reagem e agem, na maioria das vezes, contradizendo tudo aquilo que aprendemos como óbvio, razoável e previsível.
Num sertão paraense, um grupo de capixabas resolveu instalar uma grande indústria de madeira. Para tanto, construíram muitas casas e um enorme galpão que servia para tudo: desde caixas de fósforo até carcaças de velhas máquinas pesadas ficavam apinhadas lá dentro. Nem o Taj Mahal, construído pelo xá Jahan para sua favorita Mumtaz Mahal conseguiu um lugar mais aprazível para sua amada do que os construtores daquele barracão para ratos e cobras. À noite, a barulheira era infernal, metuenda e fantasmagórica.
Nessa região de que lhes falo, quem explora o ramo de madeira tem de ser autossuficiente. Por isso, a extração era própria. Mais de 50 funcionários eram responsáveis pela derruba, corte, arrasto e transporte dos toros à indústria. Quando em vez aparecia, na serraria, um funcionário acidentado ou acometido de malária. E foi assim que apareceu por lá o Edilson, dizendo-se com maleita.
Como não seria possível boa acomodação para todo mundo que entrava e saía a cada momento, o tal galpão servia de abrigo temporário a todos que precisassem de socorro. Era noite e o Edilson foi aconselhado a estender a rede num canto qualquer do almoxarifado, para que no outro dia fosse levado ao posto de saúde.
Já estropiado, febril, acostumado às agruras de uma vida sem conforto, ele não discutiu: jogou a mochila nas costa e rumou para o galpão: mais de 50 metros de comprimento por 20 de largura. Lá dentro havia espaço para acomodar um exército inteiro (se as cobras e os ratos, inquilinos permanentes) dessem permissão.
O portão ficava entreaberto e apenas uma lâmpada sem presteza alumiava um pouco a parte dos fundos. Sem pensar em qualquer contratempo, o Edilson foi entrando, cuidando apenas para não arrebentar a cabeça em alguma haste de ferro de cabinas de carregadeiras. Havia muitas lá.
De repente, sentiu algo estranho sob seus pés. Era como se estivesse em cima de uma enorme linguiça com vida. Nem deu tempo para conjecturas, pois o tal “linguição” reagiu, enrolando-se em suas pernas. Instintivamente o caboclo concluiu que o lugar que escolhera para armar a rede já tinha dono, e disposto a fazer valer o direito de haver chegado primeiro. E foram tantos os pulos, chutes, chicotadas e gritos, que em menos de cinco minutos, a porta do barracão estava cheia de funcionários com trabucos na mão.
Libertando-se afinal da jiboia, que sorrateira espreitava um entre os milhares de ratos que ali havia, o Edilson, arrancando unhas nas ferragens, tropeçando, caindo e se levantando, veio arriar-se nos pés da turminha atônita. Foi preciso gritar por água com açúcar para que ele não tivesse “um troço”.
Já entre os companheiros, bufando mais que touro em castração a macete, ele ouviu a esperada pergunta:
– Que houve, homem de Deus?
E ele, falando em retalhos, respirando em golfadas, lívido como um moribundo, tentou explicar-se:
– Uma cobra… uma enorme cobra… maior que eu… juro pelos meus filhos! Se eu não fosse cabra macho de verdade ela teria me engolido.
– Mas rapaz – emendou um outro curioso – com um galpão deste tamanho, você não fugiu da cobra?
– Pois é cara, isto aí ficou pequeno para caber eu e a cobra. Juro que ficou!
E o patrão, que chegara atrasado, mas já sabia do fato, determinou:
– Entre no carro. Um susto deste mata. Se encontrar a cobra, leve-a. Acho que devemos interná-la também.

CAÇADOR “MARCA CU”
Há mais de meio século, apesar de Haeckel já haver criado o termo Ecologia, poucos sabiam de sua definição e, muito menos, de sua finalidade. Apenas em alguns lugares do mundo os animais e o Ambiente eram respeitados.
Nos tempos idos, os confins norte do Espírito Santo, onde meu pai resolveu tentar a sorte, era um mundo desabitado por gente e prenhe de todo tipo de animais silvestres. Onças, tamanduás, cobras de todas as espécies, antas, queixadas, barbados, enfim, a vida pululava a cada centímetro e, junto com ela, um interminável mundo de desafios e perigos.
Meu irmão mais velho logo aprendeu a caçar e, estranhamente, ao invés de perseguir veados, porcos ou qualquer animal de grande porte, interessou-se pelos macucos, uma ave arisca que desafiava a argúcia de qualquer amante da cinegética. Tínhamos tempo e havia muitos macucos por todos os grotões e encostas. Quando eu, como caçula dos homens, atingi meus 15 anos, fui levado por ele para minha primeira experiência. Nesse tempo, o mano já sabia tudo sobre a arte de caçar macucos. Era capaz de reconhecer até pela folhagem do chão, pelo tipo do terreno e pela presença de certas árvores, a morada deles. Ele dizia que cada animal mantinha preferência ou mesmo necessidade de habitar em lugares em que sua alimentação predileta existia. E ele conhecia bem tais preferências, porque sempre olhava o que cada espécie de inhambu abatida continha no papo.
O mano envelheceu… morreu. Tudo o que sabia ensinou-me e, assim, tornei-me detentor de tristes troféus, sendo, durante anos, “Campeão de Caçada” por quase todo o Brasil.
E o tempo irreversível continuou sua caminhada. A mensagem de Haeckel atingiu-me e, com a graça de Deus, bem cedo reconheci o mal que estava fazendo à fauna e pendurei a espingarda para nunca mais tirá-la do fumeiro.
Mas, quando parei, eu sabia muito sobre todo tipo de aves rasteiras, aquelas que normalmente os caboclos chamam de inhambus. Na minha família de sete irmãos, cinco eram do sexo masculino, mas apenas dois foram dependentes de caçadas: Adalho e eu; o primogênito e o caçula. Com a partida do mano mais velho, todas as vezes que os outros meus irmãos queriam matar um macuco, insistiam para que eu os acompanhasse para atrair o galináceo até eles. Sem radicalismo, vez por outra, eu ia.
E foi assim que, há algum tempo, entrei na mata acompanhando o mano Dolmino, 82 anos, para que ele abatesse um macuco (sonho que mantinha desde o abandono da juventude). Usando tudo que sabia, escolhi um lugar apropriado e, por azar, nele havia um poleiro que “o diabo havia preparado”. O mano olhou e logo decretou:
– Vou subir lá!
– É muito alto – observei. Além do mais, com este seu joelho destrambelhado e com sua idade, não é aconselhável que o faça.
– Conversa – obtemperou. Tenho tutano para subir lá sem qualquer problema.
E assim ele o fez. Depois que subiu com um cipó amarrado à cintura, eu amarrei a espingarda na outra extremidade e ele a puxou até onde se encontrava, numa altura de, no mínimo, 9 metros. Deixei-o lá se ajeitando e afastei-me uns 15 metros. Sentei-me no chão, sob uma moita e comecei a piar. Ele possuía uma ampla visão e por certo nem uma borboleta passaria pela adjacência sem que ele percebesse.
O macuco respondeu logo, mas era daquele tipo frio e covarde, que não está disposto nem a cruzar e muito menos a expulsar o intruso. Mas veio chegando, lentamente. Depois de quase uma hora, percebi que ele piava debaixo do poleiro do mano e nada de o tiro sair. Foi quando aconteceu o que jamais eu podia imaginar. Ouvi galhos quebrarem, cipós sendo arrastados e algo que despencava do alto e se esborrachava no chão. O macuco voou espavorido e, imediatamente supus o óbvio: o mano caira do poleiro.
Chamei por ele, uma, duas, três vezes. Gritei e, em seguida corri para o local. Lá estava ele, debaixo de tudo quanto arrancara na descida e com o joelho deslocado, dentes serrados de dor. Com a demora, ele havia dormido e caído do poleiro e, agora, restava-me o grande problema de sair daquela situação embaraçosa. Retirei-o da folhagem, arrastei-o para um lugar mais limpo, examinei-o todo e, com sua ajuda, constatei que apenas o joelho “bichado” dele não resistira à íngreme descida.
Aquela não era a primeira vez que a perna destrambelhava. Ele sabia como recolocá-la no lugar, e depois de muitas bufadas, mesmo sem minha ajuda, ele o fez. Apoiado em mim conseguiu chegar ao barraco, onde não se livrou da observação sarcástica que tantas vezes eu ouvira de meu saudoso professor: “Ah, caçador marca cu!”
Como seu fiel discípulo e herdeiro-mor, não poderia deixar passar em branco.

O PAUZINHO DO VALTER
O ditado: “Futebol: paixão nacional”, para mim, dos cinco aos 56 anos, representou, apenas, uma pálida definição desta modalidade de esporte. Quando criança – como não encontrasse companheiros para jogar 24 horas por dia – eu ficava angustiado todas as vezes que uma pelada terminava, na certeza de que teria de esperar até o outro dia para correr atrás da bola outra vez.
Morava na roça e, segundo diziam, demonstrava aptidão para o futebol. Aos 17 anos eu já fazia parte do time titular de minha cidade, Marilândia – ES. Era o melhor time do interior e, por isso, passamos a disputar o campeonato regional de Colatina, naquele tempo, a segunda maior cidade do Espírito Santo.
Como todo time da roça que se preza, também o nosso possuía um jogador “brabo”, aguerrido, “matão”, “caneleiro”… e que parecia não “bater bem da cabeça”. Era lateral esquerdo, o mais temido da região. De técnica não entendia nada, mas ai daquele que ousasse carregar a bola pela ala da qual ele era responsável. Aquela parte do campo, nem uma surucucu-pico-de-jaca vigiava melhor. Com poucos minutos de qualquer jogo, todos os ponteiros direitos adversários já se deslocavam para outra parte do gramado, levando nas canelas amargas e indeléveis lembranças.
Mas, “como toda araruta tem seu dia de mingau”, também o nosso temível lateral teve o seu dia aziago. Num jogo que fizemos contra a U.A.C.E.C. (um time de estudantes do Colégio Estadual Conde de Linhares, de Colatina – ES), um tal de Belo que, por sinal, acabou jogando em alguns times profissionais do Rio de Janeiro, enfiou três gols em nosso time em menos de 15 minutos. De fato ele era “uma praga”. Driblava como Garrincha, tinha a impulsão do Dadá e a pontaria de Biguá para o cabeceio, além de chutar muito bem. É bom que se esclareça que, a cada dez partidas da U.A.C.E.C., normalmente ele participava de duas. Nas demais ele estava sempre bêbado num botequim qualquer, dedilhando seu inseparável violão, sempre rodeado de meretrizes do “Coqueiro”, zona da cidade.
Percebendo que durante os 90 minutos, segundo cálculo comparativo, chegariam a 18 gols, nosso meia-armador Zé Firme foi até a lateral do campo e cochichou no ouvido do Valter: “Que diabo está acontecendo? Se não parar o homem, iremos sofrer a maior goleada da história!” Pense nos dentões dos Buzzetis quando chegarmos a Marilândia! (Os Buzzetis dirigiam o América F.C., time que surgiu dos renegados e, consequentemente, revoltados do Marilândia E.C.). Eram dentuços e torciam sempre contra o nosso time, ainda que defendêssemos o nome da vila de Marilândia, jogando contra clubes de outras cidades.
Nosso lateral, cabisbaixo e envergonhado, confessou: “Não consigo marcar aquela peste. É mais liso que jundiá ensebado.”
– Pois dá um “pauzinho” nele, ora! – recomendou nosso meia-esquerda.
E, na primeira bola que foi para o Belo, já deslocado como rei lá pela ponta direita, a desgraça aconteceu: nosso lateral, já todo pelado de esfregar a bunda no chão sem achar a bola, tomou distância, retesou os músculos, ergueu a chuteira e foi no meio das costas do Belo. Nas travas, um pedaço da camisa, o calção e a sunga. Belo caiu sem sentidos e entrou em coma, só voltando a si no outro dia pela manhã. A torcida pulou o alambrado, mas, convenhamos, com as mãos era difícil machucar aquele homem que passava a semana carregando sacos de café nas costas pelos morros da colônia. Contudo, listras de sangue e manchas roxas havia mais nele do que nos heróis de filmes americanos quando, sozinhos, resgatam um compatriota confinado num quartel alemão, com milhares de vigilantes armados. Mas, o recado estava dado: naquela parte do campo, para passar, só com licença do lateral.
Depois de tudo terminado, já em cima da carroceria do velho Ford do goleiro Gil, nosso meia-esquerda foi até ele:
– Valter, pelo amor de Deus!, o que você fez?
E o lateral esquerdo, todo cheio de curativos e muito irritado, defendeu-se:
– Como me pergunta o que foi que aconteceu, se foi você quem mandou eu dar um pauzinho nele?
– Um pauzinho sim – ponderou o Zé Firme – mas você matou o homem!

QUEM CONTA UM CONTO, ACRESCENTA UM PONTO
Do local em que a história se passou irei declinar, já que nele há muitos segredos inconfessáveis… e um único guardião.
Certa manhã, ao espreguiçar-se na varanda, Joacir, um criador de pássaros inveterado, ouviu da cunhada que era vizinha:
– Ontem, antes de me deitar, vi um rato enorme na varanda de sua casa. Nunca pensei que houvesse ratos com aquele tamanho! Se entrar no seu viveiro, certamente comerá seus pássaros todos numa única noite.
Joacir, que já estava com a vasilha de ração nas mãos, dirigiu-se apreensivo para o viveiro de seus passarinhos. Era possível que o tal rato já os tivesse devorado. Adentrou cauteloso e logo começou a verificar que os caroços de milho estavam sem o miolo: pista incontestável da presença de ratos. Deve ser aquele monstro de que minha cunhada falou – pensou.
Conferiu os pássaros, espalhou a ração que levara e imediatamente foi a uma casa veterinária e comprou veneno para combater o “monstro”. Cozinhou um ovo, picotou queijo, banana, salame, peixe… Acresceu ainda amendoins, farelo e, por fim, três pacotes do veneno mortal.
Começando pela casa da cunhada, foi parar na porta do viveiro. Tudo o que era buraco, canos, pneus e latas velhas, tábuas meio suspensas, enfim, em todos os lugares preferidos dos roedores, a salada foi servida.
Dois dias depois, Joacir estava com um carrinho de mão fazendo a limpeza do quintal, quando observou um enorme rato morto dentro do viveiro. Apanhou-o pela ponta do rabo, jogou-o no carrinho e o levou à lixeira. De fato, o rato era muito grande, mas não, um monstro.
Mais tarde, ao notar a cunhada na varanda, comentou eufórico:
– Márcia, a fera comeu a isca!
– Era grande, não era?
– Levei-o num carrinho de mão. Nunca tinha visto nada igual.
– Eu não disse? Parecia um tatu canastra passeando pela varanda de sua casa, – animou-se ela diante do incentivo do cunhado.
E a história do enorme rato começou a fermentar. “Você soube? O Joacir matou um rato que precisou de um carrinho de mão para ser retirado do quintal.”
E cada um a quem a notícia era dada, encarregava-se de mais uma pitada de fermento ao repassá-la adiante. Com isso o rato, apesar de grande, foi tomando proporções gigantescas.
Chegou a um ponto em que um jornalista de TV da cidade, sabendo da história do rato, já repassada a ele, possivelmente, pelo décimo ou centésimo “fermentador”, foi à casa de Joacir para saber dos detalhes:
– Estou sabendo que o senhor matou um rato de tamanho incomum, tão grande que precisou de um carrinho de mão para retirá-lo do quintal. Gostaria que me confirmasse, antes da exumação comprobatória:
– O rato era mesmo muito grande?
– Sim.
– Você o levou num carrinho de mão?
– Sim.
– Quantas quilos pesava o roedor?
– Quilos?
– Sim. Não era descomunal?
– Era, mas não para quilos.
– Quanto você acha que pesava o rato?
– Uns 400 gramas.
– E, por que o carrinho de mão?
– Porque eu estava fazendo a limpeza do quintal e aproveitei para jogar o rato dentro. Só isso.

A SOPA DOS COMBONIANOS
Já se vão um pouco longe os anos de minha juventude, quando com outros jovens eu perdia minhas noites ao lado do violão, cantando e dedilhando no silêncio agradável do mundo quieto. Eu sonhava muito naquele tempo! Puxa! como sonhava. Ficava momentos pensativo, olhando a moita de bambus, que me permitia prever a serenidade e a paz de um pássaro dormindo. Era naquelas noites já tão distantes, que meus pensamentos divagavam na pureza dos costumes, na esperança do futuro, na inocência do dia a dia, na autenticidade do agir. Jamais imaginava viver os dias que hoje vivo, tão atribulados.
Que pena, as marcas do tempo em nossos corações! Vivia para divertir-me, cantar, ajudar, progredir, confiar… E neste meio puro, associei-me a mais quatro meninas e três rapazes, formando um conjunto musical cognominado “Os Corujas”. Este conjunto, quase que exclusivamente beneficente, vivia a tocar em festinhas de cunho caritativo. Assim sendo, num dia qualquer, recebemos do padre Franco Foini, italiano da congregação Comboniana, um convite para ajudar nas festividades da padroeira da cidade de São Gabriel da Palha, no Espírito Santo. Dentro de uma Rural Willis, colocamos tudo – músicos, instrumentos…, e num sábado, às 10 horas, estacionamos em frente a Casa Paroquial.
Padre Franco veio sorridente e feliz, recebeu-nos e distribuiu-nos, levando-me, como chefe, para sua companhia e deixando os demais num modesto hotel da cidade. Como todo bom adolescente, já cedo o estômago doía de fome. Apesar destes reclames, o convite para almoçar só veio ao meio-dia. A mesa era ampla, os talheres prometedores, a fome negra. Seis padres, duas freiras e eu compúnhamos as ameaças a qualquer coisa que caísse ali na frente.
A empregada, uma gordinha de sobrancelhas albinas, estatura mediana e muito sisuda, chegou afinal, com uma enorme panela de sopa e algumas cestinhas de torradas. Pôs calmamente tudo sobre a mesa e saiu em seguida. Um tanto acanhado, esperei que os anfitriões se servissem e depois, como não sou 1á muito afeito a sopas, retirei uma concha pela metade. Mas, devido à fome, pareceu-me a melhor coisa que já havia experimentado. Como nenhum outro movimento acontecia, fui repetindo o prato até saciar-me definitivamente. Estranhei que os combonianos comessem tão pouco, mas fui inocente o bastante para acreditar na sobriedade deles.
E foi tanta a sopa que comi, que não pude furtar-me às desculpas costumeiras:
– Realmente estava com muita fome e sopa sempre foi o meu “fraco”.
– Não se perturbe, pode comer à vontade.
– Não, agora basta. Acho até que exagerei.
Padre Foini soou a campainha e novamente a empregada veio e retirou tudo. Não tinha sido o que eu imaginava, mas de qualquer forma aquela dor fina das tripas havia desaparecido. Além do mais, tinha de respeitar a educação alimentar dos religiosos.
Daí a pouco, eis que, ante meu olhar confuso, a gorduchinha entra novamente em cena repondo pratos e talheres limpos. A posição dos anfitriões perturbou-me ainda mais, quando percebi que permaneciam com os guardanapos enfiados nas golas das batinas. E não deu outra coisa: uma travessa de bifes à milanesa desfilou pelas minhas barbas, enchendo-me a boca de saliva e quase repugnando meu estômago cheio de sopa. Apesar da insistência dos padres, não quis mais comer, pois um pouco antes não tivera a educação de reservar um lugarzinho sequer para a sobremesa. Depois dos bifes, serviram ovos cozidos, salada, verduras e mais pratos deliciosos que me martirizaram sobremaneira.
Enquanto palitavam os dentes, estirados nas poltronas da sala, eu, comigo mesmo, prometia uma desforra à altura. Em cada passo ou movimento que eu fazia, sentia o aguaceiro da sopa arremessar-se contra as paredes do meu estômago. Mas o jantar viria e aí iriam ver com quantos paus se faz uma canoa. Para ser sincero, esperei com grande ansiedade este momento, e ele chegou.
Novamente entra a conhecida rechonchudinha, com a conhecida “panelona” de sopa fumegando. Deixou sobre a mesa e saiu calmamente. Já um tanto íntimo e com a ideia fixa no depois, retirei logo meia concha e degluti calmamente. Contrariamente, os padres encheram o prato e pareciam vorazes. Terminei o que havia colocado e empurrei o prato um pouco para frente, dando mostras de minha intenção.
– Coma um pouco mais, disse um deles.
– Não, não, de sopa, estou satisfeito.
– Come pouco assim?
– Nem tanto, retruquei já meio desconfiado.
E a desconfiança era fundamentada, já que a ilustre congregação tinha por hábito uma alimentação sóbria no jantar: uma sopinha por exemplo. Saí de fininho e fui a um quiosque meio clandestino e juro: nunca comi tanto cachorro quente com guaraná!
Costume miserável e traiçoeiro, esse dos combonianos!Se for convidado, fique atento.

DOIS ARREMESSOS QUE JORDAN ASSINARIA
Cena romântica após o jantar. Mesa comprida. Minha esposa de um lado, eu do outro. No meio, minha filha com uma caixa de bombom, distribuindo-os generosamente. Mais guloso, eu já estava no terceiro, mas convencido de que não se deve exagerar antes de dormir, afastei a caixa e comecei a fazer uma bolota com o papel alumínio que sobrara. Os papéis, depois de bem amassados, alcançaram o tamanho de uma bola de gude consistente e redondinha, trazendo-me à lembrança meus tempos de menino. Rodei-a entre os dedos centenas de vezes e depois, sem saber o que fazer com ela, resolvi fingir que iria arremessá-la contra o rosto de minha esposa. Naquele tempo ela detestava esse tipo de brincadeira; hoje… muito mais. Ela pôs logo a mão no rosto avisando-me de que não ousasse levar a cabo minha intenção.
Mas, mal ela baixava a mão, eu fazia de conta que arremessaria, e ela, depois de vários vaivéns com a mão, desistiu sentenciando:
– Não vou mais me proteger e ai de você se acertar meu olho!
Certo de que jamais isso aconteceria, ameacei mais uma vez e ela ficou imóvel, confiante na ameaça. Em seguida, arremessei a bolota e, pasmem: foi certinho no olho, tão no alvo como um míssil teleguiado. Ela ergueu-se quase jogando minha filha ao chão e foi ao banheiro, chorar e lavar o olho machucado. Fiquei transtornado, mesmo porque não via qualquer chance da desgraçada bolota acertar o alvo. Mas acertou… e em cheio… e bem no momento em que os grandes olhos dela estavam fixos numa cena da novela com o Tarcísio Meira esbanjando charme pra cima da Glória Menezes… como se fosse preciso!
Bem, ela ficou dois meses sem conversar comigo, não obstante minhas tantas argumentações de que fora puro acaso, coincidência desastrosa da qual me envergonhava.
Depois de longo tempo, numa noite propícia, saí do celibato e reiniciamos nossa vida normal. Enquanto isso, lá nos “quintos”, alguém maquinava nova recaída. Quase um ano depois, eis que observei (porque a bolota nas minhas mãos avivou a lembrança):
– Lembra, mulher, daquela tarde em que…
Ela interrompeu a conversa dizendo que preferia nem tocar no assunto. Ela sempre foi cultora do passado. Para ela o futuro e o presente pouco significavam. Lembrou o que acontecera e aconselhou-me a jogar a nova bolota na lixeira, o quanto antes. Uma segunda vez seria imperdoável, tanto quanto “os pecados contra o Espírito Santo”.
E eu, sem sentir a presença maligna que dividia a poltrona comigo, fiz de conta que jogaria a bolota outra vez. Ela duvidou. Não se protegeu nem piscou os olhos… E, acreditem se quiser: levantei-me, tomei a direção do filtro d’água e, de costas, arremessei a bolota para trás. Seria apenas para brincar. Estava certo de que dois raios não cairiam no mesmo lugar. Mas caíram! Também o segundo foi certinho no mesmo olho, agora fazendo um estrago maior. Até fiquei assustado quando ouvi o grito de guerra. Pra dizer a verdade, até hoje não saberia explicar como o diabo levou aquela bolota ao alvo. Estou certo que se eu viver um milhão de anos e passá-los todos arremessando bolotas estando de costas, não acertarei nem um elefante. Mas aquele arremesso foi jordaniano… e terrível.
Um ano depois, quando já praticamente nem lembrávamos mais que éramos casados, a chegada de um amigo que não víamos há décadas, fez com que trocássemos algumas palavras, apenas para salvar as aparências… e tivemos um acesso de riso quando ele desembrulhou uma caixa de bombom e nos ofereceu.
Ele nunca soube o porquê daquela nossa patética reação, mas o certo é que aquela caixinha valeu mais do que uma subida de joelhos pelas escadarias do Senhor do Bonfim. Reatamos o casamento.

“ANCA DIO LE DISPETOSO, QUANDO LU VUOI”
Tio Gin (tio Luís). Assim era conhecido o caçula da família do meu avô por parte de pai. Nunca conheci homem mais preciso em suas respostas, mais valente em qualquer situação, mais estopim curto nas interpelações, mais sistemático em suas regras de convivência, mais pão-duro em defender qualquer centavo ou coisa que lhe pertencesse.
Avesso a qualquer tipo de exploração, ainda que hasteada em princípios da tradição religiosa, ele não pensou duas vezes em oferecer aos meninos, no “bom-dia-bom-princípio” uma naco de polenta fria, alegando que não iria compactuar com aquela tradição estúpida de presentear guloseimas a moleques esfomeados, em todo dia primeiro de cada ano. Até hoje, lembrando tantas tiradas de sua vida, fico imaginando a velocidade de seu raciocínio na hora de replicar, de protestar ou de se defender.
Quando o conheci no auge de sua excêntrica personalidade, ele tinha lá seus 50 anos, e eu, mais ou menos 13. Nesse tempo eu andava meio desnorteado, não sabendo se ficava com as crianças ou se me enturmava com os adultos. Quando estava com as crianças ouvia as gozações dos adultos: “Sai do meio das crianças, seu galalau!”; se no meio dos adultos, logo vinha a observação maldosa: “O quê que este moleque está fazendo aqui no meio dos homens?”
Por isso, ora lá, ora cá eu ia esperando que o tempo solucionasse o meu terrível problema de não ser nem criança, nem homem.
Desta feita eu estava no campo de bocha do Lucindo, um pedaço de chão de 4 x 24 metros, coberto e nivelado, assistindo a um torneio que reunia 12 dos principais povoados da região. Estavam jogando Marilândia e São Pedro. Meu tio Gin era considerado o “russador” mais perfeito da região. Por isso ele era sempre o trunfo da equipe, ficando com a última bola para tirar, empurrar, afastar um pouco, enfim, mexer no jogo de maneira a conseguir o maior número possível de pontos. Por coincidência, depois das sete bolas jogadas, todas agrupadas em volta do bolim, o ponto continuava sendo do adversário. Cada bola valia dois pontos e o São Pedro precisava de seis para fechar a partida. O Marilândia precisava apenas de dois. Tio Gin ficou com a responsabilidade de dar um leve toque na bola do adversário e fechar a partida.
Pode parecer brincadeira, mas para aqueles italianos antigos, aquela jogada significava um pênalti decisivo em final de Copa do Mundo. O silêncio foi sepulcral. Tio Gin concentrou-se. Seus companheiros prenderam a respiração. Os adversários ficaram tensos: conheciam a precisão cirúrgica do tio Gin. A torcida também entrou em expectativa. Silêncio absoluto.
Ele andou de um lado para outro do campo, examinou o terreno, fez lá seus cálculos e, por fim arremessou suavemente sua bola de pau-ferro. Ela foi rolando no campo liso com direção e força corretas. Tudo indicava que seria mais uma jogada de mestre.
De repente, já se aproximando do emaranhado disposto em volta do bolim, num grãozinho qualquer de areia mais grossa, a bola desviou e foi em direção à única bola de seu próprio time que estava evitando os seis pontos do adversário. E assim foi. A bola do tio Gin desviou, tocou de lado na bola do próprio companheiro e deu os seis pontos de que o adversário precisava, fechando a partida. Se um mosquito passasse por ali naquele momento, certamente se ouviria o seu zumbido.
E antes que os comentários críticos começassem, aproveitando o silêncio pleno que ainda reinava, Tio Gin encontrou um culpado… e acusou em riste:
– Anca Dio le despetoso quando Lu vuoi!
Ele disse em seu dialeto: “Até Deus é vingativo quando quer”.
E antes que os “sacramentos”, os “cáspitas” e todo o dicionário de imprecações de seus companheiros começassem a ser desfiados, ele ganhou o portão de saída e tomou rumo ignorado, mais vermelho que toda a torcida coreana junta.

O REI MELEIRO
“Os dias não se descartam nem se somam, são abelhas que arderam de doçura ou enfureceram o aguilhão: o certame continua. Vão e vêm as viagens do mel à dor”. Pablo Neruda.
Quando entrei na juventude, já os meus irmãos trabalhavam extraindo e vendendo toros para as indústrias madeireiras de Linhares – ES. Eu estudava e, como hoje, havia férias em julho e, no final do ano, nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro. Um absurdo que persistiu por muito tempo, diga-se de passagem.
O mês de julho era usado para caçadas e pescarias, mas nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro eu acompanhava meus irmãos na dura luta pela sobrevivência. Nessa época eles possuíam dois caminhões e cinco juntas de bois. Compravam um pedaço qualquer de mata, faziam a estrada a enxadão, foice, facão, enxada, pá…, derrubavam as árvores, toravam-nas e com a ajuda dos bois, puxavam-nas até o tombadouro. O trabalho era tão rudimentar que, certamente, comoveria um Australopithecus.
Desta feita eu acompanhava os manos na região montanhosa do Japira, um povoado a 40 km de Linhares – ES. Havia árvore que era derrubada no cume do morro e depois de serrada a ponta e tirada a casca, com um leve empurrão descia sozinha até o sopé, onde os caminhões a apanhavam. Nem gregos nem romanos jamais imaginaram um aríete mais potente. A árvore descia como uma bala de canhão, decepando árvores menores e terminando a caminhada com mais de dois metros da ponta enterrados no aclive do outro lado. Coisa de doido mesmo!
Certa vez o derrubador encontrou uma abelheira enorme num jequitibá oco. Quando isso acontecia, o trabalho parava. Todos queriam se fartar, mesmo que saíssem picados pelas terríveis abelhas que azoinavam ferozes. Acontece que o oco era grande e havia mel para mais de 50 pessoas. Fartamo-nos, muito mel se perdeu e, mesmo assim, o cunhado Vicente conseguiu encher um litro com o qual pretendia agradar minha irmã. E foi logo ameaçando:
– Este eu vou esconder bem escondido. Todos já estão de rabo cheio, mas mesmo assim é bom prevenir – e me deu aquela olhada de soslaio, mais acusativa que um dedo em riste.
Bem, eu nem podia mais olhar para o mel. Só em pensar, o estômago embrulhava. É que ainda não havia perdido a gulodice dos meus tempos de criança. Mas, as horas foram passando, o mel se metabolizando e o estômago já demonstrando desassossego pelo meu esquecimento de algumas horas. Café não havia e o jantar só muito mais tarde, caso tudo corresse como previsto.
Já não havia mais sol quando o efeito do excesso do mel obrigou-me a procurar um lugar para baixar as calças. E olha aqui, olha ali, até que a galhada de um jequitibá me pareceu bastante convidativa. Havia um galho grosso para me manter “cutchado”, um mais fino acima para apoiar as mãos, e uma dezena de raminhos próprios para serem utilizados como papel higiênico. Quem se aperta no mato sabe que gravetos mais espalham do que limpam, mas afinal!…
Subi, arriei as calças, agarrei os galhos e fiquei olhando ao acaso, pra lá e pra cá. De repente, desviando um pouco o olhar para a esquerda, percebi algo estranho debaixo de um monte de folhas: era o litro de mel que meu cunhado havia escondido. Se fosse colocado um exército inteiro para achar o litro, pelas vias normais, não conseguiria. Tinha de ser eu… e o mel, de meu cunhado Vicente!
Resolvido o problema de minha dor de barriga, desci, apanhei o litro e, depois de empanturrar-me outra vez, ofereci aos sobrinhos que estavam por perto. A seguir, fui lá e recoloquei o litro exatamente no lugar em que o havia encontrado. Quando a última tora foi alçada ao estrado, meu cunhado bateu a poeira e disse:
– Aguentem aí um pouquinho que vou buscar o mel que escondi logo ali em cima.
Entreolhamo-nos felizes, porque sadismo era nossa marca registrada. Quanto maior a “sacanagem”, mais degraus no ranque da família.
O grito de revolta e admiração não demorou:
– Quem foi o filho de uma égua que achou o meu mel?
O Delcir, meu sobrinho mais velho, com certeza foi parido por uma ursa e criado por minha irmã. Depois do “Zé Colmeia” jamais vi alguém gostar mais de mel. Por isso, meu cunhado desceu o morro e foi direto ao nariz dele:
– Tomara que isso lhe cause uma “caganeira” de 15 dias, desgraçado! É maneira de beber tanto mel assim? Nem o maior urso do Canadá beberia tanto, depois de seis meses hibernando.
Meu sobrinho, que por sinal nem fizera parte da divisão do litro, também admirado com o nível do mel, apenas observou contundente:
– Eu? Beber mais de meio litro de mel sozinho? Nem se eu fosse o REI MELEIRO!
Meu cunhado concordou.
Meia-hora depois ele ficou sabendo, um por um, quem havia lhe bebido o mel. Os implicados quase morreram de tanto passar mal! E meu cunhado, sem escrúpulo algum, não se cansava de correr o litro:
– Ainda sobrou. Quer mais um pouquinho?
– Uahhhhhh!

DE FACÃO DE TABUINHA A PUNHAL
Meu saudoso pai foi um dos pioneiros no desbravamento do norte do Espírito Santo. O lugarejo mais próximo, naquele tempo, era Colatina, considerada hoje uma das maiores cidades do Estado. Há menos de um século, a travessia sobre o rio Doce era feita por uma verdadeira jangada fixada de margem a margem, já no lugar previsto para ser construída a ponte de cimento armado.
De Ribeirão do Cristo, onde meus avós se fixaram logo que vieram da Itália, até Colatina, havia precárias estradas de chão. Apenas a margem direita do rio era habitada. Naquele tempo, meu pai, com mais alguns italianos, a convite de um tal de Osório Ferreira, meteu o cacaio nas costas, atravessou o rio Doce e, a jusante, caminhou mais 25 quilômetros. Como as terras eram devolutas, cada um escolheu um pedacinho de mais ou menos 20 alqueires. Lá, os italianos abriram linhas demarcatórias e clareiras para casa e plantio. Logo uma fileira de barracos apareceu: estava fundada Marilândia, hoje, cidade.
As ferramentas de que meu pai dispunha eram as mais primitivas possíveis: machado, foice, facão, enxada, picareta, enxadão, serrote, plaina, rastelo, rodo, cepilho, martelo, torquês e grupião (uma serra com 20 cm de largura e 5 m de comprimento com a qual eles serravam as tábuas e ripas para casa e móveis.)
O sítio de meu pai ficava entre dois riachos, hoje praticamente secos por causa do desmatamento e das irrigações: o Santo Hilário e o Liberdade. O pedaço de chão escolhido era acidentado, rico em madeiras e exuberante em pássaros e animais silvestres. Ali meu pai e minha mãe, com a ajuda dos vizinhos (eles trocavam dias, porque havia coisas que só com muitas pessoas era possível fazer: erguer um pesado esteio de casa, por exemplo), construíram a casa, fizeram derrubadas e começaram a vida.
Muitos anos se passaram! Marilândia tornou-se uma grande vila, os filhos cresceram e alguns rapazes começaram a fazer amizade com a gente. Com o tempo, o motivo: minhas irmãs.
A caçula escolheu o companheiro a dedo: o cara mais azarento que já nasceu na face da terra e, também, o mais espirituoso, prestativo, trabalhador e radical. Chama-se Vicente. Meu pai, por causa da última prerrogativa, apelidou-o logo de “Tiro Grande”. O motivo? Ele sempre aplicava o extremo no que fazia.
Um dia meu velho pai estava com seu pesado facão, procurando alguma coisa para amolá-lo, quando ele passou e perguntou:
– Quer amolar o facão, seu Antônio?
– Sim, mas não sei como.
– Me dá cá. Eu tenho uma lima. Meio usada, mas dá para uma desbastadinha neste facão aí.
Mesmo conhecendo o genro, confiando na “lima meio usada”, meu pai arriscou, passando-lhe o facão que, apesar de largo, comprido e espesso (dizíamos até que aquilo era um facão-de-tabuinha), tinha para ele um valor estimativo muito alto. Fora um presente do cunhado Policarpo Pupim, o maior ferreiro do Ribeiro do Cristo.
O Vicente foi para o fundo do quintal e meu pai ganhou o corredor indo sentar-se numa cadeira que ficava sempre na calçada em frente à nossa casa. Ali ele tocaiava um transeunte qualquer que estivesse disposto a um bom bate-papo. Naquele tempo, todos os moradores, num perímetro de 20 quilômetros, conheciam-se pelo nome.
Depois de quase uma hora, o Vicente voltou para entregar o facão de meu velho, amoladinho, cortando cabelo.
– Taí, seu Antônio, dá até para rapar a barba.
Meu pai tomou a ferramenta nas mãos, examinou bem para acreditar que, de fato, aquele espeto de churrasqueira fora seu estimado facão e, certificando-se, sem dizer uma palavra, levantou da cadeira e foi direto para a cozinha. Eu já estava no fogão futucando nas panelas quando percebi que meu velho estava com problemas. Perguntei carinhosamente:
– Que foi, Toni?
Ele se virou, mostrou-me o facão e desabafou:
– Varda o que quel desgraciato la fat do meu facão. Veja a amoladinha que ele deu! Fez do meu “facão de tabinha”, um punhal. Agora você sabe porque chamo ele de Tiro Grande.
“O facão de tabinha”, como chamavam, possuía meio metro de comprimento, 20 cm de altura e 2 cm de espessura. Era usado para rachar roletes de madeira em tabuinhas com os quais cobriam as casas. Punhal, todos conhecem: arma branca curta, fina e pontiaguda. Haveremos de admitir que o desbaste foi muito grande para “uma amoladinha”, mesmo se tratando do Vicente.

TEM “COMPROMISSIS”?
Meus sobrinhos, herdando qualquer coisa que geneticamente recebemos de nossos antepassados, também não eram lá de pensar muito em casamento, pelo menos nos primeiros 30 anos de vida. Não sei se por força de tradição, já que sempre vivemos agrupados como bandos de jacus, ou se por uma simples questão de coincidência, assim sempre foi em toda nossa família. Poucos namoros foram por eles levados a sério durante a juventude. Por isso, as moças mais recatadas não lhes olhavam com bons olhos. Apesar de fortes, desportistas e cheios de vida, não tinham em mente nenhum plano de consumir seus dias cuidando de crianças. Toda aproximação apresentava, enrustida, aquela segunda intenção que, hoje, até parece normal.
Santo Antônio era por eles invocado, mas não se dava o trabalho de perder tempo plantando em terra tão árida. Eles só pensavam “naquilo”. O Santo não interferia.
Por isso mesmo, todos os feriados eram ocupados com esportes, de preferência os mais radicais possíveis, e com paqueras noturnas sem lá grandes responsabilidades. Meus sobrinhos, todos de boa aparência, trabalhavam em serviços duros, operando máquinas pesadas, dirigindo caminhões possantes ou desenvolvendo atividades coerentes com seus músculos. Para paquerar, um velho Jipe recuperado de uma sucata do amigo Iran. Era com ele que minha sobrinhada “faminta” podia contar. Nunca, enquanto o tiveram, o desgraçado do calhambeque foi e voltou por seus próprios méritos. E nem as “vítimas” eram dispensadas de empurrar.
Cirão, o mais velho deles, sempre fora de um comportamento estranho. Um tanto sério e tímido, gostava mais de andar só, principalmente quando tinha em mente qualquer plano não muito digno de transcrição. Mas, nessa noite, talvez por não haver combinado com nenhuma garota, convidou seu irmão Carequinha para uma paquera a dois. Na época, o “jipinho” já era conhecido como “o terror das crioulas”.
Vestiram-se o melhor possível e saíram pelas “quebradas”. Dobraram uma esquina, entraram numa rua qualquer, voltearam a praça, vasculharam quase todos os cantos da cidade. Sempre que encontravam duas garotas, uma não agradava, e nenhum deles aceitava ficar com a pior – coisa que não acontece no Japão. E assim, a gasolina ia baixando e a noite caminhando sem tréguas.
Por fim, o trabalho pareceu compensado. Na silhueta da arborização, duas lindas morenas postavam-se convidativas num ponto de ônibus. Ou estas ou os cinco dedos, disse quase esbravejando o Cirão. Vamos encostar.
Curvaram derrapando os pneus para impressionar, brecaram com ruído e, como podiam, tentaram ser românticos:
– Olá, garotas!
– Olá – respondeu uma voz meiga, porém assustada.
– Com algum plano especial para esta noite linda?
– Bem, acho que não – continuou respondendo uma delas, que parecia mais requintada e sorridente. A outra permanecia quieta, muda, ouvindo e deduzindo. Afinal, ela e a amiga estavam apenas esperando o ônibus para retornarem ao bairro em que moravam.
Por fim, percebendo as deglutições grossas dos meus dois sobrinhos, resquícios de suas intenções, a pretensa muda resolveu soltar a língua, e como era pobre de espírito e de cultura, disse:
– Tem compromissis?
Sentindo o objetivo alcançado, ou talvez impelido pela ideia fixa de possuir as garotas, o Cirão respondeu afoito:
– Não, mas as farmácias ainda estão abertas, quando nada as de plantão, e posso comprar umas “camisinhas”.
Ao ouvir isto, as meninas, primeiro reagiram e em seguida saíram em disparada, entre gargalhadas e mesmo palavrões, que iam de indecentes a maus elementos.
Cirão tem um jeito todo especial de gesticular quando se apanha em situação inexplicável e difícil. Repetiu seu gesto, olhou para o mano Carequinha e disse:
– Você já viu dessas? São loucas ou ficaram agora?
– Qual nada – falou também pela primeira vez o irmão que continuava com a mão na nuca em sinal de pesar pela mancada do irmão – a menina perguntou se nós não éramos compromissados, e não se tínhamos comprimidos.
– Não brinca!…
– Tem mais – completou o Carequinha: você não reconheceu? A da frente é a ex-mulher de nosso primo que se separou a semana passada.
– Chega! Não comente mais nada, pelo amor de Deus! – concluiu o Cirão.

O CIÚME DOENTIO DA MIMA
Há muitos anos fala-se da ajuda indispensável dos animais na prevenção do tédio, mormente para pessoas idosas. Baseados nisto, vivíamos colecionando papagaios, cachorros, gatos, macacos e melros, objetivando ocupar, mais amiúde, os dias de velhice de nossa mãe. E ela tinha um jeito todo especial de entendê-los, de adivinhar-lhes os instintos ou desejos, que a todos encantava. Dedicava um tempo especial para cada um deles, dependendo da idade ou dos problemas de saúde.
Assim sendo, chegou o tempo da Mima, uma gata esperta que lhe fora presenteada por uma família amiga de nipônicos. Cresceu, conheceu (ou não se livrou) de um bichano malandro da Vila Lobão e cinco lindos rebentos foram inevitáveis.
O ciúme que nutria pela “pimpolhada” era doentio. Animal algum passava a 50 metros do local em que crescia sua prole, sem ser molestado. Nem a choca mais desaforada da vizinha ousava mariscar lá por perto. Por se tratar de inimigo histórico, a Mima logo aprendeu a perseguir todo e qualquer cachorro que avistasse. E não era brincadeira, pois, entre fungadas e arranhadas, ela enxotava até matilhas de seus inimigos naturais, comprovando, mais uma vez, que a melhor defesa é o ataque.
Enquanto esteve com a gente, a Mima pariu três vezes, totalizando 14 filhotes. O que havia de gatos pelo quintal e o que se ouvia de “negociatas” pelos telhados era de causar insônia aos próprios soníferos ou de causar inveja aos políticos em época de campanha.
Logo começaram as reclamações e, minha mãe, reconhecendo o desequilíbrio ecológico, tratou de rarefazer o contingente, presenteando 12 deles. Restaram três: a Mima e dois filhotes das primeiras crias: a cara do “tigrão” vilalobense, o pai.
A nossa casa possuía uma varanda com um quartinho contíguo. Nele morava a “bichanada”. Por cima, rente à porta e por baixo da varanda, numa vara comprida, residia o “Cruck”, papagaio de estimação que conseguia, com total desembaraço, cantar várias músicas folclóricas. Ainda guardo uma fita cassete com oito músicas interpretadas por ele.
Todos os dias, pela manhã, minha mãe tratava-os no mesmo lugar e, durante o dia, se ela passasse por ali, todos se movimentavam no afã de um pratarraz de polenta com leite.
Um dia, almoçávamos tranquilos, quando alguém divisou um grande vira-lata no quintal. Desconhecendo a ferocidade da Mima, o vira-lata achou de vasculhar exatamente o quarto em que ela e seus filhotes residiam. Mas, a Mima e seus filhotes encontravam-se em volta da mesa e não perceberam o intruso, tão entretidos estavam.
Minha mãe, que notara a presença indesejada do cão, começou a incitar a Mima a expulsá-lo. Sem entender, os gatos ficaram colados a seus pés à espera de comida. Minha mãe, então, caminhou para o lado do cão. Os gatos, incontinenti, pularam em cima da tábua em que eram tratados e que ficava exatamente na porta do quarto em que estava, não sei fazendo o quê, o vira-lata. Este, quando percebeu a armadilha, arrancou célere de dentro, atropelando tudo que estava interceptando-lhe a passagem. Foram tantos os “ufs, risssfiss, ronhofs, minhaus e canheins”, que o Cruck, lá de cima, achou por bem não ficar como testemunha daquela balbúrdia: bateu os cotocos e voou quanto pôde.
Recuperada do primeiro susto, a Mima perseguiu o cão, desferindo unhadas em tudo o que ficava para trás. Perdendo a direção, o cachorro foi procurar abrigo no fundo do quintal, no meio de umas bananeiras, exatamente onde estava amoitado o Cruck, muito assustado. Aí foi o caos! Com os rosnados de defesa do vira-lata, miados agressivos da Mima, gritos espavoridos de minha sobrinha Daniela e chalrados do papagaio em apuros, até os dois filhos da Mima – dois marmanjos covardes – trataram de se pôr a salvo, desaparecendo como por encanto.
Quando tudo serenou, alguém divisou uma cara não muito estranha entre os baldrames superiores da casa: era um dos gatos que, inexplicavelmente, foi parar lá. Para descê-lo, tivemos de apanhar uma escada e, pasmem, ajudá-lo. Estava hirto, arrepiado, enrijecido de medo.
Em seguida, toda eriçada e vitoriosa, a Mima voltou à sala, indo enroscar-se no colo de minha mãe, que alisou seus pelos carinhosamente. Foi um quadro comovente, lindo de se ver. Quem não gostou nem um pouquinho daquela confusão medonha foi o Cruck: traumatizado, passou quase duas semanas mudo, totalmente vigilante.

QUILAU: O CAÇADOR ESTREANTE
Marilândia – ES era, naquele tempo, o que hoje é um assentamento da Reforma Agrária, só que, de italianos. Por meio de novelas, da história, de livros e reportagens afins sabemos as razões que fizeram as famílias italianas pobres (principalmente essas), tentar melhores dias em nosso país. Algumas se deram bem; outras lutaram e morreram na miséria. Era um sonho, uma ‘esperanza’, um jogo… e muitas perderam, vivendo pesadelos e morrendo longe dos entes queridos, no mais triste desterro desde a escravidão.
Aquelas que se deram bem aqui no Brasil, depois de algumas décadas, começaram a receber visitas de parentes peninsulares, vindos principalmente de Vêneto e da cidade de Fregona, na Itália.
Além da moretina e da bocha, aqueles italianos tinham como esporte as caçadas de paca e veado. Tatu, naquele tempo, era caça desprezada. Havia muita coisa melhor.
E foi assim que o Quilau, recém-chegado para visitar os Falquetos, resolveu participar de uma delas, na várzea do córrego Santo Hilário. A bem da verdade, a paca era conhecida e até mesma cuidada, já que vivia na mata próxima do local em que a família morava. Mas, como o Quilau havia atravessado o Atlântico só para visitá-lo, o primo “Gustim” achou que ele merecia aquela deferência.
Acontece que o Quilau nunca havia empunhado uma espingarda e muito menos ouvido falar sobre pacas. Sabia apenas que possuía uma carne saborosa. Do tamanho, ninguém falou. Enfiaram nele uma roupa mais ou menos adequada, emprestaram-lhe um velho sapatão e, como visitante, colocaram-no na trilha mestra: caminho pelo qual ela haveria de passar quando a matilha esganiçada a espantasse da toca.
Com o Arquilau postado no lugar principal, os Falquetos subiram pela encosta com a cachorrada acompanhando. Acharam a trilha mestra e estumaram a matilha. Demorou pouco para que os latidos inconfundíveis se ecoassem: a paca havia sido encontrada e acordada do sono reparador. Saiu da cama e procurou logo o caminho das águas do Santo Hilário. Lá, possivelmente, ela escaparia de seus perseguidores. A trilha era velha conhecida e a direção era exatamente aquela em que se encontrava o Arquilau. O ‘Gustim’, primo do Arquilau gritou:
– Cerca, Quilau!
O Arquilau, extremamente nervoso, armou a lazarina e ficou só olhos e ouvidos. A cachorrada desceu a encosta e ganhou a enseada, tocando em sua direção. De repente ele viu um bichinho riscado que vinha aos pulos pela trilha. Achou interessante. Certamente, aquele bichinho estaria assustado com a paca que vinha logo atrás, coagida por mil latidos esganiçados. Mas, os vira-latas passaram enfileirados pelo mesmo local e nada da tal paca. Um pouco atrás vinha a italianada toda, fazendo mais zoada do que o Vesúvio em plena erupção. Era um tal de “cerca Quilau”, “côpela compare”, que o próprio Arquilau já se via mais acuado que o bicho que estava sendo perseguido.
E qual não foi a decepção quando os companheiros de caçada chegaram ao lugar em que o Arquilau estava todo atento, com a espingarda engatilhada. O ‘Gustim’ que vinha na frente com uma foice na mão, perguntou:
– Quilau, os cachorros não passaram aqui?
– Passaram.
– E a paca? Você não viu?
– Não. Aqui só passou, na frente dos cachorros, um bichinho riscado, parecendo um rato grande.
– Sacramento, Quilau!, era a paca.
– Não me digam! Eu pensei que fosse um bicho do tamanho de um burro.
E a italianada, surpresa e frustrada, uniram as vozes como se tivessem ensaiado, dando preferência ao dialeto da velha Itália:
– Ah…, bauco dum mona!
Era a maneira que encontravam para definir aqueles que hoje consideramos burros e idiotas.
Quanto à paca, só foi morta nove anos depois. O caso foi parar na delegacia, porque o velho Catelan a caçou sem a permissão do Gustim.
– Aquela paca – justificou o Gustin ao delegado – era pro Quilau comer com polenta na próxima visita.

OS MAIORES RONCADORES DO PLANETA
Dando uma olhada nas definições, fiquei sabendo que o ronco nada mais é do que a vibração intensa dos tecidos da garganta (úvula e palato mole), provocada pela passagem enérgica do ar inspirado. A apnéia (parada respiratória superior a 10 segundos), muito comum nos roncadores, além de sequelas secundárias, pode matar, ou seja, a respiração não volta e a pessoa morre. Há muitos casos assim e você certamente conhece algum. Pois é, não sei como ainda não tivemos uma fatalidade dessas na família! Outra coisa de que não duvido é que temos os tais palatos moles e úvulas mais resistentes do mundo.
Em nossas caçadas e pescarias, depois de um dia estafante e de um jantar descomedido regado a vinho, muitos barbados (aquele tipo de bugio que anda em grupo e emite sons guturais graves que qualquer canguçu apaixonada, em noite de luar, assina embaixo) ficariam humilhados. Com certeza, alguns de meus familiares não lhes tinham inveja.
Lá no rio Uruará – PA, os meus sobrinhos estavam com quase duas dezenas de peões derrubando matas e formando pastarias. A casa da fazenda, toda rodeada de varanda, parecia um desenho de linhas transversais, tantas as redes amarradas uma ao lado da outra. Pelo meio, dois espaços vazios: eram reservados aos meus sobrinhos Valber (Darutcha) e Vilmar (Zé Colmeia), proprietários que lá chegavam todo fim de semana para descansar o espírito, já que o corpo voltava mais moído do que quando chegava.
Saíram cedo, pescaram o dia todo e retornaram às 20h com o samburá cheio de peixes. Lá é assim mesmo: não é preciso se chamar Simão nem incomodar Jesus para encher a canoa de peixes. Tomaram banho, assentaram-se à mesa e ficaram bebendo cerveja, enquanto o capataz Batista assava duas grandes caranhas na churrasqueira.
Pela varanda, já os peões dormiam tranquilos. Dificilmente se ouvia um ressonar. Pessoas magras, sofridas, cansadas… sempre se alimentando frugalmente e dificilmente bebendo algo que não fosse água natural, não roncavam nem sofriam de dispneia. Eles estavam lá há seis dias e ainda não tinham, até então, recebido a visita dos patrões. Logo, não desconfiavam da terrível armadilha.
Os meus dois sobrinhos conversaram, comeram e beberam até perto da meia-noite quando, quase se arrastando, resolveram ir para as redes. Deitaram e apagaram em fração de segundos.
Lá pelas três da madrugada, o Zé Colmeia acordou com a bexiga estourando. Sonolento, tonto, aprumou-se na rede e achou estar sonhando porque, na varanda antes apinhada de redes e caboclos, só havia ele e o irmão Darutcha. Este, ainda dormindo, dir-se-ia melhor, desmaiado, roncava tão alto que fazia vibrar até a roupa do varal. Parecia que a casa estava sob nova investida daquele terremoto que assolou o Japão a 8,2 graus na escala Richter. Percebendo que o irmão podia estar mesmo correndo o risco de morrer sufocado, ele o acordou:
– Valber, pelo amor de Deus, que agonia é esta?
– Que foi! Que foi! – gaguejou o Valber que nem mais falar direito conseguia: a garganta estava ferida.
– Pelo amor de Deus, cara! Vai roncar assim na “putaquepariu”. Você está numa agonia de morte. Roncar sim, mas nem uma alcateia de leões no cio faz tanto barulho.
Ele acabou de acordar… ou de roncar e logo percebeu algo diferente:
– Ué!, cadê a turma que estava dormindo aqui com a gente? Será que já foram pro serviço?
– Só se estiverem em regime de escravidão! – observou o Vilmar. São apenas três da madrugada. Mas, que é estranho, eu concordo. Será que estão todos mijando lá no terreiro?
Os dois, depois de aliviarem a bexiga, constataram que mais de 20 homens estavam amontoados num paiol de cinco por quatro, praticamente uns sobre os outros. Não houve, entre eles, um herói ou masoquista que não batesse em retirada quando os meus dois sobrinhos se deitaram nas redes. No outro dia, cinco deles, imaginando que a dupla de roncadores continuaria no barraco por muito tempo, pediram as contas. Quanto aos dois, naquele resto de madrugada ficaram sem dormir, sempre com um acordando o outro que ameaçava adormecer primeiro.
Nem eles suportavam a tortura sonora originada pelas caixas de cerveja e pelas duas grandes caranhas assadas.

SOU TESTEMUNHA: ELE NÃO ESTAVA DORMINDO!…
Se o Velhão (Adalho, meu irmão mais velho) foi o maior caçador em seu tempo, lá no estado do Espírito Santo, e eu, como seu discípulo, o herdeiro principal, com certeza, o mano e eu tínhamos a quem puxar: o meu velho e saudoso pai.
Eu já estava no auge, o Velhão “pendurara as chuteiras” e, mesmo assim, com seus 78 anos, meu pai, quando em vez nos acompanhava em excursões arriscadas que duravam de três a quatro semanas. A gente permitia que ele participasse apenas para satisfazê-lo, já que os anos não lhe permitiam esforços físicos próprios de um esporte tão estúpido. Nosso saudoso pai, nessas caçadas, constituía um grande problema, pois tínhamos de fazer tudo devagar e, ainda por cima, carregar um verdadeiro suprimento de remédios contra asma, reumatismo e rinite, sem contar com cama, travesseiros, cobertores… Mas, o pior mesmo era conviver com sua ranhetice. Qualquer cacoete ou mania – nos outros – para ele era inaceitável. Ele, no entanto, os tinha para dar e vender. Ah, como tinha! A tal história de ver o cisco e não enxergar a trave, fora ele quem inspirara Jesus, imagino.
Depois de muito suor conseguimos chegar com ele ao lugar indicado. Foram muitas horas de caminhada pela mata adentro, sempre o tendo como prioridade por causa da idade e do estado de saúde em que se encontrava naquela altura do campeonato. As perguntas vinham de todos os lados: “Está dando pra aguentar, seu Antônio?” “Como está o canelão?” É que ele carregava, na perna, a sequela de uma leischimaniose que durara cinco anos para ser debelada. A doença destruiu os tecidos naturais em metade da canela, deixando no lugar, uma pele finíssima que se feria facilmente, e demorava meses para sarar.
Meu cunhado achou um macuco no poleiro, marcou o lugar e voltou ao barraco para que o meu pai fosse lá abatê-lo a fim de matar a saudade dos velhos tempos. Era noite e, na escolha de melhor posição para o disparo, ele acabou dando uma canelada num grosso cipó que lhe interpunha a passagem. Nem com rodete de ralar mandioca se conseguiria um estrago maior. Jogou a espingarda no chão, maldisse meio mundo (já que insistira pra não ir) e, depois de convencido, ainda atirou e viveu a desdita de errar o galináceo. Aí foi o caos completo. Entre “sacramentos” (era, para os italianos, uma espécie de blasfêmia) e impropérios, lá mesmo, debaixo do poleiro do macuco, ele decidiu que iria embora no outro dia pela manhã.
Nossa caçada, que iria durar mais uma semana, teve de ser interrompida. Improvisamos uma rede e, sempre que ele, bufando, assentava-se cansado no chão, a gente o colocava na rede e o transportava o quanto podia. Para piorar, ele pesava mais de 90 quilos. Pelo trabalho que está dando – pensávamos – ele não repetirá a loucura outra vez. Mas, no ano seguinte, era sempre o primeiro a se inscrever.
Na mata, nossos barracos eram muito confortáveis. Havia bons lenhadores, varões em profusão, homens dispostos… Em poucas horas estava tudo arrumado. A gente usava grandes sacos de lona furados nos cantos, enfiava em cada um, dois varões resistentes e os amarrava nos suportes previamente preparados. As camas ficavam uma ao lado da outra. Nessa caçada éramos 23. A mim tocou ficar entre meu pai e meu tio Luís, o Gin, proverbial em dar respostas imprevisíveis e contundentes nas interpelações mais embaraçosas.
O dia de caçada era muito cansativo. É que, apesar de estarmos dentro da floresta, a ideia era a de que, “quanto mais longe, melhor”. Quando a noite chegava, depois de um pratarraz de feijão, farinha, arroz e carne de bichos, a turminha contava as peripécias do dia e acendia pequenas fogueiras em diversos pontos. A intenção era afastar as muriçocas que, à noite, chegavam mais famintas para o repasto. E o cardápio delas era sempre o mesmo: nosso sangue.
Havia gente conversando, gente ressonando e até alguns que já sonhavam com onças e queixadas. Meu pai estava bufando, emitindo um som gutural enjoativo. Tio Gin resistia bravamente, mas eu não pensei duas vezes:
– Pai, o senhor está roncando.
Ele se virou e, em alguns segundo, começou a cantilena outra vez. Cutuquei-o novamente:
– Pai, o senhor continua roncando.
Na quarta vez ele me mandou à merda, disse que eu estava inventando e que o deixasse em paz. Pôs-se de barriga para cima e mais rápido que eu imaginava, reiniciou a roncadeira. Consegui aguentar por alguns minutos apenas. Encorajei-me:
– Pai, assim não dá! O senhor está com a rapa, roncando mais e mais alto do que um bando de capelão no cio.
– Uma merda! – contra-atacou em riste. – Eu fiquei acordado exatamente para pegá-lo na mentira. Eu não estava dormindo.
E ficamos bom tempo no estava; não estava; estava; não estava, até que o tio Gin, que dormia ao lado e ouvia nossa discussão, interveio mordaz:
– De fato, meu caro escritor de lorotas, ele não estava dormindo: estava roncando.
Em se crendo que ninguém consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo, meu tio estava com a razão.
Meu pai, ranheta como sempre, bufou de raiva e, vencido, perdeu o sono. Teve de passar a noite curtindo os esturros do tio Gin e os meus também, com acompanhamento harmônico e preciso dos demais 18 espalhados pelo barracão.
Era sempre assim: quem demorasse a dormir corria o risco de permanecer acordado até o dia amanhecer, principalmente se fosse educado.

AGORA, SÓ BRIGANDO MESMO!
Depois de uma semana correndo maior risco do que um albino de cuecas atravessando o Saara sem uma gota d’água no cantil, ou pulando do cume do Everest, pelado e sem paraquedas, ou estando sobre o Vesúvio na hora da erupção, ou passando a pé pelo Morro do Alemão, com a burra cheia de dólares, em plena madrugada, eis que descemos da velha Kombi e nos arrastamos, literalmente, até à margem do Septubinha: rio piscoso que atravessava uma densa floresta (hoje pastarias) no município de Nortelândia, no estado do Mato Grosso.
Dez maníacos italianos faziam parte da loucura. Entre eles, o Grapuá, um armário de portas abertas, um bicho: em força física e ignorância também. Sempre fora meu inseparável companheiro de caçadas. Nunca conheceu o medo nem as possíveis consequências que o excesso de coragem às vezes ocasiona. Pela mata, a qualquer hora, sentindo cansaço ou sono, ele se atirava nas folhas e dormia como se estivesse sedado para retirar o baço. Se houvesse alguma cobra, aranha ou inseto peçonhento embaixo, pior para eles. E, por incrível que pareça, fez isto a vida ativa inteira e nunca o imprevisto aconteceu.
O rio Septubinha é afluente do Septubão. A distância entre eles, do lugar em que nos encontrávamos, era de oito quilômetros. Um dia, Brando, Grapuá e eu resolvemos ir caçar lá. Acordamos bem cedo e partimos, chegando ao destino às oito horas em ponto. Descansamos um pouco e decidimos três direções para passar o dia. O primeiro que pretendesse voltar caçando pela picada que fizemos, cortaria um galho e deixaria ali como aviso. O segundo, encontrando o sinal, aguardaria o terceiro, para que fizesse companhia ao retardatário, naquele fim de mundo em que tudo podia acontecer.
Como nenhum dos três era bobo, houve unanimidade em logo retornar caçando. Por isso, cada um iniciou a picada conforme o acordo, mas, 50 metros à frente, parou e aguardou que os demais se distanciassem, a fim de não dar muito na pinta. Brando, proverbial em ser preguiçoso, foi o que parou primeiro, logo retornando. É que, naquela distância, e com várias tonas piando pela orla da picada que fizemos, ninguém era bobo de se cansar ali e depois andar de graça mais quatro horas para alcançar o barraco. Mais que razoável era ir voltando devagar, caçando e diminuindo o percurso.
Canso de dizer que, se Deus é grande, o diabo não é pequeno. Quando cheguei no cruzamento, já que era minha intenção ser o primeiro, a surpresa: lá estava o ramo verde combinado. Alguém havia sido mais ligeiro que eu. Sentei desolado. Teria de esperar pelo último. De repente, apanhei o galho e, qual não foi a grata surpresa ao perceber que aquele ramo fora cortado por uma besoura serra-pau e não por gente. Acontece que o galho fora posto ali pelo mano Ildebrando, que resolveu aproveitar a ajuda da cerambicídea, talvez com preguiça de cortar outro. Jamais imaginou que alguém se desse à curiosidade de examinar. Enganou-se. Foi a primeira coisa que fiz.
Diante da constatação, arremessei o galho fora, cortei outro novo, coloquei em lugar bem visível e me pus a caminho de volta. Logo depois chegou o Grapuá com o mesmo pensar. Só que, para ele, não havia mais alternativa. O ramo era autêntico e ele teria de esperar… e o fez até que a noite caiu. Depois, sozinho, por péssima picada, atordoado com a possibilidade de o pior ter acontecido, iniciou, quase correndo, a viagem de volta. Precisava avisar ao grupo sobre o incidente.
Às 20h, quando já saíamos a sua procura, ele chegou. Estava um bagaço: rasgado, molhado de suor da cabeça aos pés, mais possesso que um doido maconhado com 30 demônios entranhados. A cada pergunta que alguém fazia era um “Vai tomar no…”; “Vai a puta que…”; “Turma de moleques…”, e por aí afora. Nem o Rambo, depois de dizimar sozinho uma brigada inteira de russos, parecia mais machucado e furibundo.
Amuado, não jantou. Estirou-se em seu sujo, finíssimo e velho colchão de espuma e ficou bufando como boi peado. Imaginamos: amanhã ele estará mais calmo e entenderá que foi tudo um mal-entendido.
Qual nada! Durante três dias ele não conversou com ninguém e não saiu do barraco. Passava quase todo o tempo deitado com a cabeça encostada numa árvore que sustentava a lona do barraco e na qual havia vários pregos em que pendurávamos as espingardas.
Ainda no quarto dia, ao retornar de minha caçada, ele estava lá, enrolando os cabelos com o indicador: era costume ou cacoete que perdurou até o fim de seus dias. Cheguei. Ele nem virou o rosto. Quando pendurei minha espingarda no prego em que já havia outras, o desgraçado não resistiu. Uma das coronhas foi bem no chamado “pau do nariz” do amuado Grapuá, descascando-o até à ponta. Ao ver o estrago, o sangue escorrendo e o clima pesado no ar, recuei alguns passos e fui enfático:
– Bem, não sei se tentar explicar vai valer a pena. Portanto, pode vir que estou esperando para decidir no tapa mesmo.
Para mim, a briga era inevitável… e, meu fim, próximo, já que o brutamonte podia esganar-me sem muito esforço. Mas, depois de alguns segundos de silêncio tumular, alguém deixou escapar uma fungadela de riso que contaminou a todos, inclusive a ele. Com certeza, o diabo não é pequeno, mas Deus é maior. Acho que o fato bem podia constar da coleção “Great escapes”, da Stouffer Productions Ltd., porque se o Grapuá resolvesse mesmo me pegar, eu não teria a mesma sorte do coelho das neves.
Mais tarde ele confessou que fui salvo pela minha posição ridícula de defesa. A humilhação não foi menor do que ter apanhado.

QUEM MUITO FAZ, UM DIA CAI
O primogênito de meu pai, depois de casado, teve três filhos homens. O mais velho (Zeca) parecia ter vindo de encomenda: bonachão, compreensivo, calmo, mas mais treteiro que mula empacadora; o segundo (Cancão), o capeta personificado: mandão, arteiro, mais faminto do que uma solitária de camelo; o caçula (Nanico), aparentemente indefeso, mas mais encrenqueiro do que todo o PT junto fora do poder.
Aos trancos e barrancos o pai deles os viu crescer e, no tempo, alugou um quarto na capital (Vitória – ES) e foi lutando para formá-los. Eles mesmos cuidavam da sobrevivência: faziam a faxina da casa, cozinhavam, lavavam e “passavam” as próprias roupas. Diante de três personalidades tão adversas, o Zeca tratou de pôr ordem na casa, estabelecendo normas em que direitos, os ínfimos que constavam, eram os dele.
Em república de “lascados” tendo a preguiça como agravante, as refeições se restringiam em pães e ovos estrelados com arroz, mas havia dias especiais como os sábados, domingos e feriados, em que pintavam rodelinhas de tomates, farofa, polenta e até mesmo feijão.
A coisa funcionou normalmente no primeiro ano. No segundo, houve mudanças nos cursos. O Zeca ficava de folga aos sábados, domingos e feriados, enquanto os dois completavam um curso extra sobre Odontologia. E foi assim que as refeições desses dias ficaram sob a responsabilidade do Zeca. Quando seus irmãos chegavam, os três pratos já estavam prontos sobre o fogão.
O que a princípio foi passando despercebido, num belo dia, chamou a atenção dos dois irmãos mais novos. É que, enquanto os pratos do Cancão e do Nanico apresentavam alguns minguados pedaços de carne, ovos, torresmos e verduras, o do Zeca era um “montão” de feijão, farinha e arroz, purinho-da-silva. Outro detalhe que comoveu os mais novos foi notar que o irmão nunca se alimentava na presença deles. Sempre se retirava para um canto qualquer como se tentasse privar os irmãozinhos da dor de vê-lo se mortificar tanto. Comovidos, Cancão e Nanico combinaram que, na refeição seguinte, dariam o melhor para ele e comeriam feijão e arroz puro, como ele fazia há tanto tempo.
E o sábado seguinte chegou. Os dois entraram e logo viram o Zeca de avental, dando o retoque no último prato. O Joelson (o segundo) ainda comentou ao ver um pedaço de “fritada” fumegando sobre o arroz:
– É Nanico, não vai ser fácil!
Sem mesmo lavar as mãos, dirigiram-se ao fogãozinho enferrujado e sujo, apanharam os pratos deles e foram direto colocar “a comida melhor” no prato do Zeca. Ambos sabiam que se demorassem, a decisão fraterna sucumbiria.
– De jeito algum – protestou o Zeca. Vocês estavam trabalhando e precisam se alimentar melhor.
Aquilo foi a gota d’água final na decisão dos dois. E, entre toma e não quero, a coisa foi ficando agressiva, tanto que acabaram imprensando o irmão contra a geladeira e fazendo com que o prato dele abalroasse e mostrasse a farsa caritativa: por baixo da capa de arroz do prato do Zeca havia duas vezes mais “coisas boas” do que no prato deles. E o que já declinava a se transformar em comoção e lágrimas diante do desprendimento de um e a compreensão dos outros, transformou-se num pé-de-briga que levou a tarde inteira para terminar.
Daquele dia em diante o “mestre-cuca” foi demitido e até uma laranja que fosse comprada e posta na geladeira, teria de ser devidamente documentada: dia da compra, entrada, saída, consumidor etc.
Hoje os três estão formados e riem da passagem, mas naquele tempo, o Zeca quase teve de mudar de faculdade… e de república.

ESSA MUCURA AÍ É QUE É SEU MARIDO?
Gonçalez é o nome de um boliviano que, depois de não resistir aos encantos de uma linda imperatrizense, fez daqui sua terra natal. Embora desempregado, possuía tino musical e foi nos instrumentos que resolveu buscar o sustento de sua família. Em menos de três meses, sua agenda já andava ocupada por vários fins de semana. Não bastasse ter arrebanhado bons cantores e ótimos instrumentistas, ainda pode contar com a cultura festeira dos maranhenses. Nesse Estado, um traque governamental é motivo de batuque.
Também já tive um conjunto musical e sei como é penoso mantê-lo. São tantos problemas, tantas encrencas… que só mesmo não encontrando coisa melhor para ganhar a vida, uma pessoa se submete a tantos contratempos.
O Gançalez vivia contornando situações, enfrentando bêbados, discutindo com filhos de prefeitos do interior e trocando tapas com protegidos da polícia, que alegavam o direito de entrar sem pagar. Claro que, sempre, nessas situações, nosso Gonçalez era humilhado… e até mesmo, desmoralizado.
Certa feita, ele firmou um contrato para tocar ali do outro lado, em São Miguel do Tocantins, logo depois do porto das balsas do rio Tocantins. Cumprindo uma das cláusulas, às 22 horas em ponto, o primeiro acorde foi dado. A moçada estava animada e o conjunto também, pois o cachê pelo trabalho já se encontrava no bolso do grupo. Tudo transcorria perfeito e sereno, quando alguém resolveu se embandeirar para o lado da esposa do Gonçalez. Mas, como diz o provérbio, “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Deixando por menos, sua mulher ia se esquivando das cantadas e evitando um problema maior.
Acontece que o “Dom Juan” era persistente e atrevido, tanto que, para não ser agarrada à força, a digníssima teve de apelar para a proteção do marido, no caso, o pobre do Gonçalez. Ele estava lá supervisionando e administrando o andamento do baile quando alguém lhe disse que sua mulher o estava chamando urgentemente. Ele acorreu incontinenti:
– Que foi, mulher?
– É um cabra safado aí que está querendo me agarrar à força.
– O quê?!… Onde está este canalha para eu lhe arreben…
E, antes mesmo de terminar a frase, ele ouviu, atrás de si, uma voz rouca, grave e tonitruante:
– Estou aqui, cabra!
O Gonçalez virou-se de chofre, assim como quem vai lavar a honra a qualquer preço, mas, quando viu à sua frente, um “negão” que mais se parecia com um armário com oito portas abertas, ele negaceou, gaguejou um pouco, e tentou negociar, dizendo que esperava que o ilustre cidadão compreendesse que estava interessado numa mulher compromissada, mãe de seus filhos…
– O quê?! – perguntou exclamando o negão, ao tempo que se virava para a mulher do marido ameaçado: esta mucura aí é que é seu marido?
Não dava mais para aguentar tantas humilhações. Era reagir ou ficar para sempre desmoralizado. Por isso, fechou os olhos e pulou no peito do negão.
Horas depois estava na UTI do Santa Maria. Por sorte, o coma só durou o tempo necessário para que os comentários diminuíssem e ele pudesse esquecer a ideia fixa de jogar todo equipamento no Tocantins e nunca mais falar em conjunto musical.

UM VESTÍGIO CONDENATÓRIO
Certa vez falei dos meus três sobrinhos: Zeca, Cancão e Mênego, quando se preparavam para o vestibular em Vitória – ES. Hoje vou lembrar um fato acontecido quando eles eram crianças.
Foi pelo aniversário do Zeca, o filho mais velho do meu irmão Adalho que, relembrando, era conhecido por nós – por ser o mais velho da família – como Velhão. Naquele tempo, lá na roça, um bolo confeitado era algo mitológico, manjar dos deuses, alimento que só se ouvia falar nas historinhas da vovó. E não é que fizeram um para o Zeca?!
Para suplício do Cancão – irmão um ano mais novo que o Zeca – cuja fome não seria saciada nem com um brontossauro ensopado na macaxeira, o bolo ficou exposto numa mesinha da sala durante 24 horas, encoberto apenas por uma fina e transparente toalha branca. Há quem acredite, erroneamente, que as jacaroas chocam seus ovos com os olhos. Pois bem, fosse o bolo do Zeca um ovo de jacaroa, o Cancão o faria eclodir em menos de três dias.
Durante aquela “permanência eterna” do bolo na sala, o Cancão foi posto a correr umas 20 vezes. É que a mãe conhecia bem o filho e sabia que a presença dele por ali indicava a possibilidade de uma festa sem bolo: era maior ameaça do que um carcará no terreiro cheio de pintainhos desprotegidos.
Enfim, a tarde do dia seguinte chegou! A criançada da vizinhança apresentou-se cedo, todos a rigor: sapatinhos lavados, cabelos molhados e puxados pro lado, camisetas brancas, calças e saias surradas. Quando a mãe do Zeca avisou que estava na hora, todos se postaram ao redor da mesa. Ela acendeu as velas: oito cotocos, sobras guardadas para alguma emergência. O Zeca postou-se junto dos pais, atrás do bolo, ainda encoberto. Se um mosquito voasse naquele momento, o farfalhar seria ouvido. Todos os olhinhos convergiam para uma única direção: a do bolo.
E… vapt!, a toalha foi alçada num único e rápido movimento. O “ohhhhh!” que se seguiu, bem podia ser comparado com o desespero dos brasileiros fanáticos, no pênalti perdido pelo Zico na Copa do Mundo que desclassificou o Brasil: o bolo estava com uma valeta de um centímetro de largura por cinco de profundidade, que ia da uvinha do topo à tábua que servia de base.
Sem observar o direito de defesa, estabelecido tanto pela nossa Constituição como pelos direitos humanos, o Velhão retesou o braço, grudou na orelha do filho, esticando-a como se fosse uma tira de borracha de estilingue.
É que o Cancão era o único que, além de faminto, possuía um largo incisivo solitário, cujo rastro era inconfundível, principalmente para os pais que conviviam com aquele entalhe nos queijos, nas frutas e até mesmo nas sobras de polenta fria.

O CABIDE DO EGÍDIO
Egídio Mariane: bonachão, dentista prático, homenzarrão, distraído, olhos azuis, cabelos grisalhos, de pouca conversa, sistemático, honrado. Exerceu a profissão em Marilândia durante 20 anos, tempo mais que suficiente para abandonar seus princípios sensatos e fazer parte da comunidade de caçadores dependentes do vilarejo. Naquele tempo era assim: ou se era caçador ou se vivia no anonimato. Não havia outro assunto nos bate-papos do bar do Hermínio Erlacher, único da vila.
Depois de muito pensar, entrou para o clube e, para se equipar com o kit indispensável, marcou viagem a Colatina, à época, segunda maior cidade do Espírito Santo. Distava, apenas, 24 km. Lá, conforme lista que lhe fora dada, teria de comprar: sapatão, perneira, roupa camuflada, cantil, espingarda, cartucheira, cartuchos e munição, repelente, facão com correia e bainha, pios e muitas outras bugigangas. A lista era enorme. Equivalia a muitas extrações e a outras tantas dentaduras.
Acontece que, no dia marcado para a viagem, o tempo virou e começou a chover torrencialmente. Como já havia dispensado os clientes e o dia estava perdido mesmo, apanhou seu guarda-chuva chinês novinho em folha, com inscrição no cabo, segundo ele, de um célebre dito de Mao Tsé Tung, e tomou o ônibus do Camatão: uma lata velha com capacidade para 16 passageiros sentados… e quantos houvesse para viajar em cada brecha possível. Em dias especiais havia mais gente em cima junto à bagagem do que dentro daquela grande lata de sardinha. Aos passageiros (amantes forçados de esportes radicais), só existiam duas opções: poeira ou lama. Havia rombos na lataria que davam para crianças de cinco anos, normais, passarem sem esbarrar nas laterais.
O Egídio foi. A estrada era e é acidentada, o ônibus, além de velho, quando uns dos pneus carecas estourava, era substituído por outro que alguém havia jogado fora. Quem nasce no asfalto e é rico, dificilmente entende essas coisas.
Às dez horas, depois de passar bom tempo atolada no pé da serra do Giurizato, a lata velha chegou a Colatina. A chuva dera uma trégua e, como todo italiano daquele tempo e daquela vila almoçava cedo, o Egídio resolveu adentrar no Bar Central para atender ao estômago. Viu pessoas jogando sinuca num pequeno reservado e outros bebendo cerveja, numa algaravia de causar inveja a qualquer bando de psitacídeo recém-pousado numa ingazeira.
Deu uma rápida revisão nos frequentadores e concluindo que eram, apesar de tudo, confiáveis, resolveu pendurar seu guarda-chuva de estimação no “cabide”, a fim de almoçar tranquilamente. Foi ao balcão e pediu um prato feito, mais barato e mais rápido. Ficou sabendo que aquilo era um bar e não um restaurante.
– Logo ali – disse o garçom apontando com o dedo – há um restaurante muito bom.
O Egídio agradeceu e quando se virou para apanhar seu guarda-chuva, não o viu mais. Olhou para um lado, para o outro: todos continuavam, parecia-lhe, como quando chegara. Alguns jogavam sinuca, outros peruavam, pessoas entravam e saíam a cada instante. Para evitar vexame maior, ele se retirou disfarçadamente e foi ao restaurante indicado, com as orelhas pegando fogo. Como o larápio podia ter sido tão ligeiro?
Almoçou, depois fez as compras, tomou o ônibus e retornou à sua vila. À noite, a turma de caçadores estava lá no bar do Erlacher fazendo planos para a caçada do mês seguinte, quando o dentista chegou:
– E aí – perguntou o Eleutério – já dá para espantar os bichos?
E ele, amargurado com a perda do seu estimado guarda-chuva, com ares de revolta, contou o que havia acontecido, afirmando que tudo se dera em fração de segundos.
– Mas, como? – perguntou um outro.
– E aí, extravasando seu ímpeto italiano, ele desabafou:
– Sacramento! Juro que o que pensei ser um cabide era o dedo do ladrão esperando que alguém pendurasse alguma coisa. E havia de ser meu guarda-chuva chinês!
A turma riu em coro, mas ele permaneceu sério, possivelmente torcendo para que um raio caísse na cabeça do ladrão no primeiro dia de chuva em que ele estivesse usando o seu guarda-chuva de estimação.
Sim, porque ao defini-lo inicialmente, esqueci-me de acrescentar a característica principal: vingativo.

A MORTE DE TONI DALBÓ
No ano de 1952, filhos de emigrantes italianos começaram a procurar novas plagas, abandonando os pais que a princípio se instalaram em Ribeirão do Cristo, no sul do Espírito Santo. E para variar de vez, deixaram as regiões frias e montanhosas do sul e foram para Marilândia, ao norte, muito mais quente e menos acidentada. Entre essas famílias estavam a do Agostinho Falqueto (Gustim) e a de Gerônimo Camata (Momi). O primeiro era casado com Amélia, (Mélia); o segundo, com Angelina (Andina). Mélia, Andina, Gustim, Momi… sincopar nomes sempre fora especialidade dos italianos que para aqui vieram naqueles tempos. Hoje, nós descendentes, mantemos a tradição. Nome verdadeiro, só para documentos lavrados em cartório.
Entre os dois morros que separavam as duas famílias, corria o córrego Liberdade, hoje quase seco por falta das matas ciliares e da utilização de suas águas em irrigações.
Os filhos e as filhas maiores passavam o dia na lavoura ajudando os pais no amanho da terra, enquanto as esposas cuidavam da casa, das crianças e de todo serviço dos derredores, inclusive da criação (alguns suínos, bovinos, equinos e aves).
E como no perímetro de três quilômetros só havia aquelas duas casas, todas as vezes que a limpeza do quintal coincidia (e sempre coincidia), as duas comadres trocavam informações. Enxergarem-se não era problema, pois se a Mélia já não era pequena, a Andina, se colocada no Corcovado e abrisse os braços, poucos desconfiariam que o Cristo Redendor havia saído para dar uma voltinha. Do sotaque, vocabulário e dialeto empregados, só elas entendiam. Eram neologismos de que hoje me arrependo não tê-los catalogado: ficaria célebre.
Escoradas no cabo da vassoura de muxinga (uma praga para as pastarias, mas nada melhor para varrer terreiros), as duas comadres passavam longo tempo brontolando (reclamando, falando de tudo e de todos). Se o tempo estivesse calmo, mesmo com aquela distância de 300 metros, elas conversavam naturalmente. Nesse dia, porém, o vento sul estava horrível, soprando na direção Andina/Mélia. Por isso, a Mélia ouvia perfeitamente, mas a Andina recebia as palavras truncadas: praticamente tinha de adivinhá-las.
E, exatamente nesse dia, Mélia recebera notícias ruins do Sul, avisando que o amigo e patrício “Toni Dalbó” havia falecido. Foi para o terreiro cedo para dar a notícia, mas a Andina só apareceu mesmo no horário costumeiro: nove horas. Mal a ponta do avental apareceu por detrás do esteio da casa, a Mélia gritou:
– Andina, Andina!
O vento dificultava, mas ela percebeu que a comadre a chamava. Parou, escorou-se no cabo da vassoura e afinou os ouvidos. E o diálogo truncado começou:
– Satto, Andina, le mort Toni Dalbó. (Soube, Andina, Toni Dalbó faleceu).
Andina ouvira mais ou menos e como a comadre tivesse um filho chamado Antônio e este possuísse bois de cor avermelhada, procurou situar-se. Mas o vento estava contrário e ela não conseguia ouvir direito, ainda mais naquela mistura infernal de português mal falado com italiano pior ainda. Buscou esclarecimento:
– Quê, lê mort el bó de Toni? (O quê, morreu o boi do Antônio?)
A Mélia que a ouvia perfeitamente tentou esclarecer o mal-entendido:
– Não, Andina, lê mort Toni Dalbó! (Não, Andina, morreu o Antônio Dalbó).
Andina pareceu entender. Repetiu para afastar qualquer dúvida:
– Ah, si, lê mort el bó de to fiol Toni! Qual? Quell ros ou quel pi ros? Ah, poareto de Toni, la persa anca su toret! (Ah, sim, morreu o boi do seu filho Antônio. Aquele avermelhado ou aquele bem vermelho? Ah, coitado do Antônio, perdeu até seu garrote!)
A comadre Amélia, vendo que seria difícil, por causa do vento e da distância, chegarem a um entendimento, abanou o braço e voltou para a cozinha.
Dona Angelina continuou varrendo o quintal, muito preocupada com o prejuízo do filho de sua comadre. É que o começo da vida de todo italiano que veio tentar a sorte no Brasil foi duro e quase desumano. Perder um boi, por exemplo, significava, para eles, uma catástrofe, bem parecida com a morte de um parente.
À noite, como tudo era motivo para visitas, eis que a família inteira da Andina desceu o morro, atravessou o riacho e subiu até à casa da Mélia. Tinha ido até lá prestar solidariedade ao Toni, que perdera o novilho mais vermelho.
E o que seria apenas uma conversa solidária por causa de um boi que morrera acidentalmente terminou em duas horas de rosário pela alma do amigo Toni Dalbó.

O HOMEM MAIS FEIO DO MUNDO
Certa feita, o Lemos vinha retornando para sua casa (lá na Rua da Conceição, na cidade de Linhares – ES), quando um homem com seus 50 anos o interceptou para uma informação. O homem parecia, pela maneira de se expressar, ser alguém analfabeto ou apenas com o primário completo, porém, bem sucedido financeiramente. Era saudável, barba rapada, cabelos negros à mongol, dentes fortes, embora amarelecidos, pele abacinada em consequência de seu mister: um prato cheio para o Lemos, considerado o cara mais chato e gozador da cidade. Seu senso de humor por certo extrapolaria os limites de paciência do bíblico Jó.
Certa feita, quando já me levantava para deixar o cinema ainda no início do filme – não suportava mais o estalar irritante de chicletes de alguém que, sentado na cadeira de trás, cumpria sua sina de azucrinar o mundo – ele deu uma risada escandalosa, abraçou-me, pulou para a cadeira da frente e ficou até o “The end” adiantando-me o que iria acontecer na cena seguinte. Apesar das reclamações, ele só parou de encher o saco quando a morte o levou. Que Deus o tenha…, e que, no céu, se houver cinema obrigatório, que a ele seja vetado: até os santos desertariam.
– Sim, – disse ele ao homem que o interceptara – o que deseja o senhor?
– É que estou à procura do senhor Germano. Soube que ele mede terreno e estou precisando passar a corda numa grande manga que comprei lá no Barra Seca.
– É fácil – disse o Lemos – eu o conheço sim. É só o senhor seguir por esta rua e, lá no final, à direita, já bem próximo ao rio Doce, você irá ver uma casa bem arborizada, com janelas verdes e paredes amarelas. O número da casa, não sei. Ah, ele dificilmente sai da Praça da Prefeitura, que fica defronte à residência dele.
– Sim, mas como irei reconhecê-lo?
– Mais fácil ainda. Se ele não estiver em casa ou trabalhando, estará na Praça. Aí é só você abordar o homem mais feio que encontrar e explicar o que deseja.
O homem agradeceu e, embora duvidoso, seguiu para o lugar indicado. Acontece que o Germano era um homem, digamos, normal. Um grande agrimensor, probo, enfim, um ser humano, de fato, não atraente, mas que qualquer mulher não evitaria. Era magro, olhos de gavião, cabelos cor de azinhavre, nariz adunco, tez de albino saído da praia, marchetada de nódoas escuras… Não era fisicamente atraente, mas o outro lado compensava. Não bastasse, para dificultar ainda mais o reconhecimento, sempre há, em qualquer lugar do mundo, um bom bocado de gente feia.
Antes ainda de chegar à praça, o homem encontrou o Bustamom e não teve qualquer dúvida:
– Senhor Germano, poderia me dar uma palavrinha?
Ofendido, o Bustamom defendeu-se:
– Por favor, sou feio, mas não tanto. Você poderá encontrar o Germano – se não estiver trabalhando – em casa ou por aí na praça.
O homem desculpou-se e foi em frente, fazendo mil conjecturas de como seria o agrimensor. Pensou na definição que o padre dera do capeta e imaginou estar procurando por ele. Depois, envergonhado, desfez o pensamento e foi em frente. Deviam estar exagerando.
Na praça, bem à sua frente, o velho Dalpúpio aproveitava o calor do sol minguado daquele dia de vento-sul. Folheava uma velha Playboy que nunca lhe falhara como afrodisíaco na hora de cumprir suas obrigações matrimoniais do mês.
O pobre homem passou devagar, examinou-lhe os traços e concluiu: tem de ser este. Se não for, juro, procurá-lo-ei no endereço do inferno. Encorajou-se:
– Senhor Germano, eu…
– Eu não me chamo Germano – reagiu o velho Dalpúpio que não gostou de ser interrompido em seu exercício preparatório e, muito menos de ser confundido. Em geral ele passava o dia folheando a revista para que, de noite, fosse-lhe possível substituir, em pensamento, a pelancada de sua velha, pelos traços perfeitos das modelos seminuas. Convenhamos, não era exercício para qualquer um. Exigia tempo e concentração.
– Mas…
– O Germano deve estar na praça. Ele também costuma ficar por aqui sempre que não está medindo terras. Se vir um gavião depenado andando por aí, pode saber que é ele.
O homem desistiu. Não acreditava que pudesse haver alguém mais feio que o velho Dalpúpio, ainda mais quando mal-humorado.
Foi procurar outro agrimensor para medir suas terras.

UMA CORONHADA MORTAL
Há poucos dias recebi um e-mail: “Sou o Ezequias, antigo chefe dos agentes florestais do IBAMA aqui de Linhares – ES, no tempo em que você quase me deixou doido. Hoje estou aposentado e casado com sua prima…”
Respondi-lhe que eu fui o caçador que quase o enlouqueci sim, mas estava regenerado, inclusive, lutando para remir meus pecados, reproduzindo em cativeiro, os inhambus que tanto persegui=.
Bem, ele pretendia obter dados sobre meus “ancestrais” italianos a fim de conseguir dupla cidadania, ou coisa parecida, para um de seus filhos. Continuamos trocando e-mails, relembrando as loucuras de minha dependência e tentando resgatar os dados de meus antepassados.
Caçadas! É!… Naquele tempo eu era mais atrevido para com os guardas florestais do que foi Bin Laden para os Estados Unidos.
Eu entrava na Reserva Biológica, três vezes por semana: às quartas, aos sábados e domingos, chovesse ou fizesse sol. Era meu inseparável companheiro, o Grapuá, tão dependente e atrevido quanto eu. A gente entrava na Reserva entre duas e três horas, aproveitando o horário de maior cansaço dos agentes. A fim de não deixar marcas por aonde passávamos, usávamos a bússola. Não tinha a precisão dos atuais G.P.S., mas como a BR que cortava a Reserva era reta e comprida, sempre saíamos nela ao voltar. O motorista que nos deixava e que voltava para nos buscar à noite, ao notar no acostamento o sinal combinado (uma latinha de cerveja amassada, um rolinho de cipó, um pedaço de plástico com terra dentro…), passava, dava uma buzinadinha para avisar que percebera a marca, continuava mais ou menos um quilômetro, virava, voltava, parava no lugar, abria o porta-malas e, em fração de segundos, já estávamos dentro e retornando para casa em velocidade máxima. Isto funcionou durante dez anos.
Pois bem, nesse dia, aproveitando a madrugada escura, íamos progredindo com a ajuda de lanternas para que, ao amanhecer, já estivéssemos em lugar distante em que os tiros não pudessem ser ouvidos pelos agentes. Com a lanterna numa das mãos e a espingarda na outra, eu seguia na frente. Nos meus calcanhares, com a bússola na mão para corrigir meus desvios de rota, vinha o Grapuá. De repente, uma moita fechada. Clareei para direita, para a esquerda: parecia que metade da mata havia caído ali. Não conseguia encontrar um lugar que parecesse mais indicado. Sendo assim, o melhor mesmo era seguir em linha reta.
Coloquei a lanterna no picuá, tirei o facão da bainha, pedi ao meu cunhado Grapuá para clarear na direção e fui abrindo uma passagem. Depois de alguns metros, percebi que havia um lugar mais limpo, ocasionado, certamente, pela longa falta de sol.
Naquele tempo, para que eu sentisse alguma coisa me tocando, era preciso que fosse um aríete impulsionado por fortes e experientes soldados romanos, tal as “armaduras” que eu usava: meias, meiões de futebol por cima, perneiras que mais pareciam cascas secas de jatobá, cueca, calça jeans por baixo, calça camuflada por cima, camisa de manga comprida por baixo, camisa camuflada por cima, capuz do exército protegendo orelhas e pescoço, boné para minimizar o reflexo da claridade e ajudar na precisão da pontaria… Por isso eu me tornava mais insensível que um velho jaboti. Não bastasse, a visão era precária, porque meu cunhado não caprichava no alumiar.
Sem me preocupar, fui progredindo. De repente, o grito de alerta:
– Nossa Senhora! Que cobra!
Eu sempre fui proverbial em reações por reflexo. Certa feita, por causa de uma simples casa de marimbondos-chumbinho, deixei cinco companheiros caídos em meu retrocesso para escapar das ferroadas. Segundo eles, era preferível mil ferroadas aos hematomas ocasionados pelo strike. Por isso, ante o grito de alerta do meu cunhado, minha reação foi automática. Não perguntei onde, nem que tipo de cobra era. O único lugar de que tinha certeza em que ela não se encontrava era para trás e para trás estava o Grapuá. Na meia-volta da retirada, num movimento certeiro do braço, levei a coronha da espingarda, com precisão cirúrgica, bem no meio da testa do meu cunhado. Passei-lhe por cima e, já fora da moita, perguntei:
– Onde?
E ele, estirado no mesmo lugar, meio vivo, meio morto, grogue, com um imenso calombo na testa, foi enfático:
– Na putaquepariu, seu filhodaputa, dum doido, dum viado…! Nem que eu veje o demônio na sua frente, não aviso mais.
Depois de bom tempo, consegui convencê-lo de que fora casual. Então ele apontou com a lanterna. Lá estava uma enorme surucucu-pico-de-jaca, na ponta do rabo, nervosa, mal-humorada por ter sido importunada àquela hora da madrugada. Se não avisasse, certamente eu teria sido picado no nariz: único lugar descoberto e vulnerável de minha armadura.

NÃO CAI AQUI, MAS PODE CAIR BEM ALI!
Não sei onde, nem quando me surgiu o fascínio pela chuva. Ainda criança, mal o tempo se formava, eu corria para a varanda ou, no mínimo, à janela, para contemplar a chuva. Era-me extasiante ouvir o barulho dos pingos sobre algo que ressoava, ou mesmo olhar as torrentes que se formavam, levando folhas como pequenas embarcações ao bel prazer da enxurrada.
Perdia tempo vendo formiguinhas buscando salvação, agarradas a gravetos, como se fossem seres humanos surpreendidos por um tsunâmi.
E sempre que me postava num ponto estratégico para não perder a maravilhosa manobra da Natureza, meus familiares alertavam-me para o perigo de ficar exposto a lugares em que bem podia, mais facilmente, ser vítima de um raio. E mais me avisavam quando lembravam que, na mangueira ao lado, um raio já caíra, destruindo todos os aparelhos elétricos de nosso vizinho.
Para justificar-me, lembrava-lhe do que tanto a sabedoria popular apregoa: “Um raio não cai no mesmo lugar”. E, já que minha varanda preferida distanciava-se apenas oito metros da tal mangueira em que caíra o raio, nesse dia eu me pus sentado no único degrau que nela havia e fiquei curtindo o vento, os respingos e o saciar da terra seca.
E, como sempre, as recomendações não paravam: “Venha para dentro, pai. Está começando o “inverno” e sempre as primeiras chuvas vêm acompanhadas de raios e trovões.”
E eu retrucava:
– Fique tranquila. “Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar.”
Não bastasse, não estava trovejando e, sem trovões, não há raios. Bem, é o contrário, mas o certo que os dois se interdependem, como o paguro e a actínia. Por isso, eu permaneci no mesmo lugar, mastigando as horríveis torradas de pão integral, já que o médico decretara que minha vida de homem normal havia terminado com a chegada do diabetes.
Lá pela terceira ou quarta admoestação, já um tanto irritado, expliquei que sabia que raios preferem descarregar sobre árvores grandes, mas que, logo do outro lado da rua, havia uma mangueira muito maior do que aquela de meu quintal, com apenas quatro anos de vida. Portando, ficaria ali sentado.
Já disse que não estava trovejando, apesar da chuva torrencial. O que me esqueci é que, nem sempre os raios começam distantes e vêm para o lado da gente. Às vezes, eles começam no lugar em que estamos e vão para longe. Com certeza, o primeiro ninguém sabe onde irá cair.
E foi assim que aconteceu, e o fez no mesmo momento em que, mais uma vez, eu iria tentar demover meus familiares da insistente recomendação para que eu saísse do lugar em que me encontrava.
Lembro apenas que iniciei meu desabafo e, como velho ranzinza e irritadiço, contra-ataquei:
– Ah, vão coçar macacos. Já disse que, se começar a trove… E aí a fala sumiu. Um indescritível clarão iluminou toda a área, em zigue-zagues de sei lá quantos volts, enceguecendo-me. Quase junto, uma explosão que qualquer vulcão assumiria, fez-se ouvir.
Pulei em pé e arranquei célere. O susto foi tão grande que, mesmo que tivesse me matado, juro, eu chegaria à cozinha.
Lá dentro, o pior:
– Volta lá, velho teimoso. O raio não cai duas vezes no mesmo lugar… Lá do outro lado da rua há mangueiras muito maiores…

NESSE JEGUINHO, JESUS NÃO MONTARIA!
Acabo de chegar de uma incursão à Serra da Desordem-MA. Embora tenham escolhido alguns rios como divisão territorial entre Maranhão e Pará, ela não faria feio nesta incumbência, pois há muitos lugares em que os rios são mais largos que a área plana de seu cume.
Subir agarrado em árvores ou engatinhando morro acima me fez lembrar de Nova Alegria, um povoado que dista 60 km de Itamaraju, na Bahia. Se morro valesse dinheiro e fama, Gilberto Gil, Caetano e toda cultura baiana ficariam em segundo plano. Há deles em que se leva horas subindo de carro em marcha forte. Do topo, lá na vila, as pessoas se parecem com meras formiguinhas.
Estive lá algumas vezes pesquisando a presença de um pássaro que nenhuma literatura ornitológica registrara até hoje: o Cripturellus obsoletus obsoletus, ou inhambuaçu das regiões altas e frias, bastante comuns nas montanhas de Venda Nova do Imigrante, no Espírito Santo.
Lá pelas tantas da subida, num dos topes mais íngremes, bem no meio do estreito caminho, descansava um jeguinho pachorrento e fornido. Ao volante, o meu sobrinho Delcir, sempre avesso a animais. Como caronas, o mano Ildebrando, já falecido, e eu. Ao avistar o animal, nosso sobrinho desabafou resoluto:
– Já sei que nem vai olhar para trás. Vou passar por cima daquela peste!
O mano que viajava do lado da porta do carona interferiu:
– Você devia envergonhar-se! Por que passar por cima? Que lhe fez o pobrezinho? Buzina e ele sai do caminho.
– O quê? Sair do caminho? Jegue não sai nem se eclodir um vulcão a meio metro dele.
E de fato, foram inúteis as buzinadas. O jegue nem olhou para trás. Continuou impassível em sua ruminação. Nosso sobrinho foi à loucura:
– Vou passar por cima!
Sem outra alternativa, o mano que defendera o “inofensivo animalzinho” e que estava sentado do lado da porta, disse:
– Aguenta aí que vou lá tocá-lo da estrada.
Abriu a porta, desceu e, claudicando, foi até o jeguinho. (O mano sofria de uma artrose violenta no joelho, ocasionada pela ruptura dos meniscos num jogo de futebol. Foi um grande médio-volante nos seus tempos de atleta.) Nosso sobrinho, bufando de raiva como boi peado, com a cabeça para fora da boleia, continuava irascível e ameaçador:
– Meta-lhe uma pedra no traseiro. Se acertar na canela, melhor ainda. Não sei para que o Brasil foi se interessar por essa merda egípcia!
O mano se aproximou. O jegue direcionou as orelhas, aparentemente moucas, para trás, para apurar um possível perigo. Confiante e afável, o mano encostou-se a ele e antes de lhe dar um tapinha na ilharga, ainda olhou para trás e comentou com o meu sobrinho:
– Não sei como pode haver gente como você!, e dando um tapinha na bunda do jeguinho, falou carinhosamente: vamos lá, meu bichinho. Um seu ancestral ficou famoso por carregar no lombo, o Filho de Deus. Às vezes até tenho inveja de…
E antes que terminasse a frase, o descendente pacato do único animal que teve a honra de transportar Deus no lombo, acuou nas duas patas dianteiras e com maior precisão do que Davi ao acertar a cabeça de Golias com a pedra de sua funda, desfechou o casco esquerdo bem no joelho necrosado do mano. No chão, contorcendo-se em dores e com os impropérios um tanto prejudicados pelas gargalhadas de nosso sobrinho, ele se contorcia urrando de dor. Ao menos uma frase, eu lembro bem, pois acorri incontinenti para socorrê-lo:
– Ainda que tenha servido Jesus, passe por cima desta desgraça. Mate-o sem piedade…
Já de volta ao carro, com o jeguinho, sob protestos, à margem da estrada, nosso sobrinho parecia estar vivendo seu momento de maior felicidade na vida. É que sempre o recriminávamos por causa de sua impaciência para com os animais e ninguém fora mais perfeito do que aquele jeguinho para provar que ele estava certo.

UMA PAULADA PRA RIBA DO ZÓI…
Você deve concordar que as pessoas que mais deixam saudades são aquelas extrovertidas, cheias de manias, ranhetas, teimosas… Sempre que sentamos para contar histórias, elas são protagonistas. Filhos bonzinhos, estudiosos, respeitadores, obedientes…, são bons exemplos, mas quando deixam os pais são menos lembrados. Parece mesmo que a inversão de valores vem de longe.
Em minha família, foi eu quem mais deu trabalho aos meus pais. Mesmo assim, meus irmãos dizem que mamãe vivia a lembrar-me quando fui internado no Seminário Nossa Senhora da Penha, em Vitória, no Espírito Santo. Nesse tempo, meu velho pai, não mais suportando minhas teimosias e travessuras, vaticinou que meu futuro resultaria na fundação de uma nova religião, caso ele não conseguisse enviar-me à Marinha, naquele tempo e para ele, única saída para pais que não conseguiam dobrar o queixo de um filho, diria o Deus de Abraão, “de dura cerviz”.
Pois bem, também eu, hoje, fico a lembrar, com saudades, do tempo mais sofrido de minha vida. Foi lá na pequena vila de Nova Alegria, ao sul da Bahia. O lugar era acidentadíssimo. Pela estradinha a gente se sentia como se estivesse na garganta mais profunda de um dos canhões do Colorado. Pelas ribanceiras, os jegues viviam pendurados, equilibrando-se como cabras monteses. Num dos raros lugares em que os morros se separaram um pouco, os baianos construíram uma fila de casas beirando o riacho e deram o nome àquilo de Nova Alegria. As pessoas que lá habitavam, certamente a denominaram assim por ter emigrado da favela do Alemão ou da Rocinha. Não se podia encontrar ali qualquer motivo que justificasse o nome. Só quem não conhece a vila pode admirar os Maias e os Incas. Durante cinco anos, a única “alegria” que pude sentir lá foi o humor que a própria desgraça por vezes nos presenteia. Uma coisa assim, tipo Chico Anísio ou Jô Soares falando de nossa subserviência covarde aos políticos ladrões.
É claro que, já nesse tempo, quem quisesse explorar jacarandás, perobas, louros, cedros, vinháticos e jequitibás, só mesmo arriscando a vida por lá. Um trator de esteiras levava um dia inteiro para retirar uma única árvore da mata. Mesmo assim valia a pena, porque um metro cúbico destas essências valiam por dez de outras como o bacumuxá, a gendiba, a farinha seca…, que ainda eram encontradas em lugares mais fáceis.
Nesse tempo, nossas famílias viviam desse mister. Éramos nuns dez homens, todos envolvidos em alguma função da extração de madeiras. Mesmo com tantos homens na família, sempre tínhamos de contratar algum auxiliar. E foi assim que veio trabalhar conosco, como ajudante de meu sobrinho Delcir, no trator de esteiras, o Zé Canuto. Caboclinho esperto, magérrimo, geneticamente quase calvo, cabelos remanescentes acarapinhados, sorridente e extrovertido, uma testa enorme e reluzente, totalmente desproporcional. Logo se enturmou conosco. Era dele a função de acompanhar o trator pela mata adentro cumprindo mandados do tratorista.
Um belo dia, meu sobrinho estava tentando uma estrada pela rampa do morro, num vaivém incansável da máquina para chegar ao pé de uma peroba do campo. Em cada ida e vinda, o Zé Canuto estava atrás, sempre atento às ordens que podiam exigir-lhe que virasse a lâmina ou cortasse algum cipó enroscado no escapamento.
Num determinado momento, ao olhar para trás, meu sobrinho viu o Zé Canuto recostado no barranco da estrada, emborcado sobre os joelhos, queixo apoiado nas mãos em concha, muito sangue escorrendo-lhe entre os dedos e pela face. Percebeu logo que algo grave havia acontecido. Parou o trator e desceu correndo para acudir:
– Que diabo você arranjou, Zé? Cortou-se com o facão? Peguei você com o trator?
E o Zé Canuto, diante das mil e uma perguntas ininterruptas, erguendo a cabeça languidamente, foi conciso e contundente:
– Uma pancada desta pra riba do zóio discarquia carqué um!
O trator havia empurrado um vara pra dentro do mato, mas ela ficou tensa e resistiu. Quando o trator passou, ela se viu libertada da pressão e voltou numa zapt preciso, acertando em cheio a testa (não podia ser em outro local) do infeliz Zé Canuto. Por sorte ele não desmaiou, pois se assim tivesse acontecido, com certeza o trator ter-lhe-ia passado por cima. Foram 15 pontos, e ainda sobrou testa para ser rachada e costurada. Hoje ele é tratorista e trabalha em Açailândia – MA.
Pois é!… Que saudades de Nova Alegria!

O LIXO MAIS CUIDADO DO MUNDO
Há certas coisas que a gente devia esconder a sete chaves, mas o diabo é que são exatamente aquelas que nos fustigam ao relato, como se passar por idiota, ou sendo mais moderno, pagar mico, fosse necessidade de sobrevivência.
Há seis anos moro na minha residência atual. Foi construída pelo mestre de obras Caxias, que da austeridade do nosso histórico marechal Luís Alves de Lima e Silva, nada tem. O que ele constrói, nem um terremoto com 9.0 na escala Richter, derruba, assim como, qualquer barraco de gueto se lhe compara ao acabamento do que constrói. Devo ter gasto mais cimento na casa do que usaram no Muro de Berlim rsrs. Falando sério, ele era um bom construtor, mas o excesso de preocupação pela consistência da obra, fazia com que os gastos se triplicassem.
Entre outras, ele fez os serviços “subterrâneos” de água, energia e esgoto, “superficialmente”. Podia-se ver aqui e ali, lombos de canos pra fora da terra. Isto me causava grandes problemas, pois, se ao cavar qualquer buraco em quintal minado de canos já não nos livramos das máximas de Murphy, quanto mais do azar evidente que me perseguia nesse mister. O certo é que entre Murphy e o caiporismo, nunca consegui dar um “enxadãozada” no quintal, sem levar um esguicho na cara. Nem as varas de araçá dos buscadores de água em terreno árido foram, até aqui, mais eficientes que meu enxadão.
E foi assim que, no primeiro inverno, o lombo de um cano de água ou energia aflorou bem na entrada da garagem. Exatamente aí começou minha via crucis! Tantas vezes carreguei carrinhos de terra para encobrir o diabo do cano; tantas vezes as enxurradas o apresentavam ameaçador, como se dissesse: “Proteja-me, senão o pneu do carro irá quebrar-me. Voará água ou sairá fogo, você sabe como é!” E lá ia eu em mais uma tentativa para adiar o problema. Em muitos momentos lembrei os conselhos de meu sobrinho Delcir: “Há coisas, tio, que são só uma questão de tempo! Um dia terá de ser feito e, se tem de ser feito, o melhor é fazer logo.” Mesmo assim, eu vivia adiando esse dia.
Enfim, depois de muitos carrinhos e pás de terra, resolvi acabar, de vez, com aquele problema que me fazia perder tempo matutando a solução ou maldizendo o construtor inconsequente. Comprei dez quilos de cimento e fiz duas proteções, uma em cada lado do cano que insistia mostrar o costado ameaçador. O tempo foi passando, passando. Há poucos dias, resolvi aumentar os bloquetes da garagem até o limite da casa, porque os respingos do telhado enchiam a varanda de lama. Quando os pedreiros chegaram, fiz questão de recomendar:
– Quando forem nivelar o terreno, tenham muito cuidado. Há canos na superfície em todas as direções, mas este aqui (e mostrei o tal problemático) é o mais ameaçador. Não sei se é de água ou da energia que vai para o almoxarifado.
Os pedreiros olharam bem, começaram o serviço e eu voltei ao meu escritório. Duas horas depois fui chamado às pressas, pois haviam descoberto a função daquele cano desgraçado que me enchera o saco durante seis anos.
Quando transpus o umbral da cozinha e olhei para o lugar do serviço, vi mais dentes nos dois pedreiros do que na boca de um jacaré-açu em posição de ataque. No chão, um pedacinho de cano de meio metro… apenas meio metro.
– Óia aí, seu Fragoni, o cano que te deu tanto trabaio. Era só um pedacim véio que o construtô antigo jogô fora.
– Putaquipariu!…, desabafei chula e laconicamente, sem qualquer escrúpulo ou cuidado com minha condição de acadêmico.

O DIA EM QUE VI O DIABO
Minha infância foi passada próxima a um vilarejo no interior espírito-santense. Como qualquer criança da roça, eu vivia de pé no chão, um calçãozinho seguro por suspensórios, sem camisa, cabelos despenteados, pele queimada pelos raios solares. Estudar era um castigo de que não me furtava, pois os velhos imigrantes italianos, no lugar de prêmios, ofereciam uma violenta surra para o filhote que não passasse de ano.
Voltava do colégio (escolinha do interior), apanhava a tabuada, postava-me de cócoras num canto do quarto e em poucos minutos já podia levantar-me, apanhar o embornal de pelotas e sair para as capoeiras em perseguição aos alíferos, certo de que não ajoelharia sobre os duros caroços de milho da dona Zilda, minha exigente e inesquecível professora.
Segundo contam, eu era um filho-problema. Por isso, minha mãe vivia ameaçando-me:
– Não faça isto senão o diabo te pega; um dia o diabo te pega; cuidado com o diabo – e assim por diante.
Apesar de não demonstrar em casa, nas capoeiras eu vivia de olho em cada moita, e ao menor sinal estranho, meus cabelos arrepiavam e o coração disparava. Dias antes, acontecera um temporal e como me negasse a rezar, fui posto na varanda. Era noite escura. Apenas os fortes relâmpagos davam curta e rápida visão das árvores retorcidas. Diante daquilo, meu tenro machismo fraquejou e só mesmo depois de ensurdecedores gritos consegui a piedade de que precisava. Não recrimino minha mãe por isto, pois sem o auxílio do diabo seria muito difícil ter algum sossego no lar.
E mais um dia raiou e com ele a escola, a volta, a tabuada, o embornal de pelotas… A rotina de sempre. Acontece que minha irmã havia, há algum tempo, se casado com um grandalhão que, apesar do tamanho e da idade, sempre se portara como uma verdadeira criança. Imitava tudo, inclusive a gargalhada metuenda do chifrudo.
Nossa casa era rodeada de cafezais, fruteiras, matas e extensos capoeirões. O dia estava límpido, os pássaros gorjeavam em cada copa, como se estivessem agradecendo aos céus o prazer divino da vida. Saíras, gaturamos, rolinhas, coleirinhos, tisios, caga-sebos, marias-bobas, tico-ticos, japus e mais uma infinidade de alíferos de uma das mais belas faunas do mundo, estavam ali, pertinho de mim. Eu era puro e Deus dava-me o céu, talvez por saber que só para os que não o avaliam, é facultado o privilégio de sua visão. Pela pureza que hoje sei que desfrutava é que percebo como era feliz. Entre um anjo e uma criança, só o poder diverge.
Fui ao paiol, escolhi as mais redondas pelotas de batinga, conferi a elasticidade da seta (atiradeira) e saí ameaçador. Conhecia um mata-paus com frutos e encaminhei-me para lá. Fui atravessando as leiras de café; saltei a valeta do moinho; cruzei por goiabeiras e segui em frente.
Um joão-de-barro assentou-se na mira, mas não pelotei, pois minha mãe dissera que, como as cambaxirras, ele era um pássaro de Deus, gozando, pois, das prerrogativas de imunidade, podendo voar e pousar onde bem entendesse. Porém, não usufruíam do mesmo privilégio, os caga-sebos, e saí incontinenti na perseguição de um que me cruzou o caminho. De árvore em árvore, fui dar numa mexeriqueira antiga, de vasta copa. Nem sequer percebi os frutos, pois meus olhos fixos na minúscula caça, nada mais viam além dela.
Foi então que ouvi um gargalhar ensurdecedor e ininterrupto, diabólico, furibundo, tétrico. O boné elevou-se ante o ímpeto dos cabelos ouriçados, a respiração parou. Com o coração, não sei o que houve. Virei os olhos de relance apenas, pois não podia perder um só décimo de segundo na indecisão. Arranquei jogando folhas para trás; o grito ficou preso na garganta. Tinha visto o demônio, com todos os detalhes: chifres aguçados e pontiagudos, olhos faiscantes; pela boca, fogo e fumaça com cheiro de enxofre, calças esfarrapadas, tridente em riste, rabo bifurcado…
Como se estivesse num carro em alta velocidade, percebi as coisas ficando para trás, enquanto o som do gargalhar ia diminuindo, como se a força dos “valei-me Nossa Senhora” estivessem surtindo o efeito desejado. A valeta que sempre me parecia larga, foi ultrapassada com metros de margens a meu favor e o brejo adiante nem sequer afundou sob meu peso. Quando esbarrei na saia de minha mãe, senti que o embornal de pelotas, ainda atrasado, tocou-me as costelas. Apertei fortemente as pernas de mamãe num último alento. Ela não sabia de nada e vendo minha aflição, assustou-se. Tomou-me nos braços, deu-me água com açúcar, acalmou-me. Um dos pés sangrava, mas ainda não doía, na mais eficiente prova de que a tensão que estava vivendo era mais forte que a dor. Quando contei o que acontecera, ela riu, riu muito, pois sabia que podia ser tudo, menos o diabo.
– Mas vi, mamãe, foi horrível. Tentou agarrar-me, mas fugi correndo.
Quando meu cunhado, com a cara mais porca deste mundo, entrou na varanda degustando a última mexerica, percebi qualquer semelhança, mas por mais que tentasse, os chifres, os olhos faiscantes, o cheiro de enxofre… não eram percebidos.
Meu cunhado e, posteriormente, meu insubstitível companheiro de caçadas, hoje não está mais neste mundo. Deve estar aprontando lá no céu, brincando de diabo intruso com o anjo Gabriel.Confesso que nunca envelhecemos, ou melhor, nunca deixamos de ser “velhos moleques”. Sinto muitas saudades dele!

MI LA TCHAPAT EL DIAL
Num belo dia, um velho Ford de Bigode parou numa das ruelas do vilarejo. Em cima, uma família de negros, sendo o chefe muito feio e forte, diríamos, um hércules quasímodo. No vilarejo, até então, não havia, sequer, um mulato. Por isso, quando aqueles “seres alienígenas” começaram a carregar os cacarecos para dentro de uma casinha de taipa abandonada, não havia uma janela das casas vizinhas que não apresentasse uma cara italiana tomada de surpresa.
No outro dia, como sempre acontece em pequenas comunidades, o comentário não era outro senão a presença daquele estranho no ninho. Ainda mais que, lá, o “racismo”va de dez a zero no antigo apartheid da África do Sul. E o fuxico aumentou ainda mais quando descobriram que quem havia cedido a casa fora o vigário da cidade vizinha.
No primeiro mês, nada de anormal aconteceu, a não serem as acirradas críticas àquela invasão territorial. No segundo, porém, começaram a desaparecer as mais gordas penosas da redondeza. A dedução não foi outra: o crioulo, com um monte de crioulinhos e ainda por cima, desempregado, estava surrupiando as galinhas.
– Quel disgraciato, si no laora, como puol estare como um porcel? (Aquele desgraçado, se não trabalha como pode estar gordo como um porco?)
No vilarejo, bem no sopé do morro, morava o Mênego Coman, considerado o mais encrenqueiro da comunidade. Digo de cadeira porque sou do time: nada mais insuportável que um italiano encrenqueiro. Esse, além de ranheta, era agressivo e avarento: fazia caso até de uma tangerina bichada, quanto mais de suas gordas penosas. E deixa que também as dele começaram a desaparecer misteriosamente. Apelou.
Como as galinhas sempre davam o alarme e ele nunca chegava a tempo para flagrar a “raposa” ou o “gambá”, resolveu bolar uma armadilha que, segundo ele, seria infalível. Consistia numa tranca de ferro que seria acionada da cabeceira de sua cama por meio de uma linha de nylon com 60 metros, que era a distância da casa ao galinheiro.
Numa noite bem escura e tempestuosa, as galinhas deram o alarme. O Mênego Coman, que já estava antenado, puxou a linha e ouviu o ranger da porta e o bater da tranca. O bicho estava preso. Apanhou a espingarda, acendeu a lamparina e seguiu resoluto para o dormitório dos galináceos. Ao se aproximar, ele percebeu que as galinhas apenas cacarejavam baixinho, num autêntico sinal de medo e de perigo iminente.
Como não visse nada, mesmo porque era preto no preto, ele resolveu aproximar a lamparina de uma fresta da porta, no afã de lobrigar o que tinha aprisionado. Vendo-se acuado e prestes a ir para o xadrez… ou levar um tiro, o crioulo não pensou duas vezes: atirou-se contra a porta estilhaçando-a contra o Mênego Coman, passando-lhe por cima e desaparecendo na escuridão como se fosse um meteoro… e com duas galinhas debaixo do braço. O sufoco por que estava passando, bem merecia um pagamento maior.
O estrondo da arrancada do crioulo no silêncio da noite, apenas interrompido por esparsos trovões, ressoou ainda mais forte. Toda família do Mênego, assim como a vizinhança, acudiram prontamente. Tais barulhos não eram comuns àquela hora da noite na, até então, pacata comunidade italiana. Lá chegando, encontraram o ranheta Mênego Coman nocauteado, nariz sangrando como se tivesse desafiado Mike Tyson em sua plena forma ou sido atropelado por uma jamanta lotada de vergalhões. O cano da espingarda estava separado da coronha e, por sorte, a lamparina apagou no impacto, pois poderia até ter incendiado a velha ceroula e a camiseta com que se vestia para dormir.
Já em casa, tendo recobrado os sentidos, rodeado de vizinhos e familiares, nariz inchado, ele foi bombardeado por perguntas:
– Era um lobisomem? Um urso fugido de circo? Um elefante?
O Mênego Coman, ainda arrepiado e batendo o queixo de dor e medo, foi enfático e contundente:
– El dial!… Mi la tchapat el dial.
No seu dialeto ele estava dizendo:
– O demônio!… Eu peguei o demônio.
– Maria Vérgena! – exclamaram em coro como se houvessem ensaiado, os demais italianos. Pelo que sobrou do galinheiro, da espingarda e do nariz do Mênego Coman, com certeza, ele imaginava estar dizendo a verdade.
Passou-se muito tempo até descobrirem que o diabo não come galinhas!

UMA ESTREIA DESASTRADA
Meu cunhado Arlindo Falqueto, conhecido por Grapuá, mudara-se para Pinheiros, uma vila criada por pioneiros madeireiros em meio à floresta norte do Espírito Santo. No começo, as coisas andaram bem e toda sua produção era consumida por uma grande indústria registrada como Irmãos Força Ltda. que, posteriormente faliu, graças à incapacidade de organização e à metodologia de trabalho.
Com a prosperidade inicial, meu cunhado começou a perder-se em meio às facilidades das coisas. Colocou motoristas nos caminhões, encompanheirou-se com pessoas inescrupulosas e deixou que a própria Firma lhe entregasse os saldos. O resultado não podia ser outro: quebrou.
Com as coisas andando mal, os filhos maiores ficaram desorientados, sem dinheiro e sem profissão. Nos estudos, pouco progresso e nenhum entusiasmo. Foi aí que tivemos uma ideia reconciliadora: a família mudaria para Linhares, os rapazes trabalhariam com a gente nos serviços de madeira e estudariam à noite. Assim foi feito. Entusiasmados e dispostos, marcaram a estreia.
Havíamos adquirido do senhor Demétrius Négri, uma propriedade de 50 alqueires, no lugar denominado 41, que era a distância exata, em quilômetros, entre a mata e a cidade de São Mateus, cortada pela BR-101. Linhares ficava mais abaixo, a uns 70 quilômetros.
Mal penetramos na mata: uma árvore no meio da “estrada”. Apesar da fome e da sede, a euforia era total. Um a um fomos saltando e, logo, o saudoso Piaçarol (mano Ildebrando) começou a golpear o tronco com seu afiadíssimo machado.
Cirão interferiu:
– Dá cá, tio, sou mais forte e mais novo.
O mano não se fez de rogado: incontinenti passou-lhe a “arma”.
Uma cuspidinha na mão, um arremesso de lançador de dardos e um som bem diferente ao de um lenhador: o machado ricocheteou; passou rente ao nariz do Cranuto (mano Dolmino), que caiu psiquicamente ferido; resvalou ante dezenas de olhos curiosos e foi encerrar sua trajetória no joelho necrosado do mano Piaçarol (Ildebrando): aquele joelho sem meniscos, agravado com o coice de um pacato jeguinho, lá na vila de Nova-Alegria, na Bahia.
Às 16h, um cortejo espalhafatoso dava entrada no Hospital Menino Jesus, de propriedade do mano pediatra e clínico geral, o nosso “Grande Pajé”, encerrando assim o primeiro dia de serviço dos meus inexperientes sobrinhos.
Mas a vida continuava e bom demais seria Deus se fizesse com que toda desdita parasse ali. Os perigos por que passamos neste arriscado trabalho daria um livro bíblico, ainda que apócrifo. Não haver morrido uns quatro naquele tempo, só mesmo com a intervenção de Deus!
Lembro – ainda bem que lembro! – de um ano negro, em que apesar de não termos o Delfin no planejamento, vivíamos uma crise idêntica como se o tivéssemos. A batalha era árdua e lutávamos desesperadamente para sobreviver.
Trabalhávamos três em cada caminhão, procurando toda e qualquer economia para que sobrasse alguma coisa. Viajávamos para a Bahia constantemente, e numa dessas, devido as chuvas, vimo-nos na iminência de retornar com os caminhões vazios. Descobrimos então uns bacumixás estocados numa serraria do Jegue-Assado: vila de nome peculiar como Caixão-sem-Forro, Farinha-Lavada, Espera-Tapas e tantas outras da querida Bahia.
Nos caminhões, só ferramentas compatíveis com a força de meus sobrinhos brutamontes. A alavanca, por exemplo, tinha o nome de TERESONA e pesava quinze quilos. Era usada para toros enguiçados e pesados que caíam desarrumados sobre o estrado.
Pois bem, foi exatamente nesta hora, no ajuste de um toro, com o Simbim pulando para incidir maior força, que resolvi passar por baixo para apanhar a trena na boleia. O bico da alavanca escapuliu e a teresona, numa dinâmica de trezentos quilos, encontrou minha cabeça vadia em sua trajetória mortal. Vi o sol eclipsar-se, fagulhas riscarem a escuridão de minha visão e um som sumido que dizia: “Meu Deus, matei o titio!”
Não houve sequer fratura craniana, mas galo daquele, nem Masashi Kubota, mais famoso criador de onagadori do Japão, conseguira até então.
Nosso sistema, no começo, era de causar inveja a qualquer terciário, tal a primitividade. Contudo, não dava para alterar o equilíbrio ecológico, hoje mais rápido e acentuado com o uso de motosserras, tratores, “esquíderes” etc. Os toros eram ascendidos por catracas manuais e o catraqueiro tinha, às vezes, que ser bom para que a tora subisse. As estradas eram na base do enxadão, do machado, do facão e da foice. O que ficava de estrepes não era fácil. Num destes lugares, um toro de maçaranduba com três metros de circunferência e cinco metros de comprimento.
Todo mundo fazendo o possível e não conseguindo nada. Chega o Adalvirul (meu cunhado Vicente), sempre eufórico:
– Deixem comigo, seus moleirões. Passe pra cá o cabo de força pra macho.
Ajeitou a catraca. Aprumou-se. Mediu o salto. Subiu, e desceu ainda com maior velocidade. Alguma coisa não funcionou e o pobre cunhado estatelou-me sobre um estrepe, desvirginando-se, ou se preferem, sendo estuprado impiedosamente por um toquinho ocasional. Ao elevá-lo, percebemos que vinte e três centímetros bem medidos, se responsabilizavam pelo atentado.
Doutor Joel Coelho, médico piauiense, radicado em Linhares e inesquecível amigo da família, passou horas retirando do ânus e adjacências, farrapos da cueca e do calção, cavacos de madeira e outros objetos não identificados.
Durante 15 dias, duas vezes pelo menos por dia, nós e a vizinhança éramos obrigados a cientificar-nos de que o Vicente estava defecando. Depois, os urros foram diminuindo até desaparecerem completamente. Estava pronto para as próximas, que seriam muitas!

A BIRRA DO MEU VELHO COM O FISCAL
Ah!, meu saudoso e querido velho! Quantas histórias eu teria para contar de sua vida! Ainda hoje, passamos horas e horas rememorando aquelas observações espirituosas ou aquelas ranhetices características.
É!…, meu velho era assim mesmo! Tudo perturbava. Tudo incomodava. Era incapaz de permanecer em qualquer lugar com alguma pessoa encostada, esfregando-se nele. Quantas vezes estávamos assistindo à televisão, espremidos no sofá, e ele se levantava e ia para a calçada, à procura de ar livre, de espaço, de sossego, talvez.
Suas amizades eram selecionadas, pois qualquer um que não comungasse suas ideias era automaticamente um contrário, um opositor, indigno de sua amizade. Morava em nossa casa, por exemplo, um pretinho – a alma mais pura que conheci – que devido ao tempo já se tornara um familiar, um irmão, um filho. Contudo, era vascaíno, o que desagradava sobremaneira a meu velho pai flamenguista. Viviam discutindo e toda discussão tinha como princípio o futebol, e o fim, bem, o fim, o mais diverso que se possa imaginar.
Um dia convidamos os dois para assistirem a uma pelada que faríamos num campo de uma das estações experimentais do Estado. Era um descampado que ficava próximo à cidade de Linhares – ES, lugar em que os pernas de pau se divertiam quase todas as tardes. Distava, aproximadamente, 300 metros do asfalto, trajeto que desfazíamos a pé.
Apesar de estarem sempre discutindo, os dois viviam juntos, sempre com um deles tentando convencer o outro a aceitar suas verdades. As probabilidades eram as mesmas que alguém teria ao tentar secar os oceanos… retirando a água com um conta-gotas. Lá pelas tantas, depois de centenas de “é assim e não é assim” já chegando à orla do campo, meu velho estacou furioso e arrematou:
– Olha aqui, Édi, nóis dois num combina nem no caminho do inferno!
Era sempre assim: um desfecho comum para terminar uma conversa sem acordo. E o pretinho conhecia bem o velho, era-lhe grato e nunca distraía da hora e momento exatos de se calar. Pois bem, como o Édi, meu velho tinha outros algozes de suas ideias e de seus princípios. O fiscal da Prefeitura era um deles.
Marilândia era um distrito que dependia de Colatina, seu município. O Prefeito enviara para a vila, um fiscal baixote, de cabelos espessos e duros, nariz comprido, dentes grandes, físico razoável, tonalidade de voz enjoativa. Podia-se dizer que realmente era antipático e até mesmo feio. Conversava o que dava o dia e jamais acatava a opinião de quem quer que fosse. Um prato cheio para o meu velho. O encontro dos dois definia-se como uma força irresistível contra um obstáculo intransponível.
Acontece que, diferentemente do Édi, o fiscal passou a perseguir meu pai, cobrando alguns impostos indevidos e fazendo certos comentários que poderiam até ser reais, porém, jamais deveriam ser ditos, principalmente por ele.
Todos sabiam, na vila, das amabilidades que os dois andavam trocando nos bate-papos dos bares, mas nunca houve uma preocupação maior, já que, pela idade, meu pai estava imune a qualquer agressão física. Era apenas um problema de filosofia, de pontos de vista, nada mais.
Nossa família tinha por hábito, todas as tardes, após o jantar, reunir-se na frente de casa, num banco tosco de madeira. Ali se falava dos problemas, das coisas engraçadas, dos planos e das fofocas. Ali se ouvia de tudo, criticava-se o mundo, mostrava-se a solução, até, para as crises internacionais.
O América F. C. era a principal vítima. Clube de futebol de oposição ao Marilândia E.C., fundado por nossa família, numa vila de mil habitantes, outra coisa não daria. Para ajudar na afinidade dos dois, o fiscal era americano doente.
Estávamos, pois, ali, na frente da casa reunidos, falando ao alcance total das cordas vocais, quando despontou na esquina do Milanezzi, montado numa velha e barulhenta bicicleta, o tal fiscal. Veio pedalando e, talvez distraidamente, passou bem rente a nós sem sequer virar a cabeça.
Papai, que já o percebera muito antes, cutucou-me com o cotovelo, olhou dos lados – era mania para constatar que nenhum espião rondava por perto – e disse entre os dentes:
– Olha aqui, meu filho, se eu fosse uma PRAGA, montava neste fiscal e só apeava na entrada do cemitério!
– Que é isso, pai?!… – repreendi carinhosamente.

A PEROTINGA ASSASSINA
O dicionário ainda não registra, mas assim era conhecida uma árvore de lei – quando existiam florestas por lá – muito comum na cidade de Venda da Nova do Imigrante – ES. Quando os primeiros emigrantes italianos chegaram para desbravar aquela região fria e montanhosa, os filhos deles ainda acreditavam que sexo podia ser substituído por outros passatempos menos problemáticos. Bem, nem todos, admito.
Entre bochas, caçadas, moretinas…, mais comuns entre os mais velhos, subsistia a criatividade da rapaziada, tão louca como o é, hoje, a de alguns amantes de esportes radicais. Só que, agora, carros de corrida batem a 300 quilômetros por hora e os pilotos saem de dentro sacudindo a poeira e apenas maldizendo a falta de sorte. A tecnologia consegue dar-lhes uma grande margem de segurança.
Naquele tempo, a coisa era feita na marra e de forma inconsequente. Se no céu também houver aposentadoria, os anjos-da-guarda daqueles malucos devem estar todos aposentados… e se, como no Brasil, tiverem-se assegurado o tal “direito adquirido”, o rombo nas contas públicas celestiais deve estar preocupando o ministro da Fazenda do Criador.
O que acontecia de acidentes com aqueles adolescentes italianos, não era fácil. Sobrancelhas dependuradas nos fios de arame farpado em descidas íngremes em cima de pedaços de tábuas; verdadeiros escalpos em mergulhos arriscados em dias de enchentes; canelas fraturadas em peladas no meio de pedras… Cada relato, se contado em detalhes, seria uma inédita história tragicômica. Ater-me-ei, apenas, à perotinga: a árvore que acabou acrescentado mais um apelido ao já sobrecarregado Protásio.
Dia de domingo, depois da reza. Disto os pais não abriam mão: os filhos tinham de rezar. Sabiam os velhos que só não permitindo que os anjos tirassem uma soneca eles continuariam com aquele bando de malucos vivos.
Lá, só se vê o sol ao meio-dia. Pelas encostas, muita orquídea, limo por causa da umidade fria e constante e cipós de todos os naipes. Era nesse ambiente hostil que a rapaziada encontrava mais um meio de passar o tempo, sem a preocupação de uma gravidez indesejada ou de uma gonorreia, tão comum naquele tempo.
E foi acima de uma perotinga, que o Protásio descobriu um cipó no jeito, dependurado num galho de jequitibá. Logo espalhou a notícia e, naquele domingo fatídico, depois da reza, o bando de malucos foi para lá munido de foices, estrovengas e facões. Limparam a “pista”, cortaram o cipó na altura ideal, testaram-no sob o peso de dois marmanjos e, para inaugurar o voo, foi escolhido o descobridor. Com o morro a pique, quem saísse do chão, no final atingiria mais de 15 metros de altura. Na frente, lá em baixo, a perotinga sobranceira, com sua haste roliça e resistente. O alcance do cipó excedia à perotinga, passando a alguns metros à direita e atingindo a altura dos seus primeiros galhos. Coisa para doido em estágio avançado de demência.
O Protásio pendurou-se no cipó, sacudiu-o para testar-lhe a resistência e vendo que tudo estava em ordem, conclamou a rapaziada para puxá-lo para trás e empurrar com tudo o que tinham de força. No meio da turma, o que veio a ser meu cunhado Grapuá: um cavalão irresponsável e de força descomunal. Não deu outra: o Protásio saiu voando pelo ar, não sem antes soltar o grito de guerra: “Jute-me Dio santo”, hoje substituído por nosso “Iarruuuuuuu”.
O lançamento seria perfeito, não fosse o desvio imprevisto da rota. A uns 40 quilômetros por hora, nosso Tarzan falsificado tomou a direção da perotinga. No painel do cipó, não constava a opção “piloto automático” nem qualquer apoio de correção computadorizada: o Protásio foi direto à árvore. Pressentindo o perigo, ele abriu as pernas para atracar-se à perotinga e, acredito, não será preciso contar, ao menos aos homens, o que aconteceu à “carteira de identidade” dele.
Além de ser levado como morto e entregue como tal à família, nunca mais teve filhos. O rebuliço foi grande na vila, mas ele sobreviveu. O seu anjo deve ser, lá no INSS do céu, como costuma dizer o nosso caboclo autêntico, o mais “agraduado”. Sobreviver ao impacto na colossal perotinga e à queda retumbante entre as pedras, sem fraturas expostas, só mesmo com a ajuda de um anjo revestido de poder e prestígio: só mesmo um anjo graduado.

UM ESQUECIMENTO IMPERDOÁVEL
Icha!… Não me pergunte o nome de registro dele. Não somente eu, como qualquer um de minha geração, lá no vilarejo de Marilândia – ES, com certeza, não saberá responder. Nos tempos de minha infância e adolescência, muitas pessoas nasciam e morriam sem que se soubesse o nome com que haviam sido registradas. Não fosse minha memória, uma peça recondicionada, certamente eu faria sucesso enumerando todos os nomes (apelidos) com que eram conhecidos os habitantes do vilarejo. Mênego Canarim, Capirda, Brusafer, Piassarol, Cutuca, Icha, Bicho Pegado, Calango, Veiinha, Balaio, Kô, Bambu Amarelo, Esguatcherão, Ontão, Quoque, Grapuá, Nariz Pelado, Farofão, Quati, Corujão, Coça Saco, Anu Branco, Pascoína, Pipinuca…, meu Deus!, eram tantos e tão atinentes que, de fato, os registros em cartório só serviam mesmo para documentos e, posteriormente, atestados de óbito.
Bastava um pequeno deslize, um andar típico, uma palavra fora de lugar, um defeito físico, um trejeito, um cacoete… e logo os mil demônios – eu fazia parte da hoste vigilante – encarregavam-se de fazer a vítima passar alguns séculos no purgatório. Era tanta a raiva que alguns passavam que, se as pragas pegassem, no cemitério local sairiam labaredas pelas catacumbas. Nenhum de nós escaparia da geena.
Um dia, o Icha, um alemãozinho magricelo, sardento e que tinha o mau costume de afanar umas penosas para o almoço aos domingos, caiu numa armadilha. Na primeira tentativa, ele se deu bem ao surrupiar uma galinha do Caldara, um dos primeiros comerciantes da vila. Gostou e continuou. De uma foi pra duas, depois pra cinco e, finalmente, já enchia o saco e até vendia as excedentes para o próprio dono do galinheiro.
O Caldara, dono das galinhas, começou a achar que a mercadoria oferecida não lhe era estranha e, para tirar qualquer dúvida, passou a marcar as próprias penosas. Não deu outra: as galinhas sumiram no sábado à noite e já na segunda-feira de manhã eram oferecidas ao comerciante. Pego em flagrante, o Icha se viu em apuros. Foi cercado, acuado e, por fim, levou a maior surra de sua vida: quase um linchamento.
Na escola, como toda criança inocente ou, pelo menos, sem noção jurídica ou religiosa da gravidade de seus atos, o Icha foi cercado pelos companheiros. Todos queriam saber a razão de ele se encontrar naquele estado, cheio de esparadrapo, gazes, gesso, ataduras e curativos. Tinha-se a impressão de que fora atropelado por uma jamanta e estava enfaixado para se tornar a primeira múmia capixaba.
Mas, apesar da curiosidade geral ele se mantinha calado, arrasado, humilhado, machucado, escorado numa muleta improvisada. Dir-se-ia que estava tomando consciência do pecado que cometera. De repente, num grito de desabafo, ele ergueu o bastão e exclamou:
– Nossa Senhora!…
Todos ficamos boquiabertos, assustados com aquela reação inesperada. O que estaria acontecendo com o pobre Icha? As pancadas ter-lhe-iam afetado o cérebro? Depois de alguns segundos de silêncio, alguém quis saber:
– Mas, o que aconteceu com você? O que foi, Icha?
E ele, correndo os olhos no rosto de todos que compunham a rodinha, foi enfático:
– Esqueci da rasteira!
É que, dias anteriores, na parede branca da venda do Américo Mezadre, com a plateia no meio da rua, foi exibido um filme nacional enfocando uma briga entre os malandros das favelas do Rio de Janeiro. No filme, um negrinho esperto derrubou, na rasteira, meio-mundo de agressores. Naqueles dias, nós não fizemos outra coisa senão tentar imitar o negrinho bom em capoeira. O Icha havia sobressaído… e perdido a melhor chance de utilizar a aprendizagem, jogando por terra os seus agressores. Um esquecimento que lhe custara caro… mais caro que todas as galinhas afanadas.

EL CORDOBÉS E A CHIFRES DE BAIONETA
Numa noite fria resolvi assistir a uma tourada no interior de Conceição da Barra – ES. O lugar do espetáculo era pequeno, sem qualquer proteção ou cobertura. O vento frio vindo da praia enregelava as faces e os braços desnudos. Um picadeiro central cercado de ripas grossas e arquibancadas de tábuas empenadas completavam a armação.
Depois de meia-hora de atraso, eis que aparece, em cima da cerca, um “locutor” avisando que a demora se devia à ausência do toureiro titular El Cordobés, que ao saber do curriculum vitae da vaca, havia-se evadido. Em seu lugar apresentariam um “peone” da fazenda Spinosa, cabra da peste, destemido, criado no meio de gado bravio nas caatingas do Nordeste. Era ele quem deveria subjugar a chifres de baioneta, temida, responsável por dezenas de demissões de peões que bambeavam as pernas só em ouvir falar o nome do terrível animal. O voluntário suicida apresentou-se, não sem antes mascarar o picadeiro com uma cusparada esverdeada de saliva com fumo de corda de Arapiraca:
– Escuta aqui, ô distinta plateia, tô aqui pra modi pegá uns animar. Num tô custumado trabaiá na frente di gente mais vô fazê o pussive pra agradá. Sorta aí a desgranhenta da fera que nois vai lutá – e dizendo isso saltou no meio do picadeiro. Nem o tradicional pano vermelho ele tinha nas mãos.
Um “arenero” lembrou-lhe do esquecimento. Ele retrucou:
– Não quero truqui, vai sê de homi pra homi memo.
Como o grande Alexandre, também ele não furtaria a vitória.
Extremamente precavidos, “os monosabios” foram abrir a jaula da fera. Mal destrancaram a porta, pularam nas ripas, guinchando como lépidos macacos. A plateia excitada explodiu, pois de orelha em orelha já se ventilava a cruel fama da chifres de baioneta: “Matou três de uma só vez”; “Destripou o Zé da Onça”; “Conhece o Manqueta? Foi ela;…”
Havia em cada mente a antevisão do que iria acontecer: a porta seria estraçalhada na arrancada, a poeira levantaria sufocante, dois olhos faiscantes dirigiriam, enfim, as baionetas afiadas até as entranhas do infeliz toureiro. Pelas narinas vermelhas sairia fumaça e entre mugidos tétricos, seriam exibidas as tripas do vaqueiro.
Diante da algaravia da plateia, a vaca saiu assustada, retrocedendo vagarosamente para o ponto do picadeiro em que o barulho era menor. Nisto, como por encanto, fez-se silêncio tumular. Do meu lado, alguém ciciou:
– Está tomano distança, vai acabá com ele, agora.
Neste momento, sem conhecer o vaqueiro, nem a vaca, nem o circo, nem a fazenda que mantinha a fera – juro – estremeci. Senti vontade de gritar, de tentar impedir tão impiedosa carnificina. Ainda hoje não me perdoo pela covardia do silêncio!
Passaram-se centésimos de segundos, os segundos, os minutos e só não vieram as horas porque, diante da impaciência da plateia, os “cuadrilleros”, primeiramente tímidos, e depois na mais desdenhosa ousadia, começaram a fustigar a vaca para que enfrentasse o toureiro. Ela empacou.
Luta pra lá, luta pra cá, cutuca com a garrocha, torce-lhe o rabo, banha-se-lhe as ancas com capanema… Aos empurrões, mais arrastada do que voluntariamente, a vaca chega ao centro do picadeiro. O toureiro se aproximou. O pequeno resquício de precaução, paulatinamente, foi cedendo lugar a ousado desrespeito. A vaca não reagia.
Meus olhos que até então só enxergavam pontiagudos chifres, ancas potentes, narinas dilatadas, agora não iam além de mais uma irresponsável importação brasileira de Biafra: desnutrida, esquelética, ossos traseiros parecendo-se com dois cabides de pendurar chapéus, bunda suja de uma diarreia crônica, cabisbaixa, envergonhada de seu estado deplorável, a vaca não encontrava lugar para esconder sua desdita.
O vaqueiro, ainda temeroso de um engodo para pegá-lo desprevenido, agia com certa precaução. Fez que avançava, chutou areia… Nada. A vaca parecia apenas sonhar com uma moita de mato verde, lá na sossegada juquira de onde viera.
Ao perceber que com sua inépcia, a vaca o estava desmoralizando, o vaqueiro avançou decidido, arremessando-lhe violento pontapé no traseiro. Era o que faltava. A vaca desmunhecou. O povo enraiveceu-se. Aos gritos exigia luta, sangue ou o dinheiro de volta. Diante dos ânimos exaltados, o dono do circo reapareceu, pedindo paciência:
– Não se afobem, vocês irão ter luta. Vou soltar agora o touro já que, mais uma vez, percebemos que não se deve confiar em fêmeas. São imprevisíveis. Querem sangue, irão ter sangue. Quanto a mim lavo as mãos como Pilatos. Não se esqueçam: vocês são os responsáveis.
Novamente o suspense, um silêncio que não durou muito. Para que o touro entrasse, era preciso que a vaca saísse. Quatro ou cinco “areneros” lutam incansavelmente para erguer aquela armadura de ossos. Nada. Estava arredia.
Torcem-lhe o rabo, acendem fogo no traseiro, puxam-lhe as orelhas, fustigam-lhe com tudo o que encontram de pontiagudo, enfim, não dispensam item algum da maldosa criatividade humana no ato de impingir sofrimentos. Nada. Já desconfiando da maçada, alguém grita da plateia:
– Será que aqui não tem homi pra tirar esta mundiça daí não?
Entre os caboclos ou matutos não poderia haver desafio ou ofensa maior. Uma verdadeira avalancha de homens irrompeu no picadeiro e em menos de um minuto, a atriz intempestiva foi devolvida ao camarim. Agora a coisa seria pra valer. Com os machos não acontecem estes vexames: garantia o apresentador.
Abre-se o pequeno curral. De lá sai um bezerro com projeto de chifres, todo doidão de medo pelo barulho das pessoas, estonteado pela luz que o enceguecia. O vaqueiro, cheio de moral (pois já havia desmoralizado a mais terrível vaca da região), pulou na frente, desafiando-o, atrevidamente. Cada vez mais assustado, procurando por todos os meios e lados um jeito de fugir, o bezerro acabou atropelando o pobre vaqueiro, que caiu nocauteado com uma joelhada na testa.
Os assistentes acorreram céleres, retirando o vaqueiro e levando-o à farmácia mais próxima. Sem se conformar, a plateia irascível exigia o dinheiro de volta. Eu, qual hiena imbecil, não podia conter-me. Senti alguma coisa morna descer pela perna, e não foi difícil deduzir que estava me mijando todo. Foi inevitável em meu acesso de riso.
– Este abestalhado ri de quê? – perguntavam-se os inconformados.
No íntimo eu respondia:
– Vocês queriam sangue, mas eu, nada mais do que vi. Não acreditarei jamais se alguém disser que viu uma cena ou assistiu a um espetáculo mais cômico.
Obs.: Esta história foi-me contada pelo mano Jayr, médico pediatra, falecido em 28-6-2003, na cidade de Linhares – ES. A ele, com toda saudade deste mundo, esta minha modesta homenagem.

ÚRDELO, SÊNTE-LO, BRUM, BRUM!
Meus pais se casaram tendo em dinheiro o que hoje equivaleria a vinte reais. Há um ditado que diz: “Quem tem apenas um cartucho, detone-o num toco”. E assim fez meu pai: apanhou as merrecas, entrou numa loja de ferramentas e gastou “tudo” em enxada, foice, martelo, pregos… É,… naquele tempo dava pra muita coisa! Foi com “vinte reais” que eles iniciaram a vida.
Quando atingi meus 13 anos, a vida ainda era dura lá em casa, apesar do progresso de meus pais que já possuíam um pequeno pasto com cinco vacas, um cavalo, alguns porcos e outras tantas galinhas. Na roça: milho, arroz, feijão, abóbora, pepino, banana, mamão… Em volta da casa, muitas mangueiras, biribazeiros, laranjeiras, mexeriqueiras, goiabeiras…
Durante o dia eu me virava nas fruteiras, mas na hora das refeições, o bicho pegava. Não havia nada que me matasse a necessidade de alimentos salgados. Mesmo percebendo isso, minha mãe não tinha outra opção: era leite e seus derivados, verduras que eu detestava, polenta e meio ovo. É…, meio ovo! E ai dela se, ao biparti-lo, houvesse qualquer suspeição de divisão injusta! Nunca irei entender porque Deus fez – ao menos em mim – os olhos maiores que a barriga!
Meus irmãos e eu jantávamos cedo e, logo depois, juntos como um bando de jacus, saíamos para a rua. Às 21h, no máximo, estávamos de volta. Nessa hora meus pais, cansados da lida diária, já se punham fora de combate. E aí o ataque a tudo o que se podia engolir era devastador. Diante da barulheira infernal que eu fazia levantando tampas, abrindo sem cerimônia as portas do guarda-comida ou da despensa, minha pobre mãe acordava e, toda bendita noite, ralhava:
– Úrdelo, sênte-lo, brum, brum…
(Êi-lo, escute-o, brum, brum…)
A caça mais impiedosa se dava à panela do leite. Como tudo era sob medida, mamãe a escondia (tentava) para que o regrado maná da italianada desse para o café da manhã, no desjejum com broa de milho.
Acontece que até então eu sempre descobrira o esconderijo, fazendo-o até mesmo sob um pé de repolho lá no fundo da horta em plena noite de chuva. Sem saber o que fazer e não havendo mais outra opção em todo quintal, minha mãe resolveu colocar a panela debaixo de sua própria cama. Mesmo que ele descubra – pensava ela – não terá a ousadia de enfrentar o pai ranheta, que não admite ser acordado depois que pega no sono. Ledo engano!
Nessa noite, depois de vasculhar todos os lugares possíveis, deduzi que ela escondera a panela do leite dentro do próprio cômodo em que dormia.
As portas dos quartos, naquele tempo e na roça, não possuíam tramelas internas. Por isso, depois de posicionar a lamparina num lugar estratégico, aproximei-me pé ante pé e entreabri uma das partes. A primeira coisa que vi foi o brilho do alumínio debaixo da cama.
Como um rato que pressente o perigo da ratoeira, mas não resiste à isca, pus-me de quatro e saí engatinhando para dentro do quarto. Em cima da cama, meus pais pareciam estar em sono profundo. Cautelosamente, o estômago em rebuliço, a boca salivando, lá fui eu rumo ao brilho mágico da panela de alumínio. Eu era muito comprido e magro e isto dificultava minha progressão. Parecia-me que morreria se me privassem, naquele momento, de umas boas goladas.
Retirei a tampa com todo cuidado, inclinei a cabeça quanto pude, emborquei a panela, firmei os beiços e, quando ia dar a primeira golada, recebi uma correada na bunda que a tira ficou em alto relevo durante muitos dias:
– “Mi lo tchapat, esbrenato”. (Eu o peguei, morto a fome).
No susto, arranquei pra frente cortando os lábios, ferindo as gengivas na orla da panela, arranjando um galo na testa, arrancando o couro do cóccix na quina viva do estrado da cama e, antes que escapasse, ainda recebi do meu velho, que não suportava ser acordado, mais uma correada no lombo.
O pior de tudo, no entanto, não foi a dor, nem o sangue, nem mesmo a privação do leite, mas as risadas de meus irmãos, que jamais se arriscavam, mas nunca dispensavam a partilha. A culpa era sempre minha. Pela manhã, enquanto eu de boca inchada resmungava num canto porque, como castigo, ficara sem leite, eles riam e se refestelavam com a minha parte. E aí eu apelava. Rogar pragas era meu forte:
– Miseráveis! Traidores! Fingidos!… Tomara que Deus faça cair todas as tetas das vacas de vocês!

E O FEITIÇO VIROU-SE CONTRA O FEITICEIRO
Antes de me dedicar ao estudo acurado dos inhambus brasileiros, já os conhecia sobejamente, caçando-os por todo o território nacional. Um dia, porém, alguns biólogos, zoólogos e ornitólogos de São Paulo, Rio de Janeiro e outros centros avançados, em visitas inesperadas, aconselharam-me a pesquisá-los, ao invés de abatê-los.
– Se não se mudar essa cultura, diziam eles, num futuro próximo essas aves estarão em extinção graças aos achaques renitentes dos depredadores humanos.
Foi quando parei para aquilatar meu grau de culpabilidade e avaliar o crime ecológico que estava cometendo. Como bom arrependido, não deixei para o outro dia: ali mesmo iniciei a reversão de minhas atitudes, pendurando a espingarda no “fumeiro” e iniciando a construção dum cativeiro.
Entretanto, meu grupo de amigos caçadores não foi tão sensível aos conselhos dos ecologistas e continuou, com funções diferentes, a acompanhar-me nas incursões às selvas. Eles abatiam e eu capturava para posterior reprodução em cativeiro. Porém, a lei nunca fora de fazer grandes distinções entre abater e apanhar, e assim, continuei contraventor. Jamais consegui convencer a quem quer que fosse, que minhas intenções, então, eram de proteção, reprodução e repovoamento das áreas depredadas.
Diante desse clima, meus cunhados, irmãos e eu, marcamos uma incursão na Reserva Sooretama. Eles, armados até os dentes, e eu, com minha sofisticada aparelhagem de captura. Tentaria fêmeas de jaó da mata, que somente ali eram encontradas.
O lugar era de difícil acesso e teríamos, inclusive, de passar pela barreira dos agentes florestais, postados em guaritas pelo caminho. Iríamos arranchar durante quatro dias e o que levávamos às costas, por certo, não deixaria com fome um exército faminto durante uma semana. Cada um transportava um alforje com tudo entulhado até à boca – não menos de 40 quilos.
Na tarde de quarta-feira, véspera de nossa saída, podia-se notar aquelas tralhas rechonchudas e pesadíssimas. Meu cunhado Vicente, eterno estropiado, a cada minuto experimentava o peso e reclamava:
– Nossa Senhora, pesa mais de 50 quilos, experimente! E o pior é que estou com a coluna em frangalhos.
Foi aí que o tridente saiu das mãos de seu usuário-mor e me foi passado como se fosse uma corrida com bastão. Saí sorrateiro para o fundo do quintal, a almoxarifado improvisado, e encontrei um velho enxadão desencabado, uma cavadeira, uma travadeira dos primitivos grupiões italianos, uma grosa abandonada e uma marreta de aço alemão, pela qual meu pai falava maravilhas e desacatava a indústria brasileira. Arrumei tudo num embrulho só e, aproveitando a distração do Vicente, coloquei a sucata toda em seu picuá, acrescendo mais dez quilos ao peso primeiro do qual tanto reclamava.
Como malfeitor assustado, espremi-me ao portal e ganhei a varanda, sem que ninguém percebesse – assim imaginei. “Puxa!, será aquele sarro quando, mourejante e estafado, o Vicente chegar ao fim da jornada. Por certo ficará alguns minutos esticado e talvez até desmaie ao descobrir a sucata. O que terá de suportar de gozação, não será fácil!”
O que não me ocorreu foi o dom inato do cunhado, que conseguia perceber detalhes bem menores do que uma diferença acentuada de dez quilos. Ainda mais com sua coluna funcionando como detector sensível a um grama que fosse. Meu cunhado, até então, nunca deixara de ser um perfeito observador de tudo o que lhe dizia respeito.
Deleitava-me assim pensando, quando meio manco ele dobrou a esquina da Sorveteria Polar, que ficava a poucos metros de nossa casa.
– Fui comprar uma Decadronal – disse ele exibindo uma pequena ampola. Meu picuá pesa mais de 50 quilos e estou com a coluna na pior.
– É…, Decadronal é muito bom – disse eu um tanto arrependido.
Mas não era arrependimento, pois, se o quisesse, bem podia retirar a ferragem. Não o fiz. Não podia perder, ainda que levasse meu cunhado a internar-se. Gozações e sacanagens eram sempre as conquistas mais gloriosas de nossa família. Essa seria inesquecível!
Chegou a madrugada, a partida, as guaritas, o local, o desembarque e a caminhada. Levamos quase meia hora para arrumar o cacaio nas costas. Parecíamos uma tropa organizada com excesso de carga. Trôpegos, com os sacos agarrando nos cipós e espinhos, lá íamos nós, floresta adentro.
Minha carga parecia encurtar-me, tal o peso que sentia nos ombros. Sinceramente, cheguei a arrepender-me ao notar o sofrimento do meu cunhado que reclamava sem parar. Entretanto, talvez feliz por aquela aventura, o desgraçado seguia sempre com um sorriso safado e cínico. Quase que de minuto a minuto, virava-se para trás e comentava:
– Vai pesar assim nos infernos!
Isto me doía, mas não podia mais recuar. Afinal, também eu estava me arrebentado. Parecia-me transportar ltabira toda às costas.
Enfim, depois de quase quatro horas de tropeções, quedas, arranhões e palavrões, chegamos ao local, com as roupas encharcadas de suor. Exatamente como previ, o Vicente estirou-se, cerrou os olhos e suspirou fundo dizendo:
– Até que enfim, pensei que não suportaria este peso até o final.
Enxugou o suor da testa com o próprio boné, abanou-se e insinuou:
– É, ainda bem que viemos prevenidos, pois aqui tem madeira pra chuchu – e deu uma olhadinha maliciosa para o meu outro cunhado, o Arlindo, o Quoque Grapii.
Foi aí que uma ideia maluca ocorreu-me:
– Será?
Um calafrio perpassou-me a espinha. Não, ele não faria isto. Não viu, não descobriu… Ele não seria capaz disso. Se tivesse descoberto a tempo, bonzinho como é, não poria a carga nas minhas costas. Tentei iludir-me como pude, mas uma dúvida terrível, e cada vez mais acentuada, invadia minha cabeça.
– Como é, vamos desarrumar as tralhas? – outro risinho sarcástico.
De fininho e disfarçadamente, passei a mão pelo alforje como se estivesse enxugando o suor das mãos. Um objeto duro, esquisito e não muito estranho foi detectado… o mesmo objeto desgraçado que me roera as costelas em todo o trajeto. Já não havia mais dúvidas: o desgraçado transferira a encomenda. Com mil furacões, pensei, estou arruinado. Desta não me safarei nos presumíveis 50 anos que me restam.
Brando e Arlindo, ainda apáticos, não haviam dado pelo fato, e se eu não continuasse tão idiota, talvez pudesse ainda deixar por menos aquela situação vexatória. Pensei: se ele não puder provar, será palavra contra palavra.
– Como é – retrucou insistentemente – vai amolar o grupião logo? Veja que jequitibá enorme aí do lado.
Depois de muitas estratégias, consegui convencê-los de que, o primeiro trabalho era preparar o barraco que usaríamos nos cinco dias em que ficaríamos lá. E mal o Vicente adentrou alguns metros para cortar um varão, arranquei aquela desgraceira de ferros velhos e levei-os a uma sapopemba, cobrindo-os com folhas secas. Cortei também um varão, mais para disfarçar, e voltei aliviado, jogando-o ao lado. Quando se aproximaram, às vistas de todos, comecei a desarrumar minha bagagem. Os olhos do Vicente brilharam e sua inquietação era por demais insinuadora. Peça por peça retirei tudo, sem que nada de anormal acontecesse.
– Onde escondeu?
– O quê?
– Pra cima de mim?
– Não sei do que está falando.
– Sabe sim. Então vai fazer uma derrubadinha aqui – ponderou o Arlindo, que já recebera a versão do Vicente.
– Este cara é maluco. Pensa que me pegou. Já estou sabendo das insinuações dele. Acontece que fui avisado e retirei a sucata.
– Duvido!
– Pois quando chegar em casa, olhe no fundo do quintal para ver se a ferragem não está lá no mesmíssimo lugar de sempre.

Para tentar provar que eu, o sabichão, o pregador de peças, que sempre impunha malvadezas aos outros não tinha entrado naquela vexatória situação de idiota, trouxe a sucata de volta e, mal ele apanhou uma xícara de café e se virou para conversar com a esposa, corri para o fundo do quintal e coloquei a desgraceira toda no lugar de onde nunca deveria ter saído. Só Deus sabe o que sofri e as ginásticas que pratiquei para não ser flagrado. Depois, chamei o Vicente e desafiei:
– Não vai olhar se a sucata está no fundo do quintal?
– Ora se vou – disse ele dirigindo-se para o local.
Ficou duvidoso ante o que viu, embora manchas roxas atestassem por todo meu costado a dura verdade. Por fim, examinou-as cuidadosamente e foi diabólico:
– É, mas estão lustras, muito lustras! Acho que foram usadas.
Passei cinco anos dizendo o contrário e quando já confirmava a filosofia daquele maníaco secretário de Hitler, de que uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade, resolvi contar o que ocorrera. Nunca me arrependi tanto!

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