CONTOS
Este foi meu primeiro livro: acho que não precisarei dizer mais nada.
À minha mãe querida, que não conteve as lágrimas quando eu disse que iria lançar um livro. Ela nunca estudou, mas nunca duvidou da importância dos livros. Por isso envelheceu trabalhando para que eu me formasse. Que saiba, mamãe, que por ser o primeiro, deve estar cheio de erros, falhas e incoerências. Prometo à senhora que irei dedicar o resto dos meus dias para que, de fato, um dia se orgulhe de mim. Que a simplicidade de minha incipiência, somada ao grande esforço de entrar corajosamente neste mundo, a mim desconhecido, revista-se do mais lindo presente que ora lhe ofereço, querida mãe. Se a senhora não fosse minha mãe, não teria coragem de oferecê-lo.

CAÇAR COM O MONTOVANELLI OUTRA VEZ, SÓ DENTRO DE UM CARRO BLINDADO… E OLHE LÁ!
Linhares, norte do estado do Espírito Santo, chegou a um ponto tão crítico que, certamente, havia em 1976, mais caçadores que hectares de matas virgens. Isso preocupou tanto as autoridades da Defesa do Meio Ambiente, que a guarda florestal foi logo intensificada, objetivando, quando nada, diminuir a matança dos bichos e pássaros, principalmente pacas, veados, inhambus e cracídeos.
Tudo ali era caçador, desde o padre Jaime Marchesi, pároco da cidade, até o pistoleiro Ferraz. Como o mais comum neste planeta corrompido é a amizade por interesse, não tardou que cada agente florestal tivesse seu protegido, fornecendo dicas para que nada acontecesse ao prevaricador. Por outro lado, apesar dessas garantias, certos vínculos empregatícios impediam que se pusesse em jogo um bom emprego de coletor federal.
Por isso, nosso amigo Bragatto, maluco por caçadas, sofria vendo mutirões de apadrinhados disputarem os parcos galináceos das reservas florestais mais próximas. Sabia que, se flagrado por algum agente da outra ala, perderia seu emprego público e o financiamento da casa própria pela Caixa Econômica Federal. Para evitar estes e mais outros infortúnios, ele reunia, todos os anos, alguns amigos e rumava para o sul da Bahia. Lá, mais distante e onde não havia agentes exigentes, dava corda à sua dependência.
Entre seus companheiros havia um muito especial: o Wilson Montovanelli, casado com a filha de um grande caçador de macacos, o Gastão. Era tabelião, alto, narigudo, corpo atlético, bigode conciso, 40 anos…. Num passado ainda bem próximo, no campeonato estadual, fizera tremular as bandeiras americanas com seus gols incríveis e de pura raça. Contudo, toda aquela bravura nos campos de futebol era esquecida nas selvas, onde andava assustado até com besouros e corujas. Para que o leitor tenha ideia de sua  personalidade, o Bragatto certa vez contou que ele, num domingo cheio de sol, resolveu almoçar petiscos de inhambus.
O velho Quincas, entre os homens bons do mundo, o melhor, possuía uma fazenda a alguns quilômetros da cidade. Além das pastarias, havia também uns dois alqueires de matas devastadas. Ali viviam teimosos remanescentes da luxuosa fauna capixaba: inhambus-chintãs, chororós, tururins, chorões, urus, jacus, últimos mutuns e alguns jaós. Mas não continuavam ali por acaso. Perseguidos ano após ano, aprenderam a se livrar dos caçadores. O Manelão,  barbeiro mais comentado da cidade de Linhares, por exemplo, conhecia cada um deles, seus locais e seus piados. Os inhambus também não ficavam para trás e ali viviam desafiando a argúcia dos predadores.
Uma estrada vicinal cortava o capoeirão ao meio. Ali o Montovanelli estacionou seu corcel, arrumou e conferiu sua tralha, arriscou um piado de chintã, localizou-o e começou a picada com seu corneta. Vexames, frustrações, azares, arranhões e imprevistos foram consumindo o dia, e quando o caçador deu por si, já o sol havia desaparecido. Numa afobação inqualificável, ele perdeu a picada, o tino, a direção e, um pouco mais, os farrapos de sua jaqueta foram ficando dependurados nos ramos de arranha-gatos. E antes que a coisa piorasse ainda mais, ele visualizou uma forquilha de corindibeira. Sabia que era frágil e poderia quebrar, mas, no chão é que não ficaria. Sem pestanejar, começou a subir. O sol desapareceu e, com ele, toda a esperança de sair sozinho daqueles poucos hectares de capoeirão.
Às 19 horas, dona Joacy, sua dileta esposa, conhecedora da coragem do marido fora dos campos de futebol, é claro, não teve dúvidas de que o mesmo, mais uma vez se perdera no capoeirão do velho Quincas. Arrebanhou amigos e partiu em socorro. A 50 metros do Corcel, estava a corindibeira de que falei acima, com o bravo perseguidor de inhambus encaracolado nas forquilhas, de rosário na mão e olhos lacrimejantes.
Pois bem, lá estão na Bahia, o Bragatto e seu amigo Montovanelli, o perito advogado Ocy (não menos conhecido pelo seu excesso de precaução) e outros maníacos perseguidores de aves. Todos magnatas teóricos que levavam um mês inteiro para aleijar um inexperiente inhambu. Enquanto pelos derredores do barraco existiam tururins, urus e chorões, os dias foram passando normalmente. Depois, estes foram, ora sendo abatidos, ora sendo escolados. O Wilson, sem pássaros para caçar e sem coragem para aventurar-se mata adentro, deu por encerrada sua missão para aquelas férias.
No último dia, o Bragatto, vendo o amigo sozinho e triste em sua rede, resolveu arriscar – afinal, era o último dia, um diazinho só. Depois, o pessoal podia estar exagerando. Fez o convite. Olhos faiscantes de alegria, o Montovanelli arrumou sua tralha, conferiu os pios e cartuchos e bem cedo partiu em companhia do amigo. O dia em si foi maravilhoso, com os dois caçando “juntinhos” (isto o Bragatto prometera a seu Anjo da Guarda antes de sair). Pela picada, o Wilson sempre na frente e vigiado amiúde. A preocupação do Bragatto não era abater coisa alguma e sim reanimar o companheiro e voltar vivo ao barraco. Mas, para que os descrentes não duvidem do tamanho do diabo, eis que, já chegando na reta final de sua missão filantrópica, um macuco pia fogosamente. Wilson estaca qual cavalo bravio… Bragatto o empurra e diz que foi engano, que não ouvira nada.
Meio desconfiado e com as orelhas em pé, o Wilson foi caminhando e, aí, as dúvidas foram dissipadas. O diabo empenado piou tão agudamente, que até o Bragatto, no seu ímpeto predador, esqueceu-se da companhia que desfrutava. Recobrando em seguida o sangue frio, tentou, com argumentos refutáveis, convencer o amigo a deixar o bichinho ali.
– Faltam dez minutos para às dezoito horas. Já, já estará indo ao poleiro. Não teremos tempo de chamá-lo ao pio.
– Qual nada, está doidinho para acasalar. Com cinco minutos estará na mira.
– Já vai escurecer, Wilson…. não dará tempo!
O macuco pia pela terceira vez, tão perto que o Bragatto achou por momentos que nada, por pior que fosse, valia o preço de tamanho desperdício. Saiu um pouco da picada:
– Está vendo aquele lugar ali, perto daquela gendiba? Ou melhor, está vendo aquela gendiba ali?
– Estou – respondeu sussurrando o Wilson.
– Pois bem, meta-se naquela catana do outro lado e vigie para lá. Pelo amor de Deus, para lá. Do lado de cá, deixe comigo.
– Está certo.
– Irei ficar ali, perto daquele jatobá, está vendo?
– Estou sim.
– Não atire para este lado, em nada deste e nem do outro mundo, certo?
– Que é isso?
– Nada, desculpe, mas cuidado, estarei aqui piando. De qualquer forma o macuco, para chegar até aqui, terá de passar por você, certo?
– Certo.
– Pelo amor de Deus, nem olhe para este lado. Vigie pra lá e fique atento.
Perto do jatobá, havia uma depressão. O Bragatto ia passando despercebido, quando pensou: “Por certo não verei macuco algum, mas ali dentro estarei livre do Montovanelli.
Entrou, revirou as folhas para certificar-se que nenhuma cobra estava dormindo por ali e assentou-se. Ia quebrar um galhinho que lhe ofuscava a visão, quando sentiu um empurrão violento que o jogou de bruços, enturvecendo-lhe a visão. Tentou reerguer-se, mas a cabeça parecia pesar 50 quilos. Tombou para o lado e, apesar dos pensamentos embaraçados, não teve dúvidas: O Montovanelli confundira sua grisalha cabeça com o maldito galináceo.
Uma junta médica da capital, durante dois dias cansativos, conseguiu extrair 60% dos chumbos número oito aplicados, no apagar das luzes, na cabeça do incauto coletor que fraquejara no finzinho do dia, nos últimos segundos de prorrogação do segundo tempo.
Quase um ano depois, ele comentava comigo: “Nunca duvide do que os pais e os verdadeiros amigos recomendam: não saia com o Wilson nem para caçar de estilingue, meu amigo”.

TEM COMPROMISSIS?
 Meus sobrinhos, herdando qualquer coisa que recebemos de nossos antepassados, também não são lá de pensar muito em casamento, pelo menos nos primeiros 30 anos de vida. Não sei se por força de tradição – já que desde o início vivemos agrupados, comungando dos mesmos ideais – ou se por uma simples questão de coincidência, assim sempre foi em quase toda nossa família. Automaticamente, pouco namoro sério acontecia e as gurias mais recatadas não olhavam confiantes para a sobrinhada que, apesar de fortes, desportistas e trabalhadores, não tinham em mente nenhum plano de consumir seus dias cuidando de crianças.
Ficava claro que Santo Antônio não andava de bem com eles, nem se dava o trabalho de semear em terra tão inóspita.
Por isso mesmo, todos os feriados eram ocupados com esportes, de preferência, os mais radicais possíveis, e com paqueras noturnas sem lá grandes responsabilidades. Meus sobrinhos trabalhavam em serviços brutos e perigosos, operando máquinas pesadas, dirigindo caminhões possantes ou desenvolvendo sempre atividades coerentes com seus músculos.
Delcir, o mais velho deles, sempre fora de um comportamento estranho. Sério e tímido, gostava mais de andar sozinho, principalmente quando tinha em mente qualquer plano não muito digno de transcrição. Mas, nessa noite fatídica, talvez por não haver acertado com nenhuma garota com antecedência, convidou seu irmão Vilmar para uma paquera a dois. Na época, eles possuíam um Passat branco LS, que já era conhecido como “o terror das crioulas”.
Vestiram-se o melhor possível e saíram pelas quebradas. Dobraram uma esquina, entraram numa rua qualquer, voltearam a praça, enfim, vasculharam todo e qualquer brocotó suspeito da cidade. Sempre que encontravam duas garotas, uma não agradava a um dos dois e, assim, a gasolina foi baixando e a noite caminhando sem tréguas. Por fim, o trabalho pareceu compensado. Na silhueta da arborização, duas mulheres postavam-se promissoras.
– Vai ser agora ou nunca – disse o Delcir quase esbravejando, para o irmão. Vamos encostar.
Curvaram derrapando os pneus para impressionar, brecaram com ruído, elevaram o som e como podiam, tentaram ser românticos:
– E aí, garotas, pensando na vida?
– Olá – respondeu uma delas, voz meiga e muito amistosa.
– Com algum plano especial para esta noite linda?
– Bem, acho que não – continuou uma delas, que parecia mais requintada.
A outra permanecia quieta, ouvindo e deduzindo. Por fim, percebendo as deglutições grossas dos dois, resquícios de suas intenções, a pretensa muda resolveu soltar a língua e, como era pobre de espírito e de cultura, perguntou:
– Vocês têm “compromissis”?
Sentindo o objetivo alcançado, ou talvez impelido pela ideia fixa de possuir as mulheres, o Delcir respondeu embaraçado:
– Não, mas as farmácias ainda estão abertas, quando nada as de plantão. Rapidinho compro as camisinhas.
Ao ouvir isto, as meninas saíram em disparada, entre gargalhadas e mesmo palavrões, que iam de indecentes a maus caracteres.
Delcir tem um jeito todo especial de gesticular quando se apanha em situação embaraçosa. Repetiu seu gesto de abrir os braços espalmando as mãos, olhou para o mano e disse:
– Você já viu dessas? São loucas ou ficaram agora?
– Qual nada – falou, também pela primeira vez, o Vilmar – a menina perguntou se nós tínhamos compromissos e não comprimidos.
– Não brinca!

A DU MOULIN MOCHA DO VELHÃO
Logo que no mercado capixaba surgiram as espingardas mochas, o Velhão, nosso primogênito Adalho, entre os grandes caçadores, o maior, adquiriu uma, calibre 32, Du Moulin. Aquilo era uma novidade não muito aceita, principalmente para aqueles imigrantes italianos acostumados com os velhos trabucos peninsulares de cães.
A notícia logo se espalhou pelo vilarejo e, de quando em vez batia na porta  lá de casa, um curioso qualquer que queria ver e confirmar, com as mãos, aquela estranha arma. Meu pai, no começo, não refugou a origem, desdenhando os franceses e achando “aquela coisa” sem nenhuma versatilidade para a caçada de pacas. Com o tempo, porém, foi-se adaptando e, um pouco mais, já não queria outra arma.
Levava-a por aonde fosse, sem perdoar o velho Toni Scarpatt, por ter dito que ele possuía um calo seco nos ombros de tanto carregá-la. Mas, apesar de meu pai rejeitar a crítica, nunca houve outra afirmativa mais verdadeira.
Quando atingiu os 50 anos, por força de circunstâncias alheias à sua vontade, meu pai aposentou-se por conta própria, vivendo, então, atrás dos chororões do morro do Canal, dos tururins da chapada do Catelan ou das pacas dos capões de mata dos Lorenzonis. Este último era seu lugar preferido, já que as pacas, desfrutando da vantagem das águas e da morosidade de locomoção do velho meu pai, sempre escapavam. E entravam e saíam os anos, sem que o Chapocão – cão mestre de paca – se visse recompensado de suas andanças por aqueles extensos chapadões. Aliás, o Chapocão já conhecia toca por toca dos roedores e levava, acredito, tudo aquilo na maior esportividade. Contentava-se em tocar ritmado por algumas horas, jogar o bicho n’água e receber em casa um pedaço maior de polenta.
A fazenda dos Lorenzonis ficava a um quilômetro da vila, na estrada que ligava Marilândia ao distrito de São Pedro. Nela havia uma serraria em que trabalhava todo o clã Lorenzoni. Estavam acostumados pois, a ver meu pai com seu boné tipo inglês, calça de cáqui, facão Policarpo Pupim, camisa de mescla, cachorro branco cotó, espingarda no ombro… passar por ali a passos quase trôpegos, em direção às matas. Como sempre ia e vinha de mãos abanando, jamais os Lorenzonis demonstraram ciúmes pelas pacas de suas propriedades.
Contudo, o boato da Du Moulin mocha havia corrido bastante e não se furtou ferir os tímpanos dos Lorenzonis que, nessa manhã estavam a postos, aguardando aquela hora infalível da passagem do velho meu pai. Estavam sentados sobre os toros do tombadouro, quando meu pai chegou e os cumprimentou. Falaram por muito tempo de outros assuntos, chegando por fim, ao ponto culminante:
– Soubemos que comprou uma espingarda diferente.
– Foi o Adalho, meu filho.
Foi dizendo isto e passando a arma para aquele magote de curiosos que, avidamente, correu os olhos em busca de detalhes.
– Isto deve ser uma porcaria – comentou o velho Henrique, alisando com a mão o lugar em que deveriam estar os cães.
– Muito perigosa – acrescentou o João, irmão um pouco mais novo do Henrique.
– Qual nada – retrucou meu pai, tomando a arma com o propósito de demonstração elucidativa.
Os Lorenzonis acercaram-se como meninas que brincam de roda, enquanto meu velho, entusiasmado, explicava tim-tim por tim-tim.
– Esta arma não oferece qualquer perigo. É extremamente versátil, pois num único movimento do polegar a gente tem os dois canos prontos para um disparo duplo e rápido, se achar necessário.
E, em cada argumento e explicação, mais os Lorenzonis agrupavam-se, até quase formar um bloco compacto. No meio, meu pai falava da arma, animado, sem se importar com a impaciência do Chapocão, que latia afoito e desassossegado, de cima do barranco da estrada. E era tal a aglutinação de pessoas, que a espingarda teve de ficar sendo examinada na vertical, pois era impossível dar-lhe outra posição. E quando todo aquele palavreado já parecia surtir o efeito desejado, com alguns Lorenzonis já até admitindo os argumentos, eis que um estrondo ensurdecedor se fez ouvir, cobrindo-os com uma nuvem de fumaça embaçadora. Quando essa se desfez, o que havia de Lorenzonis arrepiados e boquiabertos, no era fácil. No meio, qual boneco de cera, meu pai mantinha-se ereto, lívido e imóvel.
Realmente, ainda desta feita, os franceses não convenceriam os velhos italianos: era mesmo uma porcaria perigosa, aquela espingarda.
Em casa, calmo e inconformado, meu pai procurava inutilmente, a razão daquela detonação misteriosa. Tinha sido um vexame, um grande mico, capaz, inclusive, de fazer meu pai abandonar aquelas caçadas de pacas. Os roedores devem ter gostado muito daquele imprevisto, pois nunca mais precisaram acordar cedo, sair da toca quentinha e pular nas águas geladas do córrego São Pedro.

NEM O CRUCK QUIS TESTEMUNHAR!
Há muitos anos fala-se da ajuda dos animais na prevenção do tédio ou do estresse das pessoas idosas que, um tanto incapazes de acompanhar o ritmo de vida dos adolescentes, ficam isoladas e propensas à solidão. Além do mais, não é preciso ser muito inteligente para entender a singeleza, argúcia e meiguice de determinados animais.
Baseados nisto, vivíamos colecionando papagaios, cachorros, gatos, macacos e melros, objetivando ocupar os dias de minha mãe. Ela tinha um jeito especial de entendê-los, de adivinhar-lhes os instintos ou desejos, que a todos encantava. Dedicava um tempo especial a cada um deles, dependendo da idade ou dos problemas de saúde. Assim sendo, chegou o tempo da Mima, uma gatinha esperta que lhe fora presenteada por uma família amiga de nipônicos. Cresceu, (conheceu ou não se livrou) de um gato malandro da Vila-Lobo e seis lindos rebentos foram inevitáveis.
O ciúme que nutria pelos filhotes era algo humilhante até para as supermães humanas – aquelas mulheres intragáveis que jamais reconhecem os erros dos filhos. Animal nenhum podia arriscar-se passar a 50 metros do local em que cresciam os seis felininhos. Logo, logo aprendeu a perseguir todo e qualquer cachorro que avistasse. E não era encenação não, pois entre soprados e unhadas, enxotava qualquer matilha de seus inimigos naturais. Foi com a Mima que acreditei na assertiva de que a melhor defesa é o ataque.
E assim, a Mima teve três ninhadas, totalizando quinze filhotes. O que havia de gatos pelos quintais e o que se ouvia de negociatas pelas telhados era de causar insônia aos próprios soníferos. Logo começaram as reclamações, e minha mãe, reconhecendo o desequilíbrio ecológico, tratou logo de rarefazer seu contingente, presenteando doze deles. Restaram três: a Mima e os dois primogênitos.
A casa possuía uma varanda com um quartinho contíguo em que moravam os gatos. Por cima, rente à porta e por baixo da varanda, havia uma vara comprida, residência do Cruck, papagaio de estimação que conseguia, com total desembaraço, cantar várias músicas folclóricas. Ainda guardo uma fita com mais de 9 músicas cantadas por ele.
Todos os dias pela manhã, minha mãe tratava-os e, durante o dia, se passasse por ali, todos se movimentavam no afã de alimentos e de carinho.
Um dia, almoçávamos tranquilos, quando alguém divisou um grande vira-latas, que desconhecendo a ferocidade excêntrica da Mima, entrou distraidamente no quarto dos gatos. A Mima e os filhotes estavam em volta da mesa e não perceberam o intruso, tão entretidos estavam. Daniela, minha sobrinha, que notara a presença indesejada do cão, começou a incitar a Mima a expulsá-lo. Sem entender, os gatos ficaram colados a seus pés à espera de alguma migalha. Minha sobrinha caminhou, então, para o lado do cão, e os gatos, incontinenti, pularam em cima da tábua em que eram tratados e que ficava exatamente na porta do quarto em que estava, não sei fazendo o quê, o vira-latas. Este, quando percebeu o movimento, arrancou célere de dentro, atropelando tudo que estava interceptando-lhe a passagem. Foram tantos os “ufs, risssfiss, minhaus, canheins” que o Cruck, lá de cima, achou por bem não ficar como testemunha daquela balbúrdia: bateu os cotocos e voou quanto pôde.
Recuperada do primeiro susto, a Mima perseguiu o cão, desferindo unhadas em tudo o que ficava para trás. Perdendo a direção, o cachorro foi dar no fundo do quintal, no meio de umas bananeiras, onde estava amoitado o Cruck, muito assustado. Aí foi o caos – entre rosnados de dor do vira-latas, miados da Mima, gritos espavoridos da Daniela e chilrados do papagaio, até os dois filhotes da Mima trataram de se pôr a salvo, desaparecendo como por encanto.
Quando tudo serenou, alguém divisou uma cara não muito estranha entre os baldrames superiores da casa: era um dos gatos que, inexplicavelmente, foi parar lá. Para descê-lo, tivemos de apanhar uma escada e, pasmem, ajudá-lo.
Em seguida, toda arrepiada e vitoriosa, a Mima voltou à sala, indo exatamente no colo de minha mãe, que alisou seus pelos carinhosamente. Era um quadro lindo de se ver. Quem não gostou daquele imprevisto todo foi o Cruck, que passou quase duas semanas sem abrir o bico e totalmente vigilante.

MENINOS DO MATO
Você já se deparou alguma vez na vida com um bando de psitacídeos agrupados numa fruteira qualquer da floresta? E com jacus ou jacamins assustados, já? Como esses, há outros gêneros de aves que vivem em grupos e são, ora comandados por um chefe, ora levados pelo ímpeto do mais barulhento. As tiribas, por exemplo, mantêm-se silenciosas enquanto se alimentam. De repente, algumas começam a chalrar aqui e ali. Então, uma delas parte em grande alvoroço, e todos os componentes do bando a imitam, sem nem saber para aonde estão indo: simplesmente mudam de lugar. Fazem lembrar ou estouros de boiadas.
Pois bem, nossa família tem muito dessas aves, pois além do confinamento tradicional, ainda mudam em grupo constantemente. Começamos em Ribeirão do Cristo – todos; depois Marilândia – todos; mais adiante, Linhares – todos , e, finalmente, Imperatriz, no Maranhão – quase todos. Afinal, a revoada foi quase migratória. E deste confinamento, desta união, nasceram histórias e acontecimentos que poderão parecer fruto da imaginação, mas, acreditem: não são. Um aumentozinho aqui, outro acolá…. Bem, comida sem condimento não presta, não é mesmo?
Quanto estávamos morando na cidade de Linhares – ES, alguns sobrinhos, tendo na época concluído o terceiro ano científico, partiram para a capital do estado, Vitória, em busca de cursos superiores. Lá formaram uma república muito fácil de ser identificada por aqueles que nos conheciam, graças aos vidros de “Noselit” dependurados nas janelas ou jogados pelas calçadas. É que quase toda a família sofria de uma rinite alérgica crônica. A minha está aqui, grudadinha: amiga inseparável que não abre mão de acompanhar-me ao jazigo.
Menino do interior em cidade grande é quase como um pássaro tirado da mata e jogado numa gaiola: não possui a malandragem dos saltadores de bonde, nem a desinibição dos moleques vadios. Sempre acanhado, curioso e muito prestativo, passa a ser um bom prato para as crianças da cidade, principalmente as deseducadas.
Eu mesmo passei por tudo isso. Quando fui para lá, estava imbuído de ideais cristãos e, para cultivá-los, o caminho mais certo, imaginava, seria o seminário. Este ficava no cimo de um monte que se declinava sobre a praia Santa Helena, num bairro afastado da Capital. Dali ao centro da cidade media-se uns cinco quilômetros, que deveriam ser desfeitos de ônibus ou bonde. Bem, o bonde era mais barato!
Logo nos primeiros dias que lá estive, fraturei o dedo mindinho do pé, numa pelada entre as pedras do pretenso campo: uma pequena área no cimo do monte. Desumanamente fui enviado, sozinho, ao Pronto Socorro. Arrastando-me como podia, desci a encosta e fiquei no ponto até que, por ter que descer ali um passageiro, um deles parou. Eu não entendia patavina de sinais.
Depois de todos os sofrimentos, vexames, suadores, gafes e similares, retomei o bonde de volta. Logo na entrada, bati com o joelho na quina do banco com tal violência, que jamais duvidei, depois disso, da consistência de minha rótula. Mas, a coisa ficou preta mesmo foi quando precisei desembarcar.
De ponto em ponto o miserável do bonde parava, já que em todos eles havia um passageiro a descer. Isto me confortava muito, pois até então não estava entendendo onde mexiam para que aquele tilintar milagroso fizesse aquela ferragem estúpida parar.
Mas, veja o que é a vida, a sorte, o destino, ou coisa que os valha. Exatamente ali, onde eu deveria saltar, não havia, excetuando-me, ninguém para descer. Do estribo fiquei aguardando a parada que não aconteceu. Afobado, olhei para os lados e divisei um poste um pouco na frente, pelo qual aquela coisa passaria bem rente. Armei-me todo e, na passagem, saltei decidido a agarrá-lo. Impulsionado pela velocidade do bonde de aproximadamente trinta quilômetros, rodopiei desengonçadamente. Escapuliram-me as mãos e, como não podia ser de outra forma, fui estatelar-me no meio de uma poça de lama. A única coisa que não luxou ou ficou danificada, foi meu dedinho engessado.
Lá do alto, do humilde Avelino, varredor do pátio, ao padre Acácio, reitor geral, todos estavam curtindo o visual e puderam, detalhadamente, flagrar minha desdita.
Para se chegar ao corpo do seminário passava-se pela capela, cujo altar ficava defronte a estradinha. Divisava-se o altar e o Cristo crucificado, inteiramente. Sinceramente, ao fitá-lo percebi, ou, quando nada, desconfiei que até Ele estivesse rindo de mim. Não era pra menos!
Com meu sobrinho Cláudio (o Nanico encrencado), foi um pouco diferente, porém não menos humilhante. Vinha cabisbaixo por uma calçada, quando divisou um garfo de bicicleta caído, enquanto outras peças estavam em pé e bem enfileiradas ao lado da porta de uma oficina de consertos. Quis ser gentil e agachou-se para recolocá-lo junto às demais peças, sem atentar para a solda que apenas havia sido dada. Foi parar no hospital com queimadura de primeiro grau. Entre a dor que sentia, os olhares compadecidos de pessoas mais idosas e os risinhos dos gaiatos da oficina, preferiu ficar com as pragas de seu avô que, segundo ele, se vingassem, dariam para livrar aquela cidade de todo malandro malvado por muitos séculos.
E o Joelson? Sempre destemido, embora não fosse dos mais trabalhadores, adorava, por assim dizer, parecer como tal.
Logo que deixei a Escola Técnica de Contabilidade de Colatina, montei um escritório em Marilândia. Em seguida, troquei-o por uma Rural Willis velha que, mesmo assim, era a coisa mais mimada da sobrinhada.
Um dia, depois de uma viagem, detectamos um barulho esquisito no motor. Um outro qualquer, menos nós, saberia naturalmente do problema. E assim, quando estacionamos em frente à garagem, passamos a procurar a causa do estranho ruído. Meu sobrinho Joelson deitou-se, rolou por baixo e gritou:
– Acelera forte, tio!
Acelerei o quanto pude.
O motor, quente da viagem, com mais aquelas acelerações forçadas sem ventilação, quase fervia. Foi aí que ouvi o grito de vitória do mecânico solidário:
– Achei!, achei tio! – dizia ele enquanto levava a mão ao local. O defeito está AQUllllllllllllllll!…
Seria apenas “aqui”, não fosse o cano de descarga furado… e quase aquecido ao rubro. Durante um mês a mão direita não lhe serviu nem para coçar o nariz.

TIO GIN: O PAVIO MAIS CURTO DO MUNDO
Já falei, em outra oportunidade, dos imigrantes italianos, de seus passatempos, de seu sangue quente e principalmente de suas maneiras peculiares de achar sempre uma saída, uma resposta, com invejável presença de espírito.
Os meus tios eram, por assim, dizer, especialistas em perspicácia. Não há quem, lá pelas bandas do rio Pancas, desconheça as histórias mirabolantes do tio José, inveterado pescador de traíras e considerado o maior mentiroso da região. Claro que, como pescador, a pecha de mentiroso era-lhe inevitável, mesmo que não aceitasse. Morava numa vila chamada Nova Alegria, e em todos os fins de aparecia lá em casa para nos visitar. Nada de cadeira: ficava de cócoras durante horas a fio, relatando suas pescarias, assim como seus encontros extraordinários com bichos do mato.
Ficávamos boquiabertos, todos atenção, pelo tempo que ele desejasse. E, se ameaçasse parar, protestávamos.
Um dia, contou-nos que estava capinando um cafezal e, depois de horas de serviço, sentou-se sobre o “olho da enxadão” para descansar. Foi quando divisou, entre as leiras, uma raposa que vinha distraída, farejando o chão. Imobilizou-se por completo e ficou a espreitá-la. O animal veio de mansinho, cheirou demoradamente o cabo da ferramenta e depois foi subindo por ele, cuidadosamente alerta. Como na outra extremidade estivesse meu tio, o nariz da raposa foi dar exatamente no bolso da calça, fazendo uma cócega insuportável. Aí, também, já era intimidade demais! Meu tio pulou de lado a fim de tolher de vez as possíveis segundas intenções do mamífero. Segundo ele, a raposa deu um salto mortal e regougou um uaiiiiiii, que o deixou tão assustado quanto ela. Em seguida, desapareceu com o rabo mais ouriçado que gato assustado.
Não era, pois, por acaso, que suas histórias eram apreciadas com as devidas reservas.
Seu irmão Luís, intimamente conhecido por tio Gin, era também excêntrico. Não gostava de contar tais histórias, mas era dependente de caçadas de pacas e do jogo de bochas. Da família era o único que herdara da Itália o péssimo costume de blasfemar. Se a coisa não ia bem, xingava o que dava o dia, e se os achaques apertassem demais, então partia para os desafios às próprias potestades. No entanto, aquilo eram palavras apenas, da boca pra fora, já que possuía uma retidão de vida invejável e fosse o mais religioso dos irmãos. O que lhe custou mesmo um bom período de purgatório foi uma junta de bois e um cachorro chamado Tupi.
Naquele tempo tudo era realizado de maneira primitiva. Para se fazer uma casa, as madeiras vinham da mata arrastadas por bois. Nas cangas da parelha, amarrava-se uma corrente, e esta ao toro que seria arrastado. Era fácil saber quando meu tio estava fazendo isso, pois a mil metros ouvia-se os palavrões e os gritos mais horríveis. Só alguém do ramo para aquilatar o quanto é penoso realizar um trabalho desse. A tora engastalhava nas raízes e no terreno irregular e aí meu tio endiabrava-se ao ponto dos céus tremerem. De garrocha em punho, espetava os pobres bois e gritava, a toda altura, que a coisa não ia porque estava agarrada na “barba de São Martim”. À noite, mais descansado e calmo, arrependia-se e até mesmo ria de suas asneiras.
Irritava-se por qualquer coisa. Seu estopim não era curto: não existia. Era contato direto mesmo como a pólvora.
Seu cachorro Tupi era de uma preguiça irritante. Um dia, um veado desorientado saiu na pastaria e passou bem em frente à sua casa. Nesse tempo, um veado era um garrote oferecido pela Natureza. Tio Gin correu, apanhou sua espingarda e começou a gritar:
– Tupi, Tupi, cá Tupi!
Gritou, assoviou, estumou, usou de todas as artimanhas para animar o sonolento cão. E o Tupi, morto de preguiça, de cima de um toco de cabiúna, limitava-se a uivar melancolicamente: Auuuuuuu… auuuuuuuuuuuuuuu…
Vendo o mateiro entrar lá longe na mata, sem qualquer pressa, tio Gin nem pestanejou: disparou um duplo carrego de chumbo cigano reservado às antas, na cabeça do Tupi, pondo fim a muitos dos seus pecados.
Mas, o mais engraçado aconteceu mesmo num campeonato de bocha, no qual era ele a peça chave da equipe de sua vila. Acontece que, apesar da fama que desfrutava como um dos melhores jogadores da equipe, naquele dia estava mal, com tudo dando errado. Já havia xingado pela Itália inteira, quando aconteceu uma jogada melindrosa. As bolas estavam dispostas de uma maneira que um desvio qualquer daria oito pontos ao adversário.
Fez-se silêncio tumular. Tio Gin concentrou-se ao máximo, aumentando ainda mais o suspense. Por fim rolou a bola que saiu bem endereçada. No meio do caminho, porém, inexplicavelmente mudou de direção e foi fazer exatamente a única coisa que não podia: os oito pontos para a equipe adversária foram inevitáveis. Envermelhando ao rubro, tio Gin esticou os braços e desabafou:
– Anca Dio Ie dispetoso quando Iu vuoi.
Era uma linguagem já deturpada, do mais descaracterizado dialeto de Vêneto, mas que, de qualquer forma, queria dizer que “até Deus era desaforento, quando queria”.

TÔ MORTO!
Hoje, e tão somente hoje, percebo como desaprendi a viver, a curtir esta graça de respirar, de ver, de ser, de existir. A vida  é maravilhosa, principalmente para aqueles que a aceitam como lhe é dada…, com riqueza material ou sem ela. Basta curtir o mundo, comer os frutos das árvores dos campos; basta saber ouvir os passarinhos e curtir a beleza singular de suas plumagens. Do que Deus deixou para os homens, bem pouco seria suficiente para retirar do ateu, toda incredulidade.
Houve um tempo – e que saudades tenho dele!, que vivíamos assim, – usando essas coisas maravilhosas e sendo felizes, muito felizes. O trabalho era uma necessidade temporária, apenas um modo honesto de não passar fome. Tendo o necessário, jamais se trabalhava para o desnecessário. Pensando assim, sobrava tempo para diversões, pescarias, caçadas, esportes etc. O povo considerava-nos ricos e, hoje reconheço, sem reservas, que realmente o éramos.
Num sábado qualquer daquele tempo, os ventos pararam de assoprar à noite e isto significava período propício para se pescar tucunarés, um tipo de peixe que um imbecil qualquer, inadvertidamente, achou por bem trazer para Linhares e cuja concorrência interespecífica acabou por dizimar as espécies endêmicas da região. Contudo, pelo sabor, era um peixe que muito agradava, fazendo esquecer as desastrosas consequências que iriam ocasional no futuro.
Tempo bom para pescaria, serviço para depois. Partimos para a Lagoa do Meio. Lagoa do Meio era apenas mais uma entre as quatorze que havia pelos derredores da cidade de Linhares, todas agora sob o dominação dos vorazes e insaciáveis tucunarés. Esses peixes, contra a própria lei natural, devoram os próprios filhotes se não houver outro tipo de alimento. Com as lagoas prenhes de peixes autóctones e apenas com traíras como predadoras, os tucunarés multiplicara-se rapidamente. Em menos de um ano, eles se tornaram senhores absolutos das lagoas. Sem comida, tornaram-se presas fáceis dos pescadores.
Bem…. Quando digo partimos, quero dizer, doze pessoas, entre sobrinhos, avós, tios, irmãos, cunhados e afins, partiram. É… porque nossa família, além de grande, vivia unida. Sempre todos participavam de tudo.
Arrumamos as varas, as canoas, os isopores com piavas e acarás vivas (pescadas já a uma distância de 40 quilômetros, em córregos encachoeirados onde os afoitos tucunarés ainda não haviam escalado) e rumamos eufóricos.
Acontece que, dias antes, num daqueles bate-papos costumeiros das tardes nos bancos toscos da frente da casa, discorremos sobre o problema da maleita que sempre fora um sofrimento para a região. Consequências, causas, transmissores e as diferenças entre os culicídeos, meros incomodadores, e os anofelinos, transmissores da doença… tudo foi falado e discutido. Era apenas mais uma conversa, já que todas as tardes falava-se de muita coisa e de quase todo o mundo. A gente preferia assim a ficar pelos bares da vila.
Pois bem, chegamos à Lagoa do Meio. Cada um foi retirando seu material e se dirigindo para a margem da lagoa. Depois, de canoa, fomos para remansos diferentes, na esperança de encontrar um cardume maior.
Vicente, meu cunhado, divisando uma árvore recurvada sobre as águas, optou por ela, ficando meio desengonçado lá em cima. Dentro de aproximadamente uma hora, apenas o leve tocar das ondas nas margens era ouvido. Todos pescando e muito atentos.
Devo lembrar, que Linhares sempre foi proverbial na triste fama de ser um lugar que somente masoquistas viviam, por causa da quantidade de mosquitos. Por causa deles muita gente não ia morar lá e muitos de lá se retiravam para outros municípios. Era realmente um problema sério. Nas margens das lagoas, então, era o caos. Verdadeiras nuvens deles viviam acompanhando e picando cada um que por ali passasse.
Estávamos ali pescando, quando o Vicente, cortando o silêncio que reinava, perguntou lá de cima do galho:
– Escutem, o mosquito que transmite a dengue é um carijozinho muito espantado, do tamanho do outro e que fica a prumo quando pica a gente?
– É esse mesmo – confirme eu que estava mais próximo.
– Está brincando!
– Não, ouvi dizer que são assim mesmo, conforme descreveu.
Foi aí que meu cunhado, num rápido levantamento das picadas que havia levado e verificando que milhares deles, renitentes, ainda o disputavam, retrucou desesperado:
– TÔ MORTO! … e foi descendo da árvore apavorado.

CANCÃO E MENEGHIN
Velhão – o primogênito de nossa família – era assim conhecido, entre os familiares, por este apelido. Teve três filhos homens. O primeiro, viveu uma infância pacata, sendo sempre uma criança amável, dócil e obediente, o mesmo não acontecendo com os outros dois, Joelson e Cláudio, respectivamente conhecidos por Cancão e Mênego Canarim, ou Meneghin. Em nossa família qualquer rebento perdia o nome de batismo na primeira descoberta de algum defeito ou mania. Acho que somente Maria, mãe de Jesus, conseguiu mais predicativos do que cada um de nós.
Cancão, sempre indócil, bruto e prepotente, vivia azucrinando a vida de uma vila inteira, chegando mesmo a preocupar o sargento Luís, austero policial que, apesar de aplicar a lei a seu jeito, moralizou o município. Vagabundo, ladrão, desconhecido que não se identificasse logo, ou saía por conta própria ou era levado pela população… para o cemitério. Bandidos e vagabundos teimosos ele simplesmente matava… e de fuzil.
O Meneghin, além de resquícios dos dotes do Cancão, ainda mantinha em si a teimosia do mais cabeçudo jegue do Paraná.
Quantas vezes minha cunhada Dália, sua mãe, foi vencida por ele, que não se importava em apanhar meio dia se fosse preciso, desde de que não fizesse o que lhe havia sido imposto.
Crianças do interior, costumes do interior. Marilândia localizava-se numa região de vegetação espessa, onde pululavam alígeros mil: um convite irresistível para a criançada com seus embornais de pelotas e suas “setras”, como dizia o Cancão ao referir-se aos estilingues.
Sempre com elas penduradas no pescoço, eles viviam pela extensão de cinco quilômetros, de Marilândia ao sítio de meu pai e, pelo percurso, pelotavam as lâmpadas do Campo de Experiência do Estado, cegavam os cavalos do Tunico Ceolin, castravam reprodutores, quebravam canos d’água… uma verdadeira praga, semelhante aos gafanhotos do Egito nos tempos da hégira de Moisés. Reclamações acumulavam-se e o pobre Velhão já não sabia como resolver tantos impasses.
Na escola, uma lástima. É bem notório o dia em que a professora arguiu o Cancão:
– Você aí, que está furando o companheiro, qual a capital da Tchecoslováquia?
Mais vermelho que escarlate, fiapos de ralos cabelos finos e alvos a dançarem ao vento, o aluno, que de exemplar nunca nada tivera, ficou pensativo e cabisbaixo. A professora esperou, esperou e em seguida tentou ajudar:
– Meu filho, a capital de que lhe peço o nome é algo semelhante às doenças que atacam as galinhas, os animais de pena lá na sua casa.
Antes que a mestra chegasse ao fim de sua ajuda ele interrompeu eufórico:
– Já sei, já sei.
– E qual é?
– Gosma – respondeu vitorioso.
Na roça, quando as galinhas ficavam doentes e morriam, dizia-se que a praga havia chegado. Mas, a praga, às vezes, era denominada. Por exemplo, se as galinhas “tossiam”, demonstrando que algo estava errado com seus pulmões, então os italianos diziam que estavam com gosma.  Daí toda confusão do Cancão.
Em casa, nada escapava. De uma fome digna de Biafra, a tudo devorava, e jamais dispensava qualquer coisa que lhe fosse oferecida. Um dia, sua mãe encomendou um bolo lindo e enorme para festejar o aniversário do filho mais velho. O bolo estava coberto e tudo parecia normal. O momento esperado chegou. Crianças em volta, gritaria, doces e música. Destapa-se o bolo e, nele, a marca registrada do Cancão… duas profundas valetas cortando-o de alto a baixo. Não foi difícil descobrir o profanador, pois era o único, além de outras fundadas suspeitas, que possuía dois enormes e solitários incisivos.
Outra feita, minha mãe deixou umas cocadas sobre a cristaleira. Para quem olhasse de longe era possível ver o prato, acontecendo isto com meu sobrinho que, no entanto, não tinha tamanho suficiente para alcançar o objetivo.
Alguns minutos depois, toda família se dava o trabalho de desentulhar o faminto Cancão das vidrarias da cristaleira. Neste dia não escapou de uma boa surra.
Como companheiro inseparável, ele tinha o irmão mais novo, o Meneghin, também conhecido por Nanico. Esse se destacava pela teimosia. Não acredito que já houve choca mais teimosa, nem jegue nordestino pior. Nem haverá enquanto o mundo existir.
Dália, minha cunhada, mata um porco e escala o Nanico para levar o quinhão de direito à minha mãe, que morava do outro lado da rua. Para desgraça do Meneghin, meu irmão Brando, o Bulâmbula, estava debruçado na janela olhando o movimento, e ouviu a cunhada sendo desrespeitada. Não se contendo, interferiu:
– Como é, vai deixar este moleque mandar em você?
Com o brio ferido, minha cunhada tentou impor-se:
– Leva isto lá, Cláudio!
– Não levo!
Com o Bulâmbula atento e a moral em jogo, minha cunhada desfechou logo oito correadas na bunda do Meneghin.
– Não levo e não levo – continuou o teimoso e desobediente Nanico.
Dizem que o diabo dá ideias a quem fica à-toa. Deve ter sido ele que inspirou o Brando a pronunciar a frase apropriada para fazer o Nanico levar a maior surra da vida dele. Mãe é sempre mãe, e apesar da teimosia do filho, já ia deixar por menos, quando o Brando interferiu de lá da janela:
– Não é possível! Vai deixar este moleque passar por cima de sua autoridade de mãe? Se fosse filho meu eu matava, mas tinha de levar.
E assim, surra após surra, vai e não vai, se é filho meu ou se não é, o pobre Nanico ficou com a bunda mais cheia de ressaltos que carambola defeituosa, e o que é mais importante: ele foi sim, mas arrastado pela mão da mãe e com a carne numa sacola amarrada no pescoço.
O Meneghin ainda hoje confessa, mesmo depois da morte do mano Bulâmbula, que só o perdoará depois que seus filhos levarem a mesma surra, eles e seus descendentes até à terceira geração.

E O FEITIÇO VIROU CONTRA O FEITICEIRO
Antes que me dedicasse ao estudo dos inhambus brasileiros, já os conhecia pelo triste mérito de representar um papel marcante em sua rarefação, caçando-os impiedosamente por todo o território nacional. Um dia, porém, alguns biólogos, zoólogos e ornitólogos de São Paulo, Rio de Janeiro e outros centros avançados, em visitas inesperadas, aconselharam-me a pesquisá-los, ao invés de abatê-los. Se não se mudar essa cultura, diziam eles, num futuro próximo essas aves estarão em extinção pelos achaques renitentes dos depredadores humanos. Foi quando parei para aquilatar meu grau de culpabilidade e avaliar o crime ecológico que estava, inescrupulosamente, cometendo. Como bom arrependido, não deixei para o outro dia: ali mesmo iniciei a reversão de minhas atitudes.
Entretanto, meu grupo de amigos caçadores não foi tão sensível aos conselhos dos ecologistas e continuou, com funções diferentes, a acompanhar-me nas incursões pelas selvas. Eles abatiam e eu capturava para posterior reprodução em cativeiro. Porém, a Lei nunca fora de fazer grandes distinções entre abater e apanhar, e assim, continuei contraventor. Jamais consegui convencer a quem quer que fosse, que minhas intenções, agora, eram de proteção, reprodução e repovoamento das áreas depredadas. Os que duvidavam estavam certos, porque, ainda hoje, a maioria dos capturadores assim tentam se justificar, mas, na realidade, capturam para vender.
Diante desse clima, meus cunhados, irmãos e eu, marcamos uma incursão na Reserva Sooretama. Eles, armados até os dentes, e eu com minha sofisticada aparelhagem de captura. Tentaria fêmeas de jaó da mata, que somente ali eram encontradas.
O lugar era de difícil acesso e teríamos, inclusive, de passar pela barreira dos Agentes Florestais, postados em guaritas pelo caminho. Iríamos arranchar durante quatro dias e o que levávamos às costas, por certo, não deixaria com fome um exército faminto por uma semana. Cada um transportava um alforje com tudo entulhado até à boca – não menos de 40 quilos.
Na tarde de quarta-feira, véspera de nossa saída, podia-se notar aquelas tralhas rechonchudas e pesadíssimas. Meu cunhado Vicente, eterno estropiado, a cada minuto experimentava o peso e reclamava:
– Nossa Senhora, pesa mais de 50 quilos, experimente! E o pior é que estou com a coluna em frangalhos.
Foi aí que o tridente saiu das mãos de seu usuário-mor e veio até mim. Saí sorrateiro para o fundo do quintal, a almoxarifado improvisado, e encontrei um velho enxadão desencabado, uma cavadeira, uma travadeira dos primitivos grupiões, uma grosa abandonada e uma marreta italiana, pela qual meu pai falava maravilhas e desacatava a indústria brasileira. Arrumei tudo num embrulho só e, aproveitando a distração de alguns minutos do Vicente, coloquei a sucata toda em seu picuá, acrescendo mais dez quilos ao peso primeiro do qual tanto reclamava.
Como malfeitor assustado, espremi-me ao portal e ganhei a varanda, sem que ninguém percebesse – assim imaginei. “Puxa!, será aquele sarro quando, mourejante e estafado, o Vicente chegar ao fim da jornada. Por certo ficará alguns minutos esticado e talvez até desmaie ao descobrir a sucata. O que terá de suportar de gozação, não será fácil.”
O que não me ocorreu foi o dom inato do cunhado, que conseguia perceber detalhes bem menores do que uma diferença acentuada de dez quilos. Ainda mais com sua coluna funcionando como um detector sensível a um grama que fosse. Meu cunhado, até então, era um perfeito observador de tudo o que lhe dizia respeito.
Deleitava-me assim pensando, quando meio manco ele dobrou a esquina da Sorveteria Polar, que ficava a poucos metros de nossa casa.
– Fui comprar uma Decadronal – disse ele exibindo uma pequena ampola. Meu picuá pesa mais de 50 quilos e estou com a coluna na pior.
– É…., Decadronal é muito bom – disse eu um tanto arrependido.
Mas não era arrependimento, pois bem podia retirar a ferragem. Não o fiz. Não podia perder, ainda que levasse meu cunhado à UTI. Gozações e sacanagens eram sempre as conquistas mais gloriosas da família.
Chegou a madrugada: a partida, as guaritas, o local, o desembarque e a caminhada. Levamos quase meia hora para arrumar o cacaio nas costas. Parecíamos uma tropa organizada com excesso de carga. Trôpegos, com os sacos agarrando nos cipós e espinhos, lá íamos nós, floresta adentro.
Minha carga parecia encurtar-me, tal o peso que sentia nos ombros. Sinceramente, cheguei a arrepender-me ao notar o sofrimento do meu cunhado que reclamava sem parar. Entretanto, talvez feliz por aquela aventura, o desgraçado seguia sempre com um sorriso safado e cínico. De minuto a minuto, virava-se para trás e comentava:
– Vai pesar assim nos infernos, não é mesmo?
Isto me doía, mas não podia mais recuar. Afinal, também eu estava me arrebentado. Parecia-me transportar ltabira toda nas costas.
Enfim, depois de quase quatro horas de tropeções, quedas, arranhões e palavrões, chegamos ao local, com as roupas encharcadas de suor. Exatamente como previ, o Vicente estirou-se, cerrou os olhos e suspirou fundo dizendo:
– Até que enfim, pensei que não suportaria este peso até o final.
Enxugou o suor da testa com o próprio boné, abanou-se e insinuou:
– É, ainda bem que viemos prevenidos, pois aqui tem madeira pra chuchu – e deu uma olhadinha maliciosa para o meu outro cunhado, o Arlindo ou, melhor dizendo, Quoque Grapii.
Foi aí que uma ideia maluca ocorreu-me:
– Será?
Um calafrio perpassou-me a espinha. Não, ele não faria isto. Não viu, não descobriu… Ele não seria capaz disso. Se tivesse descoberto a tempo, bonzinho como é, não poria a carga nas minhas costas. Tentei iludir-me como pude, mas uma dúvida terrível, e cada vez mais acentuada, invadia minha cabeça.
– Como é, vamos desarrumar as tralhas?  – outro risinho sarcástico.
De fininho e disfarçadamente, passei a mão pelo alforje como se estivesse enxugando o suor das mãos. Um objeto duro, esquisito e não muito estranho foi detectado… o mesmo objeto desgraçado que me roera as costelas em todo o trajeto. Já não havia mais dúvidas: o desgraçado transferira a encomenda. Com mil furacões, pensei, estou arruinado. Desta não me safarei nos presumíveis 50 anos que me restam.
Brando e Arlindo, ainda apáticos, não haviam dado pelo fato, e se eu não continuasse tão idiota, talvez pudesse ainda deixar por menos aquela situação vexatória. Pensei: se ele não puder provar, será palavra contra palavra.
– Como é – retrucou insistentemente – vai amolar o grupião logo? Veja que jequitibá enorme aí do lado.
Depois de muitas estratégias, consegui distraí-los e, numa fração de segundos, arranquei aquela desgraceira de ferros velhos e pesados e enterrei-os numa sapopemba sob as folhas secas. Voltei aliviado e quando se aproximaram, às vistas de todos, comecei a desarrumar minha bagagem. Os olhos do Vicente brilharam e sua inquietação era por demais insinuadora. Peça por peça retirei tudo, sem que nada de anormal acontecesse.
– Onde escondeu?
– O quê?
– Pra cima de mim?
– Não sei do que está falando.
– Sabe sim. Então vai fazer uma derribadinha aqui – ponderou o Arlindo, que já recebera a versão do Vicente.
– Este cara é maluco. Pensa que me pegou. Já estou sabendo das insinuações dele. Acontece que fui avisado e retirei a sucata.
– Duvido!
– Pois quando chegar em casa, olhe no fundo do quintal para ver se a ferragem não está lá no mesmíssimo lugar de sempre.
Para tentar provar que eu, o sabichão, o pregador de peças, que sempre impunha malvadezas aos outros não tinha entrado naquela vexatória situação de idiota, trouxe a sucata de volta e as coloquei no lugar indicado. Só Deus sabe o que sofri e as ginásticas que pratiquei para não ser flagrado. Depois, chamei o Vicente e desafiei:
– Não vai olhar se a sucata está no fundo do quintal?
– Ora se vou – disse ele dirigindo-se para o local.
Ficou duvidoso ante o que viu, embora manchas roxas atestassem por todo meu costado a dura verdade. Por fim, examinou-as cuidadosamente e foi diabólico:
– É, estão lustras, muito lustras. Acho que foram usadas.
Passei cinco anos dizendo o contrário e quando já confirmava a filosofia daquele maníaco secretário de Hitler, de que uma mentira repetida mil vezes se torna verdade, resolvi contar o que de fato aconteceu: nunca me arrependi tanto!

AS BIRRAS DO MEU VELHO COM O FISCAL DA PREFEITURA
Ah!, meu saudoso e querido velho! Quantas histórias eu teria para contar de sua vida! Ainda hoje rememoramos aquelas observações espirituosas, ou ranhetices típicas.
É…., meu velho era assim mesmo! Tudo perturbava, tudo incomodava. Era incapaz de ficar em qualquer lugar com alguma pessoa encostada, esfregando-se nele. Quantas vezes estávamos assistindo a um programa de televisão, espremidos no sofá, e ele se levantava e ia para a calçada, em busca de ar livre, de sossego ou, quem sabe, de espaço. Não admitia ficar apertado num mundo tão grande.
Suas amizades eram selecionadas. Qualquer um que não comungasse suas ideias era automaticamente um opositor, indigno de sua amizade.
Morava em nossa casa, por exemplo, um irmão adotivo de cor negra – a alma mais pura que conheci. Pelos longos anos de vida com a gente, tornara-se um familiar, um irmão, um filho. E como ninguém é perfeito, era vascaíno. Isto desagradava sobremaneira o meu velho pai flamenguista. Viviam discutindo e toda discussão tinha como princípio o futebol, e o final, bem, o final o mais imprevisível possível.
Um dia, convidamos os dois à assistirem uma pelada que faríamos num campo de uma das estações experimentais do Estado. Era um descampado próximo à cidade de Linhares. Ali os pernas-de-pau divertiam-se quase todas as tardes. Ficava a aproximadamente 300 metros do asfalto, trajeto que desfazíamos a pé.
Apesar de estarem sempre discutindo, os dois viviam juntos, sempre conversando sobre qualquer assunto. Não sendo futebol, havia possibilidade de algum acordo. Lá pelas tantas, já chegando ao campo, o Édi resolveu cutucar a onça com vara curta, afirmando que os juízes protegiam o Flamengo. Meu velho estacou furioso e a batida, como sempre, foi de frente, não sobrando nem os parafusos do para-choques. O fim da discussão acabou drástico:
– Olha aqui Édi, nóis dois num cumbina nem no caminho do inferno!
Era sempre assim: um desfecho próprio para terminar uma conversa sem acordo. E o Édi conhecia bem o velho e nunca se distraía do momento de calar. Cedo ele aprendeu que meu velho fazia questão de arrematar a discussão, na certeza de que o último a falar sempre seria o vencedor. O Édi não se importava.
Pois bem, como o Édi, meu velho tinha outros dissidentes de suas ideias e de seus princípios. O fiscal da prefeitura era um deles.
Marilândia era distrito de Colatina, seu município. O prefeito enviara, então, para a vila, um fiscal baixote, de cabelos espessos e duros, nariz comprido e adunco, dentes grandes, físico razoável, tonalidade de voz enjoativa. Podia-se dizer que, realmente, era antipático e feio. Conversava com quem encontrasse e jamais acatava a opinião de quem quer que fosse. Um prato cheio para o meu velho. O encontro dos dois proporcionava sempre aquilo que alguém definiu como ignorância, ou seja, o encontro de uma força irresistível contra um obstáculo intransponível. E as ideias do fiscal divergiam sempre das do meu pai.
Acontece que, diferentemente do Édi, o fiscal passou a perseguir meu pai, cobrando alguns impostos indevidos e fazendo certos comentários que poderiam até ser reais, porém jamais ditos por ele.
Todos sabiam, na vila, das amabilidades que os dois andavam trocando nos bate-papos dos bares, mas nunca houve uma preocupação maior, já que pela idade, meu pai estava imune a qualquer agressão física. Era apenas um problema de filosofia, de pontos de vista, nada mais.
Nossa família tinha por hábito, todas as tardes após o jantar, reunir-se na frente de casa, num banco tosco de madeira, para falar do dia, dos problemas, das coisas engraçadas, dos planos… Ali se ouvia de tudo, falava-se de todos, criticava-se o mundo, solucionava-se até as crises internacionais.
O América F. C. era a principal vítima. Time da oposição, numa vila de mil habitantes, outra coisa não daria. Para ajudar na afinidade dos dois, o fiscal era americano doente e, meu velho, Marilandense na UTI.
Estávamos ali reunidos falando ao alcance das cordas vocais, quando despontou na esquina do Milanezzi – montado na sua velha e barulhenta bicicleta, o tal fiscal. Veio pedalando e passou bem rente a nós sem sequer virar a cabeça. Papai, que já o percebera desde a esquina, cutucou-me com o cotovelo, olhou dos lados – era mania para constatar que nenhum espião rondava por perto – e disse entre os dentes:
– Olha aqui, meu filho, se eu fosse uma PRAGA, montava neste fiscal e só apeava na entrada do cemitério.
– Que é isso, pai! – repreendi carinhosamente.

UM JOGUINHO ENTRE AMIGOS
Osvaldo, Gerson e Santos, Rubinho, Ávila e Juvenal, Paraguaio, Geninho, Otávio, Pirilo e Braguinha. Com esta escalação, o Botafogo alcançou um período glorioso de sua história. Nesse tempo eu era ainda criança e não tive, sequer, opção de livre escolha. O mano lIdebrando, botafoguense fanático e único irmão que permanecia constantemente em casa a meu lado, não teve muito trabalho em convencer-me a seguir o triste destino dele. Já naquela época, eu gostava muito de futebol e, como centroavante, sempre conseguia o golzinho do time. Isto valeu-me a alcunha de Pirilo, que muito me enchia de orgulho. Em contrapartida, estava para sempre fadado a ser um sofredor. E, como apaixonado – que chora pela mulher que vive com outros na orgia – ainda hoje perco noites de sono, até rezando para que o Botafogo não seja rebaixado. Para ser campeão? Ah, quem dera! Que Deus o tenha e o guarde de outra tão danosa coerção!
Nossa fazenda – se assim se pode chamar uma área de noventa hectares – distava da vila de Marilândia, cinco quilômetros. Logo tratei de formar o meu próprio time, adquirindo reforço da própria vila. Neno, Capirda e Tononi eram os três elementos que hoje representariam Toninho Cerezo, Batista e Zico, pois formavam um meio-campo quase perfeito. O salário deles era pago com picolés e pães. O dinheiro eu conseguia vendendo ovos e verduras que minha santa irmã Elda (Corujão) me dava. A mana respeitava os mais infantis sonhos das crianças.
Quando cresci, ingressei na UACEC, agremiação estudantil do Colégio Estadual Conde de Linhares de Colatina. O time era formado de jovens com menos de 20 anos e, mesmo assim, foi vice-campeão do Estado. Depois voltei ao Marilândia E.C., onde fui presidente, técnico e jogador durante um longo período.
A idade foi chegando e os anos já não permitiam o peito a peito com profissionais velozes. Não querendo parar definitivamente, fundei meu próprio time, o FREGONA F. C., formado única e exclusivamente de familiares, noivos bem-intencionados de minhas sobrinhas ou amigos bastante íntimos.
Como sempre, pernas-de-pau não faltavam, e na justificativa de que somente 11 podiam jogar, os considerados piores ficavam pacatamente vestidos, esperando que alguém cansasse para entrar no segundo tempo. Isso nunca acontecia, porque os que entravam só saiam se quebrassem as pernas.
No começo eram peladinhas inexpressivas, mas no fim já nos atrevíamos a enfrentar as melhores equipes não profissionais do Espírito Santo.
Pela pontualidade, comportamento e organização, éramos constantemente chamados para abrilhantar festejos. Foi quando, por ocasião da festa da padroeira da Barra do Triunfo, aceitamos o convite para jogar lá. A Barra do Triunfo era considerada perigosa e violenta, mas o oficio mal escrito, garantia: “será um joguinho entre amigos, não precisam se preocupar.” Acreditamos.
Churrasco, baile, muitas meninas…. Com entusiasmo qualificado preparamo-nos a semana inteira. Alugamos ônibus para a torcida, além dos oito automóveis particulares da comitiva. Afinal, a festa era de arromba.
A vila ficava situada entre a cidade de Linhares e a capital do Estado. Encravada entre montanhas, deixava transparecer vestígios Maias, tal a semelhança com as construções daquele povo. O que mais impressionava era o campo de futebol, lá no pico. A quem olhasse de longe, era impossível imaginar que lá em cima houvesse uma quadra de basquete, quanto mais, um campo de futebol.
De cara percebi que, entre as cinco mil pessoas supostamente presentes, duas mil e novecentas estavam embriagadas. Fogos pipocavam a todo instante, a banda incansável, qual braços de Moisés estendidos na travessia do Mar Vermelho, mantinha animados os presentes. As mocinhas desfilavam com o charme peculiar de 30 anos atrás: lacinhos e rosas vermelhas alfinetadas nos cabelos e vestidos de cores berrantes. Nada mais havia de diferente de uma autêntica festa do interior. Sinceramente, era bonito de se ver.
Quando entramos no gramado, percebi que uma muralha humana compacta fazia as divisórias do campo, com gente acotovelando-se freneticamente.
– Cadê o filho da puta do refi, que não começa este jogo? – berrou uma voz rouca de um canto qualquer, na mais inconfundível prova de que, naquele recanto antes pacato, o louco que se propusesse apitar receberia adjetivos desconhecidos até das rodinhas de bar.
Como sem juiz não haveria jogo e como não aparecesse qualquer voluntário, impusemos ao mano Dolmino (Cranuto), a árdua tarefa. Mal a bola saiu, nosso ponteiro levou uma rasteira que precisou ser substituído. O mano apitou. Um brutamonte entrou em campo e disse que futebol era pra homem e que aquilo não fora falta. O mano, ao ouvir aquilo, rodou o apito no dedo, deixando que um sibilo estridente apontasse a direção que o mesmo havia tomado. Os deixa-pra-lá; continue apitando; isso é assim mesmo… não funcionaram.
– Nesta não entro nem morto – foi taxativo o mano.
– Ainda bem – condescendi aliviado.
Trinta minutos depois, nova vítima era apresentada para o holocausto. Bermuda Lee, camisa branca com as pontas amarradas na altura da cintura, bigode austero, incisivos desgastados pelo cachimbo. Pela apresentação, ficava óbvio que seria preferível o juiz de Itália x Uruguai pelo Mundialito. Reuniu os jogadores e, não fossem os apupos da torcida, talvez o futebol seria trocado pela mais estúpida oratória de que se teve notícia até então.
– Óia aqui, não sei apitá, mais vô quebrá o gaio. Agora tem uma coisa, aqui quem manda sô eu. Boto pra fora o primeiro que quebrá a perna do ôtro…
Em cada frase, um calafrio perpassava-me a espinha, mas, enfim, fosse como Deus quisesse. Afinal, apesar dos pesares, só mesmo um louco idiota tomaria o apito naquelas circunstâncias. Não bastasse, “o jogo era entre amigos”.
Saiu a bola e não tardou para que sofrêssemos o primeiro gol no mais incrível impedimento. Pressionamos o juiz inutilmente:
– Bola no centro. Entrô, é gol.
– Mas, senhor juiz, o atacante estava impedido, totalmente sozinho na frente da zaga no momento do lançamento. Nossos zagueiros estavam quase no meio do campo.
– Lugar de béqui é na ária. Quem mandô saí?
Como ninguém realmente tivesse ordenado aos zagueiros para abandonarem a área, o juiz manteve sua decisão e a partida foi reiniciada, já debaixo de um clima tenso.
A multidão frenética pedia “mais um” e a gente ia se defendendo como podia do entusiasmo da moçada adversária. Por sorte, o barulho ensurdecedor impedia-nos de ouvir todos os “elogios”.
Neivaldo (Fincãozinho), meu sobrinho, recebe uma bola e tenta levantar a cabeça à cata de um companheiro. Um torcedor aplica-lhe violenta tesoura nos rins e o deixa estatelado. Reajo com um cascudo na nuca do agressor e, ato contínuo, transporto para o centro do gramado, no cogote, um brutamonte de 90 quilos. Só desgrudou quando eu, não suportando mais seus cocorotes e seu peso, desmunhequei. Dali mesmo ele voltou com três sobrinhos meus na garupa até o ponto em que havia montado em mim.
Adalho (Velhão), meu saudoso mano, pacato e apaziguador, penetrou na confusão e levantou os braços pedindo calma. Recebeu um direto no queixo que lhe valeu três delicados pontos. Arlindo (Quoque, Grapuá), nosso Golias moderno, contra-atacou distribuindo pancadas sem prévia verificação: feriu mais companheiros que adversários. Recebeu também um “ponta de queixo” que o deixou tomando sopa várias semanas.
Cláudio (Mênego Canarim), num ato suicida, penetrou na multidão para lavar a honra do velho pai. Conseguiu seu intento, mas teve seu nariz deslocado alguns centímetros.
Perdi o equilíbrio e fui ao solo. Qual filmador de Fórmula-1 em ponta de pista, vi “tetinhas” longínquas avolumarem-se instantaneamente e, pelo chulé percebido, notei que uma chuteira mal lavada havia ameaçado minha carteira de identidade: passou rente ao nariz e quis Deus que errasse o alvo, pois caso contrário Pitangui teria sérios problemas. Por sorte, um chute no traseiro equilibrou-me e pude me levantar, tomando posição de defesa. De pé pude ver, por instantes, a maior pancadaria de minha vida.
De repente, um estampido (de uma bombinha) seguido de um grito vulcânico:
– Parem, mataram um aqui!
Braços que à velocidade de 100 quilômetros horários partiam em direção a narizes distraídos, brecaram. Todos os olhares convergiram para um lugar comum: o morto. Caído, roxo, olhos virados, lá estava meu querido sobrinho Joelson (Cancão) estirado no gramado qual soldado vencido. O Delcir (Cirão), vendo aquilo, aproveitou a distração, e numa de Bruce Lee, levou a nocaute um abestalhado qualquer que também ficara estático perante o acontecimento. Houve indícios de que a luta se reiniciaria, mas um alto lá, cheio de autoridade, refreou os ânimos acirrados. Com um filete de sangue escorrendo pelo rosto, o Velhão gritou aos quatro ventos:
– Se meu filho morrer mesmo, mato até os cavalos desta merda!
E tal era a ira que transparecia nos seus olhos que ninguém ousou duvidar de suas ameaças. Para sorte dos equinos, o Joelson veio a si, e foi impossível convencê-lo que não havia sido atropelado por um caminhão.
Munhecas inchadas, torcicolos, narizes desposicionados, hematomas, estiramentos, lábios leporinos fabricados a muque, arranhões de primeiro grau, dentes estremecidos e um mísero empate, foi o saldo de nosso “joguinho entre amigos”.

UM QUILO DE SANGUE POR UM JABOTI
Meus sobrinhos não eram lá muito de trocar as paqueras de um domingo por qualquer outro esporte, mormente caçadas. Mas, de tanto ouvirem comentários sobre as emoções das selvas, um dia resolveram, dois deles, participar. Cláudio, nosso Meneghin e Jadilson, o Zeca, ambos filhos do mais perfeito e imbatível caçador de inhambus do Espírito Santo.
Saímos de madrugada. A caçada seria num capão de mata em que estavam insulados remanescentes dos jaós da mata, alguns tururins e chorões. Naquela época nem se pensava em ciência, quanto mais no valor científico de certos pássaros no equilíbrio ecológico dos ecossistemas. Por isso mesmo, o pensamento era abater quanto pudesse. Ecologia? Os caçadores nem sabiam do significado do palavrão.
A estrada era péssima. O sereno da madrugada prendia a poeira infernal da estrada no para-brisas, embaçando a visão e emporcalhando tudo. Mas valia a pena e lá fomos nós, numa euforia de fazer inveja à comemoração de um gol brasileiro no final de uma Copa do Mundo.
Chegamos ao local ainda antes de o sol nascer. Bem, eu não estaria aqui relatando este fato, se na hora de municiar minha espingarda não percebesse que as cápsulas haviam ficado em casa. Aquele rubor costumeiro que sempre sobe ao rosto, assomou-se como se fosse um elevador de trabalho, trazendo consigo todo ódio de uma frustração daquele calibre.
Meus sobrinhos fitaram-me entre indignação e pena e não se furtaram às duras observações de que estava ficando velho e caduco muito depressa. Para meu azar, meus sobrinhos estavam com espingardas de calibres diferentes. Tive de retornar para Linhares.
Todo cuidado e cautela da ida foram subtraídos na volta. Com a graça de Deus, não encontramos nenhum veículo nas curvas.
A distância foi desfeita rapidamente pela velocidade imprimida, e me dei por feliz quando tornei ao lugar da caçada com os cartuchos, e notei apenas a ausência, no carro, dos canos de escapamento.
Os jaós do litoral, assim conhecidos vulgarmente, estavam piando por todos os lados e isso encheu-nos de esperanças. Escolhemos um lugar propício aos nossos planos. Zeca empoleirou-se à direita, e o Nanico à esquerda, ficando eu, como piador, no meio. Antes mostrei, dezenas de vezes, minha posição aos incipientes, para que não me confundissem, no calor das emoções, com qualquer bicho distraído na linha de fogo. A passagem do Montovanelli ainda era bem viva em minhas recordações.
Iniciei o chamamento. O jaó mais próximo cessou seus piados e, minutos após, um disparo, outro disparo… outro disparo… e mais outro disparo. Para completar, o cartão de visitas do “renomado caçador”:
– Corre tio!  Corre que o desgraçado está indo embora.
A balbúrdia já estava feita e acorri célere. Nos quatro disparos a queima roupa, que ameaçaria, pelo carrego, ao mais resistente rinoceronte, apenas uma das asas da ave havia sido atingida. Depois do pega aqui, pega ali, cerca, pula etc., agarramos o fugitivo. Olhos acesos pela alegria, o Zeca apalpava as penas, assoprava-as para constatar a chumbada e por fim o pior:
– Está vendo só o que é um caçador, papudo?!
A pobre ave não respondeu à subjeção, mas não era necessário ser muito perspicaz para se supor o álibi de seus olhinhos se estivesse viva.
– Às posições – ordenei.
Jaó no alforje, posições retomadas. A seguir, o intervalo de praxe para que o silêncio retornasse à floresta. De minha choça eu podia ver, nitidamente, os dois “franco-atiradores” que, em posições ameaçadoras, minuto após minuto, apontavam a arma para alguma direção. De repente, qual perdigueiro treinado que localiza um perdigão, o Nanico se torna imóvel, deixando a cabeça numa posição faquireana. Fiquei apreensivo, pois o que havia de mosquitos disputando seu rosto não era menos digno de menção. A cada segundo, a parte descoberta de seu corpo ia ficando pontilhada de muriçocas. Ele se movia apenas para respirar. Mais um pouco e seu braço direito, com a velocidade de um ponteiro de relógio, foi deixando sua posição normal e tomando o rumo do gatilho. Concomitantemente todo seu corpo foi-se contorcendo na direção de seu olhar. Vi que a arma se elevava sinistramente em direção a algo que, pela tensão, bem podia ser um veado ou um mutum. Pontaria demorada, um tremendo disparo e um grito vulcânico:
– Corre! Corre que chumbei um macuco!
Bem, isso era demais até para mim. Arranquei as folhas da choça no peito, e fui em socorro. Zeca pula do poleiro, Nanico também. O transtorno foi geral.
– Devagar tio, pode ser que esteja machucado e pode voar.
– Onde está?
– Devagar, devagar … é ali, naquele buraco.
Firmei os olhos e vislumbrei algo marrom-acinzentado. Confesso que um calafrio vadeou por minha espinha. Depois agucei os ouvidos e não tive dúvidas que um ruído de tênue ranger de dentes chegava aos meus ouvidos.
– Diabos – pensei, que espécie de macuco é esta que possui dentes?
Estaria eu, prestes a celebrizar-me ante a descoberta de um descendente do Archaeopteryx, com sua origem reptiliana ainda acentuada?
Pé-ante-pé, aproximei-me. Dedo no gatilho; pontaria firme. Pelos flancos, mais duas espingardas apontavam para o mesmo local. Era difícil, tremendamente difícil para quem quer que estivesse naquele buraco, escapar. Umas folhas dependuradas de pindoba dificultavam minha visão, mas não o bastante para, depois de alguns passos reconhecer, no galináceo do Meneghin, o mais pacato, indefeso, abestalhado, lento e imprestável jaboti.
As reações alérgicas das picadas dos mosquitos no rosto do Meneghin atestavam o grande sacrifício e o alto preço daquele imperdoável equívoco.
– Aos poleiros! – sugeri.
Eles obedeceram, mas, com todo aquele barulho, até a mais idiota ameba ficaria assustada. Passamos horas e horas sem que nada acontecesse de anormal, fim das quais quase engoli o pio pelo susto de um disparo de pólvora comum.
Para variar, os gritos de praxe e o pulo do poleiro. Cláudio e eu mantivemos nossas posições, pois ainda não havíamos sido convocados a intervir. Disparo após disparo, mata adentro. O eco dos tiros foram paulatinamente diminuindo, até o ponto de apenas um som quase imperceptível chamar nossa atenção para o perigo daquele caçador de “meia-tigela” perder-se naquelas matas.
Saímos dos nossos esconderijos e aguçamos nossos ouvidos. A direção ficou confirmada, mas perdemos a calma quando os disparos cessaram, furtando-nos a localização. Prendemos até a respiração e o Nanico atestou ouvir, então, um grito sumido à esquerda do lugar em que nos encontrávamos.
– Sigamos para lá. Vamos marcando o caminho para evitar dissabores maiores – sugeri por ser o mais experiente.
Mas que “troço” estaria o Zeca perseguindo? Depois de uns cem metros de caminhada, já ficavam mais nítidos os chamados e pudemos ouvir claramente:
– Tio, ô, tio!?
– Que é? – respondi aflito.
– Traga cartuchos. Depressa.
– Nanico – disse eu – fiquei aqui para não nos desnortearmos. Irei sem fazer picada para ganhar tempo. O Zeca deve ter encontrado um leão que escapou da jaula de um circo qualquer.
Quando ofegante cheguei, percebi o Jadilson, totalmente molhado de suor, olhos fixos numa moita, mão direita espalmada para o meu lado com os dedos para cima, ordenando-me cautela.
É caros leitores, lá estava baleado, semimorto e ofegante, um mísero lagarto, ou teiú, como dizem os nordestinos. Sua cabeça enfiada entre paus podres, a cauda toda esfarrapada de chumbo, imóvel. Desengatilhei a arma e o apanhei. Era visível e notório a diferença de peso da traseira para a dianteira. Transportava, pelo menos, uns quatrocentos gramas de chumbo.
O mais engraçado é que, até hoje, não se pode falar em caçadas, que os dois se intrometem e exigem que eu comprove os dotes cinegéticos deles não explorados, mas latentes. Como dizia meu velho e saudoso pai: “Se isto os satisfaz, a mim não incomoda”.

 LOUCOS NO PEDAÇO
Dia festivo. Sol brilhando. Bem cedo, algazarra de crianças e mesmo de marmanjos mais afoitos. O toque de alvorada foi dado pelo Arlindo, que passou de casa em casa arremessando punhados de seixo sobre as folhas de amianto de nossos telhados, causando sustos de perturbar a própria insulina. Depois dos palavrões de praxe, todo mundo levantou e foi cuidar de sua função específica.
Arlindo foi à margem do Tocantins alugar o barco; Nini providenciou o carvão; Brando, a carne para o churrasco; Delcir e Vicente, as bebidas, e assim por diante. Às nove horas já estávamos todos nas margens do belo rio Tocantins, aguardando apenas a chegada do Nini que fora apanhar a namorada na casa da irmã. Lá, morava apenas uma sendeira, já que o marido, piloto de avião, caíra na selva amazônica e ninguém, até então, tivera versão concreta sobre seu paradeiro. Vez por outra chegavam notícias que havia sido visto no Planalto Central, ao sul do Maranhão, convivendo com os Rankokamekra-Canela; outras vezes, apareciam índios astutos que prometiam informações e até aceitavam determinada importância para trazê-lo vivo a Imperatriz. Contudo, isto nunca foi além de histórias pitorescas favoráveis à subsistência dos jornais da cidade.
Pois bem, o tempo foi passando e nada do Nini chegar com as duas, já que traria também a namorada do Vilmar, irmã de sua pequena. Impacientes, cada um protestando à sua maneira, aguardávamos a chegada do retardatário. Exatamente 90 minutos depois, percebemos que um Fiat branco despontava na rampa que levava à boate Fly-Back. Dentro dele, apenas o motorista, cuja cara refletia um grande transtorno.
Como a casa era habitada por apenas três mulheres, sendo duas delas íntimas namoradas, o Nini, no seu jeitão espalhafatoso, foi chegando, abrindo a porta à maneira da defesa vascaína, desfechando pontapés, escancarando-a ao máximo e gritando em seguida:
– Como é gatonas, estão prontas? Isto é hora de estar dormindo? Vou já apanhá-las no colo…
Tentou dar três passos em direção ao quarto, quando um som rouco, pouco amistoso, imprevisível e inesperado interceptou as intenções dele:
– Minhas filhas, quem é este moleque que está “latindo” aí na sala?
Recuar seria humilhante. Continuar, arriscado. Parar ali, um enigma. Enquanto decidia, teve o escasso tempo de ouvir tudo aquilo de pior que um homem pode escutar em espaço de tempo exíguo, e mais, na presença da namorada.
É que o pai das meninas, fazendeiro de Montes-Altos, havia chegado tarde da noite. Passara a madrugada com tremenda enxaqueca: “ideal” para a intimidade exagerada de quem quer que fosse.
Depois da história, zarpamos, com o Vilmar olhando seu mano desastrado com muita indignação. Duas horas depois aportamos numa pequena enseada, circundada por praia limpa e convidativa. Na margem, mangueiras amarelinhas de frutos maduros. Todos queriam ser o primeiro a chegar. O lugar era pitoresco, ameno, qualquer coisa paradisíaca.
O Venturim, nosso pedreiro, era um rapaz muito irrequieto e brincalhão e também muito ousado. Querendo talvez impressionar as garotas, escolheu uma mangueira das mais altas e começou a escalá-la com a intenção clara de tentar o último dos galhos.
A espécie era conhecida por manga-mamão e, realmente, não desmerecia o nome, pois pesava aproximadamente um quilo. Delcir, o inverso do Venturim, calmo e pacato, jazia nas proximidades, já com os bigodes amarelecidos. No momento, chupava uma carambola que, segundo ele, era uma nova espécie de limão ainda não catalogado.
Nestas alturas, o Venturim, no último dos galhos, colhe uma enorme manga e joga para o Delcir, só gritando o “lá vai”, quando esta já havia ultrapassado a metade do caminho. Ainda meio preguiçoso, Delcir levantou, ou melhor, tentou levantar a cabeça e, como não poderia ser diferente, foi a nocaute.
A manga estatelou-se contra sua cabeça. Ele desmaiou. Muita água fria no rosto e, aos poucos, ele voltou ao normal. Bem, normal aqui indica apenas a ideia de sentidos, pois o Cirão despertou como deve despertar um urso polar atrapalhado em sua hibernação. Amassou meio hectare de capim angola, desafiando o Venturim e seus “doídos”. Como ninguém se apresentasse, sentou-se à sombra da mangueira e quietou-se.
Tendo sido normalizado o primeiro impasse, cada um foi tomando seu caniço e escolhendo um poço qualquer. Afinal, os peixes eram quase uma questão de honra, pois o encarregado da carne para o churrasco havia falhado. Vilmar, com seu molinete sofisticado, não quis sequer assistência, o mesmo acontecendo com o Nini, que logo desapareceu. E assim, cada um foi tomando o destino que mais lhe parecia favorável. Arlindo, o velho e astuto Grapuá, ficou na mira de todos, num remanso cuja margem era íngreme e de pedras. Estava iniciada a pescaria.
As mulheres se posicionaram como torcedoras fanáticas de um jogo, esperando cada uma por seu herói. Muitas horas depois, os primeiros estômagos menos pacientes começaram os reclames, sem que nenhum pescador se apresentasse.
Percebendo o fracasso, Delcir descobriu umas latas de sardinhas que alguém menos otimista levou e, sorrateiramente, fez uma farofa muito disputada. Foi nessa altura que um grito de guerra cortou o silêncio, fazendo com que todas as atenções se voltassem para o remanso. Linha tensa, olhos fixos, braços rijos, Arlindo tentava segurar um peixe que parecia grande. Marolas fortes vinham à tona, aumentando ainda mais a expectativa em torno do que apareceria.
Qual general vitorioso, o Grapuá firmava a linha, diante dos aplausos da plateia faminta. Paulatinamente o peixe foi cansando e o velho pescador recolhendo a linha. Aí aconteceu o imprevisto, consequência da falta de calma do Grapuá. Quando viu o peixe nas margens, temendo qualquer reação do mesmo, arremessou-o para o barranco em declive. Depois, percebendo que ao debater-se, o peixe voltaria para as águas, atirou-se sobre o mesmo. Não podia desperdiçar os “ipiurras” que ecoavam em toda extensão da margem. Não se deu conta de que se tratava de um mangangá, assim chamado pelos caboclos por causa do terrível, grande e venenoso ferrão.
Ao abafá-lo, o ferrão entrou na polpa do polegar e apresentou a ponta aguçada do outro lado. Não havia mais medo de perdê-lo. Sem notar a desgraça, a turma continuava a gritaria, só cessada alguns segundos depois quando todos notaram a fisionomia lívida do pescador. O pior é que o ferrão é daquele tipo espinho de ouriço-cacheiro: só entra e, se tiver de sair, só o faz rasgando a carne. Percebendo tudo, matamos o peixe, enquanto o Brando afiava o canivete para a cirurgia improvisada. Cortamos o ferrão e retiramo-lo por cima, enquanto o Grapuá, com mais de dois metros de altura, cento e tantos quilos, embrutecido pela árdua profissão de madeireiro, desmaiava.
Nini e Vilmar, os mais cotados, chegaram também com um mísero bagre. Diante de tais fracassos, incumbimos o pessoal a se virar e não foi difícil para o primo Orlando encontrar uma trilha que iria dar na casa de um ribeirinho pescador. Compramos quinze quilos de pacu-manteiga. Cegos de fome, almoçamos, às 16h.
A volta não foi menos trágica. O barco era do tipo dois andares, sendo o terraço bastante resistente para suportar o peso de toda a tripulação. Começou a confusão. Alguém de baixo percebeu uma perna comprida e cabeluda dependurada ao bel prazer. Um olhar para o lado e lá estava um litro de óleo queimado. A resposta foi uma bagaçada violenta que passou por várias cabeças indo estatelar-se contra uma das paredes do barco.
Alguém encheu um litro d’água e, sem olhar, arremessou sobre o barco, acertando em cheio o rosto de minha mulher que, não desmerecendo a alcunha de “Ventania”, quase levou a embarcação ao naufrágio, ameaçando até mesmo nosso “Bate-Estacas” Vilmar.
Tendo a maioria considerado isto o melhor passatempo da viagem, a batalha continuou e, desta feita, mais acirrada. Quem enfiasse a cabeça para fora para localizar qualquer adversário, levava uma remada no crânio, daquela dos áureos tempos do “Struco Lodai”; quem baixasse para olhar para dentro, corria o risco de perder a parte apresentada. Cada um procurava um lugar mais seguro, menos vulnerável para defender-se de seus inimigos comuns.
E assim, duas horas depois, quando aportamos, dois bandos distintos de verdadeiros inimigos desceram, tendo cada qual a promessa de descontar no próximo convescote. Era mesmo assim!

UMA ESTRÉIA DESASTRADA
Meu cunhado Arlindo mudara-se para Pinheiros, uma vila criada por pioneiros madeireiros numa área de mata atlântica do norte do Espírito Santo. No começo as coisas andaram bem e toda produção era consumida por uma grande indústria, (Irmãos Força Ltda.) que posteriormente faliria, graças à total e ingênua incapacidade de organização e metodologia de trabalho de seus proprietários.
Com a prosperidade inicial, meu cunhado perdeu-se em meio às facilidades das coisas. Colocou motoristas nos caminhões, juntou-se a pessoas inescrupulosas e deixou que a própria firma lhe entregasse os saldos. O resultado não podia ser outro, que não o óbvio. “Quem confia demais, cria ladrão”, lembrava sempre meu velho pai, afirmando, inclusive, que estava na Bíblia.
Com as coisas andando mal, os filhos maiores de meu cunhado ficaram desorientados, sem dinheiro e sem profissão. Nos estudos, pouco progresso e nenhum entusiasmo. Fazia-se urgente uma tomada de posição.
Foi aí que tivemos uma ideia reconciliadora: a família se mudaria para Linhares, os meninos trabalhariam com a gente nos serviços de madeira e estudariam à noite. Assim se pensou, assim foi feito. Entusiasmados e dispostos, marcaram a estreia.
Havíamos adquirido do senhor Demétrius Négris, uma área de 50 alqueires em mata virgem, no lugar denominado 41, distante de Linhares cento e quinze quilômetros. 41 era a quilometragem a partir da cidade de São Mateus.
Mal penetramos na mata através de uma vicinal, a primeira desagradável surpresa: uma árvore caída e atravessada no meio da estrada. Apesar da fome e da sede, a euforia da estreia era total. Saltamos do estrado e logo o Brando começou a golpear o tronco com seu afiadíssimo machado.
Cirão, o primogênito de meu cunhado Grapuá, interferiu:
– Dá cá, tio, sou mais forte e novo que o senhor!
O mano, como eu, não era chegado ao trabalho e, incontinenti, passou-lhe a “arma”. Uma cuspidinha na mão, um arremesso de lançador de dardos e um som bem diferente de um lenhador que golpeia um tronco. O machado ricocheteou, passou rente ao nariz do Cranuto – que caiu psiquicamente ferido – resvalou ante dezenas de olhos curiosos e foi encerrar sua trajetória ameaçadora no joelho necrosado do Piassarol, meu irmão que lhe passara o machado. Às 16h, um cortejo espalhafatoso deu entrada no Hospital Menino Jesus, do mano Jayr, encerrando, assim, a estreia dos meus sobrinhos.
Mas a vida continuava, e sem criatividade seria Deus se fizesse com que as desditas parassem ali. Os perigos que todo clã passou neste arriscado trabalho daria um livro com centenas de páginas, todas podendo ser consideradas milagres.
Lembro – ainda bem que lembro – de um ano negro, em que apesar de não termos o Delfin no planejamento, vivíamos uma crise idêntica como se o tivéssemos. A batalha era árdua e lutávamos desesperadamente pela sobrevivência.
Trabalhávamos três em cada caminhão, fazendo toda economia possível para que sobrasse alguma coisa. Viajávamos para a Bahia constantemente e, numa dessas viagens, devido às chuvas, vimo-nos na iminência de retornar com os caminhões vazios. Descobrimos, então, uns bacumixás estocados numa serraria no Jegue-Assado, vila de nome peculiar como Caixão-Sem-Forro, Farinha-Lavada, Espera-Tapas e tantas outras da querida Bahia.
Nos caminhões, somente ferramentas compatíveis com a força de meus sobrinhos brutamontes. A alavanca, por exemplo, tinha o nome de “teresona” e pesava 15 quilos. Era usada para toros enguiçados e pesados que caíssem desarrumados sobre o estrado.
Pois bem, foi exatamente nesta hora, no ajuste de um toro, com o Nini pulando para incidir maior força, que resolvi passar por baixo para apanhar a trena na boleia. O bico da alavanca escapuliu e a teresona, numa dinâmica de 300 quilos, encontrou minha cabeça vadia em sua trajetória mortal. Vi o sol eclipsar-se, fagulhas riscarem a escuridão de minha visão e um som sumido que dizia: “Meu Deus, matei o titio”!
Não houve sequer fratura craniana, mas “galo” daqueles, nem Masashi Kubota, mais famoso criador japonês de onagadori, conseguira até então. Hoje, ao escrever tanta bobagem, resta-me o álibi para isso, pois não acredito que cérebro algum funcione direito depois de uma alavancada daquela.
Nosso sistema, no começo, era de causar inveja a qualquer terciário, tal a primitividade. Contudo, não dava para alterar o equilíbrio ecológico. Os toros eram ascendidos por catracas manuais e o catraqueiro tinha, às vezes, que “estufar a hemorroida” para que a tora subisse. As estradas eram na base do enxadão e do machado, do facão e da foice. O que ficava de estrepes não era fácil! Num desses lugares, um toro pesadíssimo de bicuíba. Todo mundo fazendo força e não conseguindo elevá-lo, sequer, meio metro. Chega o Vicente, sempre eufórico:
– Deixem comigo, seus moleirões! Dá cá o cabo de força pra macho.
Ajeitou a catraca, aprumou-se todo, saltou a quase um metro de altura… e de lá desceu com maior velocidade. Alguma coisa não funcionou e o pobre cunhado estatelou-se sobre um estrepe, desvirginando-se, ou se preferem, sendo estuprado impiedosamente. Ao elevá-lo, percebemos que vinte e três centímetros bem medidos se responsabilizavam pelo atentado.
Doutor Joel Coelho, médico piauiense radicado em Linhares e inesquecível médico da família, passou horas retirando do ânus e adjacências, farrapos da cueca e da calça jeans que ele estava usando, cavacos de madeira e outros objetos não identificados. Durante 15 dias, duas vezes ao dia, nós e a vizinhança éramos obrigados a nos cientificar de que o Vicente estava defecando. Depois, com o passar do tempo, os urros foram diminuindo até desaparecerem completamente. Estava curado.

DOIS MALANDROS EM APUROS
O mano lldebrando, nosso Piassarol, sempre foi entusiasmado por fazendas e criação de gado. Em 1976, entrei numa licitação do INCRA e depois dos trâmites legais, consegui um documento que me dava o direito de, pelo menos, ser mais um entre os tantos idiotas sofredores que pretendem terras legalizadas na Amazônia. É que a “Terra Prometida”, que o governo me vendera livre e desimpedida, tinha em seu interior, devidamente alojadas, “apenas” catorze famílias que somavam 64 pessoas. Para tomar posse tive de indenizar, como moço bonzinho, uma por uma das pobres famílias que lá se encontravam e que, de fato, mereciam a terra. Pois bem, os anos foram passando e a fazenda tomando vulto, sendo, enfim, uma área produtiva e legalizada.
Num belo dia de verão, exatamente em julho de 1982, o mano resolveu ir até lá em mais uma visita rotineira. Ele, esposa, três filhos, minha mãe e eu compúnhamos a comitiva. Antes da partida, a euforia foi total: galinha frita, arroz, alimentos para ninguém botar defeito, compras mil para o gerente, presentinhos…. Na carroceria, todo bagulho e mais quatro pessoas. Um verdadeiro entulho.
Feiches de molas emborcados, lá fomos nós estrada afora, rumo ao Cajazeiras. Eram 300 quilômetros de rodovias péssimas e empoeiradas que haveríamos de percorrer sem reclamar, ou pelo menos, sem abrir a boca, pois a puaca sufocava.
O sol brilhava como nunca, gerando calor e fazendo-nos transudar aos borbotões. O suor que descia transportava um filete imundo pelo corpo, à maneira dos rios bateados de Minas Gerais. E lá fomos nós, paulatinamente, quilômetro após quilômetro, diminuindo a distância. Já estava até me acostumando com tudo aquilo, quando um som rouco e pouco familiar, mesclado ao grito estridente do Márcio (Guruçá), sobressaltou a todos:
– Para! Para! A roda está caindo.
No breque, a poeira retardatária entrou furiosa pelas nossas narinas e olhos, sufocando e enceguecendo. Eram 13h, com o sol quase a pino, mais violento e causticante do que em qualquer outro dia de verão.
Verificamos: o pino de centro quebrara; as molas debandaram e a roda desalinhou-se, encostando ao para-lama.
– E agora? – perguntei angustiado para o mano?
– É, rapaz! E agora?
Entreolhamo-nos demoradamente, pois não havíamos nascido para tais situações. Mesmo assim, querendo ou não, alguém teria de tomar a iniciativa. O mano foi o primeiro a esgueirar-se sob o carro para as devidas verificações do estrago. Empoeirou-se ainda mais, bufou como cavalo surrado, enrugou a pele da testa (isto sempre lhe fora proverbial), e deu o veredicto em tom de descontrole emocional:
– Estamos fudidos!
Era uma ferragem louca, toda desalinhada, que desafiaria até mesmo uma boa oficina. Que dizer de nós, em plena transamazônica, sem água, sem ferramentas e com minha mãe já idosa e várias crianças? As mulheres exigiam – notava-se nos olhares – nossa categoria de homens, e nós, talvez não tão fanáticos, lamentamos o dia em que fomos gerados com um apêndice entre as pernas.
– Bem, vamos às ferramentas – disse eu.
– Que ferramentas? – retrucou o mano. Aqui só se encontra um macaco emperrado e duas chaves-de-boca.
Os caminhões de carga passavam rangendo as ferragens e cobrindo-nos de poeira. Por mais que acenássemos, poucos paravam, e quando o faziam, sempre vinham com evasivas esfarrapadas. E tanto isso aconteceu, que acabamos metendo as mãos naquilo tudo. Foram momentos cruciais!
As mãos desacostumadas logo foram descascando ante a prepotência dos enferrujados parafusos, que faziam de tudo, menos desenroscar. Não foram precisos mais que trinta minutos para que qualquer masoquista se apiedasse de nós. E tal foi o amontoado de paus e as pancadas de marretas, que acabamos por desencostar a roda do para-lamas. Foi quando um caminhoneiro parou e disse que havia uma borracharia não muito distante dali. Devagarinho fomos até lá.
O ânimo recobrou-se ao avistar uma tapera coberta com folhas de carnaúba, tendo em frente um velho pneu. Só podia ser ali. E era. Um caboclo anêmico e desnutrido mexia num litro cheio de velhos parafusos. Foi o bastante para que eu visse um que seria o futuro pino-de-centro: a nossa salvação.
E assim, depois de quatro horas, vimos nosso serviço levado a bom termo. Estávamos simplesmente nojentos, mas nem para lavar as mãos havia água. Fomos em frente, mais e mais, até atingirmos a vicinal. Se a estrada já tinha sido péssima até aí, agora perdia a chance de qualquer definição pejorativa.
Solavancos, freadas, pulos, guinadas, vaivéns, derrapagens e tudo que um carro faz em veredas abandonadas, marcavam cada quilômetro que percorríamos. De repente, um buraco (quase uma cratera), uma pancada irreverente e, novamente, aquele grito estridente do Guruçá:
– Pare! Pare! O tanque estourou.
Pulei da carroceria e olhei por baixo. O rombo fora grande. Em poucos minutos estaríamos sem uma gota de diesel.
– Uma panela, pelo amor de Deus.
– Onde está?
– Sei lá! Por aí, dentro de algum saco ou caixa.
E naquele corre-corre, reviramos tudo, enfiando debaixo o que achávamos e que fosse capaz de recolher o precioso líquido. O buraco era enorme, e agora estávamos em situação ainda pior, pois somente a densa floresta assistia à nossa angústia.
E foi tal a confusão, que quando enchemos a rachadura do tanque com quase uma barra de sabão, já não havia na camioneta uma única coisa no lugar. A noite vinha chegando; o cansaço era indizível; a fome, negra. Em cada olhar um desalento. Mas, mesmo assim, fomos tocando, e a trancos e barrancos chegamos à sede, moídos, mas certos de que Deus havia passado dois singulares malandros a uma provação digna de Sua sabedoria.

O JOGO TIRA-TEIMAS
Quis o destino que uma união entre duas famílias se fizesse, e da maneira mais afim possível. Nossos avós, no passado, resolveram pôr fim ao curto espaço de terra da península itálica, tomando a dura resolução de se mudarem para o Brasil. Lá, eram colonos pobres. O Brasil precisava de mão de obra e facilitava a emigração italiana.  Saíram de lá pobres e chegaram aqui, miseráveis. O jeito seria buscar terras devolutas. Foram descarregados em Benevente, no Espírito Santo e buscaram refúgio, primeiro, nas montanhas frias do sul do Estado. Muitos ainda hoje guardam riquíssimas terras em Venda Nova do Imigrante, Castelo, Cachoeiro do Itapemirim, Benevente, Ribeirão do Cristo, Santa Isabel e regiões adjacentes. Outros, porém, partiram para o norte, após Colatina, no tempo em que só se atravessava o rio Doce sobre uma ponte precária de tábuas e pranchões serrados a grupião.
Enfrentaram selvas, maleita, cobras, chuvas intermitentes e toda sorte de infortúnios para conseguirem a desejada terra. Eram várias famílias. Duas delas, por uma questão de coincidência, passaram a ser vizinhas nos rincões do Espírito Santo, onde hoje se delimita a cidade de Marilândia.
Com o tempo, o mais velho dos Falquetos, Arlindo, nosso Grapuá, desposou minha irmã Elda (Corujão), tendo cinco filhos machos, acrescidos de um filho adotivo, o Carlinhos. Ficava, pois, ali, um respeitável contingente de brutamontes, assim apelidados: Delcir (Barba, Compromissis, Veim, Cirão, Tunicará, Natim Natão…), Nini (Vira-Brequim, Simbim, Emenda-Toco…), Vilmar (Bate Estacas, Cachorrão do Aviso, Zé Colmeia, Carequinha…), Fernando (Mineirinho, Queijinho, Quebra Cajá…), Valber (Falciparum, Cipó, Topojijo…), Carlinhos (Moscão, Bananão) e Arlindo (Grapuá, Tu Quoque, Corindiba…).
Logo depois, o mano Dolmino (Cranuto, Bisnuto, Fincão, Tetra-Ultra), toma como mulher, a irmã do Arlindo, Aninha, também conhecida por Zoraia e Brontolona. Daí nasceram: Neivaldo (Arcide Gripa), Rogério (João Grandão), Marly (Madame Robson) e Méris (Garcinha).
Quando nossos pais já se conformavam com o empate, aparece o Vicente, irmão mais novo do Arlindo (Adalvirul, Pantalão, Navio Lotado, Galo Comum…) e desposa nossa caçula Leide (Tonina Mata…), originando Daniela (Cacique Juruna, Tirão…) e Juliano (Nervosinho, Sucuriju…).
Fora disso, o mano lldebrando (Piassarol, Tudo Eu, Zé Colado), casa-se com Diuza, originando Márcio (Galego, Ferrugem), Anderson (Sujão, Poco) e Carla (Espalha Brasas).
Depois, caso-me com Corina (Ventania) e daí nasce Kizy, que com apenas seis meses, já recebia seu quinhão: (Zacarias).
Podem deixar. Eu…, eu era, no começo, o Bicho Pegado, o Tio, depois Veim e mais adiante, Vovô!
Este grupo vivia unido em sociedade, todos batalhando por um fim comum: a sobrevivência.
Separadamente tínhamos o mano Adalho (Velhão), que desposou Dália (Nanica, Nariz-de-cortar-mamão), donde apareceram os rebentos: Jadilson (Zeca, Aríete…), Joelson (Cancão, Setra, Freiada, AIemão), Cláudio (Nanico, Cupinzeiro, Hippie, Mesenga, Encrencado, Mênego Canarim, Meneghin, Goninha), Vânia (Beca) e Regina (Rita Pavone, Piçarrinha…).
Finalmente, o mano Jayr, formado em Medicina, especializado em pediatria (Anjoleto, Dr. de La Sampigola, Corvo…), que se casou com Liège, originando quatro filhos: Júnior, Fabrício, Lessando e Fábio. Estes se livraram de nomes adjuntos porque viveram separados da gente. Não participaram da vida louca que levávamos. Logo partiram para estudar nos grandes centros. Os três primeiros formaram-se em medicina e o quarto, em advocacia. Não eram afeitos a esportes radicais. Mais tarde, por não conseguirem naturalmente uma filha, Liège e Jayr adotaram a Suéllen, linda e inteligente criança.
Deste aglomerado de italianos sedentos de esportes brutos, apareceu a disputa pela liderança familiar, que culminou com uma data marcada para o tira-teima. No futebol, os Fregonas levavam nítida vantagem, não se podendo afirmar o mesmo na bola militar, jogada com água até os joelhos, onde a forma física e a resistência predominavam.
Depois de muitos debates e reuniões, acabamos confirmando este esporte para resolver quem eram os melhores: se os Fregonas ou os Falquetos. Os Fregonas formaram com: Piassarol, Cranuto, Vovô, Velhão, Zeca, Cancão, Meneghin e Arcide Gripa, enquanto os Falquettos alinharam com Grapuá, Bananão, Barba, Simbim, Cipó, Mineirinho, Adalvirul e Bate-Estacas.
O juiz – peça mais importante da disputa – foi escolhido entre os 60 mil habitantes da cidade de Linhares. Era um crioulo de um metro e noventa e oito de altura, vinte e um anos de idade e noventa e três quilos. Profissão: profissional em dirigir máquinas pesadas. Era de pouca conversa o que, aliás, não incomodava muito, pois ninguém desejaria procurar a razão diante daquela montanha estúpida de músculos. Ouviu calado as regras “duelo”, sem nenhuma observação ou pergunta.
Para o jogo, foi escolhida a Lagoa Juparanã, que distava do centro, seis quilômetros, e se firmava como o principal ponto turístico da região.
Desde o sábado não víamos nossos adversários, não obstante tivéssemos espiões rondando. Haviam anunciado uma surpresa para os Fregonas, e isso nos deixava aflitos. Passamos a manhã do domingo tentando descobrir o que era, e chegou a hora sem que percebêssemos nada de anormal.
Os atletas estavam nervosos… afinal, o nome das famílias estava em jogo e nos conhecíamos bem para submeter-nos a uma derrota naquelas circunstâncias. Somente alguns minutos antes da hora marcada, a C-10 dos brutamontes encostou, descarregando os grandalhões nas areias da praia. Para impressionar, partiram em disparada, jogando areia para trás, num sinal inconfundível de supremacia e favoritismo. Tentamos esconder nosso temor, mas era visível nossa desconfiança ante um fracasso irremediável. Até os ipi-ipi urras deram para nos atemorizar, pulando n’água eufóricos, arremessando a bola oval com violência indescritível.
– Deixe-os cansar – falei, tentando reanimar o Meneghin, que deve ter se sentido um Davi sem funda naquela altura do campeonato.
O juiz avisou para que nos alinhássemos e incontinenti deu a saída. Barba lançou Grapuá que, como cartão de visitas, deixou meio mundo submerso, indo esbarrar na muralha humana que dispusemos em frente à trave. O bolo foi formado, a bola desapareceu e com ela alguns atletas. Inopinadamente, um grito se fez ouvir, e num esguicho de cetáceo em dificuldades, um jato de água subiu aos ares.
O juiz interrompe a partida e examina o tornozelo do Grapuá sangrando. Não restavam dúvidas: ele fora agredido a dentadas. Piassarol responsabilizou-se pelo atentado, estando ainda com os olhos vermelhos e esbugalhados:
– Se não fizesse isso ele me mataria afogado!
Torna a sair a bola. Simbim escapa e salto para agarrar-lhe, percebendo, então, a surpresa que apregoavam: haviam passado óleo vegetal em todo o corpo e era impossível segurá-los. Por sorte logo ficamos em condições análogas, pois no agarra-agarra, o óleo foi se transferindo também para nós.
Já estava três a um para eles e nós, completamente exaustos. Restavam ainda dez minutos de tempo. Até hoje não sei explicar, mas o certo é que conseguimos empatar em cinco minutos. Era preciso interromper o jogo ali. Eu procurava um pretexto qualquer para encrencar, quando Meneghin, nestas alturas já apelidado de Goninha, arremessa uma bola despretensial para a trave do inimigo. Ela bate no joelho do Bate-Estacas e cai dentro do gol. Numa fração de segundos, fizemos desaparecer até a trave, tal a fúria da investida. A confusão foi geral. De nada valeu a intervenção do monstro que portava o apito. Aquela oportunidade, não digo de vencer, mas de evitar a derrota iminente, não deixaríamos escapar nem mortos. Chamei logo minha equipe e disse:
– Queiram ou não, tenha entrado ou não, foi gol e só reiniciaremos a partida com a validade do mesmo e com outro detalhe: que o jogo seja encerrado em dois minutos.
– De jeito nenhum!  – vociferou em coro, a Falquetada. Faltam seis minutos.
– Nem morto – retrucou o Cancão, devidamente escolado.
Depois de quase uma hora de acirrada discussão, o jogo foi encerrado definitivamente, por falta de adversário. O que se ouviu de ladrão, galinhas, covardes e adjetivos congêneres, nem um bandido algemado já ouviu.
A Falquetada, vagarosamente, foi-se encaminhando para a C-10, enquanto nós fomos desentulhando a foguetada que havíamos escondido no porta-malas com pouquíssima pretensão de usá-la.
O percurso de seis quilômetros foi todo usado com uma algazarra tamanha, que o pessoal acorria às janelas para saber do que se tratava. Se a Falquetada não perdeu o céu naquele dia, nós pelo menos nos infligimos duras penas a descontar no purgatório.
Na reunião da noite, foi pior ainda. Meu pai sempre dizia, que se futebol fosse jogado com a língua, Pelé, Maradona, Puskas, Euzébio, Zico, Garrincha e outros grandes ficariam fatalmente como nossos reservas. Foi quando o Cláudio, já consagrado como Goninha, encontrando uma vaga no meio do vozerio, disse:
– Vovô, quer ouvir como foi o jogo? – ele havia preparado uma fita narrando as peripécias dos Fregonas na forjada vitória.
– Já ouvi tantas besteiras de vocês – disse meu velho pai – que uma a mais não me fará diferença! Bota esta merda pra tocar.
Logo depois a fita era espatifada debaixo dos sapatos dos Falquetos, que não tiveram mais calma para suportar tanta gozação. Até hoje, o jogo é relembrado com debates veementes e que chegam a desmanchar reuniões familiares.

PUTAQUEPARIU: QUE DIA!
Quando mudamos do Espírito Santo para Imperatriz, no Maranhão, pouco conhecíamos desse estado. Trabalhamos de junho a dezembro sem ver uma nuvem no céu. Somente um pouco antes do Natal, nuvens vanguardeiras mancharam o horizonte azul. Vieram em pompas, ovacionadas por trovões e muita chuva. Um mês depois, nem os tratores conseguiam mais trabalhar.
Sem o que fazer, resolvi mudar o programa de levantar com o dia clareando. Antes de me deitar, decidi: amanhã irei dormir até mais tarde. Mal sabia o que me aguardava!
Foi numa quarta-feira. Kizy, minha filha acordou-me com uma cabeçada no nariz. Pancada de gente que se ama é sempre casual!
Logo depois, minha mulher acordou e, embora não tivesse exatamente nada a fazer, retiniu tantas panelas que imaginei um bando de adolescentes criando mais uma banda de forró. Levantei-me irritado.
Uma garoa caía enjoativa. Alonguei-me, tomei o café e subi para a casa do meu cunhado Arlindo: verdadeira toca de brutamontes. Descontaria meu mau humor na sobrinhada.
Casa fechada; roncos em cada canto. Apenas minha irmã, que também não é de muito dormir, acabara de se levantar. Entrei bagunçando, chutando a porta, falando alto, desafiando e fazendo todo o mais que se define como autêntica falta de respeito ao sono alheio. Ouvi resmungos, barulho característico de quem levanta e…. novo silêncio.
Certamente estavam tentando dormir e isto eu não permitiria. Aliás, tinha ido até lá só para ver o circo pegar fogo, pois, entre as coisas que até hoje meus sobrinhos detestam, o despertar forçado continua em primeiro lugar.
– Como é, aqui não tem homem não? Vamos levantar, turma de malandros!
E não fosse o acordo maquiavélico dos meus sobrinhos, por certo eu iria falar muito mais. À guisa de esclarecimento, devo dizer que meus sobrinhos, sem exceção alguma, são verdadeiros Hércules e se não bastasse, possuíam um pai não menos forte e bem mais apenso a molecagens do que qualquer outro moleque deste mundo.
Eu até já pensava em desistir, quando as portas abriram-se como pano de teatro maquiavélico. Qual cavalos de jóquei, todos partiram céleres para um lugar comum: eu. Não tive, sequer, tempo de esboçar o mínimo plano de defesa ou fuga: fui literalmente soterrado pelos brutamontes que, para minha desgraça, estavam com as barbas há dois dias sem rapar: a fase mais espinhenta. Quando um deles gritou: “vamos à primeira”, percebi que o fim seria longo e penoso.
Dois nas pernas, dois nos braços, um pelo meio e outro com litros de água fria, quase congelada, e o olhar penetrante do Marquês de Sade. O da água gelada suspendeu minha cueca e foi derramando pelo rego abaixo. Senti encurtar-me à maneira de um porco pelado com água fervente, quando naquela manhã fria, a água congelada escorreu por lugares escusos e quentinhos. Tentei usar os únicos argumentos de que dispunha – a hierarquia e a ameaça – mas estavam enceguecidos pelo sadismo. E a mesma voz gritou: “à segunda”! O do litro correu para algum lugar e voltou com cordas e lá fui eu, de pés e mãos atados, para a chuva, no meio da lama.
– Covardes, aproveitadores da fraqueza alheia – dizia eu, enquanto pelas portas e janelas, largos sorrisos atestavam o sentimento calejado daquelas montanhas impiedosas de músculos.
Lavaram os rostos, tomaram café. Meus cabelos cheios de Grecin 2000 deixavam na água que descia à boca, um sabor horrível: preço de minha vaidade. Já estava achando que aquilo era demais, quando novamente aquela voz conhecida cortou o tilintar das goteiras: “à terceira”! Quando chegaram, já estendi as mãos, pronto para ser desamarrado, pois feito isto e não sendo o diabo um traidor, por certo venceria aqueles brutamontes. Mas o diabo não interferiu e aí veio o que podia ser evitado – a pior coisa que poderia imaginar – fungadas no cogote, barbinha com fios esparsos e afiados no pescoço, mastigadas barulhentas no ouvido…. Por sorte, não vi o autor de tudo aquilo separadamente, e matar cinco era demais.
A cada minuto eu consultava o relógio, pois somente na pelada da tarde poderia vencê-los e descontar um pouco. Pensava em atacá-los de imediato numa dividida e dar o troco digno do vexame passado pela manhã. Enfim, a hora chegou.
Firmei a conga nos pés, massageei as canelas com óleo vegetal, aqueci-me ao ponto e parti para a arena. No par ou ímpar, saí perdendo, mas isto não significava nada, pois minha intenção era bem adversa à da vitória. Convencionalmente, não chamei para o meu time, nenhum dos cinco.
Rolaram-me a primeira bola e na velocidade que ia, tentei driblar o Fernando. Pisei na bola, rodopiei, tentei agarrar-me ao mais ínfimo dos elementos do ar, vi céu e terra intercalarem-se e, por fim, aterrissei. Para maior desdita, antes que me erguesse sozinho, algumas mãos bastante conhecidas, prazerosamente me ergueram:
– Vamos, velho tio, levante!
Ah!, como desejei os dentes de sabre dos Guepardos africanos para expô-los com toda falta de educação possível! Retirei a lama de cima, bati os pés no chão, perscrutei e disse:
– Vamos lá, soltem a bola.
Durante quarenta minutos andei dando caneladas a torto e a direito, importando-me apenas que a dos outros doessem. Foi quando minha defesa lançou uma bola alta e entrei colérico na dividida com o Barba, maior suspeito do queixinho no pescoço. O impacto foi simplesmente brutal. Senti da fronte ao maxilar anestesiado, e ao passar a mão no rosto, percebi que meu intocável e dolorido pimentão havia mudado dois centímetros do lugar em que se mantivera intacto, durante 40 anos. O sangue atestou o crime e os dentes abalados testemunharam a violência do choque.
Com as duas equipes preocupando-se com os acidentados, a pelada teve fim, e quando mais tarde, gastava as pedras de gelo pelas canelas, pude verificar que a tíbia apresentava um serrilhamento tipo focinho de espadarte. Minha sobrinha, sempre preocupada comigo, observou:
– Cuidado titio, eles vão te matar, ainda!
– Tranque a porta, rápido, e pare de me intimidar. Só não quero que me apanhem com esse isopor de gelo na mão. Aí sim estarei arruinado!

UM HOMEM IMPORTANTE
Em 1972, já prevendo um futuro difícil, comecei algumas andanças pelo norte brasileiro, no afã de adquirir terra por preço mais acessível, assegurando para meus familiares dias mais promissores. Era conselho de nosso pai: “Se não temos dinheiro para adquirir alguma coisa promissora por aqui, o jeito é se mudar para uma região auspiciosa, ainda que distante e abandonada, e crescer com ela.”
O tempo foi passando, e de viagem em viagem fui conhecendo borocotós e gente, cuja etnia e aspecto variavam de autênticos brucutus às fraturas tectônicas do Vale Rift. Só Deus sabe quanto apanhei e aprendi da vida nesse tempo!
Comecei por Belém, onde desci no aeroporto e me dirigi a um restaurante, já com dor de cabeça de fome. Olhei o cardápio e escolhi rãs fritas – quando nada retornaria à infância e gastaria o mínimo possível. Afinal, rãs, em minha terra, era comida de pobre que se conseguia, aos montes, toda vez que chovia. O que o marinheiro-de-primeira-viagem desconhecia era a raridade do prato em termos internacionais. Quando a conta chegou, quase tive um desmaio. Não fosse tão tímido teria chamado a polícia.
Depois veio a segunda, a terceira e demais viagens; em cada uma que se seguia, notava-se baixa visível de gafes e micos. Mais um pouco e já me sentia à vontade ao misturar-me com aquele pessoal engravatado, cheio de falsas aparência e importância. Mas, no fundo mesmo, já estava aderindo a tudo aquilo, sentindo naquela farsa, um sabor tentador que poucos resistem ou se abstêm.
Depois de muito apanhar, levar prejuízos, satisfazer blefadores, sustentar golpistas, enfim, praticar todos aqueles atos próprios de um inexperiente indefeso e idiota, consegui, afinal, um quinhão de terra, aproveitando uma alienação feita pelo INCRA. O lote ficava nas margens do rio Cajazeiras, o que me obrigava a obrigatórias paradas na precária, suja, inóspita e abandonada cidade de Marabá daquele tempo.
Do outro lado do rio Itacaiunas, ficava a Cidade Nova, tendo como principal bairro, o Amapá. Ali ficava o Hotel Vitória de propriedade de um capixaba. Logo fiz amizade: eu, por necessidade de amparo e orientação; ele, por dinheiro.
O proprietário do hotel, senhor Sebastião, era um homem cujo passado obscuro não conseguia embaçar o brilho dos propósitos humanitários de que parecia imbuído no presente. Sempre atencioso, parecia tudo fazer em prol daqueles que, como ele, tentavam a sorte, embora em detrimento de uma vida mais condizente em sua terra natal. Conhecia todas as pessoas mais importantes da cidade, e sempre dava seu parecer sobre elas, tentando imunizar seus clientes contra os grileiros, espertalhões e estelionatários da região. Costumava sempre ficar no saguão do hotel, conversando com amigos, sempre selecionados. Era maçom.
Foi num desses dias que estacionei o empoeirado Passat e desci para cumprimentá-lo. Houve efusivos abraços, muitas apresentações e uma promessa pouco condizente com meu modo de ser: apresentar-me-ia, à noite, a diversas autoridades da cidade.
Eu estava cansado, pois a viagem longa de 3.300 quilômetros deixara-me extenuado; o banho e o sóbrio jantar, pouco representaram para minha carcaça carente de uma boa e reparadora soneca.
Pensei em muitas maneiras de safar-me daquele compromisso incômodo, mas quando ouvi batidas na porta, nem sequer esbocei resistência. Qual condenado que se conforma com o destino, segui o “carrasco”. Sebastião desfilou um verdadeiro rosário de nomes ilustres que estavam no saguão. Uma cadeira de vime balouçante estava reservada a mim, no meio daquelas figuras de aparência áspera, pois, apesar de razoável cultura, os que militavam na região tinham sempre, na fisionomia, o estigma da selva e da convivência bruta.
– Este é o engenheiro da Anza; este, o melhor advogado da cidade; este, o executor do INCRA; este o gerente do BASA e, assim, sucessivamente. Foram tantos os “é um prazer” que no final, ainda que tentasse reter à língua, ela o faria instintivamente. Depois, assentei-me importante, tentando ouvir mais do que falar, dominando assim o meu maior inimigo. Mas, o diabo não é tão pequeno como alguns apregoam e, sutilmente, expôs meu tendão de Aquiles.
Um inconsequente teve a infeliz ideia de falar em pássaros, despertando-me no cérebro as ordens incontroláveis de falar. Em poucos minutos, apenas minha voz roubava o ruído uniforme de um velho e barulhento motor de fundo de quintal. Não bastasse, no auge do entusiasmo, comecei a usar a cadeira de balanço em toda sua extensão. Foi quando senti perder o domínio sobre a gravidade, empinar as botas e debater-me no ar. Estiquei os pés, escorreguei mais para baixo, entortei o pescoço, enfim, usei todo e qualquer recurso para subtrair à defasagem de peso que me roubava o equilíbrio. Finalmente, quase consegui o domínio sobre as pontas traseiras da cadeira, chegando mesmo a uma pequena parada. Depois, percebendo a derrocada, esperneei como menino pirracento, tentei agarrar até os átomos que rondavam por ali e, por fim, deixando as unhas cheias da pintura amarela de uma velha Variant estacionada nas imediações, aterrissei, ruidosamente, de ponta-cabeça. Uma das pernas ficou entrelaçada na cadeira, o nariz com dois fortes sulcos sanguinolentos; o orgulho, em convulsões estertorosas.
Tentei parar a respiração para ver se ali mesmo morria, mas o diafragma forçou o pulmão e tive que respirar e passar pela provação do maior vexame da vida. E o pior é que, logo, muitos acorreram erguendo-me e encorajando-me:
– Puxa, que esperteza!
– Você pratica esportes, não é mesmo?
– Quantos anos você tem?
Era, sem dúvida alguma, o castigo que me faltava para aquele dia miserável e, um alto preço por falar a ponto de esquecer que certas invenções humanas ainda não são tão perfeitas como se imagina.
Nunca mais pousei no Hotel Vitória!

QUE PESQUISA!
Uma crise das mais violentas que já assolou o Brasil apresentava duros traços no comércio e na indústria, principalmente na cidade de Imperatriz, no ano de 1981. Pouca gente – antes animada com os festejos carnavalescos – agora estava disposta a pular os três dias de momo. Eu, que mesmo em situações mais promissoras já não era muito afeito a este tipo de divertimento, resolvi embrenhar-me nas selvas para mais uma pesquisa sobre os inhambus brasileiros.
Saí para convidar o meu cunhado Grapuá, mas quando cheguei, ele já estava de mochila pronta, acertando os últimos detalhes com o primo Orlando (Cutuca) (excelente cozinheiro), e nosso técnico em motosserras, Zé Bigode, o tal do couro podre de boi, lembra?
Partimos num sábado, após o almoço. Acabei ficando sozinho na missão de capturar um macho de chororão, já que todos queriam abater qualquer coisa, receando o fracasso do Grapuá, incumbido de conseguir a carne para as nossas refeições.
Embora não usasse óculos nas matas, não o tirava do nariz quando estava sob a luz intensa do sol. Assim sendo, chegando à mata, retirei-o e o coloquei no porta-luvas da C–1O, juntamente com velhos parafusos, fusíveis sobressalentes, papel higiênico, fitas cassetes e outros objetos. Era o início de tudo.
No afã de arrumar-se, alguém foi ao porta-luvas e colocou meus óculos em posição propícia; o segundo jogou-o, desapercebidamente, ao solo, e o terceiro, que para azar de minhas lentes fotocromáticas, era o Grapuá, com 108 quilos e uma bota condizente, pisou em cima.
Reclamações, acusações, caras de quem perde um pênalti em jogo importante…. Depois, cada qual foi deixando o barraco. Dali mesmo desci para uma grota, onde já comprovara a presença de um guaçu-poca-taquara, pássaro até então não catalogado para aquela região. Cientificamente é conhecido como Crypturellus obsoletus griseiventris.
Depois de muito trabalho, preparando uma choça condizente com o fim a que se destinava, fiz uma parada longa, anulando os decibéis excedentes que ainda ecoavam devido às centenas de golpes desferidos para abrir uma lareira em meio aos taquaruçus (nicho preferido pela espécie da região).
Enquanto descansava, tomei o pescocinho de uma sururina, enfiei na boca e, não resistindo o sabor, desci a arcada com potência total. Quis o destino, que meu velho, irredutível, comprovado e potente pivô, sucumbisse ante a resistência daquele couro cru curtido e tão bem temperado. Um estalido característico de vidro partido fez-me crer que ali terminava boa parte de minha vaidade mantida durante 30 anos. Uma dor violenta fez minar da fronte gotículas de suor, e toda fome esvaiu-se como por encanto, levando consigo minha ânsia de ser o primeiro a capturar e ter em cativeiro a espécie.
Paulatinamente fui desfazendo as armadilhas e voltando triste para a camioneta. Abri a porta e buzinei enquanto a bateria resistiu e, por sorte, os companheiros ouviram e voltaram.
A estrada em que nos encontrávamos era usada por madeireiros e a época era de pleno inverno no Maranhão. Toda estrada apresentava aspecto lamacento, tendo de espaço em espaço, verdadeiros atoleiros. Alguém, pouco otimista, logo observou desconfiado:
– Aposto que iremos encontrar aqueles dois fordes que passaram por nós, atolados aí na frente!
– Não duvido – retruquei, cabisbaixo e apreensivo – porque sempre achei que na entrada de minha cidade, deveria haver um monumento em homenagem ao sábio escritor Joseph Murphy.
Dois quilômetros depois, lá estavam os dois fordes: um quebrado na frente e o outro tentando manobrar, atravessado no meio da lama. Sem pestanejar, o Arlindo falou:
– Façamos uma variante pela direita.
Parecia impossível, mas depois de muito esforço, deixando para trás os tubos de escapamento e um estribo, conseguimos adiantar-nos aos dois piores veículos que a Ford já fabricou.
O dente continuava seu trabalho sádico, oferecendo-me uma dor intermitente e enjoativa.
Chegando à cidade de Imperatriz, sem mesmo banhar-me, acorri ao dentista. Procurei um, que segundo informantes, era menos cruel. A porta estava fechada, com um recado visível dependurado: “Agora é hora de carnaval e não de dor de dente!”
Continuei procurando qualquer placa que falasse de dente e não tardei a encontrar uma: “Aristides dentista. Serviços gerais. Aqui seus problemas terminam.” Nunca vi letreiro mais condizente.
Percebi logo na entrada que o recinto era precário, mas nas circunstâncias em que me encontrava não podia me dar o luxo de qualquer escolha.
Um senhor, aparentando cinquenta e poucos anos, que estava sentado numa calçada do outro lado da rua, conversando com uma velha esclerosada, veio atender-me sem demora. Usava óculos e, mesmo assim, encostou o nariz no meu, fazendo-me crer que há muito tempo não ingeria qualquer tipo de alimento. Aquele hálito infeccioso, as mãos trêmulas e as sandálias-de-dedo surradas, seriam o bastante para escorraçar qualquer idiota dali, menos eu, que embora não me considerasse inteligente, não pensava ser a recíproca tão verdadeira.
Da antessala, levou-me ao gabinete. Tentei recuar, mas fui seguro pelo respeito e pela educação recebida.
– Não seja medroso homem. Este tipo de dente é moleza. Garanto que nem verá a extração. Clarividência profética.
Assentei-me depois de muito esforço, já que a cadeira era daquelas que possivelmente alguma celebridade do tempo de Abraão teria se orgulhado de sentar-se. A cuspideira era um garrafão de vinho Sangue-de-boi, cuidadosamente cortado ao meio. Na parede, uma lâmpada forte aumentava a temperatura para aquele ambiente onde o calor e o medo se congraçavam para preparar qualquer cliente que ali morresse, a não estranhar a sorte de um julgamento divino infeliz. Para ser sincero, já nem sentia mais dor de dente, tais a expectativa e o medo.
De uma gaveta ele tirou uma seringa surrada pelo uso. Entorta a agulha com os dedos e me apresenta a ferramenta cega. Entreguei os pontos e, acho que até a própria alma. Encostei da cabeça ao calcanhar, aderindo à cadeira qual geleia que se acomoda em travessa disforme.
O dentista levantou meu beiço sem nenhum escrúpulo. Senti que a distância da gengiva ao maxilar não era tão próxima como parecia, pois, do contrário, o líquido anestésico sairia pelas narinas. Foi naquela hora que senti toda verdade da placa.  A não ser por milagre, ali meus problemas iriam terminar – e para sempre. A segunda agulhada senti apenas em parte, pois desmaiei.
Quando, embora atordoado voltei a mim, pude ver na frente, num misto de consciência e delírio, Lúcifer, de tridente em riste. Por momentos questionei-me se ainda estava vivo ou não.
Finalmente, o grande momento. Sem muita cerimônia, ele enterrou a ponta do boticão, abraçando gengiva, raiz e adjacências e, num urra admirável, fez em mil pedaços o que pretendia interromper a ação exterminadora do objeto que empunhava. Deus é testemunha de que senti doer até dente da outra arcada.
– É assim mesmo – disse ele, vasculhando a área traumatizada com a ponta daquela infernal ferramenta.
Depois de descarnar do canino ao incisivo, deu por encerrada a carnificina. Cuspi ainda alguns “pedaços da boca” e saí maluco para o primeiro hospital. De antitetânico à raiva, preveni-me. Depois disso, fui levado para um odontólogo de fato, o Dr. Antônio.
Radiografia: Presença de metade da raiz; ausência de um pedaço do maxilar. A olho nu, ausência dos cantos dos dentes contíguos.
Fora isso, estava, ainda à vista, uma cratera com coágulos de um porco sangrado. Nova cirurgia e, aí sim, o saudoso pivô me deixava para sempre.
Quando desci da cadeira e vi os restos mortais de todo aquele sofrimento, pude, pela primeira vez estender a mão para o dentista e mostrar o buraco que ficara de minha desgraça, estampando um sorriso de agradecimento. Era o primeiro daquele dia.

O ALEMÃO DAS PEDRAS
Quando criança, morei no interior. Como dizemos por ignorância de costume, adorava festinhas, leilões de maio, maratonas e tudo o que podia reunir pessoas e presentear um dia de disputas e diversões. A maioria dos moradores da vila era de origem italiana. Pela fé ou força dos paradigmas, guardava-se uma centena de dias santificados durante o ano. Todos eram usados mais para esportes e outras distrações, do que para os santos.
No dia 20 de janeiro, dia do protetor dos animais, São Sebastião, alguém teve a ideia de promover uma corrida de cavalos, num trecho tortuoso, ladeado por rampas e despenhadeiros. O que apareceu de inscrição, não estava no prognóstico dos “Fabriqueiros da Igreja”, grupo católico responsável pela arrecadação de fundos e manutenção da igreja e do padre.
Cavalos magros, burros empacadores, éguas – cujo condão sempre fora procriar – e, jumentos atrevidos – que desafiavam o insólito delegado da vila, emitindo o mais longo e barulhento dos esturros em plena madrugada silenciosa – formavam a tropa responsável pelo sucesso da programação.
Entre os jóqueis, também havia os tipos mais excêntricos, indo do gigante Hilário Bérgami ao louco Alemão das Pedras. Este último residia numa localidade denominada Alto da Liberdade, que jaz incrustada no sopé de três grandes pedras onde nasce o riacho Liberdade. Sobre esta montanha de mil metros de altura, padre José Brasil erigiu uma enorme cruz de cimento armado, que ainda hoje pode ser vista a dezenas de quilômetros. Todo material foi levado para o cume, no ombro da italianada, que nunca dizia não a qualquer pedido que o padre fizesse.
Mas, voltemos à memorável e histórica corrida. Fogos, gritarias, quermesses, moretinas, cânticos folclóricos italianos, bochas e outros entretenimentos adultos intercalavam-se com as correrias das crianças, que sem o mínimo respeito pisavam os sapatos surrados e empoeirados da multidão. Foi nesse clima que o único alto-falante da vila, pendurado lá num poste de madeira, anunciou:
– Senhoras e senhores, dentro de poucos instantes terá início a corrida de cavalos, lá no Catelan. Queiram se deslocar para lá, pois será a maior corrida dos últimos tempos. Vamos ver a apresentação dos nossos jóqueis que montarão seus velozes pangarés. O vencedor será premiado com um conto de réis e uma linda montaria. O segundo colocado…
E, antes que fossem esclarecidos os prêmios e ditadas as regras da corrida, a multidão, qual estouro de boiada enfurecida e desnorteada, direcionou-se via Liberdade, onde ficava o trecho mencionado pelo organizador.
A estrada era sinuosa, embarrancada e também com despenhadeiros ameaçadores, além de ser excessivamente estreita. O povo posicionou-se pelas orlas superiores, locupletando praticamente seis quilômetros de pista. Os 500 metros iniciais estavam ocupados pelas montarias que, fogosas e perplexas, sapateavam ofegantes. Na frente estavam os quatro primeiros colocados por sorteio prévio, e contava em sua ala com o incrível Alemão das Pedras. Era um fogoió de baixa estatura, cabelos e sobrancelhas ruivos, dentes amarelecidos pela nicotina, inteligência de uma lombriga com problemas psíquicos, um pouco mais, talvez. Era famoso e conhecido em toda região por suas loucuras, entre as quais escalar frondosos jequitibás e troncos secos, à cata de orquídeas e filhotes de pássaros, excluindo toda e qualquer consequência que pudesse advir.
Montava um burro alto e saudável, que se apresentava inteiramente atônito diante daquela balbúrdia vesuviana. Na frente das montarias, postava-se o Agenor Gava, que com seu 38 lubrificado, aguardava o sinal do organizador para disparar. Dentro em pouco, um vozeirão noticiou:
– Senhores, vai ser dada a partida. Que cada um apoie e incentive seu jóquei…
Houve um silêncio tumular, seguido do estampido do 38. Uma nuvem de poeira, qual gases sulfurosos eliminados por um vulcão, embaçou as visões para, em seguida, do meio dela, despontar o Alemão das Pedras. Como se fosse Rigoni, apresentava-se quase de pé em cima da sela. Gritava, gesticulava, surrava o burro que, a cada instante, dava mais de si, ganhando uma frente respeitável. Foi quando, apareceu a Curva do Joelho. Alemão, sem prever nada, entrou nela com velocidade total, incitado pela multidão que já conhecia e apoiava suas loucuras. O burro abriu a curva, derrapou, capotou e desceu perambeira abaixo, misturando jóquei, burro, sela, capim-gordura, poeira, arranha-gatos, bananeiras e tudo o mais que germinara por ali, como acontece com uma bola de neve.
O pessoal postado naquele trecho deu o alarme e, exatamente ali, a nuvem de poeira parou. Todos queriam saber o que havia acontecido com o louco Alemão. Lá em baixo, dentro de uma valeta, qualquer coisa ainda se mexia: era o que se podia concluir vendo as pontas dos arvoredos balouçarem. Cuidadosamente os mais afoitos foram descendo e mais um pouco, noticiaram:
– Estão vivos, ainda. O Alemão está por baixo, mas vivo. Há sangue por todos os lados. Venham logo.
Uma hora depois, o bravo fogoió estava sentado numa cadeira da farmácia do Leandro, recebendo uns pontos que deveriam levar para o lugar, o supercílio deslocado. Como no interior é sempre assim, não houve mais corrida, mas os comentários sobraram para o resto do ano… e enquanto este livro existir.

O PAUZINHO DO VALTER
Desde criança gostei de esportes. Em todo colégio em que estudava, logo conseguia um lugar de destaque no setor. Quando abandonei o seminário, fui agraciado pelos Seculares com o não reconhecimento de meus estudos do Clássico e de Filosofia. Era norma, nada a reclamar. Recomecei no primeiro ano de Contabilidade, formando-me três anos depois. Voltei para minha terra natal e fui sobrevivendo de serviços contábeis, e aulas de Português, Ciências e Geografia. É claro que longe andava de ser professor recomendado, mas como a vila era pequena e na ausência de coisa melhor eu ia auxiliando o pobre e incansável padre José Brasil.
Não tardou para que me elegessem presidente do Marilândia F. C., em que eu já era jogador e técnico. Com todas essas incumbências, o tempo escasseou e tive de procurar auxiliares. Foi assim que apareceu o Deja, rapaz que nunca trabalhara, extremamente excêntrico, altamente teimoso. Notei que o mesmo andava rondando nossa casa à procura, talvez, da mocinha minha irmã, que além de tantas qualidades, ainda tivera o privilégio de possuir límpidos e belos olhos azuis. Não apareceria melhor oportunidade para elegê-lo técnico de nosso time.
A equipe contava com um lateral esquerdo, o Valter, que vinha de dois acontecimentos quase inéditos na história do nosso futebol. Possuía as pernas cambotas, era todo músculo e corria os 90 minutos sem nenhuma aparência de cansaço. Na boca, dois caninos salientes impediam que as gengivas se tocassem. Era meeiro de meu pai e capinava os cafezais de segunda a sábado, sempre assoviando e cantarolando músicas folclóricas.
O time estava inscrito na Liga Colatinense de Desportos e disputava, todos os anos, o campeonato da cidade. Como ainda hoje acontece, os times do interior são sempre injustiçados pelos árbitros da cidade. Não bastasse, existia em Colatina a U.A.C.E.C., uma equipe de jovens estudantes que, para elucidação, basta acrescentar que cedeu oito de seu plantel para equipes profissionais do Rio, São Paulo e Belo-Horizonte. Belo, era a estrela do time e não havia defesa que não penasse diante dele. Nessas circunstâncias, chegou o dia de enfrentarmos o bicho papão, a UACEC.
Não havia transcorrido muito tempo de jogo e já o marcador apontava 3 X 0, sendo dois marcados pelo terrível centroavante. Zé Firme, nosso meio campista, teve a infeliz ideia de tentar resolver o problema. Chamou o Valter e sussurrou:
– Desse jeito não, dá, Valter. Temos que parar o Belo; temos que, pelo menos, intimidá-lo. Passando aí por sua ala, dê um pauzinho nele, senão iremos tomar uma goleada histórica.
– Deixa comigo – respondeu ofegante o lateral.
No outro dia, pela manhã, um semanário local estampava a seguinte manchete: LATERAL DA ROÇA TENTA, COM RELATIVA FELICIDADE, ASSASSINAR BELO.
A criançada lá da roça chamava de granada, um salto que se dava na água, encolhendo as pernas e segurando os joelhos com as mãos, caindo nos rios como um bólido. Pois bem, foi assim que o Valter parou o mais temido dos centroavantes da região. Felizmente, depois de passar dois dias em coma, Belo recobrou os sentidos. E quanto ao nosso lateral, apesar de gostar muito de futebol, teve de passar quase seis meses sem sequer assistir aos jogos de sua equipe, lá em Colatina.
Depois desta, o Valter andava meio cauteloso, embora sempre acusasse o Zé Firme por ter pedido a ele que desse um pauzinho no Belo. O Valter, de fato, era a excentricidade personificada:
Um dia, depois de algum tempo, o Marilândia treinava animadamente em seu gramado visando um jogo contra uma equipe da capital. Édi (assim era conhecido um pretinho que sempre vivera conosco desde criança e que tinha, como particularidade, ser extremamente delicado). Via no futebol apenas um esporte para o bem-estar físico. Era contra jogadas violentas, excesso de cansaço e coisas afins. Andava querendo abandonar o futebol, já que havia levado uma bolada do Pongó em local de inteira privacidade, numa jogada que em nenhures exigia tal violência. Havia inclusive ameaçado que, se o fato se repetisse, jogaria as chuteiras para o outro lado do muro e nunca mais as calçaria.
O treino andava quente, quando o Valter roubou a bola do ponteiro e desceu ameaçador. Na ponta estava o Édi. Percebendo a descida e os dotes do lateral, logo se identificou, fazendo gesto característico com as mãos e solicitando calma: recebeu uma bolada no chato nariz (era um negro típico), caindo sentado com dois filetes escarlates riscando-lhe as faces. Sem modificar a posição em que caíra, começou a desatar os cadarços e, ato contínuo, arremessou as chuteiras para o outro lado do muro, abandonando, como prometera, o futebol.
Mas, o pior ainda estava por vir.
O novo técnico Deja (Dejacir Caversan era seu nome), rapaz teimoso e cheio de problemas, entrou no gramado, fez sua costumeira preleção, deu vinte minutos de física e iniciou o coletivo. Corria o campo todo gesticulando, gritando, tentando ensinar. O Marilândia era proverbial em dar chutões para o alto. A fama corria o Brasil inteiro:
– Olha o toque de bola – falava continuamente. Temos que mudar este sistema de “bumba-meu-boi”. Vamos rolar, vamos rolar isso aí.
Tudo ia bem, até que o Valter se apossou da bola. Já ia dar seu chutão costumeiro, quando o técnico gritou:
– Olha para aonde vai dar o passe, Valter!
Ele levantou a cabeça, parou o suficiente para o adversário aproximar-se e vendo-se em situação apertada, deu um bicudo, talvez o maior de sua carreira e, também, o mais certeiro e desastroso. Em sua frente, a “vítima”, de braços e dedos esticados, pedia calma. A bola, talvez revestida e encarnada pelo espírito do Príncipe de Sade, acertou o polegar tenso do técnico, desacertando tudo o que era junta.
Fazia pena ver o Deja estirado no gramado, gemendo de dor, com o dedo polegar desconjuntado. Foi um corre-corre danado, afinal, ali estava uma autoridade, o nosso mais novo técnico. Não sei bem se enxugou as lágrimas, mas o certo é que se levantou e não obstante encontrasse o rígido lateral cabisbaixo na orla do campo, expulsou-o friamente. Depois, arremessando o apito aos ares, disse em claro e bom som, que jamais incorreria na idiotice de comandar um “bando de doidos” daquele.

UM ESTRANHO NO NINHO
Depois de uma noite perdida, tocando guitarra numa festa de aniversário, despertei às 10h, ainda sonolento. Tomei um cafezinho, espreguicei-me, pensei no que fazer, olhei o belo sol que clareava no despontar e resolvi retirar o carro da garagem para uma voltinha. Duas horas depois, eu estava no hospital com braço quebrado, cabeça esfolada, joelhos em frangalhos e outras escoriações próprias de quem tentou, inutilmente, mudar um avantajado poste do lugar costumeiro.
Essa nova sexta-feira de minha vida não estava predestinada a ser, também, menos desastrosa. Também o sol brilhava, porém à tarde, e tudo aconteceria diante de uma pequena observação de minha irmã que, impensadamente, achara meus cabelos desalinhados.
Depois de um rápido banho, apanhei o carro e saí pela cidade. Nessa época eu já morava na cidade de Imperatriz – MA, porém, numa espécie de subúrbio (Loteamento Alto da Boa Vista), distante do centro, três quilômetros.
Desci pela Avenida Dorgival Pinheiro, e como não visse nenhuma placa de barbeiro, retornei pela Getúlio Vargas, vagarosamente, perscrutando cada beco: lugar comum de barbearias em cidade do interior.
Por fim, lá estava: CHARME CABELEIREIRO. Numa guinada de atropelar o mais versátil vira-latas, estacionei em frente. Tomei o jornal O PROGRESSO, diário de Imperatriz, dobrei-o por comprido, enfiei-o sob o braço esquerdo, meti o dedo indicador direito no chaveiro, e fazendo-o rodar, penetrei na antessala. De chofre, uma secretária loira atendeu-me, deixando bem claro que, em nenhures, era aquilo que eu procurava. Um tanto desajeitado tentei justificar:
– Desculpe mocinha, devo ter me enganado. Queria cortar os cabelos e…
– Pois é aqui mesmo, sente-se.
Senti que caíra, involuntariamente, numa armadilha, impelido pela vaidade e, porque não dizer, pela distração. Já estava envolvido e resolvi tentar ser o mais natural possível, porém, aqueles longos anos vividos em Marilândia, sertão espírito-santense, ainda regulavam meu modo de ser. Apanhei o jornal, e ainda antes que o desdobrasse, um travesti entreabriu a portinhola, esquadrinhou-me de alto a baixo e ordenou:
– Leninha, lava a cabeça deste loiraço.
Sempre detestei esta palavra, mas dita daquela maneira, em tal ocasião, por um travesti, causou-me maior embaraço. Qual réu sentenciado e algemado soergui-me humildemente da cadeira e caminhei “rumo ao desconhecido”.
Minha surpresa e angústia aumentaram ainda mais quando entrei na “sala de operações” e me vi insulado entre dezenas de madames fofoqueiras, que silenciaram inopinadamente, ergueram com maestria as pálpebras, deixando visíveis os molares, numa inconfundível prova do que estavam pensando a meu respeito.
Senti-me como um pastor flagrado em adultério, tal o desejo de que qualquer coisa acontecesse, livrando-me daquele mal-estar. Como um tiro de espingarda numa lagoa de anfíbios coaxantes, o silêncio que se fez a seguir foi aquele digno de se ouvir as mais tênues vozes do além. Tentei controlar-me.
“A lavadeira” entrou, passos firmes, toalha dependurada no antebraço, movimentos precisos. Puxou para meu cogote uma travessa semelhante às comadres dos hospitais, agarrou-me pelo topete, e num golpe de embaralhar as próprias vértebras do pescoço, iniciou a dura tarefa massageadora, sem importar-se com minhas afirmativas de que apenas havia saído do banheiro.
Finda a tarefa “amansa imbecil” fez entrar o travesti que, desfazendo o silêncio tumular que até então reinava no recinto, esbravejou, maldizendo-se por imprensar os dedos na tesoura. Ajeitei-me na cadeira, encorajando-me a verificar como iam meus espectadores. Pareciam quietos e desligados. Melhorei a posição e pensei:
– Diabos, este pessoal não pode ser melhor que eu. Isto mesmo, vou me impor e ser natural. Desdobrei novamente o jornal e ordenei:
– Quero que apenas apare as pontas, deixando o lado de trás o mais baixo possível, pois tenho o pescoço muito comprido.
– Já percebi – retrucou o travesti, estremecendo, novamente, minha aparente segurança.
Ajeitou minha cabeça e iniciou os trabalhos com borrifadas de água perfumada, tesouradas a torto e a direito, massagens levianas, escovadas sutis, penteados de maneiras mil, enquanto eu lia qualquer coisa, mal imaginando o que estava acontecendo com a “sagrada capa de minha caixa de pensamentos”. Por fim estremeci ante o desabafo:
– Desgraaaaaaça! Não me ajeito com este cabelo.
Sobressaltado ergui os olhos e percebi que o incauto travesti estava tentando um penteado que há exatamente 40 anos meus cabelos não viam. Ajudei-o:
– Uso meu penteado do lado contrário.
Meio zangado retrucou:
– E por que não disse logo?
– Você não perguntou, logo achei ou concluí que sabia o que estava fazendo. Devia ter reparado quando entrei.
– Está bem, está bem! – disse ele à sua maneira.
Tesouradas, borrifadas, ar quente, penteados, tesouradas, laquês, enfim, todas aquelas coisas que realizadas com tanta continuidade em cima de uma única cabeça com ralos e tênues fiapos de cabelos, não poderiam deixar de ostentar-se como autêntico e perigoso protótipo do Kojac. Mas, para ser sincero, estava até gostando das carícias do travesti, que me pareceu receber em sensibilidade o que lhe faltou entre as pernas.
Por fim o veredicto:
– Pronto.
Elevei os olhos para o espelho, procurei-me em vão, pois aquele inconfundível “anu-branco” que relutava postar-se em minha frente, em nada se parecia comigo há uma hora. Das muitas coisas que me ocorreram naquele instante, a que vingou foi mesmo a de fugir dali o mais rápido possível, pois sentia que algumas madames me ameaçavam novamente com olhares maliciosos e furtivos.
Retirei uma nota de mil cruzeiros, entreguei-a à secretária, nem perguntando pelo preço, na certeza de que um troco abaixo de quinhentos cruzeiros não pagaria mais um minuto sequer de minha permanência ali.
– Oitocentos e trinta cruzeiros.
– Fique com o troco.
– Mas moço…
Não ouvi o que disse depois, pois o relinchar dos pneus no asfalto atrapalharam minha audição.
Quando retornei ao Loteamento, para maior desdita, meus sobrinhos estavam a postos (o diabo nunca perdia essas chances). Gozaram-me a tal ponto, que até me ocorreu retornar armado para matar o travesti. E foram tantos os pensamentos daquela tarde, que à noite tive um sonho horrível e vergonhoso, o de ser entre os homens da terra, o mais avantajado. Foi sorte daquele miserável ter sido apenas sonho!

O DIA EM QUE VI O DIABO
Minha infância foi passada próxima a vilarejo do interior norte espírito-santense. Como qualquer criança da roça, vivia de pé no chão, um calçãozinho seguro por suspensórios, sem camisa, cabelos despenteados, tez de bronzeada a queimada pelos raios solares. Estudar era um castigo de que não me furtava, pois, os velhos imigrantes italianos, no lugar de prêmios, ofereciam correadas para o filhote que não passasse de ano.
Voltava da escola, apanhava a tabuada, postava-me de cócoras num canto do quarto e em poucos minutos já podia levantar-me, apanhar o embornal de pelotas, a seta (estilingue) e sair para as capoeiras em perseguição aos alígeros, certo de que não ajoelharia sobre os duros caroços de milho da dona Zilda, minha exigente e inesquecível professora.
A vontade de caçar era tanta que, às vezes, esquecia até de alimentar-me, motivo pelo qual minha mãe vivia arreliando. Ameaçar-me com o diabo, era uma constante:
– Não faça isto…, vem fazer isso, senão o diabo te pega; um dia o diabo te pega; cuidado com o diabo – e assim por diante.
Apesar de não demonstrar medo em casa, quando nas capoeiras, eu vivia de olho em cada moita, e ao menor sinal estranho, meus cabelos arrepiavam em companhia de batidas dobradas do coração.
Dias antes acontecera um temporal e como me negasse a rezar, fui posto na varanda. Era noite escura, onde apenas os fortes relâmpagos davam curta e rápida visão das árvores retorcidas. Diante daquilo, meu tenro machismo fraquejou e só mesmo depois de ensurdecedores gritos e choro, abriram-me a porta.
Não recrimino minha mãe por isso, pois sem o auxílio do diabo para ajudá-la, seria muito difícil ter algum sossego naquele lar. Eu era aquele que meu pai ameaçava enviar-me para a Marinha; jurava que eu fundaria uma nova religião, pois o Deus dele não dava conta de mim.
E mais um dia raiou e com ele a escola, a volta, a tabuada, o embornal de pelotas… A rotina de sempre. Acontece que minha irmã havia, há algum tempo, se casado com um grandalhão, o Arlindo (Grapuá), que apesar do tamanho e da idade, sempre se portara como uma verdadeira criança espírito de porco. Sentia verdadeiro prazer nas malvadezas e, sem que eu soubesse, havia sido encarregado por minha mãe para me dar um grande susto. Exímio imitador de tudo que desejasse, meu cunhado representava a maior ameaça para retirar das profundezas infernais, o diabo que eu tanto temia.
Nossa casa era rodeada de cafezais, fruteiras, matas e enormes capoeirões. O dia estava límpido, os pássaros gorjeavam em cada copa como se estivessem agradecendo aos céus o prazer da vida. Saíras, gaturamos, rolinhas, coleiros, tizius, caga-sebos, marias-bobas, guaxos, tico-ticos, japus e mais uma infinidade de passarinhos de uma das mais belas faunas do mundo estavam ali, pertinho de mim. Eu era inocente e Deus dava-me o céu – talvez por saber que só para os que não o avaliam, é facultado o privilégio de sua visão. Pela pureza que hoje sei que desfrutava, percebo como era feliz. Entre um anjo de Deus e uma criança inocente, só o poder diverge.
Fui ao paiol, escolhi as mais redondas pelotas de batinga, conferi a elasticidade da seta e sai ameaçador. Conhecia um mata-pau com frutos e encaminhei-me para lá. Fui atravessando as leiras do cafezal; saltei a valeta do moinho; cruzei por goiabeiras e segui em frente. Um joão-de-barro assentou-se na mira, mas não pelotei, pois minha mãe dissera que, como as cambaxirras, ele era um pássaro de Nossa Senhora, gozando, pois, das prerrogativas de imunidade. Eles podiam voar e pousar onde bem entendessem. Porém, não gozavam do mesmo privilégio os caga-sebos, e saí, incontinenti a perseguir um que me cruzou o caminho. De árvore em árvore, ele foi dar numa mexeriqueira antiga, de copa fechada. Nem sequer percebi os frutos, pois meus olhos só procuravam a minúscula caça.
Foi então que ouvi um gargalhar ensurdecedor e ininterrupto, diabólico, furibundo, tétrico. O boné elevou-se ante o ímpeto dos cabelos ouriçados, a respiração parou. Com o coração, não sei o que houve. Virei os olhos de relance apenas, pois não podia perder um só décimo de segundo na dúvida. Arranquei jogando folhas para trás – o grito ficou preso na garganta. Tinha visto o demônio, com todos os detalhes: chifres aguçados e pontiagudos, olhos faiscantes; pela boca, fogo e fumaça com cheiro de enxofre; calças esfarrapadas, tridente incandescente e ameaçador.
Qual visão tida de um carro em alta velocidade, percebi as coisas ficando para trás, enquanto o som do gargalhar ia diminuindo, como se a força dos “valei-me Nossa Senhora” estivessem surtindo o efeito desejado. A valeta que sempre me parecera larga foi ultrapassada com metros de margens a meu favor e o brejo adiante, cuja lama me alcançava o tornozelo, nem sequer afundou sob meu peso. Quando esbarrei na saia de minha mãe, senti que o embornal de pelotas, ainda atrasado, tocou-me as costelas, e apertei fortemente as pernas de mamãe num último alento. Ela não sabia de nada e vendo minha aflição, assustou-se. Tomou-me nos braços, deu-me água com açúcar, acalmou-me. Um dos pés sangrava, mas ainda não doía, na mais eficiente prova de que a tensão que me acometera, ainda circulava meu ser. Quando contei o que acontecera, ela riu, riu muito, pois sabia que podia ser tudo, menos o diabo.
– Mas vi, mamãe, foi horrível! Tentou agarrar-me, mas fugi correndo.
Quando meu cunhado, com a cara mais porca deste mundo, entrou na varanda, percebi qualquer semelhança, mas por mais que tentasse, os chifres, os olhos faiscantes, o cheiro de enxofre… não eram percebidos.
Hoje, passados tantos anos, ainda sinto vontade de matar meu cunhado!

A SOPA DOS COMBONIANOS
Já se vão longe os anos de minha juventude, quando com outros jovens perdia noites ao lado do violão, cantando e dedilhando ao luar. Eu sonhava muito naquele tempo. Puxa, como sonhava!
Passava tempo olhando a moita de bambus que me permitia prever a serenidade e a paz de um pássaro dormindo. Era naquelas noites já tão distantes, que meus pensamentos divagavam na pureza dos costumes, na esperança do futuro, na inocência do dia a dia, na autenticidade do agir. Jamais imaginei os dias que hoje vivo, tão atribulados. Que pena, as marcas do tempo em nossas vidas!
Vivia para divertir-me, cantar, ajudar, progredir, confiar, fazer malcriações sadias…. Só coisas sem maldade. E nesse meio puro, associei-me a mais quatro meninas e três rapazes, formando um conjunto musical cognominado “Os Corujas”. Esse conjunto vivia se apresentando em festinhas de cunho caritativo. Assim sendo, num dia qualquer, recebemos do padre Franco Foini, italiano da congregação dos combonianos, um convite para ajudar nas festividades da padroeira da cidade de São Gabriel da Palha, no Espírito Santo.
Dentro de uma Rural Willis colocamos tudo – músicos e instrumentos… e num sábado às 10 horas, estacionamos em frente à Casa Paroquial. Padre Franco veio sorridente e feliz, recebeu-nos e distribuiu-nos, levando-me, como chefe, para sua companhia. Os demais ele enviou para um modesto hotel da cidade.
Como todo bom adolescente, já cedo meu estômago doía de fome. Apesar desses reclames, o convite para almoçar só veio ao meio-dia. A mesa era ampla, os talheres prometedores, a fome negra. Seis padres, duas freiras e eu compúnhamos as ameaças a qualquer coisa que caísse ali na frente.
A empregada – uma mulata gordinha de sobrancelhas albinas, estatura mediana e muito sisuda – chegou, afinal, com uma enorme panela de sopa e algumas cestinhas de torradas. Pôs calmamente tudo sobre a mesa e saiu em seguida. Um tanto acanhado, esperei que os anfitriões se servissem e depois, como não sou lá muito afeito a sopas, retirei uma concha pela metade. Mas, devido a grande fome, pareceu-me a melhor coisa que já havia experimentado, e como nenhum outro movimento acontecia, fui repetindo o prato até saciar-me definitivamente. Estranhei que os combonianos comessem tão pouco! Devia ser votos de sobriedade. E foi tanto a sopa que comi, que não pude furtar-me às desculpas costumeiras:
– Realmente estava com muita fome e sopa sempre foi o meu fraco.
– Não se perturbe, pode comer à vontade.
– Não, agora basta. Acho até que exagerei.
Padre Foini, tocou uma campainha e novamente a empregada veio e retirou tudo.
Não tinha sido o que eu imaginava, mas de qualquer forma, aquela dor fina das tripas havia desaparecido. Depois, eu tinha de respeitar a sobriedade alimentar dos religiosos.
Daí a pouco, eis que, ante meu olhar confuso, entra novamente em cena a gorduchinha, repondo pratos e talheres limpos na mesa. A posição dos anfitriões perturbou-me ainda mais quando percebi que permaneciam com os guardanapos enfiados nas golas das batinas. E não deu outra coisa: uma travessa de bifes à milanesa desfilou pelas minhas barbas, enchendo-me a boca de saliva e quase repugnando meu estômago cheio de sopa. Apesar da insistência dos padres, não quis mais comer, pois um pouco antes não tivera a educação de reservar nem um espaçozinho nem no “esôfago”.
Depois dos bifes, serviram-se ovos cozidos, salada de verduras e mais pratos deliciosos que me martirizaram sobremaneira. Embora eu não soubesse, traziam da congregação o costume de comer um tipo de alimento de cada vez.
Enquanto palitavam os dentes, estirados nas poltronas da sala, eu, comigo mesmo, prometia uma desforra à altura. Em cada passo ou movimento que eu fazia, sentia o aguaceiro da sopa arremessar-se contra as paredes do estômago. Mas o jantar viria e aí iriam ver com quantos paus se faz uma canoa. Para ser sincero, esperei com grande ansiedade esse momento – e ele chegou.
Novamente entra a conhecida rechonchudinha com a conhecida panelona de sopa fumegando. Deixou sobre a mesa e saiu calmamente. Já um tanto íntimo e com a ideia fixa no depois, retirei logo meia concha da mesma e degluti calmamente. Os padres, pelo contrário, encheram o prato e pareciam vorazes.
Terminei o que havia colocado e empurrei o prato um pouco para frente, dando mostras de minha intenção.
– Coma um pouco mais – disse um deles.
– Não, não, estou satisfeito POR ENQUANTO.
– Come pouco assim?
– Nem tanto – retruquei já meio desconfiado.
E a desconfiança era fundamentada, já que a ilustre congregação não tinha por hábito uma alimentação sóbria ao jantar: uma sopinha, por exemplo.
Saí daí e, de fininho fui para um quiosque meio clandestino e juro, nunca comi tanto pão com guaraná – era o que havia.
Costume miserável e traiçoeiro, esse dos combonianos!

O PREÇO DE UM CACOETE
Marx, aqui, nada tem a ver com o socialista e filósofo alemão. Foi um amigo que fizemos tão logo nos estabelecemos na cidade de Imperatriz, no Maranhão. 46 anos, olhos claros, estatura mediana, cor morena, ausência do incisivo lateral esquerdo, falha encoberta pela cortina de seu bigode prolixo. Era um homem bom, prestativo, que tivera, infelizmente, certas atribulações que o obrigaram a deixar a terra natal.
Casou-se com uma professora cheia de sonhos, a princípio pequenos. Mais tarde seria o maior centro de ensino da cidade. Iniciou sua escolinha particular ministrando aulas para o pré-primário. Meus irmãos ali deixaram alguns de seus filhos e, assim, teve início nossa amizade.
Numa tarde de sexta-feira, Carlinhos (filho adotivo da mana Elda), Márcio e Anderson (filhos do mano lldebrando), insistiram para que os pais os deixassem dar umas voltas de bicicleta pela Bernardo Sayão, extensa avenida que contorna o 50º BIS e chega ao centro da cidade. Dariam uma voltinha, tomariam um sorvete nas Quatro-Bocas e retornariam. Não era um pedido incabível para que fosse negado, apesar do sufoco em que vivíamos.
Alguns minutos depois, Márcio descarregava um trapo ensanguentado em nosso loteamento. Um caminhão Chevrolet colhera seu irmãozinho, destruindo por completo a bicicleta e deixando-o em estado lastimável, com fratura do crânio e um escalpo digno da aprovação do mais requintado pele-vermelha-vermelha.
Nós, que estávamos programados para a pelada costumeira, tivemos de modificar os planos, partindo em disparada para o Hospital Santa Maria. Seis horas depois o garoto era declarado fora de perigo e reagia bem às duas cirurgias.
Carminha, a professora e esposa do Marx, era membro de um grupo caritativo que primava por visitas a hospitais, delegacias e outros ambientes de dor e correção, onde a esperança devia ser levada. Assim, num domingo após a missa, fui ao hospital ver meu sobrinho e lá estava ela, alegre, falante como sempre. Puxa, como falava!
Em sua companhia, trazia o filho mais velho de quatro anos. Era um rapaz de olhos quase verdes, moreno e sorriso aberto, mas que não possuía a falangeta do dedo mínimo do pé direito. Sua mãe explicou:
– Desde os oito anos, por ter visto coisa semelhante na TV, aprendera a responder com determinado gesto, às minhas reclamações. Punha a mão direita no peito e recurvava-o para frente. A mão esquerda estendia-se na horizontal, enquanto seu pé direito era jogado para trás, aparentemente como um respeitoso cumprimento chinês. Nesta posição dizia:
– Eu sou eu, mãe!
– Um dia – continuou a Carminha – recordo muito bem, dávamos um coquetel para amigos. Nossa casa continua ali numa travessa próxima à Getúlio Vargas, avenida principal e também a mais movimentada da cidade. Por isso, as travessas eram muito utilizadas pelos ciclistas que procuravam evitar os pegas dos motoqueiros e motoristas irresponsáveis. Nesse dia eu pedi a ele que fosse ao supermercado apanhar meio quilo de cebolas. Como sempre, ele ficou fazendo graça antes de me obedecer. Como a demora já estava demais, saí para cobrá-lo. Estava na calçada, rindo e brincando com seus amigos, completamente alheio às minhas necessidades. Mal ralhei, ele saltou para a rua buscando posição e espaço condizentes para proferir o seu “eu sou eu, mãe!” e…:
– Eu sou…. aiiiiiii!
Um ciclista avexado – como dizem os imperatrizenses – passava por sua retaguarda e foi inevitável: a corrente colheu seu dedinho e, somente no hospital, paciente e bicicleta foram separados.
Recordo, apenas, que teve de ser carregado de quatro pés, como um paguro na actínia e, mais do que nunca, sem coexistência obrigatória.
– Muita gente foi mobilizada para a operação. Até o ferreiro Jorge teve presença garantida, empunhando marreta e talhadeira na sala de cirurgia. É, diria ele mais tarde: cada marretada parecia destripar-me pelo dedinho. Durante anos azucrinara-me com aquela baboseira – e como mãe em todas as circunstâncias o é – nunca tivera motivos mais fortes para abandonar aquela criancice. A própria vida o ensinou e de maneira pedagógica desaconselhável.

O DIA QUE MAMÃE TENTOU MATAR MEU PAI
Dizem que os casais italianos apreciam constantes desentendimentos, durante os quais dizem o que pensam, desabafam e encontram paz para garantir, por semanas, outros achaques e ranhetices próprios da velhice. Pois bem, meus pais eram italianos, embora “nascidos no Brasil”.
Meu Velho contava, nessa época, 60 anos, e sua preocupação e passatempo era um casal de macucos presenteados pelo mano Adalho (Velhão). Esses macucos consumiam os dias do Velho e lhe davam tanta dor de cabeça e preocupação que chegou a criar o hábito de ingerir comprimidos de Melhoral, diariamente.
O macho, apesar de arrebatador, não havia descoberto o local exato de seus “serviços” e vivia copulando com qualquer coisa que se lhe apresentasse. Ora era uma casca de coco, ora um pouco de ciscos, ora qualquer objeto que estivesse ao alcance. Na fêmea mesmo, nunca conseguia nada.
Foi aí que meu pai teve uma brilhante ideia. Sabendo que a fêmea se agachava todas as vezes que via o macho excitado, meu pai estendeu ao ignorante e inexperiente galináceo, a palma da mão. Este subiu e começou a sapatear, sendo cuidadosamente colocado sobre as costas da fêmea pelas mãos de meu pai, que as tirou em seguida – não deu outra coisa! …
Naquele ano, foram postos 36 ovos, quase todos férteis. Em seu habitat normal, a fêmea põe, no máximo, seis ovos por postura.
Há 20 anos, quase não se falava em Tinamídeos lá em Linhares e, por isso mesmo, o viveiro de meu pai ficou famoso, pois era quase novidade a reprodução em cativeiro de macucos.
No começo viviam agrupados com outros pássaros, dentre os quais, perdizes, cuja preferência por minhocas é tradicional. O órgão reprodutor do macuco é formado por um apêndice de alguns centímetros de comprimento, em forma de verruma, sem uretra e que, em local de fraca visibilidade, pode lembrar uma minhoca, principalmente para um perdigão míope e faminto. Foi assim que vi meu pai entrar pela casa e me chamar desesperado:
– Livaldo, Livaldo, Livaldo…
– Que é pai – respondi, desviando os olhos em sua direção.
– Acabou a festa!
– Como assim?
– A perdiz me desgrrrraçou o macuco! (O r enfatizado funcionava como uma interjeição de extremo desapontamento e ódio).
Mas, não desgraçou não, deixou-o apenas em repouso por algumas semanas. Trabalhava à mineirinho, debaixo de calado e sem problemas com seus vizinhos.
Pois bem, num belo dia, meu pai não encontrou o milho com o qual tratava essas aves, e ficou furioso. Entrou em casa arreliando:
– Mariola (era assim que ele chamava minha mãe), onde está o milho dos macucos?
– Comanda mi! – retrucou minha mãe, extravasando um pouco a saudade dos seus tempos de menina.
– Como não sabe, se deixo sempre no mesmo lugar e lá não está?
– Procurou no paiol?
– Já. Não vi nada.
– Olhe dentro das caixas. Do jeito que você é biruta, deve ter deixado lá e não lembra mais.
Meu pai podia e realmente tinha muitos defeitos, porém era extremamente dócil perante qualquer possibilidade e sugestão. Passo lento, cabeça baixa, lá foi ele. Abriu a tramela da porta que rangeu pesadamente. Entrou, olhou e viu duas caixas com tampas entreabertas. Curvou o tronco ao máximo, já que seus joelhos afetados pelos incessantes reumatismos e pelos anos, pouco curvavam e, aproveitando os braços longos, enfiou-os caixa adentro. Lá não havia milho, mas sim uma gata rabugenta que mal acabara de dar à luz cinco gatinhos magricelos – magricelos, mas seus. Desajustada pelos maus tratos, acometida pelas dores do parto e levada pelo ciúme natural dessas horas, a felina contra-atacou, agarrando com tudo o que tinha de afiado e cortante, o objeto que invadiu o sagrado recinto de seu lar.
Sem raciocinar, nem se aperceber do que estava acontecendo, meu pai (segundo seu próprio relato posterior), deixou que sua fobia por cobras viesse à tona, entrando em casa e dando até detalhes da surucucu que o havia picado. Seus cabelos finos, escassos e brancos, estavam hirtos e empinados. Sua tez pálida de morte. Sua respiração ofegante. Entrou, sentou-se, apoiou a cabeça nas mãos e apenas sussurrou:
– Leide (é minha irmã caçula), vê rápido um copo d´água com açúcar, se ainda der tempo!
Nisto eu entro, e percebendo que alguma coisa grave havia acontecido, intrometi-me perguntando:
– Que aconteceu, pai?
– Sua mãe – disse ele – está tentando me matar há muito tempo, e hoje, quase conseguiu.

A TEORIA E A PRÁTICA
Por alguns anos, talvez tenha sido eu o maior caçador dos inhambus deste país. Antes e durante o triste apogeu dessa dependência, representei um papel marcante na rarefação dessas aves brasileiras. Anos mais tarde – como o toque divino à Saulo de Tarso – reconheci também minhas façanhas deprimentes e comecei a agir inversamente, criando, tentando entendê-los e repovoando as matas devastadas. Resolvi, então, já que os anos restantes, pelo saldo médio de vida não me permitiriam repor os desfalques que provocara, estudá-los profundamente, a fim de deixar para a posteridade os conhecimentos necessários à sua reprodução rápida, eficaz e compensadora e, também, a consciência de que matar os bichinhos não era próprio de um ser racional.
Comecei a ler muito sobre as causas dos desajustes ecológicos, a perceber a nefasta ação dos pesticidas como agentes neutralizadores de ação imediata das pragas e a entender e avalizar as teses que pareciam irrefutáveis no quesito desatenuante dos malefícios posteriores. Se na concorrência interespecífica, certos insetos proliferavam, desequilibrando todo ecossistema, assim também, o combate a eles deveria ser efetuado de maneira biológica, evitando assim a ação prolongada de inseticidas, que sempre trazem ao consumidor, mesmo indireto, efeitos colaterais desastrosos. Assim sendo, os gafanhotos deveriam ser combatidos com seus inimigos naturais: lagartos, perdizes etc.) e não com DDT, HCB…. Os ratos, com os gatos; as piranhas com os jacarés e assim sucessivamente, evitando assim o efeito cumulativo dos produtos químicos não degradáveis ou degradáveis a longo prazo.
Desta lição, surgiu-me a ideia de criar gatos, com a finalidade de conter os gastos excessivos com amendoim e ração balanceada, consumidos pelos milhares de camundongos e ratos que disputavam a mesa farta do meu “Minizoo”.
Primeiro foi a Mima, que logo enamorou-se de um bichano vadio e nos presenteou seis famintos felininhos, dispostos a refrear o crescimento vertiginoso dos roedores. Não obstante, consegui o Carvão, gato preto e malandro, que andava de olhos compridos mais nos meus inhambus do que propriamente nos ratos. Passava o dia dormindo sobre as mesas e até partilhava do berço de minha filha Kizy que, diga-se de passagem, nutria por ele verdadeira admiração.
Em setembro de 1981, eis que nascem na chocadeira dois filhotes de guaçu, um de jaó da mata e um de chororão.
Como soubesse pouco sobre os jaós, eu cuidava dos tenros seres com um desvelo mencionável. Várias vezes por dia eu entrava no meu escritório (talvez não se devesse classificar assim, um cômodo cheio de livros, chocadeira, artifícios de apanha e peças diversas) e os admirava, presenteando-lhes larvas de tenebrionídeos, minhocas, baratinhas, moscas e grilos.
Numa dessas, sem que eu percebesse, o Carvão entrou comigo e não saiu. Horas mais tarde, voltava eu da cidade e incontinenti acorri ao berçário. Abri o escritório e fiquei surpreso com o silêncio tumular que reinava, entrecortado apenas com o ronronar monótono de alguma coisa ao lado.
Virei a cabeça e vi, em cima da escrivaninha, barriga prenhe, todo mole e sonolento como uma sucuri, o Carvão, que dormia o sono dos saciados. Não era preciso ser muito inteligente para deduzir o que ali havia se passado em minha ausência.
Olhei pensativamente meus livros de ecologia, recordei as lições e, a passos vagarosos, tomei o Carvão nas mãos e fui até à varanda. O infeliz estava tão cheio que se negava até a abrir os olhos. Coloquei-o ainda todo mole no chão e sem que pudesse conter-me, o cérebro enviou ordens incontroláveis à perna, que se elevou às nádegas e desceu fulminante no traseiro do bichano, levando-o a vários metros de distância. Ato contínuo, apanhei a chave do carro e voltei à cidade, retornando com uma verdadeira carga de raticidas, implodindo, irrecuperavelmente, o castelo de convicções ecológicas, edificado durante anos por meio de estudos meticulosos.
Como dizia meu velho pai: “Toda filosofia é válida quando não nos atinge maleficamente ou vem de encontro aos nossos interesses pessoais.”

E ACHOU UM JUMENTINHO, E MONTOU EM CIMA DELE…
Em 1974 já vivíamos agrupados – aliás, nossa família sempre primou pelo confinamento, sendo um pelo outro desde o início, há mais de 60 anos. Trabalhávamos com caminhões que abasteciam as indústrias madeireiras do Espírito Santo com matéria prima vinda, principalmente, da Bahia.
O sul da Bahia sempre foi detentor de um nível pluviométrico invejável, mormente nas adjacências de ltamaraju. Com a rarefação das florestas capixabas, automaticamente fomos compelidos a procurar os estados vizinhos, e o mais próximo e propício era a Bahia, com uma legislação florestal frouxa e uma BR 010 recém-inaugurada.
Os caminhões saíam de Linhares rumo à Bahia e de lá só retornavam carregados. Quando as chuvas apertavam era um Deus nos acuda, com meus irmãos, cunhados e sobrinhos sofrendo o que muito cachorro sem dono não sofre. Foi numa dessas caminhadas, que o cunhado Vicente entreviu, permeio aos capoeirões de uma fazenda, um pretenso pequi-vinagreiro, árvore até então desprezada pela luxuriante presença de concorrentes mais bem aceitos.
Na especulação de encontrar o dono, Vicente descobre – e isto nunca foi novidade – que o tronco desnudo e queimado era de um paraju oco e totalmente brocado. Mas, Vicente não o seria se deixasse que a conversa terminasse ali. Tanto falou, perguntou, respondeu e argumentou, que acabou sabendo que nas proximidades da vila de Nova-Alegria, próximo da cidade de ltamaraju 53 km, havia um fazendeiro chamado Tió, possuidor de uma área muito rica em madeira.
Que Deus me poupe de outro Tió que possua rica mata de jequitibás, vinháticos e cedros em qualquer outra parte do mundo!
Uma semana depois, o barulhento motor roubava o silêncio da madrugada – era eu que saía bem cedo para o meu destino. Cheguei a ltamaraju às sete horas. Até ali fora uma viagem de turismo, realizada com um Passat bom e no asfalto. Depois penetrei numa estrada de chão, deixando para trás um rastro inconfundível de poeira. O que havia de pontes quebradas, buracos ou fojos, costeletas, poeira e imprevistos era digno dos obstáculos para alcançar uma distinção honrosa no livro Guines sobre enduros.
Às onze horas deslumbrei uma ruela miserável, acercada de casebres e repleta de porcos, jumentos e caboclos desocupados. Retirei o papelzinho do bolso: “… procurar o senhor Cesário, dono da pensão.”
Era um homem de estatura baixa, rechonchudo, cabelo quase encarapinhado, tez abacinada pelo sol (apesar de pouco, sempre abrasador), notadamente prestativo. Já estava com as montarias e cicerone prontos.
Como bom caboclo baiano, esticou o beiço inferior dando o parecer da distância que teríamos de percorrer: “Logo ali!”
Dois ovos malpassados, uma costelinha de porco frita, uma Mirinda mal gelada, boné na cabeça, uma olhada pelos derredores e o “vamos lá” característico. No fundo do quintal, duas montarias – um arisco potro fogoso, de aspecto arredio, e um velho jegue, cansado da vida e mal se importando que o mundo acabasse.
– O senhor vai no jumento – ordenou o senhor Cesário. É um animal manso e pacato.
Lembro que quis argumentar, principalmente devido a discrepância, mas o velho Cesário parecia predisposto a “fazer cumprir as Sagradas Escrituras”.
Para minha maior desdita, a pensão ficava no início da vila e a mesma só possuía uma rua de quase dois quilômetros, acercada de casebres apinhados pelos flancos. Quando consegui ficar em cima daquela coisa, percebi que, ou encolhia as pernas ou elas se arrastariam pelo chão. O jegue deu uma olhadela de banda e, se não deduzi mal, um dia lhe pedirei explicações pela insinuação.
Meu cicerone arrancou do quintal com a mula e o jegue nem ergueu as orelhas para detectar o barulho. Para morrer, bastava deitar – pensei.
Quando penetrei na rua foi que me dei conta do ridículo. Como que combinados, todos os moradores da vila acotovelaram-se nos portais, para que a reprodução da entrada triunfante de Jesus em Jerusalém não deixasse muito a desejar. De imediato, lembrei-me do Evangelho: “Eis aqui o teu rei que vem montado sobre o asninho, filho da jumenta”.
Um sapatão surrado, uma calça jeans desbotada, uma camisa de mangas compridas arregaçadas, um boné importado que havia ganho de presente do senhor Ambrósio… lá ia eu desolado, olhar fixo na estrada. Sabia que em cada janela, pelo menos três pares de olhos perscrutavam, atônitos, aquela excêntrica figura de um italiano perdido. Um rubor intenso queimava-me a face, enquanto aquela famosa dor insuportável do lado ameaçava meu conforto… se é que ainda havia algum.
Ainda que explodisse atrás do jegue a bomba de Hiroshima, ele não modificaria seu estado fleumático. Fiz tudo que um cavaleiro normal faz para convencê-lo a andar mais depressa; até rezei, mas o desgraçado do asninho lá ia, passo após passo, parecendo deleitar-se com a ridicularização que me impunha.
Felizmente, depois de uma “eternidade” de caminhada, notei que as casas rareavam. Como numa solução perfeita, as casas terminaram no exato momento em que a dor do lado atingiu o clímax, obrigando-me a saltar ou cair, não me lembro bem. O cicerone parou:
– Que houve?
– Não aguento mais.
– Mas nem começamos!
– Pra você – respondi laconicamente. Vou largar este bicho, aqui mesmo. Já conseguiu ridicularizar-me, depilou minhas pernas, massacrou minha privacidade e deve ter despendurado tudo o que penduraram dentro de mim.
– Mas é longe, como iremos fazer?
– Irei a pé!
– A pé?
– A pé.
O primeiro baiano desocupado que passou levou o jegue maldito de volta. Não sei por que (talvez por gostar de desenhos animados com equinos e asininos), mas tive quase certeza de que o miserável do jumento deu uma olhadinha de soslaio e, pasmem, riu.
Eu jogava futebol todos os domingos e não me abstinha de ginásticas diárias. Mas, 24 quilômetros subindo e descendo, escorregando, tropeçando, saltando sobre raízes e passando sede e fome foram bastante para deixar-me duas semanas acamado. Quando retornei à vila, minhas pernas tremiam tanto, que mal dei atenção à professorinha que tudo fazia para conseguir uma carona para qualquer lugar. Meus pensamentos iam além da obscenidade, fixos que estavam em uma maneira dolorosa de matar o meu cunhado linguarudo.
Naquela noite tive de pernoitar em Teixeira de Freitas, pois meus músculos estavam arredios às ordens cerebrais: eu não conseguia acelerar nem frear o carro. No outro dia, acordei desolado. Não conseguia caminhar direito nem admitir a irresponsabilidade da Natureza em oferecer – ainda que aos mais intrépidos idiotas – um lugar desgraçado daquele. Os músculos da coxa estavam em tal estado, que qualquer rinoceronte não negaria responsabilizar-se pelo atropelamento.
Devagarzinho alcancei minha cidade. Foi muito bom quando a vi, pois, por momentos, lá pelas montanhas, achei que seria impossível revê-la.
A primeira cara que vi, ao estacionar, não podia, por capricho do destino, ser de outra pessoa, senão a do Vicente. Sorrindo cinicamente, disparou:
– Que tal o MATÃO, cunhadinho?
Cinco anos depois marquei uma reunião extraordinária. Nela, meus irmãos, cunhados, sócios enfim, teriam de escolher: ou parávamos a extração de madeira no Tió ou ali mesmo seria dissolvida a sociedade.
Hoje continuamos lutando juntos, mas de quando em vez me ocorre a dúvida, pois não estou bem certo de ter levado a melhor sobre o meu cunhado, que teve de participar de toda a extração vegetal daqueles abismos. Ele me goza, dizendo que aquela olhada do jegue foi maliciosa e que inclusive riu do trouxa aqui. Eu me lembro feliz dos 12 km a pé que ele deu da fazenda do Tió até Nova-Alegria, ora por chuvas, ora por bengalas ou semieixos partidos nos morros. Na discussão, sempre acordamos num doloroso empate.
Foram anos dessa pega para capar, e hoje, do primeiro ao último, todos fazem menção de vomitar diante da possibilidade de retornar àquelas plagas para trabalhar.
Lugarzinho desgraçado – tanto quando o dono – pode acreditar!

O VELHO SAMARITANO E SUAS “NOT DE CAN”
Parecerá conto bíblico, mas na verdade, entre o velho e o bom samaritano existiam diferenças fundamentais, embora a história não relate pormenores do dia-a-dia do protagonista bíblico.
Samaritano era um velho aparentemente raquítico, mas de uma coragem por todos invejada. Para ele a vida nunca tivera segredos, resumindo-se numa realidade sem sonhos ou ilusão.
Tão logo soube que na Amazônia havia campo e espaço para quem quisesse progredir na vida, vendeu o que tinha no Espírito Santo, arrumou os trapos e partiu para Marabá, no Pará.
Naquele tempo, o trajeto de Linhares a Marabá desfazia-se em uma semana de sofrimentos, rejeitado pelo mais ferrenho seguidor de Sacher Masoch. A lei do vale-tudo imperava, com cada passageiro usando de seus ingênuos direitos de se fazer acompanhar pelo baié de engorda, o gatinho ou vira-lata de estimação. Aquela clientela heterogênea e sofrida já pouco se importava com a própria vida, quanto mais com esses insignificantes transtornos.
A Transamazônica – considerada por muitos como o maior crime ecológico do século – estava ali, penetrando na selva e exigindo, apenas, milhares de vidas em troca de sua devastação: sonhos desfeitos de iludidos pioneiros que ingressaram pela “vereda da morte” em busca de melhores dias. Era a lei do vale-tudo usada ao pé da letra, sem jamais ter sido escrita.
Aos frangalhos, o velho ônibus ia caminhando quilômetro após quilômetro, com a lataria fazendo um barulho infernal. A poeira avermelhada e colante grudava na pele transudada, originando, no abraço imundo, um odor próprio dos velhos bodes cearenses depois de um longo período de estiagem. Ali, porém, pituitária alguma diferençava cheiro de catinga de qualquer cosmético.
No km 20, após o Estreito, alguém gritou:
– Para! Ficou um passageiro para trás.
Desembreando a geringonça, o motorista deixou que os atritos o parassem, já que freio mesmo existia muito pouco. A pisada no pedal era apenas para não espantar os passageiros que, afinal, pouco estavam se importando. Não existia medo em qualquer semblante. Viver daquele jeito ou morrer, pouca diferença fazia.
O passageiro reclamado era um semimorto pela maleita. Arrastara-se até ali e por pouco não era deixado para trás. Foi deitado no corredor, e a cada baque anuviava-se no poeirão que se elevava do fundo.
Um pouco mais e um fato comum: uma capivara esbarra no barranco e titubeia quanto à direção a tomar. O ônibus é jogado em cima. Ela esquiva-se, deixando o veículo em apuros. O motorista saca o 38 e dispara pela janela com o carro em movimento.
– Cuidado! – gritou alguém lá de trás.
Era tarde, o ônibus bateu no barranco. O franco atirador salta da cadeira com a “máquina” engatilhada e sai em perseguição ao roedor. Os passageiros aplaudem e vibram, mas não o bastante para fazê-lo alvejar a caça. Uns atestavam a pontaria do motorista, enquanto uma corrente dissidente negava ao mesmo, até as noções elementares de tiro ao alvo.
Para-lamas reposto a marretadas, empurra de lá e de cá, veículo na pista, viagem em frente. Logo abaixo, à esquerda, o Tocantins serpenteava o panorama na sua resoluta caminhada para o mar. Era visto de quando em vez pela coincidência das criminosas derrubadas que se sucediam até suas margens, graças ao estúpido plano do governo de promover, ali, a tal reforma agrária. Era impossível uma soneca, já que em cada hora um novo acontecimento inesperado sobressaltava a todos. E assim, o velho Samaritano chegou a Marabá, uma cidade encravada nas margens do Tocantins e foz do Itacaiunas.
Suja, abandonada, desorganizada, quente e inóspita. Como Área de Segurança Nacional, pagava o preço de possuir um prefeito nomeado, cuja primordial preocupação eram as orgias e concupiscências. Mas, ali estava o futuro, a chance de uma reviravolta e, com ela, o único meio de enriquecimento honesto, crescendo junto com o lugar. Ali o Samaritano ficou com a esposa e três filhos.
Maleita, febres diversas e necessidades mil premiaram os primeiros anos do velho renitente. Enfim, descobriu a terra procurada: um pedaço qualquer abandonado desse “continente” chamado Amazônia.
Trinta quilômetros de Jeep, 40 a pé e, enfim, o rio. Alugou a canoa do Carretel (depois fiquei sabendo que era comum assim chamarem toda pessoa enrolada) e partiu. Das 8 às 10h o motor cortou o silêncio da natureza curiosa, fim do qual rateou e parou. Com o auxílio de remos aportaram nas encostas de várias pedras, num barranco do rio. O lugar, por não ter sido escolhido, era pitoresco e acolhedor.
– É trabalho para muitas horas – disse o Carretel. Teremos de passar a noite aqui.
Calmamente foram retirando as farofas dos picuás, esticando as pernas adormecidas e procurando um lugar propício para armarem as redes. Muriçocas mil faziam a seresta infernal: prelúdio de mais uma noite perdida. Porém, o cansaço fora maior, e quando a noite caiu, apenas algum ronco mais desafinado cortava o som uniforme da água caindo e escorrendo entre as pedras.
Às 22h, depois de estrondosos relâmpagos e trovões, a Natureza protestou com todo vigor, argumentando com violento temporal. Abrigo não existia. O velho Samaritano desatou a velha e suada rede, enrolou-a, sentou-se em cima, meteu a cabeça entre as pernas abraçadas e tentou não pensar em nada. De hora em hora mexia-se para levantar as pernas, dando chance para que as águas das botas escorressem. Era a primeira “not de can”, (noite de cachorro), como bem frisou ele.
Às nove horas o motor roncou novamente, funcionando a contento o resto do dia. À noite, novo temporal e a segunda “not de can’. A preocupação maior sempre era com o canoeiro, que perdendo totalmente as noites, bem podia arremessar a canoa contra uma pedra e deixar tudo e todos em dificuldades ainda piores.
No dia seguinte o motor “deu prego” mais cedo do que costumava, e assim sendo, resolveram dispensar o Carretel e enfrentar o resto da caminhada a pé mesmo. Quando a noite desceu, recostaram em sapopembas. Pelo menos poupariam o trabalho de armar e desarmar as redes. E realmente acertaram, pois mais cedo do que nos outros dias, a chuva desabou furiosa. Na primeira hora tudo parecera bem, contudo não puderam pensar da mesma maneira nos momentos que se seguiram. Os respingos paulatinamente os encharcaram, completando assim, a terceira “not de can”. Pela manhã estavam mais lívidos e enrugados que botina velha ao relento.
Pé na estrada.
Os porcões espavoridos rangiam os dentes ameaçadores, os jacus pareciam dar risadas medonhas, enquanto, pela noite, corujas mil protestavam tetricamente. Era um quadro atemorizador para qualquer cristão normal, menos para o velho Samaritano. Mal escurecia, os sapos dos gravatás davam verdadeiros gritos, omitindo o cricrilar estridente dos grilos. Nada mais ali existia que uma flora exuberante, habitada por milhares de animais em completo equilíbrio. Contudo, a bandeira dos transtornos e da desarmonia acabava de ser hasteada.
– Aqui começa a sua terra, senhor Samaritano!
– Tudo bem – retrucou o velho. Vou marcar aqui esta tatajuba, pois nela iniciarei a linha demarcatória.
– Faça-o, respondeu o grileiro.
Afinal, estava apenas cobrando o trabalho de levar o velho até o início das terras de ninguém, terras ainda devolutas.
A volta, até à estrada, não foi menos penosa, mas, enfim se desfez. Na orla, o velho sentou-se abatido, imaginando 70 km penosos na canela. Torceu a camiseta, tomou um gole de água fresca e quietou-se por instantes. Espreguiçou-se, a seguir retomou a tralha, ergueu a cabeça e partiu.
O dia já ia além da metade e por isso mesmo pouco progrediram, dormindo sete quilômetros após. Era a primeira noite que não chovia, mas quis o destino que também aquele bem-estar lhe fosse subtraído com o aparecimento de um velho Jeep de caçadores que brotara do inferno, segundo o velho. Não podia ter vindo de outro lugar. Nele havia seis pessoas entre dezenas de coisas desajeitadas. O motorista reconheceu o velho maluco:
– Que diabo faz aqui, velho doido?
– Já não sou mais doido, pode acreditar. Acabo de voltar à lucidez!
– Vamos embora, suba aí atrás.
– Não posso deixar meu companheiro sozinho.
– Subam os dois.
Em cima da carroceria sem capota, seis pessoas. Na boleia, três. O carro estava já sem reais condições, mas, o pior mesmo foi conseguir uma brecha naquele caixotinho promíscuo para mais duas pessoas.
Meu companheiro, depois de muitas tentativas, conseguiu ocupar o lugar de um capelão abatido, acunhando-se desconfortavelmente ali. No grito do “vamos embora”, meti um pé dentro da carroceria; a bunda, em cima da quina da tampa traseira e já que não havia estribos, o outro pé ficou dependurado mesmo.
Depois de umas dez aceleradas, a geringonça partiu e já no primeiro solavanco senti que o castigo que faltava havia chegado: de fato, aquela coisa não aparecera por acaso.
Os caçadores – do cozinheiro ao motorista – estavam bêbados. A irresponsabilidade e loucura que se via era de deixar aturdidos até mesmo os irracionais da beira do caminho. Em cada botequim, uma garrafa de Pitu ou 51 e, na ausência dessas, qualquer coisa que mantivesse o clímax em que se encontravam. Imiscuído naquele bando de maníacos, o velho Samaritano, que nunca fora homem de medo, tremera na base. Chegou mesmo a pensar na mulher e filhos e sentir uma saudadezinha da terra natal e dos entes amigos: clarividência normal dos que anteveem o fim.
Lá pelas tantas, já não era possível, sequer, saltar do carro, tal o estado em que seus músculos se encontravam. E assim, no uso de um tempo talvez superior ao que gastaria a pé, algumas luzes atestaram a proximidade de Marabá. Mais alguns solavancos e estaria no cume do calvário, pronto para ser imolado. Como uma peça rebitada, seus dedos já não obedeciam ao comando cerebral: estavam cravados na fresta da tampa traseira e só saíram sob pressão. As laterais internas da magra coxa estavam em carne viva e o ponto extremo da vértebra, pelo qual a lata não podia passar, o chamado “ossinho da alegria”, completamente danificado.
Quando o Jeep parou, como podiam, todos foram saltando. O velho Samaritano permaneceu incrustado na lataria.
– Quando me tiraram, não consegui ficar de pé. Deitaram-me no chão e só depois de algum tempo entenderam que teriam de me levar para casa, onde passaria duas semanas com febre e mais arrebentado do que arroz de terceira.
– É seu moço, eu ainda fui um daqueles que tiveram sorte nesta desgraça, porque ainda estou vivo!

O SONHO DO MEU VELHO
Como todo ser humano, também meu pai teve seus dias negros na vida. Já tive oportunidade de falar da verdadeira loucura que mantinha pelos inhambus, embora o fizesse puramente por esporte. Andava a maior parte dos seus dias maquinando planos para melhorar o habitat de seus macucos, fazendo e desfazendo seus viveiros. Agora, por exemplo, resolvera trocar a tela por ripas de madeira e construir um tanque com trinta centímetros de profundidade, para que os inhambus tomassem banho. E se teve defeitos que carregou para o túmulo, um foi o de querer realizar tudo de uma vez e no mesmo dia; o outro foi de ser o de me dar como herdeiro principal de suas manias.
Acordou de manhã com essas ideias e logo tratou de pô-las em prática, arrebanhando seus netos para irem ao Catelan – dono da única serraria da vila – apanhar as madeiras necessárias. Também para mim sobrou, pois tive que ajudá-lo na construção do tanque de cimento.
Primeiro fizemos o esqueleto do viveiro conjugado, e antes de pregarmos as ripas, resolvemos fazer o tanque. Os baldrames superiores ficavam a poucos centímetros da cabeça, dando apenas para uma pessoa normal andar sem esbarrar. Pois bem, estando o tanque pronto e o cimento ainda mole, resolveu meu pai atravessar para o outro lado sem dar a volta e, para isto armou-se todo no afã do pulo. Meu pai estava com 60 anos, mas apenas ralos fiapos de “algodão” atestavam a presença, no passado, de algum cabelo. Tinha uma testa grande que, sem os cabelos, parecia ainda maior. Preparou o salto e arremessou-se, esquecendo dos baldrames que, para maior azar seu, haviam sido serrados com quinas vivas. A testada foi inevitável, a queda desastrosa, o baque, surdo, o tanque destruído: meu pai, completamente tonto, tentando agarrar-se a qualquer coisa, danificou por completo o tanque que ainda estava com o cimento mole.
Depois do tradicional copo d’água com açúcar, pudemos constatar a “verdadeira valeta” deixada na testa. Realmente, meu velho era um cabeça dura, senão, o crânio não teria resistido.
Alguns minutos de descanso, os comentários de praxe, uma canequinha de café e de volta ao trabalho. Refazíamos o tanque, enquanto a meninada continuava trazendo as madeiras lá do Catelan. Aí aconteceu o pior.
Nosso quintal possuía 40 metros de fundos e apresentava um corredor sinuoso para se chegar lá. Havia uma curva mais fechada, ocasionada pelo canto do paiol de milho, em que se teria de passar para ir ao viveiro. Não mudando seu eterno costume de andar cabisbaixo, meu pai vinha do viveiro para casa. Sendo sempre o mesmo, andando sem olhar a direção, meu sobrinho Jadilson (Zeca), vinha com um ripão de paraju, da serraria para o viveiro. Joelson (Cancão) vinha logo atrás e, na passagem pela nossa casa, exatamente pela janela da cozinha, viu que minha mãe fritava bolinhos de banana para o café. O cheiro chegou às narinas aguçadas dos meus famintos sobrinhos. Jadilson virou-se rapidamente para constatar. Joelson, vendo-se ameaçado, apressou-se ameaçador. Afinal, os bolinhos podiam estar contados. Pressa de um, correria do outro. Lugar da ultrapassem: curva do paiol.
Meu pai vinha voltando do viveiro para seu encontro fatal, cabisbaixo, quiçá, inconscientemente, atraído também pelo cheiro dos bolinhos, só captado por sua pituitária não menos aguçada. Adorava, por assim dizer, os bolinhos da Mariola, donde retirava migalhas úmidas do miolo para distrair-se fazendo bolotinhas com os dedos.
Exatamente na curva, com maior precisão do que o acoplamento de naves espaciais, a ponta do ripão do Jadilson encontrou a testa já ferida do meu pai. Um baque seco, acompanhado de uma queda nocauteante, atestou que a única maneira de meu pai chegar vivo à tarde, seria enclausurar-se num carro blindado.
A segunda dose de água doce, um pano frio como compressa, um pouquinho de café quentinho, uma cadeira para o descanso inicial e, pronto: tudo (menos a testa do meu velho) voltou ao normal. Mais tarde, já descansando na cama, desabafou:
– Continuo sendo o maior estúpido do mundo, pois tinha sido avisado em sonho que o Jadilson tentaria me matar e, mesmo assim fui chamá-lo, dando-lhe toda chance de que precisava!

MISTURADO AINDA É PIOR!
Aos 13 anos, lembro bem, num mês de julho de 1952, meu mano mais velho levou-me, pela primeira vez, para uma caçada de macucos num lugar denominado Rancho Alto, no município de Linhares, no estado do Espírito Santo. Recordo que o mano me posicionara na vanguarda, ficando sobre um poleiro mais atrás. O galináceo não chegaria nele sem passar por mim. Foi meu primeiro macuco e tal o nervosismo que a ave não conseguiu sequer expirar dignamente. Saí gritando pela mata em direção ao mano: Matei! Eu matei um macuco! Olha aqui, eu matei!…
Para que eu encontrasse o mano, foi preciso que ele – contrariando o princípio básico e elementar da cinegética – chamasse-me em voz alta, em pleno silêncio sacrossanto das selvas. É…., o silêncio das selvas, como dizia o Dr. Pedro Boninsenha, deixa a gente envergonhado de falar ao se comunicar em voz alta!
Desse dia em diante, qual felino que consegue sua primeira presa, fiquei amalucado por caçadas, fazendo isto durante 21 anos consecutivos e quase sempre em companhia do mano. Com ele aprendi toda arte de atrair, localizar e abater um galináceo.
Em 1973, quando abandonei as caçadas em consideração ao auxílio ecológico, iminentemente necessário, poderia afirmar que era alguém que conhecia profundamente as manias da maioria dos inhambus brasileiros.
As caçadas foram abandonadas, mas não o entusiasmo e a atratividade pela Natureza. Construí um viveiro que funcionou durante três anos como entretenimento, apresentando mais de 300 inhambus de todo o Brasil. Todos os anos eu partia para algum estado brasileiro à cata de novas espécies. A luta era grande, mas a renitência, maior. E no exato momento em que eu abandonava as caçadas, o mano o fazia também, enredando pelos mesmos caminhos de proteção à fauna danificada pelos desmatamentos desenfreados e pelas caçadas.
Bolamos uma sofisticada rede de apanha – cognominada pelo naturalista Werner C. A. Bokerman, da seção de aves do Parque Zoológico de São Paulo – de EQUIPO FREGONA. Passei a preocupar-me com o cunho científico do problema. E o mano, sempre por perto, dando apoio e lições.
Um dia, preocupado em obter uma fêmea de jaó do litoral, o mano e eu fomos a uma faixa de matas próxima à Reserva Biológica Sooretama – um dos poucos lugares em que existia a ave. O lugar era muito vigiado, pois devido à proximidade da Reserva, os agentes florestais viviam fazendo continuadas rondas, além de terem, ali bem perto, a sede em que viviam.
Saímos de Linhares às duas horas e, quando desligamos o carro, ainda era noite escura. Distanciei-me alguns metros do mano, pois já não portava condições de responder por mim, depois das extravagâncias do dia anterior com o excesso de vitaminas de abacate com leite e sobremesa de mamão. Ali esperamos o dia amanhecer, emitindo piados de jaó e já obtendo resposta ao longe de um macho afoito. Retomamos nosso alforje e com o auxílio de lanternas fomos progredindo selva adentro, indo nos localizar a menos de 50 metros da ave. Escolhemos, logo ao amanhecer, um lugar adequado e iniciamos as armadilhas, na esperança de que o macho estivesse devidamente acompanhado de seu costumeiro harém.
Uma hora depois estava tudo como manda o figurino: choça espaçosa e quase que hermeticamente fechada, alto-falantes posicionados lateralmente, redes de apanha armadas e bem camufladas. Tudo estava em ordem. E assim entramos em nossa improvisada “tulha”, ajeitamo-nos comodamente e iniciamos o chamamento.
Minha barriga – não apresentando reações diferentes das que sempre apresentou quando misturo mamão, leite e abacate – continuava impossível e revoltada. Os intestinos em rebuliço – uma ameaça constante que estava roubando-me todo sossego, mesmo porque conhecia a verdadeira aversão do mano por odores espalhados por tais ventosidades. Muitas vezes, em ocasiões diferentes, até desejaria tal indisposição, só para curtir os protestos de meus sobrinhos. Desta feita, porém, era diferente: o mano viera para ajudar-me, havia, inclusive, perdido um dia de trabalho. Eu não podia decepcioná-lo. Enquanto pude fui me contorcendo, arrumando-me, ajeitando os gases. Depois de algumas horas, já estava com a barriga mais tensa que um baiacu zangado. E o desgraçado do jaó não aparecia para folgar-me.
Um suor frio começou a brotar-me da fronte, e então, no desespero da insegurança, tive uma ideia que me pareceu, em princípio, muito criativa. Lembrei que trazia comigo um repelente spray da Raid, de odor horrível, e embora não houvesse muitos mosquitos, bem justificaria a aplicação. Retirei a lata do alforje, preparei-me para o desafogo e ato contínuo iniciei a pulverização, aliás, as duas pulverizações.
O mano permanecia imóvel, com seu pio na mão esquerda, os olhos pela abertura da choça, pernas cruzadas. O ar ficou infestado de um odor jamais catalogado. Foram muitos minutos necessários para que a poluição do ar se desfizesse. Quietei-me mais tranquilo e não tive o mínimo escrúpulo em repetir a dose, na primeira reviravolta dos intestinos.
Novamente o ar ficou irrespirável – e no exato momento em já me sentia um gênio por encontrar saída tão inteligente – o imprevisto aconteceu. Movendo-se para frente, o mano enfiou o nariz pela abertura da choça, sem olhar colocou o pio sobre o picuá, deu seu sinal “hummm!”, característico, e disse:
– Não suporto traques, mas misturado ainda é pior!
A choça era bastante escura, mas não o bastante para esconder o enrubescimento de meu rosto.

QUANDO SE AGRADECE À PRÓPRIA LAVAGEM DOS PORCOS
Nossa fazenda – como chamávamos nosso pequeno sítio de 18 alqueires situado no distrito de Marilândia, próximo da sede do município cinco quilômetros – continha, naquela época, seis casas. Em três delas moravam meeiros de café, e nas outras, meu pai, meu cunhado Arlindo e meu irmão Dolmino, respectivamente. Arlindo era casado com Elda, a primogênita das mulheres e a segunda da família. O coração de minha irmã, se medido em bondade, teria o tamanho de um transatlântico. Reconhecendo a gula própria de todo adolescente normal, fazia vistas grossas para os derivados do leite que sumiam. Também não recriminava suas galinhas poedeiras, por entrarem em recesso toda vez que eu ia visitá-la. Posso inclusive garantir que gemada e leite não tornam nenhum homem anormal, nem extraordinário, pois do contrário, eu seria um gênio ou uma aberração. Compotas e cocadas, também não têm nenhuma influência, pois realmente não perdiam muito pelos primeiros em consumo clandestino.
Sempre que dava falta das cocadas ou outra guloseima qualquer, assim como quando encontrava o mais fresco e resguardado requeijão com tremendo achaque de dois incisivos cortantes, argumentava:
– Um dia pego este rato que anda mexendo aqui na dispensa!
Sempre que eu ouvia isto, na minha santa e pura ingenuidade, sentia-me um gênio por burlar a vigilância da mana sem que ela desconfiasse. Às vezes ficava atônito por perceber que a mana não mudava de esconderijo, favorecendo assim o ataque “dos ratos”.
Lembro bem! Eu chegava, sentava-me perto da porta da despensa, cabeça entre as pernas, ouvidos atentos…. Quando a mana saía para lavar os pratos ou para qualquer afazer à distância, então eu atacava rapidamente. Um dia, porém, ao chegar lá, notei silêncio tumular. Astuciosamente chamei:
– Elda? EIda?
Nada. O silêncio continuava, e com ele, o despertar ainda mais violento de minha gula.
– Elda?, – tornei a chamar e, desta vez, com intensidade bastante para ser ouvido a algumas dezenas de metros.
Silêncio absoluto.
Olhei ao redor…. Tudo calmo e propício. Era bom demais para ser verdade! Penetrei na dispensa com a boca cheia d’água. Nas prateleiras, queijos enfileirados; ao lado, um requeijão ainda quentinho. Abri a lata costumeira: pães amontoados. Como um bracaiá em galinheiro desprotegido, fiquei indeciso, sem saber por onde começar. Foi quando, para confirmar que se Deus é grande o diabo também não é tão pequeno, meus olhos vislumbraram um vidro novinho de Toddy, o produto mais desejado por mim aos 13 anos de vida. Agarrei-o como se agarra qualquer objeto estimado e que estava prestes a escapar. Olhei-o maravilhado, já com o estômago em rebuliço. Naquela despensa eu já podia entrar de olhos vendados, que mesmo assim acharia até mesmo a velha xícara de plástico que era utilizada apenas para retirar o açúcar do saco.
Virei o braço direito para trás e em estilo de enfermeira de cirurgião, passei-me a colher do litro. Destapei o vidro, a colher passou apertada. Mãos trêmulas, enchi a colher com aquele pó seco até extravasar. Sem adivinhar o futuro, esvaziei o pulmão, introduzi a colher na boca e vendo que cabia mais alguma coisa, repeti o ato. Foi aí que minha irmã, brotando não sei de onde, apareceu inopinadamente à porta:
– É bichano, te peguei!
Antes de qualquer raciocínio, o pulmão exigiu o oxigênio que há alguns segundos lhe era negado. No “hãmmm” do susto, deixei a boca seca, e o pulmão repleto do que havia nela. O ar faltou-me e a ânsia da morte invadiu-me. Passei pela “greta” que sobrara entre o portal e as pernas da mana e, quis o destino, que a primeira coisa que meus olhos vissem, fosse uma lata velha cheia de lavagem para porcos, que há dois dias fermentava. Entrei de cabeça, sem outra opção para aquele momento drástico.
Quando retirei a cabeça de dentro da lata e os pedaços de crostas de polenta destaparam meus ouvidos, caindo por terra, senti os tímpanos novamente vibrarem, e o cérebro traduziu aquelas vibrações como sendo a mais gostosa gargalhada de que o mundo tivera notícias.
– A mana não era fácil também, podem crer!

A PONTARIA DO MIMO
Há cinco anos, minha mãe, limpando a varanda muito lisa da casa, escorregou e fraturou a bacia. Dr. Pretri, exímio cirurgião capixaba, devido à difícil calcificação oferecida pela idade, resolveu fazer uma prótese, que funcionou perfeitamente durante três anos. Depois, apareceram problemas, que culminaram com a quase paralisação da perna operada.
Minha mãe, então, passou a locomover-se precariamente com o auxílio de bengalas. Seus dias ficaram monótonos, pois não se dava o luxo de um minuto de sossego antes do acidente.
Tomamos, pois, a iniciativa de amenizar os dias de sofrimento, presenteando-lhe animais, pelos quais tinha verdadeira paixão. Primeiro foi o Cruck, papagaio que logo aprendeu uma dezena de músicas folclóricas. Depois o Frederico, um outro papagaio que, menos inteligente que um helminto, limitou-se à reprodução de sons idiotas, próprios dos psitacídeos selvagens. A seguir, o Fuck, cãozinho de raça, que pelo tamanho e graciosidade, a todos encantava. (O nome Fuck adveio-lhe do péssimo costume de confundir os pés da gente com sua cadelinha). Finalmente, o Mimo, um gato que, se grande, legaria vexatoriamente um segundo lugar ao mais veloz e temido guepardo.
O danado do gato subia em árvores como exímio caxinguelê, atacava, ainda pequeno, ratos enormes e chegou a desequilibrar os biótipos existentes no ecossistema de seus domínios. Lagartos de pequeno porte, calangos, besouros e avoantes andavam perscrutadores pelos derredores do loteamento, pois qualquer distração poderia custar-lhes a vida. Vivia caçando, vasculhando os almoxarifados, os fundos sujos dos quintais e as juquiras adjacentes. Era dócil, manso e simpático para com as pessoas. Todos gostavam dele e viviam disputando sua amizade. Era comum vê-lo andando distraidamente e de chofre saltar sobre qualquer coisa que se movesse, num impulso instintivo de sua aguçada índole felina.
Nini, meu sobrinho destemido, extremamente intempestivo e emocionalmente volúvel, entre os menos acentuados, possuía um costume vexatório. Chegava em casa, tirava a roupa de trabalho, banhava-se, vestia um calção e, distraidamente, ocupava as mãos em lugares escusos. Foram inúteis os primeiros 15 anos de arreliação, embora todos se mantivessem renitentes na tentativa de tirar-lhe o mau-costume.
No dia oito de fevereiro de 1981, o Brasil jogava a primeira partida pelas eliminatórias da Copa do Mundo. O jogo seria transmitido ao vivo, embora, durante toda a semana, os brasileiros tivessem encontrado dificuldades na liberação do horário.
Logo cedo, fizemos a costumeira pelada, inclusive sem acidentados, o que não era comum. Banhamo-nos e cada um tentou relaxar, aproveitando a meia hora que antecedia a partida contra a Venezuela. Já próximo do horário, era dado o veredicto: a ABC e a CBS não cederiam o horário e os brasileiros só veriam o tape, às 22h.
A revolta do mais prestigiado cidadão brasileiro não modificou a decisão das tevês americanas, que se limitaram a dar de ombros. Em sinal de protesto, negamo-nos a ouvir também a transmissão pelo rádio, e assim cada um foi se ocupando com alguma coisa. Houve quem dormisse, quem lesse, quem saísse para passear com a família e quem tomasse um livreto qualquer de contos policiais, vestisse um calção, colocasse a perna sobre a poltrona, ligasse o ventilador e enfiasse a mão em lugar de sua inteira privacidade, sem aperceber-se que, ao lado, o Mimo, também não abria mão de sua sesta.
A leitura tornava-se apreensiva, com o mocinho galanteando e a mocinha fazendo charminho, próprio da feminilidade. Mimo, que quando o Nini chegou ali, já dormia há algum tempo, acabou acordando.
Nini, talvez entusiasmado pela narração do autor do conto em temperar obscenamente o encontro dos jovens, alterou as coçadas, chamando a atenção do Mimo que, como frisei, não podia ver nada se mexendo sem que conferisse com as garras afiadas. O salto foi inevitável, e para azar do meu sobrinho, a pontaria perfeita. E o pior foi que o Mimo, entusiasmado quiçá pela captura de uma enguia, só se apercebeu do equívoco quando um grito de dor ecoou pela casa, acordando a todos.
Meus sobrinhos saíam, todo final de semana, para suas paqueras clandestinas…. Nos dois sábados que se seguiram, Nini se disse indisposto e ficou em casa.

UM COTOVELO INDESEJADO
A distração dos imigrantes italianos mais idosos era dividida entre caçadas de pacas e veados, “moretinas”, canções folclóricas e, principalmente, jogo de bolas de pau (bocha). Os fins de semana na vila de Marilândia eram minados de ítalo-brasileiros, que se agrupavam para matar a saudade peninsular mantendo as tradições da velha Itália.
Perto de nossa casa morava um caboclo que, além de uma porta de vendas, possuía um campo de bocha. Todas as noites, e principalmente nos fins de semana, os velhos imigrantes reuniam-se ali para jogar, contar histórias e beber vinho. A algazarra psitacídea, própria daqueles que se deleitam em ouvir o próprio eco, não era fácil.
Meu velho pai, já com seus 60 anos, era assíduo frequentador daquele local. Se na passagem de nossa casa até a cabana do Lucindo fosse armado um mundéu, ele não passaria, havendo jogo lá, ileso por mais de duas horas.
Um dia, vinha eu do campo de futebol, e já longe do local ouvi a matraqueada. Eram gargalhadas, altos protestos, observações maliciosas e todas as demais coisas que se passam quando um grupo deseducado se excede sobremaneira na dosagem do vinho de laranja.
Disputavam-se frangos assados, vinhos, assados de porco e até mesmo dinheiro. Ali havia representantes de todas as freguesias adjacentes, como Santo Hilário, Alto da Liberdade, Limoeiro, Seis Horas, Córrego do Veado, São Pedro de Marilândia, São Rafael, Távora, Bananal etc. Seria capaz de jurar que não encontraria meu velho em casa, e fiquei deveras surpreso ao percebê-lo numa cadeira, na varanda dos fundos. Enquanto descalçava as chuteiras, observei:
– Que houve, Tunico, não entrou na disputa?
– Não. Estou com um desgraçado de um tumor aqui na costela que está me maltratando como os diabos.
– Bobagem, pai, a dor é uma reação psíquica controlável. Vai lá e nem lembrará do tumor!
– Isto é filosofia de quem está bom, mas AFINAL… (este afinal, com o L bem acentuado, era uma aceitação quase sempre sob protesto).
O velho jamais acreditou no que lhe dissessem sem comprovação. Mas, como a vontade de ir era muito grande, abriu uma exceção.
Contíguo à nossa casa, morava o Agenor Gava. Homem disposto, brincalhão e que se tornara muito indesejado pelo cacoete de conversar dando cotoveladas no interlocutor, a cada frase que dizia.
Meu pai detestava isso e sempre o evitava para não se aborrecer. Lembro ainda o dia em que o encontrei extremamente irritado:
– Quel sacramento – dizia ele em seu italiano mutilado –, me roxeou o braço para narrar a caçada de pacas que fez quando ainda era menino. Que costume desgraçado que pegou. Já não suporto conversar com ele, e parece que sou sempre o preferido. Não pode me ver que vem lá me contar uma história. E conta mexendo mais os braços do que a própria língua.
O jantar, lá em casa, era sempre servido ainda antes de o sol se pôr. Por isso, após o banho, ainda com a toalha no pescoço, estava eu a equilibrar um prato fundo, cheio de polenta com leite, quando percebi que meu velho entrou de dentes cerrados, porta adentro. Veio, sentou-se recurvado para frente, mãos nas costelas, respiração ofegante e dolorida. Deixei o prato sobre a mesa e acorri:
– Que houve pai? Está se sentindo mal? Quer que chame o doutor Joel?
– Não precisa chamar ninguém.
– Mas o que está sentindo, então?
– Ódio, muito ódio.
– Por que, pai?
– O Agenor – disse laconicamente. Tem anos que o conheço e evito, mas bastou-me um segundo de distração e pronto!  E que pontaria!, que pontaria, filho. Acho até que arrancou o carnegão. Uuuuui! Aiiiii!…

A MUDA DE AMOREIRA DO LÚCIO
Certa vez, o mocinho do interior resolveu viajar para o norte brasileiro. Deveria visitar o Pará, o Maranhão e talvez o Amazonas, para avaliar as possibilidades de aquisição de uma área de terras que pudesse assegurar o futuro da família.
No aeroporto, apesar de estar atento a quase tudo, não conseguiu escapar dos vexames destinados aos marinheiros de primeira viagem, perguntando à aeromoça pelo número de sua cadeira ou se embaraçando todo com os cintos de segurança.
Na escala feita em Brasília, foi ao Banco do Brasil retirar determinada importância. Para azar do mocinho, um tal de P. Soares fazia respeitável exposição de pinturas. Nunca entendeu bulhufas de pinturas e quadros, mas tinha de dar uma paradinha para firmar-se como homem viajado e culto. E tal foi seu exame que o autor se acercou, inquirindo:
– Gostou dos quadros?
– Muito – retrucou laconicamente.
– Leva um para ajudar o artista.
– Bem – disse ele meio embaraçado ante a ameaça de envolvimento – poderia até levar este aqui, mas acontece que estou seguindo para Belém e devo demorar por lá. Como percebe, seria inteiramente incômodo carregar um quadro deste tamanho.
– Onde mora? – continuou ele ameaçador.
Não percebendo onde queria chegar, o mocinho retirou da bolsa um cartão e entregou ao pintor.
– Pois bem, se algum dia eu fizer uma exposição no Espírito Santo, irei visitá-lo.
Não temendo a ameaça, o mocinho afirmou que seria um grande prazer e que havia achado o quadro que hoje ocupa quase toda parede lateral de sua casa, uma verdadeira obra de arte.
Todas as vezes que passo pela sala, vejo aquele livro aberto falando-me de sobriedade, de humildade. Aquela lição custou-me praticamente um mês de duras economias, nada mais que isso, já que entre as coisas que pouco curto, a pintura moderna assoma-se. Mesmo assim haveria, quando nada, uma segunda vez.
Em Linhares morava, pelo menos, a maioria de nossos parentes. Um deles, Lúcio, sempre de uma prestimosidade enjoativa, vivia procurando uma oportunidade para isso demonstrar.
Um dia, enquanto eu mostrava meus pássaros a diversos visitantes, o Lúcio veio me visitar. Meu viveiro ficava no fundo do quintal com pouca arborização. Alguém atentou para o problema e aconselhou-me plantar amoreira. Assim, além da sombra, meus passarinhos poderiam comer as frutinhas.
– Amoreira seria ótimo, porém não sei onde conseguir.
Para minha maior desdita, o Lúcio estava presente e sabia onde encontrar as mudas. Disse que iria buscá-las e que as levaria lá em casa.
Se com uma coisa eu pudesse contar na vida, certamente seriam as mudas da amoreira. O problema se resumia, apenas, em que circunstâncias, em que dia, em que horas isso iria acontecer.
Invariavelmente, todos os dias, após o almoço, assegurava-me uma sesta de portas trancadas. Avisava a todos que não me incomodassem naquele período, pois caso contrário eu passaria o restante do dia com dores de cabeça. Sou um hipocondríaco assumido.
Para piorar, eu havia jogado canastra a noite toda. Passei a manhã sonolento, almocei, liguei o aparelho de ar condicionado e em poucos minutos adormeci. Minha mulher havia saído para o colégio e filhos eu ainda não os tinha – tudo ideal para que eu recuperasse a noite perdida.
Aí se deu aquela exortação de Jesus Cristo: “Vigiai e orai, porque não sabeis o dia nem a hora.” Esqueci de amarrar o buldogue no portão e o Lúcio, com verdadeira carga de galhos de amoreira, penetrou por ele, disposto a tudo para fazer a entrega em domicílio e em mãos.
Minha mãe morava na parte da frente do casarão e confirmou que eu me encontrava. O Lúcio chegou, arriou a carga de varas e investiu:
– Ô, seu Livaldo! Toc, toc, toc na porta: ô, primo?!
Silêncio tumular. Bem que eu tinha ouvido, mas escorraçaria o intruso com uma demonstração de sono doentio.
– Toc, toc, toc. Ô, seu Livaldo!
Lá pela milésima vez mais ou menos, já com os nervos à flor da pele, levantei-me, e não fosse meu primo ingênuo, inocente e prestativo, teria corrido ao deparar-se com minhas feições transformadas – aliás, nem se deu conta.
– Vim trazer as mudas de amora que prometi.
– Estou vendo.
– E para plantar logo, senão não pega bem.
– Bem, farei isso logo que descansar um pouco. Perdi a noite e estou…
– Não, tem que ser agora. Cortei os galhos de manhã e já tá demorando demais.
– Está certo.
Apanhei o enxadão e, irritadíssimo, encaminhei-me para um ponto qualquer do quintal, a fim de enterrar o monte de varas e livrar-me o quanto antes de tudo aquilo.
– Aqui não – dizia ele em cada lugar que eu elevava a ferramenta.
– Onde, então?
– Tem que ser num lugar bastante úmido. Ali, está bom.
O lugar designado ficava atrás de uma caixa d´água, ou melhor, de um reservatório que havíamos feito para suprir os desleixos do serviço de água e esgotos.
Designado o lugar, levantei o enxadão e o impulsionei com a força do ódio de ter acordado no melhor de meu sono. O enxadão penetrou até o cabo, momento em que um jato de água, com pressão de um poço petrolífero, esguichou-me no rosto, trazendo areia, cavacos e impurezas necessários para diversos vidros de colírio. Acertei o cano superficial de abastecimento e, naquele dia – não podia ser em outro – o SAAE estava com os reservatórios cheios.

QUINCAS, O PICÃO
Todos os anos, exatamente no mês de julho (férias), os caçadores de Marilândia organizavam verdadeira “romaria” para as florestas do município de Linhares, mais especificadamente para o lugar denominado Rancho Alto. Já em junho não se falava outro assunto. Morávamos em Marilândia, um distrito do município de Colatina, distante das grandes extensões florestais do município de Linhares aproximadamente 90 quilômetros. Hoje, essa distância tornou-se insignificante, em vista do progresso alcançado pela região, com estradas pavimentadas e meios de transportes adequados. No entanto, há 20 anos eram raras as pessoas que podiam possuir um velho Ford de bigode, e privilegiados aqueles que pudessem utilizá-lo.
Um amigo de infância – hoje falecido num desastre automobilístico na Avenida Anhanguera – possuía um, que mais poderia ser classificado ou definido como um “trailer” do que propriamente um veículo condutor: mais andava empurrado e puxado do que rodava por conta própria – porém, era com que podíamos contar.
O mês de julho chegou, com ele as férias e com as férias, a tão esperada excursão. Vinte e um caçadores compunham a comitiva. No dia anterior ajeitamos tudo cuidadosamente na carroceria e na madrugada do dia seguinte iniciamos a via crucis. Era um quilômetro andando; um arrastado; cinco por conta própria; horas e horas de consertos, enfim, três dias depois, desfazíamos a distância de 90 quilômetros.
O motor do carro não andava bem e o cano de escapamento, há muitos anos não fazia parte dos acessórios do veículo. Com isso, a fumaça negra e encardidora do motor subia rente ao malhal, borrifando tudo. As sobrancelhas pareciam enegrecidas de creiom; os olhos irritados; as nádegas – pelos solavancos dos bancos de madeira – estavam em pandarecos e o total da carcaça humana não usufruía de melhor sorte. Mas a vontade de penetrar nas selvas, absorver aquelas emoções, de viver os imprevistos… sobrepujava tudo isso, e assim, a trancos e barrancos chegamos ao ponto do abarracamento.
Dias depois a caçada seguia seu ritmo normal, com proezas e desditas intercalando-se até que, um dia, resolvemos empoleirar um astuto galináceo que já havia chateado até mesmo nosso renomado e mestre Velhão (Adalho); o homem que conseguiu assimilar até o “pensamento” dos inhambus. Jamais haverá um caçador maior que ele!).
Qual tropa-de-choque, entramos pela mata. O macuco morava a quase duas horas do barraco, mas isto não importava ao nosso bando de loucos. Levávamos conosco, desde modernas lanternas de experientes caçadores, até lampiões a gás de doutores que, pela primeira vez, viviam aquela experiência.
Quando a tarde caiu, quase dois hectares de selva estavam minados por desafiados caçadores que, a qualquer preço, não desejavam ser vencidos por um irracional. Quando os urus iniciaram a prolongada cantiga de despedida do belo dia que se ia, os chorões tristonhamente davam a cada parceiro sua posição de pernoite e os tururins esticavam seus tristonhos piados, anunciando seus últimos cantos, já não havia nenhuma dúvida que o galináceo, mantendo o silêncio, já se dera por conta do grande perigo que o circundava. Mais um pouco e o Velhão elevou a voz avisando que, mais uma vez, o macuco sagaz havia vencido. Houve opiniões para se procurar mesmo assim e até que a ideia foi aceita, pelo menos até o doutor Joel Coelho embaraçar-se nos cipós e estatelar-se no chão com seu improvisado lampião a gás.
Qual exército vencido, batemos em retirada. Depois de mais de uma hora, já no barraco, quando muitos já haviam retirado inclusive as roupas suadas e fedorentas, e outros tomavam impacientes seus pratos para o jantar, alguém descobriu que o mano lIdebrando, o Piassarol, não contava entre os presentes. Houve um minuto de profundo silêncio, fim do qual reiteramo-nos da realidade.
Que teria acontecido? Cobra, onça, acidente, perdida? As suposições iam desde a mais inocente das brincadeiras, até o triste desfecho de morte. Numa fração de minutos, a procissão retomou caminho: cartuchos de pó ronca, foguetes adrianinos tiro-canhão (sempre levávamos para situações emergenciais), gargantas afiadas, fiéis convictos em oração. Cada um absorvia a situação de maneira diferente e peculiar, conforme sua personalidade. Até medicamentos de urgência constavam da operação resgate. O que aquelas selvas ouviram de barulho naquela noite, talvez fizesse inveja aos vulcões de Java em atividade.
Já perto do local, o barulho era tão intenso que mal percebemos que o mano entrava no bloco, tentando explicar o que havia acontecido. Foi quando alguém, deslocando a garganta alguns centímetros, conseguiu se fazer ouvir:
– Olhem aqui o homem, gente!
Seria impossível relatar tudo o que foi dito, reclamado, exigido e propalado naquele momento. O certo é que o mano, ouvindo o bater das asas do galináceo, foi averiguar, no exato momento em que os demais desistiam por ordem do mano Adalho. Era muita gente e noite, motivos sobejos para que alguém fosse esquecido.
– Demorei porque fui procurar, e achei, o macuco no poleiro – disse o Brando, ofegante.
– Como? – interveio alguém. Você sabe onde ele está?
– Claro!
– E não atirou, por quê?
– Dei falta do grupo e fiquei preocupado e com medo.
– Você acertaria o lugar?
– Claro, marquei direitinho!
– Vamos lá para a desforra pessoal?
– Nem Hitler conseguiu uma aprovação mais unânime em seus tempos de triste glória.
No meio dos doidos, o Quincas (Picão). Era um amigo, que como muitos, ali estava pela primeira vez. Usava sapatos mocassim, calças de tergal azul e camiseta de meia, com propaganda da Fabrini-molas: um prato cheio e desprotegido para os mosquitos e carrapatos. Falava pouquíssimo e era novidade não o flagrar sem um enorme cigarro-de-palha no canto da boca, o que lhe valeu a alcunha de Picão. Sua espingarda era um espoleteira mascadora, de um cano. Ele não sabia piar exatamente nada. De modo que, um indefeso macuco dormindo, não era oportunidade de se perder em nenhures. Foi escalado para atirar.
Fazendo companhia, mais cinco voltaram para o galináceo, enquanto o restante do “batalhão”, cansado, resignadamente aguardava o desfecho dos acontecimentos, sentados no picadão.
Minutos após, um disparo pequeno da espoleta pica-pau e, logo em seguida, um estrondo vesuviano (três dedos de pólvora comum), cortou o silêncio daquela imensidão. Mais alguns minutos e os seis estavam de volta, com as mãos vazias e semblantes de frustração. O tiro não havia sido maldado, pois o galho em que dormia o macuco estava lá dependurado – informou uma das testemunhas – mas o bom mesmo foi embora.
– Não entendo o que esta espingardinha diz – falou o Quincas, já mastigando, ao vivo, boa parte do picão.
A volta, apesar dos pesares, foi alegre, com cada um relatando o dia que passou. Íamos devagar, pois o cansaço, nessa altura, era visível. Mais de a metade do grupo caminhava aproveitando a claridade das lanternas dos outros. A finalidade era economizar as pilhas. Quincas era um desses.
Acontece que, transversal ao picadão da Vale, havia um tronco de 200 centímetros de circunferência. Era bastante grosso para não ser percebido pela luz das lanternas. O Quincas vinha de lanterna apagada, totalmente na retaguarda. Ninguém suportava a fumaça de seu picão.
Cada um foi pulando o pau, menos ele, que por certo remoía o dia aziago em que desperdiçara a oportunidade de se tornar um caçador. A canelada foi inevitável e, para maior desdita, não havia perneira ou mesmo uma calça grossa para amenizar o impacto. Uma tira de peles escarlate dependurou-se do joelho ao peito do pé, e o nosso Picão ainda focinhou na terra, ficando em posição ridícula, totalmente imóvel. O baque e gemido surdos foram ouvidos pela vanguarda que, incontinenti, acorreu em socorro.
Levantamo-lo; ajeitamos o que pudemos; constatamos o estrago e, aproveitando os medicamentos de urgência, fizemos ali mesmo uns reparos superficiais. Dava pena ver a canela do Picão, com o sangue escorrendo vivamente por cima de sua sapatilha mocassim. Foi quando alguém, não conseguindo entender tanta impassibilidade, tanto fleumatismo, tanta paciência, tanta conformidade, tanto silêncio, perguntou:
– Pelo amor de Deus, Quincas, como consegue ficar calado com um estrago destes na canela? Não sente vontade de esbravejar, xingar, desabafar? Onde anda o sangue quente de nossa origem italiana?
O Quincas deu uma paradinha, cuspiu fora os restos de picão, folha e terra que ainda se mantinham na boca por causa da focinhada e falou, afinal:
– Vocês não ouviram, mas fiz tudo isso em pensamento. Como eu podia esbravejar se estava com a boca cheia de terra?

O CARRETÃO DO ZÉ CANZIL
Zé Canzil era um homem de estatura mediana, cabelos crespos, portador de todas as características de um bom filho do interior de Minas Gerais. Em todo ambiente que entrava, a apatia pedia licença e se retirava, pois, seus casos contagiantes não permitiam convivência com a sisudez. Conheci-o em 1973, numa das reuniões de garimpeiros da Serra Pelada, que se fazia no escritório do bamburrado Diomedes. Ao ser solicitado para mais uma história, o Zé Canzil emproou-se todo e arrematou:
– Espero que não repassem minhas histórias, pois a sucuri de quatro metros que se enrolou no caboclo, ali no Pindaré, chegou a Belém com oito metros, e encerrou seu crescimento milagroso na TV Globo, com 12 metros. O pessoal aumenta demais e por isso certas histórias comuns chegam ao Guines Book facilmente.
– Foi lá no interior de Minas. Lugar inóspito e acidentado, que só sobra mesmo pra gente sem dinheiro. Morei lá muito tempo! Era uma vida amargurada em que se dormia preocupado com a escalada do dia seguinte. Tudo era montanha. Para maior azar, o melhor lugar para o plantio de milho ficava no cume da Serra Gelada. Foi lá que plantei.
Pois bem, deu tanto milho que nas costas seria impossível transportá-lo. Depois de muita luta, consegui o carretão de boi de estimação de um vizinho, puxado por duas parelhas de vigorosos mestiços.
Foi numa quinta-feira. Meu vizinho levou a geringonça à minha casa e entre mil recomendações se despediu, não sem antes dividir minha broa de fubá e comer meia banda de queijo.
E, no outro dia bem cedo, lá fui eu montanha acima. Havia topes que os bois se ajoelhavam para subir arrastando o carretão. A trancos e barrancos, fomos progredindo. Às 11h consegui enxergar o monte de espigas. Já estava extenuado de tanto forçar, andar, calçar e gritar. Os bois não pareciam em melhor condição. Um pouco mais acima havia uma curva fechada e a subida mais abrupta de todas.
Deixei que os bois descansassem durante cinco minutos. Ajeitei-os em seguida e de garrocha em riste, espetei-os aos gritos. A arrancada foi digna do preparatório. Um dos bois da guia, num finca-pé espetacular, fez o canzil aos pedaços, desprendendo-se dos demais e desequilibrando as juntas. O pesado carretão rodopiou. O restante dos animais estacou como pode e os canzis, um por um, foram cedendo ao peso que se infligia sobre eles. Sem que eu pudesse esboçar qualquer reação, o carretão desembestou montanha abaixo, passando por mim na velocidade de um carro de corrida. Toda aquela parafernália que estava em minha frente veio em cima de mim. Vi rodas, eixos de pau, estilhaços de canzis, patas unguladas, chifres ameaçadores e mais centenas de objetos não identificados embaralharem minha visão no poeirão que se seguiu. Apesar de três costelas quebradas e um dedo esfolado, saltei de pé, naquela reação natural de quem antevê o fim.
O carretão de estimação de meu vizinho, em cada salto ia se desintegrando. Nem mesmo as mais altas cabeças de palmito que estavam na direção escaparam do corte seco daquele monte de pau. Depois de meio morro, apenas o eixo e as duas rodas insistiam em chegarem juntas ao sopé. Foi quando um tronco seco de jataí lhe obstou a passagem. O impacto foi ensurdecedor e a separação inevitável. Cada roda tomou uma direção e por mais que se procurasse, de uma delas nunca mais se teve notícia.
– Puxa!, e o dono do carretão, e o milho? – perguntei aflito.
– Não sei, nunca mais voltei naquela desgraça.

OS CAMUNDONGOS DO LUÍS CAMPANA
Camundongo era o nome de um burro violento de um vizinho de terras nosso, chamado Luís Campana. O burro coiceava, e acertava, com incrível pontaria, até mesmo uma cotovia espavorida que voasse de uma moita atrás de suas patas.
Certa vez, nos idos de 1975, numa de minhas andanças pelo norte brasileiro, adquiri, por intermédio de um amigo – proprietário de uma loja de produtos veterinários de Castanhal – PA – uma folha de caderno na qual estava rabiscado o direito de posse de uma área situada a mais ou menos 70 quilômetros de Belém, entre o rio Moju e o Acará. E o “idôneo” proprietário, um tal de Zito, não foi modesto ao estabelecer a quantidade de terras que possuía: 12.000 ha. Um pequeno sítio, em se tratando de Amazônia.
Para quem vinha do Espírito Santo, pequeno estado muito explorado, em que 100 ha legava ao dono o título de latifundiário, 12.000 ha para uma única pessoa era algo inconcebível. Tratei logo de arranjar três sócios, a fim de dividir aquela imensidão de terras… e de problemas. Depois de algumas reuniões, resolvemos tomar posse da área. Foi aí que apareceram os Raimundos: o batoré, pretenso topógrafo, envolvido naquelas rebeliões do norte brasileiro, e o duplex, grileiro inveterado de quase dois metros de altura e colecionador de armas importadas. Como percebe, estávamos, eu e meus companheiros, no caminho certo para, honestamente, possuir aquelas terras!
Levamos conosco alguns malucos para que pudéssemos medir e ocupar o que nos haviam vendido. O grupo, mais violentos que os hooligans ingleses dopados, assim foi formado: meu primo Euzébio, forte, bruto e mal educado; meu sobrinho Nini, mal educado, bruto e forte; meu cunhado Fábio, forte, bruto e mal educado; meu amigo Carminatti, talvez mais educado, mas, forte, tempestivo e bruto; o mano Adalho, pacato, velho e cordato (um estranho no ninho); o primo do Carminatti, fraco, ignorante e vingativo; dois crioulos estúpidos, mal encarados e de pouca conversa e finalmente, eu, burro, imprevidente e insensato.
Com este “time’ saímos de Linhares – ES, num dia qualquer, empilhados numa Kombi. Desta cidade até Castanhal, no Pará, tive de separar, pelo menos, umas 20 brigas por motivos insignificantes e fúteis. O mais grave, talvez, tenha sido o do primo do Carminatti ao apanhar o pio de tururim do Euzébio sem lavar as mãos, logo depois de ter urinado. Recebeu um soco nas costas, perdeu o fôlego e fora preferível não ter voltado a si nos seguintes minutos. A mão-de-obra que deu para acalmar aquele ânimo exaltado, foi trabalho para um Kissinger em plena forma.
Depois dos contatos com o trio: Zito, Raimundão e Raimundinho, rumamos Moju acima numa embarcação velha cujo motor trepidava tanto que impedia a própria visão real das coisas. Depois de três dias assim, chegamos na foz de um igarapé. Nessa altura, nossa comitiva havia aumentado, pois o Raimundinho, nosso pretenso topógrafo, acompanhava-nos devidamente escoltado com mais seis paraenses, visivelmente assustados com aquela raça “alienígena”, que falava alto, reagia a tudo, era enorme, estúpida e comia insaciavelmente.
Ali a embarcação maior parou, e depois de um dia de espera conseguimos alugar mais cinco canoas e dois caíques ou casquinhas, como diziam os filhos da terra. Com essas embarcações teríamos de perfazer mais cinco quilômetros igarapé acima.
Enquanto os paraenses conseguiam equilibrar-se nos caíques, cuja água ficava a alguns centímetros da borda, a italianada ia mais pendurada do que dentro das pequenas canoas. Pelo menos umas 20 vezes fomos à pique antes de tomar a decisão de contratar um cicerone e ir a pé. Essa, talvez, tenha sido a mais infeliz das ideias que tivemos nessa aventura. Agostinho era o nome dele. Baixo, cabelos crespos, orelhas de acústicas acentuadas, tez abacinada e rude, andar desengonçado: um autêntico matuto nortista. Falava pouco e quase não abria a boca quando falava, talvez complexado pela falta dos incisivos. Seu traje resumia-se numa sunga esgarçada bastante para se perceber que, qualquer loja de tecidos, às suas custas, jamais sobreviveria.
As canoas seguiram com o que sobrou dos sucessivos naufrágios e nós seguimos a pé. Conforme nosso cicerone, antes do anoitecer estaríamos no ponto de junção preestabelecido. Antes da partida, ele parou por momentos, olhou a posição do sol, recompôs algumas ideias e ordenou a direção com o indicador. Seguimo-lo.
Levávamos apenas uma espingarda e uma sacola com alguns cartuchos e pios – era uma pequena precaução diante daquele ambiente hostil. Meus companheiros, animados e eufóricos, portavam afiados cornetas, que faziam ramos indefesos voarem aos ares, na menor suspeita de empecilho. E lá fomos nós, saltando igarapés, transpondo igapós, varando moitas… numa barulheira digna do mais autêntico sacrilégio àquele silêncio sacrossanto que até então reinara.
Lá pelas 15h, já o entusiasmo havia diminuído ou mesmo desaparecido. A fome fazia doer os estômagos e alguns começavam a perguntar insistentemente ao Agostinho, se ainda estávamos longe. E o nosso cicerone, que até então andava convicto, começou a dar contínuas paradas, olhando o sol e as copas das árvores. Não tardou para estacar definitivamente e dar o veredicto:
– Já era pra ter chegado. Acho que não é por aqui!
Aquilo foi como uma explosão perto de uma lagoa de anfíbios coaxantes. Todos pararam, e o silêncio que se seguiu dava para escutar uma centopeia rastejando em macias almofadas. Os olhares se cruzaram por alguns minutos indo, aos poucos, um por um, desviando-se para um lugar comum: o Agostinho.
– Hoje matarei a fome comendo uma orelha tostada de paraense – disse logo meu cunhado Fábio, usando de tudo aquilo que havia aprendido no meio bruto em que fora criado.
– Coma uma só – retrucou o Euzébio – a outra quero pra mim.
– Agostinho, meu querido Agostinho, você está brincando, diga que está – falou entre os dentes o Carminatti.
E assim, observações pouco amistosas sucediam-se, até que eu, notando que a coisa estava ficando séria, resolvi intervir, usando de minhas atribuições de chefe da excursão:
– Pessoal, a desunião, agora, só irá piorar ainda mais a situação. Deixem para dividir nosso guia mais adiante e tratemos de raciocinar. Como sabem, viemos sem deixar sinais muito visíveis. Retornar hoje, ou mesmo continuar andando nessa direção, será loucura. Vamos pernoitar por aqui mesmo. Este terreno em declive parece indicar que lá embaixo há água. Fábio e Carminatti darão um pulo lá para averiguar; vocês ficarão descansando, e eu tentarei abater uma azulona para o jantar. Assim foi feito.
Os dois desceram e antes mesmo que eu me desgarrasse do grupo, gritaram lá de baixo:
– Venham para cá. Aqui mora gente.
Isto foi como uma ducha fria naquelas cabeças quentes e prenhes de pensamentos pouco amistosos. Por alguns instantes, o Agostinho seria esquecido.
Era um pescador nativo. Morava sozinho numa palhoça e tudo o que possuía era alguns pés de aipim, uma canoa, uma espingarda bastante desgastada pelo tempo, algumas lanças de madeira com as quais fisgava os peixes com inacreditável maestria. Depois de ouvir a história daquele magote perdido e faminto, o pobre diabo falou:
– Meus sinhô, tenho um pedaço de mateiro, nada mais.
– O senhor nos venderia este pedaço?
– Vou buscá.
Entrou no barraco e voltou com uma caçarola contendo mais ou menos meio quilo de uma coisa azulada, repleta de moscas-varejeiras. Apesar de, em muitos, a repulsa vencer a fome, em outros, o mesmo não aconteceu. Alguns foram metendo as mãos, estraçalhando aquilo e levando à boca. Uns deglutiram, outros cuspiram imediatamente, outros tiveram ânsia de vômitos. A carne estava deteriorada, sem sal ou tempero algum. A catinga era sentida à distância, aumentando ainda mais a minha dor de cabeça. Tentando amenizar, perguntei pelo preço de umas raízes de aipim e quando “fechamos negócio”, foi como se uma nuvem de gafanhotos, vinda do deserto, tivesse alcançado um oásis. Muitos afirmaram que não sabiam que aquilo, mesmo cru, era tão gostoso.
Depois do “farto jantar”, conversamos demoradamente com o caboclo e ficamos sabendo que estávamos indo em direção contrária ao objetivo. Nem sequer um metro aproveitaríamos. Por sorte, a noite foi quente e sem insetos. Conseguimos dormir muito bem, pois o cansaço sobrepujava o desconforto do chão. No outro dia, bem cedo, retomamos caminho. Agostinho procurava caminhar à distância, evitando que sua presença avivasse as ameaças do dia anterior. Caminhávamos devagar, sem algazarras, conscientes de que não podíamos perder as marcas deixadas no dia anterior. Às 10h paramos para um descanso e sugeri escalar um caçador para abater qualquer coisa. O que não poderia supor é que o caçador eleito seria eu. Na verdade, nem argumentei, pois pelo currículo não havia ali ninguém mais indicado.
Apanhei os pios, os cartuchos, a espingarda e saí visivelmente preocupado, pois sentia, em cada olhar faminto, a crença de que seria eu a solução para aqueles estômagos em rebuliço. Distanciei-me uns 300 metros, escolhi um bom lugar na encosta de um igarapé seco, fiz uma respeitável choça, acomodei-me e comecei a piar. O lugar era típico de azulonas e não quis perder muito tempo com inhambus de menor porte. Sabia que uma boa fêmea daria para suprir as necessidades proteicas de todo o grupo, por um dia, pelo menos. E o tempo foi passando, passando e eu, enquanto isso, ia escalonando os degraus hierárquicos dos inhambus: azulonas, pés de serra, choronas, inhambus pretos, chororões, tururins…. Nada. A selva parecia emudecida, sádica, vingativa. Olhei para o relógio: já perdera 40min. O nervosismo apossava-se de mim em cada segundo que se esvaía. Levantei-me, perscrutei os derredores. Nada.
Pé-ante-pé fui retornando, com os olhos indo das folhas secas do chão ao dossel da floresta, no afã de surpreender qualquer coisa que se mexesse. Não imagina, o caro leitor, meu nervosismo ao lobrigar, atracado num tronco seco, um esquelético pica-pau. Firmei a pontaria como se fosse alvejar uma onça ameaçadora e sorri feliz ao vê-lo dependurar-se. Não duvidem: eu derrubaria o tronco se de lá ele não se desgarrasse. Mais adiante encontrei um jaboti e com essas duas caças entrei humilhado no meio dos companheiros, que não ocultaram o que lhes ia na mente.
Em outros tempos seria uma gozação sem fim e até que assim eu preferiria, pois foi bem pior enfrentar aqueles olhares frustrados que esperavam tudo, menos que eu, o imbatível campeão de tantas refregas, chegasse com “troféus” tão promíscuos.
Almoçamos aquilo mesmo, cozidos que foram em água de cipó, numa banda de cantil que cortamos a facão, sem sal nem higiene. Ainda hoje me repugna lembrar que o Carminatti, depois de retirar um carrapato esquecido na perna do jabuti, saboreou o ossinho com indizível prazer.
– À luta moçada! – falei enfaticamente – tentando incutir na turma aquele entusiasmo que em nenhures existia em mim.
Agostinho, sempre desconfiado, viajava agora na retaguarda, completamente desacreditado. De quando em vez, uma observação maldosa:
– Pro jantar teremos orelhas tostadas.
E assim, depois de toda uma tarde de caminhada, avistamos o igarapé de onde saímos no dia anterior, só Deus sabe pelos pecados de quem! Cada um foi se estirando pelo chão, sem importar-se com os carrapatos que exageradamente existiam ali. O tempo enfarruscou-se e logo um tremendo temporal desabou, ensopando até mesmo a mais resguardada sunga. Por sorte, no Pará dificilmente acontecem aquelas chuvas constantes de dias ou noites inteiros. Passou tão logo cumpriu a missão de nos deixar ensopados. Retiramos as roupas, esprememo-las e as vestimos novamente. Quis Deus que fosse no Pará, em que o calor é praticamente uma constante.
Apesar de ninguém estar com muito frio, o contato com aquele chão encharcado tornava-se repugnante. Cada um foi recostando em qualquer coisa e tentando descansar um pouco. Agostinho, nosso guia, demonstrando que a função de cicerone silvícola era-lhe compatível, dormiu estirado sobre uma lasca de madeira, à moda de uma autêntica surucucu patioba. Contudo, quando o dia amanheceu, ninguém mais o viu. Nem para receber os dias de trabalho: afinal, suas orelhas valiam bem mais!
Como o igarapé era bastante utilizado pelos autóctones, não demorou muito para alugarmos novas canoas e rumarmos para o destino. Um dia depois chegamos ao ponto final do riacho em que estavam nossas bagagens. Agora a coisa seria a pé mesmo. Tralhas nas costas, lá fomos nós por mais sete quilômetros. Quando arriamos tudo no chão, houve quem não conseguisse mais fechar as mãos, tal o enrijecimento muscular.
Naquela noite, ainda que se cumprisse o Apocalipse de João, ninguém tomaria conhecimento. Era uma roncadeira pelos troncos esparsos, que a própria canguçu achou por bem declarar-se pelas redondezas, em defesa de seu território: seus esturros nunca foram tão desprezíveis e menos assustadores.
No dia seguinte, Adalho foi o primeiro a levantar-se, incomodado que foi pelo sol que lhe batia no rosto. Se ele não pudesse dormir, por que os outros o fariam?
– Acorda turma de malandro, “sabiá vira-merda já está piando” – era um ditado saxônio, muito repetido por uma tradicional família de alemães, em um tempo, nossa vizinha.
– Cala essa boca, Velhão gico! – vociferou alguém semidesperto, lá de uma sapopemba.
E assim, paulatinamente, fomos levantando, alongando os músculos, bocejando de fazer inveja a hipopótamo empanturrado. Cada um jurava que havia apanhado a maior surra da vida, tantas eram as dores espalhadas pelo corpo. Naquele dia, praticamente nada se fez. Passamo-lo comendo arroz doce. Nem a mata eterna e desprotegida animava os fanáticos caçadores de tururins das chapadas da saudosa vila de Marilândia.
Depois de três dias, já estávamos com nossos barracos prontos e com os serviços de medição iniciados. A euforia voltava a reinar. Todas as noites algo estranho acontecia.
Como já frisei, longe dos rios ou igarapés, não havia inseto algum e o calor era sempre constante. Por isso, a roupa comum da maioria dos caboclos filhos da terra era sempre uma fina, remendada ou mesmo esfarrapada cueca, em contraste acentuado com nossas fardas grossas e pesadas. Dos endêmicos, mesmo as partes mais íntimas ficavam constantemente expostas. Numa dessas, quando um peão dormia, Raimundinho, o topógrafo, percebendo os sonhos obscenos que perambulavam naquela mente forçosamente celibatária, derramou uma gota de pimenta malagueta em cima do objeto exposto. Aquela gotinha, de início macia e fresca, não tardou para demonstrar sua acidez picante, deixando o pobre rapaz em apuros. Aos gritos ele saiu correndo e atirou-se no igarapé, enquanto uma gargalhada presa denunciava o autor inconfundível do crime.
De outra feita, um peão coagido trepou numa árvore, pensando livrar-se daquele baixinho renitente. O infeliz meteu a motosserra no tronco e quase que a fatalidade aconteceu. Por sorte, a árvore caiu exatamente dentro do riacho, mas foi preciso que socorressem o pobre diabo que não conseguia se desvencilhar das ramagens e da água. E o autor era sempre o Raimundinho, um topógrafo de “meia tigela”, endiabrado, baixote e cheio de vida. Usando de sua pretensa hierarquia, vivia detonando cartuchos 12 em plena noite, dentro do barraco. Cortava as cordas das redes, enfim, praticava todo e qualquer ato, que subtraísse o prazer de um momento tranquilidade. E não tardou a estender seus atos também ao nosso grupo de “camundongos”. Foi a pior ideia que ele teve na vida!
Descobriu que detestávamos ser enlameados após o banho (grande descoberta!) e já não fazia outra coisa senão esconder-se entre o mato e nos arremessar bolotas de lama. A coisa foi tomando um rumo tal, que já não conseguíamos nos livrar, nem agarrar o miserável. Era esperto, ladino, cheio de vida e nunca com planos menos maquiavélicos. Precisávamos resolver aquela situação com urgência. Para isso bolamos um plano, naquele mesmo dia posto em prática.
Ao cair da tarde, uma hora antes do banho, Nini e Carminatti colocaram-se em posição estratégica, bem escondidos, de onde, supúnhamos, o Raimundinho deveria se posicionar para nos atirar bolotas de barro. Quando descemos para o banho, não deu outra coisa: lá estava o nosso topógrafo, com as mãos cheias de barro e pronto para a sua sádica satisfação. Reagimos, mas um dos nossos foi alvejado no olho e ficamos fora de combate. Tínhamos de admitir: a pontaria do baixinho era infalível!
Aí subimos a rampa dispostos a agarrá-lo a qualquer preço. A mata era vasta e escura e nosso adversário, ganhando a picada de sempre, tentou evadir-se. Foi quando passou perto do esconderijo em que se escondia o Nini que, num salto felino, agarrou-o pelo meio.
– Está seguro, pessoal! – gritou o Nini. De minhas garras ele só sai em pedaços.
Acorremos ofegantes. Como uma lebre indefesa nas garras de um lobo, lá estava o Raimundinho, totalmente subjugado. Apanhamos cordas e o amarramos no esteio da barraca sem deixar-lhe a mínima chance de fuga. Para evitar um possível suborno, Euzébio, meu primo “brucutu”, ficou de sentinela enquanto banhávamos. Finalmente jantamos sem nos importar com as lamentações e ameaças do prisioneiro, que iam desde a temida pimenta até a detonação fatal de sua espingarda de grosso calibre.
Fotografamos, fizemos tudo o que tínhamos direito e até o que não tínhamos, depois, desatamos as cordas. Daquele dia em diante passamos a ser um pouco mais respeitados. O baixinho era, realmente, “uma praga”!
Os trabalhos iam normalmente. Já estávamos ali há 26 dias, quando recebi notícias do Espírito Santo, por intermédio do Raimundão, de que teria de ir a Belém, pois havia sido vencedor de uma concorrência de terras do INCRA e teria de pagar a oferta, imediatamente. Assim foi feito.
Minha viagem demorou bastante, pois a burocracia, somada ao despreparo dos funcionários daquele órgão, fez com que ali eu permanecesse por vários dias. Os que ficaram preocupados, enviaram, vejam quem, o Carminatti e o Euzébio para me procurar. Nosso encontro se deu no meio do caminho, numa palhoça de um velho e renitente pescador. Eu estava deitado no chão, bastante cansado, tentando conciliar o sono. Os dois chegaram, depois de não sei quantos naufrágios, com as roupas jeans totalmente ensopadas e enrijecidas pela sujeira de quase um mês sem ver sabão. Quando levantei a cabeça e entreabri os olhos para ver quem estava chegando com tanto barulho, recebi o cumprimento de uma “calçada jeans”, com correia e tudo, no meio da cara.
– Filho de uma égua, por aonde andava? Está querendo matar a gente de fome? – disse o Carminatti.
– Pensa que vai ficar nas farras em Belém enquanto a gente se fode aqui nesta desgraceira? – complementou o Euzébio.
E assim, entre estes e muitos outros “elogios”, os dois foram se acalmando e se reiterando das verdadeiras causas que tanto me prenderam em Belém. Como estava trazendo comigo todo suprimento necessário para o restante dos dias que pretendíamos ficar lá, retornamos dali mesmo, agora, na mais perfeita harmonia. O caíque com os alimentos ia arrastado, sem ninguém dentro, pois nosso desequilíbrio era tal em cima de embarcações, que mesmo um navio não conseguiria navegar calmamente com a gente em cima. Mas, até mesmo o destino é caprichoso e gozador quando encontra uns abestalhados para curtir! E assim, numa curva do rio em que a correnteza arremessava tudo contra as margens que impediam sua passagem – bem, não fez distinção com a gente. Foram tantos os gritos de “segure”; “cuidado com a carga”; “olha a mala dos documentos” que, finalmente, fechando o ciclo de tamanha balbúrdia, apenas um alento vigorou: “salve-se quem puder!”
Tudo o que transportávamos imergiu, e meus olhos brilharam quando percebi minha maleta com os documentos e o dinheiro dentro, boiando mais abaixo. Retirei-a incontinenti e enxuguei tudo como pude. O sal e o açúcar desfizeram-se e o que conseguimos retirar, estava muito comprometido. Melhor que nada!
No barraco o desânimo era total. A linha demarcatória havia esbarrado num rio, o Acará, e isso não estava nos planos do grileiro. Imaginava ele demarcar uma área qualquer sem grandes problemas, já que as margens dos rios eram muito desejadas.
Com a nossa chegada, a animação voltou. Disse-lhes que ficaríamos ali mais cinco dias, fim dos quais retornaríamos ao Espírito Santo e mais, que em Belém iríamos à melhor churrascaria a fim de regularizar a defasagem alimentar a que estávamos sendo submetidos.
Aqui abro um parêntese para falar do rio Acará, nesse tempo, um dos mais piscosos do planeta Terra. Por meio da densa floresta, em que éramos os primeiros seres humanos a chegar, ele bem podia ser definido como um pedaço do céu que Deus esquecera para trás. Quando me debrucei sobre a margem, fiquei estupefato ao deparar-me com tantos peixes que subiam e desciam, como num imenso aquário de mil espécies. Nem nos mares da Patagônia e em tantos outros lugares protegidos por lei, vejo hoje em filmagens, algo mais bonito do que vi no Acará. Eram peixes mil, de matizes e tamanhos diferentes – peixes que eu nunca havia visto até então. Eram mansos e pareciam viver no mais perfeito equilíbrio… até o dia que lá chegamos. Na perseguição de suas presas prediletas, os tucunarés caíam no seco, nas margens, debatiam-se e voltavam às águas.
Bem, depois de mais um dia de pescaria, viemos retornando com quase um saco de peixes nas costas. Quando em vez parávamos para descansar. Num desses lugares, uma árvore de maçaranduba cortada, convidativa a mais uma parada. Aliás, havia muita maçaranduba derrubada pelos caboclos a fim de extraírem o látex. Era vendido às indústrias para o fabrico de gomas de mascar.
Essa a que me reporto, possuía pelo menos 20 metros de haste disponível, o que ainda foi pouco para que se evitasse a contenda sobre o direito de sentar em determinado pedaço.
Fábio estava sentado e Euzébio decidiu que aquele lugar era dele. Primeiro pediu para que o outro se afastasse um pouco e, cordatos como eram, não houve consenso. O negócio seria na força bruta mesmo. Euzébio tentou destronar meu cunhado Fábio: recebeu um coice no joelho que o fez rolar de dor nas folhas… e retornar ao barraco mancando.
Enfim, chegou o dia da volta. Como havia prometido, paramos numa churrascaria apresentável que havia logo na saída de Belém. Como famintos de Biafra investimos ameaçadores. Nenhum espeto que chegava conseguia ir além de três pretendentes de nossa mesa, embora os demais protestassem veementemente. O garçom, já um tanto assustado, ponderava:
– Calma pessoal, tem pra todos!
– Tem mesmo? – perguntou o Nini.
O garçom não respondeu mais, demonstrando insegurança. Logo a seguir trouxe uma ordem da gerência:
– O gerente pede desculpas e avisa que a carne acabou.
– Não tem problema, mande o que tiver lá dentro – falaram, quase em coro, os três que disputavam a medalha de ouro de comilões. Já na vinda criara-se o impasse de quem seria o “maior glutão”, pois a hegemonia do Carminatti havia sido ameaçada com meio queijo de búfalo comido pelo Nini. Pois bem, a coisa continuou até que o gerente, entendendo que aquilo o levaria à falência, vociferou:
– Isto aqui é um lugar decente e espero que se comportem como o ambiente exige.
– Uma ova – retrucou uma voz engasgada – estamos pagando e queremos comer. O senhor sabe há quantos dias estamos comendo jabotis, macacos e pica-paus?
– Não me interessa. Isto aqui é um local para pessoas que se alimentam para viver e não que vivem só pra comer.
Com esta o Carminatti quis levantar, mas foi seguro por alguns companheiros.
– Deixa pra lá, afinal estamos empanturrados e sem condições de brigar.
Paguei a conta. Em cima da mesa era uma bagunça total: vinho derramado, ossos descarnados, palitos quebrados, arroz e todo o mais em uniformidade com o resto. Um a um fomos levantando. Alguns quase não conseguiam andar. Entramos na Kombi. O motorista comeu tanto que dirigia como se estivesse deitado: não podia curvar-se.
– Comi mais e sou o campeão – disse o Nini.
– Uma merda – contestou, desbocadamente, o Carminatti.
E, enquanto a discussão continuava, alguém deslumbrou um monte de melancias à beira da estrada.
– Tiremos a teima na melancia – propôs o Fábio, doido para ver o circo pegar fogo.
Todos ainda existem e é fácil comprovar: o Nini, meu sobrinho, incontestável campeão, quando tentou engolir um pedaço de melancia, a mesma parou na garganta. Esforçou-se, entortou-se todo e, por fim, lançou-a de volta: não havia espaço nem mais para um caroço!

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