ESTRANHA PASSAGEM

ESTRANHA PASSAGEM envolve a vida de pessoas pobres acaçapadas em bairros carentes da cercania da cidade de Imperatriz – MA. É um “submundo” de marginalizados, em que a vida lateja na simplicidade e na miséria.  Nos guetos atuais os seres humanos nascem e morrem sem a mínima perspectiva de vida, ante o olhar dos mais bem sucedidos. O autor aborda, com precisão, essa realidade da vida. Mostra a torpeza da polícia, dos políticos e da própria justiça, com esmero e precisão. Mostra, também, que a felicidade está dentro das pessoas e não nas riquezas que elas acumulam e retêm.

Busca em Deus a única saída sensata para os marginalizados e oprimidos. Deus, somente Ele, é a esperança dessa gente. Em cada página o leitor encontrará as vicissitudes da existência narradas com a crueza honesta da realidade.

Falângola Editora

APRESENTAÇÃO

 Há gente que passa por este mundo apenas para sofrer; há também os que parecem ter vindo com a função de azucrinar a vida do semelhante – os tais vergastes que Deus costuma mandar para testar a fé e a paciência de seus eleitos. Há gente que ri, que chora; há o gordo, o magro, o saudável e o doente; há o rico e o pobre. Há de tudo, sempre houve e jamais deixará de existir, enquanto houver vida neste planeta; primeiro, porque nós mesmos delineamos nossa sorte e, segundo, porque as coisas acontecem conforme Deus dispõe.

 O próprio Jesus reconheceu estas coisas quando disse aos recriminadores da mulher que derramou sobre sua cabeça uma redoma de alabastro: “Por que molestais vós esta mulher que, no que fez, me fez uma boa obra; Porque vós outros sempre tendes convosco os pobres, mas a mim nem sempre tereis.” Na verdade, não entendemos a paciência e os métodos daquele que dispõe as coisas, à revelia de nosso senso de justiça.

 Quem não tem histórias ou não é testemunha de pessoas que nasceram e sofreram até a morte? E quem não questiona nisto a própria justiça e bondade dos céus? Mas, na verdade, somente os incautos se preocupam com as coisas passageiras, pois a pretensão do esteticista que engendrou o universo e a alma imortal vai bem além daquilo que chamamos desigualdade ou injustiça social. A criatura humana (preocupação primordial de Deus) é um investimento a longo prazo, que vai culminar com a perfeição desta obra magnífica, bem mais adiante das futuras gerações. Se Deus Pai levou aproximadamente quatro mil anos preparando a vinda de Cristo, por que não levará outro tanto para chegar a seu objetivo último: a perfeição de sua criação?

 Esta história foi-me contada por um caboclo de nome José. Sempre que me via, chamava-me ao lado e dizia:

– O sinhô gosta de contá histórias. Me dissero que escreve até livros. A minha vida dá um livro bonito e triste e se quisé eu conto pro sinhô escrevê.

Por várias vezes esquivei-me, na certeza de que o caboclo acabaria esquecendo ou desistindo – duas vãs pretensões de minha parte. Um dia, porém, eu estava lendo alguma coisa enquanto esperava o conserto do carro, quando senti as mãos pesadas de alguém no ombro.

– Como vai o sinhô?

– Senhor José? – perguntei eu, como se a dúvida pudesse ajudar-me em alguma coisa.

– Em carne e osso, homi. E como é, vai escrevê a minha história?

Apertei um lábio contra o outro, empurrei com os pés a cadeira em que me encontrava sentado, pondo-me submisso diante do renitente caboclo.

– Sente-se aí, por favor – falei eu em tom de desistência e sujeição.

Ele puxou a cadeira que estava ao lado, retirou sem classe uma cigarrilha, deu várias e sufocantes baforadas, escanchou-se deseducadamente no assento, esticou as pernas para alcançar uma saliência com os calcanhares…

Era um homem simples, sem instrução: um bamburrado rastaqüera. Olhou-me atentamente, tranqüilizando-me:

– Não sei quanto custa fazê um livro, mas seja lá quanto for, eu pago. Quero apenas que o meu nome e da minha família seja escrito num livro, pra ficá pra sempre.

– Bem – respondi-lhe – eu ainda não sei se posso fazer o que me pede.

– Só a falta do dinheiro impede um profissional de fazê seu serviço.

– A reputação também, senhor José.

– No tempo que isso existia – arrematou ele com maior clareza do que o repique de um sino numa noite silenciosa.

Eu sorri de leve, acuado por várias idéias que me ocorreram no momento. Fechei o livro que lia, virei-me mais para ele e pedi que contasse a tão propalada história.

– Assim é que se fala, homi. Quero que o sinhô comece lá no rio Itinga. Lugá cheio de jacarés, passarinhos de todo tipo, bichos que nem o diabo…

Obs.: Lamento profundamente que o descanso eterno tenha chegado a José antes de ver sua história editada. Explico, também, que traduzi a história que me foi contada, amenizando bastante a total falta de instrução dos protagonistas. É como se me tornasse intérprete de uma criança estrangeiracujo palavreado e língua precisassem ser adaptados para melhor entendimento sobre o que quis dizer ou exprimir. Feito esta observação, vamos ao relato:

1

 Um urutau melancólico lamentava da extremidade de um toco seco clamando por sua amada fugidia; no desvão de uma moita escura, os olhos metuendos e corruscantes de uma coruja espreitavam atentamente os derredores; lá na encosta do grotão, uma azulona chororocava, num aviso prévio de que as chuvas não estavam tão distantes; os esturros dos barbados e os guinchos dos macacos aos poucos substituíam o sinistro rumor da noite que terminava; as ararajubas ou guaribas matraqueavam na fruteira, ostentando o verde-amarelo de nossa bandeira, enquanto o bocejo deseducado de um jacaré chafurdado na lama fazia-se ouvir tétrico, cá e acolá, pelo pântano explanado.

José contorceu-se na rede, ajeitando a mulher que insistia em pressionar-lhe o estômago com o joelho. Ela balbuciou, sonolenta, qualquer coisa, e virou-se para o outro lado.

Lá fora, o dia ia rompendo, mais e mais, com o barulho típico dos noctívagos que se recolhiam, com a algazarra feliz dos pássaros que nasceram preferindo a claridade e o sol e com o cheiro das flores que desabrochavam, recendendo ao sabor dos ventos.

Paulatinamente, os sinistros uivos, rosnados, coaxares e silvos iam cedendo lugar aos gorjeios alegres das pegas, papagaios, araras, curiós, saíras e toda infinidade de uma das mais lindas e luxuriantes faunas aladas do mundo.

José sabia que por mais que tentasse, não reconciliaria o sono outra vez. Tratou logo de remexer-se quanto podia, tentando acordar a milagrosa mulher que, da alquimia do nada, todos os dias, inventava qualquer coisa para o desjejum.

Ela bocejou algumas vezes e depois dependurou as pernas, tendo nos olhos a lucilação de quem acorda sem esperança de dias melhores. Mas era feliz, e isto era o que importava. De que mais precisa um ser vivo do que acordar, ver o sol nascer, as nuvens no céu, ouvir o vozerio infindável da natureza, as águas correrem serenas pelo leito e a certeza de que cobrador algum baterá na porta, olhar torvo e malquerente, sempre denunciando nossa condição, ainda que involuntária, de caloteiro?

Maria do Carmo, ou Carminha, como sempre, desde os tempos de namoro José a chamava, num movimento brusco conseguiu sentar-se para, em seguida, pôr-se de pé e espreguiçar-se, estalando os nós dos dedos como se fossem feitos de gravetos secos. Abriu a tramela da janela, não estranhando a figura esguia e impertinente de Marcos, que se esgueirava pela perambeira do rio à cata de qualquer coisa.

O menino passava a maior parte do dia pelos matagais, usufruindo da mirífica paisagem que se descortinava ante seus olhos. Não se cansava de colher flores, de trazer filhotes de passarinhos para casa ou de mergulhar nas águas do rio para elevar os jequis de taquaruçus, armados por seu pai pelos igapós, onde os vorazes tucunarés ou as preguiçosas traíras andavam insaciáveis. Jamais ficava apreensiva por todos aqueles perigos, na certeza de que eles eram apenas mais um, naquele mundo em que a vida latejava. Tudo lhe era normal, como são normais as lutas pela sobrevivência de todos os seres vivos irracionais.

Olhou por instantes aquele cenário, cismando debruçada no peitoril da janela. Depois, tomando uma panela de alumínio corrugada, começou a descer o barranco do rio. As águas corriam céleres, mas nas curvas descansavam em remansos, amontoando limo e tajibibuias, tiriricas e toda sorte de mato aquático e plânctons que proliferaram, formando pântanos e igapós. Desses lugares ouviam-se sons agourentos, dando a idéia de mística angústia de desatinados. Carminha já ouvira e vira tanto aquelas coisas, que mal podia imaginar que alguém conseguisse espantar-se com o berro medonho dos socós, que pareciam bois chafurdados a agonizarem no meio da lama e do capinzal. Para ela, tudo aquilo era belo e natural, como não têm nada de triste nem diabólico para os irracionais, os olhos lânguidos de uma perereca que é engolida viva por uma caninana. Para a cobra, os gemidos de desespero são ovações celestiais, que lhe vêm dos céus pelo desempenho de sua triste missão.

Esfregou a panela ao rés da água, arremessando os ciscos que rodopiavam pelo remanso, enchendo-a de água limpa. Agachou-se, sujou o dedo com sabão e esfregou-o nos dentes. Passou bastante água pelos olhos, esfregou as mãos úmidas pelos cabelos desgrenhados, respirou fundo e foi voltando ladeira acima. Aquilo lhe era tão automático que, possivelmente, nem precisava acordar para realizar aquelas funções.

O sol despontava de mansinho, bem devagar, pelo céu azul pintalgado de nuvens esparsas. Era mês de dezembro, mês que, normalmente, as nuvens já passeiam pelo céu acompanhadas da balbúrdia dos primeiros trovões que prenunciam a chegada do inverno (período de chuvas), no estado do Maranhão.

Do alto, Carminha olhava melhor o panorama. Abaixo, o rio Itinga serpenteava entre morros e planícies, consciente de sua função de refrescar e alimentar todos os seres vivos que viviam as suas expensas. Do outro lado, a mata eterna e ainda intocável do Pará. Ali, as matas devolutas do Maranhão, aparentemente intermináveis, onde poucos seres humanos haviam pisado. José e Maria foram para lá logo que se amasiaram, e todo mal que fizeram à natureza em seus dez anos de estada naquele lugar limitava-se a menos de um alqueire de mata derrubada. Ali abriram uma clareira a fim de se resguardarem das canguçus, suçuaranas, porcões e cobras mortais.

Uma vez por mês, José caminhava 70 km a pé, levando, às costas, carnes moqueadas e ararajubas mansas, para trocá-las por sal, querosene e, vez por outra, quando as canas rareavam, açúcar.

Marcos, seu filho, nunca tinha visto, até seus cinco anos, um único ser semelhante que não fosse seu pai e sua mãe. Por sua cabeça jamais ocorrera qualquer alusão ao mundo que ia lá fora. Era apenas mais um entre todos aqueles animais que fugiam espavoridos de seus depredadores e perseguiam destemidamente seus depredados.

Nunca usara uma camisa ou um sapato e apenas três calções completavam sua indumentária. Apesar disso, era alegre, corria pelas veredas, revirava os matos, subia nos altos troncos secos e enfiava as mãos pelos buracos, ante os protestos dos psitacídeos que sentiam suas proles ameaçadas.

Ninguém podia afirmar se Marcos era feliz ou não, assim como jamais alguém deliberará sobre isso ao olhar um potro jovial a saltar, escoicear e rinchar pelos campos. Por que um pássaro canta; um macaco faz acrobacias; um ungulado eriça a cauda e torce o pescoço fogosamente; um peixe faz estripulias… por que os irracionais imitam nossos momentos de contentamento? Não podemos, senão, supor. Se tudo isto for resquício de felicidade, Marcos, indubitavelmente, era um menino feliz.

Vivia pelos matagais e temia apenas os duendes da imaginação, curtidos e fermentados pela mente pródiga de seu pai, que passava horas e horas indo e vindo no balanço da rede, contando histórias da Cobra-Grande com escamas asquerosas e chifres carcomidos pela velhice; do Matintapereira, aquela velha encarquilhada, que soltava grandes baforadas e se vestia de preto, como uma noiva enlutada; do Curupira, mutilado, pés e calcanhares retorcidos, disformes, hirsuto: mistura de gente e macaco, mas que tinha a boa índole de proteger as plantas e os animais; do Boto Encantado, que vinha dos mares para perverter as cunhãs; do Matinta, da Mãe-d´água, do Boiúna, do Mapinguari, da Naia, do Anum, do Caipora, sempre cheirando a fumo de corda; do Capitão-da-Mata, do Lobisomem, do Caapora, da Mula-de-Padre, do Boitatá e de toda a sinistra coleção que povoa as mentes supersticiosas dos caboclos.

Marcos aprendera, bem cedo, a enfrentar com estrênua galhardia, as sucurijus, as piranhas vorazes, os jacarés pachorrentos e ameaçadores; e a temer doentiamente, os fantasmas inexistentes do folclore.

Um dia, ele entrou correndo pela porta, cabelos enristados, respiração ofegante: tinha visto o Curupira. Não vira de todo, apenas o pé-virado para trás e… ah!, ouviu também uns ruídos estranhos e um assovio esquisito. Mas, não era nada, apenas um pássaro que voara de cima de uma raiz seca que se lapidara na correnteza das águas. José riu, embora em seu sorriso não houvesse a certeza de quem está convicto do que afirma.

Marcos era um animalzinho, com toda a perspicácia de um irracional que bem cedo aprende a conhecer e a perceber o perigo que o circunda e as necessidades que o rodeiam.

Tinha ouvidos afinados e atentos a todo e qualquer murmúrio ou ruído. Conseguia saber quando os pacus se entocavam sob os galhos dependurados das árvores, à espera das frutinhas, e deliciava-se em fechar os olhos e ouvir a piracururuca: a palração do cardume em debandadas sutis.

Sua pele era curtida, quase insensível aos espinhos e aos insetos. O frio da noite não o despertava, assim como jamais sentiu falta da maciez das coisas. Era o exemplo digno de que, até hoje, como nas modas, o ser humano anda em círculo, cansando-se inutilmente numa longa caminhada em busca de novidades, trilhando por esse caminho eterno que sempre leva ao mesmo lugar. A vida é um mistério simples que a insaciabilidade humana complica ou, pelo menos, tenta fazê-lo, sempre com a segunda intenção de levar vantagem.

José sorveu o chá de cidreira, degustou os frutos flavos de tatajuba e saiu para o terreiro. Nunca tinha pressa – havia sempre tempo para todas aquelas coisas de seu quotidiano. Nesse dia, entretanto, parecia apressado.

– Carminha, vou ver os mundéus. Fala com o Marquinho para ver os jequis. Quero deixar tudo certinho aqui em casa. Amanhã vou pro povoado. Bote as carnes moqueadas no saco e as ararajubas e o tucano-do-peito-branco nas gaiolas. Quero sair bem cedo. Ah!, mande o Marcos pegar frutinhas para os bichos. Não quero que eles passem fome pelo caminho.

Quando a noite já vinha perto, José chegou. Estava cansado, mourejante sob o peso de uma paca, dois tatus e um quati.

– A coisa hoje foi boa, Maria. Até parece que os bichos sabem quando precisamos deles.

– Eles não, mas Deus sim – falou Carminha, entreabrindo a porta para ver melhor o que o marido arriara no chão. Vamos agradecer a Deus.

E ali mesmo, de joelhos na terra batida da cozinha, José, Carminha e Marcos prostraram-se e, pelas frestas dos paus a pique, meteram os olhos para enxergar a benignidade de Deus. Lá no alto dos céus, abaixo de milhões de estrelas tremeluzentes, a lua delicada parecia esgueirar-se entre farrapos de nuvens que pareciam mendigos em seus andrajos espaciais.

 Naquele sem fim eterno morava o Senhor de tudo e, para eles, nada era mais Deus do que o infinito e seus mistérios.

2

 Enquanto sábios e cientistas queimam neurônios em busca de fórmulas que facilitem a conquista do espaço, ou cerram os cenhos na reconstrução do elo perdido de nossa origem, eu fico imaginando coisas simples que fazem com que um homem se embrenhe pelos matagais e caminhe (cada vez que necessita de alguma coisa) 70 quilômetros a pé, para, depois de tudo, viver na mais extrema solidão, lá no fim do mundo.

Um dia perguntei a uma criança, o que significava para ela, ser feliz. Em sua maneira de se expressar, ela disse que era levantar bem cedo, apanhar seus brinquedos, juntar-se com os amiguinhos e correr, brincar, até a noite chegar outra vez.

E para um racional adulto, o que significa ser feliz?

Quando já o sol e as trevas misturavam-se no amplexo da tarde, José arriava o pesado fardo e as gaiolas nos degraus de madeira da vendinha do senhor Alcides. Era o quarto dia de caminhada, e seus pés inchados e ombros doíam tremendamente. Ele estava exausto, alquebrado pela carga desajeitada que lhe roera o costado por mais de 50h. Mas, estava aí, respirando, e isto era motivo de elevar os olhos para o alto e agradecer a Deus. Logo que o reconheceu, o senhor Alcides gritou lá de dentro:

– Caboclo maluco, como tem passado?

– Maus pedaços, seu Alcides. A caminhada foi dura! Nesta época do ano, a gente não devia enfrentar as picadas não. As chuvas me molharam da cabeça aos pés e estou mais puído que arroz no pilão.

– Entre logo. Mané – goelou deseducadamente o senhor Alcides – recolha os alforjes do amigo e coloque ele no quarto dos fundos. E virando-se para José, obtemperou:

– Você ainda prefere aquele quarto, não é mesmo seu Zé?

– É, – confirmou ele meneando a cabeça – fica mais perto da torneira e tenho que cuidar dos passarinhos.

– Que veio pra mim desta vez?

– Apenas dois filhotes empenados de ararajuba e um tucano-do-pescoço-branco.

– Ótimo. Os paranaenses estão pra chegar e irão ficar muito contentes com os papagaios amarelos. Por falar nisto, seu Zé, sabia por acaso que as ararajubas só existem aqui por estas bandas?

– Não, não sabia.

– Pois é! Os brasileiros são os que menos sabem do que possuem. Disseram-me que na América do Norte a gente encontra mais bichos brasileiros do que nos zoológicos do Brasil.

– Pensei que fosse um papagaio comum.

– Já notou as cores que elas possuem, seu Zé?

– Bem, isto sim. Elas são verde e amarela.

 – Pois é, duas cores da bandeira brasileira, carregadas por uma ave totalmente nossa. Um dia farão dela a Ave Nacional. Vi escrito numa revista.

– Neste caso tenho que cobrar mais caro do senhor!

– Desconte da lição – retrucou brincando o Sr. Alcides, e continuou mudando de assunto. E nos sacos, que trouxe?

– Carne de bicho moqueada. É carne de primeira, o senhor vai ver. Eu mesmo quero almoçar dela amanhã.

O senhor Alcides era um homem de vida estranha. Apesar de falador, fechava-se sempre como um caramujo, tão logo se lhe perguntasse sobre o passado. Seu espírito brincalhão ajudava-lhe a livrar-se sempre das inconvenientes perguntas e assim, apesar dos anos, ninguém conseguira descobrir, nem de onde, nem por que viera parar no Maranhão. De uma coisa todos estavam certos: ele não era homem para aquelas paragens. Aquele sotaque francês e aquelas estantes apinhadas de livros e revistas davam-lhe um toque especial, que bem contrastava com aquela vida simples e desconfortável do interior.

Possuía um Jeep surrado com o qual vivia cobrando preços exorbitantes para todo e qualquer mortal que dele precisasse. Era como se fosse um Abutre de Ruppell, planando no alto, a vigiar a rês moribunda pelos savanas do Serengeti.

José conhecia-lhe bem, mas nunca tivera motivos para dispensar-lhe seus préstimos, pois era o único que lhe conseguia o que precisava, em troca do que ele arranjava lá no fim do mundo.

Quantas vezes, o Senhor Alcides, com os olhos voltados para o infinito, ficava a pensar, perdido em autoconfidências. Seus olhos baços e semicerrados pareciam puxar lembranças distantes e melancólicas, deixadas longe, em alguma parte do mundo. Era alto, quase magro, cabelos bastos e negros, pele de escriturário, barba sempre rapada e tinha por hábito usar sempre roupas claras. Estava ali com uma mulher delicada, jamais afeita ao mundo que se atinha. A filha única de seis anos falava enrolado (enrolado para os matutos), mas um francês razoável para quem tivesse cursado, ao menos, uma boa oitava série.

Vivia de uma vendinha, uma pensão com dormitório, o Jeep oportunista e um plantio de coco-da-baía, que frutificava naquele lugar. Ninguém jamais conseguira entender a razão daqueles trinta mil pés de coco, porque ninguém estava afeito a lidar com pensamentos europeus, ali no meio daquela selva eterna.

José estava a matutar essas coisas, quando a aldrava da porta entreabriu-se e meio rosto meteu-se pela greta, avisando:

– O jantar está na mesa. Apressei-o porque sei que deve estar morrendo de fome. Seu tatu o espera, fumegando. Se amanhã ainda estiver vivo, servirei o resto aos demais fregueses – pilheriou.

Não é preciso ter cursado a faculdade para saber que um homem, depois de quatro dias de caminhada, tem vontade de comer, como os lagartos hibernantes, a própria cauda. Por isso assentiu:

– É verdade, é verdade. Já estou indo.

Fora difícil para quem vira, admitir que, numa barriga, houvesse lugar para tanta comida. Por quase uma hora seguida, os maxilares trabalharam, e a velha correia de caititu resistira bravamente. Quando José levantou-se, o cinto estava entranhado no corpo, como uma cilha na barriga de um potro obeso.

– Há quantos meses não se alimenta, seu José? – gracejou o senhor Alcides, sempre dando vazão ao seu espírito divertido.

– Comida diferente desperta a gula. É como mulher alheia, não é seu Alcides? A gente sempre pensa que é melhor, até que se acostuma e vê que tudo é a mesma coisa.

O senhor Alcides riu, mas preferiu não tecer nenhum comentário, pois a presença de raparigas estranhas no povoado havia deixado as patroas cabreiras e assustadas. Qualquer comentário poderia desencadear aguerridas discussões em sua própria casa. Preferiu piscar os olhos e mudar de assunto.

No outro dia, porém, depois das trocas costumeiras, o senhor José saiu palestrando pelo vilarejo com o senhor Alcides. Ambos tinham uma boa razão para se acompanharem, pois um seria, em boa hora, razão para justificar o outro na visita furtiva que pretendiam fazer.

E quando os lobisomens davam perfis no espelho para a investida da meia-noite, já altos, os dois segredavam-se intimidades que somente o álcool é capaz de encorajar.

Os trêfegos e ciliados olhos das meninas da “Casinha” encheram-lhes da ilusão, que por tanto tempo estivera enjaulada dentro deles. Depois de desacorrentarem a libido, gastar o pouco dinheiro e já não sentir na carne o desejo da concupiscência, saíram cambaleantes pela rua, guiados pelo instinto de chegar à única pensão.

Entraram esbarrando nas portas, derrubando litros e, afinal, estirando-se numa velha poltrona que havia na sala. O senhor AIcides, já com a face destituída de expressão, tomou uma estatueta na mão, alisou-a por algum tempo e começou a falar:

– Pois é, seu Zé! Estamos aqui, parece-me, bêbados, a enfrentar um mundo desgraçado e austero. Você é um matuto doido, esquisito, por isso vou contar-lhe meu segredo. Preciso falar, senão acabo ficando louco. Você conhece aquela historinha do barbeiro que viu que o rei não possuía uma das orelhas?

Com os olhos semicerrados e rubicundos, José fitava seu interlocutor, certo de que estava prestes a matar uma curiosidade de tantos anos. Com medo de estragar tudo, preferiu calar-se, negando apenas com um meneio da cabeça. O Sr. Alcides, já esquecido das orelhas do rei, começou:

– Isto é ébano, conhece? A madeira mais negra, cara e pesada do mundo. Experimente – e dizendo isto, passou-lhe a estatueta.

– Isto não é de chumbo não, seu Alcides?

– Não, é madeira mesmo.

José devolveu-lhe a imagem e ficou visivelmente apreensivo. Alcides pigarreou, escolheu um canto e cuspiu, retomando o fio da meada.

– Isto foi o que pude salvar de minha fortuna – esta porcaria e algumas mudas de roupa.

– Como assim? – apressou-se o senhor José, temendo que a demora desanuviasse o efeito do álcool e pusesse tudo a perder.

– Foi no Congo, lá na África, em 1960. Acho que foi neste ano – disse ele, como a localizar e prender a memória fugidia. Era eu um alto funcionário do governo e houve uma rebelião. Os negros armados de alfanjes e de todo tipo de ferramentas de que dispunham, investiram contra o regime. Eu estava no palácio e quando fui avisado, corri para casa. Só pude ver minha mulher e filhos destrinchados pelo chão. Como louco, apanhei uma mala que estava ao alcance, joguei o que pude dentro dela e ordenei ao chofer para que se dirigisse ao aeroporto. Quando o avião decolou, vi ainda, pelo vidro lateral, a horda embrutecida que chegava, degolando os brancos e esbravejando aos ares. Lembro-me ainda da figura desesperada do bispo de Brazzaville, de joelhos na pista, mãos postas…

Fez uma paradinha como a forçar a lembrança e completou consternado:

– Foi horrível!

O avião ainda deu duas voltas sobre a cidade e pude ver, neste curto espaço de tempo, que o mais feroz, cruel e desapiedado dos seres, é o homem. Naquele curto espaço de tempo, pude alucinar-me por uma existência inteira, ainda que vivesse como Matusalém.

– Matusalém? – interferiu o caboclo, certo de que nada mais poderia refrear aquele desabafo.

– É um personagem bíblico, seu Zé, o homem que mais viveu neste mundo de Deus.

– Ah, sim! – consentiu incredulamente o matuto.

O Sr. Alcides continuou:

– Quando cheguei a Paris, fui responsabilizado por tudo e antes que os trâmites legais levassem-me às barras dos tribunais, evadi-me. Helena, minha mulher agora, foi a amiga que arrumou tudo e que planejou nossa fuga. Anastace, minha filha, é brasileira, nasceu aqui mesmo no Maranhão.

E dizendo isto, quietou-se, como se aquietara e respirara fundo o Sr. José quando arriou aquele peso terrível que trazia às costas. José esperou um pouco e vendo que seu amigo não queria dizer mais nada, arrematou:

– A vida é assim mesmo, seu Alcides. Todos nós temos problemas e ninguém vive sem eles.

Mas, José bebeu menos, e seu segredo continuaria obscuro. Sempre há uma razão para justificar as ações anormais de um homem. Ninguém melhor que Alcides sabia disso. No entanto, nele, havia mais desejo de dizer o que sentia do que descobrir as razões que levaram o senhor José a viver, como um ermitão, lá em meio à selva distante. Mas, que havia uma razão, ele tinha certeza. Ninguém busca a própria desgraça ou, quando nada, a solidão em vida.

3

 A passos arrependidos, o caboclo ia retornando, levando às costas, um peso bem menor do que aquele que lhe roia a consciência. A primeira infidelidade custara-lhe o dinheiro e as coisas indispensáveis ao abraço feliz de Maria e ao encontro pueril e angelical de Marcos, seu filho. Pela primeira vez, não tinha no picuá, o sabonete perfumado, nem as balas-doces. O dinheiro não dera.

José não saberia precisar, agora, o tempo em que sentira na alma tais vergastes. E tal era a dor de seu coração, que mal podia sentir o cansaço daquela caminhada sem fim. Ultrapassando rechãs e valões, arregaçando as calças para atravessar brejos e regatos, esfregando, quando em vez, o braço na testa para retirar o suor que lhe ardia nos olhos, lá ia José, passos incertos, martirizando-se com esta coisa inútil e irreversível que é o passado. O passado deve sempre ser lembrado como advertência para o futuro, jamais como angústia.

A noite despencava com subtaneidade tropical. José improvisou uma lamparina, usando um gomo de taquaruçu. Derramou um pouco de querosene dentro, fazendo o pavio com as sobras do barbante que amarrava a boca do saco. Olhou para o céu: os primeiros pontinhos luminosos das estrelas piscavam lá e cá, por entre as frestas do dossel da floresta. Deverá ser uma noite boa, sem chuvas – imaginou, enquanto atava as pontas da rede em dois varões da mata. Examinou o alto para certificar-se que nenhum macaco (galho seco dependurado) estivesse por cima. Depois, desatou o picuá e retirou a lata com farofa e começou a comer, lentamente, como se aquilo fosse mais uma obrigação do que um prazer necessário.

Aquela noite na “Casinha” foi como se houvessem arrebentado, dentro de si, as jaulas em que há tanto tempo, os anjos e os demônios viveram separados. Lutas terríveis desencadearam-se dentro de sua alma, incomodando-lhe na conciliação do sono e do descanso.

Ficou a olhar o alto, insensível aos ruídos fantasmagóricos dos corujões, aos esturros da pintada insultada em sua privacidade, aos gritos agonizantes dos sapos, lá no alto dos gravatás. Era lindo o universo, principalmente para o entendimento de um caboclo. O firmamento era belo, belo e imenso. Nada mais propício para justificar a existência de Deus, que é tão óbvio e pai para os pobres de espírito e tão desconhecido para os incrédulos e abastados

“Quais as expressões humanas – diria Léon Denis – que vos poderiam descrever os maravilhosos diamantes do escrínio celeste? Sirius, vinte vezes maior que o nosso Sol, e este, a seu turno, equivalente a mais de um milhão de globos terrestres reunidos; Aldebaran, Vega, Prócion, sóis rosados, azuis, escarlates, astros de opala e de safira, sóis que derramais pela extensão os vossos raios multicores, raios que, apesar de uma velocidade de setenta mil léguas por segundo, a nós só chegam depois de centenas e de milhares de anos! E vós, nebulosas longínquas, que produzis sois, Universos em formação, cintilantes estrelas, apenas perceptíveis, que sois focos gigantescos de calor, luz, eletricidade e vida, mundos brilhantes, esferas imensas, e vós, povos inumeráveis, raças, humanidades siderais que os habitais! Nossa fraca voz tenta, em vão, proclamar a vossa majestade, o vosso esplendor; impotente, ela se cala, enquanto nosso olhar fascinado contempla o desfilar dos astros! Assim como a espiga se acha em germe no grão, o carvalho na bolota, a rosa em seu botão, assim também a gênese dos mundos elabora-se na profundeza dos céus estrelados.”

Jamais sentira isto, ou se sentira antes, fora há tanto tempo que nem mais se lembrava. Retirou um pedaço de fumo de corda e com seu alfanje, desconfortavelmente, ficou a picar o fumo para o cigarro. Depois, tirou fortes baforadas, anuviando os derredores, como se mil matintapereiras estivessem a cachimbar espicaçando as muriçocas que, a qualquer preço, não queriam abster-se daquele regalo.

Agora, os saltatórios cricrilavam e as trêmulas luzinhas que um pouco antes piscavam no céu, já se firmavam como estrelas reluzentes. A noite ia avançando, mas José não sentia, nem sono, nem cansaço. Já cria sem reservas que algo terrível se passava dentro de si. Sentia-se imbele à sensatez e diante de sua fraqueza, as hostes progrediam, assegurando-lhe de que não era justo acabar-se naquele fim de mundo.

Acendeu outro pito – era um dos poucos prazeres que se sentia no direito legal de usufruir. Tragou-o com a volúpia de quem se agarra na imaginação para substituir desejos obscenos e impossíveis de se realizarem.

Escutou passos sorrateiros de um sarué por sob a rede. Os gambás têm um olfato apuradíssimo e não se importam com a presença de quem quer que seja na hora do repasto. Sal e cachaça, então, afetam agudamente suas narinas supersensíveis.

José aguçou os ouvido para não incorrer no erro irreversível de saltar sobre o dorso de uma onça. E quando percebeu que algo malinava nas coisas, deu um salto da rede, espicaçando o intruso para longe. Depois dependurou tudo em lugares altos, pois tinha como certo que só assim se livraria da renitência daquele bicho asqueroso e faminto.

A noite caminhava, testemunhando amiúde, sua consciência conturbada. Por mais que tentasse se livrar da dor daquela primeira experiência aquém da pureza dos seus últimos dez anos, mais a angústia penetrava em sua alma, como alguém que, doidamente, insiste em livrar-se das insídias da areia movediça. Sentia-se delatado, incriminado, simplesmente por ser quem era – um homem vagabundo e egoísta, que arrancara das mãos de seus entes queridos, o sabonete e as balas-doces. E eles estariam lá no fim do mundo, preocupados, rezando, olhos estriados para a picada, ansiosos por ver surgir no matorral, a figura amiga e querida do maior dos companheiros.

Sempre quando retornava, era como se algo de muito importante estivesse por acontecer. Carminha e Marcos ficavam impacientes, com os olhos fora das órbitas, vendo desamarrar a boca do saco, donde sempre ressurgiam embrulhinhos com rótulos multicores, como se estivessem vindo dos céus. Era tanta a alegria, como talvez não tenha sido tão grande, o contentamento de Ruth ao ser presenteada por Van Aldin com o “Coração de Fogo”. Compensação sábia e sensata de Deus!

José desceu da rede e arrumou sua tralha. Já se podia sentir o espreguiçamento da noite, ante o despertar do sol. Foi jogando tudo nas costas e, sem demora, meteu pé na estrada. Não acontecendo nada de errado e suas pernas suportando, estaria em casa um pouco antes do anoitecer. Era o terceiro dia de caminhada e estava deveras surpreso em sentir que seu corpo não doía, como se o castigo da alma aliviasse as dores do corpo. Não havia nada de mais desejado naquele caboclo, do que o desejo de apagar da lembrança, o saruá de uma noite recente, a fim de livrar-se daqueles olhares frustrados, daquela esperança morta, daqueles sorrisos que, por certo, desfaleceriam em seus braços na hora que adentrasse no terreiro.

Seu coração apertou-se ainda mais quando, ainda de bem longe, o nariz aguçado de seu esquelético vira-latas denunciou-lhe a presença. Foi então que imaginou que teria de explicar a razão de estar aí, com as compras reduzidas e os presentinhos esquecidos. Não encontrava coragem para dizer a verdade e ainda que encontrasse, não via razão nem bom senso para dizê-la. Diria que foi roubado, que os preços dos pássaros e da carne moqueada haviam caído, que não havia em estoque, nem sabonetes, nem balas-doces…

 O gafento cão acuava freneticamente e seus ganidos não eram de raiva, nem de espanto. Carminha veio à janela:

– Marcos, seu pai está chegando, vai encontrar ele, meu filho.

O menino saiu ventando da sala de chão batido.

– Pai, pai, trouxe as balas? – e dizendo isto atirou-se sobre o cacaio, enroscando-se no pescoço de José.

Mais atrás, Maria vinha arrumando os negros cabelos desgrenhados, com um sorriso de felicidade a andar-lhe por toda a face. Sobraçou o marido e filho juntos, num enlaçamento que misturava suor, alegria, simplicidade e angústia.

– Foi tudo bem? – perguntou ela laconicamente.

Ele baixou o cacaio no terreno e seus olhos, de uma angústia infinita, faziam coro com a tristeza de seu coração. Sentou-se, respirou fundo, alisou a cabeça do cão que chicoteava o rabo como louco, puxou para si Marquinho e, sem saber o que dizer, baixou a cabeça.

Conforme o entendimento, o peso do erro, porque conforme o que o homem tem no coração, assim será ele. Por isso, José estava triste.

Maria aproximou-se, encostou os quadris em seu rosto mourejante e disse com a perspicácia de um animal selvagem:

– Não precisa dizer nada, meu velho, a gente entende. As coisas estão difíceis, a gente sabe. Vem pra dentro que o chá está quentinho. Eu senti no coração que você chegaria hoje, juro que eu sabia.

E suas mãos andavam pelos cabelos de José, molhando-se com o suor que ainda escorria.

– Você é uma mulher maravilhosa, Maria. Eu gosto de você. Foi o melhor presente que Deus me deu – você e o Marcos. Eu não mereço vocês.

– Não fale nada, venha pra dentro.

Então, ao tentar erguer-se, José sentiu que estava moído, arrebentado como se tivesse sido atropelado por um caminhão. Sua mente, porém, aliviava. E foram tantos os propósitos daquela noite, que não fosse a presciência de Deus, teria José convencido o próprio Criador.

No seu coração, porém, jamais se apagaria aqueles olhinhos ávidos de Marcos, a correr de embrulho em embrulho, indo parar no acaso da frustração. Seria fácil para ele se pudesse dizer: – “Meu filho, o dinheiro não deu” – e toda a verdade pudesse estar hasteada nesta oração. No entanto, a frase não poderia honestamente fechar-se ali, pois havia algo mais, que embora Marcos desconhecesse, Maria subentendia e ele jamais poderia negar.

Como é relativa a justiça de Deus! Para José, aquela noite na “Casinha” equiparava-se ao desassossego sofrido pelos genocidas em suas desumanas mortandades. Não pelo peso dos erros, mas pela sensibilidade das consciências.

E o sol novamente nasceu, os patos selvagens grasnaram pelos liames dos igapós, as piaçocas saltitaram pelo junco, o loango deslizou mansamente para o fundo do remanso; Marcos correu como sempre; Carminha subiu e desceu a perambeira do Itinga; lá embaixo, com suas águas cor de mate, cheio de material orgânico, o Itinga continuava seu caminho; o pé-de-serra piou emburrado no sopé da encosta… Apenas na alma de José, não mais se estampou o brilho da simplicidade. Havia no seu coração, uma coisa tristemente diferente, germinando com todo vigor, não obstante sua vã relutância. E embora o erro seja humano, José ainda não entendia que, o importante não é ser perfeito, mas sim, lutar para ser. E se ele se considerava um homem bom, não conhecia as provações do céu, que o faria ver e entender que, quanto mais o homem se apressa, mais tropeça no caminho.

 4

 José vivia de olhos perdidos lá para o outro lado do rio. Era lindo olhar aquele mundo intacto, mas José nunca fora homem de muitos pensamentos. Andava cabisbaixo, guiado por obrigações instintivas, desempenhadas por longos dez anos naquele fim de mundo. Mexia-se na rede, acordava Maria, dormia novamente. Erguia-se, dizia algumas orações, que seriam ininteligíveis (não fosse Deus também caboclo), tomava seu chá com macaxeira, bolbo de cará-do-norte ou inhame. Descia, lavava os olhos, tomava uma rústica piroga, quase uma jangada, atravessava o rio, examinava os mundéus do lado do Pará e chegava sempre para o almoço.

Estendia-se novamente na rede e roncava na sesta, ao embalo do ritmo descompassado de panelas areadas e aos gritos de Marquinho que perseguia qualquer coisa lá fora. À tarde, verificava as armadilhas do lado de cá do rio, enquanto Marcos mergulhava no Itinga, na verificação dos jequis.

Quando a noite chegava, os três fechavam as portas, acendiam palhas e paus podres intumescidos para afugentar os pernilongos e rezavam em meio daquela fumaça, que para tantos, seria asfixiante.

Fora uma rotina de dez anos e, por isso, aquela mudança repentina de ser logo despertou a preocupação da mulher. Em sua cabeça germinava a semente da ilusão que deixou cair, dentro de si, por ocasião de sua última viagem. As palavras do senhor Alcides, de que ali não era lugar digno para um ser racional; de que a vida foi feita de prazeres e que nem mesmo temos o direito de rejeitá-los; de que não distante daquele povoado, surgia e crescia a cidade de Imperatriz, que segundo comentavam, seria a capital do novo Estado do Tocantins; que somente um tolo não iria para lá para crescer junto com ela; que o que havia visto e feito na “Casinha” não era nada em comparação ao que o mundo lá fora tinha para oferecer;…

Por tudo isto era fácil perceber que alguma coisa estranha se passava na cabeça de José, quando ficava debruçado no peitoril, olhos perdidos ao longe. Um dia, enquanto mexia qualquer coisa numa velha panela, Maria observou-o amiúde e pôde ir além das suposições:

– Zé, que está acontecendo com você, meu caboclo?

– Estava apenas pensando.

– Você nunca foi de pensar, Zé. Que está escondendo de mim?

– O senhor Alcides…

– Ah, o senhor Alcides! – entrecortou Maria, não sem deixar transparecer os pensamentos escusos que mantinha sobre o tal forasteiro.

– Você não o conhece, Maria. É um bom sujeito. Esteve me aconselhando umas coisas e estou pensando nelas.

Maria deixou a panela e fitou José, desconfiada. Havia qualquer coisa na voz dele, um tom melindroso, como quem pisa de mansinho em terreno escorregadio.

– O que foi que ele disse?

– Bem, ele acha que não temos o direito de morar aqui, principalmente agora que o menino precisa de escola e…

– Zé! Não fomos sempre felizes aqui? Para que esticar tanto as esperanças? Às vezes, Zé, a metade é mais que o todo. Pra que procurar uma coisa que não faz falta pra nós? O pouco que Deus nos deu já não enche nossos corações? Conforme a vasilha, Deus dá a água, Zé.

Maria instava numa relutância desesperançosa. Ela sentia que seu marido não estava procurando conselho, nem orientação; ele tentava encontrar apenas um jeito menos cruel de dizer que estava decidido: iriam mudar para a cidade de Imperatriz. E nada é mais cruel do que a imposição de um chefe.

Ela estava certa, ou pelo menos conforme o pensamento de Platão: “Nada melhor pode um mortal pedir aos deuses do que uma casinha no bosque e uma fonte perto de casa”. E isto os deuses haviam dado sem usura, sobejamente. No entanto, há pessoas que não querem ver, nem entender os caminhos mais simples.

Quando sentiu a realidade de tudo, Maria achegou-se a ele, afagou-lhe os cabelos numa desusada apelação feminina. Mas, apesar de amá-lo e de toda sua sinceridade, não conseguiu dissuadi-lo, pois os méritos morais não são lá muito românticos. José ficou imóvel, aparentemente vencido pelos argumentos. Para tudo há um limite.

O sofrimento do homem pode guiá-lo à equanimidade, como Gandhi; transformá-lo num revoltado justo e coerente, como Leon Tolstoi ou subjugá-lo ao infortúnio da marginalidade e da revolta, como quase toda a humanidade. Os seres humanos não entendem que a mansidão, sozinha, é capaz de acalmar, até mesmo, a fúria dos déspotas.

O espírito reage, luta, mas, quase sempre, a luta é inglória e ineficaz. E foi assim que “Exu” destronou Jesus do coração de José.

Os dias se passaram um pouco mais. Para Carminha, aquele mundo natural enevoava-se a seus olhos e seus passos, então, eram os de uma condenada que caminhava para o cadafalso. E foi assim que, num dia quente de abril, quando já as chuvas tinham se ido, três figuras indecisas lançavam os últimos olhares para a pululação do Itinga e das matas, onde tudo era vida e beleza, harmonia e equilíbrio. Ali estavam tão fundas as suas raízes que, a cada passo era como se extirpassem dos pés e do coração, pedaços que teimavam ficar.

– Pra onde vamos, mãe? – perguntou atônito Marquinho, que mal podia conjecturar o destino daquela decisão.

– Não sei, meu filho. Sinceramente não sei. Gostaria muito de estar certa que não estamos indo a procura de nosso próprio mal.

– Não vamos mais voltar?

– Pergunte a seu pai, filho.  Estou sem saber como você.

– A gente volta, pai?

José meneou a cabeça, evitando aqueles olhares acusadores que conseguiam, com a mansidão, arremessar-lhe às costas, todo o peso daquela responsabilidade moral. Depois, refazendo-se como podia, enfatizou:

A gente vai pra cidade, melhorar de vida, dar escola pra você… a vida vai melhorar, vai mudar, filho, você vai ver. Quero ver você estudado, um doutor. A gente vai ganhar dinheiro, muito dinheiro. Você terá, todos os dias, bem pertinho de nossa casa, balas-doces e muita criança pra brincar. Eu vou arranjar serviço, lá tem muito. Dizem que descobriram uma montanha de ouro, chamada Babilônia, a 358 quilômetros de Imperatriz e todos que vão lá ficam ricos. Eu vou logo pra lá. Ah! filho, você vai ver! Não vai mais precisar ficar dentro do mato, nem entrar na lama para levantar jequis…

E José falava, falava como um visionário antevendo coisas que nunca estiveram nele. Maria ia mais atrás e não pôde conter as lágrimas. Elas lhe desceram pelo rosto, como prenúncio de um triste futuro. Se ali havia alguém que soubesse de toda aquela desdita, este alguém era Maria, que embora simples, era mulher, e acreditava, como São Paulo, que o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males.

Numa família, a mulher é, na maioria das vezes, a pessoa mais sensata. Ela pressente, cheira longe, desconfia, adivinha e conclui com a precisão matemática de um acoplamento espacial. Por isso Maria chorava, não obstante José estivesse possuído por um raro momento de loquacidade.

Três dias depois, a penosa jornada chegava ao começo. Quando avistaram a Belém-Brasília, mesmo para José, foi como se despertassem de um pesadelo. Foi num relance de segundos, que José pôde sentir a grande loucura que praticara, mormente contra sua mulher e filho. Ali, na beira do caminho, sem dinheiro, sem pertences, sem amigos. Seu rosto afogueou-se, como acontece às pessoas quando cometem um erro irreversível. Desfez os pensamentos com um nuto e ficou a acenar para qualquer veículo que passasse. Uma gaiola de bois vazia parou e depois de algumas palavras, os três entraram na boléia.

Marcos olhava cada coisa, como não o faria diferente, um bracaiá recém-enjaulado: assustado, perplexo, inquiridor. Jamais imaginara um mundo assim, diferente do seu. Seu ouvido parecia estourar às explosões dos pistões e seus olhos doíam ante o reflexo do sol descoberto.

Quando chegaram a Imperatriz, o próprio José estremeceu. Não imaginava que aquela vila de dez anos passados houvesse chegado a tal progresso. No lugar das lagoas e das juquiras, casas e prédios ligavam-se e onde se passava de calças arregaçadas, agora havia asfalto e muitos carros trafegando ou estacionados.

Dali do entroncamento ficou a olhar tudo aquilo, confuso, quase desvairado. Ao seu lado, Maria seguia como uma autômata, triste, silenciosa e acabrunhada. Agarrado às pernas de suas calças, como um animalzinho selvagem, Marcos palpitava, totalmente dependente.

E depois de tanto cansaço, fome e humilhação, foram meter-se num beco imundo, nas mansardas do Bacuri, rodeados de gente estranha que vivia na mais extrema miséria. Como os antigos guetos, o Bacuri expandia-se, medrava como doença contagiosa. Aquele lazareto, quartel-general de toda sorte de infâmia e miséria, alastrava-se como um quintal da cidade, onde era lançada a ralé desprotegida – universidade de marginais que proliferava com a anuência das autoridades. Os derredores, pejados de imundícies, exalavam toda sorte de maus odores, dando um toque autêntico à miséria e à desolação. As famílias viviam acaçapadas em quartos, mantidos de pé pelas mãos de Deus… ou do diabo – ninguém poderia precisar. Foi então que José começou a perceber que poderia ter encontrado mil maneiras diferentes, e melhores, para fazer sua própria desgraça.

Na solidão, sentindo o contraste com o mundo donde viera, com gritos clangorantes de pessoas desvairadas substituindo os gorjeios maviosos dos passarinhos e com odor nauseabundo dos lixos em substituição ao cheiro das flores silvestres do Itinga, Maria carpia desconsoladamente.

Nenhum tempo fora melhor que aquele, em que podia afundar-se nas águas do Itinga e sentir, pelo corpo nu, as mãos cupidinosas do vento, que lhe acariciavam os seios e todo corpo, na volúpia delirante de quem consegue fazer, com pureza, até mesmo coisas que tanta gente condena. Nenhum tempo é melhor do que aquele em que se pode sonhar e ter prazer, sem a ameaça da espada justiceira dos preconceitos. Ali se mostrava muito mais do que fora, depois de Adão e Eva, a intenção do Criador, mas sem maldade, nem malícia. A pureza explícita que Deus quer na sua criação, ali se tornava rediviva. Nada há de bom, ou mal, de feio ou bonito, de puro ou de sujo, a não ser que assim os nossos pensamentos os transformem.

Mas agora, nada de flores, de água límpida e farta, de peixes frescos ou de carnes moqueadas; de brisas suaves, de silêncio profundo, em que mesmo os élitros dos grilos incomodavam. Barulhos ensurdecedores, palavrões, tiros e brigas – dias e dias sem emprego, sem comida decente, sem água pura para beber. Quando o vento dava, os papelões dos flancos entreabriam-se e a claridade de alguma luz distante penetrava em danças boreais, fantasmagóricas e inexplicáveis, como visitas furtivas de almas penadas. Era o bruxulear da noite em seu palco de terror.

Marcos dormia, José matutava e Maria agarrava-se a ele, na vã esperança de um abrigo.

– “Mundo de mixórdias, de desgraças e desilusões!”

 E o caboclo insurgia em blasfêmia. Em sua mente, não havia mais entendimento para convencê-lo de que teria de levar o resto da existência para safar-se daquele ato impensado que o arrancara do convívio da natureza e o lançara nos cortiços hostis de uma cidade.

 E José pensava, Marcos dormia e Maria chorava.

5

 Revirar lixeiras de supermercados, das feiras ou da margem da estrada Imperatriz – João Lisboa tornara-se uma constante na vida da família. Aquela cor acarminada nas bochechas atingidas pelos raios solares, agora eram de um lívido tímido e desolador.

Quando Marcos completava seus seis anos, sua mãe deu à luz Raimundo, uma criança que parecia nascer na mais perfeita nutrição. Cabelos hirtos e negros, tez rosada, compleição perfeita e pesando quase quatro quilos. Veio ao mundo espontaneamente, sem cirurgião, sem anestesia, sem nenhuma chance à classe que tenta modificar as regras da natureza, impondo nascimentos por incisões rendosas. Ali mesmo, num catre, com a cabeça recostada num velho coxim, ela sofreu, suou, esvaiu-se, debilitou-se e viu nascer seu segundo filho. Olhou-o tremelicando por entre uma lágrima de tristeza e amor. Não conseguia saber ao certo se devia estar feliz ou não. Era uma visita amiga que chegava em hora inoportuna.

Logo, logo Marcos se deu conta da vida. Começou a engraxar sapatos, vigiar e lavar carros nos estacionamentos, carregar ramalhetes da floricultura aos endereços, malas dos passageiros, enfim, realizar todo e qualquer trabalho honesto que lhe caísse nas mãos. Muitas vezes não vinha para o almoço, e não foram poucas as vezes que sua mãe, de olhos cansados, numa modorra própria de quem a debilidade desterra, ficava olhando pelas frestas no afã de vislumbrar, lá no início da rua, aquela figura de pendor especial, com a qual Deus, bondosamente, a presenteara. Quando ele chegava e depositava em suas mãos aquelas notinhas amassadas ou aqueles níqueis tilintantes, Maria sentia no coração um aperto indizível de quem ama com força de apostasia. Que Deus a perdoasse, mas realmente, não havia no mundo, para ela, alguém de quem amasse mais.

Aquele calçãozinho esgarçado, sandálias de número e cores diferentes, cabelos revoltos, pele suada e marchetada de poeira, tez abacinada pelo sol causticante, representavam, para Maria, a razão suprema de sua existência.

Com toda economia do mundo, Maria conseguiu para Marcos dois calções e uma camiseta de propaganda eleitoral (uma destas poucas coisas que a torpeza política às vezes faz de bom) e uma sandália de dedo nova, que só ele usava para assistir à missa das crianças aos domingos. Desde cedo, a religiosidade penetrara fundo naquele coraçãozinho inocente, exposto a todo perigo e perversidade.

E, enquanto Maria esquentava o pão, Marcos borrifava-se com a pouca água de um velho balde verde de plástico. Depois, comia aquilo com a voracidade de um cão faminto e saía pra rua. Maria o fitava, enquanto na rede ao lado, José ficava a pitar envolto em fumaça e pensamentos confusos. Jamais encontrara emprego e ia mantendo a vida com o desperdício dos ricos. Estava, aos poucos, acostumando-se às verduras. Eram mais fáceis de conseguir. Carne, nunca mais experimentara.

Agora que nascera Raimundo, o espaço de dez metros quadrados ficara ainda mais reduzido, mas ninguém ousava comentar nada. Era como se o silêncio desse trégua ao problema.

Mais uma noite! Maria espantou os mosquitos de Raimundo, afastou um caixote, aconchegou-se na enxerga e pôs-se de joelhos. José ergueu-se perfunctório, mais pelo hábito do que pela fé. Marcos, de mãos postas, ergueu os olhos pueris para o alto – um alto sem estética, sem cor, sem beleza – um alto apenas, onde, quando muito, estivessem os pés do Senhor.

– Ave-Maria, cheia de graças…

Maria agarrava-se àquela força misteriosa que fez de pecadores, santos; de um advogado magro, doente e quase desleixado, Gandhi; de tantos covardes, mártires indômitos.

 Marcos olhava a vida, como se assim ela fosse para todo mundo, e José pairava no topo, olhando as vertentes das desigualdades e já não tinha fé para entender tais injunções.

…agora e na hora de nossa morte, amém.

A lua andava pelo espaço, num reide incansável. Sua luz entrava pelas rachaduras e podia até ser bonita, não fosse o antro fétido daquele submundo. Quantas noites aquela mesma rotina. Lá fora, os ruídos de um mundo de miséria: um bêbado que cantarolava desafinado; um alérgico que aspirava com a força de uma bomba de sucção entupida; um tuberculoso que escarrava sangue, levando aos ares o aparente descaso de Deus; os vira-latas acuando impertérritos, a loucura daquele mundo-cão; um rato faminto dividia, sem revolta, aquele habitat todo seu.

Aos poucos, aqueles sons iam desaparecendo na inconsciência do cansaço. Então, Marcos, Maria e José podiam receber a demência dos sonhos e devanear pelas margens do Itinga, sonhando com o silêncio profundo de uma noite de luar.

Ali estava a Imperatriz sonhada, cheia de promessas. Do dia para a noite, como multiplicação bacteriana, gente chegava em busca das apoteóticas fanfarronices dos desocupados, que propalavam facilidade de enriquecimento em torno dela. Forasteiros chegavam de cada canto, usurpando direitos, massacrando desvalidos e fazendo a justiça a seus modos. Os esgotos eram drenados para as avenidas e os montes de lixo empanturravam cães e crianças famintas, numa demonstração inequívoca do abandono geral. Não foi por muito mais que o próprio “Mahatma” desabafou um dia: “Encontro-me em perpétua querela com Deus, pelo fato de Ele permitir que tais coisas continuem a acontecer”.

No pântano do Itinga, mil vidas se depredavam, só que o homem ficava no topo da pirâmide. Aqui, não, homens subjugavam, usavam e até mesmo destruíam os semelhantes. Por trás das manchetes dos jornais e da TVs, Imperatriz mantinha-se preeminente em termos de violência, ocultando na dimensão, a pequenez de seus sentimentos.

Verdadeiros bandos de sátrapas, bandoleiros, traficantes e pistoleiros andavam impunes pela cidade, como se a Polícia a justiça no existissem. Antes, eram acusados de inoperantes e até mesmo, coniventes. E o descaso chegou a tal ponto, que o famoso humorista da Globo, Chico Anísio, chegou à pilheriar: “Se alguém precisar de um pistoleiro é só discar 721…!” Nesse tempo, 721 era o código de Imperatriz.

Muito depressa, embora sem o amparo da lei, castas eram formadas num verdadeiro descaso à imaginação hindu. Jamais uma cidade tivera tantos grupos de policiais, políticos, marginais… numa luta desumana pela hegemonia.

Jamais uma pessoa sensata tivera chance de vê, tão de perto, o mais apurado da mesquinhez humana. As bandalheiras eram feitas a céu aberto e, às indiretas dos jornalistas, respondia por vezes o próprio governador, exigindo que se citasse nomes (quem tivesse coragem) que ele mandaria prender imediatamente.  Essas ameaças eram meras grandiloqüências. Não impressionavam nem estimulavam a Polícia a prender qualquer bandido. Ela sabia que, em se consumando tal ato de bravura, a Justiça soltaria logo em seguida.

Ninguém poderia precisar, exatamente, num confronto comparativo, quem crescia mais, se a população ou a torpeza.

Em toda sua extensão, rompendo séculos, a exortação do Senhor encaixava-se sob medida: “Porque todo o que já tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; e o que não tem, tirar-se-lhe-á o que parece que tem”. A abundância e a miséria eram levadas a cada pessoa numa intensidade tal, que vilipêndio e pomposidade andavam de mãos dadas, num desfrute de sádico prazer.

E José agora imaginava: “Por que o senhor Alcides não tava ali, onde não retinha dúvidas de existir o progresso e a felicidade?” E a fumaça das guimbas coletadas nas ruas saía da boca de José, como tufos de insegurança, insônia e tristeza.

– Durma Zé – resmungava Carminha – recitando um velho versículo bíblico que aprendera de um pregador: “Porque o dia de amanhã a si mesmo trará seu cuidado; ao dia basta a sua própria aflição”.

– É certo, muito certo – respondia José, enquanto apagava com as pontas dos dedos insensíveis, a brasa do cigarro.

E os dias foram nascendo e morrendo. José sem emprego, Marcos trabalhando dia e noite em sua autonomia de criança, e Maria, cada vez mais fraca e triste. Para piorar, engravidou e antes que Marcos completasse seus nove anos, nasceu Djanira, uma criança de compleição perfeita. A miséria abateu-se por completo e José teve de desfazer-se da única coisa que mantivera uma vida inteira como ponto de honra: a vergonha.

Começou a esmolar, a submeter-se a mandos humilhantes e acabou por aceitar, inclusive, um emprego provisório num carro “Big Jato”, um carro pipa que fazia limpeza e transporte dos dejetos das fossas. E tudo o que recebia não dava para o pão e o leite das crianças.

É difícil de entender os valores do mundo! Um homem que manipula mangueiras numa fossa, que se lambuza de imundícias infecciosas, teria de trabalhar naquilo uma vida inteira para conseguir um salário de um deputado que, normalmente, também não tem curso superior e não trabalha, em média mensal, duas horas por dia em ambientes confortáveis e refrigerados.

Se José já não se metia em roubos, era simplesmente porque não encontrava coragem, porém, não mais pela honradez. Afinal, de uma coisa se certificara: Deus não existia. O mundo para ele era um jogo sujo e somente os poderosos galgavam o céu. A teologia ortodoxa ou da Libertação, tinha em José a pretensão de uma nova apostasia, se assim se pudesse definir o ponto de vista inexpressivo de um matuto revoltado.

As mulheres da Casinha, as exortações do senhor Alcides…  Ah! quão cruel fora sua ingenuidade! Em sua miséria, os intercursos sexuais se davam à mercê do acaso e a vida e o conforto que prometera a Marcos em sua eloqüente justificativa, ruíam sem encanto. Talvez fosse difícil para um homem, trabalhar para ser infeliz e conseguir chegar ao ponto que chegou José. Tinha, pois, que fazer alguma coisa, ainda que fosse essa coisa, a extrema ação da loucura e da covardia – o suicídio. Abandonou o carro pipa e começou a vagabundear em busca de um milagre que o arrancasse daquela situação vexatória, ou na espera tácita do momento propício para dar cabo da própria vida.

Um dia, um homenzinho retaco, senil, calvo, que vivia em arengas contra o mundo em cada gole que tomava, discursou seus devaneios, arrebanhando voluntários para tentar a sorte na Babilônia, uma montanha de ouro que existia não tão distante dali. Verdade ou não, ali estava a justificativa para retirar dos ombros o peso invisível de sua incapacidade e a dor que o consumia, ao ver a família se definhar de fome em cada dia que passava.

E numa manhã fria de março, enfiando num saco de estopa rasgado, sua surrada rede, José desapareceu, na certeza de que não tinha nada a perder. Medo de quê terá um homem que decidiu dar cabo da própria vida?

José, da esquina da rua, volveu os olhos e neles havia lágrimas. O sentimento vingava viver, pois era forte e medrava, mesmo naquela terra incauta de tantas desditas. As lágrimas, como a água que lava as impurezas do corpo, lavam também as angústias da alma. Baixou os olhos e desfez a esquina. Era um longo e triste adeus de um vencido, que carregava no coração a dor conforme seu entendimento.

6

 Viajar para Marabá, apesar da distância e das estradas horríveis, é simples para quem tem o dinheiro das passagens, mas não para José e mais dois companheiros miseráveis que sobreviviam por teimosia.

A pé, de curtas caronas, mendigando um pedaço de pão, usurpando qualquer coisa que pudesse ser digerida pelas orlas das estradas, eles conseguiram chegar ao quilômetro 9 da PA 150 – uma estrada de chão piçarrado que fazia, perto de Marabá, um ângulo de 90º com a Transamazônica.

– Daqui – disse o líder do grupo – teremos de ir, definitivamente, a pé, por dentro da mata. A “feda” (policia federal) está aí pelas estradas, cercando todo e qualquer furão.

José olhou para o Baixote, cerrou os cenhos e ousou certificar-se, ainda mais, da certeza do que lhe ia à cabeça:

– Tem picada feita aí na mata?

O Baixote riu, a princípio em solavancos, para depois estrondar em sarcástica gargalhada e arrematar com soberano desdém:

– Tem sim. Um caminho sem buracos, sem curvas… Só que penso que não iremos por ele. Acho que não devemos gastar nossa “fortuna” com teco-tecos.

José entendeu a dureza daquela brincadeira, engoliu seco e insistiu:

– E o quê vamos comer?

Já chateado com aquelas perguntas óbvias, o Baixote explodiu:

– Olha aqui, Zé, se não tem fibra e deseja apodrecer naquele barraco, é só tomar o caminho de volta. Isto não é para molengas, entendeu bem?

Olharam o sol, ajeitaram-se com um alfanje, uma caçarola, uma “por-fora” (espingarda rudimentar de carregar pela boca do cano, também chamada de espingarda pica-pau), umas redes esgarçadas, cinco quilos de farinha-puba, um quilo de sal e meteram-se pela floresta, direcionados pelo sol. Não havendo sol, seguiriam os teco-tecos que faziam a linha Marabá x Babilônia, ou como ficou depois definitivamente conhecida, Marabá x Serra Pelada.

A selva era densa, úmida e continental. Não foi por menos que já carregava sobre si os epítetos de Inferno Verde, Hiléia Brasiliense, Pulmão do Mundo e tantas outras denominações epopéicas concernente ao seu porte, beleza e imensidão.

 Em menos de uma hora, os ruídos dos motores dos carros que trafegavam pela PA 150 foram desaparecendo e, um pouco mais, somente as pancadas do alfanje que abria caminho cortava o silêncio sacrossanto da imensa floresta. Todos, de apenas camiseta e gongó (calção), tendo nos pés as famosas “lambretas” (sandálias de dedo), iam avançando, com a força descomunal de quem tem, ainda viva, a esperança de dias melhores. Por sorte (salvo as margens dos pântanos, igapós e rios) a selva amazônica quase não oferece o infortúnio de insetos malévolos, o que permite aos furões a seminudez, sem o infortúnio das muriçocas. Todos andavam de olhos atentos, recolhendo jabotis e frutas silvestres e não tardaram a juntar o que lhes seria frugal refeição.

Era, aproximadamente, 15 horas, quando arriaram as borocas (alforjes) nas margens de uma nascente límpida que escorria sobre pedregulhos e raízes.

Os aviões passavam rasantes pelo dossel da floresta, quase de 30 em 30 minutos, e não era incomum encontrar vestígios de furões pioneiros que por ali, guiados pela rota dos aviões, seguiram naquela direção.

– Vamos providenciar a comida e descansar – disse em tom imperativo, o Baixote, que parecia feliz e realizado por comandar aquele trio de maníacos desesperados. Afinal, como diria satanás, era preferível comandar o inferno a estar sujeito às ordens de Deus.

O percurso era de 88 quilômetros e somente três dias bem andados poderiam desfazê-lo. E, embora o garimpeiro leve uma vida inteira sonhando, sobrevivendo do exagerado otimismo, perdendo a vida em planos e conjecturas, quando parte para os filões, o faz acometido da determinação de um lemingue. Um dia, nessas circunstâncias, parece-lhe a certeza de estar a minutos da riqueza.

O garimpeiro não desfalece. Encontra forças na eterna ilusão, nos elixires do otimismo alheio, na esperança imorredoura de que o ouro está sempre sob seus pés – o que, de certa forma, não deixa de ser uma provocante verdade. Nos garimpos, três por cento enriquecem; dez por cento remediam suas finanças; vinte por cento ficam no que estavam e os demais perdem a saúde, os bens naturais e até a própria vida. Mas, mesmo assim, como formigas de correição, formam procissões pelas encostas, arriscam as vidas em frágeis escadas a pique, são soterrados e desenterrados das avalanchas, sem que nenhum perigo seja capaz de demovê-los da idéia fixa de serem incluídos entre os três por cento privilegiados.

Quando em vez, as camionetas desovam cadáveres pelos barracões; familiares despenduram de uma corda, um pai fracassado e desiludido e, em uma mansão qualquer, trama-se os gambitos para que a ostentação não decaia ao ridículo. Mas, todos enfrentam, denodamente, as incertezas, levando em frente, o fanatismo do ouro.

Amarraram as redes, acenderam gravetos, penduraram a caçarola por cima do fogo, jogaram dentro, água, sal, pedaços de jabotis e ficaram a confabular.

– Esta viagem vai ser o tira-gosto de minhas tardes de milionário daqui a mais algum tempo – murmurou o Baixote.

– Tenho certeza disto – concordou falando quase pela primeira vez, o outro companheiro, o qual logo foi batizado pela alcunha de Banguelo. Possuía apenas os caninos, sendo sua face coberta por uma barba espessa. Na cabeça, um amontoado de cabelos encarapinhados, com madeixas esbranquiçadas logo atrás das costeletas. Tinha as canelas secas, nariz aquilino, era mal nutrido, longilíneo e magro como um pica-pau. Logo o grupo definiu-se: Baixote, Zé e Banguelo.

O sol foi descendo, mais e mais, lançando por entre os grossos galhos de uma castanheira, fachos de luz, como se fosse um dragão debilitado a espirrar fogo pelas ramagens.

Banguelo, errático e rezingão, pouco falava e, quando soltava a língua era para reclamar. O Baixote, na vanguarda, vivia com imprecações a cada tropeção. Apenas José ia feliz, desembaraçado, como se fosse uma canguçu. Afinal, pouca coisa era-lhe mais familiar e maleável que uma floresta.

Depois do “frito” (farinha-puba com nacos de jaboti), os três estenderam-se nas redes e ficaram a fazer planos de como usariam a fortuna que iriam ganhar em Serra Pelada.

Enquanto o Baixote tomava fôlego, José interferiu enfático:

– Quero uma casa bonita para minha família e dar estudo aos meus filhos.

– Quer ser mais um para massacrar os pobres, não é Zé? – disse o Baixote, ofendido pelo aparte forçado.

– Não serei um desses, tenho coração.

– Todo pobre tem, até o dia em que fica rico.

José ouviu aquilo e depois de um curto silêncio, desabafou:

– Acho que é isso mesmo. A felicidade das pessoas não depende do que elas sabem ou possuem. Já fui o homem mais feliz do mundo… e dizendo isto, fechou-se envergonhado, como se admitir um tempo feliz fosse anátema para a desgraça que ora se abatia sobre ele.

– Todo homem tem altos e baixos na vida e não é crime lembrá-las – disse o Baixote, entrefechando os olhos e friccionando as panturrilhas que pareciam podres depois da refrega a que foram submetidas.

A noite veio como vêm quase todas as noites na floresta. O sol desce, a penumbra enegrece, os bichos da noite saem das tocas, os diurnos recolhem-se, os grilos cricrilam, o cansaço entra nos músculos, os olhos se fecham e a mente, em etapas de transe, divaga em modorras e sonhos. Aí, os miseráveis podem jogar as desditas aos ares e sonhar com palacetes, com caviares e até com uma menina vestida de seda azul, cabelos dourados e voz macia, sem os vergastes da realidade miserável em que vivem. O sonho é a vingança da realidade, o desacorrentar da libido, que desvencilha as pessoas dos problemas e dos complexos e fala do espírito com a contundência de uma prova.

E José sonhava com Marcos numa cátedra, vergando uma beca engomada, cheio de si e de felicidade. Apesar de ter mais dois filhos, José tinha por Marcos uma admiração e um amor que iam além de sua honesta imparcialidade. Sentia pena dele, deixado lá, numa verdadeira pocilga, com a responsabilidade de um homem maduro.

– Ah, Marquinho, você vai ver! Hei de cumprir aquilo que lhe falei por falar, lá no caminho, naquele dia da viagem. Deus do céu, olhe pra minha família…” e pensando estas coisas, de seus olhos tombaram algumas lágrimas, as quais testemunharam, apenas, os raios amenos da lua que encimavam o fastígio da floresta.

Foi-se a noite, um novo dia, outra noite e mais um dia. A zoeira que vinha dos murmúrios de cinqüenta mil garimpeiros em ação, ia longe floresta adentro e chegava aos ouvidos dos três, como um enxame de perdidas e apressadas abelhas em busca de um tronco oco para a moradia.

O primeiro a ouvir foi José, cujos ouvidos ainda estavam sensíveis aos ruídos da floresta. Ele ia cabisbaixo quando, de repente, empacou qual burro bravio. O Baixote percebeu:

– Que é, Zé?

– Não está ouvindo?

Ele parou, aguçou os sentidos e meneou a cabeça em tom negativo.

– É gente, muita gente conversando.

– Você está ouvindo, Banguelo?

– Não, não estou.

Aliás, Banguelo, como uma anta decrépita, não ouviria a explosão de um míssil a quinhentos metros. A vida barulhenta em que sempre vivera entre a paliçada do cortiço destruíra por completo seus tímpanos.

Andaram um pouco mais e todos acabaram por confirmar: haviam chegado.

O Baixote falou:

– Vamos dormir por aqui. Lá pela meia-noite acabaremos de chegar. Em altas horas, os funcionários do D.N.P.M. (Departamento Nacional de Produção Mineral) afrouxam a vigilância e a gente tem mais chances de entrar despercebidamente.

Assim foi feito.

A montanha era um verdadeiro formigueiro, com gente trabalhando nos barrancos dia e noite, uns ensacando seus bamburros, outros levando cascalho cego até a montoeira. Todos de gongó, com surrados calçados ou descalços, turbantes, chapéus ou bonés, lenços purificadores amarrados sob os olhos, barbudos e cabeludos, peito aberto, olhar de um misto de esperança e cansaço, caminhavam ininterruptamente dos barrancos às montanhas, transportando em cada viagem, um fio de esperança ou desilusão.

Aos olhos de José, aquilo se parecia com um enorme formigueiro: uma cidade que despontava em ruínas aos golpes da picareta.

Seus dois companheiros desapareceram na multidão, pois a conselho do Baixote, não deveriam dar margens a desconfianças. José estava extático diante daquele mundo lunar, vendo a força da esperança superar a da fé, na remoção literal da montanha. Onde havia milhares de troncos milenares, agora só a poeira fina e sufocante que subia a cada cinqüenta mil impulsos dos pés. De repente, um homem aproximou-se de José, ar desconfiado, todo temeroso. Puxou-o pela camiseta num sinal de desmedida precaução.

– Moço – disse ele, olhando em mil lugares, como se em cada um deles pudesse existir um ouvido ou um olho espionando – sei que você não vai me entregar, pois é um garimpeiro e todo garimpeiro tem bom coração. Sabe (e aí falou num cicio), eu sou furão e acabo de chegar. Estou sem serviço e queria que dissesse como é a barra aqui.

Sem pestanejar, José entregou-se:

– Eu também estou como você, mal acabo de chegar.

 – Acompanhe-me seu malandro – obtemperou o policial à paisana, com um sorriso sarcástico a elogiar-lhe o ardil.

Antes que o sol se pusesse no horizonte, estava novamente José em Marabá. Foi , então, que as dores musculares daquela estúpida caminhada começaram a lhe dar a impressão de ter sido atropelado por um caminhão. Na mente, apenas, as vãs esperanças. Caminhando sem destino, viu o carro da polícia eclipsar-se ao longe. Recostou em seguida as costas numa mureta de um posto de gasolina, abanou-se com o boné e ficou a imaginar como dar fim àquela vida de sofrimento. O mais fácil e rápido seria jogar-se sob as rodas das jamantas que trafegavam pela Transamazônica, mas não era exatamente este o fim que sempre almejara para si. Pendurar-se numa corda, dar-se um tiro nas têmporas, seria até razoável, mas não possuía os meios. Passar o alfanje afiado na garganta? Não, seu desespero não chegava a tanto. Se tivesse de dar cabo da vida, teria de ser de um modo rápido e menos doloroso. Ergueu-se, olhou a poeira do carro e decidiu:

– “Vou entrar naquela merda, nem que tenha de ser isto a última coisa que eu faça na vida!”

E, durante quase um ano, José ficou indo e vindo, furando e sendo posto para fora. Na sétima vez que foi flagrado, José já era conhecido da polícia e já evoluíra muito, sendo um profundo conhecedor de como se chegar furtivamente à Serra Pelada. Conhecia as opções do km 6, do 45, do 16 e do 30 e já até ganhava alguma coisa para funcionar como cicerone de primários.

Na última vez, um policial esbarrou por acaso com ele, fitou-o de frente e disse enfaticamente:

– Você de novo?

José olhou-o de alto a baixo, com a desenvoltura de um descarado e disse:

– Vencerei vocês pelo cansaço.

– Não duvido – retrucou o policial – pelo menos enquanto não se aprovar a pena de morte para jumentos teimosos como você.

José riu: um sorriso que tinha em si um misto de conformidade e de raiva, pois sabia que teria de desgastar, mais uma vez, as solas dos pés. Largaram-no no km 16, sob ameaças:

– Olha aqui, burro velho, trate de seguir para o fim do mundo, se desejar, mas não me apareça mais lá no garimpo. Este é o último aviso e não se esqueça: sabemos bem como justificar um cadáver.

José ficou parado por um momento e em seguida entrou no mato, contornou a guarita da vigilância e foi desfazendo o caminho.

– “É isto – pensou – uma boa maneira para deixar com certa dignidade esta porcaria de vida. Tomara mesmo que cumpram a ameaça.”

Ouvidos atentos José foi caminhando, e em cada mínimo ruído (e para isto possuía os melhores tímpanos dos humanos) saltava no mato e deixava o motivo do barulho passar. Depois retomava caminho e ia pisando a “puaca” que subia em cada passo, como minúsculas explosões.

Quando já havia caminhado 15 km , num minuto de distração, viu surgir ao longe um tufo de poeira. Num reflexo de sábia inteligência matuta, rodou nos pés e fez de conta que caminhava em direção a Marabá. O carro veio, aproximou-se, parou:

– Que está fazendo por estas bandas, espantalho de arrozal?

José ficou cabisbaixo, fingindo humildade e evitando erguer o rosto e deparar-se com um dos tantos que já o conhecia. Falou:

– Trabalho na fazenda do Pernambuco e vou até Marabá buscar um remédio para o gado que está de cabrunco.

Um dos policiais cutucou o que estava ao lado e ciciou:

– Conheço este malandro. E um caso perdido. Acho que teremos de levar o caso ao Curió e a toda coordenação. Este aí, só matando.

José mantinha-se impassível, com seu “gongo” cor de chocolate, e sua “boroca” estufada de bugigangas.

– Está bem – disse o chefe – a gente acredita em você. Suba aí que vamos lhe dar uma carona até Marabá.

José estremeceu. Quis correr, quis gritar, quis fazer tantas coisas, mas todas sucumbiram à cordialidade do policial. Subiu, e depois de ter suportado risinhos e chacotas por horas e horas, foi deixado na margem do Itacaiúnas.

Uma semana depois, José exibia sua carteira de garimpeiro e recebia, inclusive, elogios pela determinação invejável de ser garimpeiro. Era 21 de maio, o dia do aniversário de Serra Pelada. Mais de sessenta mil homens, como boiada acuada, espremiam-se ao redor do palanque em que Curió , numa verborréia política, conseguia incutir a todos a esperança de dias melhores.

Depois, uma fogueira com cinqüenta mil toras entrelaçadas e empilhadas era acesa e a claridade proporcionada pelas chamas subia tão alto quanto os delírios de José. Quase chorava de emoção:

– “Pois é Marquinho, eu volto, volto rico e nada mais vai faltar. Você, sua mãe e seus irmãos vão ver, vão ver”!

A fogueira queimava, estrondavam os rojões. A Praça da Mentira fervilhava em barganhas; os bamburrados distribuíam reques e os desajuizados lançavam melechetes aos ares, lambuzando a todos. Os “brabos” eram as vítimas principais, pagando naquela faculdade, o preço dos trotes dos aprovados em vestibular.

José não era mais um “furão”. Exibia sua carteira com o orgulho de um diplomado. – “Ah! – imaginava – gostaria que o Banguelo e o Baixote estivessem aqui agora!” É que, dos dois amigos, nunca mais tivera, sequer, notícias.

E seu coração explodia de alegria e de esperança. Nele, nada mais irrefutável do que a assertiva de que o tamanho da felicidade será sempre equivalente ao sacrifício para alcançá-la. Nenhum bamburrado, que naquele dia escavara quilos de ouro, estava mais feliz que José.

7

 Uma criança de aspecto pulcro e sombrio, falto de alegria, rompia a penumbra, tendo às costas um caixote desengonçado de engraxar. As latas de graxa tamborilavam nas escovas, mas os ouvidos do menino estavam surdos aos sons da vida. Uma angústia depressiva entranhava-se dentro dele fazendo-o desconsiderar tudo e todos. Apenas caminhava. Os olhos iam baixo, metidos entre os dedos dos pés, no vislumbre da sujeira que entulhava as calçadas. Carros estrondavam os “cadrões”, gente conversava, alto-falantes, na frontaria de um comércio, falavam sobre preços baixos… Marcos ia andando. Aquele fora um dia terrível. O estômago doía e a certeza da fome em casa, arrasava-lhe.

A noite, que há tempo vinha andando, chegou plenamente, e as luzes piscavam nos abajures das casas dos abastados, como lantejoulas delirantes. Marcos ia andando, não sabia para onde, mas, em se andando, teria de chegar a alguma parte, livrar-se dos tentáculos daquela angústia.

De repente, parou e viu aberta uma grande porta, em que apenas o silêncio reinava. Baixou as bugigangas e os tarecos que levava às costas e entrou. Havia centenas de cadeiras, mas ninguém as ocupava. Era como se todas fossem necessárias para aliviar o cansaço imenso que lhe ia ao corpo e doía na alma.

Ergueu mais os olhos e, lá em cima, no silêncio profundo daquele ambiente mudo e sacrossanto, assomava-se num afresco, os traços claros de uma simples imagem amarelecida pelo tempo. Era a Igreja de Fátima, uma igreja católica. Mas não era necessário que fosse a Igreja de Fátima, que fosse católica, batista, presbiteriana, espírita, luterana ou qualquer outra. Bastava apenas que fosse um lugar qualquer destes tantos em que o Senhor costuma passar os dias e as noites à espera dos desafortunados e oprimidos.

Ajoelhou-se automaticamente e seus olhos buscaram, na paz daquele ambiente, os traços singelos e poderosos de Deus. Marcos manteve-se em êxtase, olhando o fundo colorido da parede. A fome roia-lhe o estômago e o desespero avolumava-se perigosamente, enquanto sua cabeça ressumante, tombava sem domínio. Foi então que tudo se dispersou: dor, medo, angústia… e no delírio de uma semi-inconsciência, seus ouvidos aguçaram-se, e os ventos, sibilando entre as frestas, falaram docilmente:

– Gosta daqui menino?

Marcos ergueu os olhos no doce fingimento de um sonho a entaipar-lhe a consciência. Viu, a seu lado, um homem gordo, sobriamente vestido, barba por rapar, olhos azuis e de cuja boca os sons saíam guturais, entrecortados. Marcos virou-se um pouco, apoiando uma das nádegas no banco tosco de madeira.

– Quem é o senhor?

– Alguém muito especial, pode crer. Vi você entrar – aliás, esperava por você.

– Por mim? Eu nem imaginei entrar aqui hoje!

– Coisas da vida, filho. As pessoas vivem por aí e nunca imaginam que estão sendo vigiadas e vistas.

– O senhor quer dizer que me conhece?

– Ah, conheço sim! Você é filho de José e sua mãe chama-se Carminha, não é mesmo?

– É, sim. Tenho também…

– Um irmão chamado Raimundo e uma irmãzinha, Djanira.

– Ora, veja só!

E o homem olhou fundo na alma de Marcos e Marcos sentiu uma estranha força penetrar em seu ser. Poderia até ser o próprio Deus, não fosse mais gordo e tão diferente daquela imagem dependurada lá no altar. Mas seus olhos eram também azuis e possuíam um brilho invulgar. E o homem falou:

– Filho, tenho acompanhado seus passos. Sigo-lhe nas noites e pela madrugada e meus sapatos já estão rotos de suas esfregação.

– Seus sapatos? Mas o senhor está descalço!…

– É, estou descalço – obtemperou o homem gordo, um tanto desconcertado pela distração. Recompôs-se em seguida:

– Talvez quisesse livrar-me de sua graxa hoje.

– Ora!…

– Sabe por que esperei por você aqui?

– Claro que não. Como poderia saber?

– Vim convidá-lo pra vir comigo.

– Para onde?

– Um lugar maravilhoso.

– Melhor que este aqui?

O homem não mostrou surpresa e sorriu docilmente:

– É sim, muito melhor.

– Lá tem emprego pra mim, meu pai, minha mãe e meus irmãos quando crescerem?

– Talvez, talvez filho. Só que agora, virá sozinho.

– E minha mãe e meus irmãos?

– Eles ficarão. Mais adiante, quem sabe, irão ter com você. Há certos afazeres que só podem ser executados por quem tem vocação e instinto de concretizá-los.

– Mas se eu abandoná-los, eles morrerão de fome.

O homem misterioso escorou o queixo com a mão espalmada e depois coçou atrás da orelha. Sua feição era de dúvida, mas seu semblante irradiava uma luz ímpar e maviosa. Olhou firme para Marcos e falou:

– Quer vir comigo?

– Sozinho?

– Sim.

– Não. Não vou deixar mamãe agora. Ela precisa de mim, meus irmãos também. Meu pai…

– Foi embora e deixou-os sozinhos – completou o homem gordo.

– Mas o senhor sabe de tudo mesmo! Parece-me tão bom! Por que não leva todos nós para trabalhar com o senhor? Puxa! Deve ser um homem muito rico, não é mesmo?

– Sou sim, mas no meu serviço, escolho os trabalhadores.

– E eu sirvo?

O homem gordo enrugou a pele da testa em sinal de concentração, olhou fundo na alma do menino e sorriu:

– Você passou na hora certa e eu escolhi você. Quanto a seus familiares, poderão ser admitidos depois, quem sabe?

– E enquanto eu estiver longe, quem cuidará deles?

– Só sente fome quem se nega a comer – respondeu o homem gordo, não perdendo a mania de se esquivar todas as vezes que alguma coisa ainda não podia ser dita e, mais uma vez, o menino, como toda humanidade, não entendeu o que ele queria dizer com aquilo. Depois, aspirando fundo enquanto se erguia, o homem gordo pôs-se de pé, esticou os músculos e disse afavelmente:

– Já estou indo. Você quer ficar, que fique. Não ficarei zangado. Estarei torcendo por você, menino.

Depois, virou nos calcanhares e bateu-lhe nos ombros, mas o toque não era mais de doçura. Doeu-lhe e ele acordou. Em sua frente, o pároco ostentava-se colérico, pois não era esta a primeira vez que ele enxotava vagabundos que se abrigavam ali para se refazer de bebedeiras.

– Isto não é lugar para vadios – decretou o padre.

– Eu…

– Suma-se. A casa de Deus é casa de oração e não albergaria de desocupados.

Marcos, cambaleante de sono, ergueu-se, tropeçou no genuflexório e antes de alcançar a porta, virou-se. Viu a cruz reluzente e, pela primeira vez na vida, pareceu-lhe que na cruz estava um homem gordo, barba de dois dias, com olhos azuis penetrantes.

 

A rua estava semideserta, com apenas alguns carros trafegando esporadicamente e desocupados em rodinha nas mesas dos bares.

– Garoto, venha cá – gritou deseducadamente, uma voz rouca pela bebida.

Marcos parou, olhou e obedeceu.

– Engraxe minhas botas. Capriche aí moleque.

Era o único trabalho que Marcos fazia naquele dia. Em sua cabeça, mil planos formaram-se. Compraria pães e levaria para casa.

E distraidamente balbuciou:

– “Obrigado meu Deus”!

– Não precisa agradecer. Capriche aí.

Marcos olhou assustado, mas não disse nada. O homem aliviou, enfatizando:

– Vamos, vamos, capriche o mais que puder.

Marcos fez o que pôde e ficou feliz quando o homem, já bêbado, torcendo os tornozelos ratificou:

– Ótimo, ótimo trabalho. Tome aqui. Sou grato com quem faz o que peço.

Marcos apanhou a nota e quase desmaiou. Olhou-a por várias vezes e depois ressaltou:

– O senhor errou, veja bem…

O homem apanhou a nota, examinou-a bem e dulcificou:

– Errei não, é isto mesmo que quero pagar.

Sem tirar os olhos do homem, Marcos foi enfiando na caixa as escovas, flanelas e graxa e sentiu vontade de correr. Por certo ainda não acordara, ou então estaria ficando louco. Era bom demais para ser verdade.

O dia vinha amanhecendo e, ainda longe, o choro melancólico de uma criança faminta chegou aos ouvidos de Marcos. Ele apressou o passo, e quando pisou a soleira do barraco, deparou-se com Maria a soluçar desesperada.

– Mãe! – disse ele, e nos seus olhos havia tanto brilho, quanto felicidade nos de Maria ao vê-lo.

– Oh! filho, que bom que você está aqui! Quase morri de medo. Tive um sonho horrível, horrível meu filho. Sonhei que estávamos aqui, juntinhos, encolhidos em nosso canto, quando a porta entreabriu-se e um homem gordo entrou. Ele parecia bom e não incutia medo em mim. Dos seus olhos vinha uma luz serena e juntando coragem perguntei-lhe:

– Que quer da gente? Não temos nada, nada, você está vendo.

Ele sorriu com doçura e inclinando-se, tomou você nos braços e saiu sem abrir a porta, infiltrando-se nela. Foi tão real, meu filho, que acordei assustada.  Passei a mão e senti sua rede quente, como se apenas tivesse se levantado. Depois, esperei você até agora, sem jamais saber se, realmente, eu tinha sonhado.

Enquanto Maria falava, Marcos retesava-se em estupor.

– Ele tinha uma barba espessa, como a de alguém que não a cortava há alguns dias?

– Sim, sim. Como sabe filho?

– Foi brincadeira, mãe. Joguei na sorte e acertei, foi isso.

Mas, nos olhos dele, jamais havia se desenhado tanta perplexidade. E antes que Maria o apertasse com novas perguntas, ele tirou do embrulho: açúcar, polvilho, pães, leite… Até então, nunca trouxera tanto.

– Agora abra a mão.

Maria estendeu-a trêmula. Ao olhar; sua face contorceu-se e toda alegria evadiu-se:

– Meu filho, onde pegou isto?

– Um homem, mãe. Um homem me deu. Eu disse pra ele que era muito, mas insistiu que era isto que queria me pagar.

– Você está falando a verdade, meu filho?

– Estou mãe. Eu nunca vou mentir para a senhora.

– Está bem, eu hei de acreditar em você até o dia em que seja forçada a desacreditar.

– Eu nunca vou roubar nada dos outros, mãe!

– É tudo que quero desta vida – e dizendo isto, apertou Marcos contra seus seios dependurados e macilentos.

Djanira deglutiu o mingau de polvilho de mandioca e fechou os olhos, emborcada sobre os braços retesados de Maria; Raimundo esfarelava o pão que mais não cabia em sua barriga túmida e, pelo peito, escorria leite com açúcar; Marcos e Maria, mais educadamente, juntavam os nacos e comiam com sofreguidão. Dentro em pouco, apenas a cantilena das pererecas se fazia ouvir lá no charco, em dissonância trepidante com o uivado de um vira-lata pestilento, que não se descuidava em dar um toque horripilante àquele apinhado de caritós. Mais alto, aquém das sandálias do Senhor, a imensidão serena do zênite com suas estrelas sempiternas desconheciam a miséria do chão, e pisca-piscavam, submissas e caladas.

 

8

 Um velho camburão estava estacionado em frente ao barraco de Maria, onde molambos humanos muito curiosos acotovelavam-se.

– É lá em casa – pensou Marcos, e pôs a correr.

O acervo afoito comprimia-se na entrada e a algaravia de centenas de desocupados trocando estúpidas idéias e comentários, era total. Pedindo licença a princípio e empurrando em seguida, Marcos ganhou a porta, onderompantes policiais ostentavam-se com empáfia. Ao tentar entrar, um deles obstou-lhe a passagem, estendendo a mão aberta sobre seu peito:

– Quem é você?

– Moro aqui. Que aconteceu afinal?

– Ah! você é o filho mais velho, o… o Marcos, não é isto? – gaguejou o policial, como quem puxa pela memória.

– Sim, sou eu.

– Pois entre. Estávamos exatamente esperando por você.

Marcos entrou e pelo postigo divisou, qual caititus acuados, sua mãe e os dois irmãos, imprensados contra a tarimba das compras. Agachou-se, viu nos olhos amedrontados da mãe, toda dependência de uma criatura frágil e desamparada.

– Mãe, que aconteceu?

Ela ergueu os olhos úmidos, correu-os pelos policiais, voltou-os para Marcos:

– Foi o Raimundo. Parece que foi agarrado com gente ruim, fumando drogas e…

– E com coisas roubadas – completou um dos policiais, com relativa satisfação.

– É verdade, Raimundo?

– É mentira deles, Marcos. Eu não estava fazendo nada – recalcitrou Raimundo à pressa.

Marcos olhou o irmãozinho de frente. Nos seus olhos havia malícia, maldade e mentira. E foi então que Marcos pôde imaginar que havia se descuidado dele. Saía pela manhã e levava o dia inteiro fora, no trabalho. Sua mãe, em 13 anos, não conhecia, ainda, o centro da cidade. Vivia enclausurada, remendando trapos, acalmando Djanira. Há muito tempo havia perdido as rédeas de Raimundo, que se enturmava, desaparecendo com pivetes até altas horas da noite.

Marcos recobrou os pensamentos e disse:

– Está bem, maninho, eu acredito em você. Deve ter havido um engano. Vou falar com os tiras – e voltando-se para os policiais, solicitou:

– Se importam se eu for à Delegacia logo mais? Há muita gente curiosa aqui e isto me deixa sem graça. Prometo pagar os prejuízos e cuidar do caso.

Os policiais entreolharam-se duvidosos. Por fim, um deles falou:

– Está bem. Esperamos você, lá na Delegacia, para daqui a duas horas.

– Daqui a duas horas – confirmou Marcos.

Quando a viatura fez a curva, os curiosos dispersaram-se. Maria ergueu-se com Djanira no colo e Raimundo emproou-se com ares de vencedor:

– Esses veados, meganhas filhos-de-puta. São todos uns…

– Cale-se ou arrebento-lhe os dentes – esbravejou Marcos com a voz esganiçada, antes que Raimundo destabocasse seu repertório de adjetivos obscenos – o dia que repetir outra vez palavrões aqui dentro, não lhe sobrará um dente na boca. Pensa, por acaso, que acreditei em você? Nunca estive mais certo de que andou aprontando e terá de avir-se comigo de hoje em diante. Amanhã  mesmo apanhará graxa, flanelas e escova e irá trabalhar. Ou trabalha ou não come. A partir de agora, não terá mais tempo para imiscuir-se em sujeiras, desmoralizando-nos.

Raimundo meteu metade de si numa rede, ficando com um pé no chão, movimentando irritantemente os armadores. Seus olhos faiscavam ódio e malícia. Sabia que não podia responder, pois Marcos aprendera a ser duro e inflexível em seu tempo de arrimo, mas conseguia com os gestos, repuxos faciais e maneira prepotente de olhar, irritar, até mesmo os restos mortais do bíblico Jó. Raimundo viera ao mundo para nada, como um vergaste. Bem poderia entrar no que disse Jules Soury: “Há alguma coisa de vão e inútil no mundo: é o nascimento, a existência e morte de inumeráveis parasitas, faunas e floras, que medram como o mofo e agitam-se na superfície deste ínfimo planeta. Indiferente em si, necessária em todo caso, pois existe, a vida desses seres tem por condição a luta encarniçada de uns contra os outros, a violência e a astúcia; o amor, mais amargo que a morte, parecerá, ao menos a todos os seres conscientes, um sonho sinistro, uma alucinação dolorosa, ao preço da qual o nada seria um bem”.

Marcos fitou-o. Surrar-lhe não levaria a nada e seria, até certo ponto, covardia. Afinal, Raimundo era ainda um meninote de 12 anos, que não tivera os cuidados de ninguém para deixar de ser o que era. Aproximou-se depois de um gole de água fresca:

– Chegue aqui Raimundo.

– Eu não.

– Venha aqui, acho que precisamos conversar.

– Eu não tenho nada para conversar com você.

– Mas eu tenho, chegue aqui.

Meio amuado, aperreado com o mundo, o menino ergueu-se em lestos movimentos. Marcos tomou-o pelo braço insensível e puxou-o para si, assentando-o nas coxas. Passou a mão por seus cabelos desgrenhados e pelo rosto suado, enxugando-o. Fez uma pausa como a pedir a Deus uma solução para aquele problema. Ao lado, de costas, Maria mexia nas panelas, enquanto Djanira puxava e soltava uns barbicachos que desciam dos tirantes – velhos trastes.

– Raimundo, você se acha um homem ou uma criança?

– Por quê?

– Quero que decida você mesmo, se devo tratá-lo como um homem, ou como uma criança.

– Que diferença faz?

– Se for um homem, terá de sustentar-se, de trabalhar, de sobreviver por conta própria. Poderá inclusive fazer sua arruaças, enturmar-se na súcia e cometer seus desatinos. Será independente, dono de sua vida. Não lhe trarei mais doces nem pão e nem irei resolver problemas criado por você. Certamente o meterão na Funabem e já não mais terá os afagos de mamãe, nem nossos cuidados. No entanto, se ainda se considera uma criança, terá este casebre desgraçado, nossa preocupação, uma rede ou um catre e um naco de filhó para debelar a fome. É pouco para uma criança, mas é tudo que podemos dar. Em troca nos dará obediência, pois será uma criança. Como está vendo, maninho, a coisa está ruim. Papai desapareceu, mamãe está aí, peles e ossos só, você e Djanira, sem estudos. O que eu ganho não está dando para matar a fome, mas você mesmo é testemunha de que não desperdiço um só centavo e trabalho de sol a sol.

Raimundo ouvia a conversa de Marcos e de seus olhos não parecia brotar nenhum resquício de sentimento. É impossível tocar uma pessoa sem sentimentos. Eram pequenos e baços olhos, descoloridos, sem brilho, sememoção. Já estava chafurdado demais em desgraças e, ainda que tentasse decidir, não saberia dizer se era agora, um homem ou uma criança. Por isso ficou calado e quando Marcos insistiu numa resposta, ele abotoou os olhos, virou-se de chofre em zanga e correu para o catre.

Marcos ficou parado, Maria continuou mexendo em nada, enquanto Djanira abandonara os barbicachos e se pusera a remover a terra solta com os dedos dos pés. Poder-se-ia ampliar cada canto, e em cada um deles, só se veria desgraça e miséria.

Um espaço de uns 12 metros quadrados , cercados de refugos e papelões; uma cobertura de pedaços de telhas velhas e litros abertos e empilhados; alguns vidros, duas caçarolas e panelas sem cabos, um coador; uma tarimba de varas, uma rede e um catre. Maria dormia com a menorzinha na rede, Marcos, na tarimba e Raimundo, no catre que, por falta de espaço, ficava, a princípio, sob a rede de Maria. Depois que Djanira nascera, ocupou o lugar de José que evadira, e Raimundo afastou um pouco seu catre, pois, quase todas as noites acordava molhado por Djanira. Vida miserável e comum de tanta gente e que tantos ignoram.

Um leitor poderá estirar deseducadamente as pernas, afundar-se no estofado de uma poltrona e abrir um livro de romance destes. Fará mil comentários sobre o estilo, o palavreado e a capacidade do autor, porém jamais separará um minuto para ater-se à realidade de um povo sofrido. Um autor poderá andar pelas frases construídas para deliciar-se com um pensamento bem definido, porém jamais terá a capacidade de transcrever a angústia que anda dentro de um ser desesperançado, que se deita alquebrado, amanhece sem planos e anoitece ainda mais miserável.

O silêncio pairou no cubículo. Era um silêncio de mil perguntas sem respostas, conselhos e resmungos, depressão e desespero – era como o silêncio de um feto que se debate no útero, entreabre a boca num grito sufocado e é arrancado sem que o mundo tome consciência de sua dor: silêncio que traduz, fala, reage e se submete, numa anuência tácita pela total dependência.

A noite caía, enchia de negro aquelas pocilgas humanas acaçapadas. Lá e cá, um choro dolente (claro lamento de uma criança faminta), o embalo de uma mãe triste e cadavérica, o olhar duro de um homem sem esperanças. Fora disto, o uivado de um cão sarnento e o chiar de mil ratos que se digladiavam naquele antro sem migalhas; ou ainda os impropérios de um bêbado inveterado que desafiava o próprio amor de Deus.

Marcos ergueu-se, entreabriu os lábios como a dizer alguma coisa, mas não disse nada. Aprumou-se frente a um caco de espelho, ajeitou a gola da camisa e saiu.

Lá na cidade, possivelmente, alguém acendia um cigarro, ligava o aparelho de ar condicionado e examinava “A Lua na Sarjeta” e fazia algum comentário estúpido sobre David Goodis, sem atentar que, perto dali, escrevia-se com sangue e jugo, um romance “bem mais negro que a fuligem das docas”.

 

9

 Marcos jamais conseguira um emprego no qual lhe pagassem além do salário mínimo. Apesar de excelente empregado, possuía rudimentar estudo, o que lhe dificultava galgar aqueles postos que mais se ganha e menos se trabalha. Sempre soubera obedecer, e quem somente obedece nunca terá vida fácil. Jamais a terra assistirá aos humildes – talvez seja por isto que Deus resolveu fazer também o céu para a devida compensação e justiça.

Era um dos serralheiros da São Judas, onde os serviços viviam atulhados e os funcionários esbodegados para pôr em dia tantos pedidos. O dono daquela espelunca era um português falador, de sotaque lusitano ainda carregado, apesar de seus 23 anos de Brasil. Explorava os funcionários e jamais estava satisfeito com a produção.

As muxingas dos ferros soldados deixavam cicatrizes profundas nas mãos encardidas, dando forma de raízes àqueles dedos surrados. Pelo rosto e braços, marcas de estilhaços das soldas e respingos de alumínio derretido. No fim do mês, aquela importância aviltante, cada vez mais espremida pela inflação, já que o sistema governamental insistia em liquidar a defasagem das mordomias, corrupção e incompetência, com o suor e mesmo o sangue dos assalariados.

Mas Marcos não entendia nada disto e achava que o senhor Manoel, dono da serralheria, estava certo quando reclamava e esbravejava, propalando aos quatro ventos, que aquilo mal dava para pagar aquela corja de malandros.

Recebia míseros cruzeiros, que seriam esticados em milagre para que não morresse de fome. Por isso, nas tardes de sábado e aos domingos, Marcos sujeitava-se à limpeza de quintais ou aproveitava a brecha deixada por algum estivador, para carregar ou descarregar algum caminhão.

Era um homem com 18 anos, que jamais tivera tempo para olhar uma pequena. Obstinado e obcecado pela idéia fixa de velar pela família, não tivera, até então, outro objetivo que não fosse sustentar sua mãe e irmãos.

Raimundo, no entanto, vivia no desdouro, fugindo da polícia e praticando todo tipo de falcatruas. Com 12 anos, era um marginal em potencial. Desdenhava o irmão e se acuado dizia:

– Você é um burro, um abestalhado, Marcos. Arrebenta-se todo e não tem, sequer, o que vestir.

Vivia sempre com um tênis de cores berrantes, calças jeans e camisas decotadas que traziam inscrições americanas pelo peito e costado. Em casa, só aparecia para comer, descansar ou esconder-se.

Muitas vezes ele e Marcos discutiam, mesmo porque Marcos sabia de onde vinham todas aquelas coisas. Os andejos motoqueiros viviam rondando aqueles cortiços e eram bastante familiarizados com Raimundo.

Na face daquele menino de 12 anos já estavam impressas todas as marcas da malícia, da maldade – da falta de bons princípios. Os olhos eram sem brilho, vermelhos, rodados de olheiras; os cabelos longos e desalinhados e de sua boca nada mais se podia ouvir do que gírias e palavrões. Raimundo era uru vazio imenso, cheio de nada. Pela boca esgotava-se o que tinha na cabeça e no coração.

Djanira medrava, sem companhia, sem dinheiro nem esperanças. Bem cedo começara a passar horas no postigo, olhando furtivamente a rua em que trafegavam os motoqueiros e veículos suspeitos. Aquele movimento eterno de carros pequenos que chegavam, buzinavam e deixavam entrar as mocinhas macilentas e quase crianças, dava-lhe uma sensação esquisita. Perto de seu barraco, morava um homem abacinado, inchado, aparentemente forte, quepossuía duas filhas, aparentando seus 13 e 15 anos. O homem vivia escanchado numa rede o que dava o dia; a mulher costurava e as filhas, quase todas as tardes, entravam em carros delirantes, sob os olhos anuentes dos pais.

Djanira nunca as vira voltar, mas sentia ciúmes dos vestidos rendados que usavam e das sandálias coloridas e cheias de berloques que calçavam. Uma das meninas era mais atirada, usava óleo de soja nos cabelos longos e negros que reluziam ao lusco-fusco dos faroletes. A outra parecia mais recatada e denotava engulho por aquelas saídas, como se fosse forçada a entrar naqueles carros.

Mas, Djanira ainda era inocente, inocente e bela. Suas sobrancelhas piscavam graciosas, cobrindo e destapando dois olhinhos vivos e negros. Seus cabelos longos desciam-lhe pelos ombros e seu corpo, apesar da vida fastidiosa, era de uma graciosidade ímpar. Muito cedo a sagacidade minou-lhe os passos. Em cada canto fervilhava a dor, a miséria e a devassidão. E nos vendavais entre o bem e o mal, tendo de um lado a mansidão e a fé de sua mãe, e do outro, um exército inteiro de maledicências, a menina Djanira mergulhava na frase da poetisa: “Uma mulher é tão casta e tão profana ou é puro pecado ou quase que levita”.

Seus seios temporãos salientavam-se e nos seus olhos Deus e o demônio refletiam-se, como num espelho mágico de duas faces. O mundo que a circundava era prenhe de tudo o que é indispensável para fazer amadurecer um fruto antes do tempo. O Bacuri era como se fosse um grande armazém em que produtos químicos apressavam o estágio dos frutos.

Um dia, um motoqueiro veio procurar Raimundo e deparou-se com ela na porta. Ali, naquele lugar triste e quase imundo, Djanira era como um lírio que vicejava no lamaçal.

– Olá belezoca – disse descaradamente o sabujo.

Djanira desconsertou-se, baixou os olhos encabulada e deu dois passos para trás. O motoqueiro fitou-a libidinosamente de alto a baixo e perguntou:

– Cadê a fera?

Djanira, ainda mais encabulada, reperguntou:

– A fera?

– É…, a fera? – anuiu ele.

– Que fera? – insistiu a menina.

– O Mão-Leve, o Raimundinho, ora essa.

– Ah!, ele não está não. Saiu faz pouco.

O motoqueiro tomou a radiografá-la com seus olhos maledicentes e disse:

– Está bem. Sei onde encontrá-lo.

E ainda antes de arrancar, semeou:

– A gatinha não quer dar uma volta de moto?

– Não, não – apressou-se em negacear, Djanira.

O motoqueiro sorriu, acelerou forte, ergueu a dianteira e desapareceu.

Ela também podia ter vestidos rendados, sandálias de penduricalhos coloridos e passear de carro bacana. E aquela voz vibrava: Vamos dar uma volta… uma volta… uma volta…

Tomou o caco de espelho e admirou-se com narcisismo. Jogou com as mãos uma madeixa para lá, outra para cá, sorriu de perfil, insinuou uma gargalhada, ficou séria, cerrou os olhos, suspirou, tocou os lábios com as costas das mãos e seu rosto afogueou-se. Depois desceu as mãos pelo queixo, roçou os mamilos com sutileza e pressionou as virilhas. Sentia prazer em tudo aquilo e aquela voz: “Vamos dar uma volta”, enchia-a de suspense e a fazia sonhar. Algo estranho acontecia com ela, menina-moça, anjo desperto para a beleza perigosa de ser mulher. Sem que soubesse, fizera passear por todo ser aqueles hormônios estrogênios, capazes de despertar-lhe a libido e criar-lhe desejos.

Maria do Carmo fitava-a de soslaio, com seu coração de mãe captando cada vibração de seus atos. Pensou em alguma coisa para dizer, mas preferiu calar-se, pois não estava bem certa do que diria. Tudo que hoje sabia havia aprendido na dor e na surpresa. Desde a menstruação até seu primeiro intercurso sexual, tudo fora do mesmo jeito: uma coisa estranha como o fora para Meggie, porém, jamais, sem o deslumbre de um Ralph de Bricassart. Por isso quietara tristemente num balbucio interjetivo.

Marcos chegou tarde, pois os serões já se tornavam freqüentes em sua vida. Eram mais alguns cruzeiros para diminuir a miséria que andava em sua casa. Encontrou Maria e Djanira sentadas no catre, fustigando as nuvens impertinentes de muriçocas que zuniam. A Luz tremelicante da lamparina criava desenhos metuendos naquelas faces encovadas e tristonhas.

– Como está mãe? – perguntou ele num fio de voz, como a temer a resposta.

– Estou bem filho, não precisa preocupar-se comigo.

Marcos aproximou-se, arrastou um caixote e sentou-se perto dela. Esfregou a mão direita nos cabelos da mãe e desceu-a vagarosamente pela face: ela queimava de febre. Sobressaltou-se:

– Como está bem, mãe? A senhora queima de febre!

– Dá para agüentar filho, não se preocupe.

Novamente Marcos calou. Enfiou a mão no bolso roto e sentiu o tato de uma nota amarfanhada, pequena demais para a imensidão do problema.

O candeeiro tremelicava, os ratos chiavam nas anfractuosidades, o cão sarnento latia – era a noite que caía tétrica naquela lura de miseráveis.

Sobre duas lajotas enegrecidas de fumaça, uma caçarola fumegava, mas seu cheiro não fomentava desejos ao estômago de livrar-se daquela dor fina e angustiante que debilitava.

Djanira balançava os pés dependurados, para frente e para trás, e seus pequenos seios hirtos escapavam pela abertura de um rombo da blusa. Marcos olhou-a apiedado. Que seria daquela menina? E em seus 18 anos, uma dor profunda invadiu sua alma, agraciando-lhe com um desalento sem fim.

– Marcos – disse ela pelo sadismo ingênuo de um anjo mal – compra um vestido e uma sandália para mim?

Ele ouviu-a, mas a voz lhe viera como um punhado de terra para a valentia de arrimo que se sepultava. Todos os demônios do inferno desembocaram sobre sua alma. Por todos os lados ladravam cães, grasnavam corvos, chiavam ratos e morcegos, chispeavam coriscos, explodiam trovões. A lucidez ia e vinha, num prenúncio de desespero e loucura.

Maria continuava impassível, queimando de febre. Sua face lívida, seus quadris acentuados, seus braços magros, com os tendões circundando-os como fios mágicos e invisíveis de marionetes.

– Deus do céu – murmurou Marcos, mas a voz lhe vinha do coração e morria na garganta. Era como se estivesse sonhando ou apenas acordando agora, depois de 18 anos de vida latente.

Correu os olhos pelos paus podres, pelas brechas dos papelões desgastados e empenados, pelo chão batido, pelas vasilhas corrugadas, pelos trapos e tarecos, por toda sua família. Viu emergir do solo labaredas miúdas que, paulatinamente, agigantavam-se e cheiravam a enxofre. O inferno emergia a seus pés em vida, como em vida, supõe-se, Deus levara Isaías.

O estômago parou de doer; suas mãos queimadas crisparam-se. Ergueu-se num ímpeto, mas logo se enrijeceu pensativo. Que fazer? Depois, lembrou-se – não sabia a razão – mas lembrou-se: “O homem gordo da Igreja… sim, o homem gordo”.

– Mãe – disse numa transformação de graça – vou ver se arranjo um remédio para a senhora.

– Não vai comer nada?

– Depois. Quando voltar eu como.

Marcos cruzou o Bacuri, ganhou a longa Avenida Cumaru, atravessou a Luís Domingues, desembocando na Praça de Fátima. A porta da Igreja estava fechada e a praça silenciosa. Correu os olhos, mas não viu ninguém que se parecesse com o homem gordo. Ficou por algum tempo parado, meneou a seguir a cabeça e, desiludido, foi ter a uma farmácia.

O farmacêutico já o conhecia, pois era comum Marcos desentulhar-lhe o quintal de dejetos aos domingos. Ele o acompanhou até ao Bacuri, carregando numa maleta seu aparelho de medir pressão, um termômetro e várias drogas que estavam esfaceladas pelas eternas andanças pelos bairros pobres. Era um homem bom que fazia o que podia por aquela gente sofrida.

Examinou Maria, reexaminou e deu seu veredicto:

– É caso grave. Terá de interná-la imediatamente.

No bolso, aquela mísera pelega amassada que mal daria para um analgésico; no canto, os olhinhos vivos e desiludidos da irmã que dizia: “um vestido de renda e uma sandália”; nas tripas, aquela dor fina que debilitava, que matava aos poucos como a um elefante depois de sua terceira dentição; na consciência, a dor profunda de um irmão degenerado, perdido em tóxicos, furtos e Deus sabe mais em quê. O pai desaparecido há muito.

Durante tantos anos, Marcos carregara aquela cruz sem pensar e a falta de pensamentos parecia aliviá-lo. Agora, porém, despertavam e a crueza da realidade prostrava-o em depressão e angústia.

De hospital a hospital passou Marcos, sem que em nenhum deles conseguisse a caridade de uma internação sem dinheiro. Os depósitos exigidos iam além de seis meses de seus salários. Pediu, explicou, implorou como se implora por uma mãe, mas sob aqueles jalecos alvacentos de aparência angelical, escondiam-se almas tisnadas de seres desumanos. Os homens roubavam-se, iludiam-se, traíam-se e matavam-se pela sobrevivência, como se estivessem agindo em legítima defesa de sua existência. E a corrupção, que gerava todas estas injustiças sociais, continuava medrando em todo campo político.

Marcos parou na calçada, ergueu os olhos para as estrelas, mas de sua própria galáxia, Deus parecia ausente. É difícil encontrá-Lo no desespero e na fome!

Comprou um sedativo e retornou. Sua mãe ardia em febre, mas estava calada, quieta e sem resmungos. Entre os nós dos dedos, entrelaçava-se um velho rosário que, pela manhã, o enrijecimento dos ossos impediu de tirar. Estava morta.

Lá fora, os cães latiam seu panegírico; ali, por sobre o corpo hirto, a melopéia dos mosquitos frustrados. Era a estranha justiça de Deus que mais uma vez se fazia sentir.

A felicidade chegara, enfim, para Maria, pois como o disse Sólon: “Não se diga que alguém é feliz antes que morra.”

 

10

 O Bacuri entrava em trevas tão logo o sol desaparecia. Apenas algumas luzes esporádicas, livres ainda da pontaria avessa dos estilingueiros, alumiavam lá e cá, em postes carcomidos pela cupinzama, pendidos pelas orlas imundas das ruelas.

Marcos caminhava capenga pela escuridão, esfalfado em seus pensamentos. A claridade não lhe fazia falta, pois a dor e a angústia que se aninhavam dentro de sua alma, eram mais que necessárias para dirigi-lo em sua estranha missão.

Da última esquina, Marcos percebeu que um carro que estava estacionado bem adiante, em sua casa ou nas proximidades, acionara o motor, acendera os faróis e partira. Não fez conjecturas – continuou caminhando, absorto em suas angústias.

Aquele olhar apagado de sua mãe com o rosário entrelaçado nos dedos magros, paciente em sua agonia e morte, enchia-lhe de culpa e remorso. Era como se tivesse deixado sua mãe morrer à míngua, sem recursos, sem um féretro digno sequer. Era um fracassado, um espúrio, um biltre. Ela ardera, cozinhara-se na febre sem um reclame, um murmúrio, um ai. Pobre mãe!

Aqueles olhos queriam dizer tantas coisas naquela noite! Circunvagavam elipticamente, buscando em cada canto do barraco, uma razão para ter nascido. As forças foram sucumbindo, desfalecendo e levando consigo a dor vibrante da vida. Logo, no enternecimento da inconsciência, a doce sensação de quem voa sobre nuvens delirantes, entre jardins de cravos, bromeliáceas, tulipas e rosas; por cima de ondas espumantes, num infinito de estrelas e luas. Num desfile de despedida: o Itinga sereno, as matas eternas, um menino que corria de estilingue no pescoço, uma menina que ressonava, um homem que se abanava com as mãos, olhos tristes no nada. E, finalmente, ela mesma, magra e abatida, imóvel numa rede, olhos baços sem vida. E sua alma procurava espanar de si, os despojos da mais triste dependência deixada por Deus – o sentimento de apego e amizade.

A luz do candeeiro fustigava curtos fachos de luz pela porta do barraco, deixando visíveis as marcas de pneus. Marcos parou um instante, examinou num relance as marcas, mas rejeitou qualquer suspeita de sua mente aturdida.

Djanira estava na rede, em movimentos compassados que faziam os armadores rangerem sonolentamente. Seus olhos estavam perdidos no nada, soterrados por pensamentos e lembranças confusas.

– Oi maninha! – disfarçou Marcos, como se estivesse alheio ao que ia à alma da irmã.

Ele mesmo já tinha passado por tantos momentos assim, que já não podia deixar de considerar normal, toda e qualquer espécie de angústia.

Djanira ergueu-se num sobressalto, mas Marcos desviou os olhos para deixá-la à vontade.

– Oi, Marcos! Como foi o dia de hoje?

– Sem queimaduras.

Djanira riu-se agarrando-lhe as mãos. Seus seios roçaram o peito de Marcos e seus cabelos arrumados, fizeram cócegas na pele áspera de seu rosto. Hormônios incestos vadiaram-lhe pela espinha. Com um meneio de cabeça, Marcos afugentou toda e qualquer malícia, abraçou fortemente a irmã, afastou-a em seguida observando:

– Está linda que só, mana! É a guria mais bonita do Bacuri, sabia?

– Ah, Marcos, não me caçoe!

– É mesmo, juro!

– Você acha mesmo?

– Não vai longe, um homem honesto e trabalhador estará rondando por aqui. Você irá casar, ter um lar decente, filhos roçagando a saia suja de massa de ovos com trigo, como fazíamos à nossa mãe, e ser muito feliz.

Ao ouvir isto, Djanira escapou das mãos de Marcos e, apesar da pouca claridade, podia-se tatear a tristeza que lhe povoou o semblante.

– Que foi, maninha?

Sentindo-se delatada pelos próprios gestos, ela recobrou a aparente alegria e tentou mudar de assunto:

– Hoje fritei queijo e toucinho defumado. Está sentindo o cheiro?

– Venha cá, maninha, quero falar com você. Hoje dispensei o serão, só porque queria falar com você.

– Falar o quê?

– Sei lá, qualquer coisa que prove que a gente se ama, que somos, um, a riqueza do outro. Dá pra entender?

– Coisa estranha!

– É, coisa estranha! Tem tanto tempo que a gente não senta e conversa! Sabe, quando eu era criança, papai e mamãe, todas as noites, sentavam na sala ou na cozinha, e a gente ficava falando de mundéus, de peixes, de jequis… Depois a gente rezava, agradecia a Deus por estar vivo, por estar vivendo neste mundo e ter a oportunidade de chegar ao lado d’Ele no céu. A gente era feliz, muito feliz.

– Como era lá, Marcos? Mamãe nunca conseguia me contar direito, pois mal começava, as lágrimas brotavam-lhe dos olhos. Eu até imaginei que aquilo fosse muito triste, porque ela chorava, e então, não insistia mais.

– Às vezes a gente chora por algo que perdeu, Djanira. Certamente, mamãe chorava porque sabia que havia perdido a felicidade, porque sentia que elos indispensáveis à felicidade estavam para sempre perdidos. A gente morava numa palhoça espaçosa, coberta com folhas de babaçu abertas ao meio e dispostas em fileiras com as pontas para baixo. Não dava uma goteira, você precisava ter visto. Papai era exímio em fazer telhados de folhas. A casa ficava numa barranca e logo abaixo corria o rio Itinga, cheio de peixes, jacarés, patos e toda sorte de vida aquática. Em volta, o que dava a vista, era a mata eterna e barulhenta, com gritos esganiçados de tucanos, araras e gaviões, esturros de guaribas, canguçus e suçuaranas e gorjeios maviosos de sabiás, uirapurus, xexéus e ararajubas. Eu corria pelo mato, mergulhava no rio… Papai corrigia os mundéus e mamãe trauteava como se fosse a Iara da lenda, enchendo o vale com sua voz pura e afinada. Mamãe era muito afinada. Ah, maninha! A gente era feliz, feliz e não sabia, como diria Ataulfo Alves.

– E por que saíram de lá?

– Meu pai, todos os meses vinha para a rodovia apanhar sal, açúcar e querosene. Trazia-me balas-doces e sabonetes perfumados para mamãe. Quando ele saía, mamãe e eu ficávamos sonhando com dísticos coloridos, tarjas prateadas… Eu ficava louco por aqueles papéis desenhados de azul, vermelho, amarelo… Mamãe ia para o rio e voltava cheirando que nem flor do mato. Aquilo era força para a gente sonhar por mais um mês. Um dia, porém, nosso pai foi para a rodovia. Mamãe e eu sonhamos como sempre, mas nosso pai voltou sem balas-doces e sem sabonetes. Voltou com idéias esquisitas e…

– E… – forçou Djanira.

– Bem, estamos aqui, não é mesmo?

– Foi idéia dele?

– Foi, sim. Mamãe e eu venerávamos aquelas plagas. Era gostoso não ser incriminado por aquele egoísmo familiar. Para nós, o mundo havia apenas sido criado. Não existia, senão, nós no mundo.

– Adão, Eva e seu primeiro filho Caim – brincou Djanira.

– Prefiro Abel.

– Abel foi morto por Caim.

– Um era mau, outro morreu. Triste escolha, não é mesmo?

– É, esqueçamos, pois do contrário terei você morto ou mau.

– Amargas opções – argumentou Marcos, enquanto batucava com as pontas dos dedos sobre uma tampa ressonante.

Djanira ouviu aquilo com gosto de criança que não se cansa, mas, apesar de tudo, não conseguia livrar-se de alguma coisa que a incomodava. Era como se o tempo urgisse, como se a hora estivesse chegando e ela não pudesse sair. Marcos puxou-a novamente no aconchego, mas ela esquivou-se receosa. Ele ergueu-se, estralou os ossos num espreguiço, destampou uma panela, beliscou qualquer coisa e dirigiu-se para a rede. Djanira interceptou-o nervosa. Ele fez que não entendeu e desviou-se, enlaçando-a com os braços.

– Você parece nervosa, meu anjo. Há alguma coisa errada?

– Não, não há.

– Está zangada comigo?

– Por que estaria?

– O vestido, a sandália…

Ela enrubesceu, olhou para mil lugares ao mesmo tempo, engoliu saliva como se estivesse entalada com uma banana da terra, quis dizer alguma coisa, mas tudo ficou no desejo.

– Este mês terá seu vestido e sua sandália, prometo. Vou sair mais com você, levá-la ao cinema e aos parques. Puxa!, vou ficar orgulhoso ao seu lado.

Em seguida jogou o braço para trás como quem quer agarrar alguma coisa em desequilíbrio e tocou, involuntariamente, em algo estranho, no fundo da rede. Djanira aspirou fundo, abrindo a boca e mantendo-a aberta, como quem se paralisa diante do inesperado. Marcos apalpou o embrulho, tomou-o nas mãos e olhou para a irmã, inquiridor:

– Meu anjo!, isto tem alguma coisa a ver com aquelas marcas de pneus lá fora?

Num ímpeto de estranha reação, ela avançou para Marcos e ao tentar, embaraçadamente, surrupiar-lhe o embrulho, rasgou-o, deixando cair um vestido rendado e uma sandália multicor. Marcos ficou petrificado, boquiaberto, sem fala.

Djanira explodiu:

– Seu abelhudo, quem mandou mexer nas minhas coisas?

– Não quis mexer nas suas coisas, foi pura coincidência.

– Mas não queria que visse.

– Por quê?

– Ora, por quê, por quê?!…

– Onde comprou isso, mana?

– Não comprei nada, você sabe que não tenho um centavo.

– Foi Raimundo?

– Raimundo, Raimundo! Aquilo só serve… Bem, você sabe.

– Mas então, de onde veio isto?

– Por favor, não me pergunte nada.

Marcos encheu os pulmões, suspirou fundo, firmou as mãos abertas sobre as coxas e ficou a fitar a fisionomia atoleimada e confusa da irmã. Um dó inexprimível correu-lhe pelo ser, como se ele fosse a razão única de toda desgraça que se abatera e continuava a se abater sobre sua família. Puxou para si a irmã, num ato extremo de carinho e piedade:

– Djanira, não se zangue comigo. Você é o que me resta de bom nesta vida. Deus sabe quanto gosto de você. Pode ser sincera comigo, pode abrir o jogo. Ainda que tivesse cometido o pior dos crimes, eu estaria do seu lado. Você é uma menina maravilhosa, que nunca teve nada e sempre se manteve digna. A pobreza é uma coisa cruel quando se abate sobre as pessoas, mesmo porque somos vulneráveis aos desejos da vaidade, do conforto e da inveja. Depois de tudo, vêm os desejos e isto independe de nós. Não fique envergonhada por estar gostando de alguém não, pois dia menos dia isto acontece com todas as criaturas humanas. Foi aquele moço do carro que deixou estas coisas, não foi?

Djanira continuava extática, petrificada, olhos estriados num mundo impenetrável, aquém do deslumbramento de qualquer ser humano. Era como se estivesse diante de um confessor e ouvisse aquelas exortações impregnadas de encorajamento. Mesmo ela, sabia que não havia nada demais em amar e ser amada, mas é que tudo era tão diferente! Não havia a beleza de um jovem enamorado que pleiteava sua mão, nem a sinceridade de dois corações apaixonados. Havia tanta sujeira atrás daquele vestido e daquela sandália, como em poucas latrinas públicas entupidas. Seus pensamentos retalhados, miscigenados de tudo o que normalmente se passa nas almas dos aturdidos, caminhavam trôpegos pelo mundo insano de seus erros. Queria olhar para Marcos, mas temia o encontro daquele olhar que tanto amava, confiava e admirava. Não, ela não diria nunca a verdade. Preferiria dar fim à vida a confessar ao irmão que se submetera aos caprichos de Raimundo, vendendo seu corpo para um homem casado, em troca de um vestido rendado e um par de sandálias coloridas, além de uma quantidade de dinheiro que ficara para suprir a dependência toxicômana do irmão viciado. E sem que mesmo ela soubesse, Raimundo já carregava no bolso, uma agenda completa do mês, onde figurava dias e nomes de birbantes, cabrões e toda sorte de traficantes e maus elementos que, de uma forma ou de outra supriam sua dependência em troca de algumas horas na cama com Djanira. Aquelas lembranças desfilavam na passarela de seu coração, numa ribalta em chamas vorazes, com cheiro acre de imundícies e prazer sádico de lucíferes e anjos maus.

Marcos continuava pensativo, fitando o amuo da irmã e sentindo por ela tudo o que sobrara com a perca da mãe. Sentia vontade de puxá-la para si, beijá-la na face e fazê-la crer que ela era a pessoa mais importante em sua vida. Quantas vezes fizera plano para a irmã, que imaginava de véu e grinalda, pisando o altar ao lado de um moço bom, honesto e trabalhador e sendo muito feliz. Aí sim, iria pensar um pouco em si, usufruir o direito de se divertir, de descansar, de ser um homem de vida normal.

Já não pensava mais em Raimundo. Tanto já pedira, conversara, explicara que já se sentia desobrigado de sua consciência. Raimundo era um caso sem solução – um caso perdido. Preferiu olvidá-lo e deixar que o mundo, mais cruel e severo, resolvesse o que fazer com ele. Mas, Djanira não. Ainda tão nova, inexperiente e pura, era-lhe tudo o que restava. Era diferente das meninas estabanadas dos lupanares e conseguia, como um lírio, fulgir de brancura permeio àquela alfuja em que viviam.

– Não fique triste, maninha. Aconteça o que acontecer, tenha você se metido em encrencas ou não, estou do seu lado. Não há nada que possa ter feito para que eu ralhe com você ou a abandone. Eu gosto muito de você, maninha.

Aquilo falou fundo em Djanira e ela sentiu a verdade e a emoção que brotavam dos lábios do irmão. Ergueu os olhos com frenesi, como se fosse uma fera amedrontada num canto da jaula. E paulatinamente aquele olhar baço e duro foi esmaecendo e do orvalho das lágrimas, brotou a candura de um anjo. Ela não soluçava, enfrentando, dignamente, a dor. Os contornos duros de sua fisionomia relaxaram. Uma força magnética, criada pela confiança, tomava vulto, crescia, atraía. Por fim, atirou-se nos braços de Marcos, derreou-se em sua debilidade de menina e soluçou copiosamente, dizendo, entrecortadamente, tudo o que lhe ia à alma. Marcos ouviu tudo calado. Não sentia raiva da irmã, apenas uma piedade sem fim.

– Está bem mana, está bem. Isto não irá pôr o mundo abaixo. Você está linda como sempre e nem por isto Deus vai esquecer-nos. “Vai-se o anel, ficam os dedos.” Você está aqui e isto me faz feliz e é, na verdade, o que interessa. Não posso aplaudi-la pelo que fez e muito menos condená-la. Deus é o culpado de tudo isto, quando criou os hormônios. Vamos, vamos, não chore mais – passou… pronto, passou. Não falemos mais nisto agora, combinado?

Djanira enterneceu-se, apertou-lhe com a força de sua dor excruciante e disse:

– É o melhor irmão do mundo, Marcos. Desculpe, sim? Juro que não farei mais isto, ainda que tenha que andar de tanga e morrer de fome.

– Obrigada mana.

Entretanto, a demonstração de compreensão de Marcos não era menos forjada do que sua afirmação de que estava tudo bem. O ódio incontrolável que sentia pelo irmão, era algo que, embora não soubesse, estava latente nos recônditos de sua alma. Tinha vontade de sair correndo, agarrar e destroçar motoqueiros, homens sem escrúpulos e toda raça suja que emporcalhava o mundo. Apanhou o prato, mas suas mãos trêmulas denunciavam seu estado de espírito; queria sorrir, mas os lábios esticavam arredios, mostrando os dentes ameaçadores, como se fosse um cão raivoso; queria dizer palavras afáveis e confortadoras, mas enriqueceria um dicionário de infâmias, se fosse possível traduzir o que carregavam em si.

Ele agora odiava o mundo e experimentava um sentimento, até então não sentido: o sentimento capaz de destruir, de jugular, de matar. Pela primeira vez percebeu que todos os homens são iguais, na calada da noite, na privacidade de um banheiro, na argúcia de fingir, na coragem de matar. Ódio, ódio mortal daquele porco imundo que, por capricho do destino, chamava-se Raimundo e viera da mesma placenta.

Djanira, acuada em seu remorso, carpia a soluços presos, lamentando em sua inocência, a reversão de seus erros. Deus era duro demais, infiltrando numa carne tão fraca, um acicate tão afiado como os lamentos da consciência. E naquele momento, nem a complacência de Marcos, nem tão pouco o perdão de Deus, reporiam em seus olhos, o brilho da paz.

 

11

 Sófocles costumava dizer: “Há muita violência na vida, e nada é mais violento do que o homem”. E a violência, às vezes, entra na gente num momento de desespero, quando transcende nosso limite de paciência e controle e, principalmente, nos tempos em que mingua a esperança.

– Porco sujo, escória da própria infâmia, gusano de esgoto mato-o em nome de tudo o que é sagrado!

As mãos tensas firmavam os dedos na garganta, enquanto Raimundo grunhia, como se sua própria voz se maneirasse à sua condição de vida suja. Marcos apertava mais e mais, seus olhos flamejavam ódio e sua mente inflava na vingança. Na parte exposta das maçãs do rosto, uma cor arroxeada ia invadindo o semblante, ao mesmo tempo em que os sons roucos da voz diminuíam e o brilho da vida desvanecia-se. O ódio de duas décadas borbulhava em sua alma, como uma cobra peçonhenta entocada sem alimentos. Todo veneno de suas dores, angústias, fome…, enlaçava-se num amplexo de hediondos anseios.

Djanira gritava, pedia socorro, implorava a Marcos, como se aquelas mãos indomáveis tivessem cravadas em seu próprio pescoço, e quando já sem forças, voltou-se para os dois, pôde ver Marcos numa posição de gorila afaimado, com olhos rutilantes de ira, as mãos crispadas, tensas, com os dedos enclavinhados na própria carne, e Raimundo estendido no solo, roxo como uma jabuticaba madura, olhos esbugalhados pelo terror da morte.

– Meu Deus, Marcos, você o matou! – exclamou Djanira diante da fisionomia moribunda de Raimundo.

Marcos continuava na mesma posição, como um gato que domina um rato e dá-lhe uma fímbria de liberdade, num prefácio fúnebre de sadismo e crueldade. Djanira agarrou-se a ele, sacudindo-o:

– Marcos, Marcos, pelo amor de Deus, pare com isto!

Foi então que ele despertou daquele cataléptico estupor e pôde dar-se conta de sua irascibilidade. Sentou-se no caixote, esfregou as costas das mãos na testa, correu os olhos para a entrada da sala que a estas alturas já se encontrava prenhe de curiosos.

– Jogue um litro de água fria no rosto dele, Djanira.

– Água? – perguntou ela, ignorante.

– Já que não temos ácido!… Vamos, jogue água nesta falha divina.

Quando a água borrifou-lhe os olhos esbugalhados, ele aspirou fundo, como se todo o oxigênio da Amazônia tivesse sido guardado para tal eventualidade. Marcos sentiu seu corpo retesar, mas pôde conter-se. Raimundo debateu-se na poeira, cravou as unhas compridas e mal cuidadas no chão batido, enroscou-se como uma cobra venenosa e depois ficou a respirar em agonia. Da fissura de seus lábios, escorria uma baba gosmenta que definia, sem extravios, a ausência de seu estado normal.

Marcos continuava ofegante. Estava certo que não devia deixar vivo aquela aberração de princípios, mas não tinha coragem de levar a efeito, aquele fratricídio. Aquele incômodo inútil como um umbigo, era, apesar de tudo, seu irmão.

Raimundo debateu-se, arrastou a bunda pelo chão como um cão paralítico e recostou-se nos pranchões brocados da parede. Djanira soluçava.

– Perderam alguma coisa aqui? – impacientou-se Marcos ante a chusma de bisbilhoteiros que ameaçava ruir o barraco inseguro. – Vão trabalhar, cuidar da vida de vocês!

E era tão imperativa e contundente sua voz que ninguém ousou argumentar. Quando ficaram sós, com a tempestade amainada de seu clímax, Marcos arrastou Raimundo para a rede, deu-lhe um copo com água e falou:

– Ouça isto Raimundo: é uma frase que um crente tirou da Bíblia e me deu, há muito tempo. E metendo a mão no bolso de trás, retirou, engastada entre os dentes do pente, uma folhinha esverdeada, desgastada pela soletração. Estirou-a bem perto da chama da lamparina e soletrou langorosamente: “portanto, se teu irmão pecar contra ti, vai, e corrige-o entre ti e ele só; se te ouvir, ganhado terás a teu irmão. Mas se te não ouvir, toma ainda contigo uma, ou duas pessoas, para que por boca de duas ou três testemunhas fique tudo confirmado. E se os não ouvir, dize-o à Igreja; e se não ouvir a Igreja, tem-no por um gentio ou um publicano.”

Dobrou em seguida o papel, recolocando-o no mesmo lugar. Puxou um balde de plástico, emborcou-o próximo à rede e nele sentou-se.

– Pois bem – disse enfaticamente – você ouviu, e apesar de nunca ter se preocupado com Deus, Igreja, alma ou coisas que os valham, eu lhe digo sem reservas: de hoje em diante, não pisará mais esta soleira. Você escapou hoje, como gentio ou publicano, não sei bem, mas juro-lhe, pela alma de nossa mãe, que não terá outra chance. Não se aproxime de nossa irmã, por nada neste mundo. Um bilhete sequer que enviar e que chegar ao meu conhecimento, matarei você. Não duvide de uma vírgula do que estou falando. Agora, erga-se daí e saia. Carregue seu catre, sua espuma e seu lençol e não passe sequer, aqui por estas bandas.

E suspirando depois de uma leve pausa, completou:

– Aqui nossa família dizima-se mais uma vez: você fica sozinho com o mundo que abraçou, com malandros e facadistas, e eu tentarei, com minha irmã, acreditar que, realmente, Deus sabe o que está fazendo, pois não tenho mais entendimento para aceitar tantas provações. Agora saia, saia bem depressa.

Raimundo entreabriu a boca para dizer alguma coisa, mas preferiu deixar um riso de escárnio vadiar por sua face a acreditar que seu irmão estivesse blefando. Tressuando, com mossas espaçadas pelo pescoço, raspou a garganta ferida e, com suas pernas cambaias, enfraquecidas pelos safanões, levantou-se da rede e caminhou para a porta de saída. Ficou por instantes recostado, virando-se a seguir cheio de ódio:

– Você irá se arrepender por ter-me deixado vivo!

– Apanhe suas coisas e saia, antes que suas palavras me convençam.

– Não vou levar nada… fique com elas… enfie-as na bunda.

Ao ouvir aquela imprecação, Marcos saltou do balde como se tivesse sido espetado no traseiro por um acicate em brasas, transformando o impropério em ordem e não em sugestão. Ia célere e cego na direção do irmão, mas Djanira interceptou-lhe o salto e ambos foram ao solo.

Largue-me mana – gritava ele iracundo, enquanto Raimundo evadia-se como um gato na noite. Djanira debateu-se, mas não pôde, afinal, contê-lo. Num salto felino Marcos foi á porta, mas apenas pôde ver trevas que bordejavam ao embalo dos feixes de luz das lamparinas e lampiões. Uma chuva incerta arrefecia o calor, ajudada pelas aragens frescas que sopravam aos empurrões. Marcos correu os olhos, afinou os ouvidos, mas apenas o farfalhar do vento, o tic-tac de goteiras e a escuridão da noite penetravam em seus ouvidos e retina. Deu um passo para trás e desapareceu das vistas atentas de mil olhos que o espreitavam em cada greta daquele barraco guenzo. Djanira soluçava, Marcos apiedou-se:

– Que fizemos e ainda estamos fazendo com você, mana!

Ela arredou-se do canto e atirou-se nos braços do irmão.

– Oh, Marcos, quanta desgraça! Estou com tanto medo! Cuidado com ele.

– Não fará nada, fique tranqüila.

– Fará sim. Eu vi nos olhos dele, eu vi. Eram como se fossem duas tochas de ódio e indignação. Ele não tem princípios e vive misturado com tudo o que é ruim. As únicas pessoas boas com quem convivia, éramos nós. As amizades fazem as pessoas. Eu mesma já estava cheia de sonhos e ilusões.

– Estarei vigilante, mana! No entanto, ainda é um pirralho e posso subjugá-lo com facilidade.

– O cemitério está cheio de fortes levados por fracos, Marcos.

– Tentemos esquecer este incidente. Peço apenas que se afaste desses cafajestes e me avise se a importunarem.

– Fique tranqüilo. Não quero vê-los mais em minha vida.

– Bem – suspirou garridamente – vamos beliscar alguma coisa?

Djanira sorriu, mas era um sorriso forçado, imprensado entre fortes emoções – mais um arreganho que propriamente uma ostentação de alegria. Desgarrou-se de Marcos e ajoelhou-se no fogãozinho de lajotas, onde gravetos preguiçosos de sarrafos úmidos fumegavam sem presteza. Arrumou-os, assoprou, meteu recortes de jornais sob eles e viu uma pequena chama, bastante eficaz para cremar um tanto de mentiras e elogios forjados que estavam escritos naquele semanário, enaltecendo a administração, a honestidade e o português castiço do prefeito. Não fosse o fogo, as traças e a morte, nem todo detergente do mundo lavaria tanta mentira e embuste.

Somente pela madrugada, Djanira e Marcos silenciaram, deixando que apenas os respingos de algumas goteiras e o estalo seco e impertinente das térmites que sobreviviam à custa dos velhos pranchões, impusessem-se ao chiado dos ratos e aos latidos lúgubres dos vira-latas, lá fora.

Alguns dias correram normais. A vida parecia rebrilhar naqueles dois corações solitários, apesar das dificuldades impostas pela pobreza extrema.

De Raimundo, nem notícias. Por certo, achara mais sensato acreditar naquela inoportuna passagem do Evangelho, que se perdera de algum alfarrabista e viera ter às mãos de seu irmão. E se há alguma coisa que incomoda pessoas que trilham o mau caminho, que semeiam a discórdia, que praticam tudo o que o bem condena, certamente os textos bíblicos e a voz da consciência encontram-se entre elas.

Por isso, Raimundo desdenhava tudo o que era hierático e que, por conveniência própria, não afinava com sua vida de bandalho precoce. Ele – como todos os que vivem desregradamente – estava convicto da necessidade de ser justo, correto e leal, mas não podia coadunar estas coisas com seus vícios e inclinação perversas.

 

12

 Discutir as causas que levam os políticos à corrupção é um assunto de monta, já que eles, por meio de uma forma direta, ou protegidos pela sigla abrigadoura, forçam ou mesmo aprovam leis, separando para si, ordenados e privilégios equivalentes a cem ou mais vezes o que ganha um brasileiro de mãos calejadas. No entanto, a polícia civil de baixo escalão, lotada nos municípios, ou se presta ao valor extinto da hombridade, e morre de fome, ou se imiscui no jogo do sistema miserável de extorquir migalhas e praticar infâmias em nome da legítima defesa de sua sobrevivência.

Não há, no mundo, função mais emporcalhada do que aquelas que tratam do bem público, da justiça e do direito – sublime anarquia, quase sem deveres, que tolhe a liberdade e sacrifica a população. Pouca coisa mais triste há, do que ver em cada dia, a política, a polícia e a justiça, mascaradas de interesses próprios e ideais duvidosos. Isto nos orfana quanto aos sagrados direitos de vivermos condignamente sobre esta terra criada para todos. Que Deus faça-nos submissos e dóceis ante estas aberrações e nos dê forças para tentar amenizá-las!

 

A Delegacia do Bacuri era composta de um delegado pardo, baixote, franzino e palrador, semicalvo, olhos de fuinha e que ostentava, quando punha as mãos num indefeso, a empáfia ridícula de um rastaqüera despreparado. Levava o detento para a calçada e debulhava sua bravura de Sherlock Holmes, gritando aos quatro ventos que, ali, polícia era, literalmente, sinônimo de ordem e segurança.

Era assessorado por dois soldados: um baixote tisnado, cabelo de tapuio, marchetado de micoses e andar arrastado – um desleixado facadista. Vivia vendendo caro sua honestidade, pois só aceitava um trabalho sujo quando sua mendicância honesta não lhe supria o orçamento. O outro, mais esperto e ladino, era alto, claro, magro, olhos castanhos, maçãs do rosto embolotadas de espinhas encravadas, cabelos cortados à escovinha, e dentadura desfalcada dos dois incisivos superiores. Carregava à mostra seu próprio Taurus 38; chamava-se Marim e não era como o baixote Camilo, que sempre que havia encrenca, acorria a um comerciante para que se lhe fosse emprestada uma arma.

O delegado Narciso e os policiais Camilo e Marim conseguiam, numa estratégia digna do mais lauto elogio, concatenar a nobreza da profissão aos deslizes da necessidade, sem que ninguém os flagrasse em abjeções. Conheciam todos os marginais do bairro, mas só mantinham trancafiados, os excessos, aqueles dos quais não necessitavam de suas propinas. Eram honestos com suas consciências, surrupiando apenas o necessário. Se consciência existisse, era coisa para ser provada mais adiante, pois eram raros os momentos em que não se precisava dar-lhes fortes cutucões para que despertassem de suas rotas cadeiras de vime, onde dormiam, sempre, o chamado sono dos justos.

Raimundo chegara, pois, em boa hora.

Camilo dormia escanchado na cadeira, com a baba viscosa dependurada como estalactites da gruta de Maquiné e revivendo, em sonho, o pesadelo da realidade. Sua filha única, de apenas um ano, estava no hospital recuperando-se de uma desidratação, e em seu bolso não descansava uma nota sequer. Estava sonhando com um pivete qualquer para resolver o problema. Quando sentiu um dedo rijo na costela, despertou assustado e continuou a conversa, como se entre o sono e o despertar não houvesse nenhum estado intermediário.

Ouviu Raimundo, acertou detalhes, embicou o quepe na testa, espreguiçou-se e foi até a calçada, despistando-o com um olhar duro e assaz necessário para salvaguardar sua reputação diante dos fofoqueiros que sempre se avizinhavam tão logo alguém ultrapassasse os umbrais daquela construção fedorenta. Fingiu um olhar torvo para a silhueta que se esgueirava, fez um meneio de desaprovação para os que o perscrutavam e adentrou. No cubículo dos fundos, Marim ainda dormia refestelado e sereno.

Para aqueles soldados, não precisava da fabulosa quantia de 500.000 talentos do rei persa Artaxerxes dentro do travesseiro; das panteras endemoniadas do Imperador Calígula nas portas do palácio; do estúpido escudo do general persa Artabaxo; nem, por incrível que pareça, da consciência em paz para dormir. O descaso pela vida, somado à indolência e a desmotivação de viver, faziam-nos roncar como uma sucuriju bem alimentada numa toca do pântano. Por isso, Camilo irrompeu no cubículo como um ciclone:

– Acorde, meganha da peste, temos serviço pra logo mais.

– Que tipo de trabalho? – perguntou ele, dando um bocejo digno de um deseducado rinoceronte.

– Um pau!

– A quem devemos arrebentar?

– O irmão do Mão-Leve.

– Que fez o homem?

– Nada.

– Por quanto?

– Quarenta bicos.

– Estou fora desta.

– Não vai deixar seu amigo aqui na pior, vai?

– Estou em dia com a Caema, Cemar, INPS e a padaria. Você sabe que só faço determinados trabalhos quando estou em apuros.

– Pro diabo! Que espécie de amigo é você? Estou na pior cara, com minha filha no hospital e sem um puto no bolso. Além do mais, não deve esquecer…

Marim bocejou um arroto que interrompeu Camilo e encheu o recinto de um hálito acre de amoníaco, como se, de chofre, a porta do mictório fosse aberta.

– Está bem, está bem. Como será a coisa?

Camilo narrou com todos os detalhes. Era comum os rondantes policiais, pela madrugada, usarem disfarces (perucas, capacetes, bigodes postiços…), tomar um táxi conivente e sair para roubos e assaltos. A própria população, simplória e crente na hombridade da polícia, favorecia-lhes o trabalho, com dados importantíssimos para um crime perfeito. Devido os constantes assaltos, seqüestros, roubos e assassinatos, a população acorria às delegacias, fornecendo os detalhes necessários e imprescindíveis à continuidade dos crimes. A polícia sabia, perfeitamente, as casas, o local e as pessoas mais acessíveis. E quando encontrava alguém assustado, aconselhava-o determinado vigia noturno, já credenciado a vasculhar os recintos, as fechaduras e os dias mais propícios. E para os que sabiam disto, a quem reclamar? Os inconformados apareciam misteriosamente assassinados. Mas, apesar de todas essas garantias, Marim assentiu com reservas:

– Okey, eu vou. O dinheiro será todo seu, assim como os dias de purgatório.

– Obrigado, amigão. Sabia que não ia me decepcionar – disse Camilo, inteiramente conformado com a função que escolhera na vida.

Friccionando as mãos sarapintadas por estilhaços de solda, Marcos retornava de um caldo de cana que servia, além disto, embanhados pastéis. Qualquer “almofadinha” que se arriscasse a dois deles, fatalmente baixaria hospital. Com ele, porém, não havia perigo, pois sua fome constante seria capaz de digerir, até mesmo, um tijolo requeimado.

Não se podia precisar se já era noite ou não, tal as nuanças que a visão sofria naquela intervenção negra contra a luta débil e esmorecida dos últimos raios crepusculares. A ausência de alegria naquele jogo simples em cores, só se comparava ao desalento que morava no coração de Marcos, em suas horas de retrospectivas meditações. A vida não lhe tinha sido fácil até então.

O céu nublado apressara a despedida do dia. Bem distante, nos confins horizontais, relâmpagos esporádicos anunciavam o fim do inverno. Há cinco meses que chovia torrencialmente. As ruas estavam intransitáveis; o Tocantins, quatro metros acima de seu leito normal, mas já estivera pior, desabrigando as populações ribeirinhas que pareciam vibrar com todo aquele acinte social.

Para muitos indigentes, o inverno era como o Natal dos ricos: dia de presentes, roupas novas, alimentos condizentes, sapatos, redes e colchões; para os religiosos, um tempo mais forte para diminuir a dívida espiritual, praticando boas ações na ajuda aos irmãos aflitos e desesperados; para os políticos, um cenário mirabolante para aditar o saldo bancário e reforçar o espírito filantrópico, pois as verbas (já descontados os quinhões de direito dos escalões superiores), caíam fáceis como a chuva.

Um revoltado vereador da oposição celebrizou-se com o ditério: “As verbas destinadas aos desabrigados são como moedas na Seleconta, com os flagelados representando o primeiro dos buracos da máquina: lá só ficam os ínfimos e miúdos centavos”. Ele sabia o que estava dizendo!

O prefeito escolhia uma poça qualquer, enfiava-se até aos joelhos e saía na televisão com ar compenetrado, olhos perdidos no dia sépio, debulhando hipérboles digna do enjôo de Deus: “milhares de desabrigados… miséria extrema assola o município… fome mata…”

O tape era enviado a Brasília: nada de burocracia nas calamidades; nada de vistorias, de fiscalização: um prato cheio para o enriquecimento ilícito.

Mas, Imperatriz é uma cidade alta e para haver calamidade da natureza apregoada, seria preciso desconfiar do próprio acordo entre Deus e Noé.

Sua calamidade era a eterna inoperância do prefeito e assessores, que deixavam as ruas esburacadas, os esgotos (quando os havia) entupidos, e os montes de lixo nas ruas.

Marcos empurrou o portão de ferro que guinchou pesadamente, e entrou. Apenas um meninote de doze anos encontrava-se ainda no barracão. Era órfão de pai, possuía mais cinco irmãozinhos e sua mãe estava acamada. Por isso, ele faria um serão em favor do garoto, esmerilhando janelas de alumínio.

A noite (afora a misteriosa mensagem em código Morse dos pingos da chuva no alumínio) era silenciosa e fresca. Marcos entregou um embrulho ao garoto:

– Coma isto, moleque, senão não chegará em casa hoje.

O garoto desembrulhou, olhou o pão com olhos esfomeados, engoliu seco e disse:

– Estou sem fome, posso levá-lo para minha mãe?

Marcos fitou o menino num misto de intensa comiseração e franca revolta com a vida. Seus olhos umedeceram. Não era justo que Deus subtraísse das pessoas a capacidade de entender seus desígnios, sua maneira confusa de aplicar a justiça e o perdão. Estava certo que havia uma razão para a vida ser como era, embora lhe parecesse criminoso, uma criança faminta rejeitar um pão seco, que afinal, era tudo que podia dar. Se Deus sabia de tudo quando engendrou seu universo, como permitiu no seio do homem, um órgão que pudesse sentir piedade e, em tantos outros, tantos meios de excitar esta condescendência? Onde estará a resposta convincente para que se aceite um ser perfeito, fazer coisas imperfeitas? Ou será o homem uma peça perfeita, mas inacabada? Não, o homem fora imprevisível ao próprio Deus, pois Ele admitiu isso no Dilúvio, exterminando tudo o que achou ruim e deixando o que entendeu como bom. No entanto, a malícia estava entranhada no ar, nos átomos, na essência de tudo, e tão logo Noé pisou a lama nos socalcos do Ararate e seus filhos procriaram, lá estava ela de volta, com força ainda maior pelo seu descanso e latência, num desafio descabível ao poder incomensurável do Eterno.

E como não se deve dizer nada quando não se sabe ao certo o que dizer, Marcos bateu de leve nos ombros do menino e disse, tentando não pensar mais naquilo:

– Mãos à obra, meu herói.

– Mão à obra – retrucou ele, cheio de si e tão feliz pela exortação, quão dura e fina era a dor que passeava por seu estômago.

Aquele garoto, pobre e ignorante, trazia nos olhos a gratidão de ser eterno. A maior proeza de Deus foi tirar do nada, tudo o que existe. No entanto, maior proeza ainda é, do nada, fazer alguma coisa imperecível, como Ele próprio. E aquele garoto miserável, tinha dentro de si uma alma imortal, com toda a chance do mundo de ser eternamente feliz. Quantos não nasceram e jamais nascerão, continuando no nada? Mas, ele estava aí e nada, nada mesmo podia tirar-lhe a sutileza de ser eterno. Todo ser humano, pelo simples fato de ter nascido, deveria estar feliz e agradecer a cada instante ao Senhor, ainda que lhe faltassem os olhos, as mãos, as pernas… ainda que fosse o mais triste mutilado.

Às 23h, aquela zoada irritante do esmeril desgastando as bordas das soldas silenciou e as lâmpadas internas foram desligadas. Marcos suspirou aliviado por mais um dia de trabalho e pôde sentir a bênção de Deus naquela boa ação que praticara.

Nada mais sensato para preservar nossa pureza e sensatez, do que a ocupação plena do tempo. É na cama, nas horas de preguiça e inatividade, que se engendra todo mal que mina o coração do homem.

Correu os olhos pelo recinto semi-escuro para certificar-se de que estava tudo em ordem, apanhou a chave do portão e quando ia se dirigir para ele, o menino que já havia se adiantado, voltou, avisando-lhe que havia um moço querendo falar-lhe.

– A estas horas? Sabe quem é?

– Não olhei bem, mas é um rapaz novo, um pouco mais velho que eu.

– Está bem. Diga-lhe que já estou indo.

– Não é preciso – retrucou Raimundo, na semi-escuridão.

– Que quer? Não fui bem claro quando avisei para não mais cruzar o meu caminho?

– Eu também disse alguma coisa, que pelo que me parece, você esqueceu muito depressa.

– Vai embora, Raimundo. Prefiro não ter encrenca com alguém que carrega nas veias o mesmo sangue que eu.

– Acontece que não estou pensando como você.

– Vamos, saia que quero fechar a oficina.

Raimundo deu um passo de lado e dois vultos reportaram do escuro, caminhando resolutos para o lado de Marcos.

– Que significa isso? – perguntou num momento de insensatez.

Ele bem sabia o que significava. Correu rapidamente os olhos ao seu redor, mas apesar de estar no meio de entulhos de sucata, não viu nenhuma barra que tivesse peso e tamanho condizentes ao que se propunha. Seus adversários, no entanto, brandiam duas achas arrancadas das blindas de uma casa em construção da rua vizinha e caminhavam resoluto em sua direção. Marcos raspou a mão ao acaso e seus dedos encontraram o tripé de um catafalco semi-acabado. Ergueu-o em sinal de defesa. A primeira paulada zuniu no ar, acertou o cano horizontal do catafalco, dobrando-o em dois.

O garoto, num grito de horror, disparou pelo portão, mas a rua estava silenciosa, como se todo o cenário estivesse predisposto à infâmia e ao crime. De longe a longe, o roncar de um carro que trocava a marcha e seguia em sua direção suspeita. A chuva fina e intermitente dava um toque de patética falácia ao sossego e ao descanso.

Quantas coisas se passavam, naquele instante, no desregramento humano! Um casal furtivo deixava, num misto de preocupação e culpa, o Dallas Motel; um médico frustrado embebedava-se num barzinho da esquina; um homem mal sucedido rolava na cama, na luta degradante de resolver seus problemas com preocupação e insônia; uma criança famélica elevava aos céus o seu grito de fome, num gemido comovente a Deus; um pistoleiro queimava a última guimba na tocaia escura, enquanto sua vítima não aparecia; um ladrão, erguia o pé-de-cabra e forçava a janela de uma casa, cuja família fora a uma festa de aniversário; dois policiais moíam a pauladas, um honesto trabalhador;  Toda maldade saía das tocas escuras em perseguição de suas vítimas distraídas e indefesas.

Marcos largou o catafalco e correu para os fundos, na ânsia impensada de encontrar, em algum lugar, alguma coisa que o defendesse daquela situação embaraçosa. Esbarrou num portão da garagem e caiu – foi a última coisa de que teve consciência.

No outro dia pela manhã, dois soldados estavam a postos, quando o senhor Manoel chegou para abrir a São Judas. Os demais funcionários estavam aturdidos com o pandemônio que se encontrava dentro da oficina escancarada, O que não pudera ser quebrado, estava entortado, empenado, desbeiçado. No meio dos funcionários, o garoto permanecia em estupor, traumatizado, horrorizado em seu silêncio, com aquelas coisas horríveis que lhe batiam à porta, ainda tão cedo.

– O senhor, presumo, é o proprietário desta serralheria.

– Pois não – confirmou o Sr. Manoel.

– Na ronda de ontem, lá pela meia-noite, flagramos dois homens numa briga de morte dentro de sua oficina. Fizemos o que pudemos, mas só conseguimos prender um deles que, por sinal, deu-nos muito trabalho, pois estava irascível.

– Deve ser um rapaz de nome Marcos, pois é sempre ele que fica a trabalhar à noite – esclareceu o senhor Manoel.

– Não sabemos como se chama, pois não portava documentos. Sabemos apenas que está detido. E um homem muito perigoso, senhor…, senhor…

– Manoel – completou o proprietário, reavivando a pretensa falta de memória de Camilo.

– Pois é, como estava dizendo, é um elemento perigoso, que aconselhamos não constar no seu quadro de funcionários.

– Nunca me pareceu assim. Aliás, como é a vida! Poderia jurar que se tratava de meu melhor empregado.

Os demais companheiros de Marcos assentiram com um nuto afirmativo.

– Pois é isso! Só mesmo o faro policial para detectar certas coisas. Ele vai ficar lá por uns tempos. Iremos fazer averiguações e um levantamento de sua via pregressa, e gostaríamos de saber se, depois de tudo isto, ainda pretende que ele volte a trabalhar aqui.

– Bem, se vocês insinuam a periculosidade dele, acho melhor não contradizê-los. Afinal, há muita gente procurando emprego aqui todos os dias e será fácil substituí-lo.

– Escreva, pois, uma carta de demissão, de desligamento da empresa, que nós mesmos iremos cientificá-lo.

Mesmo a pessoas aparentemente simplórias como Camilo e Marim, não é subtraída a argúcia dos irracionais. Eles sabiam que se dessem tempo a uma dedução sensata, o senhor Manoel teria tempo para refazer seu raciocínio e descobrir que aqueles policiais não tinham jurisdição para fazer rondas fora de Bacuri; que Marcos estava acompanhado de um garoto que poderia ter visto tudo; que deveria conversar com Marcos para ouvir a sua versão e que, enfim, não lhe era vantajoso perder o mais pontual e eficiente de seus funcionários.

Deu ordens a uma menina de longos cabelos pretos e tez morena, que logo se apressou em enfiar na máquina uma folha e enchê-la de solecismos rebatidos, mas que dava a entender que, daquela data em diante, Marcos estaria livre das queimaduras.

13

 Sessenta e três dias depois, Marcos era empurrado para a calçada. Deu três passos apressados pelo safanão e parou no meio da rua. Não havia, para seu coração aturdido, entre os pontos cardeais e colaterais, uma direção a tomar. Era incrível a capacidade teatral daqueles savandijas em mascarar a verdade. Ninguém jamais suspeitaria daqueles pífios guardiões da justiça. Iam até o fim dos seus sujos compromissos, fazendo juiz ao dinheiro que recebiam.

O inverno já se fora de todo e naquela manhã de maio, o sol refletia-se no verde oleoso das folhas. A poeira avançava no ar, os caminhões madeireiros seguiam céleres para as indústrias, transportando nos estrados, a devastação das florestas – rota invariável do mundo, na obsessão cruel e desumana de destruir a natureza. Os seres humanos muito se parecem com porcos soltos num belo jardim.

Depois de mais de dois meses encurralado numa cela promíscua e fedorenta, rodeado de marginais irrecuperáveis, anêmico e desnutrido, Marcos pôde sentir mais uma vez que não tinha lá tanta razão para erguer os olhos e agradecer aos céus pela benevolência da vida.

Dezenas de desocupados, de cotovelos fincados nos peitoris das janelas, fitavam, num misto de compaixão e asco, aquela figura barbinegra, desmazelada, de aspecto selvagem e, em cujos olhos refletia-se um brilho desbotado e findo.

Pensou alguns segundos, mas suas idéias não tinham concatenação, rumo, nem cadência. Depois, soltou os músculos arredios e começou vagar à deriva, intercalando as passadas, vagarosamente, como se sua pressa ou vagarosidade não influenciassem quanto ao lugar a alcançar.

Chegou à BR 010 e foi seguindo, lentamente, para qualquer lugar. Nunca se sentira tanto um animal selvagem. Mais abaixo, o parque de Exposição Agropecuária jazia em abandono, com o capim e relva elevando-se pelas sacadas dos barracões. Ele entrou, empurrou para os lados os matos e estirou-se no chão. O sol que declinava não demorou a sapecar-lhe o rosto lívido, mas Marcos dormia, sentindo ao redor de si, o zumbido dos insetos e o canto do papa-capim.

Sua mente mergulhou no abismo do sono e lembranças avançavam em defesa de seu descanso e de sua subsistência. Eram sonhos entrecortados, retalhos de tempos fortes que lhe marcaram a vida: mergulhava no Itinga, revolvia um jequi. Dentro dele debatia-se um pequeno surubim. Ele sorria feliz, mas, de repente, o peixe transformava-se num jacaré disforme que arreganhava as fauces e investia sobre ele. Saltava para o barranco e disparava atrás de pequenos sáurios, pelotando-os adoidado, com sorriso sádico e perseguidor. Os calangos e lagartixas entocavam-se e ele ouvia, então, aquela música que os grotões acústicos da floresta reproduziam em ecos. Virava-see via sua mãe que sorria, lata na cabeça, toalha envolta no corpo nu. O cheiro de sabonete penetrava-lhe nas narinas e ele lembrava das balas-doces escondidas na moita de arranha-gatos. Depois se via a caminho. Os pés doíam, a cabeça doía, as vistas, o estômago… Seu coração de criança dependente gritava pelo pai que batia os braços e voava, sumindo, como Dédalo e Ícaro, entre as nuvens negras do céu. Ficava aflito e voltava para casa, ouvia a voz de sua mãe, mas não a encontrava, não a via, não a tocava.

Djanira saltava-lhe ao colo, Raimundo xingava, dizia palavrões, ameaçava. A cabeça revoluteava, ia e vinha, sem paradeiro, sem caminho. Entrelaços de angústias desvairadas apalpavam-no em distúrbios mórbidos de loucura.

Quando despertou, a claridade do sol já saíra de seu rosto e traçava uma linha horizontal de doirado esmaecente na parede caiada de um estábulo que ficava logo em frente. O barulho contínuo dos veículos que trafegavam na Belém-Brasília misturava-se com a inquietação de sua alma.

Sentou-se, enlaçou as pernas dobradas com as mãos e tentou coordenar as idéias. Lembrou então que tinha um barraco e esta lembrança trouxe-lhe Djanira. Como estaria? Como teria passado aqueles dois meses, sem um tostão para as mínimas necessidades? Tão criança! Sempre amedrontada. Não tinha coragem de ir visitá-lo na cadeia.

Um pensamento relampejou em sua cabeça, mas ele o abanou, como um animal que se sacode para afugentar insetos daninhos. Ele sabia que todo o poder de resolução e de crença, torna-se imbele perante a fome e a miséria. Ele mesmo sentia que suas orações já não possuíam o fervor de um tempo em que não duvidava da amizade de um ser poderoso, que lhe enchia o coração de felicidade, mesmo nas adversidades. Sua fé estremecia ante tantas injustiças e desajustes. Djanira teria tido força para enfrentar a miséria com dignidade?

Pensamentos ainda piores correram-lhe o costado: Raimundo não teria se aproveitado da situação e transformado a irmã numa máquina infame de suprir-lhe os vícios? Ele bem poderia fazer isto e ela, diante da fome, bem poderia ter se submetido.

Aqueles pensamentos ergueram-no num sobressalto e as forças da revolta acionaram sua última resistência. Postou-se de pé, sacudiu os trapos imundos e saiu caminhando. Afinal, o Bacuri ficava bem próximo de onde se encontrava.

A noite chegava. Era uma negridão chocolate que se debatia ao pleno, antes que raios de luz, perdidos nos reflexos, ainda vendiam, relutantes, suas despedidas. Luzes esparsas tremeluziam em um ou outro poste; crianças nuas ou de esgarçados calções empurravam brinquedos grotescos; um ou outro bêbado, em seu ritmo imemorial, cambaleava ao peso da desordem social; os ratos metiam os narizes sensíveis e aguçavam os sentidos em suas tocas: eram sempre despertados por aqueles mesmos acontecimentos repetidos de lúgubres uivados, conversas inoportunas e toda sorte de encenação infernal da qual, à entrada da noite, o Bacuri revestia-se. A noite chegava.

Os primeiros carros pequenos já investiam pelas ruelas imundas e os primeiros rostos das prendas já apareciam também, nos postigos dos casebres. Era como se fosse uma feira miserável, onde se expõem os objetos à apreciação dos adquirentes. Os motoqueiros iam passando vagarosos, examinando os rostos abatidos e tristes que pudessem valer-lhes a intenção.

E Deus, talvez indeciso, afastava-se do coração revoltado de Marcos. Ele não sabia onde estavam os verdadeiros culpados de tudo aquilo, naquele mundo fétido onde, possivelmente, nem Deus ousava enfiar os pés.

Os homens estavam ali, prontos para apanhar uma guria, levá-la a um motel ou usá-la dentro de seu próprio carro, acalmando os demônios do sexo, que revoluteavam dentro de si, insaciáveis. Mas, que seriam daquelas famílias numerosas, desempregadas, famintas e doentes, se não fosse o dinheiro sujo que pela madrugada chegava impreterível? Será que a moral, os bons costumes, a religião, as igrejas… tudo afinal que se apregoa como princípios supremos, honestos e salvadores chegariam pela manhã com um prato de comida e uma muda de roupa?

Se aquelas famílias não se submetessem a isto, como sobreviveriam? E nestes pensamentos, passou-lhe uma blasfêmia pelo coração – uma blasfêmia pelo que dizia, mas não pecaminosa, como não o são, todas as coisas que entram em nosso raciocínio porque acham a porta aberta e não porque as convidamos: o diabo estaria sendo o maior benfeitor daqueles miseráveis, o genitor meritório da prole órfã de Deus.

Da Esquina da Fofoca (que se tornara proverbial pelas reuniões de desocupados que mediam e pesavam a vida de cada vivente do bairro) Marcos avistou duas motocas estacionadas em frente sua casa. A distância e a escuridão ainda não lhe davam precisão do estacionamento, por isso avançou mais até certificar-se. Meteu-se em seguida num beco escuro, e quando seus pés estremeceram o lixo, ouviu mil ruídos de camundongos e ratazanas que fugiam espavoridos. Logo depois, viu três rapazes e uma moça saírem calmamente. Na bagagem, de uma das motocas, ia Raimundo, no outro, Djanira. Passaram rente a ele, mas não o perceberam, pois era comum em cada beco, um bêbado que mijava ou vomitava, ou um casal furtivo que procurava na escuridão, fugir dos olhos de seu próprio infortúnio.

As motocas curvaram na esquina. Marcos saiu do beco e encaminhou-se para sua casa. Meteu a mão pela abertura do pranchão, destramelou a porta e entrou. Procurou a caixa de fósforo e não foi difícil encontrá-la, pois Djanira não mudara o esconderijo. Acendeu a lamparina e quando a luz varreu a negridão do aposento, pôde concluir toda a realidade: Raimundo voltara.

Seu catre estava desarrumado, mas via-se que alguém havia ali se deitado. A rede estava limpa e bem esticada. Havia roupas novas dependuradas e alimentos empilhados no consolo de madeira. Ficou por instantes ali, petrificado em suas conclusões. O sangue vinha-lhe às faces, queimando-lhe a pele e deixando uma zoeira dorida na cabeça. Não era preciso ser muito inteligente para se deduzir o que estava acontecendo. Naquele exato momento, Djanira estaria jacente em algum canto da cidade, exposta à voluptuosidade, deixando-se amar ao preço de alguns quilos de alimento.

– Ah, vida infame! – falou consigo mesmo, Marcos, em extenuado desabafo. Depois remexeu as panelas, acendeu o fogo, fez um mexido com o que sobrau e engoliu satisfeito. Djanira herdara da mãe, a sutileza dos temperos. Marcos venerava-a e sentia por ela um amor puro que a desincumbia dos castigos de sua reprovação.

Tomou um banho de borrifos, enxugou-se na toalha de Djanira e abriu sua mala de papelão, onde lhe esperavam suas peças de roupa, cuidadosamente veladas. Meteu-se nelas, soprou a labareda do filó e escanchou-se na rede, sentindo sem reservas o valor da liberdade. Como era gostoso estirar-se ali e ouvir o ruído sonolento dos armadores. Por alguns minutos, sua mente enfarruscada, aquietou-se no para atender as necessidades de seu corpo cansado.

Em altas horas foi despertado pelas rajadas deseducadas de um “cadrão” ressonante e por vozes furtivas que se calaram por instantes no beijo da despedida. Marcos ficou quieto, como se tudo aquilo fosse normal. Viu o vulto de um braço que se esgueirou pelo furo da madeira e destramelou a porta – era sua irmã. Entrou, suspirou cansada, sentou-se num tamborete e começou a chorar copiosamente sem imaginar que, bem perto dela, Marcos encontrava-se.

Oh, meu Deus! – ciciava ela em prantos e soluços tão sentidos e comoventes, como possivelmente o fora, o desespero de Jesus ante a iminência do calvário.

– Djanira, minha irmã, não se assuste, sou eu, Marcos!

– Heim?!

– Não se assuste, sou eu mesmo, Marcos. Soltaram-me hoje.

– Marcos?

– Sim, Marcos, seu irmão.

Ela acendeu rapidamente a lamparina, e a luz da chama trêmula alumiou seus olhos molhados e as maçãs do rosto esmaecidas pela angústia. Marcos ergueu-se da rede, inseguro.

– Marcos, meu irmão!…

Ele atirou-se sobre ela, apertando-a com ânsia desesperada.

– Minha querida irmã, quanta saudade!…

– Afaste-se de mim, Marcos. Não valho mais nada. Sou uma puta vagabunda, que vende o corpo por qualquer centavo.

– Não fale assim, meu anjo, todos nós, a humanidade toda está podre e corrompida. No entanto, ainda não invadiram seu coração. Pisaram-lhe o corpo, forçaram as fortalezas dos sentimentos, mas não penetraram em sua alma. Eu vi quando chegou e juro-lhe, fiquei feliz ao vê-la soluçando.

Djanira parou, ficou confusa e paralisada ante a devotação do irmão. Imaginava-o furibundo e irascível ante sua fraqueza e, no entanto, ele a compreendia e perdoava.

– Marcos, por que é tão bom comigo?

– Talvez porque só tenha você neste mundo.

– Ainda que seja só por isto, sou-lhe eternamente grata.

– Haveremos de recompor nossas vidas, Djanira.

– Ainda tem esperanças?

– Estamos vivos, não estamos?

– Djanira sorriu levemente, compenetrando-se em seguida.

Marcos, estou toda comprometida. Quando a coisa piorou, bem, acho que você poderia dispensar-me de dizer.

– Sim – assentiu Marcos, com laivos de piedade.

– Pois bem, Raimundo envolveu-me demais e… bem, você sabe, ele está totalmente dependente das drogas e já não vive sem elas. Não trabalha e às vezes, a única maneira de consegui-las é… é…

– Sei, sei maninha. Não precisa falar nada. Isto tudo acaba agora. Logo que souber que saí, não voltará aqui mais. Vou conseguir um novo emprego e iremos viver dignamente.

– Ah, Marcos! Você não conhece mesmo o Raimundo. Ele não vai querer perder a oportunidade que obteve. No princípio relutei, juro que relutei, mas acabaria morrendo de fome se não cedesse.

– Não se machuque mais, maninha. Não precisa falar nada.

Eu sei de tudo, vejo nos seus olhos. Amanhã irei procurar emprego e só fará outra vez estas coisas se quiser, jamais por necessidade.

– Você é a melhor coisa que Deus pôs neste mundo, Marcos!

– Venha cá, dê-me um abraço forte, pois estou com saudades de sentir alguém que amo bem perto de mim.

– É profano amar a irmã – gracejou ela, roçando seu corpo de mulher no peito dele.

– Marcos apertou-a forte, depois afastou-a ao alcance de seu olhar – estava cada dia mais bonita: sorriso lindo, olhos dóceis, boca sensual, os cabelos finos, negros e jogados docemente pela testa, o rosto, a pele como uma tenra folha de alface numa manhã orvalhada. Djanira era linda, linda e pura, pura e mulher, mulher e rameira, prostituta e santa. Seus pecados eram orações. Em seus erros ela refulgia. Talvez fosse mais pecado deixar que flor tão linda murchasse no esquecimento. Djanira, morena esguia, era como o lírio do campo – alguma coisa que por si só, era mais bela que todo aparato artificial da terra.

 

14

 Depois de duas semanas de inúteis tentativas, defendendo o mínimo para o sustento, com limpezas de quintais e carregamento de carros nas olarias que margeavam o Tocantins, Marcos vinha voltando cansado e quase desiludido para seu casebre. Sua cabeça revoluteava, doía-lhe a nuca e o estômago – a preocupação o definhava em cada dia que passava. Pouca coisa dificulta mais o vencer do que a falta de perspectiva.

Deus era-lhe a única saída, na submissão de que tudo se faz conforme seus desejos e na certeza de que mesmo os maiores infortúnios caem-nos às costas com a anuência tácita do Criador. Por isso visitava a igreja de Fátima quase todos os dias, embora sentisse em cada visita, a dúvida infiltrar-se em sua alma, como umidade nefasta que enferruja e corrói. Toda teoria de um Deus justo e complacente ruía ante seu dia-a-dia de sofrimento e injustiça. O homem, diferentemente de Deus, cansa-se de esperar – e Marcos estava cansado diante da infindável provação do Senhor.

Houve um tempo em que ele agradecia aos céus pelo sangue que escorria de um corte; pelo espinho que lhe rasgava a carne ou pela fome que o martirizava – seu intuito estava além do presente, na dúbia promessa de um porvir cheio de felicidade. No entanto, Marcos sonhava, em sua ingenuidade, com a longevidade humana e sentia que os anos passavam e a vida, desdenhosa e insensível, seguia seu rumo, num rastro deprimente, sem que nada de bom e promissor se lhe assomasse. Achava que já era tempo de ser feliz, pois pagara por isto um preço elevado, bem a mais do que suas posses. Não lhe era muito admissível que depois que descesse à cova, algo soçobrasse dele, para regalar-se com as riquezas acumuladas em sua vida de miséria. Ninguém poderia precisar qual seria, justamente, o julgamento de Deus à simplicidade de Marcos.

Um rato espavorido que cortava a rua prenhe de bichanos roliços, que nem sempre se davam ao vezo de uma investida cansativa diante daquele ecossistema farto, sobressaltou-lhe com um risco de poeira. Os gatos ali eram os únicos animais que viviam despreocupados e gordos. Faziam suas negociatas pelos velhos cobertos de

sarrafos e papelões e só se preocupavam com os sarnentos vira-latas, que em dois mil anos não afrouxaram a animosidade a seus inimigos comuns. Eternos inimigos como alemães e judeus, como eles, em algum canto viviam próximos, na eterna esperança de que uma catástrofe ou um sortilégio dessem-lhes a oportunidade da altercação.

O rato lembrou Marcos de que estava em seu bairro, em seu mundo. Sempre que dobrava a esquina de sua rua, sentia, ao elevar os olhos, um rubor subir-lhe às faces, na expectativa do que pudesse ver em frente à sua casa. Marcos tinha medo de encontrar-se com o irmão, pois sabia que seria extremamente difícil um diálogo entre os dois. Raimundo era seu sangue, mais novo e mais fraco e isto o constrangia sobremaneira. Depois de tudo não conseguia odiá-lo, embora não admitisse nem aceitasse, a sua maneira de levar a vida.

Por isso, quando viu o casebre, aparentemente solitário, suspirou aliviado. O sangue espalhou-se devagar e seu rosto arrefeceu-se. No entanto, quando estava a uns 50 metros da casa, ouviu vozes alteradas, gente que se digladiava e feria com palavras. Pensou tratar-se de mais um acerto de contas entre marido e mulher, cuja única maneira de descarregar a ira e a revolta pela vida, era acusarem-se, como se o Estado, o Demônio e toda minoria pútrida e extorsiva que comanda o proletariado, nada tivessem a ver com aquela irrisão à dignidade humana. Mas quanto mais se aproximava, mais sentia seu coração acelerar-se e mais forte ainda o calor retomar a seu rosto. Aquelas vozes não lhe eram tão estranhas.

– Sua puta vagabunda, tire a roupa aí ou a mato.

– Pode matar se quiser. De hoje em diante, pode arranjar outro meio para conseguir suas drogas.

Vamos embora Raimundo, ela não quer – disse com aparente conformidade, o traficante. E continuou: – E um direito dela. A santinha fica aí com sua pureza e você passa uns dias sem seus devaneios – e dizendo isto, retirou do bolso uma sacolinha plástica em que fulgia um pó esbranquiçado. Ele sabia o efeito daquela visão. Com as mãos trêmulas, Raimundo cambaleou para o embrulho balouçante. O homem transformava-o em pêndulo entre os dedos polegar e indicador e afastava-o em cada passo de Raimundo.

– Há, há! – dizia o homem, num som gutural de escárnio – só depois de cumprir sua parte.

Raimundo parou:

– Pelo amor de Deus, dê-me isto depressa!

– Nada disso. Acordo é acordo. Ou a irmãzinha, ou nada.

Raimundo voltou-se arrasado.

– Djanira, só mais esta vez, vai. Você já fez isto tantas vezes, por que hoje não?

– Acabou, Raimundo. Se não puder resistir hoje, não resistirá também amanhã. Entre roubar para viver e vender meu corpo, optei pelo segundo, pois era dono dele e nenhum policial poderia prender-me por isto. Mas agora não preciso mais roubar, tenho o que comer.

Sentindo-se vencido, Raimundo, num noto sardônico e diabólico, empertigou-se, avançando decisivo sobre Djanira. Agarrou-a trêmulo e começou a rasgar-lhe a roupa, numa luta excitante aos olhos do homem que, alucinadamente, começou a desatar a correia e arriar as calças.

– Não, pelo amor de Deus, não! Que Deus lhe castigue por isto, Raimundo.

– Deus, uma ova. Quieta, se não a esgoelo.

– Se Deus existir e estiver aqui, que o castigue por isto, Raimundo.

Nisto a porta voou aos ares, chocando-se contra o homem de calças arriadas que sem poder trocar os passos, estatelou-se num canto do barraco, sobre os tijolos estuantes do fogão. Talvez, a própria ira divina não fosse mais intrépida e violenta. Cego de ira, Marcos avançou sobre Raimundo, enclavinhando suas mãos rígidas de ódio no pescoço do irmão. Arremessou-o em seguida contra o tablado que ruiu. O homem ergueu-se de sobre as brasas e saiu pela rua, sungando as calças e gritando de dor pelas brasas que se entranharam na roupa. Djanira cobriu os olhos com o antebraço, enquanto Marcos brandia um afiado alfanje e degolava, impiedosamente, a Raimundo, num movimento único e certeiro. A cabeça rolou de lado, como se a força que comprimira o bíceps de Marcos, tivesse, em si, realmente, a força e a presteza de um anjo de Deus.

A lamparina que caíra, fez nascer uma chama nos cordões da rede dependurada. A chama tremelicava e as labaredas que aumentavam de espaço a espaço, já se mantinham belas e vitais, alumiando aqueles seres inertes e desvairados, que se impunham num desafio estupefante ao desdouro da fé. Do pescoço de Raimundo, o sangue corria, num filete rubro-escuro que se encostava na cabeça desgrudada.

Como um Deus mitológico, Marcos firmava o alfanje na mão direita, olhos fixos no nada, pensamentos em recortes que se debatiam na ostentação de seu crime. De Djanira, apenas o soluço sumido de quem jamais poderia decidir se realmente era melhor ver tudo aquilo ou ter sido jogada num vaso imundo, no sangue que é vida e degola os seres, a cada menstruação de mulher.

O fogo erguia-se animado pelo alimento fugaz de paus podres, papelões ressequidos e encarquilhados e toda sorte de trapos e lixos que se predispõem ao fogo, numa noite de mormaço estuante de verão.

Nem mesmo o estupor das mentes poderia adiar-lhes a inevidência. As chamas cresciam, esquentavam, ameaçavam, lambiam devorando tudo. Foi então que olhos e ouvidos reviveram, na hecatombe da realidade, com chamas vorazes a lamberem seu barraco e gritos espavoridos a explodir-lhes nos tímpanos:

– Saiam, saiam daí. Depressa se não o fogo os queimará.

Foi então que Marcos voltou a si e pôde sentir a extensão de tudo. Centenas de pessoas de baldes e latas arremessavam água e gritavam, como se tivessem ajustado suas vozes num mesmo grito:

– Saiam, saiam!…

Entre as chamas e os destroços, Marcos tomou Djanira nos braços e arremessou-se por entre uma brecha em chamas. Ganhou a rua, desvencilhou-se da multidão, dobrou o primeiro beco e deixando-a semidespida numa sacada grotesca, disse entrecortadamente, num misto de tristeza, piedade e angústia:

– Que Deus fique com você minha irmã. Não pense por mim… eu… eu gosto muito de você.

E carregando em sua aflição, apenas o olhar perdido, encurralado, medroso e dependente de Djanira, Marcos embrenhou-se na escuridão da noite. Era apenas ele e o abismo impalpável de suas angústias que carregavam aquele alfanje sanguinário, maculado com o golpe impensado de suas mãos, sob os auspícios, quem sabe, de Deus.

Deus eterno, onipotente e imprevisível. Quantas vezes escondia-se num raio, numa onda, num estouro de pneu, num vírus maligno, para solapar a maldade insana ou salvar a tempo um justo? Agora estava ali, no gume de um alfanje, ceifando o joio de seu trigal.

Marcos corria pela noite, entre duendes e gritos bruxuleantes, em sua trajetória imodificável de um predestinado, fazendo, agindo e desfazendo, como um robô autômato programado.

Cada pessoa que cruzava, parecia-lhe um juiz, um soldado, um promotor a acusar seu fratricídio. Ganhou a BR, esfregou o alfanje no capim e continuou sua caminhada irracional.

Era verão, tempo em que os madeireiros trabalhavam incansavelmente, como a formiguinha da fábula. Era preciso produzir nesta estação para que quando o inverno chegasse, eles tomassem as redes dos agricultores e descansassem. Aí era a vez dos agricultores que sorriam aos primeiros renovos emergidos do amanho da terra úmida. Madeireiros e agricultores, no Maranhão, eram como se fossem proletários de uma grande fábrica em revezamento semestral.

Não foi difícil, pois, para Marcos, conseguir uma carona num velho Chevrolet que batucava no asfalto como se estivesse com uma carroceria cheia de latas desarrumadas e vazias, em péssima estrada de chão.

– Para onde está indo? – perguntou-lhe o cearense que dirigia aqueles destroços.

– Para onde está indo? – devolveu-lhe astutamente a pergunta, Marcos.

– Pindaré – retrucou laconicamente o motorista.

– E para lá que estou indo.

– E se eu estivesse indo para Amarante? – chasqueou o cearense.

– Seria meu caminho, do mesmo jeito.

– É o que imaginei – completou o cearense, cuja vida ensinara-lhe, sobejamente, como age um caboclo quando tenta fugir de si próprio: tudo está bem, tudo serve, qualquer direção, qualquer lugar.

– Suba – ordenou ele, enquanto esfregava as botas no estribo, como se dentro houvesse ainda alguma possibilidade de levar mais sujeira.

Marcos jogou o alfanje no estrado e guinchou-se nele. O Chevrolet gaguejou, soluçou, engoliu o ar dos caninhos, ganhou diesel e saiu em decibéis superiores aos limites de um tímpano reforçado de ferreiro.

Em Açailândia, o carro parou. Eram 23 horas. O cearense virou o braço suado, mosqueado de carvão de um toro sapecado que descarregara, olhou o relógio e disse:

– Cedo, cedo. Dá pra gente dormir no “pé do pau”. Antes do amanhecer, estaremos lá.

Os ajudantes assentiram com um nuto e Marcos aliviou-se.

– Vamos tomar um café reforçado enquanto o bombeiro abastece a fera aí.

Os três seguiram para a lanchonete do posto, enquanto Marcos se alimentava das angústias que lhe crispavam a consciência.

O cearense era um homem sofrido, obstinado. Nele podia-se medir o crescimento da barba e do cabelo em quarenta anos, pois nunca os havia cortado em toda vida. Dirigia e vivia de um velho Chevrolet, do qual já fizera tantas tentativas vãs de desgarrar-se. Costumava exclamar quando o mesmo enguiçava e o deixava na estrada com fome e sede:

– Tanta coisa para me apaixonar!…

Nunca terminava seus pensamentos, como se temesse magoar aquela coisa, cuja evidência atestava, mais gostava na vida. Ao perceber o estado deplorável do pongueiro, apiedou-se:

– Venha tomar um café com a gente – e ao perceber a realidade, completou: – Eu pago.

Marcos ergueu a cabeça, agradeceu e afundou-se no martírio das recordações – elas, por si próprias podiam alimentá-lo por muito tempo ainda.

À5 duas horas, o carro (depois da típica e estúpida acelerada de extrair pistões que todo motorista dá antes de desligar a ignição) sossegou, deixando na floresta, um vazio tão profundo que se era possível admitir o ruído do próprio silêncio.

Eram quatro ou seis varões fincados no solo, outros tantos entrelaçados em caibros, cristados por folhas de babaçu e pindoba. Sob aquilo, algumas redes enroscadas em si próprias. A noite era límpida e estrelejada e tão relaxada era a tapagem, que mesmo de dentro podia-se ver as estrelas cintilantes entre os ramos da floresta. Era verão, mês de outubro e não precisava temer, sequer, respingos ocasionais. Aquelas folhas serviam apenas para evitar o sereno da madrugada – mais danoso a um caboclo que abacaxi com leite para um italiano.

O caboclo é uma alma simplória, mas tão renitente em suas crendices e teimosias, que nem mesmo Cristo seria capaz de demove-lo com a perspicácia da persuasão. O caboclo é aquele que diz pela boca tudo aquilo que queremos ouvir e com seus atos, tudo aquilo que não desejamos que faça.

– Pra onde vai, moço? – perguntou ao cabo de contas, o cearense.

– Não fica longe daqui – redargüiu Marcos.

– Mas aqui é o fim. Não há mais estrada ou picada daqui pra frente.

– Nada tem fim – respondeu Marcos, laconicamente.

Ah, sim! – assentiu o cearense, temendo pela primeira vez sua incúria em envolver-se com um maníaco em potencial. Tentou desfazer-se de seus pensamentos:

– Encoste por aqui até o dia clarear.

– O dia já vem. Já ouço sinais disto na despedida do urutau.

– Que bicho é este urutau? – perguntaram em coro, o cearense e seus dois ajudantes.

– E um pássaro encantado que vive na noite, encimando os tocos secos e que consegue ver com os olhos fechados. Tem cauda longa e plumas acinzentadas e macias como veludo. Ele já foi linda princesa. Uma bruxa, porém a enfeitiçou invejosa e seu noivo casou-se com outra. Por isso, cheia de paixão, vive pelas noites de luar a emitir seu canto melancólico. Quando é meia-noite e a lua está cheia, ela fica tristonha e canta um canto lúgubre. Os animais entocam-se, as corujas recolhem-se assustadas e toda floresta chora de angústia, como se alegra emudecida, ao canto do uirapuru. Mais perto da madrugada, canta curto e depois vira toco, só desencantando outra vez, ao anoitecer. Por isso, muitos chamam o urutau de emenda-toco e mãe-da-lua.

Os três ouviam-no boquiabertos. Aliás, nada é mais fácil do que chamar a atenção daqueles que carregam nos genes, a cultura mista de além-mar: basta inventar histórias fantásticas. O caboclo tem em si, depois de tudo, a força intrínseca das epopéias – seu interior é o inverso do que aparenta. A grandeza do sofrimento pelos mares bravios e incomensuráveis da escravidão dos seus antepassados, transformou-o em deus vencido, em espírito teimoso e indômito, que recorda o passado dantesco com a sutileza de um judeu, pretensamente conformado diante da ação criminosa dos alemães.

– Coitada da moça – suspirou um dos ajudantes.

– Mas ela um dia perderá o encanto, não perderá? – perguntou afoito o outro.

A pergunta ficou no ar, pois nem mesmo a curiosidade do cearense e a consciência tonitruante de Marcos, eram fortes para manter o peso daquelas pálpebras que desciam renitentes.

Quando o sol despontou, os únicos seres diurnos que dormitavam na floresta eram o cearense, Marcos e os dois ajudantes negros.

A floresta inteira mudava seu cenário em cantos mil, enquanto o sol brincava em parceria com o vento, entre as frestas das vergônteas. O verde enchia tudo e morria no tapete marrom das folhas secas.

Um veado pisava mansinho; a cutia roia uma amêndoa de sapucaia; a anta farejava o ar infestado do cheiro de tatajubas maduras; os xexéus enristavam-se no alto numa barafunda zombeteira.

Deus estendia-se nas folhas e dormitava maravilhado diante da sublimidade de sua criação, porque ali tudo era perfeito, puro e belo, porque tudo aquilo era, incontestavelmente, Ele mesmo.

 

 15

 Quando o barulho ensurdecedor do motor debilitou-se na distância, Marcos pôde sentir a diferença que vibrava nas espécies, vendo um tangará de capuz escarlate, esvoaçando a certa distância e retornando ao mesmo lugar, como um móbil bumerangue. Diferente dele, o tangará, numa cantilena despreocupada, sem pensar em problemas ou no dia de amanhã, voava feliz, sorvendo aquela beleza incomensurável da natureza. No entanto, enquanto o tangará não sabia o que era sofrimento, Marcos o vencia, e nisto ele se assemelhava a um deus. Era ali, no silêncio e na solidão que podia curar as chagas de seu peito, com paciência, abnegação e dor.

O sol esgueirava-se pelos claros de um tronco fanado, aquecendo o costado friento de um teiú recém-desperto de sua hibernação, enquanto um casal de araras azuis conversava baixinho numa fruteira próxima, numa onomatopéia de fuxicos.

Ali sentado, olhando aquela natureza eterna, testemunha de seu coração opresso, Marcos sentia inveja por não ser mais um entre aqueles seres que festejavam inocentemente a vida. Por que não podia ser ele, como aquele lagarto ali ao sol, pachorrento e despreocupado? Algo nele vibrava e o diferençava, algo verdadeiro e dogmático, mas que nem toda plêiade de pensadores e santos que hoje dignificam os altares, conseguia explicar convincentemente – a alma.

O mundo rompeu décadas de milênios, na luta contristada e vacilante do post mortem sem jamais ultrapassar de um passo, o muro da fé. Algo dentro dele não permitia estirar-se ao sol, nem ceder à madona pesada de seu cansaço. Quantas cidades, cultura, descobertas e segredos estão imersos nas profundezas das águas e da terra! Milênios de segredos que a morte enterrou sem que a natureza perdesse o brilho da impassibilidade e a crueza santa de seus princípios. Carcaças fossilizadas ostentam um tempo de adaptação ou uma evolução lenta e progressiva, mas escavação nenhuma, sequer da perspicácia cerebral, desvendou a contento, aquilo que deve soçobrar após a morte! Alma, alma!… personalidade, pensamentos, idéias, cultura… alma!… que será isso que não me permite receber os raios do sol no sossego dos teiús?

E enquanto seus pensamentos ressoavam nos anteparos de suas dúvidas, Marcos inconscientemente, alisava um graveto com o fio amolado de seu alfanje. A lâmina era-lhe lembrança triste e, por si só, alimentava todos os seus distúrbios emocionais. Aquelas manchas pálidas de sangue eram-lhe um pesadelo incontrolável. Não conseguia lembrar como degolara o irmão – sabia apenas que o fizera, que era um assassino, um assassino invulgar, um fratricida.

O sol brilhava, como Deus brilha em todo aquele que a Ele se expõe. Deus era luz, era a fonte de luz e a graça entrava pelos raios, até no lombo friento do teiú. Era luz para todos, embora, muitos preferissem a fossa abissal de Marianar. E toda angústia do homem refulgia e crescia, na ambição de equiparar sua limitada razão à onisciência do Eterno. Ali estava o tangará, cantando feliz num ramo de araçá. Um pássaro sem raciocínio, sem personalidade, sem alma eterna. No entanto, embora não soubesse pra que veio, quem era Deus ou o que seria alma, nele tudo se passava, organicamente, como em Marcos. Alimentava-se, dormia, movimentava-se, evacuava, cantava… um ser como o teiú, como o asno, como o homem.

E sua cabeça ruía, estrondeava, desassossegava-se ante a curiosidade do entendimento e a prepotência de querer modelar o mundo conforme sua idiossincrasia. Jamais alguém pisará os mistérios de Deus, pela razão simples de ser um ser criado. O entendimento de Deus é medido ao infinito, enquanto o do homem não alcança a irrisória altura de um milímetro. Por isso, toda simplicidade de Deus humilha o maior dos gênios humanos. Não deverá ser por outro motivo que os sábios são os que mais reconhecem a própria ignorância.

Marcos ergueu-se – Deus acompanhava-o na lâmina do alfanje, sem que ele o soubesse. Daquele momento em diante, veria o sol nascer e eclipsar-se, caminharia daqui para ali, sem os açoites do relógio, nem os acintes da razão. Seus passos não tinham direção definida e seu objetivo era escapar do mundo vil, no qual jamais se livraria da dor. Como disse Sófocles: – “Mortal algum foi educado sem sofrer”.

Vinte dias depois, sugando a água dos cipós e alimentando-se com frutos silvestres, encontrou um igarapé miúdo, cuja água escorria de manso entre as folhas podres do leito. Uma raiz de ipê barrou-lhe o seguimento e as águas cresceram formando um pequeno poço e uma queda d’água, cujo barulho atraía os animais sedentos. Os rastros ali eram incontáveis: de roedores a carnívoros; de pássaros a símios; de insetos a serpentes.

As regiões circunvizinhas do Pindaré eram secas, planas e quase eternas. Um regato em qualquer ponto tornava-se um oásis, onde os animais aconchegavam-se aos milhares. Barreiros, banheiros e trilhas fundas denotavam a grande afluência e o ermo distante de outros poços.

Desde que se distanciara dezenas de quilômetros do cearense, jamais Marcos ouvira qualquer som humano. Misturado àquele mundo natural, aos poucos sua mente perdia a sensibilidade e convivia harmoniosamente com os demais seres. Pés descalços, roupas esgarçadas, alfanje na mão. A barba crescera, os cabelos também. As solas dos pés enrijeceram e os espinhos mais frágeis não o incomodavam. As unhas curvaram sobre a polpa dos dedos e sua voz restringia-se a grunhidos e pigarros.

Com o tempo, abandonou a tarimba que erigira no alto, pois os mosquitos e demais insetos empolavam seu corpo e sugavam-lhe as forças. O medo, juntamente com muita coisa que é humana, aos poucos se desvencilhava dele, naquela convivência austera e natural.

E como quase tudo o que nos acontece, alimenta-se e se fortalece antes dentro de nosso coração, Marcos tinha todo o tempo do mundo para manter seu espírito bem nutrido com as lembranças de um tempo que fora bom e também cruel. Continuamente ficava recostado numa catana, atirando pedrinhas e gravetos num alvo imaginário, enquanto aguardava o retorno de seus pensamentos que divagavam por terras que seus pés pisaram. Em sua volta, toda a natureza seguia sua caminhada bela, harmônica e, às vezes terrível, nos cantos diversificados dos pássaros e nas depredações impiedosas de um mundo, no qual a vida não tinha o valor que o senso de preservação lega aos humanos.

Quantas vezes, de cima de seu jirau, Marcos vira o bracaiá sorrateiro rastrear como sombra, um bando de urus sedento, que distraidamente tentava amenizar aquele calor abrasante.

Um dia, uma veada chegou acompanhada de um filhote tenro, com ainda as listras brancas longitudinais a marchetar-lhe o dorso. Ela vinha de olhos atentos, perscrutando os derredores, farejando o ar, sempre com os ouvidos aguçados. Colado a si, o filhote seguia, totalmente dependente e confiante na sutileza e argúcia da mãe. De repente, como uma sombra que surge do nada, uma suçuarana avançou em sua direção e num salto fatal, cravou-lhe as unhas e dentes no pescoço, tombando-a inerte. O filhote arredou uns metros e ficou desolado, ouvindo o ruído mórbido dos ossos quebrados e o som rouco da onça que se deleitava. Ele olhava a onça devorar a mãe e se mantinha digno em sua debilidade. Depois de um tempo, lambendo as mandíbulas ensangüentadas, o felino retirou-se a passos lestos, desaparecendo entre os arbustos. O filhote aproximou-se dos destroços, atordoado, mas sem lágrimas, nem lamentos. “Não se pode, relativamente às sociedades animais, pôr os problemas em termos de bons e de maus, de nobres e de vilões, de carrascos e de condenados: cada indivíduo tem o seu papel a desempenhar. Presa e predador representam, um para o outro, uma necessidade, tal como o são também para nós.

Um japu desceu do alto, pousou rente ao filhote, examinou a tragédia, tomou sua égua e ascendeu em algazarra esfiapante. E assim, cada animal que ali passava, olhava, tomava sua água e ia embora, no curso natural da vida da floresta.

Nada de lamentações, nada de inconformidade. A vida fluía. Logo além, outra veada teria um filhote e, se fosse necessário, vingaria. Curso da vida para o pleno equilíbrio da natureza.

Por que somente os homens eram complicados e tinham que pagar pelos seus atos? Talvez tenha sido por estas razões que Menandro desabafou um dia: “Se um deus me dissesse: Craton, terás uma nova vida após tua morte e serás o que quiseres: homem, cão, ovelha, bode ou cavalo. Pois o destino decretou que terás que viver outra vez; portanto escolhe o que mais te agradar. Pois creio que eu diria: Faze de mim o que quiseres, mas tudo, menos um homem!“

Três dias, o veadinho ficou por ali. No fim disto, agachou-se próximo ao cheiro nauseabundo da carniça e estirou-se, morrendo em leves espasmos de fome.

– Vida!…

Fora tão fácil para a natureza solucionar um problema, humanamente, drástico. Mais adiante, outro veadinho nasceria e se houvesse espaço, vingaria.

Mas ele era homem e não podia livrar-se do triste apanágio, deitar-se ao lado de seus infortúnios, fechar os olhos, entregar-se ao desalento e morrer. Tinha de lutar, sobreviver e dar tempo para que seu sofrimento reinasse soberanamente, neste estranho ordálio da existência humana.

Sarués e insetos varreriam os destroços; uma flor nasceria ali, e o perfume que dela adviria, encheria de doces suposições, o poeta andarilho. Haveria um tempo em que alguém ali sentaria, na sacada de uma casa de campo, vendo o gado pastar alhures, sem jamais imaginar o que aconteceu em um tempo, sob seus pés.

Marcos divagava – era seu passatempo, a força sustentável de sua existência. Lembrava da infância, do pai que os abandonara, da mãe que desfalecera de fome, de Raimundo irrecuperável, de Djanira entregue à força intrínseca e desumana da sobrevivência…

Quanta vontade de estar ao lado dela, de ajudá-la, de livrá-la do caminho da perdição. Mas era-lhe impossível reaparecer, pois morreria entre as grades de uma fétida penitenciária, sob a acusação ríspida de um promotor e os olhos consternados de uma sociedade que jamais entenderia as razões verdadeiras da justiça. A sociedade só entendia de normas, de decretos, de leis humanas, jamais da verdadeira justiça.

Vendo, dia após dia, aquele veadinho indefeso perecer à míngua ao lado de sua mãe esfacelada, Marcos pôde entender verdades extremas, justiças inconfessáveis e razões supremas para transformar um crime, em sublime oração.

A vida era apenas um movimento. Não tinha valor algum para Deus, que podia revivê-la a cada segundo, na ordem incontrolável do sexo, desde que fosse necessária ao equilíbrio de sua criação. Por isso, Deus usava vulcões, secas, raios, impulsos coletivos, maremotos, cataclismos… Matava a fome de uma onça com uma cerva maternal em excesso. Logo mais, em seu tempo, outro veadinho nasceria. Nada de lágrimas, nada de consternação ou sensacionalismo – outro viria, aquela vida nada significava. Carl Vogt afirmava: – “As leis da Natureza são inflexíveis; não conhecem moral nem benevolência. Nela, a força é a única lei e o único direito.”

Apenas o homem, em sua errática tradição, penalizava-se ante o equilíbrio austero da natureza. Houve um tempo em que nossos ancestrais Australopithecus, deixavam para trás o semelhante ferido, porque era mais fácil substituí-lo do que salvá-lo. Depois, o nosso velho macaco começou a sentir piedade e deve ser ali que os evolucionistas admitem que Deus infundiu a alma, ou o coração, nos seres humanos.

Hoje a humanidade debate-se em reequilibrar as mentes espúrias e irrecuperáveis e a dar vida a velhos milionários inúteis, sem atentar para a regra sublime da natureza. Escorrendo pelo mesmo curso, água límpida e dejetos imundos misturam-se e não dá mais como decantá-los. Por isso, a terra é rica em miséria e sofrimento e será sempre, enquanto o homem acreditar que pode modificar aquilo que Deus dispôs.

Marcos pensava, pensava e pensava, sem jamais concluir seu raciocínio. Aliás, ninguém consegue ir além disso, no que concerne aos mistérios. Jamais poderemos provar o que não aconteceu ou precisar o que não foi fielmente testemunhado e assistido.

Sua vida tornara-se simples. Sua roupa dera lugar a couros de bichos e o arroz seu de cada maranhense advinha de frutos e carnes de animais aprisionados em mundéus. Aprendeu a voltar às origens, embora estivesse magro e fraco, pois tudo descia-lhe como remédio repugnante. Jamais sentia fome, embora percebesse seu estômago vazio e as tripas grunhirem.

Não se distanciava muito dali, pois a água era rara e a floresta prenhe de vida. Já conhecia um tatu canastra que de três em três dias arrastava-se pelas folhas secas, como se fosse um trator de esteiras descendo pela encosta. Era inconfundível em sua caminhada. Sabia também quando um felino ali chegava, pois jamais ouvia, senão o sorver compassado da língua que tocava a água. Os animais tinham horários quase certos e eram típicos em sua maneira de ser.

Marcos passava a maior parte do tempo em profundas meditações, ou dormindo. Depois de um tempo, resolveu escavar um buraco, tipo trincheira. Revestiu-o de folhas secas e depois cobriu-o com um amarrado de folhas de pindoba. Quando a noite esfriava ou os mosquitos o espicaçavam, mergulhava em sua toca e sentia-se feliz pelo livreto escolar que lhe falara um dia de nossos ancestrais.

Seu alfanje, agora cego e dentado, enferrujado pelas intempéries, era-lhe a bola do simbólico Wilson de Chuck, criado por Tom Hanks em “O Náufrago”, para livrá-lo da loucura da solidão. Não bastasse, aquela lâmina representara, até então, sua sobrevivência. Por isso, vivia a exercitar-se com ela, numa interminável fricção que já desgastara uma pedra de origem estranha que ali jazia solitária, como se fosse um estilhaço de aerólito. Aquele alfanje era algo transcendente, cheio de remorsos, que não se cansava de chamar-lhe a atenção e atordoar-lhe a consciência. Era-lhe Deus na justiça e no castigo.

 

E o tempo foi passando. O inverno chegou e também se foi. Mais magro e desumano, Marcos sobrevivia. O inverno fora diluviano. Seis meses de chuvas incessantes acompanhadas de trovões e relâmpagos. Não havia lugar nem meio de livrar-se da extrema umidade. A cada instante, toldavam-se os céus e debaixo de um cenário amortecido, uivavam os ventos, turbilhonavam as nuvens e explodiam os trovões, com o fragor de um mundo que implodia. Encolhido nas catanas das árvores, Marcos sentia a umidade penetrar-lhe e o silêncio espiritual ocupando cada recanto. Apenas a natureza, lá em cima, deliciava-se com seu poder e glória. Os galhos iam e vinham, no compasso dos ventos e no ritmo dos trovões, enquanto as cores de nafta riscavam os céus, como gambiarras elétricas em curto.

Escavara vários lugares, sempre na vã esperança de se pôr a salvo das chuvas. Quando o sol rebrilhava, podia se dar conta de seu estado lastimável. Por fim, as chuvas e temporais foram rareando, rareando, até dias seguidos de sol já denotavam a chegada de um novo tempo de verão.

Quase não caminhava. Preferia ficar ali sentado na beira do riacho, arremessando pedrinhas num ponto qualquer da outra margem e pensando – ele não conseguia pensar sem distrair-se dos braços: eterna reminiscência de um ato impensado.

Há vários dias imaginava ouvir barulhos longínquos, principalmente quando a natureza acalmava-se na viragem das monções. Contudo, os esturros dos guaribas dificultavam qualquer destilação de som e Marcos preferia sempre não imaginar que o homem estivesse tão apressado em destruir aquela relíquia natural. Devia estar delirando.

Ali ainda era um mundo como o fora há milhares de anos. Não havia nem mais, nem menos árvores e animais, pois a mão invisível de um Coordenador, sem os malefícios do sentimento, equilibrava-o. Equilibrava na ordem simples de resolver todo e qualquer problema, ceifando os excessos, sem a hipócrita reação passageira do sentimento. A pior doença que afetou os humanos, desregrando os princípios e tomando a vida, neste mundo, desmotivada, foi (por mais desumano que pareça) o sentimentalismo. Ele danifica a justiça e jamais haverá divisão honesta e proba sem ela. O único que consegue ser bom e justo é Deus, porque é Deus e não homem. E quando se tenta imitá-lo, erra-se, porque a fórmula correta desta dualidade é inconcebível aos humanos. Está absconso nos fastos do Eterno, a sete chaves.

 

 16

 Paolo de Sá Rosini era um homem egresso do Espírito Santo, que viera para o Portal da Amazônia com o fim específico de determinar, ou pelo menos dar continuidade, a um trabalho de pesquisa sobre os Tinamídeos brasileiros. Era um homem de origem italiana, que por certo estaria escape da fina e estúpida peneira hitleriana, caso se consumasse sua perspectiva da raça ariana. Loiro, olhos azuis, alto e razoavelmente desportista e com idéias plenas da epidemia ecológica que Haeckel lançou em 1866 e que tomou conta das mentes sensatas do século e décadas subseqüentes.

Os caboclos pioneiros das cercanias de Imperatriz atestavam a existência do macuco-de-topete, cientificamente conhecido por Tinamus Major olivascens. Descreviam-no e imitavam seus piados com perfeição. Paolo de Sá estava intrigado com a questão, pois não podia assimilar as descrições, com equívocos do Tinamus Guttatus ou de qualquer outro existente na região. Em suas pesquisas iniciais, do Araguaia até as praias maranhenses, jamais encontrara o Major olivascens.

A catalogação de Conover, acrescida com a distribuição geográfica de Olivério Pinto, dando-lhe do médio e baixo Amazonas até o rio Acará, no leste do Pará, aproximava-se bastante da realidade. Paolo, porém, já o detectara nas margens do rio Cajazeiras, no município de Itupiranga, próximo a Marabá, o que não descartava de todo, a afirmação dos pioneiros decanos de Imperatriz.

Os caboclos avelhecidos insistiam que, nas margens do igarapé Barra Grande, em Imperatriz, a espécie fora profusa. Em sendo verdade, apesar da destruição dos habitats eliminarem-no da região, por certo estariam mais adentro, onde apenas os mais arrojados madeireiros, esporadicamente se aventuravam.

Paolo estava abarbado em desvendar o mistério, quando um grupo de caçadores convidou-lhe para uma incursão no Pindaré. Paolo concordou, pois seria mais uma constatação de que o T. Major olivascens tivera progredido na direção Peru-Pará, até as margens do Araguaia, na confluência com o Tocantins, rios que lhe serviram de obstáculo para sua progressão rumo ao centro-leste do Maranhão.

Um convite para o Pindaré era qualquer coisa de promissor, já que ali se explana uma das mais imponentes e luxuriantes florestas tropical. O rio Itinga, e mais abaixo o Gurupi, que divide o Pará do Maranhão, divide também, de maneira impressionante, espécies acentuadas da fauna e da flora amazônica. De um lado ou de outro, deveria existir, logicamente, o Major olivascens.

 

A comitiva partiu numa manhã comum de verão: quente, nublada, com uma densidade neblinar a molhar como se fosse uma garoa paulista em frias manhãs. Contudo, por mais que o céu estivesse ameaçador, jamais chovia. Aquela densa neblina era apenas uma peripécia da natureza para compensar, astutamente, a longa estiagem de seis meses. Ninguém se preocupou, sequer, em levar uma única   folha plástica. As nuvens ficavam nos céus até que o sol estivesse a pino, depois debandavam, esvaindo-se pela imensidão azul. Aí surgia o astro rei, imponente e causticante.

Somente à tarde, a D-10 branco-cinza parou o motor num fim de vereda. A viagem fora estafante, pois a maneira primitiva de extrair toros era um verdadeiro acinte à capacidade e qualidade mecânica de qualquer veículo – a Chevrolet estava de parabéns.

Sete pessoas compunham a comitiva: cinco caçadores de espera, um cozinheiro e Paolo. Cada um escolheu um lugar, atou a rede, desfez as tralhas e deu força ao cozinheiro na arrumação da cozinha. Quando a noite chegou, já um arroz com jabá era servido e ninguém tivera tempo para apurar o paladar e tecer qualquer comentário – a fome era negra e qualquer coisa seria bem-vinda e saborosa.

Paolo armou sua rede a uns trinta metros dos demais, a fim de que os relatos entusiastas dos “maiores mentirosos da terra” não atrapalhassem sua audição, na vigilância de qualquer piado noturno. Para Paolo, a mata era algo maravilhoso e divino, mesmo quando a mortalha da noite descia, enchendo os corações assustados de duendes e fantasmas. Para ele, era linda a luta pela sobrevivência dos insetos que se perseguiam pelas folhas secas, num barulhinho característico e desenfreado. O besouro-caçador andava rastejante, farejando as tocas à procura de alguma caranguejeira medonha; o formigão escorregava aqui e ali, com seu olfato apurado em coisas salgadas e doces – por isso, acercava-se das capangas e fuçava pra todo lado, enquanto as venenosíssimas tocandiras caminhavam vagarosas e ameaçadoras pelas curvas dos cipoais.

Quando em vez, uma azulona isolada espreguiçava-se, olhava a lua brilhante e emitia seu canto de uma nota só, numa tonalidade estranha e maviosa. Um chorão excitava-se e orgulhosamente marcava presença numa cataninha qualquer do chapadão, enquanto a sururina começava baixinho sua cantilena, enchendo o espaço silencioso com trinados tristes. Apenas a chorona calava-se – ela não piava à noite – talvez fosse o único inhambu sensato naquele ambiente hostil. Os cachorros-do-mato estavam sempre por perto, insaciáveis e metuendos em seus ladridos gemebundos. Não bastasse, o piado da chorona é muito semelhante ao assovio dos cachorros do mato.

Enquanto seus olhos resistiam, Paolo mantinha-se acordado, ouvindo atentamente os piados. De instante a instante, ligava o gravador, reproduzindo o piado do macuco de topete, na esperança de que algum respondesse ao chamado. Sua esperança, no entanto, definhava-se quando lembrava que estava em pleno chapadão e que a espécie preferia lugares úmidos: açaizais, igapós e margens de rios.

Por esta razão, dois dias depois, avisou os companheiros que iria abrir uma picada na direção leste, com o intuito de encontrar algum pequeno afluente do Pindaré. Foi um trabalho exaustivo, aquele de caminhar com uma tralha pesada às costas, abrindo picada a facão. Levava rede, gravador, alimento e água para dois dias. A mata era limpa, com raros empecilhos de entulhos de galhadas, que eram circundados calmamente. Quando em vez, o esvoaçar de uma tona ou o esmerilhar de trilho de uma cutia espavorida, ou ainda, chiados estranhos de animais alertas que, por certo, pela primeira vez, divisavam aquele “primata” estapafúrdio, caminhando desengonçadamente entre os arbustos. Os macacos desciam para ramos mais baixos e esmiuçavam exames meticulosos: ainda conservavam muito de seus parentes ancestrais no que tange à curiosidade.

E já cansado, quando apenas o dossel da floresta mostrava rastros de luz, Paolo sentiu, pelo declínio do terreno, que algum valão ou possivelmente um rio, havia logo abaixo. Era sua última esperança. No outro dia cedo averiguaria, e caso não fosse confirmada sua suposição, retornaria para os companheiros. Tomou um gole d’água e escanchou-se na rede.

Uma fêmea de chorão denunciou-se próxima, enquanto um pé-de-serra afoito não se cansava de chamar, com sua voz grave e enjoativa, pela companheira rogada e silenciosa.

Bandos de urus, guaribas, azulonas, psitacídeos de muitas variedades e todo revezamento da família dos diurnos era feito em desordem e balbúrdia. A floresta enchia-se de algaravia. Sons, aos milhares, penetravam nas tocas, nos ocos e nas moitas, como se fossem o clarim de despertar dos noctívagos sonolentos e preguiçosos. Em poucos minutos, sossegariam os psitacídeos, os guaribas e toda vida diurna, restando apenas o trissar dos morcegos o chirriar horrendo das corujas, o lamento do mãe-da-lua, o caminhar arrastado dos tatus, os passos traiçoeiros e silenciosos dos felinos, o deslizar letal das surucucus ou o movimento barulhento das antas que seguiam determinadas para uma fruteira qualquer. Não havia férias para ninguém na seara da natureza, perfeita e responsável em manter o equilíbrio de tudo aquilo. Uma onça morreria de fome ou estaria rechonchuda, bastando apenas do efetivo disponível de seus depredados – lei simples, cruel, funcional e perfeita da natureza!

Pela vida que pululava ali e pelo declínio do terreno, Paolo deduziu que logo abaixo havia água. Passou quase a noite toda acordado, emitindo piados e ouvindo respostas, com a eterna exceção das choronas que se negam denunciar-se à noite e dos macucos de topete que, ali, pareciam não existir.

Mal o dia amanheceu, um casal de pixunas  começou a piar e Paolo tirou da mente o pouco da dúvida que restava: logo abaixo havia água. Os pixunas não vivem em chapadões secos, salvo casos extremos em que se distanciam consideravelmente dos lugares úmidos, mas sempre com a possibilidade de retornarem à água tão logo desejassem. Isto é mais comum em juquirões. Em matas virgens estão sempre pelas margens dos rios, ou entranhados nos pântanos e igapós.

Paolo desceu e viu a água pouca que descia cheia de material orgânico, da cor escura de ralo café, descendo pela encosta. Aproximou-se, despiu-se, borrifou-se com as próprias mãos e depois ficou ali, inteiramente nu, sentindo as mãos obscenas dos ventos acariciando-lhe o corpo.

Em volta, a alta floresta de ipês, tatajubas, copaíbas, muiracatiaras, jatobás, cedros, sucupiras, maçarandubas, goiabões camurins, pequis e toda sorte de espécies de uma imensa reserva natural de grossos troncos. Mas, tudo aquilo estava sendo criminosamente destruído, graças a insana e desavisada lei que permitia a ocupação, sob a alegação forjada de ocupação da Amazônia. O que o INCRA,GETAT, órgão e ministérios autorizados e o próprio governo, no complô de uma sala refrigerada, impingiam à Amazônia, era algo que desafiava a sensatez e a própria paciência de Deus.

Paolo passou o dia margeando o igarapé, emitindo piados e examinando tudo com o sabor de um pesquisador primeiro de uma área virginal. De repente, porém, seus olhos viram um pedaço de pau cortado. Apanhou-o, examinou e constatou que alguém o colocara em segundo plano. Por instantes esqueceu sua pesquisa. Sua preocupação agora era explicar aqueles vestígios. Logo abaixo, notou uma folha de pindoba cortada e mais assustado e perplexo ficou, quando encontrou um abrigo encoberto por folhas. Apesar do calor que lhe subia ao rosto, começou a desfazê-lo. Puxou o amarrado de cima e examinou o fundo: era uma pequena caverna escavada, algo inadmissível para um homem normal do século XX.

 

Paolo sentou-se e ficou a remendar idéias. Aquilo parecia recente. Intimidou-se. Teve ímpetos de retornar imediatamente. Não sentia medo de cobras, onças, de nada que existia naturalmente ali, mas seus nervos tremeram diante de um ser semelhante. Foi ali que sentiu a magnificência do homem, no seu apanágio de pensar. Não foi por menos que Shakespeare atribuiu a Hamlet, seu vislumbre diante dele: “Que obra prima é o homem! Nobre na sua inteligência! Infinito em suas faculdades! Em sua força e em seus movimentos, como é expressivo e admirável! Por sua ação se assemelha aos anjos! Por seu pensamento, se assemelha a Deus! É a maravilha do mundo! E o que é o homem, se o seu bem supremo, o objetivo último de sua vida, for comer e dormir? Um animal, apenas. E evidente que aquele que nos criou com sua inteligência tão ampla, com esse olhar no passado e no futuro, não nos deu essa capacidade, essa inteligência viva, para que elas criem mofo em nós, inativas”. Mesmo assim lutou contra seu temor e continuou a procurar. Viu vários sinais, mas tudo não passou disto.

 

Retornou para junto dos companheiros, extremamente preocupado, mas nada comentou. Dias depois retornaram a Imperatriz. Paolo não encontrara, nem ouvira o macuco-de-topete, mas deparou-se com algo bem mais difícil de explicar. Que se tratava de um ser humano, não havia dúvida – mas, que tipo de homem? Um doido? Um foragido da lei? Um caçador perdido?… Não, ali residia algo mais misterioso, bem mais amplo e desafiante do que a existência ou não da ave que procurava naquelas plagas do Pindaré.

 

 17

 Paolo já não conseguia concentrar-se em seus afazeres. A idéia daqueles vestígios estranhos o perturbava, mesmo porque ficava difícil não entender que, fosse quem fosse, parecia habituado àquela vida silvícola. E tantos foram os pensamentos e as suposições que ele, não mais sabendo como conter a curiosidade, arrumou novamente seu equipo e, sozinho, voltou ao local. Ia sem pressa, como quem tem apenas um dia para usar na vida inteira. Pensou em levar um companheiro, mas depois de relutantes confrontos e tácito e argumentos, concordou em não dividir aquilo que considerava uma aventura ímpar para qualquer pesquisador.

Além de alimentos comuns básicos, levava também uma espingarda Du Moulin calibre 12 e cartuchos Velox 3T e n0 3, sentindo-se parcialmente protegido, pelo menos diante de perigos pressentidos.

Levou quase três dias para chegar novamente ao riacho, que já batizara com o nome de igarapé do Chá, devido a coloração escura da água que corria entre as folhas em decomposição. Ali arrumou sua tenda, estendeu a rede e não dispensou o banho de borrifos, assistido por um bando barulhento de tangarás e saíras que não se cansava de examiná-lo e reexaminá-lo. Depois que o próprio mormaço o secou, meteu-se numa roupa enxuta, calçou os sapatões e foi até ao primeiro buraco escavado no chão. Tudo parecia intacto. Correu os olhos pelos derredores que ressumavam quietude, nada percebendo de anormal. A tarde caía. Já os raios do sol não eram tão intensos. Retirou o pio de macuco do bolso da jaqueta e ficou piando espaçadamente, enquanto caminhava pela margem do igarapé. Uma tona respondeu na encosta – ele tornou a olhar o relógio: 16h37min. O piado ecoou maviosamente.

Ah, o silêncio da natureza intocada! Como era fantástico ver as nuanças celestiais de sol, sombra e noite. O sol alumiava sem calor, encompridando as sombras, criando figuras e morrendo num cenário de paz. Os insetos zumbiam ou vibravam seus élitros; os pássaros diurnos cortavam os espaços em busca de seus abrigos. Lá no alto, a azulecência do infinito mascarava-se com o brilho róseo e nacarado, dando um dégradé de indescritível beleza. Fracas rajadas de vento faziam bailar as folhas e os galhos flexíveis. Nada de gritos humanos, de ronco de motores, de buzinas abusivas… Apenas um mundo de paz e serenidade, em que os olhos puros e cheios de fé ainda podiam retirar as folhas do chão e vislumbrar as pegadas do Criador. Ali, o coração podia sentir a presença de Deus, na paz infinita que advinha da ausência do homem.

Paulatinamente, a noite acercava-se. Paolo lembrou que devia alimentar-se e que seu alimento deveria vir de seu trabalho. Levara apenas, açúcar, arroz e sal, além de um pequeno vidro contendo café solúvel e algumas bolachas. Por isso, subiu a encosta, aproximou-se a mais ou menos 40 metros da azulona, meteu-se numa sapopemba, curvou em frente dela alguns ramos da vegetação e respondeu:

– Fión!

Cinco minutos depois, a resposta:

– Fión!

– Uma fêmea – deduziu Paolo em sua experiência de 25 anos de pesquisa. O piado era longo e grave. Um bando de urus excitado pelo eco harmonioso, rompeu o silêncio da tarde numa barulheira ritmada, enquanto todos os inhambus das redondezas marcavam presença.

Trinta minutos depois, Paolo retirou a chororocadeira e apelou para o ciúme, com intercalados piados de macho, agudos e curtos, baixinhos, amorosos e excitantes. A tona quietou, assim como toda a floresta. Paolo continuou por mais dois minutos, parando a seguir. Depois, como experiente caçador, apanhou a arma e aguçou os sentidos. Passados três minutos, ela piou baixinho, terminando num chororocado.

Paolo ficou quieto – a catana atrapalhava a localização. Seus olhos andavam nas órbitas, enquanto seu rosto imóvel ficava colado a uma abertura da choça.

A macuca piou novamente, um pouco mais alto:

– Fión!

Estava próxima, muita próxima, talvez atrás da árvore em que se escondia. Paolo, com a própria boca, emitiu três chororocados, bem baixos e desafiantes. Ouviu então passos pesados e, em seguida, a imponência invulgar do maior e, possivelmente, mais astuto dos inhambus. Ela veio, passou pertinho, cabeça firme, olhos vivos e perscrutadores. Paolo ergueu lentamente a arma, armou-a, mas deu o instante necessário de observação para vê-la abrir o bico, manter a posição e depois piar fogosamente, num desafio arguto contra aquela que ousava transgredir as santas leis naturais, invadindo seu território. Ficou com a mira encoberta pelo azul-claro-carijó, mas seu dedo não encontrou força suficiente para acionar o gatilho. Depois, seus braços cansaram e ele baixou a arma, enquanto a azulona caminhava imponente por entre os grossos troncos de seu mundo.

– Hoje será arroz puro mesmo – justificou-se Paolo a si próprio, e afastando a choça de galhos retorcidos com a mão, voltou para seu abrigo.

Veio a noite – uma noite comum de verão nas selvas do Pindaré. Vozes estranhas, barulhos amplificados pelo silêncio constrangedor, desenhos informes criados pela cegueira da noite. Mais de 25 anos de temor, de dúvidas, de medo de coisas irreais que não se cansam de alimentar o receptáculo das superstições. O homem tem tanta necessidade das coisas espirituais, que as procura e encontra em cada chance de sua mística ilusão.

Numa única noite nas selvas, a mente pródiga de um solitário supersticioso pode humilhar toda mitologia universal. Deuses e demônios crispam-se nas sombras, modelam-se nas nuvens, formalizam-se no jogo de luz que penetra pelo mato desassossegado. E a voz dos insetos, dos ventos e dos animais noturnos diz tudo e claramente o que nossa mente pensa ouvir. Aí o receio pincela as figuras, dá forma, cor e tamanho às imagens, tomando-as deuses na coragem e demônios no medo. Os olhos arregalados ou cerrados vêem, num medroso à noite, com maior clareza do que à luz do dia. Mas, para o corajoso anacoreta, a noite é apenas a ausência de luz, um momento de suavidade em que podemos compartilhar de um mundo diferente, pleno da certeza de que tudo continua do mesmo jeito e com as mesmas formas. Então, é só dormir, dormir e descansar, descansar e sonhar, arrancando do devaneio, o apanágio de voar, transpor obstáculos e vencer o infinito.

Quando o dia amanheceu, Paolo esquentou um canecão com água, preparou seu café, deglutiu algumas bolachas e começou a descer o igarapé. Ia devagar, esquadrinhando cada palmo do terreno, como se ali tivesse perdido algo de muito valor. Depois de quatro dias de procura, encontrou um rastro humano na lama quase seca de um barreiro. Pasmo de alegria e espanto, agachou-se, mediu e estudou-o pacientemente, chegando à conclusão de que, fosse quem fosse, havia passado por ali não havia muito tempo. Desmanchou sutilmente o rastro encontrado e suas próprias marcas e voltou para seu abrigo. Dois dias depois, retornou e lá estavam, para sua confirmação, os vestígios vivos e salientes. Paolo repetiu a operação retornando logo no dia seguinte, bem cedo, escondendo-se numa moita densa, próxima ao local.

Era aproximadamente meio-dia quando a criatura chegou. Paolo só o percebeu quando já estava em cima do barreiro, examinando qualquer coisa que muito parecia interessar-lhe. Ficou paralisado diante da esquálida criatura. Ele olhou, correu a mão por sobre as folhas, examinou amiúde um vestígio qualquer, enxugou a testa com o braço nu, olhou elipticamente em tomo de si e depois desceu até a água, que corria a apenas alguns metros do barreiro. Bebeu bastante, depois ficou sentado em cima de uma raiz, cujas enxurradas do inverno haviam descoberto. Foi aí que Paolo pôde perceber que aquele homem nada tinha de maluco. Seu olhar e seus movimentos eram correlatos; sua maneira de ser, de um homem inteligente e sofrido. Apesar do abandono em que se encontrava, não transmitia medo. A docilidade do olhar era penetrante e os movimentos denotavam uma aura interior de angústia e saudade que o tempo e o sofrimento não apagaram.

Ficou ali sentado por mais de hora. Depois ergueu-se, tomou água novamente e, como chegara, desaparecera. Paolo viu-o apenas subindo a encosta, rumo ao chapadão seco e interminável. Por certo ele sabia que qualquer ser humano que pretendesse procurá-lo em algum tempo, fá-lo-ia pelas margens dos rios e igarapés.

Durante a noite, o pesquisador imaginou um plano como se achegar a ele sem intimidá-lo, nem assustá-lo. Angariar a confiança de um homem que deveria ter sobejos motivos para levar aquela vida de ermitão era trabalho que talvez o mais astuto psicólogo rejeitasse. Mas tinha que tentar, usar os meios de que dispunha e que achava, iriam funcionar.

Tomou de uma esferográfica e escreveu em letras de forma: “Sou amigo e quero ajudá-lo. Confie em mim. Estou só. Se concordar, erga o braço e me aproximarei.”

No outro dia bem cedo, espetou o bilhete branco numa vara e enfiou-a bem em meio ao barreiro, mergulhando em seguida por entre a moita de seu esconderijo.

Com a precisão fantástica dos dias anteriores, ele apareceu. Olhou o chão e agachou-se rapidamente, constatando as diversas pegadas que, intencionalmente, Paolo deixara. Aturdiu-se, olhou com gestos rápidos em sua volta e percebeu, atônito, o bilhete dependurado. Tomou-o num ímpeto incontrolável, olhou-o como o olharia um Homem de Neandertal, apenas curiosamente. Circunvagou vários olhares, depois se ajoelhou, esgueirando-se sorrateiro pelo declive.

Paolo, com o coração aos pulos, aguardava os acontecimentos. Esperava que ele lesse ou soletrasse aquilo e depois erguesse a mão. Contudo isto não acontecera. Pela maneira estranha de olhar o papel, talvez nem soubesse ler. Aguardou horas e mais horas, e já quando o sol se escondia, aproveitando a penumbra forte da mata, Paolo esgueirou-se para seu abrigo. Estirou-se na rede e ficou a pensar. No entanto, seus pensamentos embrulhavam-se, sua tensão aumentava e ele não conseguia organizar qualquer idéia sensata ou funcional.

Nos dias que se seguiram, a estranha criatura não mais apareceu. Desolado, Paolo retornava do barreiro, vencido e angustiado. Com sua falta de sensibilidade estragara tudo. Mas como deveria ter agido?

Passou pelo vau do igarapé, galgou uma pinguela feita naturalmente de um jatobá caído e, cabisbaixo, chegou ao abrigo. Depôs a espingarda no tronco de uma árvore e foi reavivar as chamas esmaecentes de seu fogão escavado no solo. Agachou-se de quatro e pôs-se a soprar. De repente, sentiu uma lâmina fria no pescoço e um grunhido de desespero a ordenar:

– Fique bonzinho e nada lhe acontecerá.

Paolo enrijeceu, seu sangue desapareceu das áreas externas, seu cérebro desordenou-se:

– Por favor, não me mate!

– Obedeça e nade lhe acontecerá.

– Que quer que eu faça?

– Apenas que não tente nada contra mim.

– Eu só quero o seu bem.

– Espero que sim. Vamos, sente-se ali – e dizendo isto retirou o alfanje do pescoço de Paolo e apontou para um tronco caído e podre. Humildemente Paolo obedeceu. A criatura impôs-se dominante:

– Que procura aqui?

– Desta feita, falar com você.

– Para quê?

– E uma longa história.

– Conte-a.

– Sou pesquisador, um destes malucos que andam colecionando borboletas, alimentando aranhas ou estudando passarinhos.

– E daí? – retrucou intratável a criatura.

– Há um mês atrás estive por aqui, procurando uma espécie de macuco que os antigos habitantes da região afirmam, existia pelas proximidades de Imperatriz.

– Imperatriz? Você é de lá?

– Sim.

– E por que está a procurar-me?

– Não estava a procurá-lo, e sim, querendo desvendar o mistério destes estranhos vestígios. Como é você, poderia ser qualquer outro, ou mesmo um ser alienígena.

– Quer fazer-me crer que não estava, especificamente, à minha procura?

– Sim. Há por acaso alguma razão especial para alguém procurá-lo?

– Não é de sua conta.

– Eu sei, eu sei. Muitas coisas que jamais nos passaram pela cabeça, acabaram sendo de nossa conta. Se não se importa, gostaria de saber o seu nome.

A criatura virou-se de chofre, cravando os olhos enterrados e negros, nos olhos de Paolo. Ia dizer alguma coisa impensada e de defesa, mas, como que dominado pela brandura e calma de Paolo, acabou dizendo o que não era de seu desejo:

– Marcos, chamo-me Marcos.

– Meu nome é Paolo… Paolo de Sá Rosini. Sou de origem italiana; meus avós eram italianos. Meu pai nasceu aqui no Brasil. Somos oito irmãos – eu sou o caçula da família. Venho do leste e estou aqui terminando uns estudos sobre os inhambus brasileiros.

– Não é da polícia?

– Não. Para ser mais preciso, não me afeiçôo muito a ela.

Quase todos são venais, corruptos, covardes e desonestos, assim como a maior parte dos políticos.

Marcos animou-se. Baixou a guarda, depondo o alfanje no chão. Depois, virou a cabeça, esticou o braço em direção a arma e disse:

– É de cartucho?

– Sim. Pode pegá-la e examiná-la.

– Não entendo nada de armas.

Paolo sobressaltou-se, mas tentou ser o mais natural possível. Sabia que aquele homem não era um louco e pelo que tudo indicava, também não era um assassino, nem um caçador perdido. Mas havia algo por trás daquela fuga, algo misterioso que, se tivesse tato e jeito, acabaria descobrindo. Para assegurar que estava à vontade, insistiu:

– Olhe-a assim mesmo

Marcos ergueu-se desajeitado e macilento e tomou a arma na mão.

– Ela não possui cães como as antigas armas – explicou Paolo. Para armá-la basta empurrar este botão aí para a frente e os dois cães estarão, automaticamente, engatilhados e prontos para um disparo duplo, se o desejar.

Marcos segurou-a na palma das mãos. Depois a colocou em posição e apontou um alvo qualquer.

– Quer experimentá-la? – perguntou Paolo.

– Não sei. Acho que não acertaria um elefante.

– Vejamos – desafiou Paolo, enquanto se erguia e ia fazer uma marca numa inhaíba a 20 metros de distância. Depois voltou, aproximou-se de Marcos e aconselhou:

– Segure a coronha firme de encontro ao ombro, faça pontaria e dispare.

Marcos detonou. O choque violento arremessou-o dois passo para trás, quase lançando-o ao chão.

– Pensei que haviam destruído irrecuperavelmente os canhões de Navarone – observou Marcos, que recordara, incontinenti, do filme que assistira quando rapazola.

– É você que está desajeitado.

– Quase me partiu a clavícula.

– Acredito.

– Vamos ver por aonde andou o chumbo.

E quando a tarde caiu, depois de muito conversarem sobre todo e qualquer assunto que não dissesse deles dois, Marcos separou-se, desaparecendo como uma sombra. Negara-se ao café e a dizer qualquer coisa de sua estada ali, naquele ermo prenhe de solidão humana e cheio de animais de toda espécie. Antes de sair, ainda perguntou a Paolo:

– Vai demorar por aqui?

– Bem, se você quiser…

– Faça o que achar melhor – disse ele, esgueirando-se entre a selva.

– Ficarei cinco dias, esperando por você. Confie em mim. Gostaria de ajudá-lo, de ser seu amigo – retrucou Paolo com voz bem alta, enquanto o estranho vulto eclipsava-se de todo entre os troncos arbustivos da densa floresta.

Marcos pareceu-lhe um homem conformado, feliz na sua crença submissa de aceitar o mundo como ele era. Absconsa na simplicidade daquele coração havia, gratuitamente, a verdade que Sêneca descobrira na meditação: – “Ninguém te fará reviver os anos, ninguém te devolverá a ti mesmo. Da mesma forma, teu tempo de vida decorrerá conforme começou, sem retraçar seu curso e sem se deter; não fará alarde, e não te lembrará que passa depressa. Fluirá simplesmente em silêncio”.

18

 A cada dia que passava, Paolo perdia as esperanças. A mata parecia ainda mais silenciosa. Apenas pela manhã, ou ao cair da tarde, no rodízio das espécies, ouvia-se por inteiro a vida que existia de canto a canto da floresta. Depois do amanhecer, erguia-se majestosamente o sol. Ali pelas dez horas, as aves calavam, os animais deitavam nas depressões mais frias e sombreadas e apenas o farfalhar do vento era som naquele mundo de Deus.

No quarto dia, ainda mais minguada as esperanças, Paolo pensou em desistir. Em seguida reconsiderou, envergonhando-se de sua intenção. Ainda tinha um dia a seu favor e este dia seria respeitado. Ele sempre dissera que a gente costuma desistir no exato momento das coisas acontecerem.

Deitado em sua rede, absorvendo a paz profunda do sacrossanto silêncio e os achaques duros das dúvidas, Paolo matutava. Sua mente divagava pelos mistérios e pelas incoerências da própria vida. Seita alguma jamais lhe apresentara Deus tão simplesmente claro.

Era como se O visse ali, antropomorficamente sentado, inquieto pelo calor sufocante do verão maranhense. Deus estranho, brincalhão, Deus criança que amava e parecia depender de suas criaturas; Deus cansado de suas andanças pelo Universo, ali estirado numa merecida modorra.

As coisas de Paolo estavam ensacadas, juntas a um canto, aguardando apenas o cumprimento do prazo que se dera – o fim do quinto dia. Os arapaçus iniciaram o repique vespertino, como um clarim que vibra ao toque de recolher. Eles indicam a hora crítica das azulonas e pés de serra alçarem aos poleiros. Os caçadores usam-nos para sintonizarem os ouvidos e ouvirem o barulho das asas na subida ao poleiro.

Tudo se refez num instante, como se o professor da natureza abrisse o livro de chamada e argüisse todos ao mesmo tempo. Dezenas de choronas, inhambus-relógio, pés-de-serra, azulonas, inhambus pretas, tururins e inhambus-poca-taquara diziam presentes, acompanhados por bandos barulhentos de urus, pelo gemer dorido dos mutuns-cavalo, o grasnar dos jacus e o matraquear das jacutingas que se alegravam em cortar o silêncio com seu raspar de asas estridente.

De canto a canto, os esturros dos guaribas e o taramelar dos psitacídeos, juntavam-se à maviosidade dos passarinhos menores, num jargão onomatopéico de beleza indescritível.

Mais um pouco, a noite. Esgotava-se aí, a última esperança de Paolo. Ergueu-se da rede, espreguiçou-se e resolveu, como justificativa única de passar o tempo, avivar o braseiro que se mantinha escondido sob as cinzas dos gravetos. Enchia os pulmões e expirava, canalizando no bico dos beiços, o ar que expulsava as cinzas e dava vida a minúsculas chamas. Assoprou várias vezes até que pequenas labaredas apareceram. Quando se virou para apanhar o caneco, deparou-se com Marcos. O susto foi além de sua constante vigilância. Sem pensar, contestou:

– Não gosto desta sua maneira de aparecer.

– Lamento se o assustei.

– Custava denunciar-se à distância?

– Desculpe-me, ando assustado.

– Com quem?

– Comigo mesmo.

– E… o homem por si só, é motivo de transtorno – disse Paolo, parafraseando Menandro.

– Ando desnorteado, desconfiado com o próprio mundo.

– E agora, acha que pode confiar em mim?

– Por isto estou aqui.

– Obrigado. Tentarei não desmerecer.

– Foi certo disto que vim.

– Sente-se em algum lugar. A mata é proba de acomodações.

Ele agachou-se, sentou sobre as folhas, cruzou as pernas, apoiando as mãos nas folhas do chão, ficando inclinado perpendicularmente para trás. Paolo achegou-se amistoso, sentando-se quase ao lado.

– Estava esquentando uma água para o café – fraseou à guisa de conversa.

– Eu gostaria muito de experimentá-lo – disse humildemente Marcos.

Seus olhos, escondidos como olhos de brinquedo de um urso de pelúcia, transmitiam, então, dependência e desespero. Paolo ergueu-se, avivou mais as chamas e preparou o café. Depois, encheu uma xícara e entregou a Marcos, juntamente com algumas bolachas. Ele tomou a xícara com as duas mãos, sorvendo o café com deseducado ruído. Mastigou uma bolacha, depois outra e parecia insaciável em sua fome. Paolo esmerou-se em distração, como se tudo aquilo fosse o mais normal possível.

– E então, poderia arriscar uma nota ao cozinheiro?

– Não teria certeza se Deus faria coisa melhor – retrucou Marcos, esfregando o lado do braço na barba hirsuta.

– É o tempo… Imagino quantos dias já se foram desde seu último café.

– Aproximadamente um ano… – e depois reconsiderando – talvez um ano e meio.

– Dezoito meses? Aqui sozinho, nesta mata eterna? Por que, homem de Deus?

Já não havia mais dúvida alguma no motivo que levara Marcos ao abrigo de Paolo. Os cinco dias de prazo que recebera foram gastos em cansativas meditações e culminaram com a decisão irrefutável de abrir-se sem reservas. Era infundada, então, a preocupação de Paolo de, novamente, pôr tudo a perder. Ele contou tudo, medindo as palavras, puxando pela memória, refazendo detalhes. Paolo o ouviu boquiaberto, surpreso e admirado. Estava diante de uma criatura excêntrica, maravilhosa e predestinada. Quando sua narração chegou ao final, ele suspirou fundo, como se tivesse arriado um grande peso. Olhou para Paolo apenas forçando os olhos, pois mantinha o rosto virado para as folhas que revolvia com um graveto:

– Matou sua curiosidade?

Paolo franziu a testa e apoiou sua mão sobre o couro peludo de guariba que protegia seus magros ombros.

– Você acredita em Deus?

Marcos baixou a cabeça, pensativo.

– Seria pena – continuou Paolo – se depois de tudo, desperdiçasse a última das esperanças.

– Quem é Deus? – desabafou frustrado, Marcos.

– Alguém, o qual, como bem frisou um pensador, se nossos pensamentos subissem ao ponto de sentirem vertigem, não chegariam a entrevê-Lo por intuição.

– Creio que seria mais vantajoso, para mim, não acreditar em alguém tão poderoso e inalcançável.

– Qualquer erro, por maior que seja, Marcos, quando feito por amor e convicção, torna-se um ato de amor.

– Isto é uma verdade sua.

– As verdades sé existem dentro da gente, são pessoais. Quem está com a verdade: Jesus, Buda, Maomé, Lutero… A Bíblia, o Alcorão, o Vedas… A história fala das injustiças contra Jesus, Galileu, Giordano Bruno, Fulton, Joana D’arc, os apóstolos e toda plêiade de predestinados que vieram antes do tempo e por isso tiveram de pagar o preço de sua chegada antecipada. Mas, convenhamos que não haveria grandes sábios, grandes santos e grandes homens, não houvesse também a aberração de nascimentos cruéis. É graças aos maus, aos corruptos, aos déspotas, aos sátrapas e toda espécie desalmada, que se ostenta a dignidade e a presença de Deus. Os perversos são o sustentáculo das virtudes e, sem eles, a terra não o seria. Como afirma Leon Denis: – “Deus não fere a pessoa alguma; apenas deixa ao tempo o cuidado de fazer dimanar os efeitos de suas causas. Portanto, é a ignorância dos fins a que Deus visa que nos faz recriminar a ordem do mundo e suas leis. Criticamo-las porque desconhecemos o modo por que se cumprem”.

Os grandes do passado tinham as suas verdades e elas ainda hoje sobrevivem em cada coração que vê nelas a mão de Deus. Apesar de tudo, em muitos pontos, são contraditórias e como há de convir, não existem duas verdades em cima do mesmo dogma. E ser ou não ser. A verdade, pois, está com a gente, dentro da gente, na sinceridade e na convicção. As leis são falhas porque são humanas, ou divinas e mal interpretadas pelos homens. Deus é o ápice de uma pirâmide em escadas: por qualquer lado, desde que se esteja subindo, chega-se a Ele. Que diria um católico, do espírito bélico-religioso do iletrado Maomé que sob a égide de Deus, obrigava ao proselitismo, multava os infiéis e destruía os apóstatas? Que diria um budista, sobre o catolicismo da Idade Média, quando a Igreja Romana tentou impor-se pela força da Inquisição, dos Autos de Fé e das Cruzadas? Que diria um muçulmano sobre os mil deuses reinantes em Meca antes da Hégira de seu iluminado? Que diremos nós, crentes dispersos por este mundo sem fim, se tivéssemos que hastear nossa crença em verdades correlatas e irreprimíveis? Mas Deus paira sobre tudo, intocável, incompreendido, brincalhão, sapiente e poderoso. Ele não julga o mundo, mas a mente. Eu sei que está aqui por razão forte, bem maior do que o medo de uma prisão – o medo de Deus.

– Marcos elevou os olhos, que até então estavam cravados num ponto qualquer do solo.

– Matei meu irmão!

– Para salvar sua irmã – completou Paolo, e reforçou: – Também Moisés matou um egípcio que judiava um seu irmão hebreu e nem por isto mereceu a ira de Deus. A ira nem sempre é má. “E má quando falta o motivo justo ou quando passa do justo modo e medida.” Lembra de quando Jesus expulsou os vendilhões do templo?

– Gostaria de crer nisso.

– É verdade, você tem que acreditar, porque isto lhe salvará. Não se preocupe com a dúvida. Nós todos somos um amontoado delas, um com elas maiores, outros com elas menores, mas no fundo, todo mundo vive duvidando.  Quando a gente perde a dúvida e crê sem reservas, santifica-se, pois não haverá mais nada que impeça a visão simples e sensata de se fazer o bem. E aqueles que, mesmo na dúvida, agem corretamente, talvez tenham mais méritos dos que caminham pela direção  iluminada da convicção. Eu sei que a dúvida massacra as pessoas, mas ninguém vive nasce e vive sem ela, isto você e eu temos de admitir.

 

– Eu acreditava em Deus, sem reservas, sem dúvidas – disse Marcos. Foi um tempo maravilhoso em que não precisava invejar um passarinho que esvoaçava feliz pelas margens do Itinga. Eu não procurava as coisas, porque ainda não as havia perdido. Você entende o que quero dizer?

– Sim, entendo. A gente nasce simples e feliz como um potrinho. Depois, vem a razão imodesta e pretensiosa, tinge a simplicidade de Deus, empurra-O para os páramos das infinitas galáxias, como um ser bravo, intocável, grande… um ser que já não podemos ouvir, dialogar, nem entender. Mas, Ele pode tudo, Marcos. Ele não dá um peso superior às nossas forças, acredite. Você pode carregar isto que Ele lhe jogou nas costas, eu sei disto e você também.

– Mas, por que Ele age assim?

– Não sei. Se o papa, um gênio, um sábio… Se qualquer pessoa deste mundo tentar explicar as razões divinas, com certeza falará bobagem. Faraday dia que, com o que ignoramos das leis universais poder-se-ia criar o mundo; e Newton reforçava: “É loucura acreditar que se conhecem todas as coisas, e é sabedoria estudar sempre”. Nossa razão limitada, razão de criados, é como um robô que jamais poderá explicar a outro robô o pensamento do mecânico que o engendrou. No entanto, ele foi feito para divertir ou desempenhar alguma tarefa e deverá fazê-lo, para alegria e mérito de seu engenheiro construtor.

– Sabe – disse Marcos, e sua voz saiu entrecortada por um soluço – talvez hoje eu não estivesse vivo se você não chegasse aqui. Veja o corte serrilhado deste alfanje. Ia degolar-me.

– Eu entendo – observou Paolo com um ronquido estupefato.

– Pelo amor de Deus, Paolo, ajude-me, não me abandone. Agora vejo o mundo arremessar-se contra mim. Tenho medo do coaxar dos sapos, das árvores, da noite. Tudo se arremessa em meu encalço, como mil duendes encarniçados – e dizendo isto, agarrou-se a Paolo desesperado.

– Acalme-se, amigo. A vida é assim mesmo. Ela vai, ela vem, ela alegra, ela entristece. A lágrima é a chave do sorriso; a tristeza e as provações, da felicidade. Uma coisa depois da outra, necessárias como o paguro para a actínia. Sobrevivem por si, numa ajuda mútua. Uma coisa, não vem e não existe sem a outra. Por isso chore e desabafe, o quanto puder, o mais que desejar, pois tudo não passa do fim para um novo começo. Suas angústias, seu sofrimento e sua dor, agonizam.

– Que faço, pelo amor de Deus, que faço?

– Amanhã, pela manhã, com nossas cabeças frias decidiremos isto.

– Que esta noite seja breve.

– Não tenha pressa do amanhã, Marcos, ele virá. Virá porque faz parte do tempo que envelhece, mata e renova – coisa que Deus não reservou para Si. Por isso Deus não envelhece, por isso Ele é eterno – é como se fosse um relógio parado.

– Gostaria de possuir sua fé, Paolo.

– Rogo-lhe que não a inveje. Alimento-me com as migalhas dos sábios e sensatos. Sou como um cão roliço, grato pelas pelancas que me lançam. Minha fé não vive em mim: eu a carrego como um alforje que deixaram no caminho. Sei que é uma coisa valiosa, por isso a transporto, protejo e distribuo. Afinal, que mais compensador que seguir grandes sábios que também acreditaram.

– Você não está convicto do que está me dizendo?

– Não.

– Mas, então, por que fala com esta segurança?

– Porque não encontrei nada melhor. Isto que digo, por enquanto, no desentulho de minha razão, no meio destas tantas incertezas e dúvidas, é o que separei de mais sensato e ortodoxo. Amanhã, quem sabe, acreditarei em outra coisa.

– Mas, isto não é fé!…

– Sim, não é propriamente fé. Talvez ficasse melhor dizer, a busca da fé. Eu acredito que cada um deve desempenhar a função que lhe foi destinada nesta terra. Os que nascem simples, nunca procuram saber o porquê de Deus, sendo bom e justo, criar um mundo tão desajustado, egoísta e desumano. Outros vêm para procurar essas razões e devem fazê-lo, sob pena de ser incriminado por incúria. Uns acreditam por acreditar, outros porque vêem razão para acreditar. Olhe para estas matas, prenhes de vida; para o céu eterno e mirabolante, onde miríades pontilham de luz; para estas engrenagens maravilhosas e perfeitas que coordenam os astros, os planetas, os meteoros, as luas, os sóis; olhe para tudo o que pode ver, sinta tudo o que a pele pode sentir, ouça tudo quanto os ouvidos captem; olhe, sinta, imagine, veja e depois tente crer que por trás de tudo isto não existe um mecânico, um construtor, um escultor, um professor, um decorador… Um Deus, afinal. A gente não O vê, não O toca, mas Ele tem de existir, você não acha?

– Verdadeiramente!

– É isto Marcos. Às vezes a gente reza e o que pedimos não acontece; a gente espera, e Ele não vem. Aí se misturam, a certeza de sua existência com a dúvida de suas promessas: ”Pedi e recebereis.” Por isso andamos aos trambolhões, crendo e descrendo, até que um dia, como um gato sádico que brinca com o ratinho incauto, Deus cansa de brincar com a nossa estupidez e esclarece-Se no esplendor de eternidade”.

Percebendo a alta hora da noite, Paolo observou:

– Está cansado, amigo?

– Não, claro que não.

– Deitemos-nos, assim mesmo. Preocupação não resolve problema. Deus é nossa esperança e nosso vigia. Demo-nos o que podemos: o descanso do corpo, que à alma, Deus proverá. Boa noite, amigo.

– Boa noite, amigo.

 

19

 Quando Paolo penetrou na parte baixa do Bacuri, sentiu-se desambientado, torto e desengonçado. Sua maneira polida e sua tez rosada contrastavam abruptamente com as compleições famélicas daquela gente parda talhada para a miséria e o sofrimento. Com muito esforço aproximou-se da casa onde Marcos morava. Na porta, brincava uma criança nua, mosqueada de argila, barriguda, melequenta e amarela. Paolo chamou, mas ninguém atendeu. A criança, assustada, começou a chorar, e uma vizinha mal humorada, grunhiu do barraco contíguo:

– Os pais saíram.

– Costumam demorar?

– Só perguntando a eles.

Paolo engoliu seco, mas insistiu:

– Por favor, como se chama a mãe desta criança?

– Rosária.

– Não mora aqui uma moça chamada Djanira?

– Não.

– Você a conhece?

– Não. Aí, é só o casal com esta pobre criança.

– Paolo agradeceu, passou suavemente as mãos na cabeça do menino e retornou. Não seria fácil localizar Djanira, a não ser que já estivesse totalmente perdida pelos lupanares e prostíbulos da cidade.

Quando a noite chegou, ele começou sua ronda pelas boates, inferninhos e toda sorte de lugares escusos, onde os fervorosos apóstolos do sexo deleitavam-se com as libações da sensualidade. Ninguém conhecia, ninguém a vira em qualquer tempo. Uma semana depois, Paolo anunciou-a pelos programas da rádio local, pelos jornais, mas ninguém deu notícia, nem ela se apresentou. Retornou desanimado.

Mas, há coisas que jamais alguém consegue explicar ou admitir a mão de Deus, embora aconteçam a despeito da incredulidade do mundo.

 

Era uma tarde comum em Imperatriz, uma tarde de verão como centenas de outras: mormaço, poeira e cheiro forte de fumaça pestilenta dos dejetos amontoados e queimados em cada canto da cidade. Paolo imbicara seu cano por uma rua estreita de um bairro distante e seguia vagarosamente, ouvindo músicas e deixando que o vento entrasse pelo quebra-vento e arrefecesse seu rosto. Era o que se podia conseguir de afável naquele mundo inóspito e quente.

Numa das calçadas, com feição vacilante e contristada, havia uma moça sentada, abstraída em seus pensamentos. Era bonita, tão bonita quão triste e desolado era seu olhar. Trajava-se com um tecido azul fino e barato, o que dava um toque todo especial à tez morena e ao semblante tristonho.

Quando o carro aproximou-se, ela ergueu os olhos langorosos e sorriu levemente, um sorriso de oferecimento, de entrega – um sorriso forjado pela crueza da sobrevivência. Paolo parou logo em frente, olhou pelo retrovisor e, com sinal convencional, expressou seu desejo de falar-lhe. Ela veio lesta e graciosa:

– Tem um momento para falar comigo?

– Não vejo nada de errado nisto.

– Mora aqui?

– Bem, moro em qualquer lugar.

– Como assim?

– E que sou sozinha no mundo.

– Não tem nenhum parente?

– Não. Vivo aqui com duas amigas, a Marlene e a Silvana.

– Estaria sendo deselegante se a convidasse para entrar no cano?

Ela sorriu, observando:

– Você fala engraçado!… Não é daqui, é?

– Não, não sou. Digamos que estou de passagem.

– Logo vi. A gente daqui é grosseira, é mal educada. Pensa que a gente é bicho, que não temos sentimento – e dizendo isto, ajeitou-se na cadeira.

Paolo fechou a porta, acionou o motor e saiu do local. Depois olhou-a maliciosamente e observou:

– Você é muito bonita.

– Se você acha assim, fico feliz.

– É verdade. Bem…

– Não precisa gaguejar. Bem sei o que quer me propor. Todos os homens são assim, só que alguns nem gaguejam; mas sabe, no fundo mesmo, a gente tem que agradecer. Certo ou errado, isto faz com que a gente não morra de fome.

Paolo enrubesceu, desviou o olhar para fugir do flagrante vexame e quietou-se pensativo. Para ela, os homens eram todos iguais: bestiais, interesseiros, desprezíveis galanteadores de frases decoradas. Todos diziam: “Você é linda! Puxa, como você é bonita!” E depois, o clássico fecho: – “Gostaria de ficar comigo?” Ou coisas parecidas que sempre terminavam num motel ou numa desajeitada posição de um carro sem espaço. Por isso não opôs qualquer resistência. Estava ali, exatamente para defender seu pão, o aluguel e a aspirina para suas eternas dores de cabeça.

O adultério, o sexo, a prostituição e todos os demais empregos da carne, oferecidos pelo mal, eram o único trabalho rentável daquela gente sofrida e miserável, relegada ao abandono de Deus. Os patrões, quase na totalidade, não aceitavam funcionárias ou secretárias, senão com a condição de atendê-los, também, fora do expediente. Era a glória do mal, o apogeu de um poder que se infiltrava sabiamente, explorando a dosagem excessiva que Deus implantou nos seres, a fim de garantir a vida e a perpetuação das espécies.

– Bem – justificou-se Paolo – digamos que eu deseje apenas convidá-la para jantar.

– Antes ou depois?

– Você é picante, menina – e desfazendo-se do cuidado de magoá-la, assentiu:

– Antes.

– Eu topo. Sabe – continuou ela compenetrando-se – certa vez, estava eu na calçada, desesperada, com fome e sem dinheiro. Foi logo que fiquei sozinha. A gente nunca tinha dinheiro, mas no começo eu preferia morrer a arranjá-lo com meu corpo. Aí aconteceu uma coisa horrível lá em casa e a policia apareceu. Eles viviam querendo aliciar-me, chegaram até a me ameaçar. Mas eu resisti, evitei, procurei emprego honesto… Neste dia, porém, minha esperança esvaiu-se. Meus olhos conturbaram-se e minhas pernas tremiam de fraqueza. Foi quando um carro bonito parou bem rente a meus pés e um senhor, aparentando uns 50 anos, de ótima aparência, olhou-me de soslaio e fez menção de rir. Eu retribuí envergonhada e ele entrou numa loja contígua, enquanto eu permanecia ali postada, remoendo todo o sofrimento que me ia ao corpo e à alma. Logo o homem voltou, olhou-me, entrou no carro, acionou o motor, tornou-me a olhar. Eu o fitava quase sem vê-lo. Aí ele disse:

– Chegue até aqui, menina.

Aproximei-me desajeitada e ele falou docilmente:

– Está sentindo alguma coisa?

Eu pensei que não tivesse coragem, mas lembrei de minha mãe que sempre dizia que a gente nunca deve envergonhar-se de dizer, sinceramente, aquelas coisas que nos acontecem e fazem sofrer, sem nossa culpa, e então acabei dizendo:

– Estou com fome.

– Venha – disse ele abrindo a porta do carro – eu também estou com fome.

Levou-me a um restaurante afastado da cidade, pagou-me comida e refrigerante e disse palavras encorajadoras. Parecia-me que Deus estava ali, descido do céu para confortar-me no clímax do meu desespero. Quando acabamos, ele pagou a conta, puxou a cadeira para mim, pôs a mão direita sobre meu ombro e levou-me até ao carro. Eu disse que ficaria ali mesmo, mas ele insistiu e eu não sabia como negar o desejo de um deus. Por fim, começou a passar a mão de leve no meu rosto, desceu-a até meus seios e começou a beijar-me. Senti vontade de gritar, correr, mas no lugar de todas estas coisas, acabei estirada na cama de um motel, sem dizer uma única palavra. Puxa! , eu imaginei que poderia encontrar um homem diferente e…

– Oh, menina! – exclamou Paolo, num misto de perplexidade e desapontamento.

Não havia nada melhor naquele momento, do que uma simples e pequena exclamação.

Saíram e foram ter ao Fish Bar – um lugar afastado, acolhedor, em que, à pouca luz e aos sopros de pequenos ventiladores, o clima ficava romântico e respirável. Sentaram-se, um frente ao outro. O garçom logo estendeu o cardápio, mas Paolo, num gesto educado, observou dispensando-o:

– Viemos comprovar a propaganda do camarão e da pescada que servem.

– Temos o melhor. O vinho é por conta da casa – e gracejando: – Apenas o preço do camarão, nestas circunstâncias, é que altera um pouco.

– Já imaginava – disse com bom humor, Paolo.

Era bastante cedo para que houvesse clientes ali, além deles dois. Paolo observou:

– Não sei se devo pedir desculpas por não lhe solicitar o nome ou elogiar-me por esta falta de curiosidade.

– Chamo-me lldesi.

– lldesi… lldesi – repetiu Paolo com nítido ar de frustração.

Não sabia o porquê, mas imaginava estar diante de Djanira, pois eram flagrantes os traços que Marcos passara-lhe da irmã. Possuía os cabelos negros e compridos, os dentes claros, era esguia e carregava nos olhos o brilho fosco das desilusões. Ele não podia estar enganado: ali não estava uma menina comum, uma prostituta de posto, uma mulher vazia e que aceitava sua triste condição sem relutância. Atrás daquela submissão de vender-se, havia uma dignidade oculta, um caráter encoberto, que somente aos olhos de um homem com um pouco de brio ainda, tornava-se de certa evidência.

Durante todo o jantar, Paolo não desistiu. Tentava ser cortês, colocando-a ao nível de uma moça que, embora tivesse mil defeitos piores, não era reconhecida como uma máquina de fazer amor.

– Seus pais não moram aqui? – perguntou-lhe, aparentemente distraído.

– Não – respondeu ela secamente.

– Hum!… e por que não fica na casa de um irmão ou irmã?

– Sou sozinha no mundo, já lhe disse.

Os olhos de Paolo brilharam.

– Mas possuía dois irmãos, não é verdade?

– Ela sobressaltou-se, tomou-se inquieta e acuada. Pensou que era alguém da polícia.

– Vamos embora.

– Ouça menina, não tenha medo de mim. Estamos aqui por uma coincidência da vida. Desde que a vi, achei que era a menina de que Marcos me falou.

– Marcos? Pelo amor de Deus, onde ele está?

– Você é Djanira, não é mesmo?

– E você é diabólico.

– Não se perturbe com isto, sou amigo.

– Ando assustada, muito assustada.

– Eu sei – Marcos contou-me tudo.

– Onde ele está?

Paolo contou toda a história. Os olhos de Djanira pareciam uma nascente inesgotável de lágrimas, embora seus lábios se mantivessem firmes, como se seus olhos reagissem à revelia do que lhe ia ao coração. Estava imóvel e impassível, ouvindo tudo. As lágrimas escorriam pela face, penduravam-se no queixo e caíam sobre os braços cruzados. Quando a fitou de frente e a claridade tênue da luz refletiu timidamente a angústia que ia naquela alma, Paolo sentiu quão grato deveria ser a Deus por havê-lo excluído de tantas desditas. Foi então que reconheceu a mesquinhez dos que reclamam, sem jamais imaginar que milhões gostariam de estar no lugar deles; que atrás dos cumprimentos, do respeito e da dignidade aparentes de muitos homens, havia por certo mais podridão e mau cheiro, do que numa latrina abandonada; que sob o véu cruel da prostituição, escondiam-se grandes e nobres almas, as quais só o dedo sensível de Deus podia identificar; que o mundo não era feito propriamente de homens, mas de atores perfeitos, cada um desempenhando seu papel, conforme as necessidades da sobrevivência. Sófocles pareceu-me certo ao descobrir: “O homem ri e chora conforme Deus dispõe”

No fundo, lá no âmago, no ponto misterioso onde se originam e firmam o caráter e a personalidade, é que as pessoas existem, mas os homens só sabem julgar as aparências, a condição social ou a extensão do saldo bancário.

Diante daquela menina que saía com os homens para vender seu corpo para o sustento de sua própria vida, Paolo envergonhou-se e sentiu inveja. Pagou a conta, tomou-a pelo braço e saíram.

– Djanira, ainda há tempo. Enquanto estivermos vivos, há tempo. O nosso último segundo é o início do verdadeiro tempo. A gente não acaba nunca. Contudo, há coisas que têm de ser feitas deste lado, você entende?

– Acho que sim.

– Estive pensando numa maneira de trazer Marcos de volta…

– Eles irão prendê-lo – interferiu ela antes que Paolo completasse seu raciocínio. Depois arrematou: – A não ser que a gente se mude para longe.

– Disse-lhe isto, mas ele não aceita. O problema dele está no cérebro e não nos músculos.

Djanira fez menção de rir.

– Foram palavras dele – admitiu Paolo. Para ser sincero, acho que ninguém irá mais mexer no passado. Você sabe, a polícia daqui só se interessa e intromete onde há gente mansa e dinheiro fácil. Marcos é manso, mas não tem dinheiro.

– E, mas dia menos dia, isto virá à tona. Há muitos Marins e Camilos por aí. Naquele tempo houve um motivo, amanhã haverá outro.

Pode ser. Por isso pensei em falar diretamente com o delegado para saber das imputações. Já conversei com um advogado, que foi taxativo:

– “Há duas maneiras de se sair desta: uma é entregar-se e passar pelos lentos trâmites legais; o outro é ver o preço deles”.

– O Marcos sempre foi cabeçudo. Quer sempre assumir o que faz e se esquece que não há mais a lealdade dos antigos duelos. A gente vai de estilingue e o adversário, de metralhadora.

– Bem, irei voltar lá na próxima semana. Não abra a boca a este respeito. Continue sendo lldesi. Tem aqui um pouco de dinheiro, pelo menos para não ser lldesi totalmente, a não ser que queira. Não vim aqui para atrapalhar sua vida, quero que acredite nisto.

Ela baixou os olhos envergonhada, mas não se defendeu. Depois meneou a cabeça, recolocando os longos cabelos para trás e quase implorando:

– Você se importaria de levar-me com você?

Paolo, tomado de surpresa, ponderou:

– Ora menina, você não sabe sequer, o que está pedindo! O lugar é distante e de difícil acesso. Gasta-se três dias e não acredito que suporte isto.

– Juro-lhe que não lhe serei estorvo – e notando que Paolo fraquejava – por favor, eu lhe suplico.

– Está bem, eu a levo, mas não se esqueça, foi você quem pediu, insistiu, implorou… Bem, acho até que chantageou.

Ela saltou-lhe ao pescoço, apertou forte e beijou-o muitas vezes no rosto. Ela era bonita, jovem e autêntica e Paolo não pôde safar-se de certos pensamentos que, inescrupulosamente, vadiaram-lhe pela cabeça. Fitou-a rapidamente e depois a beijou na boca, demoradamente, como se fosse um velho apaixonado. E quando toda aquela reação indomável sossegou, ambos se constrangeram. Era estranho como ela, apesar do ato mecânico de beijar (arma de seu trabalho), agora se sentia daquela maneira. Quanto a Paolo, parecia sentir os eflúvios do couro úmido de guariba e camocica, embora ali, só estivessem Djanira e ele.

– Desculpe-me se a magoei.

– Ah, vai! … Esqueça!

– Obrigado por não me levar a mal.

– Ora… Você sabe que não presto, por que esta preocupação?

– Posso pedir-lhe um grande favor?

– Pois peça.

– Nunca mais diga: eu não presto.

Ela sorriu, e ele, passando de leve a mão em seu rosto cálido, despediu-se. O céu parecia baixar, comprimir-se em torno dela. Cada sopro do vento, som de criança ou cricrilar de grilo, era-lhe doce voz de anjos celestiais. Estava feliz, tão feliz como jamais alguém poderia ter se sentido na vida. Não sabia se cantava, ria ou chorava. As paredes descascadas eram belas, belo era o mundo em torno, porque feliz estava sua alma.

 

20

Três dias antes de partir, Paolo começou a se lamentar de dores inexpressivas, inapetência e lassidão. Pensou tratar-se de alguma gripe qualquer, mas afastou a idéia, quando fortes calafrios, acompanhados de febre elevada, prostraram-no por quase uma hora. O suor descia-lhe pelo corpo, empapando a roupa e o lençol. E se existisse na época, uma doença que dispensasse diagnóstico médico em Imperatriz, esta doença era por certo a causada pelo plasmodium falciparum. Qualquer caboclo pronunciava o latim com a pureza de um cidadão romano.

Logo que a crise cessou, Paolo levantou-se moído e fraco, mais aturdido do que doente. Parecia que tudo havia terminado ali. No entanto, seis horas depois, com a precisão de um acoplamento espacial, a febre voltou, mais resoluta e potente.

Um dia, quando já estava melhor e pronto para receber alta, Djanira entrou no apartamento, muito nervosa, trazendo um exemplar de um dos jornais da cidade.

– Paolo, uma desgraça! Eles descobriram – e dizendo isto, mergulhou em prantos.

– Mas, descobriram o quê, menina?

– Veja isto – disse ela passando-lhe o jornal.

Paolo viu em manchete de primeira página; “ESTRANHO SER AMEDRONTA MADEIREIROS E CRIA SÉRIOS PROBLEMAS PARA AS INDÚSTRIAS DO MUNICÍPIO”. Correu os olhos sôfregos. Um caçador havia encontrado as estranhas cavernas, fermentado as alusões e alimentado as mentes receptivas dos caboclos para aparições invulgares. O boato correu de canto a canto: rádio, jornais e até uma reportagem de televisão foi encenada. O município inteiro comentava sobre o ser alienígena que habitava as florestas, dando um toque todo jornalístico, aos olhos arregalados do caçador que pormenorizava seus achados. Nenhum madeireiro mais se arriscava a penetrar no Pindaré, e as indústrias mais prejudicadas conclamavam o poder público para elucidar a questão. Em apenas quinze dias, organizou-se uma expedição policial com trinta soldados, armados até aos dentes, chefiados pelo caçador que, para dar maior ênfase à sua horrenda descoberta, negava-se caminhar na vanguarda.

A notícia ocupava quase toda a edição semanal e Paolo estremeceu ao terminar a leitura. Deixou o leito do hospital num salto, enfiou-se num par de calças e desceu a rampa interna, aturdido. Disse qualquer coisa ininteligível na portaria, deixou o endereço e saiu porta afora. Djanira acompanhava-o atônita.

– Que vai fazer, Paolo?

– Qualquer coisa. Temos que chegar ao Marcos na frente deste bando de maníacos supersticiosos.

– Mas eles já foram.

– Não importa. Eles terão que procurar, nós não. Arrume-se depressa. Passarei para apanhá-la logo, logo.

Ninguém mais conseguia organizar qualquer pensamento sensato. Como um autômato programado, Paolo jogou alguma coisa no alforje, passou no supermercado, comprou um pouco de alimento; no primeiro posto abasteceu o carro, encheu dois galões de cinqüenta litros e passou na casa de Djanira, que já o aguardava na calçada. Ela nutria, pelo irmão, o que havia de mais puro em sentimento humano. Marcos sempre fora, para ela, muito mais que um irmão. Estivera sempre a seu lado, trabalhara para sustentá-la, defendera-a contra o próprio sistema, compreendera-a nos erros, dera a própria vida pela sua felicidade. Agora estava chafurdado num mundo de selvas, sozinho e à mercê de seu próprio destino.

O carro deslizava célere pela estrada. Depois, a passagem foi estreitando, os buracos aumentando e os problemas aparecendo. Galhos caídos no caminho obrigavam  Paolo a frear, descer, desentulhar e seguir caminho. Djanira seguia a seu lado, num misto de admiração, apreensão e até mesmo, alegria.

Paolo fizera reviver em sua alma, a crença na amizade e na bondade das pessoas, sufocadas desde que Marcos desaparecera. Tantas vezes perdera tais esperanças! O mundo parecia-lhe um antro de chacais, cada um em sua toca, esperando o momento exato de atacar. Marcos arrefecia-lhe este pessimismo, mas desde que se fora, recaíra em descrédito total com o mundo. Cada homem era um ser perverso de interesse e sensualismo. Não parecia haver mais, na face da terra, alguém que a compreendesse, que soubesse que, apesar de tudo, ela era uma criatura dotada de sentimento. Maravilhada por aquela amizade sem interesses, ela fitava de soslaio, o modo preocupado de Paolo, que dirigia atentamente como se fosse um piloto responsável diante de píncaros nevoentos. Paolo não poderia jamais entender, ou sequer imaginar, a admiração que Djanira nutria por ele. Não era amor, nem gratidão. Era alguma coisa diferente daquilo que os livros e psicólogos até então haviam descrito.

Quando o carro penetrou na selva densa, com ramos invadindo a vereda, com profundas valetas e altas areeiras deixadas pelos renitentes madeireiros no início do inverno, Paolo engatou uma primeira e prosseguiu lenta e cuidadosamente.

– Já havia imaginado alguma coisa semelhante na vida? – perguntou Paolo, enquanto esfregava uma toalha amarelecida pela poeira, no pescoço exsudado.

– Não fosse o que está acontecendo a meu irmão, acharia maravilhoso.

– Quando tudo isto acabar, vou trazê-la comigo para as incursões de pesquisa.

Ela sorriu, e na rudeza da floresta abrupta, seu sorriso contrastava aparentando beleza ainda maior.

– Vou cobrar-lhe, não esqueça.

Ele também fez menção de rir, mas algo mais imperativo afastou-lhe a naturalidade de uma possível satisfação. Não lhe saía da cabeça, o que aqueles estúpidos policiais poderiam fazer a Marcos se o encontrassem. Nenhum batalhão de choque poderia enfrentar coisas do além, mas nenhum daqueles soldados deixaria de disparar seu fuzil se as visse. Estavam lá, cheios de medo, crivados de superstição, sentindo o cheiro forte do fumo de rolo do Curupira e os lamentos agourentos das almas penadas. Deus, somente, era pouco para encher aqueles corações sedentos de crendices – o coração do caboclo é, por natureza, idólatra. Teme e crê em tudo o que possa resolver, ou mesmo criar problemas. Este receio não abandonava Paolo.

– Temos de nos apressar, Djanira. Eles estão em vantagem e não podem encontrar Marcos antes da gente. Se pelo menos eu pudesse falar com o pelotão, talvez o convencesse da estupidez que está fazendo.

Quando o carro parou no fim da estrada, Paolo suspirou aliviado:

– Graças ao bom Deus, não vieram por aqui. Certamente encontraram velhos vestígios e jamais encontrarão Marcos. Veja, não há marca alguma de cano ou pessoa por aqui.

– Talvez seja invenção e sensacionalismo dos jornais.

– Não, não é. Note o silêncio que reina na floresta. Isto aqui são terras devolutas e os madeireiros, nesta época, exploram-nas inescrupulosamente. Não há um ronco de motosserra, nem pancadas de machados. A notícia é verdadeira, estou certo disto.

E mais calmos, escolheram um lugar, ataram as redes bem próximas uma da outra, e se dispuseram a preparar qualquer coisa para satisfazer os estômagos em rebuliço. A  noite descia sem tréguas no reide dos astros.

Djanira, pela primeira vez, experimentava aquela sensação de silêncio e solidão. Fixava seus olhos entre os fantasmas da visão turbada e enchia seu coração de coisas que se escondiam na escuridão da noite. Tudo era tétrico e maravilhoso, imenso e pequenino, estranho e real. Abandonou-se por completo e viu a luz esvair-se e a cortina negra descerrar na plenitude de um mundo único entre as galáxias do universo. Mundo algum era assim, vindo do nada para o recreio do Senhor Deus. Não poderia ser em outro planeta que Deus, Todo Poderoso, descalçava as sandálias e estirava os dedos amarfanhados pelas intermináveis caminhadas pelo infinito. A terra parecia-lhe um oásis único na eterna imensidão árida das galáxias.

Uma coruja que agoura, uma onça que esturra, uma serpente que desliza ameaçadora num roçagar mortal: vida e morte intercalando-se a cada segundo,num rodízio sem fim, um ser indo, outro vindo; um cedendo lugar, outro ocupando-o, no descaso da vida pela manutenção da beleza constante da natureza. Coisas estranhas de quem pode tornar diferente, mas assim deixa que seja, à revelia de nosso entendimento de justiça e perfeição.

– Como tudo isto é maravilhoso, Paolo!

– Surpreende-me não estar com medo.

– Realmente não estou. Sinto-me aqui como um animal feroz, que palmilha a selva, sem temer a ninguém: o rei dos animais.

– O homem é o rei dos animais. Todos os demais o temem e respeitam. Eles não desconhecem a complexidade perversa que existe dentro dos humanos. O homem, como ator perfeito, consegue fingir, acariciar com uma das mãos, tendo na outra uma peia; alimentar com veneno…  Não há nada mais terrível e imprevisível do que ele. Acho que foi um dramaturgo grego que disse: “Existem coisas sinistras, mas nada mais o é do que o homem.” Por isso os demais animais o temem.

Uma coruja atenta paira eqüidistante e detecta-os com seus gritos fantasmagóricos.

– Que é isso, Paolo?

– Uma simples coruja.

– Mas parece gente – um grito horrível, agonizante.

– É a maneira de ela conversar. Para os outros animais, nada de melhor, mais mavioso ou perverso, entre seu canto e o do uirapuru. Nós é que conseguimos dar tristeza, alegria, ameaça e amargura aos sons porque somos capazes de retê-los e classificá-los, conforme as tradições daquilo que nos aconteceu de bom ou ruim em algum tempo. Este chirriar só nos parece agonizante porque se assemelha ao grito de uma pessoa desesperada, perdida.

Djanira sobressaltou-se, num suspiro exclamativo:

– E Marcos… Puxa! Como deve se sentir, sozinho, no meio desta escuridão? Pobre irmão!… Sabe Paolo, ele nunca teve um dia de vida despreocupado e feliz, desde que o conheci. Primeiro meu pai nos abandonou; depois minha mãe morreu; a seguir Raimundo e eu fizemos o que fizemos. Foi o único que conseguiu mortificar-se, sofrer, dar tudo de si, sem jamais reclamar ou exigir nada.

– Djanira, nunca imagine uma pessoa feliz pela mansão que habita, pelo prestígio que desfruta, pela vida que leva, ou pela roupa que veste. A felicidade não tem indumentária, não exige condição social, nem muito dinheiro. Pode haver mais felicidade num carrinho de pau do que num iate espalhafatoso; mais bem-estar num copo d’água, do que num cálice de champanha; mais alegria numa alma massacrada do que nos gritos ébrios de um milionário. Tudo é uma questão de submissão, de humildade e de fé. Nada falta para aquele que possui fé e aceita a vida como ela é. Não sendo assim, nasce a revolta. Quando se está com Deus, tudo é fácil. Diz uma lenda, que certa feita, Santa Teresa saiu dizendo que iria fundar um novo mosteiro. – “Se só tem dez cruzados – perguntou uma das religiosas – como pretende fundar um mosteiro? – “Tem razão. – disse Santa Teresa – dez cruzados e eu somos muito pouco. Porém, dez cruzados, eu e Deus, somos tudo”.

Djanira lembrou, então, do dia em que conheceu Paolo e soube do irmão. Ficou por um instante pensativa, revivendo aqueles momentos, depois assentiu:

– Verdade, pura verdade. Acho que jamais me sentirei mais feliz do que aquela tarde em que conheci você.

– Isto me alegra. É muito bom a gente servir de alegria a alguém. Às vezes a gente imagina que tudo está acabado, que nada mais resta e, de repente, como num passe de mágica, as coisas ruins se desfazem e tudo parece readquirir luz e cor em nossas vidas. A esperança volta e a gente se sente envergonhada de não ter sido forte, de não ter sabido esperar.

– A vida é um vaivém contínuo, uma troca, uma renovação. O importante é a gente não parar, não cruzar os braços, não esmorecer. Quando se está cansado, deve-se caminhar lentamente, jamais parar. Veja o relógio: a gente olha os ponteiros e não os vê em movimento. No entanto, vagarosamente, eles formam os dias, os anos, os séculos. Quem pára, fica para trás. Se um relógio parar por um segundo, jamais alcançará o que continuou trabalhando.

– Suas palavras ajudam tanto, Paolo!… Chego sentir inveja de suas convicções. Em se tendo certeza das coisas, deve ser mais fácil levar e entender a vida, não é mesmo?

Paolo ouviu aquela observação e envergonhou-se de sua hipocrisia. Ninguém melhor que ele sabia de suas dúvidas e insegurança. Gostava de embrenhar-se na mata, exatamente para deixar que seus pensamentos evolassem em busca da milagrosa alquimia de reverter suas curiosidades e dúvidas, em convicção e certeza. Mas tudo, sempre terminava em perguntas, perguntas e mais perguntas. Ouvia falar do átomo, dos vírus, da alma… Mas, não conseguia vê-los, entendê-los, nem tocá-los. Daria tudo para meter os olhos num possante microscópio eletrônico e ver as coisas andarem, agirem, serem.

Sempre sonhara em ser um cientista, mas acabava como um músico pobre, que apesar da inclinação para o piano, tinha que contentar-se com um mísero e barato cavaquinho – contingências da vida social. Era pobre, levemente remediado e não tinha como provar sua vocação no meio científico. Por isso, agarrara-se ao cavaquinho da cultura, aprendendo nos livros, enriquecendo-se em teorias, sem jamais saber a viva realidade das coisas. Sua vida, por tudo isto, era rica em dúvidas, normalmente guardadas para si. Não possuía, senão, a fé de Tomé. Precisava ver, tocar, perceber e sentir para crer. Suas palavras pareciam convencer o mundo, mas ao sair de sua boca deixava-lhe um vazio ainda maior. Contudo, preferia ocultar a sua realidade a disseminar a dúvida.

– É verdade, Djanira. A gente precisa crer no que faz. A crença é que torna o homem sublime e corajoso. Ela é a força do objetivo. Por isso os homens crêem; crêem em qualquer coisa: em bezerro de ouro; em um pedaço de granito esculpido; num astro… Não há limite para a imaginação humana na necessidade de crer. Ninguém consegue viver sem acreditar em alguma coisa. “A religião é vivida antes de tudo como angústia”, isso já afirmava Einstein, uma das mentes mais privilegiadas da Terra.

A lua clareava o dossel da floresta, enfiando tiras de tênue luz por entre as ramagens, alumiando em salpicos, aquelas duas almas estranhas. Lufadas quase imperceptíveis de vento mexiam nas folhas, num farfalhar sonolento como uma mó de pedra a triturar o milho. Paolo olhou Djanira: o rosto moreno, mosqueado de luz, parecia um desenho sublime, com a beleza natural de um pintor antigo, mesclada às manchas malucas dos modernos. Sentiu desejos de puxá-la para si, mas não encontrou coragem para tocar naquela imagem, para ele sagrada. Quantos homens, sem o mínimo escrúpulo a tinham tocado, sem amor e até mesmo sem desejo. Ele, no entanto, estava confuso e inseguro. Parecia-lhe estar ao lado de uma donzela tímida, que embora sentisse todas as atrações humanas de uma prostituta, tinha que vencer suas inclinações e se comportar como uma pessoa diferente. Era como se fosse um homem faminto que não tinha a simplicidade de confessar sua fome, mesmo estando diante dos alimentos.

Djanira sentia o mesmo. Mil vezes pensou em chamá-lo, ou ir até à rede em que ele se encontrava. Ardia de desejo e, embora nada houvesse para impedir, não conseguia achegar-se.

E a lua caminhou bastante antes que as redes sossegassem, afastando daquelas mentes a crueldade do desejo contido.

 

21

 Setenta mil homens, como num imenso formigueiro, iam e vinham sem cessar. Em cada rosto, os sulcos do cansaço; nas mãos, a calosidade rude do querer; nos olhos, o brilho da esperança. Aviões cruzavam os céus; furões chegavam furtivos, metiam-se no meio do povo ou eram expulsos debaixo de chacotas e ameaças. Paus-de-arara, caminhões lonados e camionetas faziam fila diante das guaritas, deixando os que chegavam e levando os que desejavam ou precisavam partir.

Um barulho surdo e ininteligível emergia-se da bacia formada e apenas a arenga de um ou outro desocupado subia além do tumulto de vozes. O morro de Serra Pelada baixava como um lago posto a secar. Em seu lugar, milhares de homens acotovelavam-se na depressão formada. Lá longe, a mata semidestruída; pelos flancos, os entulhos de cascalho cego.

José batia sua picareta compassadamente, em pancadas rítmicas como o pulsar de um coração. Já não dava conta do tempo, nem da esperança. A picareta batia firme, num som rouco e profundo. Seu auxiliar enchia a pá, jogava no saco. O carregador alçava a carga, subia a escada, escalava o morro e ia lançar aquela terra ingrata, bem além. Os primeiros torós, ovacionados por ensurdecedores trovões, anunciavam a proximidade do inverno. A Serra iria fechar em breve. Mais um ano esvair-se-ia no amargor da desilusão e da desesperança.

A picareta batia firme; o suor descia do rosto magro de José; a esperança quedava-se em cada golpe. Lá embaixo, no fundo do poço, ele já não sentia, senão, a angústia de sua desgraça. Uma dor indizível penetrava em seu corpo. Seu espírito andava, divagava e retomava pelas agruras de seu passado.

A picareta continuava e o suor banhava de lama salgada, a barba grisalha que cobria a dor e os anos daquela face escaveirada.

“Carminha, Marcos, Raimundo, Djanira” – José pensava, pensava…

A picareta batia firme, a pedra dura quebrava, as faíscas dos atritos riscavam em chispas, como as lembranças que iam e vinham na mente confusa de José.

– Dizem que na semana que vem, vão fechar a Serra!

– Eu sei – disse José, sem tirar os olhos do fundo, onde a pedra parecia amolecer, dando lugar a cascalhos estranhos.

– Mais um ano, não é amigo?

– É, mais um ano.

– Vai ver sua família desta vez?

– Não sei.

– Ora homem, deixe este juramento de lado!

– Jurei que só voltaria com os bolsos cheios de dinheiro. Quero comprar uma casa nova para minha família, dar estudos a meus filhos…

– Quando o ouro sair, você fará isto.

José ergueu os olhos. Milhares de rostos cansados e peitos arfantes continuavam agarrados aos fiapos de esperança que se esvaíam e raleavam em cada trovão e pingo que caía.

– O inverno está chegando. Vão fechar a Serra mesmo. Em poucos dias as enxurradas encherão tudo isto e ninguém poderá fazer mais nada.

– E verdade.

José baixou a cabeça, a picareta desceu mais forte, mesclada à fé e ao desespero. A lama salpicava-lhe, o suor pingava, a língua corria seca pelo céu-da-boca ressequido pela sede e pelo cansaço.

– Oh, meu Deus! – disse José, e a picareta penetrou na força da fé. A ponta esbarrou noutra pedra.

– Outra pedra?

– Acho que sim.

As nuvens negras acotovelavam-se no espaço, cobrindo de verde-escuro a imensidão amarela da terra desnuda.

– A chuva, Zé. Talvez seja hoje o último dia. Mais um ano!

– O último dia – repetiu José, enquanto metia as mãos calejadas e rijas no barro duro semi-revolvido.

Arrastou a lama, jogou no saco. O homem levou. A chuva começou a cair e os grossos pingos arrefeciam os corpos e matavam as esperanças.

– Vamos embora José, acho que acabou.

– Ainda temos algum tempo, amigo. “A sorte ajuda os corajosos.”

 

– Não seja teimoso, Zé. Acabou e pronto. Esta chuva vai alagar tudo e as dragas não darão mais conta. Você e esta picareta não conseguirão nada, admita.

– Sim, mas Deus pode estar comigo.

– É, Deus, às vezes faz coisas esquisitas mesmo. Ele sempre teve uma quedinha pelo precioso metal, desde os tempos dos tabernáculos.

José sorriu em oração. A picareta elevou-se alta, como a buscar a bênção do céu. Desceu firme na pedra e um risco amarelo ficou entalhado, como num milagre alquímico. José ficou abobalhado, embasbacado, sem forças para gritar. Seu companheiro estava agarrado a ribanceira, tentando escalar o barranco, que já se tomava escorregadio pela chuva densa que descia do céu escuro.

– Vamos – disse ele num ronquido de desalento.

Mas nenhuma voz veio em resposta. Olhou para baixo e viu José de joelhos, os olhos erguidos e cheios de chuva que descia pela barba crescida.

– Não meta Deus nisto, Zé! Vamos embora.

– A pedra – disse ele – a pedra.

– Que tem a pedra, homem?

– E ouro, ouro maciço.

Seu companheiro suspirou penalizado: “Está delirando – e dizendo isto, desceu devagar, apoiando suas mãos nos ombros de José.”

– Vamos, amigo, assim é a vida. Mas ela não acaba aqui. Depois desta chuva, deste inverno, o sol voltará e nós estaremos aqui, para cavar, sonhar outra vez.

– Companheiro, a pedra debaixo é ouro, ouro puro, veja, olhe, com seus próprios olhos, toque com suas mãos.

Incredulamente, o meia-praça agachou-se. Valia a pena iludir-se, ainda que fosse por mais um instante. Ajoelhou-se, esfregou a mão retirando o melechete que descia e viu, sem malogros, o risco vivo da ponta da picareta no enorme bloco maciço de ouro. Começou a rir, chorar, pular… Agarrou-se a José fortemente, gritaram e dançaram, enquanto milhares e milhares de outros, picaretas, pás e enxadões às costas, retiravam-se cabisbaixos, vendo as nuvens negras do inverno, qual andrajos empedernidos, absorver o último facho de esperança.

No meio da lama, da chuva e da noite trabalharam, até que o bloco estremeceu, desgarrou-se do chão e subiu maravilhoso. Oito homens o transportaram para fora. Eram os únicos no meio da noite que não sentiam cansaço, nem fome; os únicos que estavam achando maravilhosos os trovões e cheias de graça as torrentes que transformavam tudo num imenso lago. Já cedo, aquela pedra estendia os tentáculos das paixões, num rastro deprimente de angústia e dor.

Em cima daquele tamborete, ele via uma casa linda, rodeada de capim verde e árvores frutíferas, um regato correndo por entre pedras e Maria a tricotar sossegada, enquanto seus filhos não viam, diante de si, limites para seus sonhos.

Marcos estava de jaleco, todo de branco, como um anjo do céu. Raimundo cuidava da fazenda e Djanira, vestida de seda azul, fazia as honras da casa para os convidados que chegavam. Uma casa cheia de amigos, de fartura e de felicidade. Tudo estava ali, em cima do tamborete, pela descoberta milagrosa da ponta da picareta.

 

O dia amanheceu totalmente. A brisa fresca deixada pela chuva que passou era um doce alívio para quem tinha conseguido alguma coisa. Lá embaixo na cava, um verdadeiro lago. O coordenador subiu ao palanque e depois de prévias explicações, deu por encerrados os trabalhos daquele ano. Milhares de rostos desiludidos, doentes e mais pobres, voltaram lentamente para seus barracos.

Apenas José e seus companheiros não uniformizavam suas fisionomias aos rostos daquela multidão. Quando a notícia saiu do barraco, foi como a chuva da tarde: inundou tudo e todos. Imediatamente uma equipe da TV Globo baixou em Serra-Pelada, e a maior pedra maciça até então descoberta no El Dorado, na África do Sul ou em qualquer outra região aurífera do mundo, foi humilhada ante o tamanho da de José.

Passou pela Caixa Econômica, recebeu, fez a partilha com o que tinham percentagem no barranco e se despediu, para sempre daquele purgatório. Fretou um bimotor e rumou para Imperatriz. Hospedou-se num hotel, passou três dias cuidando do dinheiro e das aparências. Depois escolheu presentes caríssimos, colocou-os caprichosamente no carro que comprara e rumou para o casebre onde morava. Seu coração ameaçava sair do peito. Pensara mil coisas para dizer, mas ele mesmo estava certo que não se lembraria de nada no momento.

– Entre por esta ruela – disse José a seu motorista – era por aqui que eu morava.

O rapaz obedeceu. O cano ia devagar e, pelo vidro, os velhos barracos sucediam-se como num filme onde todo tipo de miséria era protagonista. Crianças famélicas e melequentas, cachorros sarnentos, homens destituídos de qualquer esperança, mulheres lívidas, relegadas à conformidade do destino… Apenas os gatos andavam roliços. Poças de água, autênticas albufeiras imundas, esgoto a céu aberto, mau cheiro nauseabundo e lixos espalhados davam o toque final de desrespeito à condição humana. A pobreza é uma graça de Deus e, ao mesmo tempo, um flagelo para os ricos. No julgamento final, Deus não precisará de mais nada para condenar, do que mostrar a miséria do mundo.

Logo além, em nosso próprio mundo, bilhões de dólares eram gastos com o exército (esta instituição gregária que macula o bom senso humano) e com armas destrutivas, enquanto em mil recantos, milhões de outros pereciam por um naco de pão.

 

O carro ia devagar, desviando-se das imundícies. Dobrou uma esquina, andou mais um pouco e ao sinal de José, o motorista freou.

– Era aqui, se não me engano, ali, naquele casebre.

O motorista tentou ser cortês ao nobre rastaqüera, mas ele não conhecia qualquer etiqueta que, afinal, só serve para acentuar ainda mais as desigualdades sociais. Abriu a porta ele mesmo e desceu. Correu os olhos recordando, chamou, conversou e ficou extático, desiludido. Ninguém conhecia ou ouvira falar de seus familiares. Que teria acontecido? Para aonde teriam ido? Mas, era ali, isto ele tinha certeza. Explicou ao morador, achegou-se ao portal e olhou para dentro: em verdadeiro milagre de equilíbrio, velhos sarrafos, restos de papelões, paus tostados pelo fogo e escoras mantinham de borco aquele quadrado onde a família entocava-se. Perguntou, perguntou e depois se despediu, voltando frustrado para o hotel.

Maior angústia, desolação e decepção não poderiam estar no coração de um homem. Quanto sonhara com aquela chegada triunfante e vitoriosa! Carminha, maravilhada e orgulhosa, com os olhos molhados de saudade e júbilo; os filhos chafurdados nos presentes coloridos e caros, rasgando papéis enfeitados e cheirando o perfume agradável das caixas. O chão ficaria recoberto como uma alcatifa multicor, como se fosse o mais milagroso solo do nordeste, que florescia num repente aos primeiros pingos da chuva. Num jargão feliz, todos falariam ao mesmo tempo, ririam de felicidade, abraçar-se-iam, contariam histórias e estórias, numa noite memorável. As mãos correriam sobre os tecidos macios e nada seria mais doce e suportável do que aquela última noite de miséria.

No outro dia escolheriam o lugar mais bonito da cidade, destronariam o inquilino com o dobro do preço real e, talvez, jamais poriam os pés naquele chão imundo, triste e desolado.

Sonhos, doce imaginação!… A fumaça do cigarro subia lentamente anuviando seus olhos pela visão incerta do destino. A cabeça apoiada ao travesseiro, as costas estendidas no colchão macio, as pernas cruzadas a admitir o afrouxamento de músculos arredios. O aparelho de ar condicionado barulhava sonolentamente, enquanto a umidade quente era absorvida e uma friagem agradável acariciava-lhe o corpo desacostumado. Como era diferente ser rico, ter poder e conforto. Ah! a fortuna – este ídolo adorado das massas sem escrúpulos e que, como acentuou Denis, substitui as divindades derribadas.

E num lampejar, José refez seus últimos anos de vida, do Itinga ao momento presente. Quanto sonhara em firmar sua felicidade sobre os alicerces da riqueza, e agora que a tinha, via estremecer as paredes de seus sonhos, numa insegurança sofrida. E quanto mais recordava, mais medo sentia das coisas, como se reconhecesse a estupidez de buscar, na opulência, a paz de seu espírito. Não sabia onde estava sua família, mas ainda acreditava que estivesse em algum lugar desta terra, caso contrário, nem todo ouro do mundo deixaria de torná-lo o mais vil e infeliz dos mortais.

A noite foi caminhando lenta e progressiva. O barulho das ruas amainava: apenas roncos cá e lá se denunciavam pela madrugada. José não conseguia fechar os olhos. Os pensamentos assaltavam-lhe, a cama macia era-lhe incômoda. Quantos dias na rede, nos jiraus, em duros catres, no trabalho do poço, permeio a nuvens de mosquitos, dormia como uma pedra, como se não houvesse, no mundo, nada que pudesse despertá-lo. Seu corpo habituara-se a dura realidade da pobreza e sua mente, sempre vazia de problemas, não fazia frente aos músculos cansados.

Pela madrugada entregou-se a rápidas modorras, nas quais sua mente fugia em ilusórios sonhos desagradáveis e cruéis. Era sua primeira verdadeira noite de milionário. Pelos cantos, presentes; no coração, angústia; na alma, vergastes e desassossego.

Jamais sentira dentro do peito um aperto mais forte. Não sabia a razão, mas estava certo que nenhuma orquestra do mundo seria mais maviosa que o sabiá-da-mata do Itinga; que nenhuma suíte presidencial com piscina térmica, substituiria o prazer de jogar-se nas águas do rio, vinda fresca por entre as selvas eternas; que enfim, nada material poderia comprar a paz gratuita da natureza.

E, naquele momento de desilusão, com o silêncio da noite invadindo seu coração e os turbilhões de seu passado entocando-se em sua alma, é que ele pôde reconhecer que o maior tesouro do mundo estivera em volta dele, nas suas mãos… e ele jogou fora.

 

 22

 Marcos estava sentado sobre uma raiz adunca, partindo gravetos secos com as mãos distraídas, enquanto cismava, com os olhos estriados pelas nuanças da mata. A natureza, aos poucos se modificava. O vento diminuía; as folhas ficavam extáticas como se o movimento da vida houvesse cessado; o mormaço sugava o fôlego. Ao longe se chispas de relâmpagos que se aproximavam em cada dia que passava.

Depois que conhecera Paolo, seu coração encheu-se de esperanças e coragem, mas nele, puramente humano, já crescia a triste idéia de uma amizade traiçoeira. Vários dias esperara por ele, sem que nenhum sinal de vida humana chegasse aos seus ouvidos. Nenhum ronco sumido das motosserras, nem as pancadas reboantes das marretas nas cunhas de ferro…, nada. Tudo era silêncio constrangedor. Os últimos dias estavam sendo difíceis. O medo que nunca sentira, agora lhe sobrevinha em cada noite escura, em cada raio que estrondava nas copas imensas das jueranas.

Os gravetos esfarelavam-se nas mãos sob o ato maquinal das emoções incontidas. Marcos pensava, enquanto seu olhar se mantinha perdido entre as sombras da mata. Sobressaltou-se em seguida, com um barulho estranho que imaginou ouvir. Ergueu-se, apurou os ouvidos, deu dois passos, prendeu a respiração, abriu a boca… Não havia dúvidas de que aqueles ruídos não eram de qualquer animal selvagem, mas sim, do maior de todos eles. Seu coração encheu-se de medo e júbilo, pois entre tudo o que poderia ser-lhe mal, havia a tênue esperança de que Paolo estivesse retomando. Pé ante pé esgueirou-se para o lado, desviando-se da linha dos que vinham e, metendo-se atrás de um grosso jatobá, ficou na espreita. O ruído aproximava-se, com cortes de facão estralando nos liames de cipós. O coração de Marcos saltitava num misto de suspense e expectativa. O ruído progredia obliquamente de sua direção. Viu os ramos balouçarem e três vultos cáquis, armados de fuzis e revólveres, passarem e seguirem em frente, sem a troca de uma única palavra.

 

Depois de mobilizar tudo o que havia de melhor em selvas, a expedição de José, deu partida. Eram cinco Toyotas equipados com homens experientes em selvas, madeireiros conhecedores da região e caçadores acostumados à dureza da floresta. José já sabia de quase tudo. Os jornais, os boatos, os noticiários radiofônicos não exploravam outra coisa. Além do mais, José localizara um casal que havia presenciado e acompanhado as desditas da família em sua ausência.

Pelas calçadas, todas as manhãs, tornara-se comum a população, de jornal na mão e radinhos de pilha aos ouvidos, absorver com sofreguidão as últimas notícias, mais forjadas que verdadeiras. Os mais sensatos já duvidavam de suas incredulidades e os receptivos não sabiam como dar vazão a seus espíritos criativos. A estranha figura que amedrontava os madeireiros e criava pane no município já ia de um simples louco a um primata retardatário, que estava se metamorfoseando em criatura humana. Pouca gente, além de Paolo, Djanira e José, sabia que aquele ser alienígena era Marcos, que num momento impensado conseguira problemas para o resto de sua vida.

 

Na semana que se seguiu, as matas do Pindaré, na região do igarapé do Chá, estavam minadas de policiais, curiosos e amigos de Marcos, numa caçada impetuosa e desesperada. Talvez Morrell, não tenha imprimido a Rambo, uma perseguição mais acirrada em seu “Primeiro Sangue”.

 

Paolo e Djanira iam e vinham no que dava o dia. Escreveram centenas de bilhetes e enfiaram nas pontas de varas, nos lugares em que, antes, Marcos costumava passar. “Marcos, sou eu, Paolo. Preciso falar com você o quanto antes. Há policiais a sua procura, porque pensam que se trata de um ser diferente, de um bicho esquisito, sei lá o quê. Estou todas as noites, no lugar costumeiro. Se encontrar este bilhete, procure-me lá, o quanto antes”

Pontilhou com bilhetes espetados deste teor, todas as possíveis trilhas de Marcos. Porém, as noites sucediam-se e ele não aparecia.

Paolo já havia falado com três policiais que, casualmente, encontrara, explicando tudo. Havia prometido que levaria Marcos e que tudo ficaria esclarecido. Mas os policiais pareciam satisfeito com a emoção de caçar um pobre diabo que, imprudentemente, tornara-se fantasma para os madeireiros da região.

O esclarecimento de Paolo subtraíra-lhes a única coisa que poderia fustigá-los dali: o medo. Agora que sabiam que se tratava, talvez de um inofensivo anormal, não deixariam de ostentar sua coragem e desfilar triunfalmente pelas ruas de Imperatriz, exibindo aos curiosos, o triste troféu de suas ignomínias.

 

As matas iam ficando retalhadas de picadas. Todas aquelas belezas de traços incólumes desfaziam-se aos golpes dos terçados e facões; os pássaros assustados viviam rechaçando aqueles invasores hostis, insensíveis à decoração da natureza, com seus piados de protesto.

Marcos sentia-se acuado a cada minuto. Já tentara se deslocar em várias direções, mas em todas ouvia barulho e sentia perseguição. Várias noites mal dormidas, molhado por chuvas esparsas e debilitado pelo pesadelo de constantes vigílias. Sentia-se cansado, desiludido, perdido. A única esperança de salvação que nutrira na amizade de Paolo dissolvia-se em trampa, a mais vil que um homem pudesse esperar de um semelhante. Quantas vigílias de esperança em que sonhara retornar a Imperatriz e recomeçar, ainda que fosse miseravelmente, sua vida ao lado da irmã. Dela não se esquecera em um só dia de sua fuga. Djanira, pura ou maculada, era o que lhe restara debom na vida. Agora estava perdido, sem direção nem destino. E as emoções alvoroçavam-se em seu coração e o desespero avolumava-se em sua alma. Não havia mais beleza no regozijo do tangará-de-topete-escarlate, que dançava e cantava para sua fêmea rogada; as gotas das chuvas, límpidas e dependuradas, já não tinham a singeleza dos reflexos fúlgidos dos raios do sol; o sofrimento já não encontrava a mão de Deus para aliviá-lo na conformidade. Tristeza imensa, desilusão – achaque impetuoso do desespero.

Marcos jogou-se de joelhos:

– “Meu Deus, apego-me ao que resta de minha fé. Já não encontro razão alguma para acreditar em nada, mas sinto que preciso crer em alguma coisa. Há uma dúvida eterna aqui comigo. Já tanto pensei, procurei, chamei pela fé e… Deus de tantos crentes, se está em algum lugar, se vive em cada átomo que vagueia, renova e transforma tudo, ajuda-me, ajuda-me…”

 

O cansaço entrava incontrolável em suas carnes, as pálpebras sucumbiam – descerravam as injunções. Marcos recostou suas costas na árvore milenar e a consciência abandonou-lhe. Sua mente buscou amparo no conforto dossonhos. Viu-se num lugar estranho, no sopé de uma montanha, que tinha no topo, um homem gordo, sobriamente vestido, barba por rapar, olhos azuis e de cuja boca, os sons saíam guturais, entrecortados. Ele estava com uma tesoura e desfazia o alfabeto. Cortava letra por letras milhares delas do a ao z. Marcos olhava-o atônito – ele parecia sorrir. Depois, tomou-as na mão e arremessou-as no espaço. O vento valseou-as, jogando-as cá e lá, pelas planícies, monturos e depressões.

Marcos olhava – o homem parecia sorrir.

– Por que fez isto? – perguntou Marcos em sua ignorante curiosidade.

– Procura, examina-as com cuidado – disse o homem com voz imperativa.

Marcos obedeceu. Vasculhou os recantos. Aqui um p, mais adiante um s, um pouco mais, um x e um r juntos…

– Não vejo coisa com coisa, senhor. São letras cortadas, jogadas e perdidas pelos campos.

O homem gordo, de olhos azuis, sorriu outra vez.

– Pois é, filho! No entanto, estas letras dispostas por um escritor inspirado, traduzem-se em poesias, verdades, histórias, coisas afáveis, belas ou até mesmo, medonhas. Tudo o que há escrito, usa estas mesmas letras, porque foram dispostas corretamente por alguém em poesias, histórias, oração… Sozinhas, elas se perdem, confundem-se e formam o caos. Hoje, meu filho, os homens perdem-se em devaneios e descrenças. Querem explicar tudo, e isto é o grande mal, até mesmo dos mais sensatos sábios, porque EU sou inexplicável ao limitado raciocínio humano. Um dia eu disse: “Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino do céu” Mas até hoje, as pessoas consideradas inteligentes, não querem entender isto, pois para tanto, precisariam sacrificar o orgulho, a segurança, o prestígio. Por isso, os simples e os iletrados são mais afins com as coisas que não são deste mundo. Os materialistas defendem o acaso, mas se esquecem que o acaso é como estas letras jogadas ao vento, que apesar de poder definir um lindo poema, sozinhas, jamais o conseguem. Somente com alguém para remanejá-las e ordená-las, é que podem dizer alguma coisa. Assim é o Universo, filho. Os átomos são como as letras jogadas ao léu. Eles formam tudo, mas seriam aberrativos e disformes, inconstantes e idiotas, não houvesse Eu para organizá-los na força simples que equilibra e dá harmonia.

– No entanto, há coisas que são ditas a seu tempo e este tempo ainda não chegou; e outras, que jamais serão ditas, porque faz parte dos meus segredos. Seja simples na sua condição de criado. Creia ou não, aceite ou não, em nada modificará os meus planos. Eu sou o Senhor Deus, que faço e desfaço, jamais sendo injusto, porque gosto do que faço e só faço com justeza e perfeição. Enquanto os homens tentarem explicar minhas razões, como fazem as crenças, as seitas, as religiões…, estarão criando animosidades entre si: uma luta inglória de sobrepor ideologias, sem atentar que nada disto me interessa. Eu sou o Senhor Deus de bondade, sem crenças, sem cor nem forma… Seja simples e humilde e esforce-se para crer nisto e estarei com você, como estive com aqueles que acreditaram sem demanda. Ninguém melhor que Eu, conhece você. Eu o fiz assim, não fique triste. Um dia chamei-o para aliviar este momento, mas você não entendeu. Mas se saiu bem, muito bem, confesso. Coragem.

– Djanira, você fica aqui, pois ele pode achegar-se a qualquer momento. Eu irei embrenhar-me pelo chapadão, em cuja direção o vi seguir em um dia.

– Paolo, estou com medo. Se ele chegasse aqui, não saberia o que dizer, nem o que fazer. Desculpe-me, sim?

– Deixemos, então, um bilhete também aqui.

 

O sol estava a pino, embora sua claridade desaparecesse vez por outra, no passeio vanguardeiro das primeiras nuvens do inverno. Desceram a encosta e examinaram o bilhete do barreiro – estava intacto. No solo nenhuma pegada.

– Foi por ali que o vi seguir um dia – disse Paolo, apontando com o dedo.

Djanira quase não falava. Estava aturdida e amedrontada. Cada chalrar de arara era-lhe um grito de agonia.

– Vamos – disse Paolo, tomando-lhe a mão.

Subiram a encosta, examinaram com cuidado cada ramo retorcido. Tudo parecia intacto – Marcos não feria a mata. Conhecia as direções e, além do mais, tudo lhe era como um grande lar. Não importava também se a direção lhe faltasse. Os dias e as noites intercalavam-se, como se intercalam na vida dos pássaros e dos animais ali existentes.

De repente, um grito cortou o silêncio da floresta:

– Marcos, Marcos, sou eu, José seu pai! Vim buscá-lo, filho!

– Ouviu isto, Djanira? – falou Paolo aturdido.

– Sim, ouvi.

– Ele diz ser seu pai. Você acredita?

– Nosso pai abandonou-nos faz tanto tempo!…

– Para aonde foi ele?

– Nunca soubemos. Numa manhã fria ele saiu e nunca mais voltou. Lembro dessa manhã, porque poucas são frias aqui na região.

– Mas, não dizia nada em casa?

– Eu era muito pequena. Mais tarde, Marcos contou-me que ele afirmava que um dia ficaria rico. Daria uma casa bonita para mamãe, faria de Marcos um doutor e que Raimundo seria o seu braço direito na frente dos negócios. Quanto a mim, queria-me sempre ao lado de mamãe e, segundo marcos, brincava dizendo: – “Com vestidos de seda azuis e verdes.”

– Seja como for, vamos averiguar.

Encaminharam-se na direção dos gritos, e quando se imaginaram próximos, gritaram:

– Ôôôôôi!…

Perto dali, responderam:

– Quem está aí?

– Gente amiga. Queremos falar com o senhor José.

– Pois venha, sou eu mesmo.

A mata era alta e sombria. Grossos troncos acoplavam-se pelos galhos, impedindo a entrada do sol e conservando o solo limpo, sem vegetação rasteira alguma. Por isso, os dois grupos avistaram-se ainda distantes. Paolo falou:

– Sr. José, gostaríamos que chegasse até aqui sozinho. Somos amigos e também estamos a procura de Marcos.

Ele obedeceu sem desconfiança. Veio afastando um ou outro ramo que lhe obstava a passagem.

– Boa tarde – disse ele um tanto surpreso, pois não esperava ver mulher naquele lugar.

– Chamo-me Paolo e esta… esta… bem, esta é Djanira.

José franziu os cenhos, estreitando o olhar em busca de alguma lembrança perdida.

– Djanira?

– Sim, ela cresceu muito, não é mesmo?

– Djanira, minha filha? – perguntou José, com voz incerta.

– Em carne e osso – sua filha.

Os dois fitaram-se num colóquio mudo de repreensão, saudade e todo o mais o que se teria a dizer e a sentir naquelas circunstâncias. Depois se atiraram nos braços um do outro, mais pela emoção do momento do que pela felicidade do reencontro. Afinal, Djanira não tinha muitos motivos para admirar aquele homem que ali estava, desertor implacável que concorrera, com sua covardia e idéia fixa de riqueza, para toda a desgraça da família.

 

Marcos despertou com a amarga sensação de um pesadelo.

Estava com fome e sede. Espreguiçou-se, olhou o sol que descia, ergueu-se e deu dois passos em direção ao igarapé, que distava dali, aproximadamente dois quilômetros. Iria tomar água e depois procurar quem quer que fosse, dizer de seus problemas, pagar pelo que fez e um dia, se fosse a vontade de Deus, encontraria Djanira e levaria uma vida sóbria e simples, como sempre levara. Só agora se dava conta da grande estupidez que cometeu, fugindo de si próprio e temendo a justiça comum dos homens.

Quando ergueu o pé para o terceiro passo, sem ouvir barulho algum, sentiu um forte safanão que o arremessou ao solo, acompanhado em seguida do eco vibrante da detonação de um fuzil. Sentiu a perna adormecer, mas ergueu-se estonteado, arrastando-se por alguns metros e depois, entre tombos, rastejamento e cambalhotas, meteu-se sob um emaranhado de cipós. O coração pulsava forte e um suor frio banhava-lhe a fronte. Suspendeu a aba de couro de camocica: o projetil havia rasgado-lhe os músculos da coxa e o sangue minava entre as carnes esfarrapadas. Apertando com as próprias mãos o lugar do ferimento, ficou a escutar: a mata era silenciosa – silenciosa e triste como o fim que se avizinhava.

Paolo, José e Djanira estavam a conversar quando ouviram o estampido. Puseram-se de pé, respiração contida.

– Foi um tiro de fuzil. Os policiais minaram a região e o procuram como se fosse um ser de outro mundo. Já falei com um pelotão deles, mas disseram que executavam ordem de cima e que tinham de obedecer. Pode ser que o tenham encontrado.

– Deus queira que não – falou José, sem uma hemácia a vadiar-lhe pelo rosto lívido.

E numa desenfreada carreira, partiram na direção do tiro. Depois de 200 metros , pararam ofegantes, com a roupa banhada de suor. O silêncio era constrangedor. Afobadamente, José gritou:

– Êi… Quem está por perto?

O silêncio continuava aterrorizante. Avançaram mais. A direção era do sol nascente e, segundo Paolo, iria dar no córrego do Chá, onde Marcos costumava ir. Um pouco mais e Paolo observou:

– Olhe aqui, senhor José, esta é uma das camas em que seu filho costumava descansar e dormir.

José olhou, puxou o amarrado de folhas e exclamou emocionado:

– Pobre filho, quanto mal fiz a você!

– O passado a Deus pertence, senhor José. Tentemos tomar o presente melhor.

– Eu não tinha o direito de fazer o que fiz!

– Também acho – afirmou duramente Paolo, arrefecendo depois: – A gente faz muita coisa errada tentando acertar. Além do mais, lamentações não resolvem coisa alguma. Tentemos localizar quem atirou por estas bandas.

O sol descia, mais e mais. Seria, aproximadamente, 17 horas.

 

O sangue descia pela perna desnuda de Marcos e uma sede incontida ressecava-lhe a boca. Pensou em gritar, mas isto poderia ser seu fim, e agora, não sabia o porquê, queria viver. Aguçou os ouvidos e certificando-se do silêncio, começou a arrastar-se pelo declive. Em cada movimento, o sangue extravasava. Com muito cuidado esfregou o alfanje numa vara, cortou-a quase serrando, fez dela um cajado e continuou seu caminho. A cada minuto as forças esvaíam-se e a dor aumentava. Ele continuava arrastando-se em direção a água. Ganhou a encosta e viu, lá embaixo, o filete de água que escorria silenciosa e calma entre folhas e raízes, insensível à torpeza que vingava em seu derredor.

O silêncio grassava. O silêncio profundo e mudo. O silêncio que pressagiava o fim, com sua presença acabrunhante e triste. Marcos parou, sintonizou-se em cada sentido: tudo era quietude, expectativa, fim. Medo, angústia, ansiedade e arrependimento, eram as únicas companhias que, qual hienas e chacais, gargalhavam e espreitavam a presa no seu labirinto de morte.

Mais e mais, a boca ressequida, as vistas meio turvas. Bem próximo, a tonteira o dominou e ele foi ao solo. Arrastou-se um pouco mais e suas mãos tocaram a água bendita. Sorveu em delírio aquele líquido com o qual Deus fizera emergir a própria vida. As vistas continuavam enubladas, a dor roia-lhe as forças e o suor gelado arrefecia suas têmporas. Num último esforço conseguiu sentar-se. Olhou para o ferimento, mas pouco viu do que a bala fizera. Passou a mão por cima e sua carne parecia anestesiada e insensível.

Volveu os olhos e os últimos raios de sol, eram-lhe milhões de arco-íris a festejar em cores, o delírio do fim.

– Meu Deus! – disse ele sumidamente, entre as abantesmas da solidão, enquanto, em sua mente, chispas de lucidez ainda vagueavam tenuemente.

Nisto ressoa nova explosão e ele cai de borco sobre a lama da margem. A água tingiu-se de vermelho e mil vozes explodiram num só tempo:

– Acertamos, acertamos…

– Parem pelo amor de Deus…

– Não atirem…

– Marcos, meu filho…

E como se em toda uma vida houvessem planejado e se organizado para um mesmo grito, policiais, José, Djanira e Paolo e seus companheiros, irromperam na barranca do riacho. Num relance de olhos, Paolo reconheceu Marcos pelas vestimentas e desceu célere ao seu encontro. Ajoelhou-se a seu lado, erguendo-lhe a cabeça moribunda. Todo exangue, lábios lívidos, olhos sem brilho, respiração ofegante:

– Paolo – murmurou ele – por que me traiu?

Paolo estremeceu e ia explicar, mas todos se acercaram, impedindo. José fitava aquela criatura e não podia vê-lo como filho, o filho que tanto amava, que corria pelas ribanceiras do Itinga e ria feliz dos passarinhos e das lagartixas assustadas; que mergulhava nas águas, alçava os jequis e pulava pelos campos como um potro, feliz por viver. Aquele menino que saía ao seu encontro, gritando cheio de felicidade:

– Pai, pai, cadê minhas balas?

E ele retirava o embrulho e entregava-o nas mãos trêmulas do menino.

Depois Imperatriz, engraxando sapatos, limpando carros e quintais.

Extático, vendo medrar no coração a angústia do desespero, sentiu as forças faltar e caiu prostrado ao lado do filho, sem sentidos, porque como dizia Sófocles: – “os mais lamentáveis dos males são os que nós mesmos criamos”.

Marcos respirava a golfadas, enquanto a saliva tornava-se escarlate pelo sangue que advinha do tiro nas costas.

Djanira, em sua debilidade feminina, gritava e seus ecos perdiam-se entre os esturros dos guaribas que anunciavam o cair da noite:

– Marcos – gritava ela entre soluços e lágrimas – não se vá, eu adoro você. Você vai ficar bom. Eu gosto de você, eu lhe adoro, meu irmão. Nunca mais farei nada de errado, eu prometo, juro…

E no meio do tumulto, os olhos de Marcos buscaram os gritos de amor e seus ouvidos ainda puderam filtrar e reconhecer aquela doce voz. Sua cabeça, num supremo esforço virou, e debaixo da neblina de seu olhar, pôde ver aquela face morena, de um anjo de Deus a fosforescer no meio da escuridão da debilidade. Os cabelos revoltos e negros resplandeciam e as lágrimas refletiam a pureza daquele amor sincero. Marcos respirou mais profundo e num impulso de sua última resistência ciciou:

– D-ja-ni-ra, fi-que com Deus. Só Ele sabe quanto a amei – e tombou a cabeça de lado para nunca mais erguê-la.

 

O pica-pau avinhado, agarrado ao tronco seco do arvoredo, repicava seu clarim anunciando o fim do dia. No eterno rodízio da floresta, o recolhimento dos diurnos e o despertar dos noctívagos. Pela floresta, fachos, tochas e lanternas seguiam pela trilha da desolação. Lágrimas contidas e soluços desolados misturavam-se aos passos trôpegos do cortejo.

Os relâmpagos cortavam as distâncias numa encenação de força e beleza – era o inverno que chegava.

No outro dia, o sol nasceria por certo e toda fauna em rebuliço voltaria a dar vida àquele mundo, dantes intocado. Os tangarás, as araras, os gaturamos, as arapongas, os papagaios, as azulonas, os papa-formigas, os jacus-taquara, as tiribas, as choronas, os pés-de-serra, as sururinas, os urus, as jacutingas, os mutuns e os jacus, os gaviões, os beija-flores, os pica-paus e toda família alada daquele ecossistema, regozijar-se-ia numa onomatopéia de íntimos colóquios.

A vida continuaria, sem dúvidas, a vida continuaria, cheia de falhas, de ganância e de injustiças sociais, a despeito dos sofrimentos, das angústias e das alegrias das pessoas, porque, para o mundo ela nada significa, mas é tudo para aqueles que ainda a detêm.

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