JABINO: o predestinado
OBSERVAÇÃO:
Dois detalhes que não devem ser menosprezados: a adaptação da linguagem dos personagens analfabetos, que se expressam como se tivessem algum estudo, e a transposição, às vezes, de uma cena para outra, muitos anos na frente, permitindo ao leitor, conclusões próprias de acontecimentos não narrados. Feitas estas ponderações, vamos à história.
APRESENTAÇÃO
Esta história envolve uma discussão que se perpetua há milênios, tendo sempre no bojo o fenômeno da predestinação. Baseado em pensadores, filósofos, profetas e no próprio Jesus Cristo, Filho de Deus, procurei manifestar, nos protagonistas de minha história, a ideia de que tudo está traçado e que, só com muito esforço e pedidos de misericórdia, pode-se demover os desígnios da Providência:
“Eu terei misericórdia com quem me aprouver ter misericórdia e terei piedade com quem me aprouver ter piedade”, diz o Senhor. “A salvação vem de Deus, não vem das nossas obras, para que ninguém se glorie” – São Paulo. “Nada pode ser determinado pelo homem, pois tudo é disposto pelo céu” – Tseng-Kuang. “O homem ri e chora conforme Deus dispõe” – Sófocles. “Tudo o que é determinado a existir e a produzir algum efeito, é determinado por Deus” – Espinosa. “O Senhor é o que tira a vida e a dá, leva à sepultura e tira dela” – Samuel. “Porque tu castigas e tu salvas, tu levas à sepultura e tu ressuscitas e ninguém há que escape da tua mão” – Tobias. “Tu lhe demarcaste os limites, dos quais não pode passar” – Job. “Ele é o que forma o coração de cada um. Não se salva o rei por seu exército, nem o gigante por sua força, senão pela vontade de Deus” – Salmos. “Tudo fez o Senhor por causa de si mesmo; até o ímpio para o dia mau” – Provérbios. “Todas as coisas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada uma foi prescrito” – Eclesiastes. “O céu arma com amor a todos aqueles a quem não quer que sejam destruídos” – Lao Tsé. “Eu sou o Senhor e não há outro. Eu o que torno a luz e crio as trevas, o que faço a paz e crio o mal” – Isaías. “…os que eu destinei para a morte, morrerão; e os que para o cativeiro, ao cativeiro; e os que para a espada, à espada” – Jeremias. “Quem é o que disse que se fizesse uma coisa, sem que o Senhor o mandasse”? – Lamentações. “Deus dá a vida àqueles que Ele quer” – Lucas. E mais adiante, falando Jesus aos apóstolos curiosos: “Ele é cego, não pelos pecados que cometeu, nem pelos pecados dos pais, mas sim, para se manifestarem nele as obras de Deus”. E ainda: “Tu não terias sobre mim poder algum se ele não fora dado lá de cima”….
Se fôssemos enumerar todas as citações célebres neste sentido, por certo ocuparíamos várias páginas. Embora isso não prove nada, cria, pelo menos, uma discussão sobre as razões fundamentais que levam os seres humanos a cometer desvarios ou a praticar atos de desprendimento incompreensíveis ao nosso raciocínio.
O desenrolar explora essas circunstâncias, imaginando um mundo irreversível em que tudo e todos, queiram ou não, estarão subjugados a uma vontade forte e peremptória.
Quando Ronaldo é tido como um caso perdido, aparece um neto mutilado que aumenta sua ira e revolta. No entanto, Jabino é um menino prodígio que, sob os auspícios de Deus, consegue devolver a paz e a amizade perdidas no seio da família. Vem, cumpre sua missão e vai embora. Coisas estranhas. Coisas de Deus.
JABINO, O PREDESTINADO é um romance com esta perspectiva. Num tempo em que os seres humanos parecem confiar mais nas coincidências, no destino ou acaso, ele vem fundamentar e lembrar que, sob o véu da obscuridade sempre há uma força maior norteando os passos dos homens. Tenta mostrar que a esperança deve existir enquanto houver vida, sem levar em conta os erros e vícios em que se está chafurdado.
Na parte íntima, na solidão de nós mesmos, somos todos iguais, principalmente em relação às inclinações e desejos da carne. Os desejos que envolvem um homem e uma mulher são muito fortes em determinada fase da vida, e somente castrando nossa própria natureza poderemos refreá-los, reprimi-los e vencê-los. Foi a armadilha deixada pelo Criador para perpetuar as espécies.
Ariel e nega Maria: um desejo sufocado debaixo da ordem dos preconceitos; Ariel e Diná: um preconceito vencido; Balbino e Emanuele: armação da vida; Ronaldo e Diná: coincidência, ou mão de Deus?
Finalmente, nasce Jabino, o predestinado a carregar nos ombros toda responsabilidade de recolocar tudo em seus devidos lugares. Vem e vai como Halley, deixando no céu o rastro lindo de sua passagem, e na lembrança, a constante certeza de que sempre há uma esperança para os seres humanos enquanto estiverem vivos.
Neste mundo, uns vêm para cumprir os mandados do céu; outros para que esses mandados sejam cumpridos.
A história não se importa, senão, em desenvolver a mística da predestinação. Lugares, datas…, são apenas ferramentas na construção da mensagem. O Autor
1
Lágrimas desciam pela face da menina. Acuada num canto da tapera, sentia-se a mais indefesa e vil das criaturas. Ainda tão nova, tão criança!
O pai fitava-a colérico e irascível. A verga de guaxima havia perdido a casca nas costas, no rosto e nas pernas de Diná: tinha mesmo esfiapado a ponta. Agarrada à bonequinha de pano, ela parecia ter, nela, a única proteção. O medo de tudo penetrava-lhe fundo, embaçando o viço de seus olhos de menina inocente. Tudo ali, de repente, tornara-se medonho e acusador.
– Deus há de castigá-la, filha devassa! Há de exigir contas e você arderá nas chamas do inferno.
E os olhos do pai chamuscavam, ardiam de ódio como se no coração daquela criança, todas as potestades do mal tivessem feito morada. E ela, acuada no canto de seu restrito mundo de miséria, não ousava elevar os olhos. Não podia entender a gravidade do que fizera, mesmo porque não fizera nada de errado. Estivera apenas falando com Paulinho na beira do riacho, longe da povoação; nada mais que isto. No entanto, ela achava Paulinho bonito e sonhava acordada em casar-se com ele. Não imaginava que isto fosse um crime tão hediondo e imperdoável.
As lágrimas desciam, escorriam cálidas pela face murcha. O pai continuava ali, postado como uma montanha intransponível, sobre a qual uma cratera expelia impropérios, fazendo murchar toda beleza de um terreno florido: o coração de uma criança pura.
– Suma-se desta casa. Não quero vê-la nunca mais, sua vagabunda. Sempre fomos pobres, mas nunca vimos cair sobre esta casa, tamanha vergonha. Jamais queremos vê-la por aqui. Suma e não diga jamais que é minha filha.
– Mãe – buscou Diná num fio de voz – a senhora também não me quer mais?
A mãe baixou os olhos, e Diná, sem fitá-los, não podia decifrar o que ia dentro deles.
– Mãe – insistiu ela vencida – para aonde vou? Mãe, estou com medo, não fiz nada, eu juro mamãe!
Mas a mãe, sempre subjugada e medrosa, sem dizer nada nem levantar a cabeça, rodou nos pés e saiu porta afora. Ali no canto, sozinha com seus infortúnios, Diná sentia-se desfalecer. Depois se ergueu do catre, com os cabelos molhados, colados na face chorosa, passou pelo pai e viu os campos eternos do destino incerto abrirem-se diante de si. O rosto estava sulcado pelos vergões da guaxima, mas tudo isto doía menos que a angústia que ora a acompanhava.
Um passo depois do outro, relva que ficava para trás, um sem fim de inseguranças. A 300 metros virou-se e viu a casinha que a viu nascer – um quadrado de estuque coberto de sapé, em que, bem ao lado, corria um filete de água cristalina. Era pouca água, mas o chuá que soava nos pedregulhos fazia parecer muita. As árvores desciam com seus ramos até próximo às pedras e os pássaros passavam horas a fio agradecendo pela vida. Ali, eles não tinham medo dos estilingues, pois Diná tinha apenas duas outras irmãs mais novas. Diná olhava. Na porta da casa, ainda com a vara de guaxima em riste, seu pai mantinha-se implacável. As duas irmãzinhas, sem imaginar o que acontecia naquele momento, perseguiam-se em algazarra pelo vau do riacho. O sabiá-da-mata desfiava, impiedosamente, suas notas tristes e intermináveis.
Sua mãe, ela não via: chorava copiosamente atrás de uma moita de espinhos. Apenas ela sentia esfacelar-se, sentia extirpar um pedaço de si naquela separação. Lembrava a filha: nove meses na barriga; um nascimento de dores numa noite chuvosa de junho de 1905; três anos de luta entre a vida e a morte, com desidratação, sarampo, coqueluche e meningite. E Deus manteve-a viva, pois, sem que ninguém soubesse, Ele dela precisava.
Depois, seu organismo criou resistência, cresceu rápido, encorpou-se, ficou uma linda menina.
Por entre os ramos de espinhos da moita ela olhava a filha ao longe, braços caídos, vestidinho de chita indo e vindo ao sabor dos ventos, como a acenar-lhe um triste adeus. Olhava-a com as mãos sangrando nos ramos espinhosos. Ela era mãe, e amor algum, senão o de Deus, pode equiparar-se ao de uma verdadeira mãe. Fosse Diná quem fosse, tivesse cometido ela o pior dos crimes, teria sempre em seu regaço, o calor e o perdão. E chorava em soluços, as mãos sangrando adormentadas, sem que ela sentisse a dor penetrante dos espinhos.
Lá longe, Diná balouçava as vestes no ritmo dos ventos, bem mais amenos do que a tempestade que avassalava seu coraçãozinho de criança.
Quando ouviu o som sumido da ordem intransigente do pai, ela acordou do estupor em que se encontrava e novamente passou a viver a realidade drástica que sobre ela se abatia. Virou-se, olhou as sinuosidades do caminho, e em passos incertos continuou a caminhar. Um passo, depois outro, mais outro… assim como fazem os animais irracionais, aqueles pés teriam de levá-la a alguma parte. Foi caminhando, pensamentos confusos, alma abatida. De seus olhos, quando em vez, despencava uma lágrima incontida, que revoluteava ao vento e ia mesclar-se à poeira do caminho. Era uma lágrima cristalina que, involuntariamente, caía no descaminho. Ela, naquele momento, parecia-se muito com aquela lágrima.
Lá longe, ao alcance de seu olhar, a azulescência do infinito parecia tocar a crosta terrestre. Por ali, certamente Deus descia para traçar o destino de suas criaturas. Justiça, crueldade, perdão, defeitos e misericórdia eram manipulados à revelia de nosso entendimento. Sobre as nossas lágrimas, em cima de nossos sofrimentos, aquém de tudo o que nos é aparentemente compreensível, Deus traça o nosso destino, porque conforme Ele dispõe, as coisas acontecem.
2
Dez de setembro de 1910. A cor cinzenta do dia não era menos triste do que a dor que estava para se abater. A Universidade Federal do Maranhão seguia, sem transtorno, seus cursos do dia. O professor de Criminologia falava sobre Direito Penal, quando viu o coordenador surgir na porta da sala de aula. Sem interromper o assunto, encaminhou-se falando até concluir o pensamento.
– O Reitor deseja falar com Ariel Ramos – explicou o coordenador com ar inconfundivelmente abatido. O professor cerrou os cenhos como a buscar alguma explicação, mas logo, envergonhando-se da curiosidade indevida, chamou o aluno.
– Ariel, por favor, o Reitor deseja falar-lhe – e decaindo em sua inata arrogância, autorizou: – pode sair.
Ariel era moço de 23 anos, segundo anista da UFMA. Inteligente e desprendido, sempre soubera separar, para si, os mais merecidos encômios pelo seu comportamento e aproveitamento escolar. Para reforçar ainda mais estas prerrogativas, era rico, loiro, olhos e cabelos castanhos. A altura de 1m80cm dividia esteticamente os 80 quilos de ossos e músculos. Era filho único de Matos Groule Ramos, de descendência francesa, e de Eugênia Scarpini Ramos, uma mulher alta e bonita, de bochechas cor-de-rosa, que nascera no Brasil um ano após seus pais terem emigrado da Itália.
Matos Groule possuía muitos bens, além de três fazendas com 6.500 cabeças de gado nelore. Uma das fazendas, com 2.000 ha e 1.200 reses, ficava 20 km ao norte da cidade de Imperatriz, no estado do Maranhão, e era cortada pela Belém-Brasília; outra, com 5.000 ha e 4.000 cabeças, estava situada a 80 km da cidade de Araguaína, no estado de Goiás e, por fim, uma com 10.000 ha e 1.300 cabeças, localizada na rodovia Transamazônica, a poucos quilômetros da cidade de Marabá.
Em cada cidade construíra uma mansão, com piscina, alamedas e jardins, onde sempre tinha conforto e lugar aprazível para descansar dos trabalhos de inspeção.
Apesar de todos estes bens, Matos Groule e Eugênia viviam intensamente a vida, não se preocupando tanto em vigiar o que possuíam. Haviam conseguido a maior das vitórias do ser humano: subjugar a ganância insaciável de sempre querer mais, própria dos seres humanos. Estavam realizados e satisfeitos com o que possuíam e raramente a conversa convergia para outros investimentos que viessem aumentar-lhes o patrimônio e, consequentemente, roubar-lhes a tão almejada paz.
Fiscalizavam as fazendas, acompanhavam as vacinações e as vendas trimestrais de gado, ouviam e pagavam os funcionários e só voltavam ali depois de várias semanas. Os demais dias eram consumidos com inesgotáveis passeios e viagens, sempre pelo Brasil. Cortavam-no de norte a sul e de leste a oeste, sempre maravilhados com as belezas naturais de seu País.
Nunca tinham viajado para o exterior, pois, tanto Matos Groule como sua esposa, achavam que o Brasil possuía coisas lindas demais, lindas e naturais para serem preteridas pelo progresso de outras partes da Terra.
Tinham por Ariel, seu único filho, o fervor de uma apostasia. Se em qualquer momento houvesse alguma preocupação, esta seria pelo filho. Ariel, por sua vez, não desmerecia. Era inteligente, aplicado e apesar de todas as tentações e facilidades, conservava-se puro e responsável.
Quantas vezes, Groule e Eugênia matutavam planos para o filho: uma noite de formatura memorável; um escritório em qualquer cidade do país que escolhesse, porém, o melhor e mais sofisticado deles; um mundo irrestrito de felicidade e de prestígio.
Ariel sabia da devoção dos pais, mas nunca fora por isto que se mantivera puro, aplicado e abnegado. Isto era dele, como um espinho que nasce involuntariamente com a ponta.
Quando Ariel despontou na porta da Secretaria, o Reitor ergueu a cabeça pesaroso, apertando um pouco as sobrancelhas. Tinha o ar de angústia e a expressão de alguém que, por mais que tente, é obrigado a se submeter a uma situação embaraçosa e desagradável.
– Com licença – disse Ariel, com fineza e mesura que sempre lhe foram peculiares.
– Entre, sente-se, por favor – e tentando arrefecer o momento, preambulou: – como anda o falatório do Dr. Castro?
– Bem mais elevado e sábio do que o meu. É um criminalista de mão-cheia.
– É…., ele é muito bom. Na semana passada conseguiu inocentar um réu confesso, provando apenas que não havia lei na Constituição para torná-lo incurso em qualquer artigo. Ele é a comprovação viva da força da retórica convincente.
Houve silêncio. Ariel farejava no ar alguma coisa desagradável, mas por mais que divagasse não conseguia chegar ao limiar da desdita. O reitor tamborilou com os nós dos dedos na escrivaninha surrada, afastou um livro que lia um pouco mais para a direita, apertou as mãos na saliência inferior da mesa e depois, olhando por cima do pequeno óculos de meia-armação, observou:
– Aconteceu uma coisa muito desagradável para todos nós, Ariel.
Ariel já estava acostumado a certas lengalengas que sempre culminavam com vultosa quantia para salvar a integridade da Universidade. Por isso, deu meio sorriso e arrefeceu com certa malícia:
– Não é a primeira vez que coisas desagradáveis acontecem – repetiu ele sorrindo, dando especial ênfase à – coisas desagradáveis.
– Tem razão, meu rapaz, só que desta vez, foi além do que você sempre pôde resolver.
– Sinceramente, não entendi – disse Ariel, descruzando as pernas que começavam a adormecer.
– Houve um acidente com o carro em que seus pais viajavam quando retornavam da praia de Salinas e…
E… – repetiu Ariel, forçando a continuidade do que parecia triste e irreversível.
– E seus pais foram levados a um hospital de Castanhal, mas sem reais chances de escapar.
– Isto significa que ainda estão vivos?
– Infelizmente, não – concluiu o reitor, enquanto via descer dos olhos de Ariel, duas grossas e melancólicas lágrimas.
3
De repente Ariel se vê só num mundo que jamais imaginou sem seus pais. Depois de tantos anos recebendo tudo de que precisava sem o mínimo esforço físico, sua desenvoltura tornara-se trôpega ante a extrema burocracia dos inventários e a total inexperiência para administrar tantos bens. Só agora se dava conta do corre-corre cronometrado do velho Groule que, além de ter tudo em ordem e controlado, ainda podia chegar ao fim da semana com um sorriso nos lábios e bons programas na cabeça. Da varanda de sua casa, Ariel ia coordenando seus pensamentos e tentando chegar a uma maneira razoável e sensata de resolver os primeiros impasses.
Um velho amigo da família – que antes sempre passava por ali para prosear com o velho Matos Groule – achegou-se silencioso em seus passos lerdos nas sandálias de pano. As casas eram contíguas e apenas alguns metros de calçada separavam as portas de entrada das duas residências.
– Boa-noite – disse ele amistosamente.
– Boa-noite – respondeu Ariel quase em sobressalto, perdido que estava em seus devaneios irreversíveis de orfandade.
– Como anda, rapaz? – continuou o velho amigo à guisa de entabular conversa.
Também nele transparecia a dor de ter perdido um grande amigo e confidente. Não saberia mesmo somar as horas em que estivera ali conversando com o velho Groule. Enquanto palitavam os dentes, discorriam sobre mil assuntos, que iam da simples criação de galinhas aos mais elevados assuntos internacionais.
Ariel disse de seus problemas, de sua inexperiência com os negócios que os pais lhe deixaram. O velho amigo ouviu, pigarreou como todo velho pigarreia e acabou deixando ali seus sábios conselhos. Quando a porta bateu e a visão do velho desapareceu, novamente os duendes da solidão invadiram o coração de Ariel. No entanto, era uma angústia diferente, uma dor com prazo marcado. Ariel tinha dentro de si o delineamento do que devia fazer.
Passou a noite lutando contra o silêncio e contra as infundadas preocupações. Queria esquecer tudo e seguir velhas lições de controle emocional; queria dormir e depois acordar, resolvendo cada problema em sua vez. Mas a tensão da espera o subjugava, retinha suas pálpebras abertas, corroíam sua resistência. Estava mais certo que nunca de que tais conselhos só funcionam mesmo para aqueles que estão livres de problemas.
Mal o dia amanheceu, saltando da cama, Ariel abriu a janela e olhou a tonalidade escarlate do sol que se espraiava na superfície azul-claro das águas do Tocantins. Era uma cor leve e suave, vinda de refrações longínquas, pois ainda não se podia ver o astro rei no alto do céu. Um bando de irerês passou gracitando ao rés da água, numa fila indiana resoluta e determinada – não pareciam estar duvidosos do que desejavam e de onde queriam chegar. Ariel bocejou, esticou os braços, fez algumas inflexões, estalou os nós dos dedos, chutou um sapato que lhe obstava o caminho e entrou no banheiro. Minutos depois já havia tomado seu desjejum no bar da esquina e rumava para o endereço que lhe deixara o velho amigo de seu pai.
Deixou a Teresa Cristina, dobrou na São Domingos, seguiu ainda pela João Lisboa até à esquina da Amazonas. Ali parou, pois apenas um beco enlameado dava seguimento. Para a direita havia três casas razoáveis. Para a esquerda, um terreno baldio, com mato alto e algumas moitas de taboas que atestavam a perene umidade do solo.
Foi depois de algum esforço que conseguiu lobrigar, no meio do mato, um casebre de aparência triste e sombria. Numa estaca em frente havia uma tabuleta rústica com um número quase ilegível pregado na porta. Ariel retirou do bolso o papel, firmou os olhos e conferiu: 1.053. Era ali, num casebre de taipa, com alguns paus como pinguela para se chegar até lá, que o velho o havia mandado. Ainda pensou um pouco em desistir, mas depois, envergonhando-se de duvidar do amigo, foi seguindo, entortando o corpo em cada passo, pois os paus eram estreitos e nem o Sul era tão oposto ao Norte, como aquela pinguela era mais contrária ao senso de equilíbrio de Ariel. Mais adiante, graças a sua instabilidade, desequilibrou-se e meteu um dos pés no pântano, deixando o branco tênis mais túmido, nojento e malcheiroso do que uma bolota de alcatrão. Ainda maldizia seu cerebelo e batia o pé na entrada da porta, quando uma velhinha aparentando seus 80 anos apareceu, mantendo as mãos sobre os olhos cansados e sensíveis à claridade:
– Bom-dia – disse ele, ora olhando o tênis sujo, ora mirando a velhota recurvada pelo tempo de vida.
– Bom-dia – respondeu ela, com a voz trêmula. O que é que o senhor deseja?
– Maria, ou nega Maria, se me permite a intimidade, mora aqui?
E antes mesmo que a velhinha respondesse, assomou-se à entrada, uma moça preta, preta e bonita como jamais Ariel tinha visto. Possuía a humildade de uma santa e a imponência de uma rainha. Apesar de negra, os cabelos eram lisos, o que chamou, sobremaneira, a atenção de Ariel. Os dentes brancos contrastavam ainda mais com a cor do rosto, e o sorriso meigo, estonteava. Por alguns minutos Ariel esqueceu-se do tênis sujo e mal pôde dizer que estava ali por indicação de um velho amigo da família. A moça, sempre humilde e quieta, ouvia tudo, esperando que Ariel terminasse para dizer alguma coisa mais sensata.
– E então? – perguntou ele, depois de debulhar toda sua história.
– Tenho algum problema – respondeu ela. Moro com minha avó e não posso deixá-la nesta idade.
– Mais algum? – tornou a perguntar Ariel.
– Não – disse ela, laconicamente.
– Contrato as duas – concluiu ele alegremente. A casa é enorme, e em três será mais fácil de a deixarmos de pernas para o ar.
– Que acha, vovó? – perguntou a mocinha, virando-se para ela com certo trejeito de quem não estava acostumada a ouvir coisas engraçadas.
– Deus seja bendito, minha netinha – foi a resposta da velhinha, triste e cansada de tanta miséria e sofrimento.
– Amanhã, bem cedo, apanho vocês e seus pertences. De hoje em diante fico apenas sem meu pai, mas ganho outra mãe e uma irmã que nunca tive – falou Ariel. E tanto suas palavras como seus olhos davam mostras de que estava sendo sincero.
4
No dia 17 de abril de 1915, Ariel casa-se com Ádila Augustine, moça bonita e rica, porém com maiores defeitos que os dotes que somara ao patrimônio de Ariel. Filha de pais sem instrução e com cinco irmãos homens de péssima índole, Ádila herdara, sem que o percebesse, o triste apanágio de ser possessiva, orgulhosa e agressiva. Não perdoava ninguém, por menor que fosse a falha de que se imaginava agravada. Pregava o moralismo absoluto, enaltecia o amor familiar egoísta e vivia com indiretas constantes até ao mais simples olhar de Ariel a qualquer pessoa do sexo feminino. Com isso, sua beleza sucumbiu, e Ariel, sem que percebesse, passou a sentir que seu casamento não vingaria por muito tempo. A cama tornara-se, para ele, um lugar indesejado, e aqueles traços perfeitos e sorriso bonito da esposa, já não o impressionavam.
Quantas vezes ficava ele a brincar com seu cachimbo, cismando na varanda, como se fosse agradável ver seus pensamentos dissiparem-se como a fumaça do tabaco. Lembrava do tempo em que conhecera Ádila: menina simples, vinda de longe, na simplicidade subjugada de quem ainda não podia insurgir-se contra o que lhe era mais forte. Mas, no âmago de seu ser, ela era dura e vingativa, prepotente e orgulhosa como seus pais e irmãos. Contudo, Ariel nunca fora além daquela boca sensual, da pele cor de jambo, dos cabelos negros que desciam quase até as nádegas sensuais.
Sentia, no início, uma atração física tão forte por ela, que jamais parou para pensar e deduzir o que tudo aquilo pudesse esconder. Queria-a como ninguém, morria de ciúmes, mas fizera um juramento de jamais o demonstrar. Ádila, porém, não sentia por ele, senão, certa admiração e fascínio pelo poder econômico que desfrutava. Era nova e, no amor, sem nenhuma experiência.
Quando completou 19 anos, subiu ao altar e assinou seu casamento. A essa altura, já não sabia se gostava ou não de Ariel. Desincumbia-se apenas das obrigações que sempre cercam os matrimônios. Com o tempo, porém, tudo o que se encontrava sufocado nela, começou a sair, como se a pressão e o tempo já não dessem mais para ser contidos. A qualquer observação de Ariel ela repelia com palavras ásperas e duras e jamais se calava, até que seu marido, não suportando mais tanto falatório, abria a porta e, desolado, saía. Apesar de todos esses contratempos, engravidou, e no dia 30-01-1916 deu à luz um garoto que batizaram com o nome de Ronaldo.
O filho havia sido uma opção a dois, como última instância para melhorar o relacionamento e salvar o casamento. Esqueceram-se, no entanto, de que nem uma prole como a de Abraão melhoraria nada, pois o orgulho e a prepotência subjugavam qualquer propósito. Um não aceitava qualquer observação vinda do outro e, nestas circunstâncias, sem humildade e vontade de mudar, até Deus desiste. Era uma força de orgulho peremptória, um melancólico objetivo irreversível, um ponto de honra que teria de ser alcançado, ainda que fosse sobre os escombros da dissolução.
Ariel sentia o problema, sofria bastante, mas também não cedia. Fazia o que achava certo e o que desejava fazer, e quando acordou de seu pesadelo, viu-se entre quatro paredes, dentro de sua própria casa, ladeado de sua mulher e filho, tratado como um estranho indesejado. Ádila apenas separou o pouco de sentimento que parecia residir em seu coração para Ronaldo, não restando para Ariel, mais que recriminações e constantes reclamações.
Nega Maria, agora com 46 anos, continuava quieta e prestimosa. Dois anos depois de ter vindo trabalhar com Ariel, perdeu a avó, mas nem isso mexeu com a sua maneira de ser. Ainda estava bonita e discreta. Sempre quando Ádila saía, Ariel sentava-se numa cadeira e ficava a conversar com ela, dizendo de seus problemas. Nega Maria só tirava os olhos das peças de roupa que passava, lá uma vez ou outra e se muito o exigia a pergunta, respondia com curtas e precisas frases:
– Não sei o que seria de minha vida sem você, minha nega! Foi Deus que a pôs no meu caminho. Às vezes fico imaginando esta casa sem você…. É, não daria para suportar. Por que a vida tem de ser assim, hein minha nega? Ela tirava os olhos do pano e o fitava ligeiramente.
– E assim mesmo, seu Ariel.
– Mas podia ser diferente. Veja só: tenho dinheiro, muitos bens, um filho cheio de saúde…. Com quatro anos, já parece um rapazinho, não acha?
– É.
– Minha mulher é bonita. Por que a gente não se entende? Sabe, minha nega, bem que ela podia ser como você.
Maria não tirou os olhos da jaqueta que passava. Apenas parou, por uma fração de segundos, o movimento de vai-e-vem do ferro de engomar. Foi como se uma de suas curtas e perfeitas ideias, como um relâmpago, tivesse passado por seu cérebro. Muitas vezes, principalmente depois que perdeu a avó, ela ficava acordada, enterrada no colchão macio, abraçada ao felpudo cobertor, pensando coisas de que morreria de vergonha se tivesse certeza de que o próprio Deus soubesse. Era moça sadia, cheia de vida e emoções, mas não concebia que isso fizesse parte da decência de uma moça preta e pobre. Por isso evitava fitar Ariel nos olhos e sempre procurava ouvi-lo cabisbaixa. Tinha pelo patrão verdadeira veneração e só Deus sabe quantos esforços fazia para aliviar a carga que sentia pesar nos ombros dele.
Quando Ádila, numa de suas eternas e constantes investidas temperamentais, ofendia Ariel, ela sentia. Sentia como talvez não sentisse uma prestimosa mãe. Houve dias em que correu para o quarto e chorou, chorou de pena. Achava desumano o que Ádila fazia e nunca pôde entender a razão de um homem inteligente, e aparentemente dono de si, submeter-se a tantas humilhações.
Maria estava tão perdida em seu mundo fechado, que mal ouvia o que lhe dizia Ariel. Ele sabia que ela quase não conversava, mas a fumaça que começava a subir da jaqueta, chamou-lhe a atenção.
– Está queimando a jaqueta! Maria, Maria! …
Ela virou-se de chofre, olhou para mil lados ao mesmo tempo e depois, desandou a chorar.
– Por que chora, Maria?
Ela olhava a jaqueta queimada, perdida em seus simples pensamentos.
– Ora, ora! Deixe pra lá, minha nega. Ainda que queimasse a casa inteira, eu não ralharia com você. Será que ainda não percebeu isto?
– Não faça isto comigo, Sr. Ariel!
– Mas, fazer o quê?
Novamente ela baixou os olhos, enquanto segurava nas mãos a jaqueta com um perfeito sudário do ferro de engomar. Foi exatamente neste momento que Ádila entrou com Ronaldo, vindos do mercado:
– Sempre o casal de pombinhos emotivos em confidências, hein?
– Não seja maldosa e picante, Ádila. Se não consegue respeitar-se, respeite ao menos os outros.
– Eu sei como são os homens – perfeitos e desenvoltos urubus.
– Ádila – vociferou Ariel, quase fora de si – eu exijo que você respeite Maria. Sempre suportei suas indiretas e seus insultos, mas não admitirei que humilhe nega Maria, que foi para mim, mãe e irmã, desde o dia que a encontrei.
– Por favor – disse, apenas sumidamente, Maria.
– Deixe pra lá, minha nega. Tanto você como eu já a conhecemos bem.
– Conhecem e ainda não criaram vergonha.
– Ádila, nunca mais diga isto, ou não me responsabilizarei mais pelos meus atos.
Num canto da sala, Ronaldo, com seus tenros quatro anos, escutava assustado a discussão dos pais. Seus olhinhos arregalados e medrosos mantinham-se cravados nas fisionomias furibundas dos pais. Logo que Ariel percebeu, conteve-se. Depois dirigindo-se a ele, contemporizou:
– Oh, meu filho, perdoe a gente! Não sabemos o que estamos fazendo com você. Desculpe-nos, sim? Venha cá, vamos lá fora. Quero mostrar a você os botos do rio.
– É, vai paparicar o menino, vai! Mas não adianta encher a cabeça dele, não. Ele sabe o pai que tem.
Apertando-o contra o peito, Ariel mantinha as mãos sobre os ouvidos do menino, tentando impedir, de todas as formas, que mais se agravassem os traumas.
Na beira do rio, em cima de um barco, eles ficaram olhando as águas do Tocantins que corriam serenas para o mar.
– Pois é, meu filho, você é tudo que me resta neste mundo. A gente erra tanto, meu filho, e nem sempre pagamos sozinhos pelo que fazemos. Sue mãe e eu não nascemos um para o outro. Foi um erro que aconteceu. No entanto, a gente ama você muito, muito mesmo. Sabe, meu rapaz, é por você que ainda estamos juntos. Você é inteligente e sabe avaliar o quanto é importante para nós, não sabe?
O menino, sentado nas pernas de Ariel, olhava o rio que corria. Como era de se esperar, não perguntou pelos botos que tinham ido ver. Apenas olhava sem ver, assim como tantos homens que, tendo ouvidos, não ouvem, apenas escutam.
Ariel imaginava o que significava para aquela cabecinha dependente, o clima hostil de sua casa. Sabia que não era nada bom, mas não podia imaginar a sensibilidade do receptáculo. Sim, porque cada pessoa no mundo é um universo diferente. O mesmo remédio não cura todas as pessoas afetadas pela mesmo infortúnio.
– Meu filho – falou carinhosamente Ariel, puxando-o contra o peito – você gostaria de começar a estudar?
O menino virou-se de repente e respondeu, como se a resposta já estivesse ali para ser dada há muito tempo:
– Jura que me leva, pai?
– Juro, sim, filho. Acho que isto vai fazer-lhe muito bem. Não entendo muito de crianças, meu filho, mas sei que a companhia que desfruta de sua mãe e de mim não lhe é benéfica. Deixe que a gente resolva nossos problemas: são coisas de gente grande, entende? Os homens são bichos complicados, mas gostam muito de crianças. Até o pior dos homens, com raríssimas exceções, dá a vida pelos filhos. Ariel dispôs-se a receber um abraço, mas Ronaldo, embora nem soubesse o motivo, esquivou-se, saltando-lhe alegremente dos joelhos.
Pouco tempo depois Ronaldo era aluno assistente de uma escolinha infantil. Nega Maria acompanhava-o, assistia-o em tudo que se fazia mister: arrumava os caderninhos; preparava-lhe os lanches preferidos; ajudava-o nas tarefas; punha-o para dormir. Por isso, não demorou para que ele sentisse mais a ausência dela, do que a da própria mãe, que quando se interessava por ele era para reclamar da desatenção e da roupa suja. Ádila daria a própria vida pelo filho, mas simplesmente para provar sua possessividade e direito. Ela mesma, talvez, não pudesse explicar estas coisas e quiçá, não fosse nem tão culpada. Foi uma semente que nasceu e sendo figueira, não podia produzir uvas.
5
Num sábado nublado, cinzento-escuro e quieto, Ariel lia, desaprovando, um célebre romancista brasileiro que insistia na vulgaridade de termos prostibulares. Ele nunca concordara com palavras chulas para narrar acontecimentos amorosos, ainda que escusos, pois achava que um livro devia estar imbuído de termos mais correlatos, segundo a moral e a educação. Até aceitava, como arte, nos teatros com clientela selecionada, mas discordava nos livros, expostos a qualquer jovem ou criança. Sempre achou o sexo uma ferramenta posta a serviço da perpetuação das espécies, jamais como motivo de prazer sem decoro. Esquecia-se, no entanto, que da boca sai – e por vezes dos dedos – aquelas coisas que soçobram no coração. Uma pessoa culta, segundo ele, não devia usar gírias, termos mesquinhos e vulgares, assim como não devia transcrever – ipsis Iitteris a maneira incorreta com que um analfabeto se comunica. O autor devia traduzir a linguagem errada das pessoas que não quiseram ou não tiveram chances de estudar. Dizer de uma maneira simples, mas correta. Assim, estaria dando sua contribuição à cultura e à educação, já que a classe política nunca se desviou da prioridade do poder. Em determinado momento fechou o livro, lançando-o com certo desdém sobre a mesinha de centro. Ádila, que neste dia parecia ter dado uma trégua a si própria, observou:
– Não está gostando?
– Não. É muito termo baixo para uma pessoa só.
– Isto é arte. Já Ii algumas obras assim e acho que devem ser escritas conforme os protagonistas dizem e fazem.
– Pode ser – observou Ariel – mas de qualquer forma, não gostaria que livros assim fossem lidos pelo meu filho.
– Você sempre foi um quadrado, um conservador ultrapassado, um moralista de meia-tigela.
– Essas coisas ficam, Ádila. O autor se vai, morre, mas suas obras rompem os séculos, disseminando o mal ou o bem que contêm. De qualquer forma, não invejo tais obras. Ainda acredito em Deus e sei que cada mal que uma obra causar a alguém, até o fim dos tempos, será cobrado com juros e correção de quem o praticou.
Ádila ficou calada, matutando. Ariel completou seu pensamento:
– Veja, por exemplo, como um bom cristão fala de sexo, de coisas aparentemente imorais, com singeleza e amor. Ele consegue deixar puro o que é puro, pois nada há de errado no que Deus estabeleceu para a perpetuação das espécies. Este autor, no entanto, amesquinha o sexo, dá-lhe caráter de devassidão e de pecado. Além do mais, com termos baixos e inexistentes em nossa própria língua vernácula. Nada tem a ensinar. A meu ver, a censura devia cuidar disso ou, pelo menos, limitar a propagação de tais – obras de arte.
– Mas você gosta quando o viro pelo avesso, não gosta?
Ariel ficou calado. Ádila continuou:
– São resquícios da Semana Santa. Amanhã não pensará mais assim. Por falar nisto, vai às cerimônias da meia-noite?
– Acho que não. Perder noites, ou mesmo horas de descanso, não é comigo.
E enquanto conversavam em um de seus raros momentos de paz, Ronaldo batia com um martelo, desmontando um velho carrinho de madeira. Ádila desviou os olhos e observou:
– Ronaldo, deixe de fazer barulho e vai concluir sua tarefa.
– Então manda nega Maria ajudar-me – retrucou ele, sem desviar os olhos daquilo que fazia.
Nisto, Maria passa pela sala, no seu vaivém contínuo, carregando dezenas de peças de roupa para serem passadas à noite. A vida de nega Maria não estava sendo fácil. Era uma correria contínua. Sempre submissa e calada, realizava o que estava a seu alcance. Ia dormir tarde, depois de arrumar a cozinha e passar as roupas. Há muito se fazia mister uma auxiliar. Foi quando a campainha soou.
Era uma menina que aparentava seus 16 anos, muito sofrida e dependente. Tinha os olhos negros e tristes e a pele morena. Os cabelos negros e malcuidados desciam-lhe pelos ombros. Ainda não se podia ver nada de muito gracioso. Sobre o corpo, um vestido de chita muito sujo; no semblante, todo o medo de um animal silvestre acuado e faminto. Nega Maria atendeu, voltou e falou em voz alta, sem se dirigir especialmente a ninguém:
– E uma mocinha que pede comida e emprego.
– Mande-a entrar – falou Ariel.
Ádila não fez qualquer objeção. Parecia mesmo algum milagre da Páscoa. Nega Maria ainda esperou um pouco para certificar-se da última ordem e depois, bastante surpresa, dirigiu-se à porta de entrada.
– E para você entrar – disse ela com a afabilidade das pessoas que também sofrem na vida.
Muito desajeitada, a menina entrou. Quando desembocou na sala, em meio a poltronas, tapetes, aparelhos eletrodomésticos e abajures, não parecia mais saber o próximo passo a dar. Logo que Ariel pôs os olhos nela, entendeu a angústia e a dependência que lhe ia à alma. Por isso, antes de qualquer coisa, autorizou nega Maria:
– Leve-a à cozinha, dê-lhe comida. Mostre-lhe o banheiro e veja se consegue alguma roupa que Ádila não usa mais – e virando-se para a esposa, buscou-lhe assentimento:
– Você não se importa, não é mesmo Ádila?
– Claro que não – limitou-se a dizer a mulher.
Quando a menina saiu acompanhada de nega Maria, Ariel falou:
– Não havendo nada em contrário, ela poderá auxiliar nega Maria na casa. Afinal, é trabalho demais para uma pessoa.
– Pode ser. Parece-me, no entanto, que não sabe fazer nada e é muito nova e estabanada.
– Nega Maria a ensinará.
– Nega Maria sabe tudo – acentuou Ádila, com um tom de malícia.
Ariel fez-se de desentendido e retirou-se para o banheiro social. Depois voltou, entrou na biblioteca e saiu com um novo livro na mão. Afundou-se no estofado e começou a ler.
Quando nega Maria, uma hora depois entrou na sala, quase o livro caiu das mãos de Ariel. A menina, num vestido de seda amarelo que Ádila possuíra, ainda quando solteira, com os cabelos negros molhados e limpos, a fisionomia menos triste e o perfume suave de alfazema infestando o ar, parecia uma miragem descida do céu. Nada havia mais perfeito e belo para os olhos e senso de beleza de Ariel. Ádila também, ao levantar a cabeça, entreabriu a boca, estupefata.
– Sente-se – falou Ariel, deveras inebriado. Depois, arrumando a voz, arguiu:
– Como se chama, menina?
– Diná Correa.
– Está procurando emprego?
– Sim.
– Onde moram seus pais?
– Na roça.
– Em que roça, em que lugar?
– Aqui perto, do outro lado do rio, na Axixá de Goiás.
– Seus pais sabem que está procurando emprego?
Diná emudeceu por momentos, depois, retomando a voz, assentiu:
– Foram eles que me mandaram.
– Bem – observou Ariel, montando os lábios em sinal de duvidosa decisão – você fica. Nega Maria dividirá os serviços desta casa com você. Logo que puder, quero conhecer seus pais. Se tudo que disse é verdade e você cumprir com seus deveres, terá o emprego pelo tempo que desejar. Agora pode ir, com o tempo acertaremos outros detalhes.
Nega Maria tomou-a carinhosamente pelo braço e saíram. Ádila, sempre extravasando pela boca o que lhe sobrava no interior, voltou à sua normalidade mordaz:
– Isto não está me cheirando nada bem!
– É alfazema – pilheriou Ariel, não deixando de devolver o que lhe vinha sempre com o gosto acre da malícia.
E mal se passaram algumas semanas, Ádila, enraivecida de ciúme, não parecia ter mais tempo para dar vazão a seu espírito doentio. Se com nega Maria já vivia com indiretas, agora com Diná ia ao delírio. Encontrava, em cada palavra, em cada olhar, ordem ou pedido, uma insinuação. O clima piorava cada vez mais e Ariel via-se, a cada dia que passava, numa situação extremamente delicada e desagradável. Por ele já teria resolvido tudo, acabado com toda aquela farsa. Mas, além da grande responsabilidade, da dependência de Ronaldo e da hipócrita vigilância de uma sociedade deteriorada, ele ainda via, sem reservas, que era responsável pelos seus atos; que se casara por que assim o quisera e que não tinha o direito de desatar aquilo que Deus uniu.
Com o agravamento da situação, sexo era algo que não acontecia naquela casa, o que, de certa forma, confortava Ariel. Há muito encontrava nos intercursos, verdadeira prova à sua virilidade. Não sentia nenhum desejo, nenhuma atração por aquela mulher possessiva que só o interpelava para dizer-lhe que era um homem interessado e fingido. Foi neste estado de coisas que Diná, um dia, encontrando-o só, justificou-se:
– Sr. Ariel, naquele dia que cheguei aqui, menti para o senhor.
– Mentiu?
– Sim. Meus pais não me mandaram procurar emprego, não. Eu fui posta para fora de casa. Meu pai expulsou-me.
– E posso saber por quê?
– Porque eu estava conversando com Paulinho na beira do riacho, só nós dois, e ele achou que a gente estava fazendo saliência.
– E foi só isto mesmo?
– Foi sim, senhor Ariel.
– E disse isto a seu pai?
– Disse, mas ele não acreditou.
– E como posso saber que está dizendo a verdade agora?
– Eu não estou mentindo para o senhor.
– Obrigado Diná. E muito bom saber disto.
– O senhor é uma pessoa maravilhosa. Nega Maria me disse que não fosse pelo senhor, ela já teria ido embora.
– Ela, cara Diná, além de uma pessoa suspeita para tecer comentários a meu respeito, ainda é uma santa.
– É mesmo.
– E você, está gostando daqui?
– Eu penso como nega Maria. Enquanto o senhor quiser, irei ficando por aqui.
– Não quer voltar para casa?
– Lá ninguém gosta de mim.
– Nem sua mãe?
– Ela… bem, acho que gosta, mas é como o senhor, deixa que só papai decida as coisas.
– Você pensa assim de mim?
– É que o senhor é bom demais.
– Você ainda é muito menina para entender as razões que norteiam a vida de um homem maduro que pensa saber o que quer da vida, Diná.
– O senhor acha-me uma criança?
– Assim como você me considera um senhor, Diná.
– É que tenho de respeitar. Lá em casa, papai sempre obrigava a gente a tratar os mais velhos assim.
– Não tem importância…
E enquanto conversavam, Ariel olhava para Diná. Agora, bem nutrida e asseada, parecia uma dama. Atrás daquela maneira simples de dizer as coisas, havia a graciosidade e a beleza das flores silvestres. Ariel sentia um desejo muito forte por ela, mas não queria nem pensar que pudesse haver algo mais íntimo entre os dois. Afinal, ela era uma criança com 16 anos incompletos e ele, um homem casado que bem poderia ser seu pai.
6
As constantes indiretas de Ádila sobre Ariel e Diná, acabou criando neles a ideia da possibilidade. Na verdade, não fosse a própria mulher, Ariel não passaria por cima de tantos princípios que sempre nortearam sua vida.
Ádila tornara-se a mulher ideal e rara que tantos homens célebres, políticos, generais etc., impotentes pela preocupação científica ou por problemas psicológicos e ocupacionais, procuram. Não tinha necessidade de sexo e sabia, com especial tato, evitar que Ariel pensasse de maneira diferente. Tornara-se uma figura ilustrativa, uma rainha de país republicano, um tijolo indispensável, apenas, na construção da família. E, não obstante Ariel sentisse a cada dia que sua falta de exercício sexual o debilitava, não conseguia desvencilhar-se da fria teia em que sua mulher o enlaçava.
Ádila vivia recriminando-o por crimes da própria mente, porque conhecia o sangue que corria nas veias do marido. Muitas vezes, não suportando o celibato forçado e sabendo-se um homem casado, Ariel dava mostras de desejo. Mesmo assim, Ádila sempre encontrava uma palavra mágica para destruir qualquer pretensão possível de sexo. E nunca precisou, para isto, mais do que breves palavras.
Diná tinha por costume não trancar a porta do seu quarto para nada. Ao trocar de roupa ou dormir, apenas a encostava. Ádila repreendia-a por isto, dizendo que aquilo era intencional. Ariel contestava e, como sempre, novos desentendimentos aconteciam.
Assim, pela insistência do falar, tanto na cabeça de Ariel como na de Diná, um mundo de ilusões começou a tomar forma. Primeiro, alguns olhares furtivos; depois, uma maneira diferente de pedir ou perguntar alguma coisa. Enfim, num dia de fevereiro, quando Ádila fora cedo com Ronaldo e nega Maria para a fazenda, e por fortes chuvas não puderam regressar, Ariel viu-se, de repente, com toda oportunidade possível para saber o que Diná pensava dele. Ela estava espanando a sala quando Ariel entrou, sentou-se e a chamou:
– Diná, por favor, pare seu serviço um pouco e sente-se aqui.
Ela obedeceu temerosa. Sentou um pouco distante e ficou a arrumar as penas de ema do espanador, como meio de distrair as mãos. Ariel olhou-a amiúde, deu um leve suspiro e depois disse:
– Nós ainda não fomos conhecer seus pais e há quase um ano está aqui.
– Conhecer meus pais e tão importante assim?
– Não, não é, mas pensei que você gostasse.
– Prefiro não ir. Papai não me receberia.
– Está bem, esqueçamos isto então.
E dando-se por satisfeito com o prefácio, perguntou:
– Vejo que Ádila persegue bastante você e, no entanto, nunca falou em ir embora.
– É…., eu não gostaria de deixar esta casa.
– Posso saber por que gosta tanto daqui?
– Pelo senhor e por Maria.
– Acha justo que minha mulher diga que estou interessado em você?
– O senhor é homem.
– Sim, e daí?
– Os homens sempre procuram as mulheres.
– Mas você é uma criança, pelo menos em relação a mim.
– Em relação ao senhor, talvez.
– Se um homem como eu dissesse que estava interessado em você, como se sentiria?
– Sou uma moça pobre. Jamais um homem rico e estudado iria gostar de mim de verdade.
– A idade não lhe importaria?
– Não.
Ariel aproximou-se, escorregando-se na poltrona e tomando as mãos de Diná. Ela ficou enrubescida e desconcertada.
– Sua mulher pode chegar a qualquer momento, senhor Ariel e….
– Ela não virá esta noite. As chuvas derrubaram o pontilhão da entrada da fazenda. Já passou um rádio avisando.
– Vamos ficar sozinhos aqui, esta noite?
– Sim, a menos que eu vá para um hotel.
– Não, o senhor fica. Conheço uma amiga que mora logo no outro quarteirão. Ela não fará questão que eu passe a noite lá.
– Pode ser – ponderou Ariel. Aliás, acho uma medida muito sensata de sua parte. Do jeito que Ádila é, jamais irá acreditar que nos comportamos bem, estando aqui sozinhos.
Ariel falava sem soltar as mãos de Diná que, um tanto trêmulas, começavam a mourejar. Depois, levou a mão direita ao rosto de Diná e sentiu-o afogueado.
– Sente alguma coisa por eu estar tão perto de você, Diná?
Ela baixou os olhos e, nunca, um silêncio dissera tanto. Num impulso, também quase incontrolável, Ariel puxou-a para si e a beijou com a sofreguidão de um homem de sua idade, cuja vida celibatária nunca fora tão prolongada, nem mais sufocada.
Diná esmoreceu tomada por uma sensação que jamais experimentara. Ela, uma menina-moça desperta de sua libido por um homem experiente e apaixonado, ia e vinha em cada sopro que varria seu rosto, num delírio que não imaginara existir dentro de si.
Desde que Ádila pressupôs a possibilidade de algo entre eles, ela ficava abraçada ao travesseiro, olhar perdido na estamparia do lençol, como se pudesse dar vida àquelas flores e desenhos, transformando tudo num jardim todo seu. E seus pensamentos divagavam: a palhoça triste de Axixá; o olhar torvo de seu pai enraivecido; as irmãzinhas inocentes que passavam o dia às sombras das árvores que ladeavam a pequena cachoeira e a mãe taciturna e melancólica, cuja existência parecia não ter nenhum significado. Ela nascera e crescera debaixo de sua própria vigilância. Depois, as ilusões de sua nova estada. Que Ariel jamais soubesse quanto ela sonhou com aquele momento e quanto já o havia apertado e acariciado na imaginação ilusória da cama. Não, ele jamais poderia saber disto. Ela era muito nova. E quando Ariel afastou-a um pouco ao alcance de seu olhar, percebeu que uma lágrima escorria pelo seu rosto, como se fosse uma gotinha de orvalho deslizando sobre uma tenra folha de alface.
– Magoei você, Diná?
– Não, não foi nada.
– Mas está chorando.
– Não sei o porquê, mas não é de tristeza não.
– Melhor assim, menina! Não me perdoaria se tivesse sido a causa. Desculpe-me, sim? Foi um momento de irreflexão, de impulso. Na verdade, acho você bonita e atraente, mas não tenho o direito de tocá-la, pelo menos sem seu consentimento. Prometo controlar-me daqui para frente e….
Antes que completasse o que ia dizer, Diná, num ato ainda mais impulsivo, saltou-lhe ao pescoço e em sua simplicidade, apenas disse:
– Leve-me para cama; faz amor comigo.
Devia ser qualquer hora depois da meia-noite, quando Ariel despertou e se deu conta da realidade. Olhou ao lado: no lusco-fusco da tênue claridade do quebra-luz, viu a face serena de Diná que dormia. Parecia existir tanta paz naquele rostinho que Ariel não pôde mais duvidar do que o próprio São Paulo dissera: “Porque nós sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade contra aqueles que tais coisas fazem”.
Dir-se-ia que Deus pairava sobre o ambiente, como se aquilo estivesse escrito e devesse ser cumprido. Tantas vezes Deus, o Senhor de tudo, endurecera corações, criara malfeitores, lapidara empedernidos, fizera e desfizera as coisas com o fim único de provar sua hegemonia sobre as criaturas humanas!
Ariel pensava sobre essas coisas, sobre sua vida, o futuro incerto… Querendo ou não, tivesse ele feito coisas certas ou erradas, metendo-se sob o cobertor ou acendendo a luz, Deus estava ali, bem perto, dentro de cada célula, vagueando em cada neutrino.
Enfim, abanou a cabeça: o que tinha a fazer, fez; e o que estava feito, não podia jamais ser apagado. Diná estava com o semblante cheio de paz. Parecia feliz e agradecida com o prazer que a vida lhe proporcionara. Em sua cabeça não havia lei para incriminá-la. Continuava pura como um anjo dos céus.
Ariel passou a mão de leve no rostinho de Diná que suspirou, deu um leve gemido e estendeu a mão sobre ele, como se estivesse habituada a tudo aquilo. Apertaram-se, acariciaram-se e sem dizer uma única palavra, amaram-se, mais uma vez, com a força e o prazer das coisas proibidas. Depois, despertos totalmente, ficaram a conversar. Afinal, havia muita coisa a combinar, pois, por bons atores que fossem, a vida deles não seria mais como antes.
– Lembre Diná: nada houve entre a gente.
– Vai ser difícil. Você não vai mais ficar comigo?
– Não é isso não, meu anjo. Na verdade, quase todos os problemas que sempre afetaram o homem e a própria humanidade, sempre se deram num curto minuto de irreflexão. O nosso momento também se deu quase assim e não fugindo à regra geral teremos, agora, o resto da vida para tentar, inutilmente, consertar o que fizemos de errado. Como disse Lutero: “Aqui estou, não pude evitá-lo. Deus me ajude”.
– Está arrependido?
– Infelizmente, não.
– Se quiser que eu vá embora, eu irei.
– Não fale assim. Jamais fui um santo, contudo, sempre pude assumir os meus atos. O que foi feito, está feito. Além do mais, com você ou com outra, isto estava prestes a acontecer. O celibato para um homem casado e sexualmente normal, não é tão fácil como Ádila imagina.
– E como vamos nos encontrar daqui para frente?
– Você ainda é muita nova, meu anjo, mas aprenderá logo como encontrar meios e lugar para a gente se amar. Quando queremos alguma coisa, principalmente possível, ela acontece. Quero apenas que fique tranquila e não se deixe levar por qualquer impulso. Faça de conta que tudo continua como antes e se, por um acaso, tudo vier à tona, eu não a deixarei no meio do caminho. Tenha paciência e deixe as coisas e os problemas comigo.
Ainda o dia não tinha amanhecido por completo quando Ariel chegou à fazenda, preocupado e feliz. Ádila acordou, olhou assustada para o marido e observou:
– Hein?! Que houve, que bicho o mordeu? Em todo tempo de casado, nunca o vi tão preocupado com a gente! Que o fez enlamear-se e caminhar a pé do pontilhão até aqui?
Naquela manhã, enquanto o gerente da fazenda restabelecia a passagem, Ariel deitou-se e numa modorra teve um sonho: via um incêndio devastador em sua fazenda e as labaredas, misteriosamente fechavam o cerco no meio da pastaria. Bem no centro, havia apenas três reses: a vaca de raça que adquirira numa exposição, seu bezerrinho e uma novilha comum, preta, da qual jamais se desfizera, por tê-la ganho de um amigo muito especial. Na parte em que se encontrava, havia um igarapé que poderia facilitar-lhe o salvamento das reses, mas uma força estranha impedia-o de agir. O bezerro corria amedrontado, da vitela à mãe, sem saber em qual delas agarrar-se naquele momento drástico. A novilha preta, continuava impassível, vendo as labaredas aproximarem-se, enquanto a vaca branca debatia-se espavorida, mugindo, berrando e correndo de um lado para outro. Ele olhava atônito – parecia-lhe que permitia aquilo, que se quisesse salvar as reses, conseguiria, mas ao invés disto, permanecia impassível, vendo o fogo acercar-se mais e mais. No meio das labaredas, num galho de alfarrobeira, um sabiá cantava feliz, alheio ao calor, às chamas e a toda desdita. De repente, olhou-se e viu-se em chamas: ele era a própria chama que devorava suas pastarias, sem arder nem se queimar. Tudo era lambido pelas chamas, menos ele, a alfarrobeira e o sabiá.
Quando Ronaldo passou correndo pela sala, Ariel despertou. Estava todo molhado de suor e por rápidos momentos correu os olhos em busca das chamas. Tudo, porém, estava calmo e tranquilo.
7
Quatro meses depois Diná descobriu que estava grávida. Ariel ouviu-a calado, numa demonstração de frieza que em nenhures existia dentro de si. Numa fração de segundo ele pôde antever tudo o que estava prestes a acontecer. Diná, porém, não enxergava um palmo além do nariz. Parecia contente e dizia que nunca se sentira melhor. Quando começou a desabotoar a camisa de Ariel, este lhe cobriu as mãos e disse, tomando então um ar de grande preocupação:
– Sabe, exatamente, o que isto significa?
– Nem quero imaginar agora. Prefiro deixar que as coisas aconteçam em seu tempo. O amanhã só saberei como será, depois que ele chegar. Acontece que estou vivendo no hoje e ele pode me dar muita alegria e felicidade. O mal de muita gente é viver preocupado com o momento seguinte.
– O amanhã, Deus proverá – lembrou Ariel sem muito entusiasmo.
– E isso aí, amor. Se a gente ficar sempre preparando o amanhã, nunca viverá o hoje completamente. Depois, o amanhã chega e a gente continua pensando mais adiante, e assim, a vida passa e a gente não vive o presente. Se eu estivesse triste agora me punha a chorar; acontece que estou feliz, tenho você aqui pertinho de mim e isto é tudo que eu quero, pelo menos neste momento.
– Diná, a gente tem que pensar. Tentar esconder sua gravidez é o mesmo que encerrar-se num quarto escuro, imaginando que o sol não vai nascer. Mais um ou dois meses, todos perceberão e então virão perguntas, desconfianças e problemas.
– Não se preocupe, amor, não vou prejudicá-lo.
– Não percebe que isto significa a nossa possível separação?
– Bem, já que você insiste no futuro, diga-me: o que pretende?
– Você quer ter este bebê?
Diná, além de quase criança, não era, de fato, de muito pensar. Tinha sua maneira simples de ver as coisas e procurava não complicar nada. Nunca tivera muitos motivos para isso. Assim sendo, foi rápida e curta na resposta:
– Tanto faz.
– Parece-me que respondeu sem pensar. Não vê a gravidade do problema?
– Você vê? – perguntou ela com um sorriso carregado de certa malícia.
– É uma vida que está para surgir, Diná.
– E quem garante que mais tarde ela não irá dizer que preferiria não ter nascido? Conheço tanta gente assim!
Ariel lembrou-se de coisa semelhante dita pelo próprio Jesus Cristo em relação a Judas que o haveria de entregar, e também às pessoas que poderiam servir de escândalos aos pequeninos. Contudo, para sua consciência, isto não era justificativa. Sabia que se Diná se submetesse ao aborto por conta própria, nada haveria de errado, pois esta seria uma atitude que sua mente não recriminaria, mas ela jamais faria isto sem sua orientação. Sabia também que se a induzisse indiretamente a isto, não estaria livre dos vergastes de sua consciência, já que a Deus ninguém engana. Achou, por isto mesmo, que ainda não estava pronto para escolher a melhor opção para resolver o problema. Contemporizou:
– Demos um tempo, Diná. Vou pensar melhor como amenizar a situação, fica bem assim?
– Claro, amor. Não fique preocupado não, pois jamais lhe serei estorvo. Nunca tive nada na vida antes de conhecer você. Pode pensar e conte comigo para tudo o que lhe for melhor.
Ariel fitou-a enternecido. Quanto desejou ser livre naquele momento para assumir seu erro. Sabia que Diná era estabanada, quase irresponsável, bem diferente da primeira impressão que tivera, mas era assim que ela lhe fazia bem. Gostava de simplicidade, e a imponência de Ádila – sempre prepotente e superior – causava-lhe grande mau-humor e até mesmo repulsa.
– Gosto muito de você, Diná. Percebo agora que não sairei ileso desta aventura. Irei apenas procurar a melhor saída, pois sinto que, qualquer uma que eu escolher, não será a ideal. O mal já está feito e é irreversível.
– Você dramatiza demais, Ariel. Nunca viu uma mulher grávida? Nunca soube de um aborto? Não vê, todos os dias, desgraças e mais desgraças assolando o mundo? Nunca soube de homens casados que tivessem amantes e filhos com elas? Nunca viu casamentos desfeitos? Alguém morreu por isto? Ora, Ariel, tem momentos que penso que estudar, saber das coisas e das leis, só acarreta desconforto e desassossego. Prefiro ser norteada pelos princípios da Natureza, assim como os outros animais que não pensam. Lá em casa a gente criava galinhas. A choca mariscava, chamava os pintinhos, insistia para que comessem, acalentava-os nas noites chuvosas e frias…. No entanto, se algum pintinho enfraquecia ou ficava doente, era deixado para trás e acabava morrendo. A choca não parecia acabrunhada. Continuava com os outros, com os mais fortes. Mesmo assim, nunca faltou galinha lá em casa, nem no mundo.
– Não sei se entendi bem.
– Ora, Ariel, ninguém irá conseguir mudar o mundo. Já estudou tanto e nunca percebeu que tudo sempre foi do mesmo jeito?
– Está bem, Diná. Estamos, nestas questões, em mundos diferentes. Há certas coisas que acontecem à revelia de nosso consentimento e depois, queiramos ou não, temos de assumir. Talvez fosse melhor que eu nunca tivesse aprendido certas coisas, sincronizado minha maneira de separar o bem do mal, mas não foi assim que se deu. Hoje, não posso ser julgado como pagão, como índio ou esquimó. As minhas leis já foram ditadas: estão em mim e por elas serei julgado.
Alguns dias depois, Ariel comentou:
– Diná, falei com um médico – o único em que poderia confiar este nosso problema. Negou-se afável e terminantemente a tirar a criança.
– Que belo amigo este seu, hein?!
– Muito pelo contrário, meu anjo. Ganhou mais pontos e ainda mais o admiro e fico honrado pela sua amizade. Não vê que ele está certo? Os médicos têm um juramento hipocrático que norteia a profissão. Disse-me, no entanto, que na vila vizinha militava um médico que fazia este tipo de trabalho. Fui até lá, mas ele já conseguiu o que procurava: está respondendo processo. Este, então, me indicou uma senhora que faz o serviço sob sua orientação, mas sem sua responsabilidade. Que acha disto?
– Quer assim?
– É, quero. Acho que entre todos os males, este será o menor.
– Pelo menos para você, não é mesmo?
– Desculpe-me, se puder.
– Quando será isto?
– Quarta-feira. Você deverá dizer a Ádila e Maria, em minha presença, que deseja visitar seus pais. Darei a você a força que precisar.
Dez dias depois Diná debatia-se entre a vida e a morte nas mãos do médico amigo de Ariel. A falta de higiene, os métodos antiquados, tudo, enfim, causou tanta hemorragia e infecção, que Diná viu-se, de repente, como se tudo tivesse chegado ao fim. Ariel, preocupado e com extremo sentimento de culpa, já não sabia como esconder o que lhe ia à alma. Ficou intratável e nervoso dentro de casa. Ádila cooperava:
– Ela volta – dizia ela, mais picante que pimenta, mais perfurante do que a ponta de uma garrocha.
– Não seja mesquinha, Ádila. Você já conseguiu mais do que procurou, agora, por favor, deixe-me em paz.
Ádila, porém, sempre preocupada em salvaguardar seu próprio orgulho, vivia mais fustigando, jogando indiretas do que procurando a verdade. Era uma pessoa que parecia ter nascido para impedir que alguém fosse feliz à sua volta. Era o bastante para que Ariel imaginasse como seria quando descobrisse a verdade.
Quando deixou o hospital, Diná estava lívida e enfraquecida. Parecia não se firmar sobre os calcanhares. Mas nada é mais forte e determinado do que a vontade de Deus: o filho vingara, resistira a toda batalha sangrenta.
Neste ínterim, Ariel já conseguira, em Belém, uma suíte, e para lá transferira Diná. Em casa apresentaria qualquer desculpa. Seria fácil compreender que Diná merecia rever os familiares ou, até mesmo, que se decidira não mais trabalhar com eles.
Ádila, não só aceitou o que dissera Ariel, como o fizera com certa satisfação. Nega Maria, porém, em sua ingenuidade foi um pouco além, pois via nos olhos de Diná o que se passava em seu coração. Como sempre ficou quieta, não tecendo qualquer comentário.
Sobrecarregou-se resignada com os afazeres que dividia com Diná e por isso voltou a dormir mais tarde. Sempre que podia, Ariel ia estar com ela e ficavam a confabular coisas simples e amáveis. Maria ouvia-o calada e resignada.
– Depois que Diná partiu, as coisas pioraram muito para você, não é Maria?
– Não tem importância.
– Acha que vai dar conta sozinha?
– Faço sempre o que posso.
– Sou testemunha. Sempre digo a Ádila que está precisando de umas férias.
Maria quietou-se e nela o silêncio era sempre uma resposta afirmativa. Ariel aproveitou-se:
– Quero que daqui a uns quatro meses você tire uns 60 dias, aliás, mais que merecidos, para descansar em qualquer lugar do País. Se quiser, posso ver um bem agradável em Belém. Pode ser?
– Belém?
– Sim, não gosta?
– Por que, Belém?
– Você é bem mais esperta do que aquelas pessoas que falam demais. Se for preciso dizer claramente, falarei depois. Dá para resistir à curiosidade?
Maria fez menção de leve sorriso.
– Posso contar com você?
Novamente Maria calou-se. Ariel estava cansado de saber que ela faria tudo o que lhe pedisse. Por isso, sorriu e afavelmente abraçou-a dizendo:
– Você e Diná conseguiram amenizar de muito os mil problemas que tenho tido nesta casa. São as duas pessoas sem meu sangue que mais quero bem neste mundo.
Quatro meses depois, de volta de uma viagem a Belém, Ariel falou com Ádila, dizendo que iria dar dois meses de férias a Maria.
– Donde lhe veio esta ideia?
– De minha cabeça e de meu senso de justiça.
– Nunca – vociferou Ádila, porque apesar das infundadas e automáticas cenas de ciúmes, não podia imaginar a vida sem a empregada.
– Ela precisa, Ádila. Está cansada e se continuarmos explorando-a desta maneira, acabará nos deixando definitivamente.
E depois de muitos acintes e até raciocínios lógicos, tudo ficou conforme os planos de Ariel. Faltava-lhe, no entanto, a parte mais difícil de toda a história – a verdade para com Maria. Se tivesse de contá-la à própria mulher, que sempre o definira como um irremediável mulherengo, talvez não fosse tão difícil como detalhá-la a Maria, que o considerava um exemplo digno de retidão. Enfim, não havia outro caminho. Esperou a oportunidade e depois de benzer-se por três vezes, achegou-se. Maria estava no jardim dos fundos, arrumando ramalhetes de flores vermelhas para os jarros da sala.
– Maria – chamou ele em tão grave.
– Pronto.
– Há três dias que espero estar sozinho com você para falar-lhe.
– E tão importante assim?
– Importante e difícil. Está preparada para sofrer a maior decepção de sua vida?
– Puxa, senhor Ariel!
E como a maneira menos dolorosa de se livrar de um espinho e arrancá-lo num só golpe, Ariel falou sem rodeios:
– Sabe por que quero que passe suas férias em Belém?
– Não.
– Você irá?
– Se é desejo do senhor! …
– É sim, porque só sei confiar, de fato, em você. Aliás, não saberia o que fazer se não pudesse ir. É por causa de Diná.
– Diná? Que tem ela?
– Está esperando um filho…. É, um filho – e arrancando com a última das forças a coragem que lhe sobrara, completou: – um filho meu.
Maria desconcertou-se, baixou a cabeça, ficou trêmula e calada.
– Jamais pensou isto de mim, não é minha nega?
– Todos nós somos fracos.
– Está bem, já viu que sou um qualquer, ou melhor, pior do que um qualquer.
– Não fale assim. Quando devo ir e o que quer que eu faça?
Dois meses depois Ariel foi buscar nega Maria na rodoviária de Imperatriz. Estava a mesma, talvez um pouco mais abatida. Logo que desembarcou, Ariel abraçou-a fortemente.
– Obrigado, minha nega. Um dia hei de recompensá-la. Está tudo bem por lá?
– Está.
– O menino é forte? É perfeito fisicamente?
– É, sim.
Ariel desceu a Dorgival Pinheiro bem devagar, o que não coadunava com as milhares de perguntas que fazia uma após as outras. Como o resultado de uma soma, Maria respondia monossilabicamente com seus dois inseparáveis advérbios, sim e não, eternos recursos de economia e objetividade.
8
Quando a medicina descobrir para o corpo, um remédio tão bom quanto o é o tempo para a alma, não haverá mais sobre a terra nada que não se cure. A paixão mórbida que Ariel devotava a Diná, o tempo deteriorou. Dois anos depois do nascimento de Balbino, seu filho, já Ariel não assistia mais à Diná, senão com mesadas polpudas que enviava todos os meses por remessa bancária. E essa mesada ainda era mantida por causa do menino, pois Ariel há muito já soubera da vida desregrada da amante. A força do sexo falava-lhe alto; a falta de instrução neste sentido fazia com que ela achasse seus interlúdios amorosos, a coisa mais natural da vida; o desejo de estar em evidência e o valor dado às lisonjas deixavam-na mergulhada num mundo irreal. Ariel sabia que nenhum homem, tendo Diná uma vez, a esqueceria facilmente. Ela nascera privilegiada, com todas as artimanhas e atrativos naturais de uma fêmea.
Quantas vezes Ariel ficava a balouçar sua cadeira na calçada, lembrando um passado não tão distante, e que agora se desvanecia como fumaça ao vento. Descobrira, um dia (e desta sua verdade nunca abdicou), que não devemos, nem podemos modificar os planos de Deus. Há pessoas más porque nasceram más, a fim de que, por meio delas, se processe o plano do Criador. Por esta mesma razão, sempre achou verborreia inútil, ideologia falha, utopia de sonhador, a luta das igrejas para tornar este mundo, um paraíso. Ninguém conseguirá explicar o nascimento de um condenado e aceitar a onisciência de um Deus bom e misericordioso, porque o adulto deve responder pelos seus atos, mas o esperma e o óvulo, jamais poderão ser responsabilizados por um acoplamento acontecido à revelia.
Sua vida em casa voltara à monotonia. Vivia estudando, mergulhado na maior parte do tempo em sua biblioteca. Pensava mesmo em completar o curso de advocacia. Ádila, neste período de trégua, parecia mais nervosa que nunca, pois lhe era difícil levar a vida sem uma vítima para realizar sua catarse. Nega Maria, agora com seus 52 anos, não parecia sentir mais os sonhos que povoavam suas noites de ilusões. Conformara-se em passar pela vida para servir e esperava que Deus não a decepcionasse por tanta luta para se manter limpa e digna. Quase não falava para não perturbar os infindáveis pensamentos que se interpunham em sua cabeça em cada vez que respirava. Só Deus podia explicar o que se passava em sua mente; Deus e um diário que protegia tanto quanto sua virgindade.
Diná continuava em Belém com seu filho Balbino. Cuidava dele sem grande desvelo, pois lhe era continuamente estorvo à sua vida desregrada. Pensava em conseguir alguém para aliviar seu problema, mas isto logo foi descartado, já que não queria correr o risco de ser delatada e perder a generosa mesada que sempre chegava em todo final de mês. Preferia tê-lo sempre consigo, mesmo nos motéis, onde o deixava a um canto com algum brinquedo, enquanto ela se chafurdava cada vez mais na devassidão.
No entanto, quando Balbino atingiu os quatro anos, as coisas pioraram. O menino, sem nenhuma explicação, sem nenhum argumento além do olhar e da triste fisionomia repreensiva, impingia-lhe tanto remorso que ela pôde, em um de seus raros momentos de meditação, admitir que também possuía uma consciência. E tanto agravou-se a situação, que numa tarde de 1926, numa de suas andanças pelas praças da cidade, assentou o menino num banco, e disse-lhe:
– Filho, espere-me aqui que volto já. Vou atravessar a rua e comprar um sorvete para você.
O menino olhou-a choroso, mas ela desviou a face. Assentou-o ligeiramente e encaminhou-se para a rua. Um carro que passava, atrasou-lhe a pressa e ela pôde ouvir, nesse ínterim, a vozinha sumida que implorava dizendo:
– Mãe, não me deixe aqui, estou com medo.
A noite que se avizinhava, acabou por cair plenamente. As luzes acenderam-se, os funcionários apinharam-se pelas ruas, cada um procurando seu paradeiro. Apenas Balbino estava ali, chorando convulsivamente, perdido e triste, abandonado pela mãe.
Uma senhora que passava, parou:
– Por que chora, menino?
– Eu quero minha mãe.
– E onde está ela?
– Foi embora.
– Foi embora?
– Foi.
A criança, como uma esponja, absorve tudo e apesar de não saber expressar-se com palavras, entende as coisas melhor que os adultos. Em seus olhos podia-se ver que ela não tinha nenhuma dúvida de que fora rejeitada. Diná, tomara um ônibus e deixara Belém.
Balbino foi levado para um bairro chamado Pedreira. Era um local calmo, um bairro que começava. A mulher que o levou morava numa mansão e era esposa de um grileiro de terras devolutas, que gostava de colecionar armas e motores de voadeiras. Seu nome era Raimundo e desde que deixara o Rio Grande do Norte, nunca mais tivera problemas com a vida. Os insaciáveis latifundiários do Sul e do Leste apinhavam-se em sua porta e pareciam a eles que Deus ainda não fizera a Amazônia do tamanho da ganância deles. Quando a mulher entrou, levando pelas mãos o garoto choroso, Raimundo assustou-se:
– Que é isto aí, Marcela?
– Achei este moleque perdido.
– E veio trazê-lo logo aqui pra casa?
– Parei para perguntar e acabei envolvida.
– Eu não quero isto aqui em casa. Sabe que nunca tivemos filhos e sabíamos disto antes do casamento.
– Não se perturbe, seu psicopata, amanhã a entregarei ao juizado de menores.
– E esta noite, quem vai cuidar dele?
– Eu cuido, fique tranquilo.
– É bom. Preciso estar bem descansado. Amanhã terei que repetir a eterna viagem a montante do Moju. Vão chegar mais uns idiotas lá do Sul e terei que vender aquelas glebas pela milésima vez.
– Isto ainda vai custar-lhe o que ganhou, Raimundo!
– Você é mesmo uma idiota, Marcela. Os únicos que poderiam acarretar-me problemas são os próprios chefes de toda esta farsa. Estão envolvidos até os dentes. É, minha filha, enquanto existir Amazônia, paranaenses, capixabas e mineiros, a vida aqui será uma barbada!
– E goianos – lembrou Marcela a tempo.
– Sem dúvida, seria uma injustiça esquecer-lhes.
Num canto da sala, sentado na ponta do tapete, fora da poltrona, Balbino soluçava tristemente. No painel da existência, pintava-se o afresco da vida.
– Eu quero mamãe… eu quero mamãe… – repetia ele já com a vozinha rouca e sumida.
Durante os quatro anos que viveu agarrado à saia de Diná, perambulando pelos bares, boates e motéis, ele crescera puro como uma flor no lamaçal, pois ainda não havia dentro de si qualquer lei para ser respeitada e seguida como norma de salvação. Para uma criança não há erro, nem mal, nem pecado, porque não lhe foi imputado, ainda, nenhum decreto de vida. Para ela tudo é normal e certo, tudo tem equivalência, tanto uma oraçãozinha de mãos-postas, como um palavrão de desrespeito. Mas a gente encarrega-se de tudo, instruindo-a para a malícia, o sofrimento e a perdição. Deve ser uma norma necessária, já que o maior legislador da terra e dos céus assim quis, dizendo, Ele próprio, que havia vindo para a salvação e a perdição de muita gente. E se há um mistério em que nem as hipóteses ousam entrar, certamente, este é a predileção de Deus, salvando e condenando; dando chances e tirando-as a cada instante da vida.
9
Se pensarmos bem, sob o aspecto de um todo, nada é mais simples que a vida; porém, se analisarmos as pessoas em particular, ficaremos abismados como peças, aparentemente iguais, funcionam de maneira tão diferente. Assim, o mundo, desde os tempos de Caim e Abel até este momento, é um rodízio de coisas boas e ruins, edificantes e destruidoras, ilusórias e reais… Cada um de nós percebe o mundo que nos cerca, sem jamais conseguir explicá-lo satisfatoriamente.
Ádila tinha tudo para ser uma mulher feliz, mas não queria. Havia algo nos recônditos de sua alma que talvez fosse desafio ao próprio Freud. Aquela aversão ao sossego e à paz de Ariel instigava-a a uma luta inconsciente para destruí-lo.
Um dia, Ariel falou-lhe sobre o assunto, mas ela reagiu, dizendo que se naquela casa houvesse algum louco, certamente não seria ela. E embora estivesse cansado de toda aquela farsa, Ariel sempre ponderava, adiando a catástrofe de um desenlace que, certamente, refletiria sobre Ronaldo. Sempre, quando podia, presenteava Ádila com fitas e gravadores, único passatempo que lhe rendia algum sossego nas leituras. Ela vivia gravando e desgravando fitas, jamais se contentando com qualquer compositor ou cantor.
Numa tarde, mal ela ligara o gravador, a vizinha ao lado chamou-a para conhecer uma sobrinha recém-chegada de Fortaleza. Sempre distraída, ela saiu, deixando o aparelho gravando. Maria entrou para arrumar o aposento, e Ariel, distraído que estava na leitura da biografia de Ghandhi, de nada se deu conta.
– Puxa! Que dia, hein minha nega? – perguntou exclamando à guisa de conversa.
– É – respondeu ela. E conhecendo o patrão, deu-se ao desperdício de falar um pouco mais:
– Que quer me dizer?
– Você sabe que nunca mais fui visitar Diná. Não conheço, sequer, meu próprio filho. No começo achei que devia ser assim, mas agora começa a acontecer algo esquisito aqui dentro de mim. Afinal, aquele menino é meu filho e posso ajudá-lo, você entende?
– Acho que sim.
– Eu devia procurá-la, não Maria?
– Está com saudades?
– Há um vazio bem grande dentro de mim. Não sei o que um santo faria se estivesse agora em meu lugar.
– Um santo?
– Não me recrimine, minha nega. Você é a única pessoa em quem confio. Sem seu apoio eu não resistiria. Se não tivesse você aqui para desabafar, acredite, eu explodiria. Errei, mas Santo Agostinho, na mocidade, também foi um devasso. Gostaria de saber, agora, se ele estivesse aqui, no meu lugar, se iria ou não assumir esta situação.
– Ele assumiu?
– Quando errou, ainda não era santo. Aí está o grande problema: nunca um santo, enquanto santo, comete iniquidades desta envergadura. Não me lembro bem o que fez com o filho bastardo, mas o certo é que Deus sempre dá o jeitinho brasileiro aos seus eleitos.
– Pois então?
– Mas não sou Santo Agostinho, minha nega. Sou um farsante, um homem cheio de dúvidas que tem medo de pecar por fazer e por deixar de fazer as coisas. Mas, prometo que não irei consumir meus dias assim. Estou ficando cansado de representar. A gente tem que ser, ou deixar de ser. Sinto que preciso tomar uma direção, seja com a fé de Moisés, seja com a revolta de Nietzsche. O que não suporto mais é viver nesta farsa, permanecendo em cima do muro, vendo e descrevendo, atestando e criticando sempre que me convém. Desta maneira irei definhar minha alma, perder a força inata da fé e definir-me como morno. Sinto que preciso ferver ou congelar de uma vez, para que não destrua, até mesmo, a pequena chance desta vida. Ou Deus, ou o diabo.
– Não entendo dessas coisas – disse Maria, aproveitando o interlúdio de grandiloquência de Ariel.
– Entende sim, melhor que eu! Embora em silêncio, nunca deixou de ser coerente, nunca desviou seu caminho. Deve estar bem adiante de mim.
Maria fez menção de rir, mas preferiu a seriedade. Parou na porta e ficou por um instante, para que Ariel entendesse que precisava cuidar dos outros cômodos da residência.
– Pois vá, minha nega. É um dó que não tenha tempo para ficar aqui comigo, pois me faz bem como uma ducha fria.
Depois, saiu também e foi passear pelo jardim. Ficou a recortar alguns ramos secos, perdido em seus pensamentos. De fato, tinha de tomar uma decisão, escolher uma direção e retomar o caminho, para o norte ou para o sul, isto já não importava tanto. O que não suportava mais era ficar à deriva, indo e vindo, circunvagando em torno de suas próprias indecisões.
Suas noites eram povoadas de sonhos drásticos, de tempestades, de explosões gigantescas e caçadas humanas, não faltando em nenhuma semana, a destruição da fazenda, em que o fogo sempre acabava ameaçando a vida das mesmas três reses. Sua mente andava sobrecarregada; a inconstância subtraíra-lhe o desejo de caminhar, de produzir, de ir em frente; seu estômago dava os primeiros sinais de toda aquela angústia.
À noite, passando em frente à casa paroquial, viu na balaustrada a figura impassível do bispo que, a passos lentos, óculos sobre o nariz, corria os olhos no missal, alheio ao mundo que barulhava a poucos metros. Ariel conhecia o bispo. Eram amigos e ele o admirava sobremaneira. O prelado apresentava os cabelos grisalhos e um corpo atlético. Era filho dos confins da Amazônia, lidara com toda espécie de desconforto e de miséria e fora designado bispo da região, num dos poucos momentos de felicidade apolítica da Igreja Romana.
Dinâmico, sincero, honesto, autêntico e trabalhador, o bispo desincumbia-se da assistência à comunidade, tendo sempre nos olhos o brilho da alegria; e na mente, a certeza de que tudo aquilo valia a pena. Ele acreditava: aí estava a diferença.
Levado por força estranha, Ariel empurrou o portão e aproximou-se:
– Posso roubar-lhe Deus por um momento?
– Dividamo-lo ao menos: não viveria sem Ele – e sem jamais esquecer que antes do missal, da igreja e dele próprio, estava o semelhante, obtemperou:
– Vamos, vamos, entre um pouco. Estou mesmo precisando conversar com alguém.
– Se pensa aliviar alguma carga, não sou a pessoa indicada. Trago-lhe mais alguns balaios, bem cheios.
O bispo riu:
– Deus tem costas largas e muita disposição. Nunca precisamos ter medo do peso, quando Ele está ajudando. Nada vem além de nossas forças.
Ariel sentou-se. Era um banco tosco de uns dois metros de comprimento, feito com ripas de muiracatiara. A tarde havia caído e uma aragem passava pelo ambiente quente, saudável como um sopro abençoado do céu. Ariel tentou um chiste:
– Deus está sendo muito parcial. Lá em casa não ventila assim nessa época do ano.
– Aqui também não. É o favônio de sua visita – gracejou o bispo, empurrando o missal fechado por entre as colunetas da balaustrada.
O bispo sabia que aquela visita de Ariel não era apenas casual. Pela constante relação com almas tristes e abatidas, ele sabia que tinha diante de si mais um problema para tentar resolver. Sentiu também que precisava de calma, pois Ariel não era lá de possuir a humildade de pedir socorro a quem quer que fosse. Por isso deu tempo, diminuindo a conversa vã e dando mais espaços vazios, de silêncio, a fim de que Ariel tomasse coragem. Enfim, ele cedeu:
– Pois é, velho amigo! Permita-me chamá-lo assim, pois não parei aqui para falar com o bispo, mas sim, com o amigo: a coisa está muito confusa em minha cabeça. Não consigo provar a mim mesmo nenhuma verdade; não consigo encontrar, por mim mesmo, nenhum caminho e…. estou falando demais?
– Não, por favor, continue. Pelo que me parece, ainda nem começou.
Ariel fez menção de rir:
– Minha vida não está tendo mais sentido. Sou um homem que passo o dia dentro de um escritório, buscando nos sábios a prova da existência de Deus. Sinto que, sem uma verdade, sem uma fé inabalável é impossível chegar a qualquer lugar. Estou farto da vida que levo. Gostaria de não depender de ninguém e que ninguém dependesse de mim. Queria sair agora e ir aonde quisesse, fazer o que bem desejasse, sem prejudicar nem dar satisfação a ninguém. Queria, em suma, que a minha vida fosse minha, só minha. No entanto, não é assim. O homem é o ser mais escravo e dependente dos animais, embora apregoe total liberdade.
– Já sei, a coisa não anda bem em casa, não é mesmo? – perguntou o bispo, farto de saber aonde toda aquela lengalenga queria chegar.
– É, é isto aí.
– Há outra no caminho?
– Não como coisa séria.
– Mas, há?
– Sim, não poderia negá-lo.
– Nem deve. Quando se procura alguém para um conselho ou opinião, tem-se, por obrigação, que confiar nele.
– Eu sei.
– Que está passando por sua cabeça? Ficar com a outra?
– Não.
– Não?
– Já explico. Tudo é mais ou menos passado…
O bispo ouviu com paciência e serenidade. Não havia, há muito, uma história nova ou sórdida que já não tivesse ouvido. Sem demostrar qualquer surpresa, começou a falar:
– Você parece acreditar ser um homem diferente dos demais neste mundo de Deus, mas não é verdade. Igual a você somos todos nós, e se há, em certos pontos, alguma coisa de que possa reclamar, há muitas outras que tem motivos sobejos para agradecer a Deus. Não se importe muito em conhecer a Deus e seus mistérios. Mais importante que isso é você estar certo que Ele o conhece bem e sabe por que o fez assim. Nós todos somos um amontoado de dúvida e a dúvida não deixa de ser um pouco de fé. E como diz o provérbio: – Onde há fumaça, há fogo. Todos os homens que tiveram coragem de confessar isto, fizeram-no. O psicólogo Carl Jung, que me parece, morreu na dúvida, tinha escrito na entrada de seu consultório: – Vacatus atque non vacatus, Deus aderit. E o maior romancista da atualidade, Morris West, deixa bem claro sua dúvida pela boca do personagem: “Mesmo que Deus seja uma ilusão, gostaria de tê-la sempre comigo”!
Na verdade, todo o problema que afeta os seres humanos está na falta de fé. Jesus Cristo não estava brincando quando disse que se a tivéssemos do tamanho de um grão de mostarda, poderíamos remover montanhas. Você está com pensamentos de liberdade, mas também isto pode não ser verdade. Quando voltar de seus encontros casuais, das boates, das noites perdidas, sentirá um vazio tão grande como o que agora se aninha dentro de sua alma. Disse-me que até hoje não acabou com tudo por causa do filho. Fez muito bem. Quando não se sabe o que fazer com a gente mesmo, deve-se saber, pelo menos, o que fazer com os outros, nossos semelhantes. São Paulo diz numa de suas epístolas, que qualquer sacrifício é válido pela família, até a aceitação de certas infidelidades. Você se empenhou numa luta inglória e impossível: conhecer Deus empiricamente. Deus não é ciência, mas fé, e a fé, às vezes, é dada por graça e não por exigência.
Tente ser simples como uma criança; ingênuo como um filhote de rolinha; humilde como um roceiro diante de um juiz. Lembre-se que você está aí. Veio do nada e jamais perecerá. Quer queira, quer não; quer aceite, quer se revolte; quer procure, quer deixe as coisas ocorrerem, tudo se fará conforme as determinações do Criador. Você – como eu, como todo o mundo – é um tijolo na construção magnífica do Reino de Deus. E esta construção tem tronos reais e latrinas, e tudo é indispensável. Mas, o vaso da latrina não é menos importante do que o ouro incrustado nas tarjas do trono. Sem um ou sem outro, a construção seria imperfeita, falha. Está me entendendo?
Ariel continuava cabisbaixo, imerso naquelas palavras. No silêncio que se fez, ele olhou para o bispo e o viu calado, em oração. Antes que dissesse qualquer coisa, o bispo continuou:
– A gente não é dono de nenhuma fórmula mágica, Ariel. Não possuímos, senão, submissão e esperança. Quantas vezes ensino coisas que, interiormente não se afinam com meu senso de verdade. Acho que é tudo o que poderia lhe dizer nesse momento, amigo. Quando quiser conversar comigo estarei aqui. Sempre, neste horário, aqui mesmo, buscando a conversão.
– Que devo fazer, então?
– Você sabe – limitou-se a dizer o bispo. Em seguida absolveu-o.
O bispo sabia que a noite seria pequena para falar e discorrer sobre aquele mundo de dúvidas, mas também entendia que não se deve ministrar doses muito altas a pacientes enfraquecidos. Por isso, depois de falarem sobre chuvas e gado, despediram-se. Quando Ariel transpôs o umbral da canônica, o bispo ponderou, enfático e clarividente:
– Deus escreve certo por linhas tortas, eis a grande verdade.
10
Quando Ádila retornou, limitou-se a retirar a fita e torná-la mais uma no amontoado que possuía num baú de madeira. O tempo passou, passou e somente em 1924, ela, tencionando selecionar o que servia e o que precisava ser jogado fora, passou a ouvi-las e separá-las.
Não havia ninguém, senão ela, como testemunha daquela revelação. Quando Ariel retornou, encontrou-a ouvindo música. Era MR. Acker Bilk ao clarinete, executando Stranger on the shore (O estranho na praia). Não percebeu nada de anormal, pois era muito comum vê-la passar uma tarde inteira ao lado dos aparelhos de som. Entretanto, ao perceber que a música era sempre a mesma, Ariel aproximou-se um tanto irritado:
– Não tem outra fita para tocar não, Ádila?
Ela retinha uma fita presa nas mãos e fitava, atônita, um ponto qualquer. Ao ouvir a interpelação, virou-se bem devagar.
– E linda esta música, não acha?
– Sim, mas tudo tem seu limite.
Ela desviou os olhos do marido e voltou à posição em que se encontrava antes. Ariel ficou preocupado. Foi à cozinha e mesmo antes que perguntasse qualquer coisa, Maria antecipou-se:
– Há três horas que cheguei e ela estava ouvindo isso aí e ainda contínua.
– Aconteceu alguma coisa estranha?
– Só se foi enquanto eu estava na feira.
Ariel voltou. Ádila continuava na posição de ioga, como se fosse Buda em êxtase. Seus olhos possuíam um estranho brilho e seu semblante era de paz. Ao perceber a presença de Ariel, falou:
– Sente-se aqui comigo. Perceba como é linda esta música.
– Que está acontecendo, Ádila?
– Não seja insensível, ouça que música linda.
Ariel antecipou-se, desligando o aparelho. Ela ergueu os olhos úmidos. Uma imensa dor envolvia sua alma.
– Não gosta da música?
– Gosto sim, mas não suporto ouvir a mesma coisa o dia inteiro.
– Está bem, depois, quando não estiver em casa, eu tornarei a ouvi-la. Ela é linda, linda!
Algo estava errado, muito errado. Telefonou para um psiquiatra, seu amigo, que não tardou a chegar. O médico encontrou-a deitada na cama, olhos fixos no teto e uma fita entre as mãos entrelaçadas. Tentou falar-lhe, mas ela se limitava a frases concisas e desconexas. Por fim, o médico deixou o quarto e foi ter com Ariel.
– E um caso de choque muito forte. Não sei o que foi, mas ela parece ter sido fulminada por uma revelação de que não teve estrutura para resistir. Tenha cuidado, pois esta reação de submissão e mansidão pode estar no limiar de uma explosão de ódio e irascibilidade. Veja se consegue que ela tome os remédios (na maioria, calmantes e soníferos) e observe-a atentamente. Temos que esperar um pouco mais para tentar um diagnóstico mais próximo da verdade. Conhece algum familiar dela, ainda que distante, que tenha tido problemas idênticos?
– Não.
– Se conseguir a fita que ela retém nas mãos, vai ser muito bom. Penso que ali está a chave do mistério. No entanto, não tente nada a força, pois seria muito pior. Não deixe também que ela perceba tal interesse, pois poderá destruir o único ponto que, acredito, contém o motivo de tal choque. Se ela tomar os remédios, fatalmente irá dormir e aí tudo será mais fácil. Não espere milagres, caro Ariel. Acho mesmo que terá alguma coisa para fazer por um bom bocado de tempo.
Ariel parecia ainda não ter absorvido a extensão do problema. Despediu-se do médico e tomou o cachimbo, preparando-o enquanto via a figura magra e desengonçada do psiquiatra entrar no carro: um fusca surrado por três anos de uso intenso.
Para ser mais honesto, ele não acreditava em tais curas, mesmo porque nunca tivera uma prova neste sentido. Todas as pessoas que se viam acometidas de distúrbios psíquicos levavam a vida mais se adaptando ao problema do que se livrando dele. O trabalho do psiquiatra parecia-lhe mais uma lista de como aceitar a situação do que uma alquimia que pudesse, com palavras, penetrar no mundo misterioso do cérebro e apertar os parafusos desajustados. No entanto, ainda que fosse para desincumbir-se de uma obrigação e justificar-se perante a opinião pública, não deixaria o médico mais indicado fora da cabeceira.
Depois de três dias e três noites sem dormir e sem se alimentar, Ádila ergueu-se da cama, abriu a geladeira, apanhou dois ovos gelados e crus, quebrou-os e os engoliu. Depois tomou um naco de alcatra e começou a mastigá-lo avidamente. Comeu bastante, tomou dois copos de água e voltou para a cama. Logo em seguida, dormiu profundamente.
Ariel procurou a fita, mas tudo que viu de errado foi pedaços da caixinha de proteção espalhados pelos cantos e restos de fita chamuscados. As outras, nada continham de anormal. Eram músicas diversas que a mulher ficava a gravar e a desgravar dia após dia. Preferiu acreditar que a fita não passava de uma circunstância de momento: poderia ter sido um outro objeto qualquer.
Mais tarde, quando o psiquiatra veio para a visita de rotina, encontrou-a dormindo.
– Deixe-a – disse ele sem muito entusiasmo – quando acordar, se estiver no mesmo quadro clínico, aconselho-o a interná-la num hospital de repouso.
– O senhor acha mesmo que…
– Mais que isso. Tenho minhas dúvidas se vai ser a mesma mulher de antes.
– E Ronaldo, o meu filho, como irá se portar diante de tudo isto? Afinal, mãe é sempre mãe.
– O que ele vai sentir, ninguém poderá modificar. A situação parece-me irreversível. No entanto, o melhor para ele é não conviver nestes dias com a doença dela. Por isso, aconselho interná-la.
De fato, quando Ádila acordou, não apresentou nenhuma melhora. Estava lívida, e seus olhos, de um estranho brilho, denotavam tristeza e angústia.
– Que tem mamãe, pai? – perguntou atônito, Ronaldo.
– Está passando mal, meu filho, mas vai ficar boa. Amanhã irei levá-la ao hospital. Ficará lá alguns dias e depois voltará boa novamente.
– Ela não conversa mais comigo. Por quê?
– Porque está doente e indisposta, filho. Somos assim mesmo. Quando estamos com saúde imaginamos não precisar de ninguém. No entanto, quando qualquer coisa nos afeta, tornamo-nos uns moleirões. Mas não se preocupe, ela vai melhorar, você vai ver.
Ronaldo contava, então, oito anos. Era um menino crescido e inteligente, mas detestava estudar. Sabia ler e escrevia bilhetes concisos, falando de seu amor pela professora – uma mulher casada com seus 28 ou 30 anos. Coisa de criança, resquício de personalidade.
Nunca fora apegado a Ádila, mas mesmo assim chorou quando viu seu pai tomá-la à força e assentá-la no banco traseiro do carro. Por certo, não podia ainda discernir em que circunstância a brutalidade ou a violência podiam ser praticadas por amor, amizade ou compaixão. E sem que percebesse ou desejasse, passou ali, a odiar seu pai.
No dia 25 de abril de 1925, Ariel recebeu uma carta. Era enviada por uma senhora de nome Haidê Monteiro, que também mantinha uma filha no Sanatório Henrique Roxo. Num dos raros momentos de lucidez, Ádila escrevera um bilhete num papel verde, de embrulhos, e pedira à mulher para enviá-lo ao endereço indicado. Dizia a carta:
Campos, 25 de abril de 1925.
– Querido Ariel:
Gostaria que viesse me buscar, pois acho que já estou bem para ir embora. Veja se dá para me buscar segunda-feira, pois eles só estão usufruindo do dinheiro da gente. Estou com saudades de todos, principalmente de você e Ronaldo. Veja se consegue me tirar daqui, pois não aguento mais tantos choques e injeções. De como eu estava, estou bem melhor e muita preocupada com meus problemas. Estou morrendo de vontade de ver vocês e também de sair daqui, onde só se ouve gritos de desespero. Aqui se perde a única chance de cura. Venha o quanto antes, por favor, pelo amor de Deus. Não fale com o médico que você recebeu carta minha. Diz apenas que veio para me buscar, porque precisa de mim. ÁdiIa Augustine Ramos.
Ariel separou o bilhete com as mãos trêmulas. Eram palavras simples, mas que diziam muito e cujo impacto em seu coração era de grande ressonância. Ádila parecia retroagir no tempo, voltar à mocidade de calma, sensatez e amor. Aquela agressão constante que se desencadeara após o casamento, desvaneceu-se por completo. Talvez por isto, Ariel começava a sofrer, voltava a sentir, dentro de si, aquela simpatia e aquele amor dos primeiros tempos.
Arrumou-se às pressas, tomou o carro e foi buscá-la. Ela o recebeu amavelmente, falou com calma e parecia, de fato, bem melhor. Apesar de o médico relutar, Ariel a trouxe.
Dois dias depois ela jogou os vidros de perfume pela janela e estava arredia a qualquer conselho. Saía de casa, rondava pela vizinhança. Voltara ao estado deprimente e patológico. Novamente foi levada ao Henrique Roxo e oito dias depois, foi encontrada presa à janela do segundo andar, quando tentava escapar por entre as persianas. Quando a viram, estava morta. Dentro da blusa tinha uma carta que dizia:
– Não se preocupem se eu cair e minha tentativa de fuga for vã, afinal, será apenas uma louca que deixará de azucrinar a vida de vocês. Quero apenas que acreditem numa coisa: os loucos são as únicas pessoas no mundo que maior visão têm dos problemas e dos mistérios da vida. Uns são chamados de filósofos, outros de sábios, outros de gênios, outros, de apenas loucos. Mas todos estão no mesmo estágio de evolução, por um transtorno ou prêmio cerebral. Somos pessoas diferentes e jamais a humanidade irá entender uma minoria que apresente uma visão assim das coisas. Ser louco é pular alguns séculos à frente e ficar desambientado no tempo presente. Afinal, por que causo tanto espanto por fazer de minha vida aquilo que acho certo e melhor?
Estou escrevendo isto, porque sei que minha tentativa é perigosa, mas valerá a pena. Um dia irão entender estas coisas. Se eu conseguir sair daqui, irei por aí pregando a mim mesma, as minhas verdades. Há púlpitos de pedras naturais, abandonados pelas montanhas em que poderei galgar e dizer aos ventos e à selva, e mais amiúde, ao próprio Deus, que sou um ser humano digno de respeito. Irei caminhar por aí, norteada por minha vontade e pelos meus desejos, sem importar-me com a escravidão das normas e das leis. Quem poderá recriminar-me por fazer o melhor uso daquilo que é meu, só meu?
Sei que algo se transformou dentro de mim, mas não foi eu quem pediu – aconteceu e nada posso fazer. Vocês que poderiam, não o fizeram.
Ah, não imaginam que calor sinto aqui dentro do peito! É a ânsia da liberdade, a certeza de que ninguém é dono de minha vida; é a esperança, enfim, de atirar-me do ninho, do alto de uma montanha, como um filhote de condor em sua primeira tentativa. E a ansiedade de um estreante ante um teatro superlotado; é, até mesmo, a angústia de sentir estes segundos que parecem jamais completar um minuto.
Neste momento, sou a pessoa mais feliz do mundo, porque percebo todo o orbe à minha inteira disposição, e porque reconheço a estupidez da possessividade e do egoísmo. Desvencilho-me das cadeias de quatro paredes, do círculo de uma fazenda, dos limites de uma pequena cidade. Tenho o mundo para ver, caminhar e curtir. Ninguém me vedará o caminho, pois sou apenas uma louca, e louca não está sujeita às leis. E quem não está sujeito às leis, não peca, não erra e não é réu de castigo. Já imaginaram uma pessoa cujo pensamento está além, bem à frente das outras pessoas e cuja liberdade se iguala à dos animais irracionais? Hoje sim, neste momento, sinto a liberdade plena. Se eu não conseguir, se me acidentar e morrer, não fiquem tristes. Ádila.”
O envelope era endereçado a Ariel e Ronaldo. A maneira de dizer as coisas não coadunava com o primeiro pedido de socorro. Ariel encheu-se de dúvida. Um louco conseguiria dizer tudo aquilo? Ou somente um louco poderia fazê-lo?
11
O motorista do caminhão estava suarento e faminto. Saltou, comprou uma melancia de um nipônico de beira de estrada e começou a retalhá-la avidamente. O garoto fitava-o com o desejo de quem não sabe fingir. O homem estendeu uma fatia – ele aceitou. O suco escorria pelos cantos da boca, enquanto o motorista perguntava:
– Este quiosque é de seu pai, menino?
– Não.
– Que faz aqui? Mora por perto?
– Não, moro em São Luís do Maranhão.
O motorista, em sua incontrolável mania de falar demais, interessou-se:
– E como explica estar aqui?
– Fugi de casa.
– E por que fez isso?
– Por nada. Achei que seria bom pra mim.
– E como está pensando agora?
– Estou querendo voltar.
– Como se chama?
– Agora me chamo Tomás Antônio da Silva.
– Por que, agora?
– É que não sei mesmo como me chamo de verdade. A família que cuidou de mim por aqui me chamava de Tomás.
Novamente o homem fitou-o de alto a baixo. O japonês que vendia frutas na beira do caminho desviou o rosto, como a negar-se a um possível envolvimento. O motorista coçou a nuca, erguendo um pouco o boné que descia até às orelhas. Pagou a melancia, entrou no carro, acelerou duas vezes. O menino não tirava os olhos dele.
– Diabo – vociferou – afinal, estou indo pra lá. Venha moleque, levo-o de volta.
Tomás Antônio da Silva correu cheio de felicidade, pendurou-se na porta e entrou na boleia. O motorista passou a mão sobre os cabelos desgrenhados do menino e sorriu.
– A gente faz muita besteira na vida, não é fugitivo?
O menino quietou-se. Tinha medo de, com palavras ditas fora de hora, fazer com que o motorista desistisse de levá-lo. Se tivesse de soltar a língua, teria de ser depois de algumas horas de viagem. O motorista, um contador de histórias inveterado, amenizou o clima:
– Quando eu era pequeno, também tachava meus pais de chatos e ranhetas. Vivia em constantes querelas com eles. Queriam que eu estudasse. É, os pais sempre acham que podem salvar a falta de oportunidade, ou capacidade deles com o sacrifício dos filhos. Eles costumavam dizer que o estudo de uma criança deveria ser mais importante do que a construção de um templo para Deus. Mas eu venci meus velhos. Foi uma vitória penosa, pois hoje ando passando fome pelas estradas, dormindo mal e sempre ameaçado por este trânsito maluco. Não bastasse, este diabo de ferragem estúpida anda enguiçando a cada meio-dia. Mas eu adoro esta geringonça. Sabe, ele quebra a monotonia da vida; não me deixa pensar em bobagens e mostra-me a cada instante gente e paisagens diferentes. Sempre detestei nascer e morrer no mesmo lugar. Acho que o homem deve correr o mundo – ele foi feito para nós. Nascer e morrer no mesmo lugar é para cascudo de loca, que pensa que aquele é o único buraco do rio.
O carro corria guinchando pela estrada irregular. Os olhares do motorista, perdidos na extensão do caminho, não davam conta de que o menino, cansado e desacostumado com aquele barulho intermitente, dormia de cair a baba. Quando se virou, viu-o de cabeça inclinada, dormindo como um anjo despreocupado. Limitou-se a um leve sorriso e monologou justificativo:
– Tantas palavras bonitas desperdiçadas!
Era quase meia-noite quando o motor barulhento do velho Alfa Romeo silenciou. As luzes da cidade chispavam fachos de luz em todas as direções. Propagandas luminosas e holofotes davam o toque final de zonzeira, ao menino desperto.
– Chegamos, fugitivo!
– Já?
– Ora, já! Dormiu a viagem toda. Parecia uma pedra. Até pensei que não fosse mais acordar.
O menino olhou com medo aquela selva de pedras em que cada beco silencioso era a espreita de um bicho mau. Quando em vez, um cadrão deseducado esturrava pela esquina, como se fosse uma canguçu a delimitar seu território. Em seguida, o silêncio voltava e nele bem poderia estar se maquinando a eliminação de uma vítima. Sim, porque no reino dos maus, nada é mais tétrico e terrível do que o silêncio das madrugadas.
Novamente o motorista coçou a nuca – ele sempre reagia assim quando não sabia qual a decisão a tomar. Por fim, perguntou:
– E agora, como irá para casa?
– Quando acabar de amanhecer, eu acerto.
– Droga! … E até o dia clarear, como irá arranjar-se?
– Não sei.
– Ora, ora! Não me diga mais nada – e pensou sussurrando: jamais irei livrar-me desta desgraça de costume de falar e perguntar demais.
Bateu a poeira da poltrona, arrancou uma pequena coberta do saco de viagem, deitou o menino e fechou a porta. Depois se estirou no fundo da boleia e deixou que seus pensamentos divagassem até que o cansaço o consumisse numa doce despedida de tantos e intermináveis problemas e infortúnios. Dormiram até o sol arder-lhes nas faces.
12
Depois dos transtornos da morte de Ádila, Ronaldo imbicou ainda mais pelos caminhos das desavenças e da irresponsabilidade. Muitas foram as noites em que Ariel passou em claro, procurando uma saída digna para amenizar a discórdia entre ele e o filho. Já havia tentado compreendê-lo, usando todos os conselhos e meios apresentados por pessoas especializadas no assunto, mas jamais alcançara qualquer resultado satisfatório.
Fora complacente quando Ronaldo esmagara, com um trator de esteiras, um fusca de um concorrente que ameaçava roubar-lhe a namorada; pagara as despesas de um bar inteiro, numa noite em que, totalmente ébrio, pôs tudo abaixo; expusera-se ao ridículo e afetara sua própria consciência, subornando a justiça por ocasião de um tiroteio que seu filho fizera em plena festa de aniversário; indenizara uma mãe que perdera o filho único atropelado por sua moto de 500 cilindradas… Depois de tudo isto, conseguiu que um sacerdote moderno, recém-ordenado, tentasse demover o filho de tantas loucuras: o ministro de Deus foi salvo a tempo por Ariel, pois Ronaldo já estava prestes a conseguir um encontro furtivo do padre com uma prostituta. Agora era a vez do xeque-mate, da última e decisiva tentativa: a força.
Era uma tarde amena, das poucas e raras que ocorrem em Imperatriz. Ariel, na varanda da casa, olhava para o Tocantins, perdido em suas conjecturas. De repente, uma viatura parou em frente, buzinou deseducadamente e, por fim, alguém mais esperto viu a campainha e passou a usá-la como se fosse uma criança maravilhada com o som agudo que tilintava. Ariel veio atender sem muitas dúvidas do que pudesse ter acontecido. Afinal, ele era pai de Ronaldo, um adolescente problemático.
– Que foi que ele fez desta feita? – perguntou Ariel dando um suspiro de desabafo e tristeza.
– Agrediu um senhor, sem motivos.
– Sem motivos? – perguntou Ariel, por perguntar.
– Sim. Alegou apenas que se parecia com o assassino de sua mãe.
Ariel empalideceu, afastou o portão com gesto irrefletido e achegou-se. Ronaldo estava peado pelas algemas e mascava uma goma com a arrogância de um toxicômano. Ariel fitou-o por alguns instantes e depois perguntou:
– Quem está chefiando esta patrulha?
– Sou eu – disse um mulato alto e magro, adiantando-se aos demais.
Ariel estendeu a mão amistosamente.
– Lamento por mais esta vez. E a propósito, que devo fazer para tentar colocar as coisas nos seus devidos lugares?
– Ele é menor de idade e neste caso, o senhor é o responsável.
– Houve ferimento na agressão?
– Um bom sulco no crânio. Foi uma cacetada pra ninguém botar defeito. O homem está no São Vicente Ferrer.
– Se concordarem, poderão soltá-lo. Irei em seguida ao hospital para acertar a conta e indenizar o ferido.
Os policiais entreolharam-se, concordando a seguir. Abriram as algemas e puseram Ronaldo na calçada da casa. Ele estrelejou os dedos, esticou os braços, cuspiu a goma que mascava e entre sorrisos de escárnio, observou:
– Turma de macacos sem personalidade, não disse que meu pai cagaria em cima de vocês? Essa meganhada toda de Imperatriz não vale os dejetos de um penico. Aposto que pelo preço de uma vaca magra até prenderiam o homem por ter sujado meu porrete. Vocês não passam de uns….
E antes que pudesse desfiar toda ladainha de injúrias, os policiais aceleraram forte a velha Ford e deixaram o problema nas mãos de Ariel. Este, irritado e sem mais condição de manter-se digno e respeitável, agarrou o filho pelo braço e arrastou-o para dentro de casa.
– Olha aqui, moleque, não sei bem quem é o responsável por esta sua índole: eu, você ou o próprio Deus; não entendo também por qual de nossos antepassados estamos aqui ressarcindo os erros, mas seja de quem for, não irei mais aceitar esta situação. De hoje em diante não quero mais ser incomodado por uma pessoa desajustada, que por sarcasmo do destino, nasceu de minha mulher…
– A mulher que você matou e que era minha mãe – interrompeu Ronaldo.
Ariel, num impulso incontrolável, saltou da cadeira, agarrando Ronaldo pelos colarinhos.
– Repita isto moleque, repita se tem topete para isto, repita! – e seus olhos flamejavam de ódio e revolta.
Ronaldo, no entanto, parecia não temer coisa alguma. Mantinha-se impassível e desafiante, com um leve sorriso de desprezo a dançar-lhe nos lábios. Deixou o pai terminar a litania de agressões verbais e depois, num gesto de revolta e orgulho ferido, afastou-lhe as mãos e rosnou como uma fera acuada:
– Tire as mãos sujas de cima de mim. Não vê que estou morrendo de medo?
Seus olhos, vermelhos e fundos pelos narcóticos, pareciam dois foscos espelhos em que apenas o ódio e a desilusão refletiam-se. Ariel afastou-se devagar. Não havia, em seus recursos, de curioso e de pai, mais nada a tentar. Sentou-se, respirou fundo outra vez, recobrou a dignidade e a consciência da situação e depois falou mais compassada e decisivamente:
– Aqui percebo que fico sozinho no mundo. Não matei sua mãe. Você era ainda muita criança e talvez não pudesse entender, que somente com a força, às vezes, se é possível dominar uma pessoa que se tenha desajustado. Hoje, porém, é quase um homem e bem poderia entender, mas não quer. E quando uma pessoa não entende uma coisa pelo simples fato de não querer, é caso consumado. Quero que se considere expulso desta casa e, se houver jeito, substituirei seu sobrenome, pois hoje, para mim, você está irrecuperavelmente morto. Vou passar a fazenda e o gado de Araguaína em seu nome e de hoje em diante irá viver lá, pois aqui não permitirei que entre mais. Há lá, atualmente, mais de 4.000 cabeças de gado e bem dará pana você comprar e consumir drogas até o fim de seu resto de lucidez. Deus é testemunha de que não desejava que as coisas se dessem desta forma. E agora saia desta casa que quero mandar ensaboar os lugares por aonde passou. Quero que me odeie com todas as suas forças, pois como filho, me é muito pior.
Ronaldo ergueu-se, passou um último olhar pelos derredores, meneou a cabeça para baixo e para cima e em seu eterno desdém, assegurou-se:
– Quando terei as escrituras nas mãos?
– O quanto antes. Ninguém pedirá mais pressa ao cartório do que eu. Pode tomar posse desde já que irei passar as ordens. Os documentos lhe serão entregues nas mãos, em sua própria casa.
– Veja lá, velho! Não tente trapacear comigo: sei bem onde mora – e dizendo isto afastou-se, batendo a porta com a veemência de um tresloucado.
Ariel viu o vulto eclipsar-se na sombra da varanda. Aquela criança de anos atrás, feliz e dependente que carregava no colo, com a qual brincava na grama do quintal, agora se transformava num monstro indomável. Nega Maria passou pela sala, e pelas feições de Ariel, brotaram-lhe algumas lágrimas. Pai e filho, essência de amor, sumo do ódio – pontos extremos em choque.
13
O caminhão zuiu o velho motor com os silenciosos danificados e desapareceu na primeira esquina. Havia por sobre o mar, manchas avermelhadas de sol. Os primeiros pardais já cruzavam as ruas. Um velho capenga, de bengala na mão, cruzava a praça rumo à padaria. Ouviam-se também guizos de gargantas a pigarrear e o ranger de portas e janelas que se abriam. Era o dia que amanhecia para alegria ou tortura de muita gente.
Tomás permanecia petrificado na calçada como a mulher de Lot no deslumbramento de Sodoma em chamas. Como se estivesse em alto mar, também a cidade não tinha direção a sugerir-lhe: ele não tinha nenhum lugar para chegar. Como um filho diante da mãe desfalecida, seus olhos sentiram as agruras da vida, e ele chorou sem trejeito, deixando apenas as tépidas gotas descerem pela face morena. O vento que vinha do mar arrefecia o calor que lhe vagava pelo rosto diante daquela triste situação.
Começou a caminhar, vagar sem destino, à deriva de seus rumos incertos. Andava e andava, olhava sem ver. Era apenas uma criança, um menino sem lar e sem pais, regido pelo instinto do sono, da dor e da fome. As horas foram passando, o estômago doendo. Numa lanchonete, muitas pessoas fartavam-se, riam e conversavam, sem se dar conta da triste realidade de mais uma criança abandonada. Por baixo das cadeiras, um vira-latas recolhia as migalhas dos pastéis. Tomás invejou-o. Ficou olhando as pessoas comerem e beberem. Podia pedir (talvez alguém se apiedasse) mas nem para isto estava preparado em sua nova vida. E seu estômago doía ainda mais diante do cheiro e dá presença dos alimentos cozidos e temperados.
Voltou a caminhar, até que viu num latão de lixo, um saco com pães dentro. Encostou, olhou medroso pelos derredores – o povo não se apercebia da miséria que rondava: sorria e conversava como se fosse comum o confinamento dos anjos de Deus e as facções do diabo. Bem e mal, riqueza e miséria, felicidade e lágrimas, barriga cheia e fome…, tudo estava ali, palmo a palmo de cada olhar que progredisse.
Tomás tomou a bisnaga e mastigou-a. Uma senhora que passava, observou revoltada:
– E uma vergonha que as autoridades permitam que isto aconteça em pleno século XX – e seguiu seu caminho rumo aos sinos que indicavam a hora da Ave-Maria. Ia em busca de um Deus só seu, que também estava como Tomás: cheio da fome da caridade, mas só lhe ofereciam restos deteriorados.
E a primeira noite foi se avizinhando, chegando de mansinho. O sol declinava-se devagar, mas inexorável. Tomás ainda caminhava, levado pelas mãos dos anjos, a um ponto qualquer. Mais adiante, um magote de crianças saía das areias da praia com uma bola de borracha debaixo do braço, matraqueando como se fosse um bando de psitacídeos. Todos sabiam onde tinham de chegar.
Tomás sentou-se na areia, bem próximo de onde as ondas quebravam. A brisa quente do dia arrefecia-se ante a despedida do sol, que acenava seu lenço escarlate lá no ilusório horizonte da terra. As ondas batiam devagar e compassadamente: vinham até perto dos pés do menino e ali se infiltravam, deixando flóculos de espuma espalhados na superfície lisa da areia. O menino olhava o sol sumindo, as ondas barulhando, o azul das águas q…. Olhava o mundo e a vida, e de seus pequenos olhos, as lágrimas rolavam. Depois, suas mãos pequenas apertaram a areia que tocavam e ele, cansado, dormiu.
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Em 1932, Tomás parecia ter encontrado seu lugar na construção do mundo. Desempenhava seu papel de criança órfã e abandonada em meio a um mundo de edifícios e ostentação. Dormia debaixo de uma ponte que servia de travessia num braço de mar, juntamente com mais três crianças, cuja índole não era tão forte para fazê-los manter a dignidade.
Os três furtavam e eram dados a toda sorte de vícios. Forravam as muralhas de cimento com gravuras pornográficas e ficavam a se masturbar, vendo as mulheres que passavam distraidamente pela ponte. E Tomás conseguia viver ali, no meio de todos aqueles vícios, sem manchar a pureza de sua alma. Quando achava que devia, dizia alguma coisa, mas isto era muito raro. Preferia ficar calado, olhando para as pequenas ondas que dançavam com os ventos incertos e com as marés. Falar qualquer coisa ali, seria o mesmo que tentar acalmar, de imediato, um cão raivoso.
Parecia perceber, precocemente, que era inútil estender a mão a náufragos que não queriam livrar-se das águas. Por isso se calava, embora não concordasse com seus companheiros. Refazia sua caixa de engraxar, colocava tudo a um canto, benzia-se e deitava, tentando sempre um assunto que não fosse roubo ou devassidão. Essas histórias raramente ganhavam atenção.
Ninguém ensinara boas maneiras e costumes decentes a Tomás. Ainda quando era Balbino, ficava a um canto do motel, aparentemente alheio ao que Diná, sua mãe, fazia em cima da cama. Depois foi deixado por ela numa praça de Belém. Em seguida, juntou-se com pivetes sem o menor princípio. Mas nada dentro dele era tão forte como a predestinação que o regia. Não roubava nem se prostituía como os demais meninos de seu grupo, simplesmente porque isto não estava dentro si. Se não podia conviver com gente decente para usufruir bons ensinamentos e boas maneiras, pelo menos conseguia, naquele submundo, perceber o que não devia ser feito. Talvez seja por isto que se diz que Deus escreve certo por linhas tortas: quando não se tem um bom exemplo a seguir, vê-se, ao menos, o que não se deve praticar.
Durante mais de um ano Tomás conviveu com os três pivetes. Depois, a cada dia que passava, a situação tornava-se mais insustentável. Não podia mais estar ali pensando de maneira tão diferente. A cada dia eles mais o agrediam com palavras e Tomás percebeu que não tinha mais ambiente e clima para ali permanecer. Um dia, saiu pela manhã e não mais voltou. Instalou-se sob a marquise de uma loja e engraxava sapatos até que seus olhos se fechassem. Para seu cansaço e fraqueza, não eram necessários lençóis de linho, nem colchões macios.
Alguns meses depois, um homem comum dispôs-se a aceitá-lo em sua oficina de consertos eletrônicos de veículos. Tomás deixou as ruas e passou a dormir num canto da oficina. Estava feliz por isto, pois o pouco sempre se agiganta para aqueles que nunca tiveram nada.
14
Quantos segredos estabeleceu o Senhor como função a desempenhar de cada ser criado! Ninguém jamais saberá os motivos das diferenças, nem tão pouco das desigualdades das coisas aparentemente iguais. Desde as bactérias ao maior dos cetáceos, tudo é e age de modo desigual e estonteante. O clímax desta configuração está nos seres humanos, em que cada um é um universo imprevisível. Assim dispõe o Senhor, assim as coisas acontecem.
“Um dia compreenderás que não somos responsáveis por nossas más ações; os desígnios de Deus são impenetráveis – diz-nos o Alcorão”.
A bondade e a maldade vivem em cada coração humano. São atuantes e fortes, mas sempre uma sobrepuja a outra. Assim Deus dispôs e só com muito esforço poderemos demover os seus decretos. Isto resume, embora pareça paradoxal, a lei do amor, da compreensão e do perdão.
A água corria de manso por entre gramíneas bem cuidadas e esparsos troncos de buriti. Pequenos caramanchões enfileiravam-se pela barranca em que grupos de excursionistas ajeitavam-se para passar o feriado. O cheiro de carne assada e de vinho infestavam o ar. Em um canto, à sombra dos açaís, dois rapazes e quatro moças, sentados na grama, cantavam e tocavam violão. Perto de cada um, um copo cheio de bebida alcoólica: centro de toda alegria e extroversão. Litros de bebidas que variavam da mais comum aguardente ao mais refinado whisky, estavam numa grade esperando.
A entrada que dava acesso ao balneário era sinuosa e demarcada por alamedas de fruteiras. Ali os jambeiros sobressaíam-se com seus frutos vermelho-arroxeados. Num instante, como tudo o que acontece de mais desagradável, um carro entra desenfreado, derrapa, desgoverna-se e bate numa árvore, esmigalhando o tenro tronco. O motorista fica desacordado. De um corte profundo na testa, o sangue jorra aos borbotões. Logo foi socorrido e estendido na grama. Sua respiração exalava o cheiro de bebida fermentada. Um curioso pressionou o osso da testa e diagnosticou, com precisão médica: apenas um corte merecido.
– Alguém conhece este moço? – perguntou afinal, um motorista de curtos calções, a quem a oportunidade que se dera, parecia realizá-lo. Diante do silêncio e das olhadelas ocasionais, a moça desviou os olhos para o carro danificado e observou:
– A placa é de Araguaína.
– Deve ser o campeão de cavalos-de-pau, cuja fama já chega a Imperatriz – arrematou o companheiro da moça, sem dar ares de muita preocupação.
– Todos acabam assim – falou um outro, cuja fisionomia tentava transparecer responsabilidade e desaprovação.
O sangue foi estancado e um pequeno movimento do braço direito indicou que o rapaz voltava a si. Era um moço alto, aproximadamente, um metro e oitenta de altura, forte e cheio de vida. Vomitou, contorceu-se, esperneou, desfiou um verdadeiro rosário de impropérios, depois se equilibrou como um potro recém-nascido, olhou as pessoas que se acercavam e tremendo como um caniço ao vento, perguntou:
– Que foi que aconteceu?
A moça que amparava sua cabeça e limpava o sangue do rosto, respondeu:
– Você veio como um maluco e bateu o carro contra aquela árvore.
– Droga! – limitou-se a exclamar, reticente, Ronaldo.
À noite, quando tudo parecia estar resolvido, já quase ninguém falava ou pensava mais naquele acidente. Estendido numa poltrona, com um grosso turbante de compressas a envolver-lhe a cabeça, Ronaldo parecia mais um árabe contrito do que um desvairado moço brasileiro.
A cabeça doía bastante, mas o pior dos males nunca lhe fora o físico. Já era quase um dependente das drogas e dos prostíbulos e a certeza daquela temporária abstenção, doía-lhe mais que o corte que recebera.
Quando a campainha tocou, Ronaldo estava tão absorto que nem ouvira o som estridente. Era uma mulher vestida de seda: um pano macio de cor amarela com estampas de frutos desenhados, que bem moldurava e dava ciência do belo corpo que escondia. A empregada anunciou-a:
– É uma mulher que quer vê-lo. Disse que estava lá e socorreu-o por ocasião do acidente.
Ronaldo não se lembrava de nada, ou, pelo menos, de muito pouco. Mandou que a fizesse entrar e continuou em sua posição espalhafatosa. Vestia uma sunga deselegante e, além dela, apenas um grosso cordão de ouro e o turbante. Quando a mulher já estava na sala, avisado pelo perfume que invadia o ambiente, Ronaldo virou-se devagar. Foi então que se deu conta de seu estado, e arrastando uma almofada de encosto, cobriu as coxas. Fez um sinal de quem avisa que estava acidentado e em sua própria casa e depois mandou que a mulher se assentasse. Ela postou-se bem em sua frente, piscou graciosamente seus olhos ciliados e perguntou:
– Como está se sentido, agora?
A voz veio macia e deixou bem claro que era de uma mulher inteligente, simples e sagaz. Ronaldo fitou-a num cerrar do cenho. Deu-se conta que era bonita, uma estranha criatura que preenchia sua definição do belo.
Interessou-se:
– Estava lá no balneário?
– Foi eu quem assistiu a você mais amiúde, embora outros também o tivessem socorrido.
– Eu sou um louco mesmo, não havia necessidade de vir lembrar-me.
A moça assentiu afavelmente com um nuto:
– É próprio da idade e do temperamento. Estas coisas se vão embora como chegam, você vai ver.
– Não acredito. Sou a exceção da regra. Estou enfiado nisto até os joelhos.
– Sai sim – encorajou a mulher – você sai. Espere para ver. Não tenha pressa. A propósito: sempre morou aqui?
– Ora, por que pergunta?
A moça não se desconcertou. Olhou maliciosamente para Ronaldo e observou:
– Você é um moço forte e bonito. E rico também, e não me lembro de tê-lo visto por aqui, apesar de meus cinco anos de vida intensa por estes lados.
– É que estou aqui há menos de um ano e raramente frequento a sociedade de Araguaína. Passo quase todos meus fins de semana pelas capitais circunvizinhas. Nunca me dei bem por aqui.
– E por que não, se é tão rico e bonito?
– Exatamente por isto – retrucou ele, sem o mínimo de modéstia.
– Ah, acho que entendi! – disse a moça, erguendo-se e indo assentar-se a seu lado. Passou-lhe a mão pelo rosto.
– Ainda dói muito?
Ronaldo virou-se um tanto surpreso pela ousadia. Ia dizer uma outra coisa, mas no fim de contas, controlou-se.
– Então, foi você quem me socorreu!
– Apenas uma das pessoas. Não me saí bem como enfermeira? – e novamente passou as mãos macias e preguiçosas pelo rosto de Ronaldo. Ele ajeitou a almofada que lhe cobria o pudor e embora estivesse tão habituado a todo tipo de insinuação, desconcertou-se mais uma vez.
– A propósito, fale-me de você.
– Falar o quê?
– Por exemplo: seu nome; como veio parar aqui; onde moram seus pais…
– Diná Correa – respondeu ela. E assegurou: – As demais coisas, tenho certeza, não lhe interessarão, e a mim não é agradável relembrar.
– É incrível que meu faro tenha falhado por tanto tempo – observou, maliciosamente, Ronaldo.
– Bondade sua. Acho que a pancada não lhe fez muito bem. Se estivesse falando sério lhe daria um beijo.
– Se não tivesse, falaria agora, diante de tão promissora ameaça.
Diná aconchegou-se, roçando os seios hirtos no peito nu de Ronaldo. Apesar da vida desregrada, seu corpo resistia como se fosse o de uma donzela virgem. Ali entre eles não havia o temor do bíblico José, filho de Jacó, mas apenas a insinuante malícia de Zuleika. O Alcorão, quiçá, tivesse que repetir, então, a velha interpretação do Antigo Testamento, com mais uma versão:
“Tu és livre porque eu te amo e a deusa Isis, mãe e irmã de todos os seres, nos protege. No livro dos Segredos Humanos lemos que os homens devem amar, confiar e abandonar-se ao doce rio dos dias que terminam no Vale das Acácias. Vem, pois, amado meu. O rio vai nos conduzir ao vale precioso onde não conta o tempo, onde não existe nem silêncio nem ruído, nem frio nem calor, nem tristeza nem alegrias…” – e o pássaro do mal não teve como fugir às redes, nem se esquivar de beber na fonte das delicias”!
Ronaldo mergulhou no cheiro suave daquele bosque imaginário e limitou-se a dizer:
– A mim basta o que o diabo inventou – e a possuiu ali mesmo, na poltrona da sala.
15
A criança nasceu com os olhos quase azuis. Os cabelos negros e hirsutos completavam o toque de uma criança, quase boneca. Emanuele (como seria chamada) nascia bonita, sem aquela cor um tanto desagradável dos recém-nascidos e nem com as secreções pegajosas que são tão comuns. O pai tomou-a desajeitado, mas com carinho e prazer inqualificáveis. Durante seus 16 anos, talvez não tivesse tido, ainda, a doce sensação de se sentir útil e responsável.
Assentou-se ao pé da cama e deixou que seus olhos orbitassem de Diná à criança, sempre com a mesma doce emoção esotérica. Apesar da vida desregrada, da grande revolta que insistia guardar dentro de si, era Ronaldo um homem normal em muitas características. Apenas não soubera esquivar-se de um ataque psíquico e ficara marcado, indelevelmente. Muitas vezes, quando se cansava de lutar contra os momentos de reflexão, sentia na alma a luta quieta de sua consciência, mas jamais se dera a oportunidade de fugir do impulso de revolta. As curtas lembranças que sobrevinham do pai eram sempre cercadas do desejo de vingança. Depois que recebera dele a documentação das terras e dos bens, nunca mais o vira. Evitava, até mesmo, ir a Imperatriz, eliminando, assim, qualquer possibilidade de um reencontro desagradável.
Ariel, por sua vez, dera o caso por encerrado. Os anos que vivera com o filho foram suficientes para apagar de seu coração todo e qualquer sentimento paternal. Vivia solitário, fumando seu cachimbo e lendo o que dava o dia. Seus esforços para localizar Diná e, consequentemente, seu filho, esgotaram.
O que ele jamais conseguia conceber era como Diná, uma mulher pervertida, interesseira e pobre, não o procurava para tirar proveito de sua situação financeira. E este orgulho de Diná machucava-o sobremaneira.
Imaginava-a distante, em outro estado, talvez no Sul, embora ela estivesse ali, a pouco menos de 400 quilômetros dele.
O destino, porém, preparava com requinte e sutileza, o cenário e a cena de um caso quase ímpar.
A falta de sentimento e apego de Diná, até mesmo com os próprios filhos; o modus vivendi insociável de Ariel e o pouco caso que Ronaldo demonstrava pela vida eram suficientes para armar uma das mais estonteantes surpresas. Ali – sob a determinação de Deus – os três iam dando prosseguimento à vida, respeitando aquilo que bem definiu Schopenhauer: “A despeito de todas as resoluções e reflexões, não pode mudar sua conduta e, do início de sua vida até o fim, tem que desempenhar o papel que lhe foi confiado”.
Sem dúvida, o homem, este universo imprevisível, consegue, em apenas uma curta existência, deixar para trás tantas incertezas e dúvidas, quanto é o destino final de um meteoro que mergulha na escuridão do infinito.
E Diná estava ali, deitada na cama com sua filha Emanuele de um lado e com o filho de seu ex-amante, como marido, do outro. Quinze dias depois daquela visita a Ronaldo, Diná passou a morar com ele. Trouxera suas roupas, arrumava-se como uma rainha e jamais se deu à insensatez de falar de seu passado.
– Errei quando era pequena – dizia ela, e fechava-se como um caramujo, enquanto o ciúme inexperiente de um rapaz de 16 anos evolava-se num sem-fim de conjecturas. Era simples, sem instrução, porém, mulher.
Sempre bonita e feminina, conseguia deixar os homens amalucados. Sua aparência de menina-moça era o engodo perfeito para ludibriar os homens. Para Diná, o sexo parecia lenitivo, fisioterapia de esbeltez e graciosidade. Os seios continuavam pequenos e aprumados; os lábios, com o frescor de uma debutante e a cintura parecia a de uma autêntica bailarina moscovita. O corpo desafiava a argúcia dos homens quanto ao diagnóstico de saber a vida que leva uma mulher, pelo corpo que apresenta.
Ronaldo, por uns tempos, parecia acreditar que sua vida tomaria outro rumo. Completamente apaixonado, já quase não saía de casa. Emanuele era-lhe tudo, inclusive motivo para esquecer as drogas. E talvez ele tivesse conseguido, não fosse tão severo e renitente, o preço de seu passado. Seus companheiros não o deixavam em paz, tendo sempre e pertinazmente, um convite novo para uma nova aventura. Apesar das insistentes negativas e de sua relutância, estava sendo difícil, muito difícil mesmo, livrar-se, não dos vícios, mas das pessoas que o levavam a cometê-los.
Por outro lado, Diná estava enfronhada em sua vida devassa de tal modo, que logo seus amantes deram para rondar a casa. Era uma mulher bonita e sensual, esperta e feminina como talvez não tivesse sido Salomé, filha de Herodíade.
Alguns meses depois do parto, seu corpo voltou à esbeltez da mocidade. Agora que tinha todo tempo e conforto de que precisava, estava cada vez mais bonita e atraente. Já não se dava o dissabor das desagradáveis lembranças retroativas, em que a pobreza, mesclada à vida dura de uma moral ultrapassada, trazia-lhe fantasmas, e não se cansava de lembrar-lhe que fora uma menina vagabunda e sem recuperação.
De sua mente, jamais aquele dia desapareceria, não obstante a vida lhe desse tantas oportunidades de apagá-lo. Aprendera a não se apegar a ninguém, a não depender de quem quer que fosse. Sua beleza, por si mesma, era-lhe companheira e amparo. Nunca mais voltara para casa, nem tivera ou procurara notícias das pessoas que tanto pareciam estar envolvidas em sua vida. Seus pais e irmãos, Ariel, Balbino, nega Maria, Ádila…, ninguém, ninguém mesmo, conseguia penetrar no abismo de sua constituição. Ela era assim e nem se quer esforçava-se para sê-lo. Não se preocupava com a vida de ninguém, não amava ninguém, embora aceitasse o amor como vingança à estúpida moral do pai, e única maneira prática de sobreviver. Uma vez desligada da pessoa, esquecia-a. Se estava perto, esbanjava amor: uma cadela perdigueira em potencial.
Nunca se dera o trabalho de uma reflexão. Eram tantos os acontecimentos de sua vida, as amizades, os companheiros e amantes, que nem se deu o trabalho de imaginar que o pai de sua filha já estivera em seu colo e era irmão, por parte de pai, de seu filho Balbino. Se em sua cabeça houvesse reflexões, ela fazia questão de desconhecê-las. Gostava do sabor acre de certos coquetéis que as próprias contingências da vida ofereciam em taças de ouro e prata. Parecia predestinada a estas aberrações que, às vezes, a própria Natureza prepara com tanto desvelo.
Em 1921, quando ficou grávida de Ariel, Ronaldo era um menino de cinco anos. Vira-o tanto correr pela sala, quebrar lustres, derrubar copos…. Mas nunca se preocupara, a não ser em recolher os cacos ou devolver ao lugar os objetos derrubados.
Nem o fato de seu filho amante ter agora a verdadeira idade daquele menino, e se chamar Ronaldo, preocupava-a. Simplesmente deixava as coisas acontecerem. Quanto mais estonteante a armação do cenário, mais lhe agradaria a peça.
Quando, naquela noite visitara Ronaldo e recebera dele o convite de viverem juntos, aceitou sem relutância, sem perguntas, sem exigências de qualquer espécie. Estaria ali, enquanto lhe fosse bom, necessário e conveniente – nada mais importava.
Estava preparada para cumprir uma brincadeira dos céus, na maneira mais simples e comum do mundo. A vida ia passando; os dias se sucedendo; as pessoas crescendo, tornando-se adultas, envelhecendo.
16
A festa de formatura fora singular. Emanuele, em seus 17 anos, não possuía os traços físicos do pai, nem da mãe. Estatura mediana, talvez um pouco gorda, os olhos castanho-claros, cabelos negros, feição sem nenhum atrativo físico especial. Uma mulher, no máximo, de beleza natural razoável. Sobressaía-se apenas nos estudos, em que era considerada a mais esforçada da classe. Foi a oradora da turma de Pedagogia e sentia-se feliz, apesar de não esquecer os pais que a trouxeram ao mundo, e dos quais nunca tivera muitos motivos para se orgulhar.
Ronaldo, sempre metido em negócios escusos, voltara à dependência dos tóxicos e vivia possuído pela ideia fixa de vingança contra seu pai, a quem não permitia, ainda que fosse, a mais leve recordação. Se alguém falasse qualquer coisa a respeito de sua família, ele reagia com a violência de um tresloucado. Por isso, Emanuele jamais insistia em conhecer seus avós, não obstante houvesse, dentro de si, um desejo enorme de fazê-lo.
Neste dia, porém, Ronaldo e Diná estavam impecáveis: bem vestidos, sóbrios e cheios de amor. Emanuele, feliz e cansada, estava na poltrona de trás, com os olhos estriados nas paisagens que se sucediam na passagem do carro pela estrada.
De Belém a Araguaína, somavam-se quase mil quilômetros. A noite já se despedia, quando se aproximaram da cidade de Imperatriz.
– Paremos neste posto um pouco, amor, sinto que está sonolento e cansado.
– Já ia fazer isto – retrucou Ronaldo sem muita satisfação, pois não gostava que ninguém lhe ditasse a mínima das regras.
Diná calou-se, enquanto o carro curvou e parou rente à bomba.
– Encher, doutor? – perguntou o bombeiro, enquanto tomava a mangueira e recebia as chaves da mão de Ronaldo.
– Olhe também a água e o óleo – completou Ronaldo, e depois recomendando: – limpe o para-brisa também.
– Deixa comigo, doutor.
Foram à toalete, depois ao bar. O bombeiro chegou alegre, como se a noite perdida fosse pouco para subtrair qualquer porção de bom humor com que Deus havia-lhe agraciado.
– Tudo em cima, doutor, Cr$153.000,00 fora a gorjeta. Olha lá o brilho!
Ronaldo pagou com excessiva generosidade e entrou no carro. Tentou acionar o motor, mas apenas um curto e débil estalido se fez sentir. Tentou mais vezes, mas sempre o fraco barulhinho típico de vã tentativa.
– Droga – exclamou irritado – nem em carros novos podemos confiar mais.
Chamou o bombeiro. Um motorista de transporte aproximou-se solidário. Examinaram e reexaminaram.
– É a bateria – disseram em coro. Agora, só empurrando.
– Mas, é noite. Preciso dos faróis e, sem bateria logo ficarei no escuro.
No horizonte, o rubor da manhã era percebido. Os caminhoneiros iam despertando, aumentando o tráfego na Belém-Brasília e também o movimento no posto em que se encontravam. Não havia outra escolha, senão, uma nova bateria. Mas, o comércio só abriria às oito horas e Imperatriz distava dali 35 quilômetros. Foi quando uma camioneta pick-up estacionou, descendo dela um rapaz de aproximadamente 28 anos, baixo, moreno, cabelos e olhos negros, vestindo uma jaqueta azul-marinho de mecânico. Não era um atleta, nem um subnutrido – apenas um jovem normal, honesto e trabalhador. Desceu, tomou um café e ia saindo quando Ronaldo interpelou-o:
– Entende de carros, moço?
– Parte elétrica, apenas – limitou-se a responder.
– Gostaria que desse uma olhadela no meu carro. Não quer mais pegar.
Tomás, em sua eterna docilidade, assentiu humildemente, dirigindo-se para o Comodoro. Abriu o capô, examinou, fez simples e rápidos testes e diagnosticou:
– Bateria mesmo.
O bombeiro aproveitou e fez um verdadeiro discurso sobre sua capacidade, finalizando:
– Eu não disse? Entendo disto a fundo.
Tomás virou-se para Ronaldo:
– Se quiser, posso tentar, já que a bateria é nova, uma “cirurgia” para resolver o problema temporariamente.
– Cirurgia? – perguntou incrédula, a mocinha que até então lia um livro qualquer.
Tomás levantou os olhos e sentiu uma força imediata dominar-lhe o ser. Nunca sentira nada igual até seus 28 anos de vida intensa e sofrida. Abandonado, de mão em mão, no meio de marginais, sem lar, nem familiares… tudo fora um pesadelo que precisava esquecer. Por isso trabalhava com afinco e fazia da ocupação o mais eficiente remédio contra possíveis paranoias e depressões.
Agora, com sua oficina “Beco do Fogo”, parecia realizado. Cada conta que pagava, cada objeto que adquiria parecia-lhe uma vitória sem precedentes. As recordações tristes da vida vinham-lhe (ele sabia) tão logo se desse o prazer de uma hora de descanso. Por isso não possuía muitos amigos, a não ser clientes agradecidos que sempre lhe eram gratos pela precisão de seus serviços profissionais. Dava tudo de si, esforçava-se como um cientista dependente de suas pesquisas.
Quando, porém, seu olhar cruzou-se com os de Emanuele, ele estremeceu, desconcertou-se todo e ficou, por instantes, em atitude apalermada. Depois se recompôs:
– É…., uma cirurgia. A gente faz um furo com uma talhadeira na caixa da bateria (como quem castra uma porca lá no mato) e retira o elemento em curto ou refaz a conexão.
Emanuele ouviu-o incrédula.
– Pois faça esta tentativa – autorizou Ronaldo, já sem muita simpatia, pois era um especialista em olhadelas furtivas.
Como um exímio cirurgião, Tomás retirou os cabos da bateria e colocou-a sobre uma banqueta da pick-up. Em seguida, abriu a maleta e retirou as ferramentas de que precisava. Afastou as tampas de manutenção e percebeu que um dos elementos soltava pequenas borbulhas. Encostou o ouvido: não havia dúvida, aquele elemento estava isolando a corrente elétrica dos demais. A bateria era blindada, por isso, muniu-se de uma talhadeira e abriu um furo do lado direito: estava perfeito. Fechou-o cuidadosamente.
Um curioso que possuía uma pequena oficina ao lado, suspirou incrédulo. Tomás não desanimou. Abriu novo buraco do lado esquerdo: lá estava o problema, uma conexão interrompida.
– Aqui está – disse ele vitorioso. Agora irei precisar de você – disse virando-se para o incrédulo curioso.
– Tem solda branca?
– Tenho.
– Pois ligue esta conexão, por favor. Ela é a única responsável pela interrupção do circuito.
O rapaz, um tanto desajeitado, soldou a conexão, devolvendo-lhe a bateria. Tomás examinou, recolocou a parte cortada fixando-a com durepox e passou um exame minucioso em volta: tudo estava, em tal contingência, perfeito. Esfregou as mãos na estopa e disse:
– Pronto! Cliente recuperado. Basta apenas esperar que o durepox endureça.
– Tem tanta certeza assim? – perguntou cravando-lhe os olhinhos castanho-claros, Emanuele.
– Acho que sim. É minha profissão, devo entendê-la. E por falar nisso, que faz na vida e onde mora? – investiu curioso e interesseiro, Tomás.
– Acabo de formar-me em Pedagogia e moro em Araguaína. Pai – falou Emanuele com simpatia – dê-lhe nosso endereço. O favor que ele nos fez hoje, poderemos retribuir amanhã.
Ronaldo enfiou as mãos num dos bolsos e com visível sinal de desaprovação, estendeu um cartão amarfanhado.
– Não repare – justificou-se em seguida – é o único que trago comigo neste momento. Passando por lá, pode chegar. E enfatizou: – se esta coisa funcionar.
Tomás meteu o cartão no bolso da jaqueta sem interromper o trabalho de bem posicionar a bateria em seu devido lugar. Depois, forçou-a num movimento de vaivém, pressionou o durepox com o indicador, torceu a boca em sinal de dúvida e falou:
– Veja lá se poderei visitá-lo.
Ronaldo assentou-se ao volante e acionou a ignição: o motor pegou como se nada de anormal tivesse acontecido antes. Ele sorriu satisfeito e ponderou:
– As portas estarão abertas para quando passar por Araguaína.
– Quem sabe! – respondeu aliviado, Tomás.
Distraidamente Ronaldo ia saindo, quando Diná lembrou-lhe:
– Já pagou ao moço pelo trabalho que fez, amor?
– Não é preciso – antecipou Tomás, sempre olhando, quando possível, para Emanuele.
– Ora! Como não é preciso? Por acaso, somos seus pais?
– Não – falou Tomás – e parafraseando uma célebre observação de Rui Barbosa, completou: – mas poderiam ser, pois sou sozinho no mundo.
– Não tem família?
– Esqueçam, é uma longa história.
Tomás meneou a cabeça para o lado de Emanuele e encontrou seus olhos no caminho. Entreolharam-se pouco e desconsertadamente. Em seguida, ela fez menção de entrar no carro em que Diná, sua mãe, mantinha a porta aberta esperando pela decisão que não parecia muito definida.
Tomás ficou de pé, vendo o carro que partia e sentindo o adeus de Emanuele como um espanador de tênues e tépidas plumas a varrer-lhe o coração.
E enquanto o carro se afastava, Diná ficou a lembrar de uma tarde em Belém, em que abandonou seu filho que, com os bracinhos estendidos, cheios de medo e dependência, implorava: “Mãe, não me deixe aqui! Eu tenho medo, mãe! Mãe! …”
Ela parecia ver os carros zoarem, o povo espremido a passar e o vulto angelical de seu filho, de cujos olhos as lágrimas tombavam inconsolavelmente. Que teria sido feito dele? Perguntava-se em silêncio.
Ela não era de lembranças, mas sem saber o porquê, naquele momento, não pode evitá-las.
17
Não havia quem olhasse para Diná e ser-lhe fiel na idade. Apesar de já haver passado dos 45 anos, sua pele e seus olhos mantinham o frescor e o brilho da juventude. Seus seios continuavam aprumados, sua cintura, bem alinhada. Nunca o sexo desordenado ou os próprios filhos que tivera causaram qualquer dano à sua compleição física. Era, sem dúvida alguma, uma mulher esguia, atraente e bonita.
Ronaldo aprendera a amá-la e vivia cheio de doentio ciúme, o que, às vezes, o ameaçava pôr tudo a perder. E, realmente, não eram infundadas as desconfianças de Ronaldo. Diná nunca deixou de traí-lo, como sempre traía a quem convivesse com ela. Era uma vingança instintiva a todo e qualquer ser que possuísse o mesmo sexo de seu pai. Por causa dele, todo homem nele representado, deveria sofrer e pagar pelo ato desumano de injustiça que praticara contra ela.
Quando Ronaldo abriu a caixa postal e encontrou aquela carta à Diná endereçada, não conseguiu controlar-se e abriu-a incontinenti. Leu:
– Cara Diná:
Devo chegar na quinta-feira e gostaria de vê-la. Estou com muita saudade. A gente se vê no lugar e horário de sempre, okey?
Beijos.
A assinatura era uns rabiscos ilegíveis, feitos propositadamente, mas que Diná bem reconhecia. Ronaldo descontrolou-se e entrou em casa como um tufão. Diná folheava uma revista de fotonovelas com ares de uma santa conformada com a vida monótona que levava.
– Cadela sem vergonha – irrompeu Ronaldo, num impulso incontrolado.
Diná ergueu os olhos, calmamente, acostumada que estava ao ciúme hostil do amante.
– Que diabo mordeu você, logo de manhã, heim amor?
– Eu sempre soube que não prestava. Devia tê-la deixado no cabaré à mercê de homens sujos e ignorantes.
Sem perder a calma, Diná fechou a revista, colocou-a sobre a mesinha de centro e virou-se para o companheiro.
– Vamos, vamos logo – ponderou maliciosamente, como quem soletra bem devagar:
– O homem não lhe trouxe hoje, o doce sonho do além? Nunca o vejo tão irritado, a não ser quando atrasam a entrega.
– Não é nada disto, sua vagabunda. É sobre isto aqui que estou falando – e dizendo isto, estendeu, com as mãos trêmulas, o papel que trazia consigo.
Diná leu-o e tudo fez para demonstrar naturalidade.
– Você está acreditando nisto, não é? Acha que alguém que quisesse encontrar-se comigo, faria o convite por bilhetes? Só mesmo um abestalhado como você para cair nessa.
– Abestalhado, não! Você sabe que detesto que me tratem assim. Meta esta sua língua suja no rabo. Há tempos que sei que você anda me traindo, aliás, você nunca deixou de me trair. Mas de uma coisa pode ficar certa: vou acabar com a festa e a boa vida de vocês.
– Vai acabar nada! – retrucou em riste, Diná, já sem muitos motivos para negar a evidência. Afinal, para ela, pouco importava estar ou não às expensas de quem quer que fosse. Ela tinha consciência de sua compleição que enlouquecia os homens.
– Quer saber – continuou ela – você sempre foi um chifrudo mesmo. Por acaso acha que tem moral para exigir qualquer coisa de mim? Um homem que foi expulso de casa pelo próprio pai; que sempre viveu como um parasita, usufruindo do suor dele; que não consegue viver sem drogas dentro do sangue; que cresceu dentro dos prostíbulos; que rouba, estupra e até mata se for preciso…. Um homem assim acha que tem topete para acusar alguém? Veja se se enxerga! Eu, pelo menos, uso a mim para fazer o meu próprio mal, mas você não, você usa os outros, compra-os para fazerem o mal. Você é muito pior que eu. Eu nasci assim e não será você quem irá modificar. Também, pensando bem, não o acuso totalmente por ser um parasita, um vagabundo, um marginal, um fraco. Para ser sincera, tenho até pena de você.
– Pena? Pena? Ah, miserável! Eu nunca precisei da comiseração de ninguém.
– Precisou, sim. Ainda anda precisando. Não fosse seu pai, estaria morando sob uma ponte. Ninguém mais que você é digno de pena.
– Pare, se não a estrangulo.
– Seria apenas mais uma, seu marginalzinho de meia-tigela. Não tenho medo de suas ameaças. Você é muito bom para mandar os outros. Sozinho, é um banana, um merda.
Ronaldo deixou-se cair na poltrona, totalmente vencido por sua natural covardia. Diná continuou seu desabafo:
– Tem tanto tempo que você está querendo ouvir, de minha boca, as verdades que já está cansado de saber. Pois vou dizê-las todas, agora. Eu era ainda menina-moça, quando um homem me levou para a cama. E sabe quem foi este homem? Quer saber, quer?
– Diga de uma vez, desgraçada!
– Seu pai, abestalhado.
Ronaldo empalideceu como se tivesse escapado de uma derrapagem na orla de um abismo.
– É mentira… É mentira… Pelo amor de Deus, jura que é mentira!
– Seu pai sim, e não guardo dele qualquer rancor. Foi o único homem que me ajudou naquele tempo de abandono, perdida no mundo. Havia sido expulsa de casa, injustamente, sem experiência de vida, sem dinheiro, sem roupa. Se o diabo aparecesse, eu faria com ele qualquer acordo.
– Quanto tempo viveu com meu pai?
– Que interessa isso?
– Quanto tempo, estou perguntando!
– Apenas até engravidar. Daí ele ficou com medo e me mandou ir ganhar o filho em Belém.
– E a criança, que foi feito dela?
– Não sei.
– Como não sabe?
– Acompanhou-me por uns quatro anos, depois a abandonei numa praça de Belém.
– Abandonou? Seu próprio filho?
– Sim, e daí? Comigo ele só tinha a perder. Acha, por acaso, que alguém não cuidou dele? Hoje talvez seja até um doutor, ou pelo menos, um homem honrado. E sabe o que ele seria se continuasse comigo? Um gigolô ou um maníaco sexual como você. Por isso não me arrependo, nem um pouquinho.
– Você não presta mesmo, Diná. Nem uma víbora abandona o próprio filhote.
– Olha quem fala! Já olhou para trás ou para dentro de si?
– Os meus erros não justificam os de ninguém.
– Urra! Salve o filósofo!
– Há quanto tempo não vê mais meu pai?
– Desde o dia em que me mandou a Belém para ter o filho escondido.
– Mentira.
– Nunca me fez, nem fará agora diferença alguma, você acreditar ou não.
– Não lhe importa pensar que posso expulsá-la daqui?
– Não. Enquanto eu tiver este corpo, jamais estarei submissa a qualquer homem em particular. Se for seu desejo, daqui a meia hora não me verá mais nesta casa.
Ronaldo fez menção de levar adiante sua ameaça, mas preferiu ficar nela, entendendo que seria melhor permanecer apenas na intimidação. Afinal, como disse Yoshida Kenkó: “No amor, todos somos estúpidos, idiotas e imbecis”. Ele não contraditaria a regra. Ponderou:
– Está bem, Diná. Seja como você quiser. Não vou pedir para deixar esta casa. Você me é um mal necessário, mas pode estar certa que se eu flagrar (e vou tentar isso) você em uma de suas falcatruas, matarei os dois.
– Que assim seja. Acha por acaso que se eu desse valor algum a esta minha vida, estaria aqui a seu lado? Pensa, por acaso, que alguma mulher honesta e pura se submeteria a seus desmandos sexuais?
Ronaldo, num de seus raros momentos de comiseração, desabafou:
– Somos iguais, Diná, não prestamos mesmo. Cada um é vítima de seus próprios infortúnios; cada um, seguindo o caminho que foi prescrito. Se soubesse quanto eu desejaria ser um homem correto, honesto! Mas não dá mais, você entende? Estou metido nisto até a cabeça. Não dá mais! Quando volto de algum trabalho sujo, ou sinto a consciência voltar após as drogas, percebo uma angústia tão grande que seria capaz de dar a vida para livrar-me dela. Mas não adianta, tenho de continuar, porque não tenho coragem de me dar um tiro no ouvido. Há uma força indomável propelindo-me a seguir. E, cada vez, as coisas pioram, os caminhos tornam-se desconhecidos, o ponto a chegar, uma incógnita.
Tenho sonhos horríveis, pesadelos de destruição. Tudo em mim é ruim e falso. Tenho ódio do mundo e só penso em vingar-me dele. Por esta razão, desculpo-a. Mas, cuidado comigo, cuide-se mulherzinha. Um dia, não terei mais força para levar adiante esta farsa e explodirei minha cabeça. Antes, porém, quero comigo, bem juntinho no calor do inferno, as pessoas que propiciaram minha desgraça.
Diná comoveu-se também. Eram dois da mesma laia, do mesmo timbre, do mesmo calibre.
– Oh, amor, desculpe-me, vai! Não sei por que o magoo tanto. A vida toda fiz coisas erradas, mas sempre procurei não levar minhas angústias a ninguém. Dei o meu corpo, porque sempre o considerei meu. Depois, abandonei meu filho, porque achei que seria melhor para ele. Sempre fui fiel à minha consciência no que tange aos outros e bastante cruel comigo mesma. Também vejo nos meus erros, um grito de vingança contra meu pai. Sofri bastante. Puxa, como sofri! Não quero nem lembrar.
– Por que nunca falou disto?
– Que ganhou agora que está sabendo?
Ronaldo calou-se. O silêncio envolveu o casarão. Emanuele abriu a porta do quarto e passou pela sala. Nos seus olhos, a lucilação e a tristeza. Ela ouvira a discussão e ainda que tentasse, não encontraria forças para aceitar sua passagem por este mundo, por meio de vias tão tortuosas.
Em cima, colado à parede fria, o relógio continuava seu incansável tique-taque, levando os momentos, formando o tempo e avivando a crença de que tudo iria passar. Nem Deus, naquele momento, era mais esperança do que aquele tique-taque compassado, lento, mas inflexível.
18
Ariel estava encafuado, desalentado, derrotado. A fumaça de seu cachimbo serpenteava no mormaço, formando farrapos tortos que se desvaneciam sem pressa. Há muito perdera a motivação de viver. Entregue ao desalento, tragava o passado com mais perniciosidade do que a fumaça do cachimbo. Sempre com um livro na mão, metido num roupão e escanchado numa rede, deixava as horas e os dias passarem, como se já tivesse cumprido sua missão e aguardasse o fim.
Tornara-se um desses homens que, apesar de cultos, não percebem que são frutos de Deus, criaturas ímpares e singulares; que o passado deve sempre ser tratado como tal e que, finalmente, somente o presente deve ser vivido intensamente. E o último instante deve ser sublime, cheio de perdão e bondade, para que o desespero não favoreça a perdição. O último instante de um homem honesto e probo é revestido de alegria, porque mesmo na dúvida da eternidade, a alma, que sempre lutou pela fé, terá de Deus a recompensa.
Desde que esfacelara sua família e se desentendera com o próprio filho, Ariel perdera o ânimo. Suas próprias riquezas decaíam, porém, isto não o intimidava. Já não tinha idade para consumir o que restava. Faltava-lhe incentivo, um coração amigo e cheio de amor, ou quem sabe, em meio aos milhares de livros de sua biblioteca, um que lhe subtraísse o amontoado de dúvidas que povoavam o coração dele.
Ariel sempre se preocupara com livros famosos, com obras prodigiosas em vendagem. Algumas, até que tinham lições de vida, mas Ariel se parecia com aquela parte da parábola de Jesus, quando falou sobre as sementes que caíram no espinheiro: muitas nasceram, mas os espinhos a sufocaram. Faltava-lhe alguém que cavoucasse com a enxada, fofasse a terra, adubasse, molhasse e a livrasse dos espinhos.
Nega Maria, setuagenária, míope e de ondulados cabelos brancos, agora mais dava trabalho do que ajudava. Seu amor por Ariel nascera e perecera dentro de si, como uma amêndoa de pêssego que não consegue romper o duro endocarpo. Vivia arreliando com todas as auxiliares que eram chamadas para ajudar nos serviços, e chorava como uma criança mimada se Ariel não estudasse as palavras com que tivesse de discordar de uma de suas ideias.
Ariel, porém, a amava como mãe e como avó. Transferira para nega Maria tudo o que restou de bom em termos de família.
Quantas tardes vira chegar e avançar pela noite, com os olhos perdidos, bem longe, driblando pensamentos tristes: Ádila fora um flagelo, um casamento frustrado, um sonho que virara pesadelo, mas que nunca lhe saíra do coração.
Ronaldo, sempre revoltado e intempestivo, acabou por odiá-lo como faria um polonês de Auschwitz a um germânico opressor; Balbino e Diná desapareceram para sempre. Que mais soçobra de um homem sem forte alicerce familiar, numa tempestade dessa?
Fitando seus destroços, não encontrava forças para recomeçar; sentindo o peso da cruz, não sentia aquele amor dos fortes que soergue e recria; sem motivos para reiniciar nova vida, enroscava-se como cobra hibernante, sem aspirar qualquer recuperação; sem fé, já não se definia como uma preciosidade de Deus, vinda do nada para toda a eternidade; sem crença nem estabilidade emocional, via-se desnorteado, sem motivo especial para reencontrar o caminho.
O único sentimento que lhe sobrara fora o leve apego a Deus nas horas difíceis. Sua fé era pequena, mas era nesse fiapo de esperança que encontrava força para não dar fim à própria vida. Quando se via chafurdado na solidão, ouvindo (por mais paradoxal que pareça) o vozerio do povo que se divertia nas boates contíguas, sentia vontade de explodir-se os miolos e dar tudo por resolvido. Nessas horas pronunciava o nome de Deus, como última alternativa naquele momento cruciante de desespero. Não esquecia o conselho de Pascal: “Se você acredita em Deus e estiver certo, você terá um ganho infinito; Se você acredita em Deus e estiver errado, você terá uma perda finita; Se você não acredita em Deus e estiver certo, você terá um ganho finito; Se você não acredita em Deus e estiver errado, você terá uma perda infinita”.
Eram estes seus pensamentos e estas suas emoções, quando ouviu o ranger do portão de ferro. Não era comum alguém visitá-lo e muito menos, fazendo tamanho ruído. Virou-se paulatinamente: era Ronaldo. Há muitos anos não o via e nem dele tivera notícias. Ainda que fosse pelo orgulho, tinham muito em comum.
– Que aconteceu agora? – perguntou amistosamente, Ariel.
É que, mesclada à antiga revolta, havia a tênue esperança da reconciliação.
– Já vai ficar sabendo – respondeu Ronaldo, sem licença e sem boa-tarde. Ariel percebeu que, reconciliação, seria a última coisa que ele teria ido procurar.
– Onde aprendeu a entrar assim na casa dos outros?
– Certamente, com meus pais.
Ariel viu-se acuado:
– Vamos logo: que deseja?
– Não tenha pressa.
– É que sua presença aqui me constrange. Quanto menor o tempo, menor o mal-estar.
– Sua presença também me dá vômitos, mas agora é necessária.
– Se vomitar, evite sujar o tapete.
– E bom que fale assim, para que eu nunca me arrependa de odiá-lo.
– Você já nasceu odiando o próprio mundo.
– Chega de conversa fiada. Vim aqui para saber se ainda está se encontrando com Diná.
Ao ouvir isto, Ariel empalideceu, tornou-se lívido e imóvel como uma estátua de mármore branco.
– Vamos, responda: está ou não?
– Onde viu esta mulher?
– Esta mulher tem nome e é mãe de minha filha Emanuele.
– Não posso crer.
– Não precisa acreditar. Quero apenas saber se está ou não se encontrando com ela.
– Há mais de 20 anos que não tenho notícias de Diná.
– É mentira sua, seu bode nojento.
– Se está tão certo, a que veio aqui?
– Quero ouvir de sua boca.
Aturdido com a notícia, Ariel não tinha mais ouvido para qualquer injúria.
– Onde está ela?
– Onde minha mulher deveria estar, na sua despensa?
– Como ficou sabendo destas coisas, filho?
– Filho? Haa, haa, haa – riu debochadamente, Ronaldo – agora sou seu filho. Seu filhinho do coração ficou sabendo dela mesma, velho sórdido e imoral. Expulsou-me de casa, porque eu não prestava. E você, o que vale? Você é mesmo um velho sujo. Que mal ainda pensa em fazer a mim?
– Diná! … Diná! …. Que fez ela do meu filho?
– O filho dela – disse acentuando bem o pronome – ela jogou fora.. Não tinha estirpe para ser, sequer, filho de uma prostituta.
– Não seja cruel, meu filho!
– Não estou sendo cruel, não – ela deixou-o numa praça, ainda criança. Afinal, era um desvalido, um indigente sem pai.
– Você está brincando comigo, atacando o único sentimento que ainda me resta.
– Pode ser e se for, faço-o com prazer. No entanto, é a pura verdade.
– Ela não sabe o paradeiro do filho?
– Nunca mais soube. Mas, chega de conversa tola. Vim aqui para dizer, pedir e avisar que se afaste daquela mulher. Todo mal que podia ter feito, já o fez. Se eu o encontrar com ela, ainda que seja por coincidência, será um velho morto.
Ariel viu-se derrotado, paralisado, praticamente não ouvia mais as imprecações.
Ronaldo disse, falou, debulhou sua sórdida grandiloquência e saiu. Ariel pensava, pensava e dizia de si para si: “Balbino, meu filho, onde estará agora? Onde?”
A noite chegou. Nega Maria passou vagarosamente pela sala e começou a via-crúcis de desfazer os degraus do sótão. Ariel olhava o fraco clarão do luar que alumiava o torvelinho das nuvens que se enroscavam no céu. Em sua cabeça, os pensamentos redemoinhavam, estavam mais revoltos que as nuvens do cenário que ele fitava.
19
Ronaldo estava fora de si. Estilhaços de abajures e tudo o que era vidro apinhavam-se em cada canto que se olhasse. Na poltrona individual, Diná parecia alheia à balbúrdia que se fizera. Emanuele abriu a porta do quarto, fitou os pais por algum tempo e depois se postou numa cadeira, bem em frente aos dois.
– Sei que estão nervosos e que esta não é a hora conveniente para qualquer tipo de diálogo racional – disse ela com nítida impressão de nervosismo – mas tenho que dizer o que penso. Se não o fizer, acho que ficarei louca. Preciso desabafar, vocês entendem?
Diná e Ronaldo entreolharam-se rapidamente, permanecendo calados. Emanuele continuou:
– Na verdade, vocês me deram a oportunidade de estudar, de aprender muita coisa, de ser, inclusive, educada e paciente, mesmo numa situação embaraçosa como esta. Acho, porém, que não fui uma boa aluna, pelo menos neste sentido. Quase todos os dias ouço as desavenças de vocês e isto me constrange muito. Tenho até medo que venha refletir-se em minha vida futura. Talvez seja egoísmo de minha parte; talvez eu devesse pensar só em vocês, mas confesso que tal altruísmo não é próprio de mim.
– Você está coberta de razão – entrecortou Diná, sem grande entusiasmo.
– Pois é, mamãe! – e tomando mais coragem, dirigiu-se ao pai:
– Sente-se aqui, papai, vamos conversar um pouco.
Ronaldo olhou diversos pontos ao mesmo tempo como se fosse um gato acuado que quisesse descobrir uma brecha para escapulir. Depois, ainda calado, obedeceu. Emanuele apoiou a mão direita em seu ombro e continuou:
– Sabe pai, eu queria mesmo era que vocês se entendessem, que se respeitassem e que me dessem o direito de me sentir uma filha segura e feliz. Temo, porém, que levarão muito tempo, talvez a vida inteira para entenderem que a grosseria, a violência, a falta de respeito e de educação, jamais consertarão qualquer coisa. Afinal, conforme aprendi, a gente vem a este mundo para desempenhar um papel, à revelia de nosso desejo ou opção. Bem, eu deveria aceitar esta imposição do Alto, mas não me está sendo fácil. E muito duro para qualquer filho, ver e ouvir estas discussões diárias e, justamente, entre as pessoas mais íntimas, as pessoas a quem mais amamos.
Ronaldo baixou a cabeça, aparentemente atingido. Diná observou:
– Onde está querendo chegar, filha?
– Queria que vocês não se opusessem a minha ida para Imperatriz. Pretendo fazer cursos de aperfeiçoamento e dar um tempo para que vocês se esforcem e se entendam.
– Mas, minha filha…
– Deixe-a – falou Diná, impedindo qualquer argumento de Ronaldo. Ela já está bem crescida e deve cuidar de si própria. Dezenove anos são mais que suficientes para uma mulher enfrentar a vida.
– Por que fala assim, mãe? – perguntou Emanuele, admirada com a certeza e a segurança que saíam da boca da mãe. Apesar de ser este seu pedido, não esperava que ele fosse aceito, senão, com uma afável relutância.
– Coisas minha, filha!
– E o que mais poderia interessar-me do que suas coisas e seu passado, mãe?
– Não vale a pena, pode me crer.
– Que ela está querendo insinuar, pai?
– Está querendo dizer que ainda criança foi expulsa de casa pelo próprio pai, por andar com safadezas.
Emanuele corou. Diná defendeu-se:
– Entre tantas coisas de que me acusam, talvez seja esta, a única mentira.
– Mentira! … exclamou reticente e maliciosamente, Ronaldo.
– Não deve julgar o que não viu, pai. O senhor sabe como o mundo sente prazer em truncar os fatos e aumentar o que ouviu dizer.
Ronaldo emburrou novamente, descruzando as pernas e abrindo os braços em sinal de “seja lá como queira”.
– Bem, vocês concordam que eu vá?
– Concordo – apressou-se em responder, Diná.
– Eu não – discordou Ronaldo com voz imperativa.
– Por que não, pai?
– Porque sou o pai, o dono, o chefe… bem, porque não quero. Sou eu quem a veste e dá comida; quem diz ou deixa de dizer o que deve ou não fazer.
– Sempre prepotente – ciciou Diná com visível cinismo.
– O senhor sabe avaliar o que acaba de dizer, pai?
– Claro. Afinal não sou tão burro assim. Você vai ficar aqui, fazendo companhia a sua mãe, acompanhando-a nas compras e nos salões.
– Se o senhor se importa tanto assim com ela, por que a agride tanto?
– Problema meu.
– Insegurança sua, está querendo dizer, não?
– Não seja insolente.
Emanuele olhou firmemente para o pai. Ia tentar ainda convencê-lo, mas logo demoveu a ideia por saber das reais causas da negativa. É que Ronaldo, com ciúme doentio, mas fundamentado, de Diná, queria que Emanuele – em quem confiava cegamente – ajudasse-o a vigiar a mulher arredia e insegura. Por outro lado, Diná via as coisas exatamente por outro prisma. Por isso, acordara em deixá-la fazer os cursos em Imperatriz. Sentia, enfim e tristemente, que ela nada significava para os pais, senão como joguete de suas psicoses e de seus interesses. Ronaldo e Diná só pensavam neles mesmos, em ninguém mais, nem na própria filha.
– Está bem, que seja como o senhor ordenou – e dizendo isto voltou para o quarto. Trancou a porta e sentou-se frente ao espelho. Viu sua face firme e duas lágrimas escaparem dos olhos. A dor vinha funda, rompendo fortalezas, implodindo toda e qualquer barreira de compreensão e sensatez. Levantou-se, atirou-se na cama e chorou amargamente, com pena de si mesma.
As vozes alteradas dos pais que se digladiavam penetravam por baixo da porta, pelo buraco da fechadura, por toda e qualquer greta e ia picar-lhe o coração, na parte mais recôndita e sensível, onde sempre se aninham todas as esperanças de amor e felicidade.
Cobriu a cabeça com o travesseiro e soluçou, soluçou e derramou lágrimas, chorou enquanto pôde, para que quando agisse, não as tivesse mais para derramar. Sabia que ia sofrer, mas acreditava que nada seria pior na vida do que ser testemunha da infelicidade dos próprios pais. E ali, dentro de uma casa em que nada faltava, com o barulhinho e a aragem fresca da refrigeração, ela pôde sentir e acreditar que, muitos indigentes, paupérrimos de mansardas, desvalidos e órfãos, podiam e deviam ser mais felizes do que ela.
Numa rua escura, a menos de 200 metros dali, um cão sarnento e quiçá, faminto, acuava a solidão, tremelicando ao sereno da madrugada. Emanuele, afundada na espuma de seu colchão, regulando com o cobertor a temperatura que lhe parecia agradável, invejou-o. Como o invejou! A dor que nela doía, um cão atropelado, faminto e mutilado, jamais sentiria, pela simples razão de não ter alma e não se importar em saber o que significa não ter amor nem compreensão.
20
Um olhar de simpatia dificilmente as pessoas esquecem. Foi lembrando este olhar que Emanuele desembarcou na rodoviária de Imperatriz, totalmente transtornada. Aquele olhar era o único fio de esperança com que contava e no qual esperava agarrar-se para amenizar a situação embaraçosa em que se encontrava.
Trazia consigo apenas duas malas grandes e a roupa do corpo. O dinheiro não daria para uma diária num hotel modesto. Ficou alguns instantes parada, vendo toda aquela gente que parecia brincar de ir e vir trocando de lugares. Umas caminhavam apressadas e pensativas, como se a vida fosse curta para desempenhar a função daquele dia.
– Como se chamava mesmo aquele rapaz? – perguntava-se Emanuele à sua memória indolente, sem obter qualquer resposta. Mas, era eletricista, consertava bateria, disto eu lembro, porque tirou a gente de um grande sufoco.
– Moço – interceptou ela a um dos carregadores que passava empurrando um carrinho com vários objetos em cima – saberia informar-me se….
O rapaz passou sem virar a cabeça, abarbado em seu afazer e seguindo em frente como um surdo mal-educado.
– Droga – pensou Emanuele – o mundo parece apressado. Não sei aonde toda essa gente quer chegar.
Encostou-se no balcão da lanchonete e testando sua psicologia natural, arguiu um dos funcionários:
– Moço, por favor.
O rapaz aproximou-se com um sorriso nos lábios. Ela acertara desta feita.
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Tomás estava com a cabeça enfiada sob um capô, com o traseiro aprumado em posição pouco recomendável. Quando ouviu perguntar por alguém com seus traços fisionômicos, paralisou-se, tentando buscar num passado bem próximo, a origem daquela voz doce e maviosa a seus ouvidos. Foi afastando-se em seguida, como um cão de caça que retrocede da solapa de sua presa. Pôs-se de pé, endireitou as vértebras emperradas pela demora da posição e olhou a moça. Seus olhos eram como um cartão correto e premiado. Tomás sentiu um frio perpassar-lhe o coração e uma forte emoção agitou-lhe o sangue:
– Você… você é aquela moça que estava…
– Sou eu mesma.
– Mas, eu nem disse…
– Nem precisava. Estou certa que você lembra de mim – falou Emanuele, não sem um quê de malícia no timbre.
Tomás enrubesceu, mas sua tez morena não retratou totalmente a emoção e o desconcerto que lhe iam à alma.
– Pensei que nunca mais iria vê-la.
– Pensou mesmo?
Novamente o calor passeou pelo rosto de Tomás. Droga de menina – pensou consigo mesmo – como consegue adivinhar tudo?
Sentados, um frente ao outro, pareciam dois maus preparados caudatários que, quanto mais procuravam ajudar-se, mais se sentiam ridículos e inseguros diante do cerimonial. Percebendo que tudo aquilo iria levá-lo a nada, Tomás falou:
– Mas, afinal, que aconteceu de tão grave para sair de casa deste jeito?
Emanuele, percebendo que a introversão seria como negar uma gravidez evidente, a qual dia menos dia viria à tona, arrumou-se no assento, fez uma leve pausa e disse com pesar:
– Já não dá para suportar o clima lá de casa. Papai e mamãe discutem todos os dias, agridem-se com palavras grosseiras, ameaçam-se como dois bois impedidos por uma cerca. Você, certamente, achará que fui uma covarde, abandonando-os num momento desses. Acontece que ali, há um problema de educação e de temperamento, e sei que, sozinha, jamais conseguirei demovê-los daquela ideia fixa de perseguição. Papai anda sempre revoltado, tomando… bem, ele sempre tomou uns remédios fortes… e
– Entorpecentes, está querendo dizer, é isso?
– É…., acho que é. Fala em matar o meu avô…
– Seu avô?
– Sim.
– Mas, por quê?
– Não sei bem o motivo, mas parece-me que meu avô teve um caso com minha mãe, há muitos anos.
– Que história esquisita!
– Muito esquisita mesmo. Teve (conforme captei de uma discussão deles) um filho com minha mãe.
– Um filho?
– Por que o espanto, se tinham um caso?
– Talvez porque ele possa ser meu pai – brincou Tomás.
– Ora!
– E por que, não? Eu também vim ao mundo de uma maneira estranha. A única coisa que sei é que fui abandonado e depois adotado por uma família.
– Há quanto tempo?
– Há uns 26 anos.
Emanuele fez algumas contas.
– Interessante – disse ela, também em tão de brincadeira – bem que poderíamos ser irmãos.
Tomás sorriu amarelo pela remota possibilidade.
– Mas, afinal, você deixou sua casa só para não ouvir a discussão de seus pais?
– Bem, este foi um dos motivos, a gota d´água que fez transbordar. Há, porém…
E já a noite ia alta, quando se despediram para dormir. Falaram durante o jantar inteiro e só agora pareciam satisfeitos em suas curiosidades. Emanuele parecia ter arriado um grande peso e ele demonstrava satisfação em estar ajudando a mulher que mais lhe atraíra na vida. Estava confuso e feliz.
Tomás morava sozinho numa casa modesta. Emanuele passou a estudar e ajudava-o nos parcos serviços de anotações da oficina e da casa.
Ronaldo andava ameaçando-o e exigindo que a filha voltasse. Por várias vezes, Tomás dissera-lhe que a mantinha em sua casa no maior respeito possível e só estava querendo ajudar. Não acreditando na boa intenção de Tomás, Ronaldo mandou sequestrá-lo, com a finalidade de fazê-lo desistir de Emanuele.
21
A tarde estava sépia e quente. O sol pairava no horizonte entre nuvens escuras e carregadas. De quando em vez, à socapa, ele metia seus raios esmaecidos pela distância por entre uma nuvem e outra, dando conta de que o dia findava.
Tomás, há muito andava preocupado com a situação que involuntariamente criara, aceitando Emanuele em sua casa. Ele a amava em silêncio, mas estava certo de que ela sabia. Sentia que ela o tinha em grande apreço e admiração, talvez até o amasse também. Tudo isto era maravilhoso, mas mesmo assim estava triste e impaciente. Sabia da fama de Ronaldo e não lhe eram nada promissoras as ameaças que recebia quando em vez. Estava matutando estas coisas, quando um corcel freou de chofre, buzinou seguidamente e, tendo chamado a atenção, explicou-se:
– Queria falar com um tal de Tomás, proprietário desta oficina.
Tomás estava a dois passos dele.
– Pode falar, sou eu.
– Prazer – disse o homem, apresentando-se:
– Estou com problemas na parte elétrica do meu carro a uns 50 quilômetros daqui e ficaria grato se fosse “tirar-me do prego”.
Tomás coçou a nuca, antagonizou os dentes, fez um trejeito com os lábios como quem lastima o imprevisto e concordou:
– Deixe-me apanhar algumas ferramentas e aparelhos de teste. A bateria está boa?
– Parece que sim. Confesso, no entanto, que não verifiquei.
Tomás entrou numa das seções da oficina e voltou com as mãos cheias de bobinas, chaves e fios.
– Estou pronto – disse ele com certo ar de pressa. Havia prometido a Emanuele que a levaria para jantar fora, quando iria dizer-lhe alguma coisa muito importante. Emanuele, fazendo-se de desentendida, fazia de conta que imaginava mil coisas naquela difícil declaração de amor. Contava tão certo com a admiração de Tomás que, já há dias vinha juntando, às escondidas, suas peças de enxoval.
Tomás e cliente saíram da cidade, enveredando por uma estrada piçarrada. Viajaram por mais de uma hora. A noite que vinha perto, chegou plenamente. De repente, o Corcel dobrou à direita, andou uns 200 metros e freou aos pés de dois homens que fumavam e conversavam, aparentemente calmos. Tomás olhou ao redor e perguntou infantilmente:
– Onde está o carro com problemas?
Os três começaram a rir, no começo a força, mas depois, notando o ar assustado de Tomás, com todo prazer sádico dos facínoras. Desceram-no calmamente, colocaram-lhe as mãos para trás, amarrando-as. Depois o despiram e começaram a esmurrá-lo no estômago, no rosto e nas partes íntimas e privativas, com a ira fria de drogados.
– Isto é só o começo – diziam enquanto esmurravam e davam pontapés nos lugares menos imagináveis. Se dentro de uma semana aquela mocinha ainda estiver lá, o patrão avisa que vai mandar cortar o seu saco e jogá-lo aos vira-latas. Ah, tem mais! Você nunca nos viu, combinado?
E enquanto falavam, batiam, até que, já sem sentidos, Tomás desfaleceu e caiu. Em seguida, os três tomaram o carro e saíram, deixando-o a esmo em total petição de miséria.
Quando recobrou a consciência, Tomás apenas abriu os olhos e ficou ouvindo o zumbido dos insetos que se refestelavam no seu corpo nu. Prestou atenção, rodou os olhos, afinou os ouvidos: além do barulho sorrateiro dos insetos, tudo era silêncio. Tentou mover-se, contraindo as pernas: estavam arredias, puídas, amassadas, arrebentadas como as de um cão atropelado.
– Meu Deus! – exclamou aturdido – deram pra valer mesmo!
Jamais imaginara um mundo assim, cheio de trampas e de ódio. Como podiam os seres humanos odiar-se a tal ponto? Donde vinha tanto interesse e desajuste? Como, em tantos corações, tornara-se simples massacrar um semelhante? Se ainda ele tivesse feito alguma coisa errada! Ajudara uma criatura em apuros; tratava-a com o maior carinho e respeito; sentia por ela um amor forte, como talvez Shakespeare não tivesse imaginado em Romeu e, depois de tudo, estava ali, espancado como um cão imundo e agressivo.
Contorceu-se devagar, arrastou-se como pôde até conseguir apoiar as costas no barranco e ficar sentado. As mãos, amarradas fortemente uma à outra, estavam frias e formigantes. Forçou-as, mas tudo o que conseguiu foi aliviar aquela estranha sensação, com o sangue pondo-se, sofrivelmente, em movimento. Sintonizou os ouvidos, prendeu a respiração: nada, além do roçagar dos insetos e o trissar dos morcegos que vasculhavam o ar em busca de alimento.
E sem que seu raciocínio conseguisse aliviar suas dores, ou mesmo tirá-lo daquela situação, Tomás ficou a ruminar suas desditas, até que o dia amanheceu. Quando um lavrador o encontrou, pensou consigo mesmo: “Não suportaria mais cinco minutos!”
– Que diabo fizero com tu, home?
– Ajude-me aqui, homem de Deus!
– Mas moço, acabaro com tu, mesmo! Quem fez isto? Quando? Por quê?
Enquanto o homem desatava-o e tentava erguê-lo, Tomás foi explicando, com as devidas reservas, o que havia acontecido. Em seguida tomou um gole da água da cabaça de cuia e ficou aguardando que o lavrador fosse em busca de socorro.
Uma camioneta transportou-o de volta a Imperatriz. No hospital fizeram-lhe os curativos, constataram – por meio de radiografias – que não havia nenhum osso quebrado. Em seguida levaram-no para casa, sob forte ação de sedativos. Emanuele, que desde o alvorecer não saía da calçada, viu a ambulância estacionar e o movimento inconfundível de que ali estava Tomás. Acorreu:
– Pelo amor de Deus, que aconteceu?
– O pior já passou, não se aflija. Já ficará sabendo. Ajude-me aqui, por favor… aí não, aqui na perna direita… assim, assim! …
A ambulância partiu. Emanuele fechou a porta e voltou célere.
– Diga logo, homem, quem fez isto em você?
– Sem importar-se tanto com a sofreguidão de Emanuele, Tomás perguntou:
– Emanuele, você gosta de mim?
– Por que pergunta isto agora?
– Responda, por favor.
– Claro que gosto. Por acaso duvidou disto em algum tempo?
– Quer se casar comigo?
– Tem certeza que está bom da cabeça?
– É a única coisa que está funcionando bem neste momento, garanto.
– Quando você melhorar, eu respondo.
– Não, quero que me responda agora, neste instante.
– É a coisa com que mais sonhei desde que o conheci.
– Não está dizendo isto por pena?
– Ora, deixe de ser bobo.
Tomás parecia estar redivivo naquela declaração. Todas as dores desapareceram como num milagre de alquimia. Falou:
– Chame um sacerdote.
– Um sacerdote?
– Estou pedindo-a em casamento.
Emanuele estremeceu:
– Não está delirando? Tem certeza que está bem?
– Tentaram nos separar desta maneira – atemo-nos de jeito que jamais consigam desatar.
Emanuele relutou, perguntou, ponderou e argumentou, mas duas horas depois o vigário entrava na casa. Confessou-os, ministrou-lhes a Eucaristia e em seguida, abençoou-os e os uniu pelo sacramento do Matrimônio.
Naquela noite não houve festa nem lua de mel – houve, sim, horas angustiantes e intermináveis. Como que esquecida do casamento, Emanuele cuidava de Tomás com todo o desvelo e pudor de uma donzela visitante. Lá pelas três horas, finalmente, ele dormiu. Foi um sono quase pesadelo, recortado de sonhos esquisitos.
Sonhou que Emanuele dera à luz um passarinho mutilado, um filhote implume de rola, sem bico, pernas ou asas. Águias enormes vigiavam-no, escutando-o com atenção. E o filhote mutilado dizia, diante do estarrecimento de todos: “Não fique perturbado. Não tenho bico: logo não preciso comer; não tenho pernas nem asas: logo não preciso correr nem voar. A única coisa, realmente importante, eu tenho: a cabeça. Com ela posso desenvolver minha função, ser feliz e mostrar-lhes o caminho.”
Acordou molhado de suor e quase gritando. Emanuele acorreu:
– Que houve? Está passando mal?
Tomás envergonhou-se:
– Foi nada não – um sonho apenas. Bobagens, coisa deste amontoado de sedativos – um pesadelo. Sonhei que…
– Descanse, são coisas de pesadelo mesmo. Durma, vai, você está precisando descansar bastante.
Mas, apesar dos conselhos e da aparente convicção, havia em seu olhar muita preocupação e tristeza.
22
Quando Ronaldo soube do casamento, foi à loucura. Ajustou advogado, ameaçou, esperneou…, mas tudo o que conseguiu foi ouvir e ver, em cada imprecação, os risinhos sarcásticos de Diná, que nunca se prendera a nada desta vida. Por fim, quando a barriga de Emanuele já demonstrava uma gravidez avançada, ele quietou, ficando em pragas e maldições:
– Tomara que nasça um monstro!
– Não fale asneiras, seu maluco! – repreendeu Diná que, ao menos, não possuía a fraqueza do ódio.
– De alguma forma, eles terão de me pagar.
– Mas, que culpa tem a criança nisso tudo?
– Não importa. Eles sofrendo, fico vingado.
– Cuidado, Ronaldo! Deus não é vingativo, mas a coincidência poderá ser-lhe eterno infortúnio.
– Você e seu Deus! Enoja-me hipócritas como você.
– Não é preciso ser santa para citar o nome de Deus.
– Ora, bah! Vai cuidar da casa, fazer alguma coisa melhor que me encher o saco.
Diná saiu. Ele ficou remoendo seu ódio. Não suportava a derrota, aliás, nunca suportou.
Ariel não tinha o que reclamar e achava maravilhoso vê-lo nervoso e desesperado. Por duas vezes, depois que ficou sabendo do casamento da neta, foi visitá-la. Talvez por causa da vida desregrada de seu filho Ronaldo, logo afinou-se com Tomás, homem simples, trabalhador e honesto.
Na terceira visita, Ariel levara nega Maria com ele. Aos 80 anos, ela ainda se conservava taciturna, mas muito lúcida. Cumprimentou Tomás e logo depois do almoço pôs-se a arrumar a cozinha e a ouvir Emanuele falar da própria vida. Quando soube que Tomás não conhecia os pais, lembrou-se de Balbino, cuja história tanto se identificava. Fosse Balbino o nome de Tomás, tudo estaria explicado. Mesmo assim, depois que depôs a vassoura no canto da área de serviço, passou a observar Tomás, tanto que, quando voltavam para casa, Ariel pilheriou em tom de ingênua malícia:
– Acho que minha neguinha estava paquerando o moço Tomás!
Ela, sem virar a cabeça, deixou um leve sorriso vadiar pelos lábios.
– Não fala nada? – insistiu Ariel.
– É que ele me faz lembrar seu filho Balbino.
– Como assim?
Apesar de ter simplificado, reduzido, comprimido os vocábulos, nega Maria reproduziu as palavras de Emanuele e disse a Ariel que os traços fisionômicos de Tomás, bem lembravam os de Balbino. Ariel ouviu, pensou um pouco, fez alguns cálculos, retrocedeu no tempo: tudo fazia sentido.
– É…, minha nega, tudo parece encaixar-se, menos o nome.
– Acha que pode ser ele?
– Bem…, tudo é possível a Deus.
– É muito fácil saber – pensou alto, nega Maria.
– Como assim?
A criada sobressaltou-se. Na verdade não queria que Ariel ouvisse. Explicou sucintamente:
– Balbino tem um sinal de nascença.
– Em que parte do corpo?
Nega Maria nunca dissera, sequer, a palavra “bunda”, porque achava indecente; e nádegas, ela não conhecia o termo. Por isso, achou uma outra maneira de dizer:
– Atrás.
– Na bunda? – perguntou sem escrúpulos, Ariel.
Ela assentiu ruborizada.
Ariel ficou a pensar. Aliás, pensou a noite inteira naquela possibilidade. Mal percebeu um indício de claridade, pôs-se de pé e, ainda de pijama, foi à cozinha. Nega Maria empertigou-se nervosa:
– O senhor? Ainda falto coar o café.
– Não vim tomar café – e sabendo da loquacidade da criada, mãe-avó, explicou-se por inteiro:
– Não dormi durante toda a noite. Aquela nossa conversa de ontem deixou-me cheio de dúvidas e também de esperanças. Você sabe quanto sempre desejei encontrar meu filho perdido, e agora que tal possibilidade se me apresenta, agarro-me a este fio de esperança. Estive pensando: a gente bem que podia tirar esta dúvida.
Nega Maria olhou-o temerosa. Ariel continuou:
– Estou pensando em convidá-lo, qualquer dia destes, para um almoço aqui em casa. Se beber, tentarei embebedá-lo; se não, colocarei um sonífero bem forte em seu suco. Durante a refeição, darei um jeito para que ele caia em minha armadilha. Depois, quando estiver dormindo, a gente arria as calças dele e olha se há o tal sinal. Fácil, não?
– Hum, hum! – rouquejou nega Maria, numa interjeição própria adquirida de seus antepassados.
– Não tenha receio – acalmou Ariel – você apenas me fará o favor, quando chegar a hora, de levar Emanuele para ver o jardim.
Depois, deixando escapar um sorriso de felicidade pela argúcia que considerava brilhante, voltou para lavar o rosto e trocar de roupa. Levava consigo um brilho nos olhos, há tanto desaparecido.
A esperança, quando chega dentro dos limites da sensatez, torna-se ilusoriamente real, como se a prova fosse apenas uma questão de tempo. Por isso, Ariel parecia feliz. Ele bem que precisava, com urgência, de algum motivo para continuar vivendo.
23
Segundo os cálculos de Emanuele, a criança deveria nascer no mês de dezembro, quiçá, princípio de janeiro de 1955. Entretanto, na manhã de 26 de novembro ela se sentiu mal e foi, às pressas, levada ao hospital. Oito horas depois, nascia o menino que seria chamado Jabino.
A mãe nem viu o filho, e o médico – grande amigo da família – pediu que a enfermeira o levasse, incontinenti, ao berçário. Do lado de fora, Tomás esperava aparentemente calmo, embora lhe fosse aquilo, uma experiência esotérica, cheia de mistérios e de expectativa.
O médico foi para seu consultório, substituiu a roupa respingada de sangue e em seguida debruçou sobre seus próprios braços, pensativo. Jamais vira aleijão mais deformante. A criança nascera com as pernas retorcidas para cima, o braço esquerdo era todo atrofiado e sem a mão. Apenas, dos membros, a mão direita, apesar de atrofiada, tinha aspecto normal. A cabeça, no entanto, era perfeita.
O médico ergueu-se, enxugou a testa com as costas das mãos, apanhou o estetoscópio e foi ao berçário. Fez superficiais exames de rotina, percebendo que aquele serzinho quasímodo possuía uma constituição razoável. Isto não trouxe ao médico nenhum conforto. Preferia avisar os pais de que a criança nascera morta, não resistindo a precocidade. Finalmente, encaminhou-se ao corredor.
Tomás estava de pé, a poucos centímetros da porta, ansioso. Quando o médico tentou sair, ficou peito a peito, numa posição de riste. Afastou-se um pouco, tomou Tomás pelo braço, introduzindo-o em seu consultório.
Trinta minutos depois, Tomás deixava o hospital e caminhava cabisbaixo pela praça que ficava próxima ao local. Olhos na terra, pensamentos no céu. Começou por lembrar sua vida, seu passado. Aonde queria Deus chegar? Que justiça era esta de usar certos seres humanos para satisfazer seu jogo? Por que não jogava claro, deixando que cada um assumisse seu papel, avocando-se a responsabilidade de seus atos?
Mas, apesar da revolta momentânea, Tomás era um homem religioso e sabia que não era assim. Deus tinha como mania, jogar por tabela. Lembrava daquele cego de nascença que, segundo Jesus, havia nascido assim para que se manifestassem nele, as obras de Deus. Mas afinal, era justo isso? Ou seria nosso senso de justiça diferente do de Deus? Certamente. Se Deus podia implicar muitas gerações futuras para ressarcir os erros de seus antepassados, não havia dúvida de que jamais ele iria entender que Jabino estivesse pagando o erro de alguém.
Esquecia-se, porém, que nem sempre era assim e que não podia haver uma regra unificada para nortear a humanidade. Isto suprimiria a beleza do incerto, a expectativa do amanhã, a sutileza do esperar. A graça do mundo estava nisto: ninguém podendo afirmar, sequer, que dois mais dois são quatro, pois jamais duas coisas são exatamente iguais em peso, forma, medida e constituição a outras duas.
Mas, fosse qual fosse a justiça de Deus, ele ali estava pagando o preço de haver casado – ainda que não soubesse – com a própria irmã. E embora estivesse revoltado, Deus perdoava-o, preparando as coisas de um modo como quem manipula a terra inóspita para separar o ouro e fazer, com ele, a mais linda das joias.
Tomás andou bastante de um lado para outro e quando sentiu as pernas doerem, assentou-se num banco de pedra. A vida fluía em cada canto. Seres de todos os tipos, credos, cor e condição social, iam e vinham, sem se importar com a dor de seu semelhante. Como seria bom se um dos tantos que por ali passavam, parasse um pouquinho só para dizer-lhe uma palavra de conforto!
Entre aquelas pessoas, tantos estavam apressados à procura de um médico, de um juiz ou de um atestado de óbito. Cruzes diferentes para pessoas diferentes, todas elas talhadas ao tamanho e ao peso que podiam suportar.
Tomás ergueu-se, retornando ao hospital. Quando entrou no quarto, Emanuele dormia, deixando implícito, no semblante, traços de paz e felicidade. No mesmo instante, o médico entrou, explicando:
– Está sob forte dose de sedativos. Acordará calma e pronta para receber a notícia. Mandei preparar o bebê a fim de que…. Bem, para que a presença seja melhor.
Tomás assentiu com um nuto. O médico retirou-se. Estava abatido e com estranha feição de desconcerto.
A noite já havia caído quando Emanuele jogou um dos braços para o lado, contraiu um pouco uma das pernas e elevou as pálpebras a meio olhar. Tomás tomou-lhe a mão, despertando-a carinhosamente.
– E então, meu anjo, como está se sentindo?
– Com muito sono. O que me aplicaram certamente faria um urso hibernar. Só sinto vontade de dormir. Parece-me estar voando, flutuando como uma nuvem. E nosso filho, como está? É lindo, não é?
Apesar de ter tido muitas horas para decorar uma frase que dissesse tudo de uma forma amena e menos dolorosa, Tomás não conseguiu ir além de sua idiossincrasia.
– Meu anjo, nem sei como dizer.
– Que está insinuando, Tomás?
– Exatamente isto: não sei como lhe dar a notícia.
– Oh, meu Deus! Ele morreu?
A pergunta veio inesperada, e sem que percebesse, Tomás ciciou:
– Talvez fosse melhor.
– Há alguma coisa pior que a morte?
– Não o vi ainda, mas o médico passou um bom tempo preparando-me o espírito. Acho que nosso filho nasceu um “monstro” – e dizendo isto, apertou a mão de Emanuele e ambos, sem mais perguntas, puseram-se a chorar copiosamente.
Lá fora, o movimento continuava infrene. Gente indo e vindo, no eterno movimento da vida. Um champanha explodia, festejando uma vitória; uma lágrima emergia diante do sofrimento: vida. Nunca houve, não há e jamais haverá um ser humano que nasça e viva sem participar desta roda viva em que se intercalam as alegrias e as tristezas.
24
Nega Maria esfregava um saco molhado no mármore da varanda, quando Ariel irrompeu como se fosse um furacão.
– Minha nega, eles aceitaram.
– Eh, eh! … Retrucou nega Maria num som interjetivo próprio de preocupação.
– Ora, minha nega, você não fica feliz? Não percebe que posso até encontrar meu filho perdido?
– Eu não disse que Tomás era seu filho!
– Mas pode ser, por que não? As datas, a idade, Jabino com reais traços de consanguinidade…. Como bem disse, a própria fisionomia é semelhante. Depois, se não for, ficarei apenas com a frustração; mas se for…, se for, minha nega….
– Que vai fazer se Tomás for seu filho Balbino?
– Eu…, bem…, é, nem sei bem o que vou fazer, mas o certo é que irei fazer muita coisa.
E Ariel vibrava como uma corda tensa de violino. A felicidade que a esperança criava era capaz de transformá-lo num homem com todo o prazer do mundo de novamente voltar a viver. Tanto tempo andou arrasado, cabisbaixo, pensativo, esperando que o tempo corroesse sua carcaça e o definhasse, levando-o desta vida. Agora, porém, estava redivivo, motivado, cheio de planos e esperanças.
– Minha nega querida, quero que seja um jantar sem defeitos. Tudo deverá estar certo, no lugar certo, na medida certa. Você é a única que sabe dos meus planos. Quando chegar o momento, farei a você o sinal combinado. Lá fora, já plantei aquela árvore e….
– Já sei, já sei!
– Pois bem, você tem toda autoridade para fazer e desfazer da planta. Poderá, inclusive, arrancá-la e plantá-la dez vezes, se o desejar. Só uma coisa não poderá fazer: vir antes de 15 minutos aqui pra dentro.
– Está bem! Pensa que sou tão burra assim?
– Não, não penso isso! Contudo, nada pode falhar.
– Alguma coisa especial para o jantar?
– Quero sim, mas não se preocupe. À tarde, farei as compras e trarei alguém para ajudá-la.
Nega Maria emburrou-se:
– Eu posso cozinhar sozinha.
Ariel sobraçou-a enternecido:
– Sempre com ciúmes, não é, minha nega? Não se importe com isto, ninguém tomará seu lugar, e sabe a razão?
Ela continuou calada. Ariel continuou:
– Porque eu não quero. Você é a pessoa que mais amei nesta vida. Sabe, quando veio para cá, você era linda e tive muitos pensamentos, que bem sei, irão me custar bons meses de purgatório. Um dia – logo que Ádila faleceu – você vinha saindo do banho e…. Bem, não sei por que estou lhe dizendo isto.
Nega Maria estava com uma mangueira enchendo o balde de água. Quando percebeu, o líquido extravasava e corria pelo assoalho. Completamente alheia, ela mantinha os olhos fixos num ponto qualquer, arrancando, do passado, lembranças e sonhos.
– A água está entornando! Que está acontecendo? Está passando mal, minha nega? Maria! – e dizendo isto a tocou com a mão. Ela sobressaltou-se:
– Hein! …
– Sonhando acordada?
– Estou velha, caducando mesmo.
– Não diga assim, afinal, somos dois velhos bonitos e cheios de vida.
Nega Maria ergueu os olhos. Ariel fitou-a com carinho. Atrás das rugas e de todo malefício dos anos, refulgia a candura de uma alma limpa e cheia de pureza. Os dentes ainda estavam perfeitos, brancos como marfim polido. Os dois entreolharam-se com carinho. Nega Maria pediu:
– Continue falando, por favor.
– Não se importa que eu fale do passado?
– Não.
– É…., não fosse o respeito, a admiração, a lembrança de sua avó, a sua maneira calada e quase taciturna, eu talvez tivesse cometido uma loucura. Muitas vezes pensei em falar de meus sentimentos, mas sempre tive medo de sua reação. Sentia que me admirava e não queria decepcioná-la. Depois, sempre fiz de você uma Mona Lisa de nosso século, em que a parte externa que Da Vinci tanto esmerou, eu embuti em sua alma, com toda perfeição. E assim a guardei aqui dentro, com mais carinho do que Zanobi dei Giocondo, por esta vida inteira, dia a dia, minuto por minuto. Nos momentos de solidão, quando Diná partiu e Ádila faleceu…. Bem, deixemos isto pra lá. Que nos adiantará falar de coisas irreversíveis?
Nega Maria virou-se ternamente e de seus olhos minavam lágrimas sentidas. Ariel fitou-a enternecido, abraçou-a com força e beijou-a na face. Nos seus olhos, também se viam, sinais de ressentimento. Então, pela primeira vez, ela falou, buscando nos recônditos de sua alma, toda força capaz de desenterrá-la da humilde condição de uma negra serviçal e caudatária.
– Não sei se agradeço a Deus ou a você, por ter-me dito isto antes de eu morrer. Tudo o que falou, tirou-o de dentro de meu próprio coração. É como se eu estivesse ditando as palavras. Toda minha vida dediquei-a a você, amando-o no silêncio e no tempo. Os anos se foram, as rugas apareceram, e eu, tendo você aqui tão perto, nunca pude alcançá-lo. Tinha medo de seu “não”, de ouvi-lo dizer que era muita pretensão de uma negra, tentar achegar-se a um branco. E assim, eu o amava em silêncio, contentando-me em vê-lo passar, em acariciá-lo nas roupas que passava, nos cobertores que arrumava todas as manhãs. Cheirava seu travesseiro… Sabe, às vezes eu penso do que seria de cada um de nós se Deus nos castigasse, espraiando nossos momentos de privacidade, à vista de todos aqueles que tanto nos admiraram.
Quando a gente pensa que está só, escondida dos olhos de Deus, faz coisas estranhas e esquisitas. Todos nós somos assim. Acho que se Deus passasse o filme de nossa vida e colocasse como espectadores todos nossos familiares e amigos, não precisaria mais das chamas ardentes para ressarcir-se de nossas ingratidões. Ah!, quantas vezes enrosquei-me em suas cobertas, beijei seu travesseiro e explodi de amor diante do cheiro que recendia. Amei-o durante todos estes anos, sufocando meus desejos; hoje, meu espírito ainda o acompanha com a mesma força de anos atrás, mas meu corpo sente que a vida passou. Estou cansada, alquebrada pelos anos. Levarei minha virgindade como prêmio de angústia e mortificação. No entanto, quero que saiba que, hoje, apesar de ser octogenária, sinto-me feliz como uma adolescente, simplesmente por entender que fora possível.
Ariel enlaçou-a carinhosamente e ambos soluçaram, um no ombro do outro. Lá fora, a noite descia sem pressa – a tarde parecia distraída, olhando aquelas duas almas cansadas que se abraçavam para levar adiante a cruz pesada dos anos.
E na felicidade daquelas confissões, nega Maria e Ariel pensavam no valor e na dignidade de uma palavra amiga. Com palavras, somente com elas, fizeram-se muito felizes naquele momento.
A noite desceu completamente. Ariel debruçou na balaustrada e ficou a olhar o céu sempiterno, perdido num infinito cuja razão jamais aceitara. Nega Maria cantava lá dentro:
“O Senhor dá, o Senhor tira,
Ele provém e retira,
Pesa o sofrimento e se for muito, paga só na eternidade.”
25
A última conversa que tivera com Ariel transformou nega Maria, até na fluência das palavras. Se 10 anos de rejuvenescimento fossem bastante, ela tentaria recuperar o amor que não tivera por medo e complexo. Estava feliz e falante:
– Ariel começou com esta mania de plantar árvores próprias da região, aqui pelo quintal – disse nega Maria a Emanuele, enquanto desciam os degraus e encaminhavam-se para o lado de fora – desta feita veio-me com um cacaueiro do mato.
– Tomás também gosta de árvores, mas nosso quintal não daria para um abieiro. Mal cabe as sucatas elétricas que ele amontoa.
Nega Maria, seguindo as instruções de Ariel, engabelava Emanuele, revirando folhas, podando raminhos, comparando-os com os do cacaueiro baiano e explicando que os cachos de flores vermelhas que se apegavam ao tronco até rente ao chão eram alimento muito procurado pelos jabutis.
Lá dentro, Ariel passava a Tomás um copo de suco de laranja, impregnado de barbitúrico, cujo ácido confundia-se com o azedume dos frutos pouco maduros. Desceu acompanhado de um educado e desmerecido elogio. Minutos depois, Tomás começou a bocejar, abrindo a boca como se fosse um rinoceronte sonolento. Ariel aproveitou:
– Tenho por costume, uma sesta após o almoço. Se não for deselegante, gostaria, enquanto as mulheres fofocam lá no quintal e Jabino dorme, de deixar, à sua disposição, também, uma cama para “uma leve pestana”.
Tomás anuiu, sem tempo sequer para qualquer explicação. Encaminhou-se sonolento e cambaleante. O acalanto provocado pelo barulhinho constante e uniforme do condicionador de ar, mesclado ao clima agradável do ambiente que se fizera, e à valsa Danúbio Azul de Johann Strauss, encarregou-se de transportá-lo – como diria Camões – por mares nunca dantes navegados. Enfronhou-se em sono profundo.
Ariel deixou seu quarto. A tensão que o dominava, sozinha, era capaz de deixá-lo acordado ainda que tivesse ingerido por duas vezes, a dose que dera a Tomás.
Esperou um pouco, depois entrou no quarto dele, fez alguns barulhos, chamou-o: ele dormia como um urso hibernante. Vagarosamente soltou a correia e desabotoou-lhe a braguilha, arriando em seguida as calças. Se o sonífero aplicado dependesse de sutileza, tudo teria ido água abaixo. No entanto, no estado em que entrara Tomás, poderiam operá-lo das vísceras e talvez nem percebesse.
Estava, então, de barriga para cima. Com a calma que juntou, Ariel virou-o de lado. Em seguida hesitou diante da importância da nova investida. Apoiou a mão direita na orla da cueca (uma espécie de sunga de banho) e, novamente, a hesitação encheu-o de medo.
Foram tantos anos de apatia pela vida por ter um filho viciado e outro perdido, que vacilou diante da perspectiva de reviver, naquele simples ato de descer a sunga, a sua maior felicidade. Por fim, desceu-a de vez, como a extirpar num só golpe, toda dor daquele incômodo causado pela dúvida.
E lá estava desenhada a marca descrita por nega Maria, tão viva como uma tatuagem. Ariel ficou parado, dedos enclavinhados na orla da cueca, olhos perdidos num ponto qualquer, como a permitir a retroação do tempo. Diná, Ádila, música, discussões, ciúmes, infidelidade, sonhos, desejos, morte… Como se estivesse perante o juízo de Deus, sua vida desenrolava-se.
De repente sentiu roçagar-lhe as calças e desceu o olhar, assustado: era Jabino, enroscado em si mesmo. Acordara e se arrastava pelo soalho em busca de companhia e proteção. Ariel sungou a cueca de Balbino, arrumou as calças e agachou-se para o serzinho quasímodo e mutilado. O menino parecia um polvo, cheio de tentáculos retorcidos. Apenas seu rosto era perfeito e bonito. Agachou-se, tomou-o desajeitadamente nos braços e entre lágrimas e soluços, desabafou sozinho:
– Oh, meu netinho querido!
A criança inclinou-se e carinhosamente beijou-o na face por três vezes. Depois, com a singeleza de uma criança prodígio de sete anos, perguntou:
– Por que está chorando, “vovô”? – Jabino tratava assim todas as pessoas idosas.
– Tenho a impressão, meu netinho, que ainda que tentasse, ou mesmo tivesse o maior dos desejos em dizer o porquê, não conseguiria. E enxugando as lágrimas com o dorso das mãos, observou:
– Fiquei sabendo que é o primeiro aluno da escola; que sabe ler e escrever como um sábio.
– É bondade de quem diz isto, vovô. Afinal, ler e escrever é a coisa mais fácil do mundo, mesmo para mim que só tenho este pedacinho de mão.
Ariel olhou e desviou o olhar, consternado. O menino observou:
– Está com pena de mim, vovô?
– Não, não é isso, por favor!
– Ora, vovô, não precisa ter pena de mim, não! Sou um menino feliz, pode acreditar. Às vezes sinto que papai e mamãe ficam tristes por eu ter nascido desse jeito. Bem, eu lamento muito não ser uma criança como eles desejavam. Com o tempo, no entanto, eles irão entender que a coisa mais sagrada de mim está perfeita – a cabeça. Sabe, vovô, eu tiro as melhores notas do colégio, escrevo com este cotoquinho como ninguém e….. Bem, eu penso que para quem deseja ser escritor, não falta mais nada. Sei que nasci para alguma coisa e se vim para algum serviço especial, é porque fui escolhido por Deus.
– Ah, então quer ser escritor!
– É vovô, quero sim. Já até comecei a rascunhar o primeiro livro.
– E quando pretende editar esta famosa obra prima?
– Só daqui a uns, digamos, 8 anos.
– E eu posso ver o rascunho?
– Ainda não. No entanto, prometo que será um dos primeiros a vê-lo.
– Palavra de escoteiro?
– Palavra de escoteiro.
Quando nega Maria e Emanuele entraram, ficaram pasmas diante do quadro: o menino falava e Ariel ouvia, com os olhos rasos de lágrimas. Parecia a cena bíblica de Jesus de Nazaré pregando aos doutores da lei.
– Que está acontecendo, afinal? – perguntou Emanuele, mais aturdida e confusa do que um sonâmbulo desperto por choque.
– Nada não – tranquilizou nega Maria; e cheia de felicidade por ler nos olhos de Ariel a confirmação da suspeita, observou: – venha cá para a cozinha; acho que ambas precisaremos do que sobrou da dose de Balbino.
– Balbino? …
Eram passados 15 minutos das 23 horas, quando Balbino remexeu-se. Todos em volta da cama aguardavam o despertar histórico, com flores e champanha. Depois que voltou a si e ficou sabendo de tudo; depois que abraçou seu pai e parecia explodir de contentamento, observou:
– Jamais imaginei que uma bunda pudesse revelar tantos segredos, e ser motivo de tanta felicidade.
O gargalhar foi geral.
26
O Sr. Elias Pazini, filho de um velho italiano, amigo de Matos Groule, pai de Ariel, que outrora vivia confabulando na calçada, foi encarregado de viajar a Araguaína e tentar, de alguma maneira, o início de uma reconciliação com Ronaldo. Não era tarefa fácil, pois este, além da inseparável companhia de seu gênio perverso, ainda tinha alguns motivos para odiar Ariel, Balbino e Emanuele. O triunvirato de seus dissabores maiores, agora, mais do que nunca, precisava de muita compreensão e sabia que isto não havia no coração de Ronaldo.
A lembrança de que Diná chegara mesmo a ter um filho com o próprio pai; de que Emanuele saíra de casa e casara-se à revelia de seu consentimento e o peso que lhe roía a consciência com o nascimento de Jabino, totalmente mutilado, fazia com que sua reação se tornasse cada vez mais perniciosa. Aquelas pragas e maledicências que rogara à própria filha não se cansavam de retinir em sua cabeça. Estava a matutar estas coisas, quando ouviu palmas na varanda. Foi atender e reconheceu o pacato amigo:
– O senhor não precisa de apresentação para entrar, senhor Elias. Vai entrando, a casa é sua.
– Obrigado.
– Mas, a que devo tão honrosa e singular visita?
– Não me convida a sentar?
– Claro, claro! Desculpas pela distração. Ando desligado e bastante arrebentado, ultimamente.
– É…., acho mesmo que não posso elogiar seu progresso físico nestes últimos anos!
Ronaldo sorriu e foi sentar-se quase em frente ao senhor Elias. Depois que chamou e apresentou Diná, fizeram uma frugal refeição à base de frutas e legumes. A seguir foram visitar o pomar do quintal em que fora colhida a tão elogiada melancia. A sombra era convidativa e Elias achou por bem não adiar mais a razão de sua visita. Falou:
– Logo que cheguei, perguntou-me pela visita singular. Realmente, não sou de visitar amigos e minha presença em qualquer lugar sempre é notada com estranheza.
– Chega de rodar o toco; acabará ficando tonto – brincou Ronaldo.
– Você é ladino como uma raposa – redarguiu Elias.
– A esperteza nunca me trouxe grandes benefícios.
O senhor Elias temeu por instantes, percebendo que Ronaldo, aos poucos, ia voltando a sua característica normal de agressor. Mesmo assim não recuou:
– Tenho notícias estonteantes para o amigo.
– Boas ou más?
– Estonteantes.
– Pois diga logo, por favor.
– Gostaria que sua esposa estivesse presente.
Ronaldo chamou-a. Assentaram-se sobre tamboretes de cedro, embaixo de um jambeiro-roxo, prenhe de frutos ao alcance das mãos. O Sr. Elias arrancou um, assoprou qualquer coisa de cima e depois de boas dentadas, falou:
– Vocês sempre fugiram de certas evidências, esquecendo-se que elas não diminuem problema algum. Todos nós sabemos que Diná teve um filho com Ariel e que este filho foi deixado em Belém, há muitos anos. Pois bem, este filho foi encontrado – é o marido de Emanuele e pai de Jabino.
– Mentira, mentira – goelou Ronaldo, avançando para o interlocutor.
O senhor Elias levantou-se, recuou alguns passos, esperou que o ímpeto amainasse e depois voltou a sentar-se.
– Bem, não sei se isto é motivo de contentamento ou de revolta, mas é a realidade – enfatizou categórico.
– Eu?! … – interferiu Ronaldo, colérico – avô de um polvo?
A pergunta ficou no ar. Diná, petrificada e pálida, encontrou forças para romper o silêncio:
– Como garante, Sr. Elias, que Tomás é meu Balbino?
– As marcas nas nádegas.
Diná lembrou-se perfeitamente e tornou a investir.
– E quem disse que Balbino tinha marca?
– Nega Maria.
Diná, mais pálida ainda, quietou-se num murmúrio vocativo: “Meus Deus!”
– Já estou de saco cheio – esbravejou Ronaldo. Imagine só quem sou eu: marido da puta de meu pai; sogro de meu irmão; avô de um polvo….
– E um inveterado maconheiro – obtemperou Diná, revidando os duros golpes.
– Por favor, gente, gostaria que me recebessem com mais respeito. Afinal, não vim aqui para ouvir insultos. Acho, pois, que devem controlar-se e aceitar a situação.
E notando maior acessibilidade, completou:
– Domingo receberão a visita de todos nós.
– Se aquele porco sujo aparecer por aqui, eu o matarei.
– Ronaldo – falou docilmente o Sr. Elias – o Sr. Ariel, além de ser seu pai, é um homem de idade, velho e sem lá muita saúde e pretensão. Não queira fazer justiça com suas mãos, isto nunca levou a nada. Todo o mal está no passado: enterre-o de uma vez por todas, homem de Deus! Quem, ao olhar para trás, não gostaria de uma nova chance? Mas, infelizmente, nossa chance está sempre no presente, que é a única fração de vida que podemos manipular. Pode até duvidar, mas não há arma mais poderosa no mundo, do que a mansidão e o perdão. Não precisa falar nada. Domingo estaremos todos aqui. Se quiser apedrejar-nos, pode ir ajuntando as pedras – e dizendo isto, ergueu-se, apanhou o chapéu que deixara no consolo ao lado e estendeu a mão em despedida.
– Espere aí – argumentaram Ronaldo e Diná ao mesmo tempo – não vai sair assim. Afinal, não dissemos nada contra o senhor.
– Sem dúvida, no entanto, domingo teremos muito tempo pra conversar. Ah!, se tiver um churrasco com cerveja, a torcida agradece.
Mal o Sr. Elias dobrou a esquina, ambos se voltaram nos calcanhares e trombaram os dedos em riste. Ficaram boquiabertos por alguns instantes, como se ambos aguardassem uma investida. Depois de alguns segundos naquela ridícula posição, puseram-se a rir como desvairados.
Se houvesse situação embaraçosa para os dois, esta situação ainda não havia chegado. Afinal, por tudo quanto passaram Ronaldo e Diná, descobrir o próprio filho e irmão, era brincadeira. Além do mais, não havia na alma dos dois, qualquer resquício de sensibilidade: eram pedras grotescas que se encontraram na avalancha da montanha. Riram a verter lágrimas, depois se abraçaram e foram para a cama. Lá estava a razão de ainda estarem juntos.
27
Na verdade, ambas as partes tinham encravada no âmago, a impaciência daquelas pessoas que são campo de batalha entre o orgulho e a humildade. Todos, embora em doses diferentes, esperavam ansiosos pelo domingo. Curiosidade, afeto, medo, expectativa…, tudo se mesclava num amplexo que parecia transformar em século aquelas horas de expectativa.
Quando o carro parou em frente à casa de Ronaldo, este já estava cansado de ir e vir à janela, como se fosse um urso enjaulado que não se cansa de exercitar-se de um canto a outro da cafua. Mesmo assim, juntando encenação, abriu a porta e olhou com visível ar de surpresa. Num esforço sobre-humano, dominou seu gênio intempestivo:
– Ora, ora! – foi dizendo enquanto descia os degraus da escada.
– Como está, meu filho? – perguntou num ronquido de emoção, Ariel.
– Como o diabo quer, pai!
– Você não muda mesmo, hein!
– Em verdade, ninguém muda, o senhor sabe disto melhor que eu.
– Não é bem assim. Conheço muitas histórias de homens que transformaram suas vidas.
– Em contrapartida, conheço milhões que jamais desviaram seus caminhos.
– Já começaram a discutir? – interferiu Diná, aproximando-se.
Estava com 58 anos, mas ninguém lhe daria mais de 30. A juventude parecia gostar de morar ali. Vestida em seda, os seios levemente desaprumados, rosto bem feito e singelo, andar gracioso – tudo fazia de Diná, uma rainha sem trono. Ariel não pôde esconder a emoção quando ela se achegou para cumprimentá-lo. Fitaram-se nos olhos, as mãos trêmulas e geladas. Não se deram conta do tempo. Olharam-se fundo, no mais escondido da alma, onde somente o silêncio entende e fala tudo o que está no coração. Quantas lembranças!
A algaravia de cumprimentos, de abraços forçados e também espontâneos – tudo o que normalmente acontece em tais situações – aos poucos foi cedendo lugar a um silêncio sepulcral. Todas as pessoas passaram a olhar para Ariel e Diná, uns com estranheza, outros comovidos. Quando os dois perceberam, desconsertadamente soltaram as mãos e começaram a dirigir encabulados sorrisos aos que os observavam.
Depois foi a vez de Balbino. Diná deu dois passos inseguros, parando em seguida no meio do caminho. Balbino aguardava-a num misto de emoção e frieza. Afinal, aí, em sua frente, estava a mulher que o abandonara numa praça, insensível ao choro e ao seu pedido de piedade. Balbino não lembrava bem aquela dor, nem as circunstâncias. No fundo, porém, alguma coisa, independentemente de sua vontade, reagia e rejeitava tal reconciliação. Era a luta inconsciente de rejeição, de desforra e de orgulho.
Por isso, ele se mantinha de pé, parado, esperando que sua mãe “voltasse da rua e viesse retomá-lo naquela praça de Belém”. Ali ele ficara 37 anos, olhos rasos de sofrimento e dependência, numa orfandade triste e desprezível.
Novamente o silêncio começava a invadir o ambiente, quando Diná arremessou-se sobre Balbino, apertando-o contra si e dizendo bem baixinho em seu ouvido:
– Meu filho, se puder me perdoar, me perdoa; mas se isto lhe custar muito, não o faça. Afinal, não sou digna de seu perdão. Não tenho nenhuma justificativa plausível. Fui e continuo sendo uma vagabunda.
– Mãe – redarguiu ele – eu preciso perdoá-la, eu preciso. Sem isto, minha vida não terá sentido, e minha busca terá sido inútil. Não guardo nenhum rancor da senhora, porque aprendi que não somos tão culpados por nossas vicissitudes. Soldados! …. É, soldados de uma milícia potente e excêntrica é quem somos. Queiramos ou não, temos de desempenhar nosso papel aqui neste mundo. Por isso, não sei se devo perdoar a senhora ou pedir explicações a quem nos deu determinado papel nesta comédia existencial. Não fique acabrunhada não. No fim, tudo vai dar certo – é sempre assim mesmo. Ele só não erra a última tacada. Deus, minha mãe, é como um campeão de xadrez: deixa o adversário ir comendo as pedras, dando a impressão de que irá perder o jogo, mas no fim, com apenas uma pedra, come todas as pedras do adversário e ganha o jogo.
Seguraram-se em seguida pelas pontas dos dedos. Diná fitou-o de alto a baixo, depois circunvagou um olhar dizendo em alta voz:
– Vejam que lindo rapaz, forte como um coco de tucumã!
Balbino olhou a mãe: não havia nada a dizer. Pudesse ele naquele instante enfiar a cabeça entre as mãos, fechar os olhos e pensar, talvez tivesse mil coisas a dizer e a cobrar. Mas, naquele instante, a única coisa que importava era sair da orfandade e usufruir o mais primordial dos direitos: o de ser um homem que conhecia sua origem. Por isso, depois de examiná-la e reexaminá-la, puxou-a para si, estreitando-a num comovido abraço.
O silêncio, enfim, voltou ao recinto. Numa poltrona individual ao lado da sala, Ronaldo examinava o neto mutilado, não sem uma nesga de nojo e revolta. Por que tinham estas coisas que acontecer logo com ele? Por que a ele e não a outro homem?
O menino tentou segurar-se na bainha de suas calças, rodou em si e caiu. Ronaldo permaneceu imóvel como se nada tivesse acontecido. O menino contorceu-se, aprumou-se como pôde e falou:
– Perdoa-me vovô! Sou mesmo um desastrado. Estas puãs pouco me ajudam. Contudo eu queria abraçar suas pernas e dizer com isto que gosto muito do senhor.
Ronaldo estremeceu. Não esperava uma justificativa assim. Ouvira dizer que Jabino era um menino prodígio, que passava os dias e grande parte das noites estudando, lendo principalmente obras de famosos pensadores como Looke, Santo Agostinho, Platão…, e tantos quantos livros lhe dessem, porém, nunca imaginava que ele pudesse exprimir e pensar com tanta desenvoltura. Arriscou um colóquio:
– É verdade que gosta de filosofia?
– Preferisse, talvez, dança – e tomando ares de seriedade, respondeu: – sim, ela é a única ciência capaz de satisfazer nossas curiosidades.
– A propósito, o que diria a meu respeito, depois de conhecer meu passado?
– Ora, vovô! Por acaso o senhor não é um homem como os demais?
– Bem, acho que não. Ainda não lhe falaram a meu respeito?
– Pelo menos, nada de anormal.
Ronaldo franziu a testa: realmente não tinham dito nada ou aquele menino estava, sagazmente, escondendo a verdade? Ficou numa encruzilhada de boas opções: se não tinham dito nada, não podiam odiá-lo como imaginava; se tivessem dito e o menino não dizia, estava diante de um neto do qual bem podia orgulhar-se. Enquanto pensava, o menino interferiu:
– Que tanto pensa, vovô?
– Não é bom pensar? Você também não vive pensando?
– Claro. Por isso mesmo estou curioso e enciumado. Gostaria que partilhasse comigo seus pensamentos.
– Se o fizesse me atariam uma mó de pedra no pescoço e me lançariam ao mar.
– Acho que já li alguma coisa semelhante relacionado a escandalizar uma criança.
Ronaldo, mais assustado que nunca, sorriu apenas. Agachou-se, tomando-o nos braços. Jabino observou:
– E uma vergonha um homem não poder erguer-se, não é vovô?
Ronaldo ficou calado – ele continuou:
– Quem sabe, seus braços serão os meus? Na verdade, muitos braços e pernas só aparecem e medram para nos ocasionar problemas. Talvez seja por isto que os meus ficaram perdidos no projeto uterino.
Ronaldo encorajou-se:
– Por que, só agora, veio visitar-me?
– Nunca se deve chupar um fruto antes que amadureça, vovô! Se o fizermos, poderemos achá-lo azedo. O Sr. entende o que estou querendo dizer?
Aí, Ronaldo consternou-se. Não podia crer no que estava ouvindo. De repente, aquela figura deformada parecia-lhe uma dádiva do céu. Seu coração encheu-se de amor e de orgulho: estava diante de um predestinado, cuja sabedoria só podia vir de Deus. Mas… Deus? Ora, ele nunca acreditou em Deus!
De qualquer forma, crendo ou não, Deus existia, norteava e agia sobre o mundo, o cosmos e as criaturas. A simples blasfêmia de um atrevido qualquer não O afeta, porque Ele não precisa de nada, nem de ninguém. E uma ignorância a toda prova o entender que se possa ferir, entristecer ou afetar o bom humor do Eterno. Todos nossos atos maus e perversos redundam, apenas, em nossa própria desgraça.
Mas, Ronaldo não via as coisas por este prisma. Vez por outra dava uma satisfação ao possível criador de tudo. Agora, porém, estava imbuído de um sentimento sincero. Algo parecia transformar-se ao simples contato com aquela criaturinha mutilada. Exatamente ali, sem que o soubesse, passaria a amá-la. Começou a sentir um aperto forte no coração. Como num filme, revivia as imagens de seus primeiros anos de entendimento: nega Maria, sempre ela, a seu lado, cuidando de sua roupa, de seus cadernos, apertando-lhe a mão com medo de que se desgarrasse e fosse dar na rua, sob as rodas de um carro.
E enquanto divagava, ela cruzou a sala. Oitenta e nove anos, recurvada pela idade, mas ainda com todos os traços de uma mulher que foi bela. Não precisava de cajado, nem usava óculos. Apenas suas mãos tremiam um pouco. Quando viu Ronaldo com Jabino nos braços, parou, firmou os olhos como a forçar a crença no que via. Depois deixou a emoção penetrar fundo demais, começou a chorar convulsivamente e desfaleceu. Antes de cair, agarrou-se a um tripé e foi com tudo ao assoalho.
A correria foi geral. Estirada numa cama, imóvel e fria, nega Maria sentia o braço esquerdo formigar, acompanhado de uma dormência geral e uma dor forte no peito.
Ariel agachou-se, tomou suas mãos frias nas suas, depois passou a mão direita no rosto gélido e transudado.
– Oh, minha nega! Logo hoje resolve nos dar um susto?
– Sempre tive medo deste dia – disse ela num fio de voz. Sempre brincava em minhas orações, que não desejaria viver além deste dia.
– Você nunca falou tanto, minha nega, e se é para dizer bobagem, prefiro que continue calada.
Cinco horas depois, num leito de hospital, nega Maria morria, tendo no semblante a paz de quem foi direita e honesta a vida inteira.
28
Como alguém apaixonado, Ronaldo contava os dias nos dedos, achando sempre que a semana era eterna, no prazo de justificar suas idas constantes a Imperatriz. Como as aves do céu, amanhecia feliz e bem cedo esticava os músculos e se punha em ação. Desde a reconciliação, sua vida e a de toda família modificara-se por inteiro. A felicidade parecia vibrar em cada átomo. Jabino era a causa de tudo. Perspicaz, inteligente, comedido, o menino parecia um velho professor em sabedoria e um velho sábio em sensatez. Sabia como dizer as verdades e, sua plena aceitação ao que era, tornava-o admirado por todos.
Ronaldo não cabia em si ao vê-lo falar de coisas profundas, enquanto, estarrecidos, os que o rodeavam ouviam. Até religião que sempre empertigou Ronaldo, agora podia por ele ser tratada, sem a angústia que afeta os corações ao enfrentarem os argumentos irrefutáveis da presença de Deus.
Os professores eram generosos em suas lisonjas e talvez um filho de compleição perfeita não desse a Emanuele e Balbino, maior alegria. Vivia lendo, e embora maneta, dava um jeito com a que sobrara, de encaracolar o cabelo enquanto lia. O livro permanecia aberto e imprensado entre curtas fasquias, devidamente preparadas com dois estiletes de arame que pressionavam as folhas. Ali, Jabino parecia entrar em êxtase e pouco adiantava chamá-lo quando se punha a ler. Estava sempre entranhado na leitura e pelos seus olhos e feição, qualquer um podia avaliar a qualidade emocional do texto. Às vezes ria, às vezes chorava, dependia apenas do que estivesse lendo. O que fazia, fazia por inteiro, absorto no desenrolar como se estivesse vivendo, ou vendo o que o autor se propunha.
E embora demorasse uma eternidade, o sábado sempre acabava chegando. Ronaldo, bem cedo se levantava, ia a uma lanchonete da esquina, tomava seu desjejum e, antes que Diná acordasse, já se punha a caminho. Debaixo do braço, o corriqueiro presente: um livro, de preferência, da mais alta seriedade. Jabino detestava certos romancistas que usavam o realismo absoluto. Não se conformava com o vulgar, achando sempre que o escritor, pelo simples fato de sê-lo, deveria dizer as coisas vulgares e promíscuas, de um modo mais ameno e salutar.
“O mundo está saturado de pornografia” – dizia sempre quando tomava nas mãos obras de autores medíocres, que faziam do realismo exagerado, apenas um meio de ganhar dinheiro. “Literatura deveria ser – enfatizava – como remédio de laboratório honesto, em que o conteúdo, realmente, faz bem ao doente que precisa”.
Era fácil imaginar quando Ronaldo chegava, pois ainda não se livrara da estúpida mania de abusar do motor e de confiar nos freios. Mal ouvia o ringir dos pneus, Jabino deixava o que estava fazendo e começava a se arrastar para a porta.
– Como está meu sábio neto? – perguntou ao entrevê-lo, Ronaldo.
– Morrendo de saudades do melhor avô do mundo.
– Não fale assim, senão acabo acordando do meu lindo sonho. Penso, quando me fala desse jeito, que está mangando de mim.
– Extirpe logo este complexo de lobo-mau da cabeça, vovô.
– Estou tentando, estou tentando – e agarrando Jabino (um verdadeiro polvo humano) foi para dentro da sala. Jabino, sabendo que Ronaldo gostava de lhe dar presentes e que estes não lhe faziam falta, observou:
– Não me diga que veio de mãos vazias? O “Antes que a Natureza morra”, de Dorst, já li e gostei muito.
Ronaldo encheu-se de alegria e perguntou:
– O homem sabe das coisas mesmo?
– Sabe sim, vovô, só que os ecologistas, não fugindo à regra, são também muito exagerados. Concordo que a Natureza sofra com a poluição, mas sei também que ela foi talhada para se defender a contento de seus maiores inimigos, os homens. Ontem, enquanto papai abastecia o carro ali no posto da esquina, fiquei observando a valeta que escoava o óleo trocado dos motores: o capim conseguia viver pelas margens, num desafio ao que lhe impunham. De qualquer jeito, se a Natureza deixasse, o homem a exterminaria, mas isto nunca irá acontecer, pois nossa existência está intimamente ligada a ela. Se liquidarmos a Natureza, iremos juntos.
– Bravo, bravo – bradou Ronaldo, enquanto apanhava o embrulho multicor. Era um compêndio sobre a filosofia de Espinosa. O menino aprumou-se como pôde e ficou aguardando, com os olhos cheios de brilho e de ansiedade. Enroscou-se no papel, rasgou-o, deixando o livro exposto.
– Obrigado, vovô. O senhor foi a melhor coisa que me aconteceu na vida – e dizendo isto saiu arrastando-se para dentro do quarto. Antes de fechar a porta, voltou-se para Ronaldo e disse um tanto envergonhado:
– Estou escrevendo um livro, vovô. Sabe, quando eu crescer, quero ser escritor.
Dito isto, fechou a porta. Ronaldo acompanhou-o cheio de orgulho. Sentia no menino, uma capacidade ímpar de entender as coisas e uma maneira inteligente de encarar os mistérios. Jabino fora-lhe o renascimento, o renascer.
Três semanas depois, quando voltou, encontrou Jabino pálido e bastante emagrecido. Ficou preocupado, mas o menino afirmava que não estava sentindo nada, apenas certa inapetência e um pouco de fraqueza.
– Vou levá-lo ao Dr. Castro – disse, categórico, Ronaldo.
– Deixa que Balbino leva-o amanhã – interferiu Emanuele.
– Nada disso, levo-o agora mesmo – e dizendo isto, tomou-o nos braços e foi saindo.
Emanuele balançou a cabeça:
– Vovô coruja! Como este, nunca conheci nenhum.
Dr. Castro era um médico nordestino (destes que não veem nenhuma gravidade numa fratura exposta). Vivia isolado, jamais se misturando com a máfia hospitalar. Por isso, era tido como um médico comum, sem grandes pretensões. Atendia num consultório particular e tinha mais coisas nobres dentro de si, do que fantasias em todo corpo médico restante. Dificilmente um cliente seu era aconselhado a exames inúteis ou a revisões de acordos clandestinos, muito comuns na cidade. Era pobre, honesto e amigo.
Olhou o menino e conturbou-se. Pediu alguns exames e marcou nova entrevista para o dia seguinte.
Às quinze horas, quando Ronaldo entrou no consultório, Dr. Castro estava tamborilando com a caneta em cima dos exames, pensamentos perdidos em conjecturas. Ao ouvir o barulho, virou-se como que desperto.
– Oh, entre! Estava mesmo pensando em você. Entre, entre por favor.
– O laboratório já remeteu os resultados?
– Estão aqui, diante de mim.
– E então?
– O pior possível.
Ronaldo empalideceu.
– Não estou entendendo. Explique-se, por favor.
– Suspeito do pior, caro amigo. Temos ainda a chance de torcer por uma grave infecção interna e, quando se chega a torcer por isto, não é preciso dizer mais nada.
– Leucemia?
– O número de glóbulos brancos transcende o limite da normalidade, ou melhor, vai além do limite máximo aceitável.
Ronaldo tomou nas mãos uma faca de metal que Dr. Castro usava para separar folhas de papel. Parecia brincar com ela. De repente, partiu-a em dois pedaços, ferindo uma das mãos.
– Isto não vai ajudar em nada, Ronaldo. Depois, não afirmei ainda coisa alguma. Vamos acompanhar a evolução da doença. Amanhã faremos acurados exames clínicos para constatar se, realmente, não se trata de uma violenta infecção interna.
No outro dia, depois de todos os exames, Dr. Castro mandou chamar Ronaldo. Balbino, Emanuele, Ariel, Jabino e Diná nada sabiam ainda. Ronaldo entrou temeroso:
– Prepare-se para o pior – foi logo dizendo à guisa de cumprimento, o Dr. Castro.
– Santo Deus! – exclamou Ronaldo, sem uma hemácia a vadiar-lhe pelo rosto.
– Seria idiota se lhe afirmasse que é leucemia. Porém, adoraria, neste momento, ser um médico incompetente e irresponsável. Além do aumento desordenado de leucócitos, ainda pude constatar o crescimento do baço, do fígado e o aparecimento de vários gânglios. Existem outros sintomas que poderiam confirmar plenamente, como equimoses, petéquias, febre e dores pelo corpo, mas graças a Deus, essas coisas ainda não aconteceram. É aí que devemos alimentar nossas esperanças.
– Eu entendo – falou Ronaldo numa fímbria de voz.
As lágrimas vieram em seguida e os dois saíram para respirar um ar mais puro. Não havia nada a dizer naquelas circunstâncias.
Às 22 horas, Ronaldo retornou. Balbino e Emanuele que haviam chamado Ariel para jantar, aguardavam que ele voltasse. Estavam preocupados, pois não era comum Ronaldo deixar Jabino a sós por mais de uma hora. Quando chegou, sua fisionomia era atoleimada e cheirava a álcool.
– Onde está meu neto?
– Está no quarto, escrevendo…, escrevendo um livro, imagine. Há três semanas que vive trancado, dizendo que vai escrever um livro. Não deixa ninguém ver e fez Balbino comprar um cadeado, com o qual fecha o baú em que guarda os originais. Diz que ninguém poderá lê-lo antes do avô querido.
Ronaldo estava bêbado, mas mesmo assim pôs-se a chorar convulsivamente.
– Prepare um café bem forte – disse Ariel – ele teve uma recaída.
E baixando a voz quase ao inaudível, sussurrou:
– São coisas normais para quem bebeu uma vida inteira.
29
Oito meses após, Jabino já quase não se mexia. Estava cheio de manchas roxas e pipoquinhas avermelhadas pelo corpo. Cadavérico e lívido, mal conseguia mexer-se. As articulações prostravam-no em dores. Mesmo assim, em sua boca, não havia reclamações. Esforçava-se para manter a aparência alegre, mesmo diante das fisionomias tristes e abatidas de Ronaldo e dos demais familiares. Não lia, nem escrevia mais e as palavras vinham-lhe com dificuldade.
Ronaldo não cabia em si de angústia. Raramente saía de Imperatriz. Diná também viera e, atados por Jabino, todos viviam em harmonia e amizade. Em nenhum momento o quarto ficava sem alguma pessoa à cabeceira. Se alguém tivesse de sair, chamava outro.
Ronaldo acabara de entrar. Seus olhos estavam fundos e vermelhos; sua fisionomia era de profunda melancolia; suas mãos trêmulas, não conseguiam esconder o nervosismo e a dor. Passou-as no rosto de Jabino, ajeitou umas madeixas despenteadas e perguntou:
– Como está, meu filho?
Os olhinhos do menino giraram calmamente indo parar nos de Ronaldo. Num instante umedeceram e um leve tremor invadiu seus lábios.
– Oh, vovô! – disse ele – eu queria tanto viver!
Ronaldo não sabia o que fazer. Juntou suas últimas forças e disse num fio de voz:
– Você vai viver, meu filho!
– Vovó, eu estou morrendo a cada minuto. Sinto uma sensação gostosa invadir-me o ser. Tem momentos que pareço estar voando, flutuando como um condor que plana sob as nuvens. Aí, eu quero voltar à terra, mas quanto mais me esforço, mais pareço evolar, subir, subir. Vejo seus braços estendidos: quero descer e pousar sobre eles, mas não consigo. Vovô, meu vovô querido, não me deixe ir, não quero morrer, estou com medo. Sabe, ontem sonhei que era um menino perfeito, que tinha as pernas rijas, os braços ágeis e que o senhor me levava lá naquele campo de peladas, lembra? Acho que é porque, na escola, alguns meninos riam-se de mim; outros chamavam-me de polvo humano; outros ainda, demonstravam piedade. Foi aí que comecei a sentir falta de minhas pernas e de meus braços. Via-os todos os dias enturmarem-se para jogar pelada – era uma algazarra louca. E eu, agarrado em meu carrinho, olhava com ciúmes, louco para estar entre eles. Mas, em sonho, eu me vi entrando em campo. O uniforme era branco. A camisa tinha no peito o nome da escola e minha chuteira era nova, linda e macia. Eu corria, corria e driblava, chutava ao gol. Mas, sabe vovô, quando eu fazia uma jogada, não via os meninos que me chateavam e eu queria tanto que estivessem ali. Quando acordei, estava molhado de suor e me senti mais fraco do que nunca.
– Por favor, meu filho, não fale mais nada! Se Deus existir mesmo, você ficará bom.
– Não coloque Deus neste dilema, vovó. Eu sei que Ele pode tudo, mas às vezes é preciso que as coisas aconteçam. Lembra que o Filho dele, foi pregado na cruz e Ele permitiu? Contudo, vovô, peça-Lhe por mim.
A noite foi chegando. No bambual ao lado, os pardais, num jargão onomatopeico, disputavam os melhores raminhos para pernoitar. Uma aragem fresca varria o quente mormaço de um dia de sol. Ronaldo abriu a janela e desligou o ar condicionado. A claridade fraca do entardecer penetrou no ambiente, alumiando a face cadavérica do menino. Seus olhos castanhos pareciam esmaecidos. Já não se via o olhar vivo de uma criança.
Jabino, com muito esforço, estendeu a mão direita. Ronaldo tomou-a. Ele disse:
– Vovô, estou indo. Antes de chamar papai, mamãe e os outros, escute com atenção.
– Pode falar, meu filho. (Desde o aparecimento da doença, Ronaldo não mais o chamava de neto).
Jabino esforçou-se quanto pôde, tomando uma posição melhor. Depois disse:
– Está vendo aquele baú ali?
– Estou sim, filhinho.
– Dentro dele há umas folhas que escrevi para vocês e o original do livro, confesso, ainda inacabado. Gostaria que o senhor lesse as folhas juntamente com todos os membros de nossa família. Quanto ao livro, se achar que vale a pena, um dia o senhor manda editar. A chave está debaixo da almofada do carrinho. Foi um dó que eu não tenha terminado o livro como pretendia. Achei que teria tempo, mas enganei-me.
– Por que fez isto, meu filho?
– Não ia fazê-lo, vovô, mas antes que vocês percebessem, eu já sabia que os meus dias estavam contados.
– Como assim?
– Nós somos muito sangue um do outro nesta família e um qualquer, ainda que inconsciente, dá a própria vida para salvaguardar a felicidade dos demais.
– Não entendi.
– Não tem importância. Há muita coisa que realmente não se entende nesta vida, pois ela própria, a vida, faz questão de não ser entendida. Tudo é um mistério. Criam-se mil verdades – no entanto, ela é uma só. Por isso eu tenho de ir.
– Quando devo ler as folhas que estão ali dentro?
– Depois de algumas semanas – digamos, três semanas. Reúna a família e leia em voz alta. Agora chame papai e os demais. Tenho de ir.
Ronaldo apertou a mãozinha gelada, olhou fundo aquela fisionomia dependente, meneou a cabeça e saiu tristemente.
Na sala, Ariel, Balbino, Diná e Emanuele conversavam baixinho. Ao ver entrar Ronaldo, Diná levantou-se:
– Como está ele, querido?
Ronaldo ia dizer alguma coisa, mas de repente, as forças faltaram-lhe e desmaiou. Minutos depois, quando entraram no quarto, Jabino parecia dormir. Acercaram-se todos e então ele entreabriu as pálpebras, correu o olhar agonizante ao redor, tentou esboçar um sorriso e deu o último suspiro.
O vento, que era ameno, conturbou-se, varreu as persianas e o zumbido se fez sonoro como uma melopeia de mil querubins: mais um anjo subia aos céus.
30
Nunca três semanas duraram tanto. A curiosidade que invadia toda família era insustentável. Ronaldo mantinha o baú dentro de seu próprio cofre e nem um peixe entocado vigiaria o ninho com maior desvelo. Jamais houvera coisa mais preciosa para ele. Por tudo isto, a noite do vigésimo dia foi passada em vigília. Todos estavam reunidos na casa de Ronaldo e Diná (que entre todos parecia a única que não se abalara tanto). Ela servia licores e doces, enquanto aguardavam o toque da meia-noite. Um clima de tristeza e curiosidade parecia estampar-se no semblante de cada um.
Quando o relógio bateu 23 horas, Ronaldo foi ao quarto e retirou o baú, pondo-o no meio da sala. Tornara-se sagrado como a arca do tabernáculo o fora para o povo hebreu.
Ariel, com seu eterno cachimbo, pitava em intercaladas baforadas. Ronaldo tilintava um batuque monótono com os nós dos dedos, enquanto o relógio parecia deliciar-se com a sofreguidão deles. Os pais de Jabino, bem juntinhos, não sabiam o que dizer, nem o que fazer. Simplesmente aguardavam.
Finalmente o relógio soou. Todos se levantaram. Ronaldo tomou a chave e aproximou-se do baú. O suspense foi geral. Antes de enfiar a chave, olhou: todos pareciam ter prendido a respiração. Girou a tranca, abrindo o cadeado. Levantou a tampa e lá estavam três folhas enroladas, enlaçadas em fita escarlate, em cima de um grosso volume de folhas manuscritas. Todos se aproximaram. Ronaldo explicou:
– Seja o que for; esteja aqui escrito o que estiver, peço a todos um voto e um juramento de adesão.
Todos concordaram, estendendo as mãos em sinal de juramento. Ronaldo retirou as folhas, tornou a trancar o baú e dirigiu-se aos demais que o circundavam. O silêncio era de saudade e suspense:
“Estou feliz por estar ainda com vocês. Enquanto se lembrarem de mim, eu estarei entre vocês. Hoje é dia de meu aniversário. Ronaldo ergueu a cabeça: não havia se lembrado.
Completo hoje meus 10 anos. Se meu corpo estivesse aí, sei que tudo seria festa, pois nunca duvidei que gostassem muito de mim.
Na verdade, vovô, todos nós temos uma função nesta terra. “Nem uma flor nasce por acaso”. Eu vim para ser o elo da família e ficarei muito feliz, aqui onde estou, se conseguir. Deus não escolhe ninguém em particular, para nada. Qualquer um que passar na fila da vida, na hora de sua precisão, será escolhido para fazer aquilo que Ele deseja.
Amem-se uns aos outros, gostem-se e respeitem-se, pois não há nada mais sublime a se almejar. Há muita coisa boa que a gente não faz só porque se acostumou a fazê-las erradas. Viciemo-nos no bem. Nunca se preocupem com o passado de vocês ou com o passado dos outros: ele é um zero à esquerda: nada representa. Enterrem, para sempre, o passado mau. Não esmoreçam diante da fé e da abnegação dos santos, dos sábios, dos fortes…, pois eles nada seriam se assim não fossem talhados por Deus. Não se enervem com os ignorantes, nem com os que lhes causam mal, pois são necessários como a videira para a uva e não têm toda culpa de ser o que são.
Não se desgastem com religião nem seitas, pois todas são verdadeiras ao manifestar a vontade de Deus; e todas são falsas quando encabeçam ideologias particulares visando bens materiais e interesses pessoais.
Nunca discutam o que é certo ou errado nas religiões: amem simplesmente a Deus. Se o verde fosse azul e o amarelo cor-de-rosa, a gente se acostumaria do mesmo jeito…. Ou discordaria, como fazem as religiões. No entanto, tudo é cor, é Deus.
Não se importem com a vida e com as coisas que não entendem, pois na verdade, tudo no mundo é vulnerável, misterioso e estranho. Se seus corações disserem: não creio; sua língua deverá dizer: eu creio. Digam isto tantas vezes quantas forem necessárias para vencerem os seus corações pelo cansaço.
Não há verdade absoluta além daquela que afirma a existência de Deus. Não leiam nada procurando erros, mas tentando encontrar o certo. Cuidem de seus escritos, pois eles são mais poderosos que bombas ou sermões sacros.
Não deixem de dormir porque duvidam de certos dogmas, de certas verdades: tudo é uma bela lista de contradição. Muitos procuram e não acham; outros não procuram com medo de achar. Muita gente não acredita porque lhe é conveniente; outros acreditam pela mesma razão. Se não acreditarem de coração, não se importem: tentem apenas. Mais vale suas intenções do que seus atos.
Creiam, firmemente, que tudo tem de ser como é, pois, isto foi preestabelecido. Não discutam com ninguém – nas discussões conhece-se o orgulho das pessoas.
Ouçam sempre, enquanto puderem. Falem somente o necessário. Esqueçam os que os feriram, pela razão simples de, praticamente, serem quase obrigados a fazê-lo.
Unam-se em família. A família é uma sociedade sagrada. Não se envergonhem de cair, cair, e tornar a cair. Envergonhem-se, antes, de terem demorado no chão.
Não procurem tanto entender os outros e sim, a vocês mesmos. Não busquem longe demais as verdades, pois elas moram dentro de vocês, nas suas cabeças, nos seus corações.
Não tenham tanta curiosidade com o além, com o depois, com o porvir: ele virá mais depressa do que imaginam. Para um curioso, a morte chega a ser desejada, tal a vontade de sanar logo todas as dúvidas.
Se quiserem o céu, lutem desde agora, pois ele pode começar aqui na terra mesmo e nunca mais terminar.
Um dia, vovô, o senhor me disse que duvidava até mesmo que Jesus fosse Deus. Para que tal preocupação? Em toda pessoa santa, Deus entra, faz morada e dois vivem em um. Jesus era homem sim, mas em tal comunhão com Deus que já não falava por si. Por isso Ele disse que qualquer ser humano podia fazer mais que Ele. Temos em nós a força intrínseca de sermos Deus, basta apenas a fé para fazê-lo interagir, viver e ser por nós.
Todos, neste mundo, têm para dar, pois quanto menos bens as pessoas têm em dinheiro, mais ricos são diante de Deus. O sofrimento, a pobreza…, enriquecem as almas. Mas se só tiverem dinheiro, deem isso mesmo – é um dos raros momentos em que ele poderá lhes ser útil. Não há nada que o homem deva procurar mais que crer em Deus. Não há razão maior para viver do que livrar-se das incertezas. Deus é a certeza. Não se preocupem com as palavras, mas com os exemplos. Não tenham medo do que pensam e falam sobre vocês: temam apenas o que são.
Amem-se, respeitem-se para viver em paz, e não terá sido inútil esta arrumação de Deus de meter-me nesta história.
Quando percebi que estava doente e que meus dias seriam breves, deu-me uma dor tão grande no peito que quase não suportei. Gostaria muito que Deus deixasse os espíritas com a razão, na afirmação de que iremos nos encontrar do outro lado. É que ficaria feliz em não me apartar de meus pais, avós e amigos também. Foi duro saber que iria separar-me dos meus livros, de meus pais, do meu avô querido, de todos enfim. Foi aí que pude olhar-me e acreditar que somente Deus poderia fazer com que um ser, mesmo mutilado como eu, desejasse tanto viver.
Por isso quero que amem a vida. Ela não é dada a todos. Somente os privilegiados têm a chance de nascer do nada para nunca mais perecer. É o milagre maior de Deus, maior que a criação das galáxias e de todo universo visível e invisível, pois tudo isto voltará ao nada, menos a nossa alma que é eterna.
Amem a vida, este sublime mistério de nascer, de respirar, de viver, de ver, de sentir-se a criatura mais querida do Criador.
Amem a vida nas lágrimas, no sofrimento sufocado, no grito de angústia… amem-na no sorriso e nas lágrimas. Lutem, caiam e se levantem, mas sempre com um sorriso estampado, mesmo quando a face se contorce em dor. Não importa se estão tristes ou não: importa, apenas, que nasceram e que têm toda chance do mundo de ser eternamente felizes.
Não percam tempo com normas, com leis. A verdadeira religião, o verdadeiro caminho, o que devem fazer e o que devem evitar, tudo está dentro de seus corações. Não percam tempo imaginando se o que ensinam está certo ou errado. Creiam apenas que alguém criou isto tudo, pois é impossível ao acaso, criar tudo o que existe sob nossos pés, diante de nossas mãos e acima de nossas cabeças.
Tenham sempre a intenção pura. Não tenham ideias de grandeza. Contentem-se sempre com o necessário. Ele basta e representa a verdadeira riqueza. Os excessos, por si, trazem o infortúnio, as noites perdidas, os erros, as injustiças, a ganância, o desamor e o ódio.
Não esmoreçam jamais. Ainda que, tropegamente, caminhem, pois se andarem um centímetro, ficarão na frente de quem ficou parado. Neste mundo, tudo passa: não tenham medo dos dias tristes e do sofrimento.
Não se revoltem contra a vida. Sejam como um paciente conformado que aprende a conviver com seus infortúnios. Cuidem das pequenas coisas, pois entre os livros, carrinhos e brinquedos que me presentearam, o que mais me fazia feliz era vê-los contentes e tomar-me nos braços. As grandes coisas nunca me fizeram falta, pois sempre aspirei coisas pequenas. Não acumulem fortunas. Dividam antes os excessos com os menos favorecidos. A felicidade mora do outro lado das riquezas vãs e da luxúria.
Tenham fé. Percebam que Deus é mais compreensível nos simples e pobres de espírito do que nos sábios. Os sábios querem explicar pela ciência e jamais conseguirão; os simples fazem-no pela fé. Aprendi que a verdadeira religião não vive nos templos, nas igrejas, nas mesquitas…, em nenhuma crença ou seita, mas no coração de cada homem em particular. A única coisa que não consegui entender em minha curta vida foi o amor de Deus pelos homens: grande demais!
Não maltratem os animais, os rios, os mares e as árvores, pois não é justo nem sábio quem assim age. Eles enfeitam e são necessários à casa que Deus construiu para nós.
Muito cuidado com o que dizem perto de uma criança. Pouca coisa há para ser mais respeitada. Não percam nunca a sensibilidade de um pequenino, que fica maravilhado diante de uma borboleta em circunvoluções.
Deus usou de todo seu poder e sabedoria para ornamentar a terra de rios, mares, nuvens, ventos, pássaros, árvores, flores… Como é triste saber que tantos passam por aqui e nem se dão conta de tanta graça e beleza!
Por isso, meus queridos, se desejarem chorar, chorem; se quiserem pensar, pensem; se pretenderem dormir, durmam; mas, se tencionarem fazer alguma coisa errada, pensem mil vezes antes de fazê-la.
Estejam sempre imbuídos da mais pura intenção e não tenham medo do porvir. Deus talvez não conheça o futuro, mas o prevê com precisão. É como a gente dizer: vou tomar um pouco de água e dirigir-se à fonte que está a poucos metros. Dificilmente isto não acontecerá quando a gente vai sedento e determinado à fonte que está vendo.
Deus se preocupa com a gente. Nunca irei entender o porquê, mas isto é uma verdade incontestável e milhares de vezes provada por dia.
Nunca se preocupem com o que possuem. Se um dia tiverem pouco, deem uma parte diminuta do pouco ao pobre que tem menos que vocês, e Deus ficará mais feliz que tendo vocês o mundo, derem a outrem um continente. Todos, indistintamente, têm para dar.
Amem-se em família, meus queridos, e o resto, virá por si.
Bem, agora vou despedir-me de vocês e voltar para o baú. Sempre que quiserem estar comigo é só se reunir. Encontrar-me-ão nestas folhas. Elas contêm a consumação de um desígnio de Deus.
31
Uma tarde cinzenta, quieta e pressagiosa como lembranças perdidas descia, aos poucos, sua cortina escura sobre todo o vale. No horizonte, nuvens carregadas, autômatas dos ventos, caminhavam em seus andrajos rumo ao ocidente. Rápidas aragens varriam os rostos cansados e suarentos de Diná, Emanuele, Balbino e Ronaldo. Era uma quarta-feira, dia 25 de novembro de 1970.
Alguns trovões ribombavam pelo horizonte leste, deixando riscos de curtos relâmpagos azulados. O inverno anunciava sua chegada glamorosa, como se fizesse questão que todos soubessem de sua aproximação. Olhares tristes da sacada da varanda fitavam as peripécias da Natureza, sem alento para compartilhar de toda aquela gambiarra em curto.
Desde a morte de Jabino, a família resolvera adquirir um sítio a 12 quilômetros de Imperatriz, em que corria um igarapé de águas claras. Ali, agora, moravam unidos. Mandaram construir uma capela e sob a mesa simples do altar, ao lado da cruz de Cristo, jazia o baú que continha os escritos de Jabino, como se fosse um sacrário com Cristo presente. Mensalmente, o baú era aberto e todos ouviam aquelas palavras de exortação. Tudo mudara, tudo agora era paz e harmonia.
A felicidade, porém, nunca é permanente no mundo. Isto desmotivaria as promessas de uma eternidade ímpar e, aí sim, feliz, no convívio com Deus. E, neste dia, Diná, Emanuele, Ronaldo e Balbino estavam tristes e arrasados. Ariel, com 83 anos, agonizava em seu leito. Há muito vinha sentindo dores estomacais. Com a idade avançada e sem apetite para alimentar-se, foi definhando mais e mais.
A noite acabou de chegar. A chuva prenunciada desceu sem cerimônia. Pelas calhas, as águas ajuntadas do teto desciam como chuá de cachoeira. Quando em vez, relâmpagos alumiavam os mais recônditos lugares. A agonia continuava. Às três horas, a respiração de Ariel foi diminuindo, diminuindo. Antes de se lhe consumar a vida, Ariel, com muito esforço, chamou por Ronaldo e lhe perguntou:
– Já mandou editar o livro de Jabino?
– Ainda não, pai.
– Então, por favor, faça-o logo.
– Mas, que nome porei como título?
– Gostaria que se intitulasse: JABINO, O PRESDESTINADO.
– Sua vontade será respeitada, meu velho.
– Obrigado, meu filho! Não imagina como me sinto feliz por partir com o coração cheio de paz para reencontrar meu neto.
– Vai em paz, meu pai! Perdoe-me todo mal que lhe causei e diga a Jabino que o amo mais do que tudo neste mundo.
– Direi, meu filho! Direi.
Sobre o peito, debaixo das mãos entrelaçadas, Ariel tinha os escritos do bisneto, encimados por um crucifixo de bronze que ele mesmo mandara benzer e dera de presente. Jabino o mantinha bem em frente ao quadro em que escrevia.
Morria Ariel, exatamente numa data que lembrava algumas coincidências. Exatamente nesse dia, Jabino completaria seus 16 anos. Também com 16 anos, Balbino fora gerado num encontro furtivo, e com esta mesma idade, Ronaldo conhecia Diná e iniciava, por inteiro, sua vida de bandalho.
Agora restavam os quatro. Ronaldo e Diná nunca mais tiveram filhos e Balbino e Emanuele, a conselho médico, passaram a evitá-los. A experiência que viveram com Jabino havia sido por demais dolorosa. E para aumentar ainda mais tais sentimentos, Jabino fora um predestinado: havia nascido um pequeno sábio, um gênio, capaz de assimilar e entender tudo o que lia e ouvia. Seus olhos eram como sensores fotográficos que gravavam e salvavam todas as coisas por aonde passavam. Seu cérebro, disposto por Deus, ou pela casual formação genética, transformara seu espírito, tão anormal quanto sua compleição física. Nada, em Jabino, considerava a normalidade. Tudo era misteriosamente, a mais.
Num milagre, Ronaldo libertara-se das drogas e da vida desregrada; aceitara a vida como ela era e nunca mais se dera às cenas de ciúmes. Diná, por sua vez, conseguiu acomodar-se, acalmar a libido e viver, pura e simplesmente, para Ronaldo. Balbino e Emanuele amavam-se sem reservas e não reclamavam das peripécias do destino. Era um amor espiritual, cheio de compreensão e afeto. Continuavam casados, mas viviam como irmãos, mesmo porque eram irmãos.
De Jabino, aquele “Baú Sagrado”, aquela arca milagrosa que em outros tempos tanto norteara o povo hebreu sob a égide de Moisés. E tão grande era a fé naqueles escritos, que eles passaram a segui-los como se encerrassem as leis contidas nos 10 mandamentos. Viam ali, a mão de Deus.
E Deus soube, mais uma vez, escrever certo por linhas tortas. Deixou mais uma prova de que jamais iremos entender a sua maneira misteriosa de fazer o bem, de chegar ao fim do projeto preestabelecido.
Aquele grito de discórdia dos salmistas pelos castigos que, por vezes, achavam desmerecidos, ainda continuava a ecoar-se em nosso tempo. A Deus, ninguém entende! E todos ali estavam convencidos desta verdade. Por isso deixavam as coisas acontecerem, recebendo cada graça e cada castigo, como norma imprescindível à vontade de Deus. Nos lábios, sempre uma oração; no coração, a conformidade.
O passado fora enterrado e, como tal, estava arquivado nos fastos do Eterno, sem valor, prescrito. O que importava agora era o presente, o minuto que tinham nas mãos: lampejo de tempo com capacidade de salvar ou condenar alguém por toda a eternidade.
Ariel também partiu. Foi procurar o sábio bisneto entre os anjos do céu. Em relação à eternidade, a água do Batismo se mistura com o rito da Unção dos Enfermos.