MENINA DO LIXÃO

Roberto se via agora com 17 anos e morando a três quilômetros do lugar em que nascera. Tudo começou depois de um almoço em que toda a família estava reunida. Ângelo, pai de Roberto e de mais seis filhos, aproveitou o momento:

– Filhos: vocês sabem que não sou de pensar, mas ultimamente vivo matutando. Quase todos os casais lutam para deixar uma vida melhor para os filhos. Estou vendo a vida passar, meus dias chegando e pouco fiz para que vocês tenham uma vida melhor para seus filhos. Viemos do Sul, se metemos aqui nestas matas e, nem sequer separei uns 50 alqueires para cada um de vocês. Ocupei os 15 alqueires e neles estou até hoje. Queria que estudassem a ideia que vivo maquinando aqui na cachola.

Quando saí da Itália, o motivo foi o estímulo dos parentes e amigos. Eu não era ganancioso e não vim para ser rico. Não vou perder tempo batendo o martelo no mesmo prego. Vocês sabem por que viveram tudo aqui comigo. Agora queria que fizessem o que não fiz. Tem aí o Roberto, que só pensa em bola, passarinho e molecagem para atazanar a gente. Mesmo assim, é o mais esperto e atirado. Que tal a gente vender a terrinha que tenho aí no riacho Liberdade e mandar ele procurar um lugar no Brasil que daqui a uns 30 anos cresça com o desenvolvimento do lugar?

– Que parte do Brasil, meu pai? Perguntou Roberto.

– Esta é a confiança que botamos em você, se for o escolhido. O Brasil é muito grande e você está na flor da idade, é esperto, não tem preguiça, sempre encontrando tempo para aquilo que quer. Está na hora de provar que tem juízo também.

– Mas, pai, sou apenas um dependente de futebol, de caçadas e de criar passarinhos. Não serei confiável, porque não me conhecem e pareço um adolescente. Com certeza, para falar de negócio, terei dificuldades até para negociar um chinelo usado. Não seria melhor o Franco ou o Nícolas?

– Está bem! Mas com dinheiro no bolso, não precisa ser velho. Quem deverá ficar esperto é você, para evitar que lhe passem a perna. Contudo, já que abriu o jogo, fica aberto aos irmãos mais velhos, cumprirem esta missão.

Olhando bem para Teresa, para dar tempo aos demais irmãos para demonstrarem interesse em substituir Roberto – repondo no prato a bolota de arroz que adquirira por hábito fazê-la entre o polegar e o indicador – perguntou:

– E aí, Franco, Nícolas, Estéfane e Salvatori? Vocês são mais velhos e têm preferência. Querem tentar? Veja que, quem for, não terá a obrigação de chegar aqui com tudo resolvido. Será mais para olhar, andar, pesquisar e trazer informações para decidirmos aqui reunidos.

Em menos de cinco segundos, como se tivessem ensaiado, os três irmãos, em coro, foram enfáticos e contundentes:

– Nem pensar! O melhor é ele mesmo! Eu não vou nem a pau, enfatizou Estéfane!

Nisso, tomando a palavra, Roberto, fechou o assunto:

– Posso viajar na próxima semana? Brincadeiras à parte, quero ouvir de meu pai, de minha mãe, de minhas irmãs, Donatela e Nerina e dos meus irmãos, se realmente fica decidido que iremos pisar – pelo resto de nossas vidas – além deste pedacinho de terra.

Alguns, mesmo com semblante inseguro, confirmaram que estavam dispostos e que sendo Roberto o encarregado, já começariam a aprontar a mochila. O senhor sabe, papai, que ele não voltará sem que seu plano seja executado.

MENINA DO LIXÃO

dezembro de 1998.

  • Hoje estamos iniciando uma experiência que poderá ser histórica na vida de vocês.
  • Não estamos aqui para dizer-lhes que poderão ficar despreocupados que iremos resolver todos os problemas de vocês. Estamos para garantir-lhes que, se quiserem, viverão com menos problemas e mais dignidade. São raríssimos os casos de um ser humano vir a este mundo predestinado ao sofrimento.
  • Vou estabelecer quatro meses de experiência, porque sabemos dos tantos problemas e falhas que irão ocorrer, principalmente a mim que, confesso, nunca tentei algo parecido.
  • Vocês escolherão um líder aqui mesmo, entre vocês. No começo ele usará mais a compreensão do que a justiça. Somente após todos os recursos, se algum membro da comunidade persistir no erro, aí sim será excluído do projeto.
  • Aqui, certamente, há gente que ainda sonha, gente que já perdeu as esperanças… Bem, gente de todos os naipes, sentimentos e personalidade. Por isso, haveremos de ter paciência. Que cada um tente compreender o outro, mas nunca se esquecendo que, ao menos no momento, deve aceitá-lo como ele é. Afinal, já se disse: que seria do mundo se todos fossem iguais, se todos gostassem ou detestassem as mesmas coisas? Não se esqueçam também do que já se disse: “Uma pessoa boa pode levantar o mundo”, ou que, “uma maçã podre pode estragar toda a caixa de maçãs boas”.
  • Nossas vicissitudes: coragem, medo, preguiça… Bem, somos diferentes uns dos outros.
  • Tentaremos amenizar a falta de higiene, porque não é fácil viver dentro daquilo que todo mundo joga fora: o lixo.
  • Ao procurar os padrinhos: médico, dentista e barbeiro, por favor façam a devida higiene, tomando banho, escovando os dentes ou lavando a cabeça.
  • Se houver demora no atendimento, tenham paciência. Não se esqueçam que, mesmo os que pagam, às vezes ficam horas esperando a vez.
  • Nesses primeiros quatro meses, queria apenas sugerir alguns pontos que considero urgentes:
  • Limpeza da área em que moram.
  • Cavar uma cisterna para água potável, num lugar ainda não afetado pela impureza e protegê-la contra enxurradas e todo tipo de sujeira que possa contaminá-la.
  • Retirar o lixo amontoado em volta da casa e transportá-lo, no mínimo, a 200 metros do barraco em que vivem com a família.
  • Construir sanitários em lugares apropriados, filtrar ou ferver a água que tomam e orientar as crianças para que não defequem ao redor da casa, mas apenas no lugar apropriado.
  • Fazer os exames, tratar as verminoses, tomar os fortificantes, cuidar dos dentes e da higiene. Tudo será gratuito, mas tomará bastante o tempo de vocês.
  • Vamos construir uma escola autorizada para as aulas do ano letivo de 1999.
  • Preparar uma área para hortaliças e outros alimentos e insistir para que as crianças se acostumem com elas, evitando a preferência por doces e carnes industrializadas.

SEGUNDA ETAPA DO PROJETO:

  1. Roupa adequada ao trabalho que fazem: botas, luvas, camisas de mangas compridas, chapéus de abas grandes etc.
  2. Reciclagem primária do lixo.
  3. Documentar todos os que vivem aqui, dos avós aos netinhos.
  4. Regularizar a escola para que os estudos das crianças sejam reconhecidos pela Secretaria de Educação de Imperatriz.
  5. Providenciar palestrantes especializados nas diversas áreas que envolvem a vida de vocês.
  6. Entrar com um projeto perante a CEMAR, solicitando a puxada de um fio para que possam ter, no mínimo, uma lâmpada em cada barraco.

NÃO SE ESQUEÇAM:

Se vocês quiserem, em menos de dois anos tudo estará mudado para melhor. Para isso, é preciso trabalho, fé e muita, muita compreensão e desprendimento. Espero que vocês não desperdicem a oportunidade que Deus pôs no nosso caminho. Há muita gente envolvida em ajudá-los. Não pensem que é fácil para os médicos, dentistas, barbeiros, laboratoristas, nutricionistas, professores e demais envolvidos no projeto, separar um dia da semana para atendê-los. Que Deus mantenha em vocês o desprendimento. Nunca sejam gananciosos. Lutem sempre pelo necessário. Ninguém precisa mais que o necessário. Mas tenhamos fé, porque em algum lugar, num tempo qualquer, mais rápido do que imaginamos, a justiça será aplicada a todos os explorados e exploradores.

Que Deus e os homens de bem nos ajudem a amenizar o grande sofrimento, ora visível e palpável no semblante de vocês.

MENINA DO LIXÃO

A vida passa, devagarzinho, mas passa. Parece o ponteiro das horas de um relógio: vai consumindo o dia… e a nossa existência, sem que percebamos o ponteiro se movimentando. Depois, as semanas também vão passando, e por mais que nos olhemos no espelho, de um dia para o outro, jamais notamos a evolução das rugas, a falta de um cabelo ou a coloração mais amarelecida de um dente. E tudo vai acontecendo, empurrando-nos irreversivelmente “para o fim do começo”.

Quando em vez encontramos um amigo de infância que não víamos a meio século. Tomamos um susto com o que vemos! Parece ter saído recentemente do hospital ou vindo de uma longa guerra, tal o estrago que os pequeninos ataques de segundos somados, causaram nele. Ele também nos olha e por pena não comentam.

É preciso jogar: Se não jogar, não terá chance alguma de ser premiado. Admitindo ou não, o fim chegará; querendo ou não, o livro dos mistérios abrir-se-á, muito antes que imagina, para saciar sua curiosidade. É bom jogar, porque é muito triste saber que não se tem a mínima chance de levar o prêmio. Há muitos necessitados bem pertinho de nós: joguemos!

SOBRE O QUE IRÁ LER

O título deste livro, Menina do Lixão, surgiu por acaso. Bem poderia se somar às fantásticas histórias que um dia foram escritas sobre homens que adormeciam no comodismo, ou mesmo perseguiam as pessoas, e que acabaram se tornando exemplos de vida para a humanidade, depois de um acontecimento que tocou seus corações.

Mudar! Transformar-se para que seu ato atinja outras pessoas é a graça que Deus dá todos os dias àqueles que aspiram a salvação. Assim como para uma nova árvore, a Natureza lança ao solo milhões de sementes, assim também, para que um pecador se salve, deixou Deus uma infinidade de opções, principalmente mantendo milhões de oprimidos que nos cercam. A eles, a crueza do sofrimento; aos afortunados, toda chance de praticarem a caridade, fazendo alguma coisa para diminuir ou mesmo eliminar os desníveis sociais.

Menina do Lixão pretende mostrar a realidade de uma luta em prol de alguns excluídos, tanto para exame dos políticos, como para exame da sociedade brasileira mais bem-sucedida…

Tudo o que está escrito é verdadeiro, inclusive o romance que veio de uma outra história ocorrida em lugar, tempo e com pessoas diferentes. É importante que o leitor não se prenda às incoerências, pois elas sempre estarão presentes em minhas histórias romanceadas. Verdades e mentiras se misturam como óleo e água batidos num liquidificador que, se desligado mostram o que contém.

No começo, fazer parte e se retirar do projeto era uma constante. Somente na última etapa, quando passaram a acreditar que as pessoas envolvidas desejavam mesmo fazer-lhes alguma coisa de bom é que se mantiveram firmes em suas posições e planos de mudança de vida. Com tal inconstância, foi praticamente impossível manter a coerência, porém, não, a verdade. Foi a mais dura e, ao mesmo tempo, a mais doce e compensadora das experiências humanitárias que Roberto viveu.

Oitenta por cento daquelas pessoas que foram encontradas sem perspectiva de vida, na mais extrema miséria, analfabetas, muitas já entregues às drogas, tiveram pela frente curtos sonhos e uma temporada de esperança. Dentro do conceito de felicidade – sempre imune à ganância e atada ao necessário para a dignidade humana – Roberto e seus amigos ajudaram muito. Por causa das pessoas esforçadas em praticar o bem, Deus nuca desistiu de Sua experiência. Não é para que as pessoas envolvidas recebam aqui neste mundo, os louros de sua boa intenção, mas para que, os que não acreditam percebam que é possível diminuir a miséria e o sofrimento de nossos irmãos.

Numa tarde cinzenta de julho, já com nuvens amontoadas para o lado do oriente (com trovoadas prenunciando as costumeiras chuvas das mangas e dos cajus), Roberto pensou em visitar o Lixão de Imperatriz. Tencionava escrever, mostrar e documentar, até que ponto podem descer os seres humanos, tanto aqueles que se submetem a uma vida subumana, como aqueles que, podendo evitar, permitem que essas coisas continuem acontecendo pertinho deles.

Munido de seus sofríveis instrumentos de trabalho (caneta, papel e máquina fotográfica), Roberto partiu para o “Lixão de Imperatriz”: um lugar desprezível que fica a nove quilômetros da cidade, seguindo pela Estrada do Arroz. Segundo se comentava, crianças e mulheres grávidas disputavam com os urubus e cães sarnentos, os restos de comida que a população de Imperatriz descartava. Roberto nunca estivera lá antes e se sentiu surpreso quando, na curva de um pequeno aclive, deparou-se com uma enorme placa: “SEJA BEM-VINDO AO LIXÃO DE IMPERATRIZ”.

Dobrou à esquerda, desfez mais uns 50 metros e viu estampada a imagem da miséria humana: um quadro realista que sobrepujaria a fértil imaginação de Alighieri. Dezenas de caminhões com dejetos diversos: materiais imprestáveis, lixo hospitalar, animais mortos…, chegavam e descarregavam suas caçambas lotadas. E ali, homens, crianças e mulheres grávidas disputavam alguma coisa que estava sendo jogada no chão. O que a princípio lhe causou um grande entusiasmo pela matéria sensacionalista, aos poucos foi-lhe despertando para a triste realidade, principalmente quando fitou de frente, crianças e mocinhas ingênuas que, em sua pureza de criança, ainda esboçavam um sorriso como se aquilo fosse divertido.

Como chovera pela manhã, as moscas atraídas pelo aumento do mau-cheiro que era sentido a mais de 200 metros de distância, e de sobeja oferta de sua alimentação predileta, aumentava sensivelmente. Era preciso ter muito cuidado ao abrir a boca, pois algumas das milhares que sobrevoavam, podiam se oferecer como alimento. Roberto tentou conversar com algumas daquelas pessoas adultas que ali se encontravam, mas todas se negaram, dizendo que já estavam cansadas de ser exploradas por “jornalistas” cujo único objetivo era lançar a opinião pública contra o prefeito, dando margens para que lhes tirassem dali: único meio de sobrevivência.

Fotografando aqui e ali, filmando o que podia, Roberto acabou se deparando com duas crianças sentadas no meio do lixo, recostadas em sacos que continham alguma coisa recolhida. Ao lado, dentro de sacos plásticos sujos, restos que foram jogados fora (pães, frutas…). A pele deles estava toda manchada por micoses, era plúmbea, possivelmente ocasionada por verminoses. Aparentemente, eram fortes, principalmente se avaliados quanto à alimentação que consumiam e os lugares que frequentavam. Tinham que sobreviver para se transformar na prova de acusação contundente contra todos os que podem fazer alguma coisa para amenizar tamanha miséria.

Roberto voltou apressado. Não via a hora de entrar debaixo do chuveiro para livrar-se daquele mau-cheiro de azedo que se impregnara nele. No carro, as centenas de moscas que havia dentro, aos poucos iam se libertando, graças aos vidros abertos que lhes davam a oportunidade de fuga. O artigo saiu com o título “A nove quilômetros de nós”, no dia 16 de julho de 1998″, no jornal “O Progresso”. Mas, já não era mais uma exploração da miséria humana, e sim um apelo para que a sociedade se unisse a fim de evitar que Deus castigasse a cidade por permitir tamanha injustiça social.

Diante do que Roberto viu e presenciou, não pode furtar-se à tentativa de amenizar, ainda que um pouco, o sofrimento daqueles irmãos. Juntamente com amigos que acreditam nos ensinamentos cristãos de que devemos “amar nosso próximo como a nós mesmos”, Roberto começou a pensar num pequeno projeto de assistência social àquelas famílias. Lá, temporariamente, sobrevivem outras pessoas, mas apenas umas 13 famílias fizeram do Lixão a única alternativa. Foi a essas famílias – com o apoio de amigos sensibilizados – que Roberto imaginou a possibilidade de fazer alguma coisa:

Um médico

Um laboratorista

Um dentista

Um religioso cristão

Alguém que ajude com uma cesta básica semanal

Um ou uma assistente social

Uma escola

Uma professora

Uma nutricionista

O barulho que lá se ouve é de insetos que, como os seres humanos, ali procuram a subsistência. Bem disse deles, o poeta Zeca Tocantins:

“São casas, são tocas

São homens, são bichos?

Ou são simples malocas

Formadas no lixo?

Se casa, se tocas

Se vives cativo

Bem, pouco importa

Se és homem, se és bicho.”

MAIS UMA VISITA

O amanhecer já dispensava a ajuda de lâmpadas acesas para enxergar, quando Roberto fez – como de costume – a revisão das tralhas que carregaria para capturar inhambus. Sempre fora obcecado por passarinhos. Cercar 42 m2, com uma cachoeirinha bem bolada, nascendo sobre o muro e atravessando o criadouro, escorrendo pelo canto direito do viveiro, oferecia ambiente favorável aos pássaros de brejos, rios e lagoas. No alto, pássaros ornamentais de vários estados brasileiros, viviam curtindo a água que descia por uns quatro metros.

Quando criança, Roberto vivia inventando armadilhas, armando alçapões, pendurando bananas, mamões, mangas, cachos de carirus das derrubadas novas, espalhando milho e arroz em casca pelo chão, como ceva para flagrar os consumidores alados.

Nesse tempo ele apenas sonhava, porque já precisava responsabilizar-se pelos gastos que fazia. Seus pais viviam num pequeno pedaço de terra devoluto e comiam e se vestiam do mais simples e barato que houvesse no mercado.

Roberto vivia pela vereda que ligava os primeiros moradores da região, passando de casa em casa, oferecendo leite, verduras e tudo o que pudesse lhe resultar algumas moedas. Mas, a crueldade dos incansáveis segundos que nunca percebemos, foi transformando tudo.

EXPLICAÇÃO PRÉVIA

Àqueles que já leram alguns dos romances que escrevi, devem ter percebido que sempre misturo realidade com ficção: realidade como roteiro; ficção para salvaguardar as pessoas sensíveis à minha opinião.

Menina do Lixão é um desses romances. A miscigenação foi tão bem-feita que já houve quem perguntasse sobre o endereço do hospital de Maria Alice. Maria Alice e Cleiton ora existiram; ora se prestaram às narrativas da história. Assim fui escrevendo, capítulo por capítulo, propositalmente adiantando partes, suprimindo outras do momento. Também virei Roberto para evitar o EU, que acho inteiramente antipático. Aliás, em algum lugar da Bíblia, se não me engano, Jesus nos alertou sobre isso.

Nos livros que já escrevi, se verificarem, não encontrarão em nenhum deles a apresentação da obra por alguém. É que evito, digamos, forçar as pessoas a dizerem o que talvez não o fizessem por livre e espontânea vontade. Sobre obras não existe unanimidade, nem para elogios, nem para condenações sumárias. Qualquer agrupamento com mais de dez participantes, ainda que seja de um, haverá dissidência.

Sobre isso, devo pedir desculpas, mesmo porque na maioria dos livros há amigos falando sobre a obra lançada.  Se a maioria preserva, a minoria deve estar errada. Bom mesmo é quando alguém critica depois de ler a obra!

Quando tudo previa o sucesso do projeto para minimizar a dor das 13 famílias que ali viviam, eis que, num dia quente, mas com rajadas de vento forte, alguém resolveu queimar um montinho de lixo próximo à primeira casa e, em menos de minutos, tudo ficou como mostram as fotos. O início do fogo nunca foi confirmado.

CAPÍTULO 001

O amanhecer já dispensava a ajuda de lamparinas para se desviar das quinas ameaçadoras de bancos feitos de tábuas de cedro e cadeiras de roletes espalhados lá e cá, quando Roberto revisou – como de costume – as tralhas que carregaria para capturar um inhambu previamente localizado.

Quando criança, vivia inventando armadilhas, armando alçapões, pendurando bananas, mamões, mangas, cachos de carirus das derrubadas novas, espalhando arroz em casca pelo chão, canjica de milho feita no pilão… nunca se esquecendo de construir, um abrigo para si, a fim de vigiar quais as espécies que, existindo ali lhe interessaria.

Nesse tempo ele apenas sonhava, porque não tinha dinheiro nem para comprar uma gaiola de embaúba. Seus pais viviam num pequeno pedaço de terra devoluta e comiam e se vestiam do mais simples e barato. Roberto vivia pela vereda que ligava os primeiros moradores da região, passando de casa em casa, oferecendo leite, ovos, verduras e tudo o que lhe podia resultar algum dinheiro. A mãe e Donatela sempre estavam prontas a ajudá-lo.

Mas, a crueldade dos incansáveis segundos que nunca valorizamos, foi transformando a adolescência, num rapagão cheio de manias. Via-se agora com 17 anos e morando a três quilômetros do lugar em que nascera e vivera o melhor e mais feliz tempo de sua vida.

Tudo começou depois de um almoço em que toda a família estava reunida: Ângelo – 64 anos e Teresa – 57, pais de Roberto e de mais seis filhos: Franco, 33 anos; Nícolas, 30; Donatela, 26; Estéfano, 23; Salvatore, 20; Roberto, 17 e Nerina, 13 anos. Casualmente reunidos, Ângelo que já vinha adoentado, limpou a garganta e disse:

– Posso viajar na próxima semana? Brincadeiras à parte, quero ouvir de meu pai, de minha mãe, de minhas irmãs, Donatela e Nerina e dos meus irmãos, se realmente fica decidido que iremos pisar – pelo resto de nossas vidas – além deste pedacinho de terra.

Alguns, mesmo com semblante inseguro, confirmaram que estavam dispostos e que, sendo Roberto o encarregado da missão dada, já começariam a aprontar a mochila. Ninguém sabia se ia dar certo ou errado, mas que em breve estariam viajando para o Norte, disto eles não duvidavam.

Pai, acho que, de fato, o senhor está coberto de razão e das melhores intenções – observou o primogênito Franco –, mas eu, o Nícolas e o Salvatore talvez fiquemos por aqui, porque já temos profissão e foi duro consegui-la.

– De qualquer forma, tanto aqui como lá vocês continuam sendo meus filhos e as portas estarão sempre abertas. Se vocês se derem bem por aqui, baterei palmas; se não, podem arrumar as malas que estaremos lá esperando de braços abertos.

Interessante era notar a personalidade de cada um dos filhos de Ângelo, que nunca se interessaram pelo trabalho pesado da extração de madeiras. Franco, como dentista prático, Nícolas como ferreiro e Salvatore como médico. Os demais gostavam de reservar o cérebro para as emergências da vida.

Estéfano, para exemplo, era avesso à leitura, e sempre reclamava quando Roberto lançava um livro e lhe presenteava um com dedicatória caprichada, anexada com convite familiar para lançamento. Da última vez, ao receber em mãos o livro, protestou:

– Detesto quando você escreve um monte de besteiras e me vem obrigar a ler. São os únicos livros que já passei os olhos por cima em toda minha vida. Quase sempre não entendo nada, mas preciso dizer que li, porque senão a Valéria se faz de rogada. Meu negócio é dirigir, é colocar as toras de madeira em cima do caminhão, pular no volante e entregar na serraria e, é claro, voltar com o cheque na mão.

Nícolas era mais completo: além de nunca ter lido um livro em sua vida, mantinha, pelo menos, os de Roberto, novinhos em folha. Deixava-os um sobre os outros num canto da cristaleira, sempre lamentando desperdiçar do canto do armário, que bem podia servir para coisa melhor.

Salvatore, pelo contrário, lia em toda oportunidade possível, inclusive os livros de Roberto, de quem incentivava a não parar. Na época do vestibular era preciso que os irmãos reclamassem quando precisavam da presença dele para completar o time de peladas. Defendia-se sempre: preciso estudar. O mês que vem terei de prestar vestibular.

Certa vez Roberto – ao passar por ele, totalmente absorvido num livro de Química – foi solicitado:

– Roberto, tome aqui este livro. Abra-o aleatoriamente e me passe o problema que constar na página que aleatoriamente abrir.

Maldosamente, Roberto escolheu um cheio de fórmulas e de números imprecisos, e mostrou:

– Este aqui!

Salvatore abriu o livro, puxou um caderno, tomou o lápis e começou a calcular. Mas eram tantos sinais estranhos que os cálculos já passavam de meia página do caderno. Mesmo impaciente, Roberto se manteve firme. A solução constava nas últimas páginas do grosso volume. Mais dez minutos, Salvatore terminou: a resposta é esta – e mostrou o resultado.

Roberto a apanhou, olhou, olhou, suspirou fundo: nem que eu vivesse mais que Matusalém não seria médico!

E Salvatore observou:

– Quem foi Matusalém?

CAPÍTULO 002

Três dias depois, Ângelo, alguns filhos e o vizinho palitavam os dentes sentados num tosco banco de madeira escorado numa cerca de ripas que evitava a saída das galinhas e do cachorro, quando uma camioneta usada parou em frente. O motorista desceu e foi cumprimentar o senhor Ângelo. Como de costume, o senhor Ângelo logo pediu para que Roberto fosse buscar duas cadeiras, já que o visitante estava acompanhado. Roberto trouxe as cadeiras e, por já saber o motivo da visita, as postou em frente, formando um semicírculo.

Em poucas horas o negócio estava fechado: o visitante que já recebera a possibilidade de compra da área de Ângelo, estava ali para tratar do assunto, graças à possibilidade apresentada por Roberto que nascera ansioso. Sua maneira de ser desconsiderava o amanhã. Tudo para ele havia de ser “ontem”. Agora, por exemplo, já não se falava mais no passado. Tudo era presente e com futuro antecipado.

Duas semanas depois, Ângelo, ao assinar a escritura da área, recebeu à vista a quantia que pedira. Um mês depois, Roberto já desembarcava no aeroporto do Rio de Janeiro. Vestia-se com uma das três mudas de roupa que levava. Apenas o sapatão era novo, o qual maldisse o tempo inteiro, porque estava castigando seus joanetes dos dedões.

Tudo para ele era a primeira vez! Informava-se até de algumas coisas que já sabia. Ao entrar num banco para sacar a importância de que precisava para continuar a viagem, viu exposta na entrada, uma coleção de quadros, artes visuais do pintor P. Soares. Nunca ouvira falar, não entendia nada sobre Arte, mas ficou tempo demais olhando para uma das pinturas. Vendo Roberto admirando demasiadamente, o artista aproximou-se e educadamente perguntou:

– Vejo que parece interessado no quadro. Por acaso gostaria de levar esta lembrança?

Roberto despertou de sua admiração e respondeu:

– De fato, o senhor foi perfeito no que quis mostrar. Olhei para as chamas e daí me pus a verificar o reflexo na água, as sombras, a fumaça… sinceramente, comecei até a sentir mais calor! Gostaria muito de levá-lo, mas, pelo menos por enquanto, é-me inteiramente impossível.

– O que o impede de levar agora?

– O tamanho. Estou de passagem e nem tenho ideia para onde irei, nem quando voltarei, já que estou apenas especulando uma área, cujo preço e terra sejam adequados ao sonho de meu pai e de meus irmãos.

Não querendo perder totalmente a oportunidade de faturar alguma coisa, o autor daquelas obras de arte, arriscou:

– Você mora onde?

– Sei que posso confiar no senhor, por isso explicarei em poucas palavras. Minha família morava, até poucos dias, no interior do Espírito Santo, perto de uma vila de poucas casas, chamada Marilândia. Meu pai, depois de reunir-nos, sugeriu que eu – com a aprovação de todos os irmãos – saísse pelo Norte em busca de um lugar no qual o tempo fosse a valorização, mas que, desde já nos desse condições de sobreviver. Nosso pedacinho de terra foi vendido já valorizado. Compramos uma casa modesta na vila, e já recebi notícia de que meu pai comprou um casarão onde funcionara o hospital de Linhares, a fim de não desvalorizar os recursos obtidos sobre a venda de seu sítio. Portanto, em menos de um mês moraremos na Rua da Conceição, 107, na cidade de Linhares, no Espírito Santo.

– Como já deve ter percebido, sou um pintor em início de carreira. Já andei por vários estados brasileiros e se não se importar, caso eu passe pelo Espírito Santo, levarei o quadro para você.

Certo de que ele jamais iria a Linhares para entregar o quadro, Roberto desmanchou-se em elogio, afirmando que admirar aquele quadro em sua parede seria uma honra. E já que somos dois sonhadores, eu também tenho o meu, o de um dia escrever um livro.  Passando por lá, terei prazer de recebê-lo em minha casa, citar no livro esta casualidade de conhecer um grande pintor como o senhor.

Roberto apostava tudo o que possuía de que seria, não somente irrazoável, mas também impossível, sair do Rio de Janeiro para ir ao Espírito Santo entregar um quadro, obra de sua arte.

E o tempo, sem apressar nem diminuir a velocidade de seus segundos, foi caminhando, caminhando, caminhando… Do pintor, Roberto nem sequer lembrava mais! Um ano depois, três dias antes de Roberto e todo grupo de capixabas mudarem-se para a cidade de Imperatriz, o impossível aconteceu.

CAPÍTULO 003

Dos muitos lugares visitados, ele acabou escolhendo Marabá. Passou uma semana no Novo Hotel, na Cidade Nova, que se desenvolvia no triângulo formado pelos rios Tocantins e Itacaiúnas. O proprietário chamava-se Gilberto, por coincidência, também capixaba. Logo se entenderam.

Roberto gostava muito de ler e como passara pelo Seminário Nossa Senhora da Penha, de Vitória, capital do Espírito Santo, possuía bons conhecimentos, tanto históricos como religiosos. Isso atraiu a atenção do dono do hotel que logo achou por bem marcar um encontro no saguão do hotel, com três autoridade da florescente cidade, que demonstrava prosperidade e crescimento. Era a primordial recomendação do pai de Roberto, senhor Ângelo. Pelo andar da carruagem, Marabá cresceria vertiginosamente. Cheio de esperanças, Roberto aguardou que a noite de sábado chegasse.

Gilberto montou na varanda do hotel, bem na entrada em que terminava uma rampa ascendente de dois metros de largura. No canto da varanda ele colocou oito cadeiras de balanço. Como o canto não coubesse, ele deixou duas, na rampa amortecida. Na hora exata, os convidados chegaram e foram devidamente apresentados como autoridades relevantes de Marabá. Roberto, portador de duas forças antagônicas, timidez e atrevimento, mesmo receoso, tentou não demonstrar. Como ficara numa cadeira posta na rampa, tentava esconder o retraimento balançando-se continuamente. Quando um dos juízes da comarca estava dando a opinião otimista sobre a cidade, Roberto descuidou-se e virou de pernas para o ar. E nem adiantou Roberto tentar reequilibrar-se, agarrando até no próprio vento. Contendo o riso, os presentes o elogiavam pela esperteza na tentativa de evitar a queda humilhante. De fato, nada é de graça! Mesmo com tudo o que aconteceu, poucas vezes em sua viagem, Roberto deparou-se com tanta esperança de completar ali a missão que lhe fora confiada.

Um dos participantes falou sobre a oportunidade de se conseguir seiscentos alqueires de mata quase dentro de Marabá, bem na saída, por meio do INCRA, tudo legalizado. Na segunda-feira, lá estava ele, às sete horas, aguardando que os funcionários da instituição chegassem e abrissem as portas.

Roberto assinou toda papelada, tornou-se dono dos seiscentos alqueires, pagou a quantia das despesas e saiu como se tivesse acertado na loteria. Era aquilo que mais sonhava para retornar e contar com detalhes, a viagem que fizera. Segundo o INCRA, a área era toda em mata e ficava na saída de Marabá, colada à Transamazônica.

Perguntando se era possível – já que ficava tão próxima – alguém mostrar-lhe o que havia adquirido, o intendente chamou um dos funcionários e ali mesmo combinaram dar “uma passadinha por lá” na manhã seguinte. Lembrado que a pick-up estava praticamente sem gasolina, mas que a distância não exigia mais de dez litros de combustível, o motorista nem precisou pedir abertamente. Logo Roberto garantiu as despesas e tudo ficou marcado.

– Oito horas?

– Oito horas encostarei lá no hotel do Gilberto.

– Com certeza esperarei. Passando pelo posto de gasolina, pagarei o abastecimento, okey?

– Combinado.

Em sua ansiedade, quis logo fazer barba e cabelo: escolheu uma quadra vazia bem próxima ao hotel do Gilberto e, mais senhor de si do que nunca, foi ao cartório e ficou com a quadra inteira.

Fazia parte do seu sonho, uma área bem grande, praticamente ligada à cidade Nova de Marabá, e morar numa quadra de onde podia-se ver o portão da fazenda.

Era bom demais para ser verdade, mas a documentação já havia sido assinada perante o INCRA e os da quadra, no cartório da cidade. Viver reunido com os pais, os genros, os irmãos, os sobrinhos e netos, até então sempre fora ideia fixa de Roberto.

Como se comunicar com os familiares levava muito tempo, ele dormiu a noite mais feliz de sua vida e foi obrigado a segurar as rédeas de sua ansiedade. Não havia necessidade de se comunicar com os familiares, porque chegaria antes da carta.

CAPÍTULO 004

Considerando a missão cumprida, Roberto aproveitou a carona de um cliente do hotel, de nome Raimundo, que ali pernoitaria e viajaria pela manhã para Imperatriz. Já naquele tempo, muito bem se falava da fundação de um lugar bem localizado e propenso à valorização em poucos anos. Já não havia mais como desfazer os negócios que assumira em Marabá, mas Imperatriz merecia uma olhada, ainda que fosse para fechar, com chave de ouro, a incumbência que lhe fora confiada: especular toda e qualquer oportunidade.

A viagem foi normal, ou seja, poeira e solavancos em quase todo o percurso. Depois de 9 horas chegaram ao lugarejo chamado Imperatriz.

Raimundo já conhecia alguns pontos indispensáveis da cidade, já que ela fazia parte de suas viagens. Diante da observação de Roberto de nem fazer ideia sobre onde passaria a noite, Raimundo propôs-lhe dividir um quarto na pensão de dona Marinalva, bem próxima à sofrível rodoviária. À época, Imperatriz não oferecia muitas opções e os dois pernoitaram na modesta pensão mesmo. Raimundo acordou antes de o dia clarear, despediu-se e viajou para Belém. No caminho ele visitaria pequenos comerciantes, seus fregueses. Vivia disso.

Às onze horas, quando Roberto, depois de um café com leite e dois pães com manteiga, fechou a porta do quarto alugado, foi à calçada de barro batido, viu bastante movimento na BR 010 e foi caminhando para lá. A pensão quase atingia o perímetro proibitivo sob a lei que impede construções no perímetro rodoviário. Em poucos minutos já estava admirando dezenas de caminhões transportando madeiras em toros para todos os lados. Num posto de combustível – talvez o maior da vila – os caminhões transportando toros e arroz em casca, sucediam-se. Aos motoristas mais amistosos, Roberto perguntava até, sobre o nome dos filhos.

E, numa dessas conversas, ele ouviu de um dos motoristas:

– Cara, este é o melhor lugar do mundo para se trabalhar e ganhar dinheiro!

– Como assim?

– Ora! Se eu tivesse 20 caminhões desses, todos os dias, lotados de madeira, ficaria rico em menos de um ano. Não bastasse, corre forte a notícia de uma tal de Serra Pelada, em que se encontra ouro até com enxada de capinar quintal. Eu já nem sei mais o que escolher. Ô terra abençoada! E cada homem suado que encontrava, Roberto entabulava conversa. Todos falavam maravilhas, totalmente entusiasmados.

Quando ia retirar-se das imediações do posto, eis que duas mulheres se abeiraram dele e perguntaram se ele podia dispensar alguns minutos para ouvi-las.

– Meu nome é Marta e o dela Maria. Só não temos um irmão chamado Lázaro.

Era tudo o que Roberto queria: ouvir e tirar conclusões. Na lanchonete do posto eles se sentaram em cadeiras e mesa construídas com madeiras toscas. Vieram empreender por aqui, incentivadas pelos entusiastas que espalhavam, sem economia de adjetivos, os mais variados incentivos a quem tencionasse se mudar para Imperatriz. A mais velha era amasiada e a mais nova, solteira. Já haviam investido em loteamentos e tinham disponíveis grandes áreas agregadas à vila que crescia desordenadamente. As mulheres eram inteligentes e bonitas e Roberto já havia decidido que passaria, pelo menos mais três dias na pensão de dona Mariana. Era sua última etapa e iria cumpri-la, levando uma segunda opção aos seus familiares.

Terminado o lanche, os três seguiram no carro das paulistanas. Elas o levaram ao loteamento que haviam adquirido a 500 metros do posto de combustível em que se encontravam, à margem direita da BR 010, sentido Belém do Pará.  Era uma área mais ou menos de três hectares, tipo um sítio, mas já transformado em centenas de lotes.

Do acostamento, elas mostraram a área, dizendo que Roberto podia escolher qualquer parte e quantos lotes desejasse, porque ainda estavam todos vagos. O preço, de fato era mesmo para quem desejasse ganhar dinheiro com o passar do tempo. A área era toda em capoeira, apenas com alguns casebres de madeira no flanco direito, onde havia três grandes mangueiras.

Depois das mangueiras, muitos casebres enfileirados, que consideravam, já, como bairro de Imperatriz.

Sobressaindo-se à capoeira oferecida, um telhado – parecia – de uma casa de alvenaria abandonada, que na vistoria final, Roberto percebeu tratar-se de um pioneiro fracassado que investira numa granja improvisada.

Muitas trilhas existiam e quando Roberto ouviu chororós e tururins, até inhambus pretas e jaós piarem, despertou de sua maior dependência: pássaros. Posicionando o indicador verticalmente sobre a boca como a pedir silêncio, ele brincou:

– Quanto me cobrarão por um hectare, contendo aquele galpão e aquela casa logo acima? Possivelmente vocês nunca irão entender a razão de meu interesse por aquelas construções abandonadas. Para que não errem, digo que parece terem sido construídas para mim. Trarei muitos passarinhos de Linhares. Para ser sincero, estamos aqui porque, ao entrar pelas veredas para ver se havia algum empecilho, vi essas duas construções. Se o preço for acessível a mim, talvez façamos negócio.

Elas confabularam separadamente e depois vieram a mim pedindo para dar o preço e a resposta à noite e que passariam lá na pensão em que me encontrava hospedado para finalizar o negócio.

Às 20 horas elas retornaram. Perto da pensão ficava a rodoviária e, nessa, vários bancos de pedra. Fomos para lá e nos sentamos em um que ficava sob um pé de macaúba, com ampla visão para o movimento, tanto de pessoas como de carros na BR 010. Cada dez veículos grandes, seis carregavam madeira em toros, mas quase todos paravam por ali.

Depois de mostrar documentos, em geral recibos manuscritos, elas disseram que me vendiam a área de um hectare, incluindo o galpão e a casa, e mais a parte dos fundos (essa gratuita) que, com um pequeno aterro daria para a construção de um campo de futebol soçaite.

Quando notei a diferença do preço entre a nossa terra lá no Espírito Santo e essa que estavam me oferecendo, quase perdi a fala. O dinheiro que tínhamos dava para comprar sem aperto algum. Mantive-me calmo e evitei fechar o negócio repentinamente, pedindo apenas 30 minutos para me decidir. Tinha receio de demonstrar interesse em demasia antes da hora.

Elas estavam praticamente doando a área. Ao voltar, depois de uma dúvida ensaiada, ficou marcado o dia seguinte para a medição. Assim foi feito. Piquetado os quatro cantos, voltaram à cidade, foram ao cartório e o negócio foi concretizado.

A área é exatamente esta que ainda pertence aos familiares de Roberto que mais tarde vieram para Imperatriz. Da parte doada, Roberto aterrou e construiu um campo de futebol soçaite iluminado. Da granja abandonada, um criadouro de Tinamídeos e da área melhor, as casas de cada sócio, piscina e sauna.

CAPÍTULO 005

Ângelo e seus filhos que continuavam no Espírito Santo estavam satisfeitos com os negócios realizados por lá, demonstrando que, de fato, é melhor comprar e depois revender qualquer mercadoria ou objeto, mesmo ficando conhecido como atravessador – um substantivo não muito simpático. É que essa modalidade de comprar e revender é muito mais fácil do que derrubar, queimar, plantar, capinar e colher. Este modelo de negociar utiliza a fórmula mais simples do mundo: a percentagem de abatimento para quem compra muito, além da revenda com lucro sem esforço. O trabalho e a produção ficam mesmo para os que não têm o dom vender.

A família de Roberto trabalhou assim e amou o jeito tranquilo de sobreviver e até de ganhar bom dinheiro, praticamente sem fazer nada. Por essa razão, houve até alguns – principalmente da ala feminina – que já havia demonstrado a possibilidade de parar por ali mesmo, trabalhando assim: comprando e revendendo pelos bairros. Como prova, eles mais que duplicaram o dinheiro aplicado.

Quando ocupou o pedaço de terras, depois legalizado, não lhe custou nenhum centavo. Veio da ocupação autorizada pelo governo do estado, sem documento escrito e sem análise da terra. Era interesse do governo do estado ocupar aquela área, somente para impedir a ocupação de estados vizinhos.

Quando Ângelo chegou àquele local, já com o sol se pondo, extenuado, com a mulher grávida de seu primeiro filho Franco, resolveu parar ali, numa área de mata muito limpa e plana.

Havia muitas folhas de palmeiras para cobrir o barraco, e nenhuma árvore grossa e muito alta ao entorno, o que diminuía a preocupação sobre raios, ventos fortes e possíveis galhos na cabeça. Ângelo sabia que, árvore encorpada atrai raios, quebra galhos e pode até matar qualquer ser vivo que ali estiver buscando abrigo. Eram raríssimas as semanas sem chover; vindo sempre acompanhadas de raios, trovões e fortes ventos.

No momento, ele mesmo, tendo o mínimo conhecimento sobre fertilidade do solo, descartou até a preocupação de cavoucar um punhado de terras para certificar-se se era local de areia ou de terra roxa. O certo é que a área, vista através do impasse de muito arbusto, possuía um lugar muito maior que um capo de futebol. Ao lado, um córrego corria límpido e sereno, sem barranco de contenção, indicando a continuidade daquela aparência.

Ângelo nunca fora meticuloso e, muito menos adivinho. Sem tentar adivinhar nada, enquanto Teresa acendia uns gravetos para requentar a polenta que já trouxera pronta, ele foi logo cortando varões, juntando cipós e amontoando folhas. O tempo estava favorável. Notava-se que não chovia a mais de uma semana e, naquele momento, o sol se punha sem que nem um fiapo de nuvem diminuísse o esplendor de sua luminosidade.

No segundo dia – ele agora nos contava – armou um barraco praticamente quadrado, sem qualquer divisão. Teresa, quatro meses de gestação, pouco ajudava, a não ser quando ele precisava dela para segurar a ponta de um cipó ou equilibrar os varões para que ele os socasse no entorno, mantendo o prumo aproximado.

O certo é que, a trancos e barrancos, no outro dia o barraco ficou pronto: fogão de barro, dois pequenos buracos que serviam de janelas e uma porta móvel encostada na abertura de entrada e saída da casa.

– Quando eu e a Teresa resolvíamos praticar a criação de mais um filhote, então eu amarrava um cipó, para evitar que alguém aparecesse para atrapalhar.

– Mas como atrapalhar, pai, se somente existia por lá o senhor e a mamãe?

– Obrigado por ter me lembrado deste detalhe, Estéfano! Você e quem me conhece sabem que não sou de brincar. É genético. Eu estava no centro de uma selva, e a presença de animais selvagens também atrapalhariam.

CAPÍTULO 006

Roberto passou ainda quase um ano na cidade de Linhares, sem diminuir nem demonstrar desistência das negociações de Marabá no Pará e Imperatriz, no Maranhão.

Já que ele havia adquirido dois locais distintos, Ângelo pediu para que se definisse. Sem pestanejar ele escolheu Imperatriz para morar e Marabá para investir.

– Imperatriz, se formos espertos ganharemos muito dinheiro. Somos em cinco homens, todos sadios. Resta saber se estão dispostos a viver, digamos, duas décadas, juntando bens para aplicar na velhice, que nunca chega devagar. É mais velho que pé de serra, a conversa comum entre a juventude, de que as pessoas sensatas, visando uma velhice tranquila, preferem acumular. Evitam, no melhor tempo de suas vidas, à diversão e o descanso. Só percebem o erro cometido diante da inutilidade. Quando a velhice chega, gasta tudo em remédios, consultas, hospitais… apenas para conviver mais um pouquinho com sua família. O senhor mesmo sabe, meu pai, que já fez sua parte. Trabalhou duro, arriscou deixar sua carcaça aos urubus aqui no Espírito Santo e não lhe é mais possível prometer a continuidade na vanguarda dessa batalha. Os irmãos aí sabem que apenas algumas décadas ainda servem de limite entre a luta pela sobrevivência e a chegada da velhice. Pois é pai, conforme nosso levantamento, agora temos não só duas, mas, três opções. Linhares também é um lugar de futuro.

– Quando acabarem com os mosquitos – aparteou Estéfano, extremamente alérgico a cada picada.

– Pode até parecer brincadeira, mas não é. Também não vejo a hora de me livrar desta praga. Mas, continuemos com as vantagens deste maravilhoso pedaço de terras: a terra é plana e muito bonita e bom de se morar. Tirando os mosquitos, é claro! Sem levar em conta que temos aqui todos os mais próximos parentes. Muita água, dezenas de lagoas, estrada federal passando aqui no meio, capital e mar a menos de cem quilômetros. O que vocês já fizeram fica mais que provado de que não passaremos fome. É bom lembrar, meus irmãos, que somos, agora, como placas e vergalhões nas estruturas de ferro que mantêm um prédio com 100 metros de altura. Mas o tempo, como se fosse sal, vai corroendo aos pouquinhos e, quando percebemos, a dureza dos vergalhões vai virando cipó sem resistência. Trocando em miúdos: tudo se acaba. Os seres vivos morrem e toda matéria se transforma. Sinceramente, também sinto um atrativo bem grande por esta cidade. Não que eu desacreditasse no tino comercial dos irmãos, mas, por tino ou sem ele, vocês, em minha ausência, demostraram que não precisavam de me soltar pelo mundo.

Voltando um pouco, digo que nossa estratégia é simples, observou Nícolas.

– A gente faz amizade, fala mal da cidade e vamos semeando opções, digamos, pessimistas, afirmando sempre que estamos dispostos a ajudar, propondo comprar o objeto, fazenda, carro, coisas assim, por preço razoável. Não deu sempre certo, mas já estamos com o dobro do dinheiro da venda de nossa terrinha. Um pouco antes de você chegar, efetuamos a compra de dois caminhões Mercedes Benz 1113, um com estrado para madeiras e outro com carroceria. É que você estava demorando demais, tanto que até já festejávamos a possibilidade de você ter morrido por lá, aumentando nosso percentual na herança….

Talvez até continuasse com a gozação, mas as risadas abafaram tudo. Silenciando, Roberto tentou tirar proveito:

– Bom mesmo que compraram um caminhão com carroceria. Iremos diminuir os gastos com o frete para levarmos nossas coisas para – aqui Roberto respirou fundo e fez uma pausa, porque ainda não tinha certeza se escolhia Marabá ou Imperatriz. Aí se lembrou da granja falida e abandonada dentro da área adquirida das paulistas, em Imperatriz, e terminou a frase: Imperatriz, no Maranhão.

– Imperatriz?

– Sim, Imperatriz.

– Por que não Marabá?

– Achei Imperatriz mais afoita ao desenvolvimento, principalmente pela procura de madeira em toros (e aí entram os caminhões que vocês compraram) e o arroz, não menos procurado que a madeira. Ah, não posso esquecer o (por enquanto boatos) sobre uma tal Serra Pelada. Dizem que tem gente que encontrou ouro até fazendo buraco para moerão de cerca! Se vocês concordarem, voltarei aos dois locais para verificar se aconteceu algum imprevisto e preparar a área para evitar as lágrimas da mulherada….

E aí, novamente muitos risos e Roberto continuou:

– Com certeza, o impacto será maior para elas, que acredito, já não pensavam em retrocessos, ainda que temporários. Mas podem ficar tranquilas, porque toda vez que nos sentimos realizados com um quintal florido e aconchegante, temos de passar por um bom suadouro para capinar, juntar o cisco, plantar, regar para depois admirá-lo. Essas coisas, ainda sem credibilidade profética, irão acontecer. Pelo menos assim sonhou nosso chefe supremo, papai, quando disse que fazendo isso, essas coisas acontecem. Embora nosso pai tenha nos surpreendido com aqueles conselhos, deu para perceber o quanto fora sábio.

CAPÍTULO 007

Apesar de ser o caçula homem da família de Ângelo, Roberto agia como um adolescente promissor, sem esconder as propensões que sempre pendiam para o lado escolhido por ele. Tornava-se diferente, sempre que o assunto era futebol, caçadas e passarinhos difíceis de serem capturados. Contudo, nunca demonstrara irresponsabilidade ao trator de negócios. Seus irmãos, mesmo inseguros, paulatinamente começaram a acreditar no que ele falava.

Estava próximo o dia da partida para Imperatriz. Estéfano e Nícolas estavam cuidando dos caminhões, deixados na oficina para revisão geral, já que a viagem seria longa. Franco saíra para acertar com aqueles que também viajariam naquela estranha romaria, enquanto Nícolas e Donatela cuidavam de encaixotar o que levariam. Pergunta que se faziam era sobre como encontrar espaço para tantos objetos pessoais. Nerina, foi a primeira a embrulhar seus pertences: muitos santinhos, pedaços de pano coloridos e sua inseparável boneca de papelão.

Ângelo, vendo que sua função nesta vida estava por terminar, passava a maior parte do tempo caminhando lentamente, sempre com o olhar fixo no horizonte. Desde que ficou decidido que a família mudaria para o Norte, e que o dia já estava próximo, não falava mais.  Embora tudo estivesse acontecendo como ele aconselhara, tornara-se triste e abatido. Três dias depois, faleceu, acometido por derrame cerebral.

Foi uma semana dolorosa para toda a família. Roberto olhava aquele corpo imóvel, braços cruzados sobre o peito, olhos fechados, dormindo para sempre. Cumprira sua missão, dando a vida para salvaguardar a mulher e os filhos de tudo o que era errado e, naqueles dias, estava sob julgamento diante de Deus. A viagem foi adiada por mais três meses. Enquanto Teresa banhava o corpo – mesmo com lágrimas nos olhos – Roberto aproximou-se:

– Mãe, papai é o único da família que ainda não tirei uma mecha de cabelo para minha coleção. Posso cortar uma mecha aqui da nuca onde ninguém irá perceber?

– Ô, filho! Claro que pode!

E Teresa mesmo, com carinho que talvez nunca tenha usado quando vivos, tomou a mão esquerda do marido e com a outra deixou a cabeça favorável. Roberto escolheu a mecha, cortou-a e a colocou numa caixa de fósforo vazia.

– Para que quer isso filho?

– Nem sei, mãe! Além de vocês, tenho também de todos os amigos e funcionários que trabalharam conosco até hoje, pelo menos daqueles que permitem e que têm certeza de que não é para feitiçaria e despachos. Nunca vou saber a razão. Tenho outras coleções que talvez não saiba: lápis de cor, bolinhas de gude, pios de inhambus, santinhos….

– Pois está bem! Cada doido com sua mania. Não vejo nada de mal sobre isso, mas aquele que nos criou, com certeza sabe. Jesus disse que cada fio de nossos cabelos o Pai tem ciência. E, sempre brincando, Roberto argumentou:

– Será que Ele descontou a mecha que tirei de papai?

Teresa que, às vezes até soluçando, cuidava do café da manhã, almoço e jantar, continuava firme e corajosa. Não se furtava de todas as noites reviver um capítulo daqueles dias em que foi deixada no meio da mata, juntamente com Ângelo, para escrever a história de seu destino. Ultimamente Ângelo vivia tenso, quase não conversava, sempre de mau-humor.  Se perguntado insistentemente, se estava doente, passando mal, ele desabafava:

– Stai, stai zitto perché sono già stufo. Ele queria dizer no mais novo dialeto de sua saudosa pátria: Cale-se, cale-se, porque eu já estou de saco cheio.

Parecia pressentir o que estava prestes acontecer. Já sem utilidade, impôs-se o descanso eterno. Entregaria o bastão e ficaria – já em outra dimensão – esperando a chegada dos filhos que continuariam caminhando.

Como tudo por aqui vai passar mesmo; como tudo por aqui acaba sendo esquecido; em menos de um mês, somente os mais sensíveis eram surpreendidos com os olhos lacrimosos. Teresa, que às vezes se esquecia de rezar o terço, agora o fazia diuturnamente. Era um compromisso diário de que não abria-mão. No costumeiro pedido dos filhos que pediam a bênção antes de dormir, ela recomendava:

– Não esqueçam de pedir a Deus pelo seu pai.

Enquanto esperava o dia chegar, Roberto continuava diante da mesinha, bem na porta de entrada para a sala. Verificava os documentos sobre suas compras, já prevendo nova verificação in loco. Havia momentos que já não tinha o que fazer em Linhares. Sentia-se um imperatrizense, porque alimentava-se da ideia fixa de lá enterrar seus ossos. Voltaria a visitar cada cantinho de sua segunda viagem. Queria, pelo menos, responder a todas as perguntas de seus irmãos.

Ficou sabendo que o INCRA o havia chamado para conversar sobre o lote que havia adquirido e isso o preocupava, já que não via razão para conversar mais nada. Comprara, pagara e assinara a escritura… Que mais havia para conversar?

Como já não houvesse tanto interesse pela área, Roberto deixou para quando estivesse radicado na cidade de Imperatriz. A viagem seria mais fácil ou talvez, o problema pudesse ser resolvido sem sua presença.

Depois do falecimento do pai, estava Roberto sentado na cadeira de sua escrivaninha, batucando com os dedos, quando viu algo estranho passando pela varanda. Não conseguira, de supetão, decifrar o que passara. De repente, algo praticamente impossível, ocorreu-lhe. Será? Não, não, coisas impossíveis só acontecem por milagre.

A varanda não era tão comprida e, agora, o que viu foi a placa manobrando para estacionar rente a porta.

– Como vai, senhor Roberto? Lembra de mim?

Mais gordinho e menos moreno, não foram suficientes para Roberto lembrar-se do pintor, mas o que ele mantinha sob o braço, ah, este não deixava qualquer dúvida: era ele, o artista P. Soares, aquele que expunha sua arte na entrada do Banco do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro.

Roberto pediu que entrasse. Desembrulharam o quadro, penduraram-no na parede e almoçaram. Roberto pediu o preço, pagou, levou-o ao portão e ele tomou um taxi e voltou para a rodoviária. Prosseguiria para Belém, onde exporia novos trabalhos. O pintor estava feliz e Roberto, ruminando a desgraçada mania de falar demais. Com certeza, por dentro, Roberto estava feliz, mesmo desrespeitando o acordo familiar de não gastar em nada que não fosse estritamente necessário, até se estabilizarem em Imperatriz, no estado do Maranhão.

Depois de ouvirem o relato, os irmãos o perdoaram, dizendo que, se o quadro não estivesse na parede eles não acreditariam no que Roberto estava contando.

CAPÍTULO 008

Durante a segunda viagem à Imperatriz, Roberto deu prioridade à aparência da área adquirida das paulistanas Marta e Maria. Contratou uma máquina roçadeira com o compromisso de cortar e retirar a capoeira da área e amontoá-la um pouco adiante da divisa; mais dois funcionários para capinar e queimar o mato no entorno da casa e da granja abandonada, porque essas duas construções receberiam, tanto a nossa como a família do tratorista e de mais três funcionários especiais que iriam trabalhar conosco. Enquanto isso, demonstrando responsabilidade, as paulistanas mandaram piquetar a área e entregaram a Roberto a documentação referente. Contratou dois pedreiros com seus respectivos ajudantes, um pintor, um encanador e um eletricista para, em uma semana, prepararem a chegada de sua família e funcionários “à terra prometida”.

Foi por um dos pedreiros, caçador inveterado de inhambu, chamado Manel, que Roberto ficou sabendo que, a poucos quilômetros dali, na estrada do arroz, havia centenas delas.

– Lá no lixão dá quase pra pegá de mão. Inté jaó a gente escuta, dizia ele. Sempre que vô pra quelas bandas mato mais de 20 nambuas.

– Se você mata mais de 20, já aca’bou com elas. Não adianta eu ir lá. Mas, quantos quilômetros dá daqui ao lixão?

– Uns sete quilômitru, não mais.

– Irei lá verificar. Estará despedido se não piar nada! Não há errada?

– Tem não. É só tu entrá pro lado esquerdo quando inxergá uma placa bem grande escrita, tu entra pra esquerda. Da estrada todo mundo já vê o lixo espaiado e iscuta as nambuas piando.

Da granja abandonada, cuidou Roberto mesmo, que fez algumas alterações para receber os 97 Tinamídeos (inhambus) que conseguiu capturar no Espírito Santo. A granja abandonada era retangular. Media 30 metros de comprimento por 20 de largura, cercada por quadrados menores de quatro por quatro. Os inhambus ficariam muito bem, já que as divisões eram até superiores ao que pede a lei para cada casal de Cripturellus, um tipo de pequenos inhambus que são encontrados em capoeirões e pastarias de todo o Brasil.

Talvez tenha sido por essa coincidência, que Roberto escolhera Imperatriz e não Marabá, que também as tem. Como estavam quase acostumados a viverem como ciganos, caso não se adaptassem em Imperatriz, mudariam para Marabá, pois já possuíam lá seiscentos alqueires de mata e uma quadra inteira na Cidade Nova, separada apenas da cidade de Marabá pelo rio Itacaiúnas.

Todos os que o conheciam, sabiam da dependência de era refém. Nunca escondera de ninguém: todo bichinho com penas, chamava-lhe a atenção. Uns ele caçava, outros revestidos de plumagens indescritíveis ele capturava para admirá-los em toda folga que tinha.

Continuaria com a responsabilidade técnica da sociedade que formara com os irmãos Nícolas, Donatela (Grapii), Nerina (Virul) e Estéfano. Logo comprou as madeiras que havia nas terras de um tal de Alcides – exatamente 60 alqueires – a um quilômetro da BR 010 e 50 KM de Imperatriz. Três dias depois da chegada, já com todo mundo instalado, munidos de motosserras, alavancas, machados…. foram ver o que Roberto havia comprado e voltaram com um dos caminhões carregado com ipês, uma das árvores mais procuradas e caras nas serrarias. Descarregaram e chegaram comemorando com o dinheiro da venda, dizendo que lastimavam terem perdido tanto tempo em Linhares.

Todo feliz, Roberto comemorou. No outro dia, já com todo equipamento de captura, ele foi junto. Passou horas especulando a mata e, principalmente os passarinhos. Foi quando, pela primeira vez, um inhambu, nunca ouvido por ele, piou distante.

Por essa razão já estava ensaiando a defesa porque – talvez influenciados por alguma dificuldade imprevisível – e elas sempre ocorrem quando todo aparato de vida é modificado – alguém da família poderia acusá-lo de adquirir matas mais preocupado com os passarinhos que havia dentro do que a própria madeira.

E por esse momento, já tido como certo, ele lembrou que precisava ler e reler a revolta dos judeus, quando Moisés foi escolhido pelo próprio Deus para que libertasse seu povo da escravidão egípcia. “Haverá contestação, e precisarei provar que é comum, já que convencê-los será impossível.”

Ali dentro daquela juquira, muitas previsões vinham-lhe à mente. Sabia que ali ficariam seus ossos, mas não sabia como nem quando.

Em Linhares ele se habituara sentar-se num banquinho, e passar todo tempo de folga disponível olhando os pássaros vindos de longas e dispendiosas viagens. Em seu viveiro, muitos pássaros vinham de regiões frias, como Venda Nova dos Imigrantes. Adaptarem-se agora nesta região quente – 15 graus acima de sua região de origem – se pensassem, o que se passaria nas cabecinhas deles?

Para os passarinhos – agora planejava: construirei um amplo viveiro nessa área interna. Cobrirei com tela, jaboticabeiras, goiabeiras e murteiras; bolarei uma cachoeirinha com água corrente para se refrescarem; jamais deixarei faltar comida apropriada…. é, acho que os bichinhos não irão reclamar! Não sentirão saudades do frio das montanhas. Não me cobrarão o crime de impingir a eles, mudanças drásticas. Para arrefecer o passado, o prazer de se banharem o dia e a hora que quiserem.

O diabo é que, com meus familiares não poderei dar somente o melhor de mim, mas também provar-lhes que minha intenção é aplicar a isonomia, ou seja, tudo o que eu adquirir ou mesmo comprar para mim, comprarei igualmente para cada um deles.

Vivíamos, nesse tempo, como sócios. Éramos em quatro: Donatela casada com Arlindo, Nerina casada com Vicente – por sinal irmão do Arlindo – Estéfano e Roberto. Franco, Nícolas e Salvatore não participariam, porque já haviam escolhido profissões vocacionais.

Franco já se mantinha como dentista prático; Nícolas como agricultor e ferreiro e Salvatore, como médico. Por isso, os três últimos permaneceram em Linhares e os quatro últimos, unidos, desembarcaram no dia 7 de setembro de 1980, na cidade de Imperatriz. Com eles a família do tratorista Zé Canuto e mais três funcionários de plena confiança dos proprietários: Valdecir, Cleiton e Nonato.

Gostaria de manipular as palavras com a sabedoria dos grandes escritores, para descrever os tantos percalços de nosso primeiro mês de vida em Imperatriz. Era de dar pena! Embora todos ouvissem diariamente de que toda adaptação era daquele jeito mesmo, notava-se claramente a constante nostalgia dos negros escravos na época em que eram trazidos da África para o Brasil nos porões dos navios, no semblante de quase todos.

Felizmente, não há remédio mais eficaz do que o tempo para curar qualquer tipo de mal psicológico! E não precisaram mais de seis meses para que os saudosistas esquecessem a vida que levavam em sua terra natal e se adaptassem à cultura da nova região.

Imperatriz crescia. Crescia sem organização alguma. Toda família que não tinha dinheiro para comprar um lote no centro, ia se distanciando até encontrar algum lugar que ninguém sabia de quem era e ali construía seu barraco com restos de madeiras das serrarias e muito papelão. Embora houvesse espaço para se construir um estádio de futebol, preguiçosamente e sem dinheiro, eles se contentavam com uma área coberta de, no máximo cinco por quatro metros. Só se preocupavam com os esteios, todos fortes e bem socados, porque neles amarrariam as tantas redes quanto o número de pessoas que iriam dormir no casebre. Quase sempre às margens de riachos eram escolhidas, porque água nas torneiras, somente para aqueles que moravam no centro da cidade. Muitas meninas de famílias pobres, embora malvestidas, não conseguiam esconder a beleza da adolescência e tinham dos próprios pais a permissão de sair com quem pagasse mais, desde que chegasse em casa com o dinheiro na mão.

O Cleiton, que viera de um lugar moralmente educado, diante das facilidades, logo engravidou uma imperatrizense, segundo ele, de apenas 15 anos. Dizia isso como uma conquista digna de prêmio. Roberto, sabendo do boato, chamou-o e quis saber como iria resolver o problema: aqui é assim, ou você paga todas as despesas da criança: hospitais, remédios… afinal todas, ou vai para a cadeia. E aí, vai assumir a menina e constituir sua família?

Cleiton pensou, pensou e rosnou uma resposta engrolada:

– Eu vou assumir, disse ele, pronunciando a primeira sílaba engrolada outra vez. Mas, como assumir era o termo mais indicado, Roberto apenas deduziu:

– Sei que coisas iniciadas erradas, nunca terminam bem. De qualquer jeito, você, no momento, está agindo como homem de verdade e lhe dou meus parabéns, por isso. Depois que nascer, começar a falar, ir a seu encontro, correr para seus braços chamando-o de pai, você saberá o que é ter um filho.

– Êpa, eu não fui claro já na primeira resposta?

– Foi sim e até me causou surpresa você ter assumido.

– Notei que você não tinha entendido. Eu não disse que iria assumir e sim, que iria sumir.

– Não brinque com coisa séria!

Metendo a mão no bolso, ele retirou a passagem que já havia comprado e mostrou. Roberto apanhou, leu: estava bem claro, no dia seguinte ele iria retornar à cidade de Marilândia, sua terra natal.

E, de fato retornou, fugindo da responsabilidade. Como a justiça aqui ainda capengava, apenas a menina viu sua barriga aumentar conforme o tempo ia passando. Cleiton voltou a trabalhar com os pais.

A vinda do Espírito Santo para Imperatriz fora simplesmente fantástica e histórica. Tipo liberdade vigiada. Era incomum os assaltos desenfreados, mas nem por isso o Valdecir descuidava. Acho que nem na Índia de hoje um caminhão transporta uma carga tão abusiva. Eram apenas dois caminhões Mercedes Benz simples. Um, transportava os pássaros; o outro, tudo o que não coube no primeiro, ou seja: romeiros com seus pertences, inclusive com seus animais de estimação. Confesso que o peso era normal, o problema foi o espaço. Por isso, a carga passava metros do malhal, deixando o carro sem estabilidade. Nas curvas fechadas era aconselhável passar em primeira, com o carro a 10 Km/h. Mesmo assim o caminhão pendia e a gritaria em cima era de decibéis além dos permitidos por lei.

Assim contavam os que viveram o maior desafio de suas vidas!

O caminhão com carroceria transportava mais de uma centena de pássaros entre rasteiros e avoantes, um caticoco adestrado, dois papagaios, um sabiá na gaiola. Este era o mimo de Roberto, porque cantava em qualquer lugar e hora, até mesmo com o carro em movimento. Junto àquela bicharada que por si só daria muitos anos de prisão e multa sei lá de quanto, ainda estavam amoitadas, no canto da carroceria, espingardas e rifles. Hoje, muitos saudosistas quebram a cara, quando encontram um policial honesto que não aceita propina. Naquele tempo, já se prevaricava com dinheiro no bolso! “Na terra de sapos, de cócoras com eles”. Com certeza, não é verdade que a corrupção hoje é maior. Ela sempre existiu. Parece maior hoje porque a população aumentou.

Os caminhões passaram em centenas de guaritas de muitas divisas, tanto de grandes cidades como de estados, por dentro de cidades grandes, com policiamentos estratégicos ao longo da estrada e ninguém mandou parar, nem para pedir carona. Sobre pedir carona, mais que justificável!… Imagine alguma coisa que não consegue passar despercebido! Pássaros voando, carga insegura, criança em cima de carroceria…. Assim sendo, nos mais de três mil quilômetros de viagem, nenhuma multa, nenhum acidente. Para não assegurar a total normalidade da viagem, no local em que pernoitaram, mais ou menos no meio do caminho, já quase noite, pararam às margens de um córrego que parecia estar ali para favorecer paus de arara em romaria para Aparecida.

Os caminhões desceram normalmente à margem. Havia área gramada bastante para todos estenderem seus colchões. O tempo parecia bom e, sem alternativa, foram preparando tudo antes do anoitecer. Posicionaram uma lâmpada com a energia da bateria de um dos caminhões e ajudaram as mulheres a acender o fogo. Jantaram uma hora depois e se deitaram, mas sempre conversando sobre os mais variados assuntos. Na mente, eternas perguntas sem respostas, porque sobre o amanhã só Deus sabe.  Lá pela madrugada, um carro parou no acostamento, rente ao acampamento. Cleiton cutucou o Valdecir e ciciou:

– Valdecir, acorda! Olha ali no acostamento, um carro parado. Não desceram para qualquer necessidade e continuam lá.

Como sempre, Valdecir que não se assustava com nada, confiante em sua estratégia de autodefesa, meteu a mão sob o colchão e arrastou a espingarda já carregada e ciciou:

– Pode dormi que eu dô conta se eles vié pra riba de nois.

Sem qualquer movimento estranho, o carro que nem desligou o motor, engatou uma primeira e, no mesmo silêncio com que chegou, ganhou a estrada e foi embora. O dia já estava amanhecendo e Valdecir tomou a lanterna e foi ver se havia alguma paca dando sopa às margens do riacho. Para ser sincero ele foi gerado faltando algumas peças no dia da montagem. Com onze anos ele deixou a família em Marabá e veio à revelia, sem eira nem beira, para o Espírito Santo. Apareceu no sítio do senhor Ângelo e pediu emprego. Tocado de compaixão, Ângelo pediu à Teresa que lhe desse comida e um quarto para passar a noite. No outro dia pediu a Estéfano que lhe arranjasse alguma coisa a fazer como abridor de porteiras, tirar objetos estranhos da estrada, coisas assim, que uma criança pudesse fazer.  Valdecir nunca pediu um centavo. Falava pouco, demonstrava não ter medo de nada, tentava ser o mais útil possível. Por sua maneira de ser, logo conquistou a simpatia de toda a família. Ainda está vivo, morando em Imperatriz.

Vindo bem antes dos familiares, Roberto se encontrava no loteamento adquirido das paulistanas. No dia 7 de setembro de 1980, às 16 horas, as “jangadas” encostaram, sem multa e sem acidentes. Era inacreditável olhar e acreditar que aquilo viera do Espírito Santo sem qualquer problema! Os militares do 50 Bis – 50º Batalhão de Infantaria de Selva – comemoravam o Dia da Independência, e centenas de pessoas aglomeravam-se nas imediações. Como qualquer ato diferente era motivo de festa, 80% da população estava presente. Encantavam-se com aqueles soldados marchando altivamente pelo pátio.

Para variar, Valdecir foi o primeiro a apontar com o dedo e gritar:

– É ali, pode tocar pra lá – e apontou com o dedo a única área limpa no meio do capoeirão.

Roberto – que esperava aflito – já vinha a pé avisá-los, quando notou a manobra dos caminhões e parou no caminho. As primeiras perguntas foram:

– Pelo amor de Deus, quantos problemas vocês enfrentaram para chegar aqui?

– Nenhum.

– Jura?

– Quando descer da boleia, jurarei e agradecerei a Deus por tamanha deferência.

– Jesus Cristo, exclamou Roberto! Nem vendo e ouvindo o relato de vocês dá para acreditar que passaram por quatro estados e ninguém parou vocês; e o que é melhor, as duas Mercedez usadas não deram problema algum. Sinceramente: precisamos descobrir o santo que protegeu vocês!

– Não estranhe! Nem eu estou acreditando, explicou Estéfano que nunca dirigira um caminhão no asfalto. Andar devagar e triplicar os cuidados, às vezes funciona.

CAPÍTULO 009

O caçula do senhor Ângelo não era um rapaz que servisse de exemplo para quem tencionasse sentar-se nem à esquerda de Jesus, quanto mais à sua direita. Mas, como acreditasse ser o próprio juiz que iria sentenciá-lo quando morresse, vivia tranquilo. Não cometia erros graves, mas não se desvencilhava dos veniais. Ao procurar o então padre Lourenço, ele confessou:

– Padre, meus pecados não são graves, mas são sempre os mesmos. Não consigo eliminá-los de meu dia a dia.

– Pois então, não irei perdoá-lo. Marque o dia de hoje. Quando você completar três meses sem esses pecados repetidos, eles estarão perdoados. Havendo recaídas, continuarão retidos.

Roberto ficou boquiaberto, porque nunca ouviu falar sobre essa penitência. Ele amava viver. Tinha os dias de sábado, como os mais promissores da semana. Era neles que se carregava cartuchos, enchia a bola, arrancava minhocas e perdia horas matutando sobre os planos de surrupiar as mexericas do tio Luís. Aguardar a hora era o sofrimento maior. Rolava a noite inteira sem conciliar o sono. Cada rolada Roberto olhava uma larga fresta entre as duas bandas da janela, mas nenhuma claridade se via. Mas ele sabia: era apenas uma questão de horas.

Não contente, pulava da cama e olhava pela fresta. De fato, seus olhos não estavam enganando: era noite ainda. Infelizmente, aquela sofreguidão não era para ir à missa, e sim, para jogar futebol, caçar, pescar, em suma, divertir-se com os familiares e alguns amigos de verdade.

Roberto rezava mais que todo mundo ali. Não deixava uma flor desapercebida, admirando a perfeição de Deus Criador. Há quem afirme que Deus é a Natureza. Concordo em “gênero, número e grau”. Tudo nela é perfeito, da rosa aos espinhos.

Ele sabia que, como cristão, devia rezar e isto ele fazia, quase a todo momento, mesmo nos convescotes ou durante o jogo de futebol. Vivia pensando em Deus vendo o Sol nascer, todos os dias, no mesmo horário, expondo aos seres diurnos alumiados. Na verdade, dizer “e o sol nascia” não deixa de ser apenas um costumeiro erro de expressão, porque ele não se movimenta a mais de um trilhão de anos. Está preso no vácuo. Mas, se o dia amanhecia bonito, ou um simples beija-flor valseasse sobre flores ele ficava extático, admirando.

Sabia que jamais teria um lugar de destaque no céu, mas nunca duvidou que iria para lá. Vivia numa sociedade como líder e, de fato, sempre estava na frente das decisões mais difíceis. Quando queria uma coisa ele comprava quatro, porque três seriam de cada um dos sócios e irmãos.

Certa vez ele adquiriu quatro carros usados, mas em muito bom estado. Chamou os irmãos sócios e usou o sorteio. Colocou o nome dos três sócios e ficou de fora, dizendo que ficaria com o carro que não fosse escolhido. E Roberto sempre justificava a si próprio: tenho tudo o que quero, por que reclamar? Apesar da responsabilidade, os únicos calos e machucados que apresentava era por andar mata adentro abrindo picadas para localizar pássaros e fazer armadilhas. Foi feliz aquele que descobriu pela primeira vez que, quando se faz o que gosta deixa de ser trabalho. Portando, Roberto levava a vida se divertindo.

Mais adiante, os quatro filhos de Danatela disseram que queriam tentar a sorte sozinhos. Eram homens que cresceram desempenhando trabalhos pesados e agora estavam prontos para responderem por si.

Novamente Roberto foi escolhido para dividir o que possuíam, em quatro partes. Sabendo das preferências de seus irmãos e sobrinhos, depois de alguns dias somando os valores, Roberto dividiu os bens e convocou a primeira reunião. Não precisou de mais nenhuma, e nunca mais se falou sobre o assunto. A fórmula de Roberto, de fato, era honesta e sincera: um divide, o outro escolhe. Fórmula mais funcional que essa, somente a da relatividade de Albert Einstein.

Depois das divisões que foram feitas, nunca mais alguém disse que foi lesado. Roberto nunca escolhia o que desejava: ficava sempre com o que não era escolhido pelos irmãos.

Os filhos de Donatela, mais o pai da rapaziada, formaram um grupo de soldados dispostos a vencer, custasse o que custasse. Compraram da firma Scandiam várias máquinas usadas para serem quitadas com extração de mognos e de outras essências da própria reserva da firma vendedora, localizada no Novo Repartimento, no estado do Pará. Levaram quatro anos para pagar, fim dos quais começaram a vida sozinhos, sempre sob o comando do segundo filho, o Simbim.

Em menos de oito anos já eram donos de um verdadeiro império. Exportavam madeiras, negociavam nelores, usavam maquinários próprios: caminhões Volvos para cada necessidade:  transporte das madeiras beneficiadas para o porto de Vitória, próximo à cidade de Altamira, no Pará, tratores, esquíderes, patrol, caminhonetes para cada um deles e uma posse de reservas florestais de mais de 20 mil alqueires, prenhes de madeira de exportação. Como as madeiras de exportação existiam em profusão em suas áreas de mata; como a distância da mata era de apenas alguns quilômetros; como não se pagava imposto a não ser nas notas de venda na exportação; como os caminhões eram ainda novos e não davam problema, quando o banco avisou que o dinheiro da venda se encontrava à disposição, o Simbim tomou a camioneta e foi à cidade de Altamira averiguar.

Haviam trabalhado exaustivamente durante quatro meses, sem ter um centavo. Tudo era fiado: posto de combustível, funcionários, prestações sobre matas compradas, a própria alimentação deles, enfim, tudo. No escritório do Simbim, no último mês, a fila de credores era sempre maior do que 30 pessoas. Não seria razoável atrasar nem mais um dia.

Antes de sair, Simbim autorizou aos irmãos que espalhassem a notícia de que, no dia seguinte, viessem receber o que tinham direito.

Simbim, os irmãos, Danatela e Arlindo, nunca havia sequer ouvido falar em dólares. Nesse tempo, o banco apenas avisou de que havia chegado uma ordem de pagamento em dólares, mas que eles receberiam em dinheiro brasileiro, conforme o valor do dólar no momento de sacar o dinheiro.

Do lado direito da transamazônica a industrialização das madeiras para exportação; do lado esquerdo, antes capoeirão, agora uma vila com mais de mil habitantes.  Os homens dessas famílias, quase todos eram funcionários da grande firma que se instalara.

E para que o leitor não fique curioso, acrescento que tudo isso, ao menos temporariamente, acabou em nada. Um verdadeiro batalhão de invasores ocupou as melhores áreas da terra. Na reação, 18 mortes. Por causa das mortes, intervenção da polícia, embargos de toda estrutura.

O que parecia impossível, não era. O pai e o filho mais velho adoeceram e vieram a óbito; o segundo filho, ameaçado de morte mudou-se para uma mina de pedras preciosas da Bolívia. Levou consigo a parte que lhe cabia: dinheiro, tratores, caminhões e mulher nova, esperta e bonita. Não podendo ser diferente, sem experiência nem conhecimento sobre o novo investimento, não entendendo o linguajar castelhano, retornou quebrado e com dívidas. Os dois que sobraram permaneceram com o que restou: trezentos alqueires de pastaria, mil alqueires de mata e a serraria. Hoje arrendaram e vivem em paz, passeando com as famílias por este mundo de Deus.

CAPÍTULO 010

Imperatriz vivia a década mais violenta de sua história. Os gananciosos, bandidos, pistoleiros de aluguel, bem, se fosse pesquisar sobre os piores lugares para uma pessoa criar sua família em paz, com certeza Imperatriz não seria mais esse lugar. Apesar desse clima pesado, Roberto e seus irmãos cresciam além do esperado, alheios aos tiroteios mensais que se sucediam em busca do comando.

A área adquirida das paulistanas já estava toda cercada, quatro casas, cada uma construída conforme o desejo de cada esposa que iria morar nela, um campo de futebol Society, iluminado para jogos à noite, sauna, piscina…

Quando tudo estava bem, Dona Teresa, já velhinha, começou a se sentir mal. Vivia pelos hospitais e ninguém descobria o que lhe causava tanto infortúnio. Só descobriram que era diabética quando nenhum medicamento não mais funcionava. Faleceu no Hospital Santa Mônica. Uma ampola de Buscopan, embora aplicada sem nenhuma intenção de prejudicar, cessou repentinamente todo seu sofrimento. Ela sofreu uma reação alérgica e faleceu.

Um mês depois, com a dor e a saudade mais amainadas, Roberto, os irmãos, os sobrinhos e alguns funcionários, depois de uma pelada ferrenha, estavam sentados comentando os lances, quando o Manel, lembra dele? estava passando pela estradinha que levava à sua casa, atrás do loteamento adquirido por Roberto. Portava a espoleteira num saco de estopa e uma sacola pesada a tiracolo. Como já se tornara amigo, Roberto resolveu zoá-lo:

– É hoje, Manel! Estou vendo que vem de uma caçada. Você anda dizendo que mata de 20 a 30 nambuas por caçada e agora vamos tirar a prova. Quantas você matou hoje?

– Hoje não me dei bem não! O dia tava frio e a fazenda que fui caçá tinha poca nambua. Matei só 19.

– Matou porra nenhuma! Mostre aí que quero ver.

O Manel desatou a bolsa que levava a tiracolo e despejou os chororós no chão. O monte era grande e tanto Roberto como todos os que estavam presentes, ficaram impressionados.

– Nossa Senhora! Que crime ambiental! Ah, não, vou denunciar! Me dá duas para eu fritar!

– Calma gente, vamos contar.

Então Roberto foi apanhando uma a uma no monte e formando outro monte ao lado: uma, duas, três, quatro, cinco, … dezenove, vinte, vinte e uma.

– Dezenove não, tem vinte e uma.

E o Manel, cuja inferioridade era notada apenas quando falava – ele nunca frequentara uma escola, não sabia assinar o nome, mas era esperto e inteligente:

– É que não sou bom de conta não. Me descurpa! Justificou-se ele.

Colocou as nambuas dele no picuá e foi saindo:

– Tenho qui i, a fiotada tá esperano pra jantá.

Aquela triste façanha, lembrou Roberto de que precisava visitar o Lixão, onde Manel dissera que era o ninho delas. Amanhã irei lá, pensou Roberto.

O Sol já havia saído quando Roberto, seguindo o endereço do Manel viu a placa: SEJA BEM-VINDO AO LIXÃO DE IMPERATRIZ. Virou à esquerda e entrou. Vendo que havia duas crianças bem no meio, saciando a fome com restos de alimentos que alguém havia jogado fora, ele estremeceu. Aproximou-se, desceu do carro e foi para bem perto. Ia perguntar aos dois meninos em que ponto havia mais inhambus, mas algo muito estranho interferiu. Então, depois de um bom tempo calado, examinando à miúde os dois meninos comendo, Roberto perguntou ao maior como se chamava. Ainda mastigando uma maçã, ele disse:

– Eu me chamo Cráudio e ele é meu irmão de criação e se chama Filipi.

– O que você está comendo, Cláudio?

– To comendo uma maçã.

– E ela está saborosa?

– O que é saborosa?

–  Desculpas, quis dizer, gostosa, boa de comer como aquelas que são vendidas lá na cidade, sem amassados ou com partes estragadas.

– Não sei, poque papai e mamãe vivi aqui desde que nasci e não sei se tem maçã melhó qui esta. Mais moço, o que qui o sinhô veio fazê aqui mesmo?

– Um amigo me contou que aqui tem muito inhambu e eu estou aqui para pegar um casal para o meu viveiro.

Aí os meninos se levantaram, ficaram de pé e cheios de animação:

– Nossa, aqui tem demais! Elas pia pra todo lado. Ontem peguei uma na rapuca, tá lá em casa. Papai disse pra eu pegá otra pra nois comê, porque uma não dá.

Pedir se era macho ou fêmea, Roberto sabia que seria ingenuidade, então limitou-se:

– Você notou se ela tem o biquinho todo vermelho?

– É meio preto.

– Onde fica a casa em que vocês moram?

– Ali embaixo, disse o mais novo.

– Vocês podem me levar lá?

– Podemo sim.

Quando tentaram levar os sacos dos alimentos recolhidos, Roberto percebeu que era peso demais para duas crianças. Perguntou se dava para o carro dele ir à casa em que moravam. Eles responderam que caminhonete ia. Então, ele abriu o porta-malas, afastou as coisas dele e colocou os sacos no lugar. Os meninos logo disseram:

– O sinhô vai colocá esse troço fedorento no seu carro limpinho?

Extremamente sensibilizado, Roberto disse a eles que, caso o carro não passasse, ele já estava decidido a pôr o saco mais pesado nas costas e levaria. Os meninos ficaram olhando para ele como quem não consegue entender, nem explicar. Roberto também estava confuso, porque jamais pensou fazer o que estava fazendo. Algo em sua cabeça era demasiadamente forte, tomando as rédeas e mudando seus planos.

A casa do pai dos meninos era a última da fileira de baixo da estreita passagem que servia de rua. Era sinuosa. Os barracos eram cobertos com folhas de palmeiras, papelões, pedaços de compensados, enfim, por qualquer coisa encontrada no lixo que servisse para cobrir o espaço aberto. As estruturas eram de madeiras imprestáveis que as serrarias descartavam e de varões que encontravam na juquira. Todos fizeram seus barracos sem planejamento, ora ocupando a rua, ora se afastando demais. Dentro dos casebres, toda mobília fora recolhida do lixo: panelas, baldes, bacias, toalhas, plásticos, jarros, escovas… sinceramente, estivessem morando na rua, ninguém suspeitaria de que mobiliaram as casas com coisas descartadas.  Muitos moradores dali do lixão aparentavam estar melhor do que muitos que vegetavam nas cercanias da cidade. A impressão que se levava a quem entrasse, devia-se ao esforço das mães mais ou menos trabalhadoras e caprichosas.

Sem suspeitar da armadilha – exatamente como fazia para capturar seus pássaros – Roberto foi inocentemente caminhando, sem desconfiar da armadilha que Deus estava armando para ele.

Filipi entrou no barraco que se encontrava sem porta e foi direto à rede em que o pai estava descansando. No “que foi, moleque?”, ele disse que tinha um homi querendo falá com ele.  Sem qualquer repreensão, ele se levantou, elevou os braços para cima, ouviu o estralo das juntas e se encaminhou ao visitante.

Roberto desculpou-se pelo incômodo, contou sobre o que viera fazer, mas que o encontro com os filhos dele modificara seus planos. Num dos cepos que funcionava como cadeira na frente do barraco, Francisco – assim ele se apresentaria mais adiante – pediu a Roberto que se sentasse.

Na brincadeira inexplicável das crianças, Cláudio e Filipe começaram a correr em direção ao centro de descarga do lixo que vinha da cidade de Imperatriz. Roberto, ao perceber que, possivelmente não os veria tão cedo, gritou: Filipe, Cláudio, por favor, e a “nambua”? Eles, com boa versatilidade, rodaram sobre os calcanhares e retornaram. Cláudio correu para detrás do barraco e voltou com o pássaro na mão. Sem perguntar pelo preço, Roberto foi ao carro, apanhou uma camisinha de força e deixou o inhambu na sombra, no meio de suas pernas. Como se aquilo fizesse parte do roteiro, os dois meninos retornaram. Roberto não se importou. Depois de quase uma hora, ele se despediu de Francisco: iria armar seu lacinho e torcer para capturar uma fêmea, no caso, para formar o casal.

 CAPÍTULO 011

Francisco, embora fosse apenas chamado de Chico, sem que soubesse, exercia liderança plena no lixão. Qualquer mal-entendido envolvendo duas pessoas, ele era procurado para evitar desentendimentos mais sérios.

Por isso, quando no sábado seguinte Roberto retornou, todos os que trabalhavam lá, estavam reunidos em frente ao ao seu barraco. Querendo mostrar o quanto gostaria de que todos fossem pontuais e, como havia chegado meia hora antes do combinado, Roberto parou no alto, esperando as 8 horas chegarem. E nem precisou retirar os pios que havia trazido, porque toda vida do juquirão estava se apresentando. Quando o relógio indicou 7.55 ele desceu o morro.

Provando que de fato Francisco era o líder daquela comunidade, os 64 moradores, já estavam reunidos em frente ao seu barraco. Mal Roberto abriu a porta do Santana, eles o ovacionaram com uma salva de palmas que parecia interminável.

Logo em seguida, Francisco organizou os moradores em torno de uma imaginária lua em quarto minguante, com Francisco sombreado por folhas de palmeiras. Apesar de todo o acanhamento de falar em público – talvez por se tratar de pessoas humildes e analfabetas – ele se sentiu encorajado. Mesmo assim, não confiando em si mesmo, trouxera, por escrito, o que diria naquela ocasião. E leu, explicando em seguida:

– TÓPICOS DA PALESTRA DE ABERTURA DO PROJETO RENASCER:

Imperatriz, 1º de dezembro de 1998.

Hoje estamos iniciando uma experiência que poderá ser histórica na vida de vocês.

Não estou aqui para dizer-lhes que poderão ficar despreocupados que irei resolver todos seus problemas. Estou sim, para garantir-lhes condições para que, por meio de seus próprios trabalho e esforço, possam ter uma vida mais digna.

Começarei com quatro meses de experiência, porque prevejo os tantos problemas e falhas que irão ocorrer. Esta é minha primeira tentativa e nunca tentei realizar um trabalho nesses moldes.

Vocês escolheram um líder, o Francisco. Ele deve usar mais a justiça. Depois de todos os recursos, se algum membro da comunidade persistir no erro, aí sim: esse sujeito será excluído do projeto.

Aqui, certamente, há gente de muitos naipes: trabalhadores, desanimados, gente que ainda sonha com uma vida melhor, gente que já perdeu as esperanças… bem, gente de todos os tipos, sentimentos e sonhos. Por isso, haveremos de ter paciência uns com os outros. Que cada um tente compreender o outro, mas nunca se esquecendo que, até que isto aconteça, deve aceitá-lo como ele é. Afinal, já se disse: que seria do mundo se todos fossem iguais, se todos gostassem ou detestassem das mesmas coisas? Não se esqueçam também do que já se disse: “Uma pessoa boa pode levantar o mundo”. Mas, vocês devem lembrar que, uma maçã podre, se colocada junto a uma caixa de maçãs boas, todas poderão ser contaminadas. Em seguida, comentando cada item, Roberto foi citando e comentando:

1- Nossas vicissitudes: coragem, medo, preguiça… Somos diferentes.

2- O valor da higiene.

3- Ao procurar um dos padrinhos, principalmente médico, dentista e barbeiro, por favor façam a devida higiene, tomando banho, escovando os dentes ou lavando a cabeça.

4- Se houver demora no atendimento, tenham paciência e se a coisa se repetir muitas vezes, comuniquem-me, por favor. Não se esqueçam que, mesmo os que pagam, às vezes ficam horas esperando a vez.

Nesses primeiros quatro meses, queria apenas atacar alguns pontos que considero urgentes, como:

1- Limpeza da área onde moram.

2- Perfurar uma cisterna para água potável e protegê-la contra enxurradas e todo tipo de sujeira que possa contaminá-la.

3- Retirar o lixo que juntaram em volta das casas e transportá-lo, no mínimo, a 200 metros dos barracos.

4- Construir sanitários em lugares apropriados, filtrar ou ferver a água que tomam e orientar as crianças para que não defequem pelos quintais, mas apenas no lugar apropriado.

5- Fazer os exames, tratar as verminoses, tomar os fortificantes, cuidar dos dentes e da higiene.

6- Construir a escolinha para as aulas do ano letivo de 1999.

7- Preparar uma área para hortaliças e outros alimentos.

Para finalizar – procurando sempre não se tornar enfadonho pela demora – Roberto fez rápidas explanação do que lera, explicando com palavras simples o que cada item queria dizer. Como despedida real, confirmou que jamais iria abandoná-los em silêncio, pelo menos até que descobrisse a razão de estar ali querendo ajudar. De qualquer forma, se isto acontecer, avisarei com antecedência.

– Podemos marcar um segundo encontro para o próximo sábado?

Talvez por ter levado 100 pães, 5 litros de leite, duas caixinhas de Margarina e quatro pacotes de café, que ainda estavam sendo consumidos, eles concordaram com demorada salva de palmas, novamente.

Tendo entrado no carro, Filipi veio correndo com outro inhambu dentro de uma caixa de sapatos e deu para Roberto, dizendo que havia pegado na mesma arapuca em que pegou a primeira. Como Roberto tencionava apenas completar os casais, com muito cuidado, enfiou a mão direita, juntou as duas perninhas e puxou-a para fora: era uma fêmea e, tinha grandes probabilidades de ser a parceira do que já estava numa das casinhas quatro por quatro, lá no loteamento em que morava.

CAPÍTULO 012

Planos para a segunda etapa do projeto:

  1. A) Roupa adequada ao trabalho: botas, luvas etc.
  2. B) Reciclagem primária do lixo.
  3. C) Documentar todos os que aqui vivem.
  4. D) Regularizar a escola para que os estudos das crianças sejam reconhecidos pela Secretaria de Educação de Imperatriz.
  5. E) Providenciar palestras de professores especializados nas diversas áreas que envolvem a vida de vocês.
  6. F) Entrar com um projeto perante a CEMAR, solicitando um fio de energia para que possam ter, no mínimo, uma lâmpada em cada barraco.

NÃO SE ESQUEÇAM:

Quando queremos alguma coisa, quando temos um sonho, noventa por cento de chances para que isto que sonha se realize, dependerá sempre do querer de quem tais pretensões. Temos aqui conosco, muitos adolescentes que se forem chamados de doutor, ficará ofendido, porque vivem catando sobras de comida, juntando ferros e cobre para revender, nunca conseguindo a importância, sequer, para comprar o uniforme da escola.

Veja bem, para se tornar um doutor e levar uma vida menos sofrida, você precisará de um dinheiro que não consegue juntar nem com um ano inteiro aqui entre os urubus…. Mas, se você quiser, conseguirá. O que arrecada não dá para ajudar seus pais e irmãos, mas, se quiser, será doutor; hoje, não tem dinheiro para comprar uma sandália de dedos, mas, se quiser, conseguirá; hoje, se sonha se formar numa faculdade, como advogado, odontólogo, veterinário, administrador, enfermeiro, enfim, em uma das centenas de áreas que as faculdades oferecem, se quiser, você conseguirá. Chegar ao final de um caminho que segue determinado, sempre dependerá mais do caminheiro resoluto. E Deus que é bom não o deixará sozinho.

Há aqui entre vocês, dezenas de crianças, dezenas de adolescentes, dezenas de jovens. Umas não pensam em nada; outras até balançam a cabeça, escrupulosamente para espantar pensamentos assim, como se o seu lindo sonho, fosse um pesadelo disfarçado. Mas podem acreditar, aquele que está do seu lado poderá ser, amanhã, um bandido ou um sacerdote de Deus; um homem rico, ou um maltrapilho pedindo esmolas; um cientista famoso, ou um analfabeto que nem assinar o nome conseguirá; um juiz respeitado, ou um assassino julgado e condenado a muitos anos de prisão em regime fechado.

Hoje, os pais de família que estão aqui, talvez não conheçam nenhum colega de infância que optou pelas coisas deste mundo, fingindo acreditar que Deus não existe e que na morte, tudo se acaba. Mas, meus queridos, não é! A maior prova de que a eternidade existe, foi dada por Deus Pai, quando enviou seu Filho Unigênito para ser imolado numa cruz. Jesus é o Filho Unigênito de Deus, se fez homem e deu a vida para nos salvar. Qual de vocês daria a vida para salvar o pai, a mãe, o filho, o irmão? No entanto, o Filho de Deus deixou-se crucificar para salvar todos, sem qualquer discriminação ou parentesco.

Vocês lembram daquela historinha em que Abraão e Sara sua mulher, já velhinhos, por obra de Deus, tiveram um filho chamado Isaac? Lembram que Deus mandou que Abraão fizesse uma fogueira e imolasse o filho em honra dele? Lembram, também, que quando Abraão ergueu a faca para matar o próprio filho, Deus o impediu e mostrou um cordeiro embaraçado lobo abaixo e que Abraão desamarrou seu filho e pôs no lugar o cordeiro?

Pois bem, Deus substituiu Isaac por um cordeiro, mas não ouviu quando Jesus, suando sangue antevendo a crucificação, pediu ao Pai que se fosse possível, o livrasse de morrer pregado na cruz. E ponderou: contudo, seja feita a Sua vontade e não a minha.

E foi aí que Deus Pai provou que nos ama sobre todas as coisas que criou. Nunca iremos saber, mas é possível que tenha havido uma aposta entre Deus e o anjo que se revoltou. De raiva, o anjo mal disse que iria levar todos os seres humanos criados por Deus Pai para o reino dele. Deus disse que duvidava. Então apostaram. E, no final, para não perder a aposta, Deu Criador enviou à Terra o Filho Unigênito, Jesus Cristo, gerado pelo Espírito Santo, no seio da virgem Maria.

Dei uma fugidinha do assunto e acho que foi bom, porque vi muitas feições atentas. O filho mais velho do Francisco, o Cláudio, ainda continua de boca aberta. E aí, Roberto apontou para ele e disse:

– Se quiser, Cláudio, posso passar o resto do dia inventando histórias só para você. Todos riram e Roberto continuou falando sobre o projeto.

Se vocês quiserem, em menos de dois anos tudo estará mudado para melhor. Para isso, é preciso trabalho, fé e muita, muita compreensão e humildade. Espero que vocês não desperdicem a oportunidade que Deus está propiciando. Há muita gente envolvida em ajudá-los. Não pensem que é fácil para os médicos, dentistas, barbeiros, laboratoristas, nutricionistas, professoras e demais envolvidos separarem mais um pedaço de tempo para melhorar a vida de vocês.

Espero que entendam isso quando tiverem de esperar para ser atendidos. Todos eles praticam a caridade à exaustão. Que Deus mantenha em vocês o desprendimento. Nunca sejam gananciosos. Lutem sempre pelo necessário. Ninguém precisa mais que o necessário. O que sobra para um, fatalmente é tirado de alguém. Imaginem um político que recebe 20 mil reais por mês de aposentadoria por quatro anos de trabalho e comparem o quanto faz falta a vocês, um simples salário-mínimo. Mas tenham fé, porque em algum lugar, num tempo qualquer, a justiça existe e será aplicada a todos.

Que Deus e os homens de bem nos ajudem a amenizar o grande sofrimento, ora visível e palpável no semblante de vocês.

CAPÍTULO 013

Roberto nunca pensara em se envolver tanto com a ideia de que podia amenizar o sofrimento daquelas pessoas. Passava o dia pensando na maneira mais organizada possível para que tudo corresse bem, mesmo assim, os imprevistos apareciam. Surgidos, ele corria para o papel, procurando palavras mais adequadas para não magoar ninguém. Até então, todas as pessoas convidadas haviam aceitado o convite para participar do projeto. Qualquer início de insatisfação, ele logo procurava a pessoa e, se necessário, até pedia perdão pela inexperiência. Cartas/ofício eram enviadas e entregues em mãos:

Imperatriz, 02 de dezembro de 1998.

Amigo Jairo:

Ontem para pedir, hoje para agradecer. Infelizmente, o meio-dia solicitado não foi suficiente para realizar o trabalho que desejávamos. O trator era muito pequeno. O serviço foi iniciado mesmo às 9 horas e encerrado às 14 horas, com a interrupção do almoço. Fizemos 50% do trabalho programado. Quem sabe, mais adiante, você possa liberar mais meio-dia para concluirmos o serviço. De qualquer forma, em nome do Projeto, quero externar meu mais sincero agradecimento.

Reconheço meu erro na ênfase usada para sensibilizar os padrinhos, e que, certamente, não foi do seu agrado. A bem da verdade – e aqui só entre nós – se por um lado houve exagero, por outro, houve omissão da real miséria em que, ainda que por cultura, aquela gente vive. Sinceramente, eu não aceitaria um salário de trinta mil reais mensais se me fosse imposto morar lá e levar a vida que eles levam. Mas de qualquer forma, reconheço que deixei a emoção superar a razão.

Por isso, e mais, sabendo de sua luta e dos tantos problemas que enfrenta no dia a dia desta cidade, só me resta pedir desculpas e dizer que terei bastante cuidado daqui para frente para que o bem que pretendo fazer com a ajuda de vocês, não acabe magoando amigos por quem tenho grande estima e admiração.

Nossa intenção é, principalmente, mudar a cultura daquela gente. Por isso, eles terão de ceder em alguns pontos. Hoje, lá embaixo onde moram, virou uma sucursal do Lixão. Não haverá a mínima possibilidade de serem saudáveis no meio de tanta sujeira. Por isso, desde já, pergunto ao amigo se há algum inconveniente em armazenar o lixo que vendem, num canto qualquer lá em cima. Se for possível, mandarei meu motorista ir lá e transportar o lixo, deixando os derredores da casa, limpos e varridos.

Depois disso, com o tratamento das verminoses, fortificantes, cesta básica semanal, sanitário em lugar próprio, assim como o poço em que apanham água para beber e a escola funcionando, terá sido dado o primeiro passo para que eles terminem os primeiros quatro meses de experiência acreditando que poderão, um dia, se reintegrar à sociedade.

O projeto – apesar de eu nunca ter elaborado um – está sendo feito e não pense que estamos achando que será fácil. Mas, se eles cooperarem, fizerem a parte deles, não confundirem a força que estamos dando no início com o tradicional paternalismo, certamente a vida deles irá mudar para melhor. Acho que vale a pena tentar.

O Gaspar já fez lá um trabalho digno de todo respeito… e me presenteou fortes puxões de orelhas. Não o conhecia pessoalmente, mas senti que é decidido e autêntico. Não levei a mal, mesmo porque reconheci meu erro. As roças que ele fez (sic) estão bem e, com certeza, muito alimento os que plantaram irão colher. Mas, a saúde e a educação precisam ser cuidadas. Sem elas, jamais, qualquer pessoa se libertará, não só da miséria, como de todo tipo de opressão.

Pois bem, caro Jairo, espero que você também aceite minhas desculpas pelos erros justificados por minha inexperiência nesta primeira tentativa e espero, sinceramente, contar com sua prática, orientação e amizade para levar em frente essa ajuda cristã que imagino fazer àquelas 13 famílias.

Anexo mais uma parte do projeto: a que trata da cesta básica semanal, já garantida por quatro meses no Supermercado União, do senhor José Maria de Freitas. A doutora Denise Portugal o elaborou.

Hoje, esteve lá comigo, além do Fernando, o Sec. de Educação, Lourenço Pereira, atendendo meu convite e verificando a possibilidade de atender meu ofício para oficializar a escolinha que iremos construir (de palha, como exigiu o senhor Gaspar) e que deverá funcionar como extensão de uma escola do Sumaré ou do Ouro Verde. É como se lá, fosse mais uma sala de aula de uma escola regularizada.

Pois bem, de agora em diante, tentarei sempre colocá-lo a par do que andamos fazendo por lá, para que não haja mais, daqui para frente, qualquer dúvida ou mal-entendido.

Agradecendo mais uma vez pela atenção, firmo-me com apreço e amizade. Roberto.

Além das reuniões semanais, Roberto conversava com Francisco quase todos os dias, acertando detalhes pendentes. A seguir, adentrava na juquira e lá dentro permanecia até às 18 horas. Era preciso atender sua dependência! Agora ele insistia capturar um inhambu-preto solitário que vivia chamando por uma companheira, certamente capturada pelo Filipe e saboreada num jantar. Mas o macho estava lá e já se tornara o passatempo predileto de Roberto.

Numa de suas viagens, a uns 200 metros da entrada, ele viu uma morena bem escura, diria negra mesmo, esfregando o braço nos olhos, indo em sua mesma direção.  Ficou curioso, pensou em andar mais um pouco e conversar com ela. Logo desistiu e entrou no lixão.

Deu de cara com a dupla costumeira, Cláudio e Filipi, que foram os primeiros a abordarem uma menina de mais ou menos três anos de idade, perdida no meio dos urubus. Cláudio a tomou no colo, mas o fez sem qualquer plano.

Roberto aproximou-se e como sempre, entregou aos dois, duas latinhas de refrigerantes e dois sanduíches. Em seguida perguntou:

– Ela é filha de quem?

– Sei não! Estava perdida aqui.

– Dividam os sanduíches com ela, deem refrigerante também, que sairei um pouquinho. Penso que ouvi uma jaó piar mais a frente, perto da estrada que segue adiante. Voltarei logo. Por hora, levem a menina e deixem com sua mãe, por favor.

– Sim sinhô!

Roberto apanhou o carro, ganhou a estrada e ao correr os olhos até a primeira curva, não viu nada. Acelerou mais até a curva seguinte e, também, sobre a mulher que viu ao entrar, nem sinal. Ali ele parou. Por sorte, vinha um carro em sentido contrário. Roberto fez sinal próprio, o motorista parou:

– Desculpas por interromper alguns segundos de sua viagem. Por acaso o senhor passou por uma moça negra que estava sozinha e a pé?

– Não, vi não.

– Conhece alguma que more ao lado desta estrada? Que esteve grávida há uns três anos?

– Não, não conheço.

Roberto agradeceu, e mal o homem continuou sua viagem, ele, maldizendo sua ignorância perceptiva, manobrou e voltou.

Assim como já se tornou usual dizer quando algo bom acontece: “hoje ganhei o dia”, Roberto, muito chateado, não deixou de balbuciar: “hoje perdi o dia”! Estava convicto de que aquela moça era a mãe da menina deixada no lixão. Seria mais uma a ser somada às 13 famílias que lá sobreviviam.

Retornando, foi direto para o barraco de Francisco. Encontrou-o retirando todo entulho que havia amontoado nas laterais da casa. Ao lado, dois ratos e uma cobra morta. Ao chegar foi logo apontando com o indicador os bichos que matara.

– Bom-dia, disse Francisco cumprimentando Roberto. Cada pedaço de coisa que puxo, tem rato debaixo. Quando dão sopa, mato. Já viu minha filha caçula?

– Claro que não. Para ser sincero, ainda não conheço sua mulher, quanto mais saber que ela estava para ganhar neném.

– Não é nossa filha de sangue não. Acabaro de abandoná ela lá em cima. Filipi e Cláudio trouxero pra cá, Maria do Coco pegou logo pra criá.

Nisso, a mulher veio chegando da cozinha e a menina estava com ela. Quando viu Roberto – também como é costume regional – foi amor à primeira vista. Qual o nome, perguntou.

– Sei não. Deixaro lá em cima e o Filipe que pega tudo o que encontra, não levou 10 minuto para aparecer aqui com ela. Tarvez a mãe aparece pra pegar ela mais tarde. Enquanto a mãe não vem, eu vou sendo a mãe e até já botei um nome nela: Maria Alice. Todo mundo vai sabê que não é minha fia, mesmo pruquê meus fios não são muito bonitos não e ela é uma princesa. Acho que é de tanto eu pedi a Deuso para eu ganhá uma menina! Ele me deu essa de presente.

Conversando distraídos, ninguém percebeu a postura da menina. Postada na frente de Roberto, praticamente nem piscava os olhos. Parecia estar vendo um ser de outro mundo. Mantinha os olhos fixos no rosto dele. Era moreninha, cabelos lisos, olhos azuis, bem, para não lhes ser infiel na definição, direi que é como pintam os anjos de Deus.

Roberto agachou-se e estendeu as mãos. Ela veio correndo, atracou-se no pescoço dele e parecia não querer mais sair dali. Então ele falou para a Maria do Coco:

– Se a mãe não mais aparecer; se você não a quiser eu fico com ela e até registro como filha legítima, para que ela tenha o mesmo direito de qualquer outro filho que eu tenha.

Maria Alice continuava agarrada no pescoço de Roberto e ele não demonstrava qualquer desconforto. Dos passarinhos programados, nem se lembrou. Olhando no relógio, viu que o tempo passara e que a hora do almoço também se fora. Despediu-se da família de Francisco e, com muita dificuldade entregou Maria Alice à Maria do Coco. Com a menina no chão, ele alinhou os finos cabelos esgarçados e falou baixinho:

– Com que nome sua mãe chama você?

Ela ficou calada. Conversava com os olhos. O trauma de ser abandonada pela mãe fora forte demais para ela. Qualquer um que um dia ler esta passagem, pondo-se agarrado na saia do vestido da mãe, vivendo a dor de Maria Alice, talvez consiga entender o que, naquele momento, estava acontecendo com ela.

Ao se despedir, dizendo que voltaria no dia seguinte, Roberto viu que os olhos da menina se enchiam de lágrimas. Agachou-se novamente, e não conseguiu evitar que também os seus olhos também umedecessem. Ele se desculpou, dizendo que amava todas as crianças, mas que Maria Alice seria sempre a primeira.

Passar oito horas na cama foi uma verdadeira tortura. O tempo não passava e Maria Alice não lhe saía da cabeça. Às cinco horas, indo à janela ele ouviu um bando de anus pretos já acordados, deixando a moita de buganvílias em que dormiam, voavam à liberdade.

Como soubesse que não dormiria, também não se deitou mais. Tencionando levar algumas coisas indispensáveis à menina, teria de esperar que o comércio abrisse e isto só aconteceria às 8 horas.  Enquanto aguardava a hora, munido de papel e caneta, sentou-se à mesa do escritório e foi fazendo a lista: dois vestidinhos, três calcinhas, um chinelo, um sapato, uma botinha, um sabonete, uma escova de dentes, uma pasta dental, uma calça jeans, uma toalha de banho, uma de rosto, uma rede, um cobertor, um travesseiro, duas fronhas, um pedaço de corda para amarrar a rede. É, acho que para começar, está bom. Upa, estava esquecendo. Tenho de levar pão, leite, margarina, café e alguns docinhos.

Eram nove horas quando ele chegou. A nova mãe de Maria Alice, senhora Maria do Coco já estava “dando de comê” para a menina. Cláudio e Filipe aguardavam colados ao fogão, impertinentes e famintos. Como já conhecessem a zoada do Santana, Cláudio e Filipi acorreram.

– Oi sinhô Roberto. Que bom que o sinhô veio. Vou levá o sinhô num jaó que é só i buscá. Nois não armô logo as rapucas porque o sinhô disse que os passarinhos pelam a cabeça nos paus da rapuca. Deixamo pro sinhô pegá eles no laço. Nois leva o sinhô lá.

– Não precisam se preocupar, porque não irei lá hoje. Amanhã, se Deus quiser, eu irei. Passarei mais ou menos às nove horas, porque quero comprar umas coisinhas para sua irmãzinha. Deixaram a pobrezinha apenas com a roupa do corpo.

– É porque tarveis a mãe dela é pobre como nois.

– É, pode ser. Olhe, se vocês dois descobrirem quem é a mãe daquela menina, eu prometo trazer uma bicicleta para cada um de vocês. Uma eu já tenho. Está guardada no almoxarifado, os pneus estão vazios, mas é seminova. Não bastasse, mandarei revisá-la para entregar a vocês dois, toda bonitinha. Mas, não esqueçam: só se vocês descobrirem quem é a verdadeira mãe da menina que foi deixada aqui. Okey?

– Pode contá, nois vai achá. Pode arrumá as bicicreta.

– Se a encontrarem podem contar com as bicicletas.

CAPÍTULO 014

Depois de mais uma reunião, Roberto constatou que ali no lixão viviam 52 seres humano em situação de miséria extrema: 13 famílias todas amasiadas, 8 jovens (rapazes e moças) entre 12 e 21 anos e 18 crianças com menos de 12 anos. A cada um, desde as crianças de colo ao mais idoso, foi entregue uma carteirinha plastificada, concedendo direito a uma mesada semanal com alimentos especificados.  Em comum acordo com o proprietário do Armazém União, a apresentação da carteirinha dava ao portador, o direito de apanhar, gratuitamente, a cesta básica especificada. Cada uma das 13 famílias era cadastrada e recebia a cesta básica.

Família 01

Unid.    Preço unitário                       Total

001      Açúcar cristal 01 kg               0,40

002      Arroz   06 kg                          5,10

003      Coloral 100 g                          0,16

004      Farinha 03 kg                          2,10

005      Feijão 1,60 kg                         1,60

006      Leite em pó 0,800 g               3,00

007      Macarrão 500 g                     0,56

008      Milharina 0,58 kg                    0,58

009      Óleo de Soja 1 litro                 1,22

010      Ovos galinha 1,5 dz.               1,50

011      Pó de café 500 g                    2,88

012      Sal refinado 1 k                      0,15

013      Sardinha 5 latas                     2,97

Total das compras:                            22.22

De antemão combinado com o proprietário do Supermercado, não houve qualquer contratempo. Tudo funcionou maravilhosamente: supermercado, família agraciada, padrinhos, profissionais que assistiam às necessidades de uma das famílias que sobreviviam lá.

Para cortar os cabelos, de 15 em 15 dias, a Barbearia Diplomata enviava três profissionais ao Lixão – que de agora em diante será escrito com inicial maiúscula – e lá ficavam até terminar de rapar o cabelo do último que se apresentasse.

Roberto estava no auge de sua ansiedade, querendo sempre que os planejamentos do amanhã, fossem executados no dia anterior.

Partiu logo para a complementação do projeto, que estava previsto para depois de um ano, quando tudo estivesse organizado. Em menos de três meses, era até prazeroso passar um dia lá com eles. A jaó do Filipi continuava piando, esperando a visita que fora roubada pela Menina do Lixão, a Maria Alice. Por duas vezes Roberto saiu com destino ao jaó. Mas, para ir à ave, ele tinha de passar bem em frente à casa de Maria Alice e ela estava sempre brincando no terreiro. Enquanto isso, o felizardo solteirão passava o dia todo oferecendo o fundo musical à mais bela amizade do mundo.

Com as cestas básicas funcionando, Roberto partiu para a fase mais perigosa: os padrinhos. Como morasse a pouco tempo em Imperatriz, era pouco conhecido. Mesmo assim, pedindo ajuda aos céus, tomou café, conferiu a lista de endereços e partiu para os encontros:

Dr. Mário Cortês; Dr. Abrantes; Dr. Pedro Leão; Odontólogos: Dr. Antônio, Dr. Cláudio e sua esposa Dra. Cristina Sevilhano; Laboratorista: Clésio Fonseca; professoras: Rosalina e Corina; Madeireiras: São Marcos, Vicente, Nini, Vilmar e Valber; Marcineiro Dilermando; nutricionista, doutora Denise; Serraria do Amaral; padres Francisco Lima e Felinto; Viação Açailândia; voluntários fixos: Joãozinho e Vito Milesi.

Vito Milesi, numa de suas vindas à minha casa, ficou sabendo do projeto. Disse que gostaria de participar, só não disse que eu poderia voltar a perseguir os inhambus, porque desde sua estadia no projeto, ele resolveu tudo. Dava palestras, verdadeiras aulas sobre o valor escondido dos humildes de coração e pobres de espírito porque eles veriam a Deus.

Um dia ele ligou para Roberto e disse que um de seus conterrâneos havia enviado da Itália 70 mil reais na conta dele para que fosse utilizado onde desejasse. Vito logo optou por comprar uma casa para uma das famílias pobres do Lixão. Como nesse tempo havia lá um rapaz que estava procurando um barraco para alugar, a fim de se casar com uma mulher, também do Lixão, eu ventilei a possibilidade ao Vito, e ele gostou da ideia.

Por coincidência, o Licínio Cortês, gerente da Varig de Imperatriz, anunciou em O Progresso da cidade, que tinha uma casa à venda. Vito e Roberto foram vê-la. Era de laje, recém-construída, toda documentada. Ele pedia 72 mil. Vito ofereceu 70 e o Licínio aceitou. Na mesma hora Vito enfiou a mão dentro da pasta e passamos quase uma hora contando o pagamento. Dali fomos ao cartório, levamos o Cláudio e a Josélia, e os dois assinaram, diríamos, uma cláusula pétrea: a casa não podia ser vendida até que a primeira filha do casal atingisse a maior idade.

Como Jesus observou depois de curar à distância a filha do centurião romano, dizendo que nunca vira tamanha fé em Israel, eu diria do Vito: nunca vi na vida, tamanho exemplo a ser seguido.

Roberto propalava que, depois do pai e da mãe, Vito Milesi era a pessoa que, se precisasse ele daria a própria vida. Foi com ele que Roberto descobriu a diferença entre amizade e verdadeira amizade. No estágio final de sua vida – na agonia que precede toda despedida deste mundo – eu tomei a mão direita dele entre as minhas. Ele ouvia e deduzia, mas não falava nem abria os olhos e não mexia qualquer parte do corpo. Disse-lhe:

– Amigo, meu verdadeiro amigo, não parta sem carregar a certeza de que você foi o melhor amigo que tive na vida. Os céus estão esperando você! Vá em paz, porque farei tudo o que me pediu. Quando nos encontrarmos lá, você até achará graça, porque ficou angustiado partir sem apagar o que não devia ter escrito. Vá em paz, porque irei deletar para você, mas pode acreditar, ninguém irá ler, porque agora “são bobagens, ninguém mais quer saber”.

Parei de balbuciar aquelas sinceras palavras, extraídas do fundo da alma, mas continuei apertando a mão dele. Aí, sem qualquer movimento facial, as lágrimas começaram a brotar dos olhos dele como se fossem fontes perenes. Usei meu lenço e pedi a ele que não chorasse, porque aquelas lágrimas já haviam resgatado todas as suas dívidas. Mesmo assim, elas continuaram ainda por quase cinco minutos. Depois foram secando, secando até que se cumprisse o destino.

Fiquei ali extático. Não havia mais nada a fazer a não ser, balbuciar: Mãe de Deus, rogai por ele nessa hora mais angustiante da vida que Deus programou a todos os seres vivos.

Há na gente, uma fé que duvida.  Alguns dizem que ao sair do corpo o espírito permanece um determinado tempo perto da carcaça que o abrigou; depois o espírito se apresenta ao tribunal para assistir o vídeo de sua estada na Terra. Todos os que o conheceram e que já morreram estarão lá, sentados num interminável galpão, assistindo o que fez nos seus anos de vida. No fim, três portas se abrirão e você entrará, numa delas. Parece fácil, mas é impossível enganar a Deus. Você mesmo será o juiz que estabelecerá a pena e, com certeza, entrará na porta certa.

Tão logo a enfermeira foi chamada, o médico compareceu também. Exames rotineiros, óbito confirmado, olhos vermelhos da Maria Helena, exéquias sendo consumadas. No voo da noite, Roberto ainda acompanhou o amigo que não seria sepultado em Imperatriz. Mesmo assim, em Imperatriz ele passaria aquela noite.

Maria Helena, esposa dele me chamou à parte e disse: ele quer que você escolha entre tudo o que foi dele; alguns objetos; ou pelo menos um dos objetos que ele tem, para você guardar como lembrança. Você conhece todos eles e como percebe, pode escolher um, dois ou todos.

Então, Roberto, novamente molhando os olhos, explicou: quero apenas a CPU do computador dele, mesmo assim, temporariamente. Devolverei em menos de um dia.

Maria Helena não contestou nada. Levou Roberto ao quarto e pediu que ele o pegasse. Roberto fez tudo o que ele pediu e de uma maneira que nem hipnotizado ele conseguiria trair o amigo, nem mesmo sob tortura. E o motivo era mais que razoável: ele não lera. Como diria Chico Anísio: Eu me conheço! Para quem não conhece o comediante ele se candidatou a prefeito de Maranguape, no Ceará, lugar em que nasceu. No escrutínio das urnas, nem um voto. Ao reclamar com a mulher ela retrucou: nem você votou em si, por que eu deveria votar? Não votei em mim porque me conheço! Mas você?!…

Tendo feito a varredura, retornei à Maria Helena e devolvi a CPU. Ela, Roberto e a história cultural de nossa região nunca saberão da preciosidade que foi jogada fora, possivelmente por bobagens pessoais que hoje, “ninguém nem quer saber”.

CAPÍTULO 015

O trabalho de Roberto, sem a participação de seus auxiliares, não podia ser chamado nem de anteprojeto. Eram proposições retocadas pela sensatez do Vito, endossadas por 13 amigos padrinhos e, finalmente, pelos próprios moradores do Lixão, que estavam vivendo uma nova vida. O entusiasmo de todos e a melhoria palpável encorajava os beneficiados. Alguns pelo lado financeiro; outros pelo lado espiritual. Tudo estava funcionando.

Vito traçava os planos, Roberto executava. O sangue italiano, muitas vezes explosivos, não era considerado. Roberto não tinha retórica, mas fazia; Vito, sempre calmo e paciente, esperava que Roberto percebesse que precisava pensar um pouco mais. Roberto estava ali, não porque escolhera, mas sim porque fora escolhido. E se Deus lhe deu tamanha oportunidade, com certeza não podia desperdiçar.

Enquanto andava de um canto para outro, a pequenina Maria Alice o seguia, muitas vezes agarrada à sua calça. Na verdade, andava mais no colo dele, do que no chão.

Sobre todos que participaram, nunca houve qualquer abuso. Os padrinhos eram pontuais:

Cheques ao senhor José Maria de Freitas do Supermercado União. Apenas como lembrança da pequena organização:

Carteirinha especial impressa somente para as mães, ou pais responsáveis pela criação dos filhos:

  1. 27/11/98 – Rogério e Edgar Bonatto 091-3351006 – 352,00 Maria do S. Santos Silva.
  2. 27/11/98 – Dr. Mário Rocha Cortez 7231110 – 112,00 Maria de Lourdes Silva
  3. 27/11/98 – Leonildo Alves – 16 cheques 9771501 352,00 – Maria Concebida Silva
  4. 27/11/98 – Neuza Oliveira Araújo – 1 cheque – 7215300 – 160,00 – José Carlos Pinheiro
  5. 27/11/98 – Roberto – 1 cheque – 7221047 – 208,00 – Lucilene Santos Araújo
  6. 27/11/98 Tietri Alves da Silva – 3 cheques – 7212642  – 114,00 – Maria M. de Freitas
  7. 27/11/98 – José Maria de Freitas – 7213805 – 256,00 Maria Dionísia Santana
  8. 27/11/98 – Irmãos Falqueto – 1 cheque 7213869 – 208,00 – Maria Divina Santos Souza
  9. 27/11/98 – Dr. Pedro Leão – 2 cheques 7211164 – 160,00 – Maria das Graças Silva
  10. 27/11/98 – Dr. Ubirajara Pereira Filho – 2 cheques – 7210951 – 112,00 – Maria Eli P. da Silva
  11. 27/11/98 – Senhora Shirley Marques – 1 cheque – 7224123 – 304,00 – Maria da Cruz
  12. 27/11/98 – João Ernesto Feuerstein – 1 cheque – 7222020 – 304,00 – Ana Cleide Santana
  13. 27/11/98 – Amaral Cunha Filho – 1 cheque – 7213102 208,00 – Wandeilson P. Alves

Declaro que recebi do coordenador do Projeto Renascer, o valor em cheques pré-datados de 2.850,00 (Dois mil, oitocentos e cinquenta reais), referentes às cestas básicas semanais estabelecidas pela nutricionista Denise Portugal. Declaro, também, que cada família retirará, em alimento, o valor de, aproximadamente, cinco reais e vinte e sete centavos por pessoas que compõem a família. Às 13 famílias do projeto, o valor aproximado de 219,23 por semana, ou seja, R$2.850,00 arredondados nos quatro primeiros meses da experiência. Fica, pois, assegurada, a cesta básica até o dia 31 de março de 1999.

Imperatriz, 06 de março de 1999. José Maria de Freitas

E assim, anotando tudo, Roberto, e seus padrinhos iam usando o pouco que entendiam de projeto e melhorando a vida daquela gente sofrida. Todos os dias Roberto anotava tudo o que acontecia no Lixão. Aprendendo computação, ele tentava organizar tudo por meio da informática: documentação completa, desde as certidões de nascimento até os possíveis óbitos. E assim, os pássaros foram cedendo lugar à Maria Alice, agora, a principal preocupação de Roberto. Jamais sonhara com uma criança mais apaixonada em sua vida. Mal ela ouvia a chegada do carro e a voz de Roberto, vinha correndo, esbarrava em suas pernas e, sem dar uma palavra, mostrava-se hipnotizada, sempre com o olhar fixado em seu rosto. Muitas vezes ele pensava: Meus Deus, qual a razão desta criança ser tão apegada a mim?

CAPÍTULO 016

Ângelo e Teresa começaram a vida, tendo como patrimônio, apenas um para o outro. Quando se mudaram para o sudeste do estado do Espírito Santo, tinham no bolso o que hoje, pleno 2024, pode ser equiparado a uma nota de 20,00 reais. Quando saltou em Colatina, as coisas que possuíam foram carregadas por eles mesmos. Teresa, já grávida de Franco, levava uma espingarda espoleteira numa das mãos e uma farofa na outra. Água havia à vontade. Carne, também. E nem precisava atirar, porque jabotis eram vistos a todo momento.

Do outro lado da ponte já existiam sinais que indicavam as Pedras em que nascia o riacho Liberdade. O ponto de parada era Marilândia, nome que o missionário Ponciano havia dado em sua missão evangelizadora. Além de um cruzeiro fincado num morro ao lado esquerdo dos mais ou menos 10 barracos. Ali, para Ângelo, já estava muito explorado. Queria um lugar nunca pisado e, por isso, depois de algumas horas de descanso, continuou em frente, tendo como direção, as três pedras à frente. Andou mais cinco quilômetros e, enfim, arreou o cacaio e disse à Teresa:

– Mulher, talvez o lugar ideal seja um pouco mais à frente, mas não aguento mais.

Teresa colocou a espingarda e a farofa no chão e se assentou sobre o tronco de uma árvore arrancada pelo vento:

– Sem dúvida, eu também estou muito cansada. Vamos estender um plástico por aqui para evitar um aguaceiro, arrumar o possível para passar a noite. Amanhã cedo escolheremos um lugar melhor.

– Concordo. Vamos nos proteger, depois acender o fogo. Em seguida passarei pela redondeza, farei um pequeno reconhecimento e, se a sorte me ajudar, tentarei matar alguma coisa para a gente comer. Acho que não vai ser difícil: pelo menos jabotis não correm e são visto a todo momento.

Armado o plástico para se protegerem de algum toró repentino, Ângelo apanhou a espingarda e saiu. Teresa não esqueceu:

– Não vá muito longe não. Lembre-se que não conhecemos nada. Eu não sairei daqui e se chamar, estarei atenta.

Bem, todos já sabem a vida que levaram e como, décadas depois, Ângelo e Teresa conseguiram, com o dinheiro da venda, importância suficiente para se instalarem melhor. Com o dinheiro que arrecadou de sua pequena área, agora os filhos – embora não estivessem ricos – pelo menos estavam com base sólida para ganharem muito mais que ele.

As lembranças ainda latentes na cabeça de Roberto sobre as mudanças ciganas, ora da terra em que nasceu, depois vila de Marilândia, depois cidade de Linhares, todos os santos dias passeavam por sua memória, sempre criando expectativas mirabolantes.

Aparelhos celulares? Casualmente um ou outro, sempre nas mãos de viajantes vindos de grandes cidades, e já visitando pequenos comerciantes de Marilândia. Mas ali não funcionavam, porque não havia torres apropriadas para assegurarem os sinais. Um pouco mais, se a notícia valesse a pena, as televisões, piscando mais que fiação em curto, noticiavam. E não fazia muito tempo que uma agricultora, cujo filho veio tornar-se jornalista da Rede Globo, um dia pela manhã, estando na varanda, viu um disco voador pousar numa área de capim-pernambuco, do outro lado da estrada via Colatina. Como seu filho Mário Bonela já fazia jornalismo e enviava fatos interessantes à Rede Globo de Televisão, a mãe dele narrou, com as palavras dela, que uma grande bacia voadora havia baixado do outro lado da estrada.

Bonela pediu à mãe que o levasse ao local para examinar se havia sinais no capim. Ela foi e, exatamente onde o levou, estava visivelmente marcado no capim, um grande círculo, mais ou menos com 20 metros de diâmetro, redondo e com sinais bem visíveis.

Não precisou mais que esta reportagem para que suas notícias saíssem na TV Globo mais assiduamente, pondo Marilândia e Colatina como lugares, no mínimo, estranhos.

Agora, outra notícia importante: Um marilandense de origem alemã, em bilhete simples, acertou os cinco números da quina, ganhando sozinho a maior bolada para uma única pessoa. Nesse tempo, acertar na quina, principalmente participando de grupos não era tão difícil, porque em quase todo sorteio, o prêmio era dividido. No caso de Marilândia, nem o nome do ganhador foi mencionado, a não ser que era filho de um agricultor alemão que vivia tentando encontrar sua vocação. Enxada ele já se convencera de que não era.

A notícia não se comparava à descida de um disco voador, – pensou Roberto – mas era uma notícia de Marilândia, sua terra natal. Jamais esqueceria a terra em que nasceu é onde viveu a parte mais bonita de sua vida. Se o tempo tiver sido de muito trabalho pela sobrevivência, melhor para aqueles que conseguiram superar as dificuldades, ainda que ganhando na loteria.

Essas pessoas, tendo a oportunidade de falar, não esquecem os dias sofridos, como se fossem traumas superados. E convenhamos: não é lá muito agradável a quem se vê manipulando catarses cerebrais. No âmago, bem lá onde curiosos nunca penetram, algumas pessoas assim tentam se sublevar, outras mantém a simplicidade, como se nada houvesse acontecido. E assim, ganhando na loteria, ou lutando de verdade, quase todos que deixam a miséria parecem não viver sem ela, porque a pregarão até o fim de seus dias.

Roberto estava vivendo um momento parecido, tentando ajudar 13 famílias sem que isso jamais fora parte de seus planos. Confirmava a assertiva de que aqueles que fazem o que gostam, ainda que seja com calos nas mãos, lhes é prazeroso. Agora mesmo, com Maria Alice sentada a apenas dois metros de suas pernas, ele rolava uma grossa manilha para dentro de um buraco que seria, quando pronto, a cisterna cuidada para água de beber. Como o lugar fosse uma nascente, apenas três manilhas dariam para as treze famílias. A água saía por cima, cristalina e com um peixinho, misteriosamente dentro. Logo se tornou o passatempo predileto de Maria Alice, que vivia levando farinha e arroz para ele. Roberto o reconheceu como um “tomba-morro” que resolvera verificar o que havia do outro lado. Ficara tão manso que ficava comendo em cima da palma da mão de Maria Alice. Filipi brincava, dizendo que já dava “um frito”. Maria Alice, chorando corria para Francisco, dizendo que Filipi queria matar o peixinho dela. Um leve puxão de orelhas no Filipi, uma fungadinha de Maria Alice e paz reinante novamente.

Nesse dia, padre Filinto celebraria missa lá, à revelia da proibição de Dom Felippe Gregory, que indeferiu o pedido alegando que o Lixão não fazia parte da diocese de Imperatriz. E essa proibição seria para sempre, e que Roberto deveria solicitar ao padre Cícero Marcelino de Mello, lá de Cidelândia. Não precisou: tanto o Filinto como o hoje bispo de Carolina, Dom Francisco de Lima, disseram que estariam sempre prontos, se fossem convidados, à revelia do bispo.

A bem da verdade, não procurei o padre Marcelino. Todas as vezes Roberto conversava com o hoje bispo de Carolina, e ele ia, digamos, sorrateiramente. O certo é que todo mês havia missa e até palestras no Lixão. Não incomodava muito os padres porque o maior pregador deles estava de licença do papa, mas continuava senhor das mais escolhidas palavras para incentivar aquela gente sofrida: Vito Milesi.

Ultimamente, Roberto dividia seu tempo entre as obrigações de gerir a sociedade que mantinha com seus irmãos Nícolas, Donatela (Arlindo), Estéfano e Nerina (Vicente); com idas quase diárias ao Lixão. Os pequenos espaços de tempo, cuidava da passarinhada.

Achava estranho que o que mais pesou na escolha de Imperatriz, fossem os passarinhos, agora deixado em terceiro plano. Não havia capturado nem um inhambu por aqui; raramente acompanhava os caminhões, mas não conseguia fugir ao ímã desejado, representado pela Menina do Lixão. Quantas vezes ficava tentando descobrir a razão de tamanho amor. E o tempo foi passando, passando, passando…

Com tudo funcionando maravilhosamente, Maria Alice logo se tornou referência na escola, era respeitosa com a professora e com os coleguinhas de sala de aula, enfim, cativava todo mundo.

A procura da mãe verdadeira continuava. Em qualquer oportunidade, especulava, mas tudo estava sendo em vão. Ninguém oferecia uma pista segura. Exatamente nessa fase, apareceu um jovem vendedor e barganhista de imóveis de nome Hostílio. Era impossível encontrar alguém mais eficiente e prestativo. Mas era enjoado e azarado demais! Se viesse visitar alguém, teria de ser na pior hora possível e, se descobrisse que estava sendo inconveniente, aí que não saía mesmo. Não sei quem criou uma das maiores verdades: “Os extremos se encontram”. É que os opostos sempre lutam pela mesma solução, ainda que percorrendo caminhos diferentes. Hostílio futicava sempre – todos achavam – onde não devia, ouvindo sempre alguma menção sobre o que pretendia saber. Às vezes era indigesto, mas se o encarregasse para resolver alguma coisa, uma hora depois já estava de volta com a resposta. Ajudou demais! Hoje vive, ora acamado, ora numa cadeira de rodas.

CAPÍTULO 017

No terceiro ano do projeto, tudo parecia conforme os planos de Roberto, para que aquela gente encontrasse um caminho mais seguro para serem incluídos, definitivamente, num meio social mais humano e decente. Para tanto, Roberto contava com a palavra do intendente do INCRA, que marcara a data para que as famílias mudassem para suas próprias terras, num assentamento com todos os meios exigidos para criarem e estudarem seus filhos, como se estivessem matriculados numa escola de uma grande cidade. Segundo ele, a vila já podia ser inaugurada: casas, escola, água encanada, tudo legalizado.

Acreditando nas promessas, Roberto, depois da resposta da CEMAR de que levaria um fio de energia para cada casa – desde que encontrassem passagem atinente a descer com postes e fios até as casas – eles instalariam a energia. Ele trouxe o próprio trator e cumpriu as exigências. No dia seguinte, a CEMAR fez todo o serviço e à noite foi de festa.

O dia seguinte coincidia com um domingo e o padre Francisco Lima foi o celebrante. Roberto levou mais de cem sanduíches, muito refrigerante, e todos os presentes se saciaram. O dia passou, o padre e o Vito, que não gostavam de nada demorado, foram embora, mas Roberto e os moradores continuaram agrupados na barraca em que funcionava, também, a escola. Ali, a professora Rosalina – sempre com um largo e bonito sorriso que modificava qualquer ambiente indesejado, entregaria os boletins. A criançada não se continha: corria, brincava e exibia seus boletins.

A mesa extraída de uma grossa taboa de Angelim Pedra, estava disposicionada e pesava mais de 200 quilos. Roberto pediu a Francisco que a removesse para o lugar desejado. Sem objeção, ele foi para uma das extremidades da mesa e não conseguiu, sequer, erguer a parte dele.

–Ué, Francisco, que moleza é esta? Não consegue?

– Não. Nem levantar os pés dela. É muito peso pra mim.

A escola estava em silêncio total e Roberto então disse:

– Rapaziada, por favor, vão lá e ajudem o Francisco. Coloquem a mesa por comprido nesta direção – e apontou com o dedo.

Mais de vinte acorreram. Todos agarraram a mesa e a ergueram como se fosse feita de isopor. Puseram-na no local solicitado e sem cansaço voltaram a seus lugares.

– Vocês perceberam, caros amigos, como é impossível uma pessoa sozinha alcançar determinado objetivo? No entanto, com todo mundo ajudando, mudaram a mesa de lugar facilmente. Lembrem sempre disso! Um não consegue; dois, com muito trabalho e sofrimento até podem conseguir; mas acima de quatro, tudo se resolve com facilidade. De fato, a união faz a força! Sempre que forem lidar com alguma coisa muito pesada ou difícil, reúnam-se e tudo ficará mais fácil.

Foram entregues os boletins, já acompanhados dos diplomas que atestavam serem aptos a qualquer escola do Maranhão. Ao receber seu diploma, Maria Alice veio correndo e o mostrou a Roberto:

– Olha aí, tio, tirei o primeiro lugar.

– E agora, o que você pretende ser, meu anjo?

– Eu vou ser médica. Vou cuidar e dar remédio para todos meus amiguinhos daqui.

– Tem todo meu apoio. Você é muito esperta, inteligente e obediente. Com esses requisitos, você será uma ótima médica.

– O que é requisito?

– São exigências para que Deus dê a graça para criaturas como você, realizar seus sonhos.

Maria Alice, como criança, achava apenas que para ser médica, bastava escolher a profissão. Não sabia que os estudos necessários eram rigorosos, difíceis. As faculdades eram caríssimas, os alojamentos também. Mas, por enquanto, brincou ele, você precisa apenas me deixar cortar um fiozinho de seus cabelos.

– Pra quê, tio?

– É que o titio aqui é cheio de manias. Ele faz coleção de tudo, até de cabelos. Quando chegou aqui, você era muito criança e como não saía do meu colo, não me preocupei. A hora chegaria.

– Pena que a mamãe não está aqui agora, né tio?

– Você se lembra de sua mãe?

– Lembro sim. Ela era preta, a preta mais bonita do mundo.

– Você sabe a razão de ela ter deixado você aqui?

– Só sei que ela estava chorando muito. Ela me pôs no chão e me mandou levar uma pedrinha para dois meninos que estavam procurando alguma coisa no lixo.

– E você foi?

– Fui sim. Entreguei e voltei correndo para minha mãe, mas ela já não estava me esperando. Aí os meninos me levaram pra casa deles.

– E sua mãe chamava você com que nome?

– Bebê. Sempre que precisava, me chamava assim.

– Se eu levar você de carro para passear pela estrada em que veio com sua mãe, você me mostraria onde vocês moravam?

– Não sei! Eu era apenas um bebê….

– Bem, agora já é noite e, não bastasse, não enxergaríamos nem uma casa pintada de branco. Amanhã de manhã eu virei buscá-la. A que horas você acorda?

– Não sei não, tio. A tia é que me acorda todos os dias.

– Está bem, está bem! Passarei mais tarde e se não estiver acordada, eu mesmo farei o serviço, dando-lhe umas palmadinhas no bumbum.

Maria Alice foi sendo retirada ainda se segurando na mão de Roberto, extremamente apaixonado por ela. Na verdade, a conversa sobre os cabelos é que ele pensava que, apenas apresentando o cabelo de duas pessoas, sabia-se logo se eram parentes ou não. Como suspeitasse que seu ex-empregado Cleiton era o pai de Maria Alice, ele procuraria um laboratório confiável para comprovar ou não. Até que poderia, mas não era tão simples como imaginava.

Às 10 horas do dia seguinte, ele retornou ao Lixão, levando novamente, 100 pães, queijo fatiado e seis litros de refrigerantes, a fim de oferecer às famílias como café da manhã. Para muitos, serviria de almoço.

Conforme Roberto ia organizando, o pessoal se mostrava totalmente diferente daqueles primeiros dias em que foi capturar inhambus no Lixão. Demonstravam-se saudáveis e até milho, feijão, amendoim, batata doce, enfim, uma série de legumes e verduras que não faziam parte do cardápio deles, agora eram cuidados, colhidos e comidos durante as refeições. Contudo, a maioria continuava preferindo pão, carne e muito arroz.

OS DESÍGNIOS DE DEUS

Ainda antes de alcançar a subida que terminava na entrada esquerda para o Lixão, Roberto percebeu que tufos de fumaça subiam aos ares, numa possibilidade catastrófica. Ventava muito e o sol a pino brilhava no céu. Logo que entrou na área em que os caminhões descarregavam, ele viu quatro deles estacionados e ninguém trabalhando. Não havia mais dúvida: algo muito grave estava acontecendo.

Desceu de seu carro e subiu na rampa mais alta que oferecia visão nítida dos 13 barracos enfileirados. O que se via era aterrorizante. Intencional ou casualmente, colocaram fogo no primeiro barraco e, em menos de cinco minutos o fogo alcançou todos os barracos. No último, a casa em que morava Francisco e, concomitantemente, Maria Alice. A escolinha foi único local não atingido pelas chamas, porque fora construída fora da linha das casas em que as famílias moravam.

Lembrando de Maria Alice, Roberto desceu correndo apavorado. Vendo-a nos braços de Maria sua mãe, suspirou fundo. Tomou-a nos braços, apertou-a contra o peito e balbuciou, embora inaudível, um agradecimento aos céus. Os homens se mantinham inoperantes, sérios, raivosos talvez. As mulheres choravam, gritavam e reclamavam até contra Deus que permitira tamanho castigo. Já não bastava a vida que levavam?

As barracas eram todas cobertas com folhas de palmeiras. Havia anos que ali estavam expostas às intempéries, e o vento, talvez se aproveitando de uma ponta de cigarro jogada inadvertidamente por algum fumante, e sem ninguém para ver e apagar logo no início, propiciou a chama, incentivada pelo vento forte que, em menos de cinco minutos, ativou o incêndio em todos os barracos.

Até os cachorros, que no momento estavam ainda dentro das casas, foram queimados. Todos os moradores estavam amontoados na escola. Os soluços atestavam as incertezas do dia seguinte. Percebendo o desespero de toda aquela comunidade que não possuía praticamente nada, mas que nem o nada havia lhe sobrado, Roberto também questionava a distração do Criador. Alguns correram apenas vestidos com a roupa que haviam deitado.

Foi um momento em que Roberto pôde ter certeza de que as mulheres são muito mais vulneráveis do que os homens. Quase todas com os filhos pequenos agarrados, choravam e se lamentavam doridamente. E Roberto, que até já suspeitara que os últimos acontecimentos poderiam ter sido engendrados pelo próprio Deus, agora se enchia de dúvidas.

Ao meio-dia, ele pediu licença para ficar sozinho, porque lamentos e lágrimas não ajudariam em nada. Depois de quase uma hora, ele retornou e pedindo silêncio, começou a falar:

– Se alguém de vocês souber como tudo isso aconteceu, por favor, fale agora para todo mundo ouvir.

Silêncio aparentemente absoluto.  Apenas Filipe levantou o dedo.

– Pois pode falar, Filipe.

– Foi um homi que soltô um fugueti bem ali – e apontou um monte de cinzas a três metros da primeira casa em que começou o incêndio.

O que mais doía em Francisco era perder toda documentação de cada pessoa que vivia ali, até das crianças de colo: certidões de nascimento, carteirinhas para cestas básicas, certidões de casamento, títulos eleitorais, certidões de batismo, recibos de compra de diversos objetos etc. Ninguém conseguiu salvar nada: roupa, vasilhas, animais de estimação, em suma, nada. Nem os ratos e algumas cobras conseguiram se livrar das chamas. No lugar das casas, um monte de cinzas.

Maria Alice, que já se considerava filha de Maria do Coco, puxou o Trombadinha tostado para o colo, e o acariciava como se fosse o Filipe ou o Cláudio. Trombadinha era o nome com que Maria Alice chamava seu cachorrinho de estimação.

Enfim, tomando um copo com água, Francisco completou:

– Pessoal, antes que o comércio feche, retornarei a Imperatriz para comprar redes, cobertores, travesseiros e comida, para vocês passarem essa noite. Numa verificada repentina ele lembrou: são mais de 60 pessoas e você, Francisco, dê seu jeito de ajeitar todos por aqui na escolinha. Você é o líder, por favor, tente encontrar espaço aqui nesta escola. Limpe bem o chão, firme os esteios para suportarem quantas redes possíveis. E bem alto, completou:

– Vocês sabem que Deus viu tudo desde o começo. Ele viu, Ele sabe como e por que tudo isso aconteceu. Façamos a nossa parte e deixemos o barco singrar. Vocês estão todos vivos. Vamos para o segundo tempo. Fiquem prevenidos, porque é possível que amanhã a gente viaje para o assentamento.

E usando o bom costume, completou:

– Fiquem com Deus. Arrumem lugar, primeiro, para as mães e suas crianças que dormem cedo. Estou indo e voltarei ainda hoje, o mais rápido possível.

Às 17 horas Roberto retornou, trazendo uma D-20 lotada de tudo o que imaginou necessário. Francisco cumprira a parte dele. O ambiente estava limpo e bem arrumado.

Ao começar a distribuição do que havia comprado, algumas pessoas – esquecendo os bons princípios da fraternidade, tão ensinados pelo Vito Milesi – começaram a atropelar os que estavam na frente e já metiam as mãos naquilo que lhe interessava. Então Francisco irritou-se:

– Caros irmãos, não foi assim que pedimos a vocês desde o início deste projeto! E como não aprenderam ainda, peço a todos que já apanharam alguma coisa, que as recoloquem aqui sobre a mesa. Depois, a começar pelas mulheres, formem uma fila indiana para que eu possa dividir essas coisas.

Depois de tudo organizado, o material foi entregue. Como Roberto sempre fora exagerado – se é que Jesus Cristo não repetiu o milagre das multiplicações dos pães – todos ficaram satisfeitos e foram procurando um cantinho para passar a noite. Com certeza não dormiriam, mas o primordial estava resolvido.

Com a escolinha em silêncio, Roberto pôde falar sem afetar ainda mais suas cordas vocais. Quase em tom de oração da noite, ele disse:

– O cansaço deve ser muito grande, mas as tensões são maiores, e por isso, devem estar me ouvindo. Irei falando sem ordenar o contexto, apenas comentando os itens.

Primeiro quero pedir ao Francisco e à dona Maria, a autorização de, ao sair, levar a pequenina Maria Alice para minha casa. Ela é muito criança e não precisa passar por todas essas mudanças drásticas que irão ocorrer por causa desse triste incêndio. Logo que as coisas se normalizarem, se entendermos que é melhor para ela ir para o assentamento, eu a levarei; se ela se adaptar lá em casa e vocês concordarem, ficarei com ela o tempo que for necessário.

Como percebem, tornou-se inviável vocês reconstruírem suas casas, porque, segundo o INCRA, elas já estão prontas, esperando vocês no assentamento Nossa Senhora da Conceição. Não me perguntem onde fica, porque não sei. Mas irei com vocês para ficar a par. Se não estiverem mentindo, vocês irão gostar.

Segundo, ainda ontem liguei para a Viação Açailândia dos Irmãos Galetti. Como sempre, a filha de um deles, cuja memória agora não me facilita recordar o nome, atendeu-me e não impôs qualquer condição, garantindo que amanhã, às 9 horas, dois ônibus estarão aqui para levá-los ao assentamento. Como ela nunca falhou, como sempre primou pela caridade aos que precisam, como não sobrou nada para arrumarem, fiquem aguardando.

Como o próprio Jesus disse a Judas Escariotes: o que tem de fazer, faze-o logo. Modificando o sentido, também digo a vocês: o que agora precisa ser feito, que façamos logo.

Sabedor da catástrofe, Vito Milesi logo contactou seus amigos italianos e, em apenas algumas horas, já estava com o dinheiro na mão. Por isso, o necessário foi entregue a cada família. Roberto fez questão de acompanhar a viagem para tomar conhecimento do lugar.

Só mesmo sob intervenção divina para aceitar quando se fica por dentro dos interesses políticos. Ao sair do INCRA cheguei mesmo a acreditar que tudo estava transcorrendo milagrosamente, com cada coisa acontecendo em seu devido tempo.

Pensei mesmo que, ao chegar, poderia reuni-los e distribuir as casas – que deveriam estar numeradas, construídas para cada família, conforme o número de ocupantes. Que estivessem limpas, rebocadas, água encanada e, quem sabe, até com camas e colchões.

Mas, quase chorei quando vi a farsa. Havia somente, paredes e telhado. Nem janelas nem portas. Velhas tábuas como andaime, ausência de pias e todo tipo de encanamento. Aliás, ainda teriam de puxar a água de uma nascente a alguns quilômetros da futura vila. Agora, imaginem a cara de Roberto ao reunir aqueles pobres miseráveis, e pensar em algum incentivo para que suportassem serem jogados – sim, jogados – ali, esperando o que levaria mais de um ano para se cumprir. Cada casa oferecia apenas alguns cantos para que se livrassem das chuvas, porque não havia janelas. Banho, somente alguns litros com água, retirados a muitos metros de profundidade, por uma corda toda emendada. Era tudo o de que dispunha.

Não demorou para que todos se reunissem em torno do poço, porque havia sombra. Os pertences que bem caberiam numa mala, ficavam na casa e todos passavam o dia ali, conversando e esperando o tempo passar.

O certo foi que, dois anos depois eles concluíram o projeto, mas apenas o Francisco ainda se encontrava lá. As outras 12 famílias simplesmente abandonaram tudo e voltaram a pé, e quando possível, de carona, para Imperatriz. Duas famílias retornando ao Lixão.

Roberto, extremamente frustrado, apenas desabafava, pedindo a Deus que levasse em conta, pelo menos, a boa intenção. Realmente, eu não fora escolhido por Deus para ajudar aquelas 13 famílias!

CAPÍTULO 018

Consumada a catástrofe do incêndio, Roberto combinou que tomaria o ônibus quando estivesse passando por Imperatriz. Nesse espaço de tempo compraria alguma coisa para levar: dois sacos de arroz, 50 quilos de carne, 10 quilos de sal, 20 pacotes de café, 40 quilos de açúcar, um saco de trigo, dois sacos com pães, dois sacos de farinha e treze notas de cem reais, uma para cada família. Roberto não sabia nada sobre a posição do assentamento, mais achava, que para duas semanas, as primeiras medidas iriam ajudar bastante.

Mas, se ele soubesse da realidade, preferiria ter deixado as 13 famílias morando amontoadas na escolinha do Lixão onde, pelo menos, não faltaria alimentos.

Pois bem, quando desembarcaram no assentamento, encontraram 13 casas inacabadas e um poço com água a 13 metros de profundidade. E o pior: estava tudo demonstrando que a meses ninguém pisara lá: matos espinhentos já invadiam tudo.

Com os ônibus parando, cada um foi encostando as redes ou os colchões numa casa qualquer. Não havia o que fazer. Então, um por um foi se deslocando para as imediações do poço.

Ninguém tinha fogão, ninguém tinha recipientes plásticos para acumular água para o banho, bem, o que pegava fogo foi queimado e o de que dispunham, era o que receberam do projeto naquela sofreguidão.

Três dias depois da triste viagem esclarecedora da realidade, o líder Francisco bateu à porta de Roberto, como antigamente. Foi direto ao assunto:

– Só mesmo cum milagre pra gente sobrevivê lá, seu Roberto. O pió de tudo é a farta dágua. Mal dá pra gente bebê. Nem munição nois tem para caçá tatu e outros bichos pra comê. De criança de cinco anos a véio de setenta, tá tudo fazendo rapuca, ratraca e outros tipo de armadia que nunca nem vi falá.

Roberto, que por gostar muito de livros, acabou fazendo amizade com o acadêmico Arnaldo Monteiro que, concidentemente trabalhava no INCRA. Era um homem culto e muito respeitado. Um mês depois, pedreiros encanadores, pintores e todo material necessário chegaram para dar continuidade à vila Nossa Senhora da Conceição.

Duas famílias – certamente conhecendo a farsa dos assentamentos de que já haviam participado – não mais se encontravam lá. Mas, há um parecer que reza que toda regra tem exceção, e com a ajuda do Arnaldo, o assentamento N. S. da Conceição foi uma exceção. Todas as casas foram terminadas, a água foi encanada, a escola construída e as áreas documentadas aos seus – daquela data em diante – proprietários legítimos.

Sabedor do acontecido, os fugitivos retornaram, tomaram posse e em menos de um mês venderam seus títulos ao Francisco. Também em menos de um ano, Francisco já possuía cinco cabeças de gado, uma pocilga de fazer inveja e já alimentava o sonho de se tornar um dos fazendeiros da região.

Depois de tantos reveses, depois do milagre de resistirem à fome e a todo tipo de dificuldade, Roberto e Vito decidiram desistir do projeto. Roberto ainda voltou lá, passou o dia perambulando de casa em casa, acertou verbalmente com Francisco e Maria a responsabilidade sobre Maria Alice e retornou, não muito feliz, porque percebeu ao conversar com todos, a falta de esperança de uma vida melhor por ali.

Maria Alice ocupava o primeiro lugar nas orações de Roberto. Ela continuava pisando seus calcanhares, mas ao invés de reclamar, se Alice se distraísse com alguma coisa e se distanciasse, ele a chamava e ela voltava correndo. Era tomada no colo, acariciada e depois colocada no chão. Roberto não acreditava que os pais verdadeiros se apegassem tanto a seus filhos! Ele amava aquela criança, mas nunca tivera um filho ainda. Jamais iria entender a decisão dos pais de uma criança como Maria Alice, abandoná-la num lixão.

No fundo talvez até estivesse feliz com essa maldade, porque Roberto a amava. Já havia providenciado a matrícula e somente aguardava o início das aulas. Mesmo com tudo sendo muito diferente da vida que levava no Lixão, Alice, ainda que criança, não denotava qualquer anormalidade. Estava sempre rindo, brincando, sendo uma criança feliz.

Roberto não chegava da rua sem alguma coisa para ela. E nem podia fazê-lo, porque mal ela ouvia o pit, pit da buzina do Santana, já saía ventando da casa, ansiosa para receber alguma coisa.

Roberto desenvolvia uma inclinação genética de algum antepassado, porque sentia necessidade de viver rodeado de parentes. Em qualquer rodinha de amigos, se percebesse que ninguém o notava, retirava-se. Nunca tinha preguiça e até abusava de sua resistência quando começava um serviço pesado e queria terminá-lo. Seu criadouro no momento atraía visitantes até de estados longínquos, porque a fama já havia ultrapassado fronteiras.

Nas caçadas, uma única vez não conquistou o primeiro lugar. Morando no Espírito Santos, todos os anos partia para o campeonato, principalmente disputado em alguma floresta no norte brasileiro.

E sempre a história se repetia: aparecia um caçador tão inveterado quando ele, fazia o convite, tomava um café e logo se despedia. Imediatamente ele se comunicava com os demais dependentes, marcava o dia da partida, tempo de estadia, cota a pagar….

Além de conhecer os pássaros, ele sabia cuidar deles. Dos gêneros Tínamus e Crypturellus, na parte dos inhambus, praticamente já havia completado 60% da coleção. Sobre os pássaros ornamentais, ele vivia colecionando aqueles de plumagem excêntricas, coloridas e, mesmo assim, não foi além de três por cento dos existentes.

Enquanto isso, na visita seguinte feita ao assentamento, retornou frustrado: as pessoas lhe pareceram desestimuladas, sem coragem de trabalhar. Como chegou de surpresa, encontrou a maioria em plena terça-feira, jogando dama, baralho ou conversando com o vizinho. Dois por cento encontravam-se no amanho da terra. Francisco, que já se transformara num pequeno fazendeiro, continuava acreditando.

CAPÍTULO 019

A vida fluía, os trabalhadores corajosos enriqueciam e empregavam os pobres preguiçosos que se contentavam com o salário-mínimo. A cidade, a cada dia que amanhecia, apresentava-se diferente. Parecia um canteiro de obras. Eram barracos pequenos e ligados, casarões desproporcionais, primeiros prédios de cinco andares, depois oito, depois treze…

Bandidos chegando, matando e morrendo. Terra sem lei, terra de lei não cumprida, terra de lei comprada, pistoleiros pelas calçadas, empreendedores sem escrúpulos, invasões de terra que, como formigueiro que amontoa terra e areia, casas iam sendo construídas. Parte de tijolos expostos, parte rebocada, janela e portas escoradas… O certo é que Imperatriz crescia, sem qualquer critério, com problemas assegurados para o futuro.

Nesse tempo, Maria Alice já cursava, no Rio de Janeiro, o primeiro ano de Medicina. Moreninha linda, olhos azuis, consciente sobre o sonho a alcançar, lembrando todos os dias de sua caminhada misteriosa até aquele momento. Não esquecia de rezar, de pedir a Ele que não deixasse, por um momento impensado, que ela pusesse tudo a perder. Queria se formar, queria voltar à sua cidade, ajudar as pessoas do Lixão. Sabia que Roberto não era seu pai, mas nunca perdeu a esperança de encontrá-lo. Sabia que fora abandonada ainda criança. Não sentiu tanto, porque ainda não entendia sobre o que estava acontecendo. Como peça imantada, via-se atraída por Roberto, que amava crianças: talvez pela cor que o pai de sangue lhe dera de morena clara e olhos azuis.

Haveria de descobrir sua origem, já que as lembranças de sua mãe eram vagas. Por mais que se esforçasse, não conseguia nenhuma recordação que pudesse ajudar. Lembrava-se apenas de uma linda mulher negra, de lábios carnudos e cabelos encaracolados. Não entendia também, a razão de ser morena de cabelos lisos e olhos azuis, se a mãe, pela lógica, tivesse engravidado de um homem com a mesma cor.

Enquanto algumas coisas boas ainda aconteciam, loutras más se acumulavam. Roberto sentia-se um fracassado. Não gostava nem de lembrar os tantos sonhos alimentados, aos quais deu asas e que acabaram despencando rocha abaixo, porque as asas ainda não estavam preparadas.

No assentamento, as 13 famílias assistidas, representadas por um homem, uma mulher e alguns filhos, uma a uma foi vendendo a doação do INCRA para o maior e mais objetivo fazendeiro que divisava com o assentamento pelo lado esquerdo. A resistência final acabou chegando ao Francisco e à dona Maria do Coco. Sendo o último, o fazendeiro que estava comprando todas as doações do INCRA, percebia que aquele pedacinho de terra, encruado na fazenda dele, só iria prejudicar uma futura venda. Por isso, sem discussão pagou a Francisco o que ele pediu.

Francisco começou a procurar uma área maior e mais promissora, a fim de criar melhor os seus filhos. O dinheiro dava com alguma sobra e Francisco já foi com o dinheiro da venda de sua área e repassou-o ao novo vendedor. Assim, encerrou-se tudo o que foi vivido e registrado. O que diminuiu as dores de Roberto, foram os passarinhos e Maria Alice. Jamais investiria parte de sua vida para ajudar a quem não quer ser ajudado.

Vito, maior amigo que Roberto encontrara na vida, continuava visitando-o, porque sentia o trauma do amigo naquela derrota do Lixão. Foram vários anos, esperanças perdidas, trabalhos vãos!

Certo dia, conversando sob as mangueiras do loteamento adquirido das irmãs paulistanas, Roberto não se conteve e começou pedindo ao amigo, a razão daquela gente agir como agiram. E ele, depois de tomar coragem, resolveu lembrar o tempo de seu sacerdócio, como padre da Igreja Católica.

– Amigo, quando não encontrar a resposta desejada, lembre apenas que ela existe e que você é quem não a conhece. Não se martirize com o que aconteceu, porque sobre o amanhã somente Deus sabe. O projeto do Lixão ainda pode não ter acabado. Leia sobre Moisés, Jó, Mateus, Simão Pedro, enfim, sobre todos os apóstolos e santos. Todos eles não tinham a menor chance de serem o que foram, não fosse a intercessão de Deus. O que você fez, ainda que me contradiga, foi aceitar a sugestão de Deus colocando aquelas duas crianças comendo aqueles restos de comida, lembra? Pode ter sido uma armadilha de Deus para testá-lo. Há tantas coisas que fazemos no nosso dia a dia que, depois de feitas, não acreditamos. Umas nos tornam felizes; outras nos levam aos confessionários.

– Provavelmente você gostaria que tudo tivesse dado certo! Isso seria normal, porque estava trabalhando para isso. Mas aconteceu aquele maldito incêndio que, até agora, ninguém soube explicar como começou, quem ateou. Não é estranho? Conversando rapidamente com eles naquele dia fatídico, apenas uma criança disse que viu um homem soltando um foguete no chão, perto do primeiro barraco.

– E aquele vento que todos afirmam que nunca viram por lá? Em suma, foram tantas coisas estranhas que aconteceram que mesmo o mais cético dos homens começa a acreditar que aquilo foi sobrenatural.

– Você já parou para pensar que havia ali 13 casas? Sete na ala de baixo e seis na de cima. Entre as casas havia um espaço incerto de mais ou menos dez metros, e em todas as casas, o que conseguiram foi escapar com vida. Segundo alguns que se encontravam nas casas, quando ouviu a gritaria, correu para ver e quase não teve tempo de escapar. As duas alas incendiaram no mesmo instante, porque o vento ia e vinha como se fosse uma larga vassoura de fogo manobrada diabolicamente.

– Sei que a própria Natureza muitas vezes ocasiona fatos difíceis de serem explicados, mas esse incêndio se superou. Portanto, vai cuidar por uns tempos de seus passarinhos e esqueça a batalha aparentemente perdida. Como reza o ditado: perdemos esta batalha, mas não a guerra. Sei que peguei o bonde andando, mas deu para sentir sua boa intenção e, para Deus, a intenção é que conta.

– Obrigado, amigo de verdade. Vou fazer o que sabiamente me sugeriu.

– Tem mais: não estranhe se Deus armou todo esse palco para uma cena bem mais emocionante. Para Ele nada é impossível!

CAPÍTULO 020

Roberto e seus irmãos, aproveitando a venalidade do sistema oferecida pela maioria dos responsáveis pela arrecadação, dificilmente pagavam o imposto devido. Para justificar a fraude, Roberto sempre citava: “Na terra de sapos, de cócoras com eles.” Todo mundo sonegava e ele fazia parte do mundo. Andar direito era até arriscado, porque todos os sonegadores não eram confiáveis. E ai de quem quisesse ser palmatória do mundo, porque a ganância desenfreada da maioria não permitia que os investidores pensassem em andar direito. Para Roberto, criado e educado religiosamente pelos seus pais, participar de qualquer ato ilegal para se arrepender depois, não valia, que o dissesse o padre Lourenço. O perdão dos pecados só acontecia depois de os tais erros serem abandonados.

Se os caminhões viessem com ipês, por exemplo, nem se discutia: era só aguardar o motorista da vez carimbar e sair, o fiscal corrupto já se apresentava, tomava a nota e adentrava. Logo retornava com a nota preenchida com sete metros de pau-sangue ou farinha-seca. Cinquenta por cento do valor da nota dos 10 metros cúbicos de ipê a gente não pagava. E ninguém do ramo era egoísta: logo passava a treta para quem trabalhasse com madeira em toros. A corrupção era geral, ou seja, existia pelo Brasil inteiro. Sem orçamento, o governo mandava imprimir dinheiro, a inflação avançava, mas para os corruptos e os corruptores tudo estava ótimo. O dinheiro sobrava e, com ele sobrando, Roberto mantinha as despesas de Maria Alice no Rio de Janeiro. Sentindo o passar dos anos, resolveu também procurar uma companheira para o resto dos dias que lhe restavam.  Não precisou de muitos anos, porque filhos existem aos montes ao redor. Maria Alice seria a primeira. Queria mais uns cinco e ele sabia bem onde encontrar, porque o Lixão voltara a ser o que era, inclusive com várias famílias que debandaram do assentamento.

Dois anos depois do incêndio misterioso, no portão do loteamento, uma das maiores famílias do Lixão procurou Roberto. Cinco crianças acompanhavam a mãe, melequentos, opilados, malvestidos, famintos talvez.  Trouxe-os à varanda, fez o que pôde. Ao saber que haviam retornado ao Lixão, Roberto negou-lhes o dinheiro que pediam.

– Por sorte, vocês terão um centro de saúde e uma escola legalizada lá no Lixão, tudo por conta do pai da Maria Alice, lembram dela? Falta pouco para receber o diploma de médica. O pai daquela menina ficou milionário, encontrou a mãe da menina, casou-se com ela. Por sua vez, a doutora Maria Alice prometeu cuidar de vocês.

– A Maria Alice, aquela menininha que vivia grudada nas suas calças? Nois achava que era filha do sinhô!

– Não, não era e não é, mas eu agradeceria aos céus se fosse.

Extremamente triste, Roberto os viu desaparecer na curva da trilha, agora estrada, em que percorrera para adquirir a área das irmãs paulistas, Marta e Maria. Sentiu vontade de chamá-los de volta, dar o dinheiro e pedir-lhes perdão pelas palavras duras que lhes dirigiu. Mas, o trauma do fracasso iria persegui-lo em horríveis pesadelos por muitas noites ainda. Roberto vivia desacreditando os psicólogos, alegando que nunca vira um só cliente psicologicamente afetado, ser curado depois de longas conversas no divã. Agora, já vivia pesquisando, pelo menos duvidando de suas descrenças.

Seus irmãos e sócios viviam recriminando-o, alegando que ele praticamente não mais dava a assistência devida ao serviço do grupo. Só falava no Lixão, só vivia lá. Podia até ser por inveja, já que a cidade inteira tecia elogios aos cabeças do projeto, num tempo em que tudo estava correndo bem. Parecia-lhe impossível que alguns anos de prosperidade pudessem retroceder a zero diante de um único palito de fósforo, um foguete, uma guimba de cigarro….

A área adquirida das paulistas fora transformada num espaço atraente. Quase todos os domingos Roberto e seus irmãos convidavam amigos mais ligados aos interesses comerciais: donos de serrarias, porque lhes compravam madeiras em toras; craques da bola, porque compareciam em todas as peladas do futebol Society; alguns médicos, porque consultava gratuitamente quando o pedido era de Roberto. Nessas ocasiões, apesar de nunca ter usado caneta e papel para as contas, ele sabia que não estava levando desvantagem. Também eles não eram bobos e sabiam que somente um matemático profissional precisaria qual das partes estava levando vantagem.

Numa dessas tardes, foi convidado – e compareceu com toda a família – o dono da primeira clínica especializada em DNA em Imperatriz. Depois do almoço, ele foi convidado para conhecer a casa de Roberto. Enquanto experimentava um suco de mexerica, Roberto, aproveitando a presença de um fio de cabelo sobre a mesa, perguntou:

– É verdade que vocês conseguem, com apenas dois centímetros de cabelo de um homem e dois de uma criança, provar se são pai e filho?

– Sim e não. Sim se os fios vierem do meio para o pé; não se forem retirados do meio para a ponta. Mais ou menos isso. Na verdade, se quiser um exame em que possa confiar, utilize o sangue dos envolvidos.

CAPÍTULO 021

Antes de iniciar o período de estagiária, Maria Alice, sempre agradecida e obediente, consultou Roberto se podia passar alguns dias em Imperatriz. Nem procurou justificar-se, porque ela não via a hora de voltar às origens. No fundo mesmo, era para aliviar a vontade de rever o homem responsável por tudo o que estava acontecendo de bom em sua vida. Roberto foi incisivo, dizendo que, se ela não viesse por si, ele iria buscá-la.

Mal desembarcou no recém-inaugurado aeroporto de Imperatriz, na atribulação de mil desejos na lista de seu descanso, na primeira anotação de afazeres, estava em letras maiúsculas, visitar o Lixão de Imperatriz. E não foi fácil evitar que a lista fosse modificada, aliás, apenas um pouquinho alterada: ficara para depois do almoço.

Maria Alice, sem alterar sua personalidade de Menina do Lixão, continuava refém de sua origem. Lá não encontrou mais senão duas famílias do seu tempo de menina abandonada no lugar menos indicado para uma criança.

Olhando o local da casa em que passou parte de sua infância, ela parou. Andava um pouquinho, depois parava de chofre, fixava o olhar em alguma coisa inexpressiva, tentando absorver o motivo de uma mãozinha de boneca queimada ter-lhe chamado a atenção. E eram tantos pedacinhos de plásticos que, não se contendo, começou a colocá-los dentro de uma sacola plástica, também descartada havia poucos dias.

Sem saber a razão, sem comentar nada, sem dizer uma palavra, Roberto tomou a sacola da mão de Alice e continuou andando e recebendo alguns dos tantos pedaços que iam sendo escolhidos pela recém-formada médica.

O Lixão continuava ativo, mas daqueles 64 membros de seu tempo, apenas duas famílias, soubera Alice, ali permaneciam depois de venderem a área doada pelo INCRA a um fazendeiro contíguo.

Sobre o que recolhera, nem ela conseguia explicar. Eram impulsos sugestivos do cérebro que, certamente, se ligavam a seu tempo de criança abandonada.

Em determinado momento, Alice perguntou a Roberto, se a mãe dela vivera ali também, se faleceu, se a abandonou e desapareceu, se alguém possuía, enfim, alguma pista do paradeiro dela. Ela pode não se lembrar de mim, mas eu não  consigo esquecê-la. Das tantas coisas que para mim são sagradas, a mais importante delas e viver ao lado de minha mãe, e depois de fazer tudo por ela, de lhe mostrar que se formos escolhidos por Deus, nada impedirá que cumpramos nossa missão. Sabe, tio, o senhor teve algum motivo especial para cuidar de mim como se fosse meu pai. Tenho certeza sobre isso.

– Não sou seu pai biológico, não sei quem é sua mãe, mas sua maneira de ser me cativou tanto que passei a me sentir mesmo, seu pai. Um dia, vindo aqui para capturar inhambus, vi dois meninos comendo restos de alimentos que os caminhões estavam jogando no chão cheio de urubus. Algo sobrenatural, como a sarça ardente vista por Moisés, mudou a prioridade de minha vida. Transferi minha ideia fixa sobre passarinhos para outra ideia fixa mais acentuada: a de fazer alguma coisa para aquelas pessoas que viviam na mais extrema miséria.

– Percebo que ainda não dei conta do recado, mas nunca duvidei que se for uma estratégia de Deus, ela irá se cumprir.

Roberto falava aquelas coisas, sempre se precavendo contra acontecimentos reversos às pretensões de Deus. Há dias, Alice, que nada dá certo. A gente sai de casa para fazer um exame e quando chega ao laboratório, percebe que esqueceu o pedido em casa. Extremamente irritado, sai para buscá-lo. A rua que toma para chegar à sua casa estava interditada: um caminhão arrancou a fiação por estar com carga excessiva no item altura. Para frente, impossível; para trás, mais de 10 carros buzinando exigindo a desobstrução imediata. Depois de meia-hora, ao estacionar em frente ao laboratório, viu um aglomerado de pessoas curiosas em frente, querendo saber quem era o assaltante, agora morto, exatamente no intervalo em que ele estaria na sala de espera. Podia ter levado apenas um grande susto, assim como poderia ter sido atingido mortalmente naquela troca de tiros. Não podemos garantir nada, porque, atualmente, preferimos as coincidências aos milagres ou intercessões. Com certeza não é, mas Ele pode ser definido como a menor partícula existente no Universo e não existindo nada que não seja formado por elas. Nossa sorte, continuou Roberto, é que essa imaginária partícula é poderosa, sábia e misericordiosa. Maria Alice, nem tente adivinhar aonde Ele quer chegar, porque, se tentar, errará. Contudo, coisa ruim não será, porque Ele é bom.

Boquiaberta, Alice ouviu a divagação de Roberto, e mesmo sem perceber, viu-se como que hipnotizada, olhando-o como nos tempos de criança o homem que, como se fosse imantado, a atraía tanto. Por fim, despertou:

– É, já é hora! Acho que nem irei tomar banho hoje. Gostaria de passar ainda algumas horas me alimentando do passado e nada é mais eficaz do que esta almíscar repugnante.

– Se quiser poderemos retornar amanhã.

– Depois de amanhã, pode ser?

– Combinado. Depois de amanhã. A propósito, quantos dias ficará aqui conosco.

– Não mais de uma semana.

Ao retornarem ao loteamento, Roberto fez questão de mostrar à Alice o seu criadouro, desde os inhambus ao menor dos beija-lhes, que ele trouxera do Matogrosso. Ela passou longos minutos elogiando a beleza da plumagem assim como os piados dos inhambus. No final, como não podia deixar de ser, apontou para uma sairinha sete-cores que estava se banhando e comentou: como ela gostaria de secar as penas voando entre estas mangueiras!

– Eu entendo, eu entendo o que está insinuando. De uma coisa, tenho certeza, ela não deverá estar sentindo saudades: olhe a sala de jantar: dezenas de bolotinhas coloridas disputavam uma variedade de frutas que, em muitos lares, não eram servidas.

CAPÍTULO 022

Maria Alice, sem alterar sua personalidade de Menina do Lixão, continuava refém de sua origem. Apenas duas famílias do seu tempo de menina abandonada continuavam ali, mas não se lembrava mais. Visitando o local em que passou na casa de Francisco, ela parou. Andava um pouquinho, depois parava de chofre, fixava o olhar em alguma coisa inexpressiva, tentando absorver o motivo de uma mãozinha de boneca queimada ter-lhe chamado a atenção. E eram tantos pedacinhos de plásticos que, não se contendo, começou a colocá-los dentro de uma sacola plástica.

Sem saber a razão, sem comentar nada, sem dizer uma palavra, Roberto tomou a sacola da mão de Alice e continuou andando e recebendo alguns dos tantos pedaços que iam sendo recolhidos pela recém-formada médica.

Sobre o que recolhera, nem ela conseguia explicar. Eram impulsos sugestivos do cérebro que, certamente, a ligavam a seu tempo de criança abandonada.

Em determinado momento, Alice perguntou a Roberto, se a mãe dela vivera ali também, se faleceu, se a abandonou e desapareceu, se alguém possuía, enfim, alguma pista do paradeiro dela. Ela pode não se lembrar de mim, mas eu não consigo esquecê-la. Das tantas coisas que para mim são sagradas, a mais importante delas e viver ao lado de minha mãe. Quero fazer tudo por ela, mostrar que nada impedirá que cumpramos nosso destino. Sabe, tio, o senhor teve algum motivo especial para cuidar de mim como se fosse meu pai. Tenho certeza sobre isso. Mas, que motivo foi esse?

– Não sou seu pai biológico, não sei quem é sua mãe, mas sua maneira de ser me cativou tanto que passei a me sentir mesmo, seu pai. Um dia, vindo aqui para capturar inhambus, vi dois meninos comendo restos de alimentos que os caminhões estavam jogando no chão cheio de urubus. Algo sobrenatural, como a sarça ardente vista por Moisés, mudou a prioridade de minha vida. Transferi minha ideia fixa sobre passarinhos para outra ideia fixa mais acentuada: a de fazer alguma coisa para aquelas pessoas que viviam na mais extrema miséria. Percebo que ainda não dei conta do recado, mas nunca duvidei que se for uma estratégia de Deus, ela irá se cumprir.

Roberto falava aquelas coisas, sempre se precavendo contra acontecimentos reversos às pretensões de Deus. Há dias em que parece que nada dá certo. A gente sai de casa para fazer um exame e quando chega ao laboratório, percebe que esqueceu o pedido em casa. Extremamente irritado, sai para buscá-lo. A rua que toma para chegar mais rápido à sua casa estava interditada: um caminhão arrancou a fiação por estar com carga vertical excessiva. Para frente, impossível; para trás, mais de 10 carros buzinando exigindo a desobstrução imediata.

Depois de meia-hora, Roberto, ao estacionar em frente ao laboratório, viu um aglomerado de pessoas curiosas em frente, querendo saber quem era o assaltante, agora morto, exatamente no intervalo em que Roberto deveria estar na sala de espera. Podia ter levado apenas um grande susto, assim como poderia ter sido atingido mortalmente naquela troca de tiros. Não podemos garantir nada, porque, atualmente, preferimos as coincidências aos milagres ou intercessões. Com certeza não é, mas Ele pode ser definido como a menor partícula existente no Universo, sendo tudo quanto existe, formado por Ele. Nossa sorte, continuou Roberto, é que essa imaginária partícula é poderosa, sábia e misericordiosa. Portanto, minha filha, nem tente adivinhar onde Ele quer chegar, porque, se tentar, errará. Contudo, coisa ruim não será, porque Ele é bom. Baruch Spinoza afirmou que Deus é uma substância infinita, causa das coisas e que não pode existir nenhuma coisa além dele. “Deus é causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas”. Não há ou existe nada em que Deus não se encontre presente. Ele é tudo. Sabe, minha filha, nunca descartei que sua mãe, seu pai, eu e todos envolvidos estamos cumprindo um papel predeterminado que, queiramos ou não, será cumprido. Bem, podemos voltar?

– É, já é hora! Acho que nem irei tomar banho hoje. Gostaria de passar ainda algumas horas me alimentando do passado e nada é mais eficaz do que esta almíscar repugnante.

– Se quiser poderemos retornar amanhã.

– Depois de amanhã, pode ser?

– Combinado. Depois de amanhã. A propósito, quantos dias ficará aqui conosco.

– Não mais de uma semana.

Ao retornarem ao loteamento, Roberto fez questão de mostrar à Alice o seu criadouro, desde os inhambus ao menor dos beija-lhes, que ele trouxera do Mato Gosso. Ela passou longos minutos elogiando a beleza da plumagem assim como os piados dos inhambus. No final, como não podia deixar de ser, apontou para uma sairinha sete-cores que estava se banhando e comentou: como ela gostaria de secar as penas voando entre estas mangueiras!

– Eu entendo, eu entendo o que está insinuando. De uma coisa, tenho certeza, ela não deverá estar sentindo saudades: olhe a sala de jantar: dezenas de bolotinhas coloridas de uma variedade de frutas que, em muitos lares, não são servidas.

CAPÍTULO 023

Um dia antes de retornar ao Rio de Janeiro, Nerina convidou Alice para dar uma volta pela cidade. Logo se desculpou pela mais compreensiva desproporção entre Imperatriz e a cidade em que ela estava terminando os estudos.

– Acredite se quiser, Nerina, mas se dependesse de mim, eu ficaria por aqui mesmo. Não esqueça de onde vim. Não obstante, é muito difícil para qualquer ser vivo esquecer sua origem, principalmente a minha.

– E como! Respondeu Nerina, que sempre encontrava um jeito de inserir Marilândia em suas conversas.

Dos filhos de Ângelo ainda trabalhando unidos, com a exceção de Nerina, todos eram desafinados. Roberto e Estéfano se sobressaíam, não conseguindo cantar no tom, nem o Parabéns para você. Até para gritarem um gol do time, eles desafinavam!  Vicente, que se casara com Nerina, quebrava um galho.  Arrastado pela esposa, era convidado pelos padres da paróquia para os cânticos das celebrações nas missas aos domingos e dias santificados. Nerina chegou a gravar um DVD, sendo letras e música da autoria dela, mas não decolou. Ela era muito bonita, mas nunca concordou que a entrevista com resultado favorável, precisava ser feita num quarto de motel.

– Eu só queria cantar pra Deus, mas não negociar minha alma com o diabo.

E assim, ela cantou sem gravar nada até os últimos dias possíveis. Quando percebeu que já desafinava, que precisava de amparo para caminhar, aceitou rezar o terço com seu marido. Nerina, de fato, sempre foi e sempre será um exemplo a ser seguido.

CAPÍTULO 024

Às vinte horas, não resistindo passar mais de uma hora sem ver nem ouvir a voz de Alice, Roberto entrou no carro e foi ao Gatinhos, porque sabia que Líria, sua esposa, amava uma self mostrando-se às amigas, jantando um suculento prato cheio de sushi. Conforme suas deduções, lá estavam eles, ainda escolhendo olhando o cardápio. Encher uma colher de Sakura e embeber com ela um pedação de salmão, avivava bastante a lembrança dos tempos em que Teresa enfiava-lhe, goela abaixo, o terrível óleo de rícino, em plena madrugada. E mal o dia amanhecia, Roberto já estava agachado atrás de uma moita próxima à orla do terreiro de secar café, tentando se desvencilhar de uma lombriga que empacara na saída para a liberdade fatal, ao perceber que galinhas afoitas, malucas por um minhocão raro, não estava ali para festejar aquela pretensa liberdade.

À meia-noite, resolveram pagar a conta e voltar para casa, mesmo sabendo que, pelo horário preestabelecido do voo, dificilmente alguém fecharia os olhos.

Ao entrarem no Loteamento, logo uma grande interrogação mudou o rumo da conversa: numa das vagas da garagem, uma camioneta blindada.

Como o loteamento estivesse em pleno silêncio, os recém-chegados se deram o luxo das conjecturas: de quem seria o estranho carro? Alguém mais esperto foi à placa: era de Marilândia. Marilândia? Teria crescido assim?

Doutora Alice, que viajaria ao amanhecer, mesmo estando com toda a bagagem arrumada, logo deliberou que não se deitaria, com medo de perder a hora. Roberto aproveitou a deixa para reforçar o quanto aquela Menina do Lixão significava para ele.

– Doutora, deite-se e durma tranquila. Eu ficarei ao pé da cama até o momento exato de você se levantar. Acho que se dispusesse de mais uma noite inteira, eu ficaria ao seu lado, lembrando quando me fitava, agarrada às minhas calças, sem dizer uma palavra. Você me seguia, seguia, olhava, olhava…

– Para ser sincera, lembro dessa obsessão. Eu estava com mais ou menos três anos, quando minha mãe me colocou no chão e se afastou chorando. Eu nem sabia o que estava acontecendo. Lembro que ela era negra, muito bonita e estava chorando. Só lembro que ela era negra e muito bonita. Se fecho os olhos, vejo-a inteiramente.

Enquanto o tempo passava, Deus vigiava. O cansaço bateu em Alice e ela dormiu. Roberto a cobriu, deixou o quarto e foi ao banheiro. Ao passar pelo quarto reservado aos visitantes, ele viu pela fresta da porta, um homem branco na cama principal e um moreno forte na cama do acompanhante.

E como o tempo não para, as horas foram passando. Exatamente quando Roberto já se encaminhava para acordar Alice, eis que uma pesada mão bateu-lhe nos ombros:

– Tá na cara que você não se lembra mais de mim!

– Não tenha tanta certeza, Cleiton!

– Cara, quem é esta moça aí deitada?

– É a doutora Maria Alice. Ela viaja agora para o Rio de Janeiro, cumprindo o tempo de residência em Medicina. Formou-se a pouco tempo como clínica geral, porque quer trabalhar no interior, ajudando pessoas como ela foi ajudada. Diga-me, que aconteceu para que esteja aqui misteriosamente? Você acertou na loteria para chegar aqui com toda essa ostentação?

– Pois é, foi isto mesmo que aconteceu. E o tiro foi grande: ganhei sozinho, uma quantidade que dará até para procurar a mulher que abandonei grávida. Agora me diga: seria eu a pessoa indicada para ganhar tanto dinheiro?

– Poderia ter sido outro, mas se a casualidade escolheu você, daqui para frente terá um compromisso maior de usar esta grana para resolver o problema que criou. Lembra, quando me procurou dizendo que iria voltar para o Espírito Santo, por que havia engravidado uma menina de menor? Nesse dia, por ter entendido mal a palavra assumir e por causa de minha errônea interpretação lhe dei os parabéns pela atitude de um verdadeiro homem? E você, refazendo o equívoco, consertara, dizendo que dissera que iria sumir e, não, assumir. Lembro que não gostei da piada, mas no outro dia você desapareceu e só hoje o estou vendo outra vez. Agora, Cleiton – mesmo vivendo num país em que a Lei pode ser comprada – tenho certeza, você terá problema. Você se lembra, pelo menos, do nome da menina que engravidou?

– Claro que não! Eu só queria transar com ela; ela só queria transar comigo. A única coisa em que posso garantir é que ela era negra, negra e muito bonita para um “alemão feio como eu”. Para ser sincero, tanto minha viagem como procurá-lo estão atadas nesse propósito. Com o dinheiro que tenho, posso pagar os males que acabei fazendo a ela e ao filho… ou filha, porque não sei o sexo da criança que nasceu.

– Cleiton, agora sim você está assumindo e, não, sumindo. Quero ajudá-lo nesta tarefa, embora faria tudo para registrar a menina em meu nome. Minha ansiedade é tanta, que desde que foi deixada no Lixão, eu já sonhava criá-la, tê-la sempre perto de mim. Eu e meus irmãos conseguimos formá-la. Agora que você está aqui, se não encontrar quem procura e quiser ajudar está linda moça, sem qualquer orgulho, eu aceitaria. Não me pergunte a razão. É que, desde o dia em que foi deixada no Lixão, eu passei a suspeitar de que ela bem poderia ser a sua filha. Mas, se não for, tem tudo para que você se redima nela.

– Roberto, se eu vivesse mais 100 anos não conseguiria acabar com o meu saldo. Portanto, aceito sua sugestão. Vamos tentar descobrir a verdadeira “Maria Alice”, mas não sendo possível geneticamente, faremos espiritualmente, você está me entendendo? Sobre a paternidade, será fácil. Nosso problema maior será encontrar a mãe. E esta doutora que ora voltará ao Rio de Janeiro para cumprir o tempo de estagiária, é a filha da mulher que, tudo indica, ficou grávida de você, donde de antemão podemos deduzir, ela é sua filha.

Nisto, Maria Alice se senta na cama.

– Ouvi toda a conversa de vocês. Tanto que o horário de minha viagem já foi, mas embora tio Roberto seja muito mais do que mereço, se eu encontrar meu pai biológico e ele quiser, será a graça que sempre peço a Deus.

Voo perdido, pressa não considerada, os três foram para o café da manhã. A tensão de tantas coisas aparecendo deixava a viagem em segundo plano.

CAPÍTULO 025

Roberto, leigo no assunto – pensava que sua coleção de mechas de cabelo – um dia o tornaria famoso por desvendar segredos. O mundo estava passando por uma era de intensas modificações. Aparentemente, os prazeres do mundo estavam desconsiderando a intervenção do Criador. Com sua coleção de cabelos no momento desconsiderada, Cleiton conversou com Maria Alice e foram para o exame de sangue. Agora estavam Maria Alice e Cleiton, braços estendidos, retirando sangue para o exame infalível. Ao se preparar, a farmacêutica reparou algo bastante interessante: tanto Cleiton, como Maria Alice traziam na parte posterior do braço esquerdo, uma pequena mancha igual, tanto no formato como na localização. Em tom de brincadeira falou: não há mais necessidade de comparar o DNA, olha isso aqui! Quando não se tem cachorros para caçar, caça-se com gatos. Antes do DNA aparecer, manchas assim eram consideradas provas. Convenhamos: manchas parecidas, sim; mas essas não são parecidas, são iguais: tamanho, espessura, formato, cor… Só não consta mesmo as devidas procedências.

Todos os presentes olharam e ficaram curiosos em esmiuçar as duas manchas, porque as linhas pareciam ter sido tatuadas. Para quem ultimamente vivia deduzindo tudo como interferência divina, aquilo não estava impresso ali por acaso. Porque eram iguais: mesma coloração, mesmo desenho, mesmo espaço do braço interno…

O material para exame foi coletado. O laboratório pediu 30 dias para entregar o resultado. Nem Maria Alice esperava que se levasse tanto tempo! Cleiton logo a acalmou:

– Alice, sendo ou não sendo minha filha, de agora em diante quem cuida de você sou eu. Fique calma. Nestes 30 dias irei com você para o Rio de Janeiro. Saiba que o dinheiro não me deu sabedoria nem conhecimento equivalente: continuo um matuto da roça, só que, agora, com dinheiro, muito dinheiro. Imagina eu, capinador de café, pagando um guarda-costas para evitar possível assalto! Ele sim, é estudado, corajoso, um homem em quem sou obrigado a confiar. Logo que a Caixa me chamou para receber o prêmio, ela mesma me sugeriu o Eduardo para proteger a mim e à minha fortuna. Pago-lhe mais do que todos que o contrataram já pagaram a um guarda-costas. Até agora, nada a reclamar. Ele tem bastante conhecimento. Já viveu em São Paulo e em outras grandes cidades. Em minhas viagens ele faz o papel de irmão de coração, a fim de diminuir suspeitas, vocês estão entendendo, não é mesmo? Chamo-o sempre de mano, apesar de eu ser um alemão feio e ele, um brasileiro bem-apanhado. Então, amanhã ou depois – a hora que você quiser – a gente pega o avião para o Rio de Janeiro e vamos arrumar tudo direitinho para você retornar sem qualquer desabono. Pode ser?

– Bem, se já pouco importa o resultado do exame, se já decidiu que sou sua filha, contestar o quê?

– Eu não tenho mais qualquer dúvida, porque no dia em que você foi gerada, na beira da estrada, não havia nem cheiro de vinho tinto para formar estas manchas: você é mesmo a filha que tentei abandonar. Agora, tentaremos encontrar sua mãe: também a ela usarei meu dinheiro para quitar minha dívida. Se o diabo escolheu esta jogada, concordando que é muito difícil um rico se salvar, com certeza quebrou o chifre. Usarei até o último centavo para pagar meus pecados. Uma das coisas que nunca tiro da cabeça é aquela advertência de Jesus: “De que vale ao homem ganhar o mundo se vier a perder a sua alma?” Mais ou menos isto, não é?

– Sinceramente, ainda não acordei deste sonho. Acho que nenhuma mulher aceitaria tantas proposições sem contestar algumas delas. Sei também que posso desistir de tudo isso a qualquer momento. A verdade é que acredito que o senhor é mesmo o meu pai biológico e que poderei apagar, com a ajuda de você e de meu tio Roberto, muitos traumas vividos no Lixão.

Três dias depois eles já estavam alojados num bom hotel escolhido por Eduardo e partindo para desligar Maria Alice dos compromissos anteriormente assumidos, transferindo, os possíveis, para a cidade de Imperatriz, no Maranhão. Foram dias cansativos, senão enjoativos, mas que também se findaram.

Não escondendo a alegria de já acreditar piamente de que era o pai da doutora Maria Alice, Cleiton parecia andar nas pontas dos pés. Argumentado sobre uma negativa do exame, ele brincou:

– Eu sou o pai. Nunca acreditei assim em nada que um dia duvidei. Quero desembarcar em Imperatriz exatamente no prazo de receber o resultado do exame que fizemos. Embora eu já saiba, quero tudo legalizado. Quero que Roberto me ajude a encontrar uma boa clínica para comprar ou adquirir uma área bem grande para construir a melhor clínica da cidade. Preciso, também, encontrar a mãe de Maria Alice. Não sei como nem onde ela se encontra, mas preciso vê-la. Sem o perdão dela, de nada me valerá toda riqueza. Ela deve estar com mais ou menos minha idade, porque na época, éramos dois jovens sem juízo. Hoje lembro de uma máxima bíblica que o pároco de Marilândia sempre repetia: “Deus escreve certo por linhas tortas”. Se foram as forças do mal que orquestraram aquela premiação da loteria, acreditando que a riqueza excessiva endureceria meu coração, quebraram a cara. Usarei até o último centavo para reparar minhas fraquezas. Na verdade, sem muito dinheiro talvez eu não conseguisse.

Roberto interferiu e disse que somente acreditava porque ouvira. Na própria história, não conheço nada parecido. Veja as facilidades que agora você tem de achar que a vida se resume às coisas deste mundo. Tenho notado que, agora pouco se importa com o dinheiro que tem. Dando para quitar os pecados cometidos, estará mais que ótimo para você.

– É, mas até lá já terei sanado minhas dívidas maiores, já estarei velho e sem problemas para resolver. Ainda bem que entendi a tempo que, em se vivendo honestamente – mesmo que não haja nada do outro lado – vive-se melhor do que praticando o mal por aqui. E, havendo, poderemos ainda, ter uma eternidade feliz.

– O próprio Jesus quando se encarnou como homem foi até repetitivo, prometendo a felicidade eterna àqueles que acreditassem no que estava dizendo. Alertou que não seria fácil, mas aqueles que conseguissem perceberiam o quanto valeu a pena. Não foi por mero acaso que quase todos os seus discípulos se submeteram às mais humilhantes torturas, por não negarem a divindade de Jesus. Eles tinham certeza de que Jesus era o Filho Deus Unigênito que se tornou carne e habitou entre nós.

– Para ser sincero Roberto, muitos dizem que a felicidade não se compra com dinheiro. Eu discordo, porque se eu não tivesse acertado sozinho na loteria, não estaria agora comprando a paz e a felicidade. Nunca negociei este meu tipo de dívida, mas quando voltar para minha família, sabendo que preciso trabalhar limpando quintal para sobreviver, acho que o outro lado reconhecerá.

– Sobre isto não mantenho nenhuma dúvida! Aliás, você está demonstrando que já negociou e que seu credor aceitou a proposta. Imagine outros que poderiam estar no seu lugar: com certeza lembrariam aquela passagem bíblica sobre um jovem muito rico que foi perguntar a Jesus o que teria de fazer para ganhar a felicidade eterna. No final da conversa, Jesus deixou a mensagem: “Vai, vende tudo o que tem, distribua aos pobres e a seguir, vem e segue-me”. Lembra, ele ficou triste, baixou a cabeça, e voltou de onde viera. É que ele era rico demais e não quis aceitar a ideia de retornar à pobreza.

– Na verdade já pensei em tudo isso e acredito que estou preparado. Ainda que ache graça, sou obrigado a confessar que não nasci para ser rico e muito menos para acumular riquezas. Ao ver em que vocês transformaram uma menina abandonada no Lixão – sem acertar na loteria – foi o maior impacto que minha consciência já sofreu. E não tem volta: vocês começaram e eu termino. Se no final das contas me sobrar um serviço de jardinagem, serei um premiado, porque não mereço mais que isso. Amanhã mesmo, senão hoje, procurarei detetives, bons policiais e até voluntários espertos, para encontrarem a mãe de Maria Alice. Quero cuidar dela também. Quando a conheci, eu só pensava em sexo. Lembro que ela nunca estivera com outro homem. Era inexperiente, inocente mesmo. Tenho certeza: fui o primeiro “moleque” a ficar com ela. Lembro que ao terminar, ela chorou muito, vestiu-se e saiu a pé pela estradinha, desaparecendo. Lembro também que parei num posto de gasolina e tomei banho, porque havia manchas calça abaixo. Não me pediu endereço. Soluçando, desapareceu. Era dona de uma aparência invejável. Como ela está viva, irei encontrá-la, pode escrever aí.

– Quem procura, acha! Não sei se já soube, mas há mais de dois anos vivo me informando e apenas uma vez fiquei sabendo que uma mulher negra esteve no Lixão procurando por uma criança que fora deixada ali. Paguei a um policial de folga: ele vasculhou a região. Foi uma semana de intensas buscas por toda a proximidade. No relatório, apenas a descoberta de um barraco a quinhentos metros da estrada, onde morava uma velhinha solitária, mas que não se encontrava. Vizinhos não havia e tudo ficou por isso mesmo.

– Pois esta velhinha é a mãe dela, disse Cleiton. Ele deixou o endereço?

– Bem, fez o croqui indicando: um quilômetro depois do Lixão, uma vereda iniciada numa cerca sem porteira à esquerda. Uns quinhentos metros mais ou menos e, finalmente, uma barraquinha de palhas sombreada por uma mangueira e dois pés de cajus.

– Você vai comigo?

– Jamais deixaria que fosse sozinho. Para ser sincero, acho também que ali mora a mãe de Maria Alice. Vamos lá?

Cleiton foi ao quarto e chamou o guarda-costas Eduardo. Já enfastiado pelo nada a fazer, ele enfiou os sapatos e se disse pronto. Imaginando que encontrariam a velhinha solitária, Cleiton parou num supermercado e preparou uma generosa cesta básica. Nisto, Roberto alertou: não esqueça que teremos de carregar este peso juquira adentro uns 500 metros. Cleiton riu, deu um leve cutucada em Roberto e esticou o beiço para o lado do Eduardo: um moreno jovem, forte, inteligente, de boa aparência e honesto.

 

CAPÍTULO 026

De fato, Eduardo chegou extenuado. Arriou a carga e como a casa não possuía porta, arriscou olhar pela entrada. Viu uma velhinha assoprando um tição em brasa, reverenciado por gravetos secos. Deu bom-dia, pediu licença e, mesmo sem consentimento, foi entrando. A velhinha, sendo totalmente imune a qualquer má intenção do pior dos maníacos, estava vestida de farrapos, e se limitou a dizer sem clareza:

– O que o sinhô está procurando aqui no meu barraco?

Mesmo sem autorização do patrão, Eduardo sentiu vontade de ir direto ao assunto, perguntando por sua possível filha, mãe de Maria Alice. Conteve-se e foi para a óbvia e imbecil pergunta:

– A senhora teria um café para nos oferecer?

Desviando-se, ela disse:

– O sinhô não tá vendo?

– Estou, mas se não tem café, por que está acendendo o fogo?

– É que preciso comê arguma coisa, senão morro de fome. Minha fia ficou de passá aqui esta semana e sempre que ela vem ela me trais comida.

Ao ouvir, Eduardo pediu licença e, literalmente, correu ao encontro de Roberto e Cleiton, que ainda estavam sentados à sombra de cajueiro com esparsos frutos derradeiros.

– Senhor Cleiton, Eduardo, por favor, juntemo-nos rapidamente aqui.

Eles vieram e se agacharam ao entorno dele. A ouvir a narrativa, ficaram eufóricos, cheios de esperança.

– Eduardo, retorne à cidade de Imperatriz e traga um cobertor e uma rede. Daqui não saio até a filha dela aparecer.

Cleiton ainda falava, quando Roberto, sem licença, interveio:

– Dois!

– Como assim, dois?

– É, vamos simplificar. Compre redes, repelente, mais leite, café, pão, bastante água potável e dois vidros de Novalgina gotas. O certo é que também não arredarei deste barraco até o desfecho desta esperança. Somente Deus mesmo para armar as coisas desse jeito!

– Bem, a cidade não fica tão longe. Qualquer coisa que esqueçamos, a gente completa depois.

– Vai, vai, vai logo Eduardo! Já devia estar voltando. Sinto que tudo dará certo. Que Deus esqueça minha falta de merecimento e tome as rédeas daqui para frente, antes que eu ponha tudo a perder.

– Vamos entrar aí no barraco. Evitemos espantar a lebre. Vamos conversar enquanto fazemos o almoço. Se a filha dela for o que estamos pensando, elas nunca mais irão precisar deste barraco. Aliás, mesmo não sendo, elas não viverão mais nesta miséria.

E os dois entraram e, mais estabanados do que um elefante numa festa de aniversário, foram danificando o que mais não podia ser desmantelado. Já submissos à honra de só se retirarem dali depois da chegada da filha de dona… dona…. dona…. Raimunda, Raimunda Maria da Silva, completou a velhinha, em pé, na frente de um fogo sem presteza e sem panelas.

– Pois é, dona Raimunda. Percebo que ainda ouve bem! Nós vamos ficar aqui com a senhora, porque precisamos muito falar com sua filha.

– Mas o que é que oceis qué falá com ela?

– A senhora acredita em milagres? Perguntou Roberto, muito emocionado.

– Acha que se eu não acreditasse, ainda estava viva?

Raimunda carregava, atado à cintura, um terço desgastado, apenas com quatro dezenas. Era com ele que ela conseguia passar as noites sozinhas, sempre aguardando a promessa de que Nossa Senhora a socorresse nos momentos de desespero.

– Pois bem, dona Raimunda, sua Mãe do Céu marcou essa data que estamos vivendo, para mostrar à senhora, que suas orações chegaram lá. Nos próximos dias haveremos – a senhora, a sua filha e todos nós – sermos resgatados da pouca fé que mantivemos durante tantos anos.

– O sinhô fala bonito e eu tenho medo de quem fala muito bonito.

Cleiton fez menção de rir, mas logo retomou a postura de seriedade que o momento exigia. E até tentou dar uma forcinha: a vida é assim mesmo, dona Raimunda. Cada um fala conforme lhe foi ensinado, mas no fundo, nos entendemos, não é mesmo? Eu também não tenho estudo algum, se falo alguma coisa interessante é porque aprendi conversando com amigos cultos e inteligentes.

Ia continuar a conversa quando ouviu a chegada de Eduardo. Parecia apressado, porque trazia alimentos prontos. Sabia que se encontravam famintos. Entregou e voltou para a estrada, onde já se encontrava uma carroça disponível para transportar o restante que havia comprado. Cortaram o fio da cerca e foram conduzindo a carroça a trancos e barrancos juquira adentro. Eduardo ia na frente cortando empecilhos que, de fato, impediam até que o burro prosseguisse.

Ninguém ali sabia quando a filha de dona Raimunda chegaria, apenas que ela mantinha, religiosamente, uma visita à mãe em toda quinzena inicial de cada mês. Como já era a primeira semana de dezembro, não deveria estar muito longe. Ficariam até o fim do mês ali, de prontidão. Não podiam perder a oportunidade. Quando lembrava disso, o coração de Cleiton acelerava. Não mais pensava se era amor, paixão ou pressa de aceitar o desafio do destino, ou a estratégia de Deus.

Eduardo, de fato, era quase perfeito em adivinhar o gosto do patrão, e a prever as necessidades conforme o local. Por isso, programou tudo para um mês de estadia, porque, de fato, a viagem do Espírito Santo para Imperatriz, tinha, como principal objetivo, não somente encontrar a filha, mas também a mãe. Eduardo sabia que a consciência de Cleiton precisava, para ter paz, pagar pelo mal causado à sua filha. Isso incluía a mãe de sua filha.

Quando a noite chegou, a palhoça de dona Raimunda mais se parecia com um presépio. Até alguns animais do proprietário daquelas terras, curiosos, aproximaram-se da cabana, toda iluminada.

Eduardo retornou com nova lista, para possíveis emergências. Não queria deixar o carro na estrada. Despediu-se dizendo que no dia seguinte, preferencialmente à tarde, estaria outra vez ali com eles. Confessaria mais adiante, que gostaria de ser testemunha ocular da chegada da pessoa mais esperada pelo patrão.

CAPÍTULO 027

Dona Raimunda, mulher humilde sem nada dever, nem a perder, estava ali esperando apenas o desenrolar das mudanças bruscas que estavam acontecendo. Sabia que eles estavam esperando a sua filha, que deveria ser a mãe da, agora, doutora Maria Alice. A cada dia que passava, em cada pequenos comentários inevitáveis de dona Raimunda, mais Cleiton acreditava estar muito próximo de confirmar tudo e, concomitantemente consertar o erro mais cruciante de sua vida: a covardia de abandonar a filha de dona Raimunda depois de saber que ela estava grávida. Naquele dia ele apenas se sublevou por ter conquistado mais uma menina virgem na cidade de Imperatriz. Embora seja triste admitir, a luxúria corria solta, até mesmo com o consentimento dos pais. As filhas transavam com qualquer um, desde que chegasse em casa com comida ou dinheiro.

Segundo informações de dona Raimunda, ela já devia ter vindo, porque era sempre na primeira quinzena de cada mês e, agora, já a primeira semana se completara. Roberto, já por duas vezes, pegara carona com Eduardo que, todos os dias passava lá para reiterar-se das necessidades de Cleiton. Já estava tão íntimo e acostumado que até brincou, dizendo que se não encontrasse a filha, ficaria com dona Raimunda mesmo. Era um gracejo que dona Raimunda, sequer, conseguia entender.

Por costume, ela estava lá tentando acender o fogo entre algumas pedras, quando Cleiton se aproximou e, com um isqueiro, acendeu o gás do fogão que havia comprado.

– Agora, minha sogra, você pode esquecer este seu fogão. Nunca mais irá lhe faltar um bujão bem cheio de gás para você cozinhar seu cuscuz, fazer seu café, ferver o leite em pó na água… A senhora teve paciência, soube esperar, nunca reclamou e seu dia chegou.

À época, Cleiton soubera, ao ficar com a mãe de Maria Alice, que ela havia dito que se chamava Ronilsa, mas deste importante detalhe não se lembrava mais. Quando dona Raimunda falou sem que ele perguntasse, o nome ocorreu-lhe de imediato: o nome dela era Ronilsa. Muitas vezes quis perguntar, mas sempre o medo de atrapalhar o calava. Agora, porém, não se esqueceria jamais, porque lembrou do nome sozinho, num backup cerebral.

E mais uma noite chegava e, nela, a mesma insegurança. Ronilsa não aparecera. Teria descoberto a invasão do barraco de sua mãe? E o motivo, seria ela? E se fossem bandidos esperando-a para sequestrá-la? Com certeza, se soubesse do que ali estava acontecendo, só chegaria com a polícia.

Concluindo que ela não viria à noite, porque a trilha de gado que levava ao casebre de sua mãe era sinuosa e cheia de empucas, tornando o trajeto sujeito à vacas bravas paridas ou mesmo cascavéis e outras cobras peçonhentas, Ronilsa comumente chegava às 17 horas, com o sol se pondo. Seu irmão que trabalhava como taxista em Imperatriz, sempre a levava à entrada. Sabia que a mãe morava lá e não era aquele filho que toda mãe desejava. Raramente passava lá para ao menos visitá-la.

Cleiton e Roberto, desde o começo, imaginavam que Ronilsa estivesse vivendo e trabalhando em alguma cidade do Norte, ou seja, do Lixão para frente. No entanto, quando sua mãe percebeu sua gravidez, reagiu com aspereza, fazendo-a crer que estava sendo expulsa de casa. Apesar da extrema pobreza, a família de Raimunda primava pela obediência aos mandamentos da Lei de Deus. Sexo fora do casamento não era aceito. Para dormir com um homem, teria de casar-se primeiro.

Ronilsa fora castigada duramente ao se entregar a um homem galanteador e dele ficar grávida numa única experiência. Como era funcionário de Roberto e recebia o salário-mínimo, não podia nem pensar em comprar um barraco e sustentar mulher e filha. Preferiu retornar à Marilândia e deixar todo problema para Ronilsa, que era muito mais pobre que ele.

E como o mundo nunca parou de dar voltas, também aquela da agradável surpresa também aconteceu. Ele nunca havia jogado na loteria, mas naquele dia, voltando da roça, viu um amigo jogando e ele precisava falar com ele.

– Mário, por acaso vi você aqui e lembrei dos cinquenta reais que estou lhe devendo.

– Pois pague agora, que estou precisando de 25 reais para o bilhete. Os outros 25 deixo para você fazer um jogo também, apenas com um detalhe: se você ganhar me pagará 100 reais.

– Negócio fechado. Mas, como é que se joga?

– Pegue aí uma cartela e marque seis números. Se no sorteio os números que você marcar aí for sorteado você ganha.

– Bem, se for preciso acertar os seis números, então tenho de pensar. Bote aí: 01, 03, 10, 14, 72 e 79.

– Seu troco dá para mais um número.

– Não precisa, porque esses serão os números que serão sorteados. Pode ficar com ele. Ah, e quando devo pegar o dinheiro?

– Não tenha pressa. O sorteio será na semana que vem, quando você já nem se lembrará dos números que marcou.

– Se está duvidando, então me dá os 100 reais que lhe prometi.

– Pois pode ficar com ele e, sabe por quê?

– Não, não sei.

– É que você só tem uma chance entre mais de 50 milhões de apostadores em todo o Brasil.

– Como? Se o Brasil não tem esta quantidade de gente?

– É que muitos fazem um sem-número de apostas, os tais bolões que criam muitas possibilidades. Entendeu?

– Nem um pouquinho!

– Esqueça!

– Tá esquecido. O melhor é que, agora, estamos quites, okey?

Rindo, Mário bateu-lhe no ombro e pilheriou:

– Estava perdido mesmo!

CAPÍTULO 028

Ronilsa nada sabia das tantas modificações que aconteceram no último mês, ali no barraco em que sua mãe morava. Curvada sob o peso da generosa cesta básica, ainda de longe, gritou:

– Mãe, vem me ajudar! Quem melhorou a picada? Que está acontecendo por aqui, mamãe?

Falou mais por falar, porque não faltavam mais que 15 metros para ela adentrar no terreiro. O sol já perdia parte da luminosidade, escondendo-se por trás da barra do horizonte. Dona Raimunda cutucou Cleiton e disse:

– É ela, a Ronilsa!

– Fique aqui sentadinha. Deixe que irei lá ajudá-la.

E nem terminou bem a frase, já saiu a passos largos. Quando a avistou, sentiu desfalecer-se, tamanha a emoção que se apossou dele. Ela ainda não havia dado conta da realidade. Aproximou-se, retirou a caixa das costas molhadas de suor de Ronilsa e veio entrando no barraco. Arriou-a sobre a mesa e ficou admirando Ronilsa enquanto ela se derretia em abraços e beijos com sua mãe. Depois, ainda antes de reconhecer Cleiton, ela perguntou:

– Mãe, a que se deve tudo isto que estou vendo?

Dona Raimunda, que não dominava qualquer subterfúgio para magoar ou evitar choques, foi direto à resposta:

– Este home vem do Espírito Santo. Fala que é o pai da dotora Maria Alici, minha neta e sua fia. Quando sube que ocê me trazia comê todo começo di mês, falou que não ia mais imbora daqui inté ti vê e pedi perdão porque abandonou ocê no pió momento de sua vida: o nascimento da fia. Ele mi parece um bom home.

Nisto, Ronilsa virou-se para Cleiton, que de braços cruzados esperava o desenrolar da conversa. Quando o olhar dos dois se encontraram, Ronilsa começou a respirar com dificuldade, pronunciou o nome Cleiton e desfaleceu. A mãe acorreu com um copo d´água e entornou sobre o rosto dela. Cleiton a deitou sobre suas pernas, levando-a em seguida para uma das redes. Em menos de cinco minutos ela recuperou os sentidos, e começou a chorar convulsivamente. Cleiton espalhava as lágrimas pelo rosto e das centenas de frases que havia decorado, nenhuma vingou. Apenas dizia:

– Ronilsa, você está cada vez mais bonita! Já fizemos o exame de DNA e Maria Alice é nossa filha. Eu ficaria aqui a vida toda esperando por você. Não sei o que fez da vida por este mundo de Deus, mas separando o valor de sua luta pela sobrevivência, o resto para mim é passado e, como tal, desconsidero. Vim para lhe pedir perdão pelo tanto que fiz você sofrer. Se puder me perdoar, usarei este momento para lhe pedir em casamento. Exatamente aqui, neste lugar, quero pedir sua mão à dona Raimunda. Se ela e você concordarem, iremos constituir uma família sob as bênçãos de Deus.

Ronilsa não parava de soluçar. Somente ela sabia sobre o milagre que estava acontecendo. Quantos dias; quantas noites, dentro de ônibus, em boleia de caminhões, recebendo cantadas e dinheiro de que tanto precisava, esquivando-se sempre para que Deus a ouvisse e lhe desse uma família digna.

Enquanto Cleiton falava, ela ia montando o quebra-cabeças. Ela tinha certeza de que Maria Alice era sua filha e que Cleiton era o pai. Não precisava de qualquer exame, porque ela nunca conhecera outro homem. Quantas vezes, homens ricos e de boa aparência lhe ofereceram dinheiro para dormirem com ela, mas aí ela lembrava e pedia socorro a Deus. Voltava com fome para seu abrigo, porque precisava juntar o salário para levar comida à sua mãe. Só possuía três mudas de roupas, mas todas elas só aumentavam seus atrativos, porque nunca abusara da formosura com que fora agraciada.

Agora, ali, com a mãe impassível, mas também com lágrimas escorrendo pela face, ela já nem mais conseguia ter certeza de que seus sofrimentos e orações estivessem se transformando em felicidade. Era Cleiton ou um anjo de Deus, que estava ali na cabeceira de sua rede?

Então, Cleiton, espalhando as últimas lágrimas do rosto de Ronilsa, segurando em seus braços, sentou-a na orla da rede, beijou-lhe as mãos e disse:

– Não precisa dizer nada agora. Pense em tudo. Pode ser mesmo que eu não mereça você e, pode acreditar, mesmo que eu pague com a solidão daqui para frente, para você, sua mãe e nossa filha, nada irá faltar neste mundo. Ainda que eu não conviva com você, estarei sempre por perto.

Gaguejando, Ronilsa tentou explicar:

– Passei mais de vinte anos pedindo a Deus para que você voltasse para termos uma família. Agora que isto está acontecendo, como pode imaginar que não aceitaria? Acho que toda mulher sonha em constituir uma família, ter filhos, criá-los, educá-los…. Por que eu seria diferente? Lá em Araguaína, o único emprego que oferecia escola, comida e dormitório, era o de garis. Pois é lá que estou trabalhando. Se ganho pouco, tenho segurança e o salário dá para eu trazer comida para minha mãe. Se ela não estivesse tão cansada pelo peso dos anos, eu iria levá-la para trabalharmos juntas lá, uma dando apoio à outra. O pequeno salário sobraria, porque também ela se alimentaria lá.

Nisto, Cleiton a interrompeu:

– Ronilsa, tudo isso é passado! Tornei-me um homem rico, não pelo trabalho, mas por algo humanamente inexplicável. Em 35 anos de vida, só joguei na Megasena uma vez. Nem sabia que teria de marcar um cartão com seis números. Ensinaram-me e eu fiz um x em cima dos números: 1, 3, 10, 14, 72, 79. Não sabia nem que precisava conferir. Pois foram à minha casa para avisar que eu havia ganho sozinho. Bem, tornei-me um homem rico num piscar de olhos. Portanto, daquele dia para trás, tudo acabou. Agora vamos começar vida nova, porém sem dificuldades financeiras. Temos muito para planejar, para fazer bem aos menos favorecidos e usar o dinheiro para vivermos eternamente juntos. Juro, neste momento, diante da sinceridade de minhas palavras das quais Deus dá testemunho, sou o homem mais feliz deste mundo.

Dona Raimunda, que depois dos efusivos cumprimentos havia se sentado numa cadeira, ali continuava ouvindo toda conversa. Não se conteve em demonstrar sua experiência a respeito do último item:

– Dinhero demais é muito perigoso, não é não?

– Para ajudar a quem precisa, nunca será demais! Retrucou Cleiton. Pode até terminar um dia, mas não me importarei. Você já sabe varrer as ruas; eu também consigo. Nesses dias, já estaremos aposentados e nossa filha cuidará de nós.

CAPÍTULO 029

Completamente alheios ao que havia acontecido na noite anterior, Roberto e Maria Alice, aproveitando a carona de Eduardo que lá passava todos os dias, foram à cabana de dona Raimunda, lugar em que já se encontrava Cleiton. O que jamais imaginavam foi o que aconteceu na ausência deles, ou seja, que o excesso de felicidade pudesse afetar tanto as pessoas atingidas.

Cleiton andava de um lado para outro, não sabia se abraçava as pessoas, se lhes levava café com biscoito, se se sentava. De repente, como se alguém houvesse chamado, ele saía para o terreiro, espreguiçava-se, atirava alguma coisa num caju muito alto, dava uma voltinha na palhoça e retornava à Ronilsa.

Roberto, inconscientemente enciumado e conscientemente realizado, também demonstrava como o aparecimento de Ronilsa estava influenciando no seu modo de ser: contava histórias e a cada oportunidade, repetia: quem diria? Quem diria? Quem diria!…

Maria Alice, com seu jaleco até então bem alvejante, agora já parecia a camisa oficial do Santos jogando em dia chuvoso. Dona Raimunda mais parecia uma mosca tonta, tanto que Maria Alice achou por bem pedir que ela bebesse o calmante, que ela mesma já havia tomado. A alegria era palpável, visível, percebida em cada sorriso, em cada palavra, em cada observação. O próprio Eduardo, apenas afeito aos desejos de Cleiton, estava eufórico demais, fugindo de sua característica de vigilante sério e observador. Afinal, ele havia sido parte integrante da procura da mãe da doutora Maria Alice!

Ronilsa não sabia, nem o que fazer e nem o que falar. Em determinado momento, Eduardo chamou Cleiton um pouquinho à parte e disse que a casa solicitada já havia sido comprada, paga e escriturada, em nome de Maria Alice. Ficava no mesmo quarteirão de um hospital fechado que, segundo a doutora, seria de fácil adaptação ao que ela irá lhe sugerir. Conversei bastante com ela. Espero que você concorde.

– Bem, disse Cleiton, como ninguém vai dormir esta noite mesmo, amanhã cedo você aluga um caminhão de mudança e gente necessária para levarmos essas coisas para a casa que você comprou lá.

– Como Eduardo e eu agora somos intrusos desagradáveis, irei com ele, certo de que a operação foi um sucesso. Quanto à Maria Alice, bem, ela quem sabe. O certo é que se ela ficar aqui, amanhã não terá condições nem de atender uma consulta. Eu a aconselharia ir com a gente. Ela concordou.

– E você, Cleiton, não vai com a gente? Pilheriou Roberto, enquanto se despedia.

E ele, também brincando, observou:

– Você sabe que até Deus está envolvido em tudo isso e irei cumprir minha parte. Daqui só saio com Ronilsa e Raimunda debaixo do braço!

CAPÍTULO 030

Cinco meses depois, com gente e dinheiro sobrando, tanto a casa como o hospital estavam funcionando normalmente. Cleiton e Ronilsa se casaram, por conveniência acordada, com muita simplicidade. Apenas alguns amigos e aparentados estiveram presentes, tanto na Igreja como no jantar que foi oferecido.

Era hora de sacramentar o acordo que Deus lhe fizera permitindo que sua remissão fosse passando pelo buraco de uma agulha. Cleiton tinha consciência do perigo de utilizar mal tanto dinheiro. Não havia dificuldade para nada. O de que precisava, só autorizava Eduardo e tudo logo era concretizado. Se buscava o saldo, ficava estarrecido: ainda havia muita coisa a fazer, porque os juros estavam quase sempre equiparando aos gastos. Como ajuda, contava com Ronilsa, filha de dona Raimunda. Maria Alice, em nada mudara: continuava sendo a mais humilde e inteligente Menina do Lixão. Ela nunca pensava em vaidade.

Quando na faculdade, tomando consciência de que Roberto e seus irmãos pagavam seus estudos, sempre agradecia aos convites dos colegas de classe para alguma festa, justificando sempre de que precisava estudar. Não era tanto porque precisava, mas porque não podia sequer imaginar, que seus protetores suspeitassem de que não estava fazendo sua parte.

Algumas vezes o dinheiro ia acima da cota mensal, mas todo ele era enviado para a mãe. O dinheiro e a falta dele eram duas coisas como óleo na água: não conseguiam se tornar homogêneos.

Dona Raimunda continuava plantando onze horas em velhas latinhas enferrujadas, enquanto, em lugar adequado, dezenas de lindos vasos viviam amontoados, inteiramente disponíveis.

Alguns já ostentavam lindas rosas e flores exóticas, todas cuidadas por Eduardo que, até o momento não tivera qualquer problema em livrar Cleiton de algum assalto ou sequestro. Pistoleiros e ladrões haviam muitos em Imperatriz nesse tempo, mas pareciam mais preocupados com roubos gado, terras promissoras e, principalmente manter a hegemonia sobre os valentões declarados.

Cleiton – desde que tomou consciência da estranha premiação, não mais duvidou de que Deus havia propiciado e que aquele dinheiro era o preço que Deus estava pagando para sua salvação. Às vezes passava tempo pensando em se livrar da alta conta bancária e até sentia medo de morrer estando com ela. Praticava a caridade, principalmente com os necessitados, visando sempre aliviar seus sofrimentos.

CAPÍTULO 031

Cleiton, quando rezava, sempre pensava sobre o valor perigoso que Jesus alertava sobre as riquezas, mas nunca estabeleceu meios para salvar uma ovelha perdida. Quando não tinha dinheiro, também lhe faltava juízo. No entanto, nunca esquecera da menina negra que conhecera no repente: a mais bela mulher que nunca esquecera. Fugira para não assumir, mas sempre tentava justificar-se, dizendo inutilmente à sua consciência, que não tinha a mínima chance de cuidar de uma família. Não lembrava, porém, que não pensara sobre isso antes de, irregularmente criá-la.

Mas Deus propiciou o dinheiro, mostrando a ele que sua amada, sem dinheiro, conseguiu salvar a filha e sustentar a mãe desamparada, porque tinha fé e paciência para acreditar que para Deus nada é impossível.

Imagino a possibilidade de tudo ter acontecido por coincidência, mas logo declino. Vêm-me a lembrança bíblica do dia em que Jesus, vendo o rapaz rico desistir quando lhe foi proposto vender tudo, dar aos pobres e segui-Lo. Lembram: Jesus completou com a célebre frase:

É mais fácil um camelo passar no fundo de uma agulha do que um rico se salvar. Assustados, os apóstolos presentes, sem aparte concedido intercederam:

– Senhor, nesse caso, ninguém se salvará!

E Jesus, calmamente lembrou-lhes que, para Deus nada é impossível.

Cleiton, quando essas lembranças vinham a ele muito fortes, ele repetia a conclusão de Jesus e se acalmava. Por tudo o que aconteceu, pelo ontem que tanto sonhara receber dois salários-mínimos; pelo agora, que sentia o perigoso uso da riqueza para fazer o bem, regenerar-se, sem nenhum receio de o dinheiro acabar, ele procurava viver em paz e não se encabulava ao afirmar que amava Ronilsa e que cuidaria dela o resto de sua vida. E como nunca perdera qualquer oportunidade para gracejar, observou:

– Falo assim porque a recíproca é verdadeira e sei que será ela quem irá lavar minha bunda, quando eu estiver acamado no hospital de nossa filha.

CAPÍTULO 032

Cleiton, deitado numa rede amarrada na varanda dos fundos de sua residência, ouvindo sonolentos barulhinhos de dona Raimunda lavando as surradas roupas íntimas e desgastadas, que já quase não cobriam mais nada. Embalado pela posição preferida, fechando e abrindo os olhos, teimando em não dormir, Kleiton agora se ocupava em verificar um bando de pequenos pássaros que construíam um grande e belo ninho com penas de galinhas e muitos raminhos de capim.

Roberto que dera uma paradinha para cumprimentá-lo, despertou-o. Ao perceber que ele estava entretido com alguma coisa no alto da mangueira, depois de verificar, observou:

– Sabe que passarinhos são aqueles?

– Não faço a mínima ideia.

– Na verdade são passarinhos africanos. Foram trazidos pelas crianças negras quando vieram com os pais escravos para o Brasil. Hoje, nossas crianças andam por aí, com gaiolas de embaúba, carregando gaturamos, bigodinhos, curiós…., passarinhos próprios de nosso Brasil.

Naquele tempo, também os escravos africanos que tinham famílias, vieram com mulheres e crianças. Como não existe diferença de gostos, aliás, de nada, os meninos também gostavam de ter passarinhos de estimação e vieram de lá com alguns autóctones, entre eles, os bombeirinhos. Aqui chegando, muitos fugiram e amaram o Brasil. Logo construíram ninhos e se reproduziram, garantindo a espécie ou a infestação.

Eram tantos que, coincidentemente, quando apareceram no Espírito Santo, encontraram um alemãozinho chamado Roberto totalmente dependente de espécies raras. A primeira vez que viu um bando deles foi na praia de Camburi, na capital Vitória. Munido de redes japonesas – eram proibidas armá-las para capturar pássaros – mas isso, para Roberto, eram apenas detalhes dispensáveis. Logo conseguiu quantas pudesse comprar na cidade de Colatina. Já existiam até em lugarejos.

Os bombeirinhos vieram na célebre mudança já narrada em capítulos anteriores, numa carroceria de caminhão transformada em viveiro. Chegando aqui reproduziram tanto que Roberto precisou soltar uma leva de mais de 20 bombeirinhos de uma só vez. Foi o bastante. Como os imigrantes italianos explicavam: empestearam o mundo; no caso, o Maranhão e mais adiante um pouco, estados limítrofes.

Aqui em Imperatriz, o observador e escritor Elson Araújo, vendo bandos deles nas árvores da Beira-Rio, perguntou a Roberto sobre aquele tipo de passarinho, e tudo foi esclarecido.

Com Cleiton no dorme-não-dorme na rede, pensando na vida, Roberto, forçando o aparte disse:

– Já que o acordei, preciso de sua atenção em particular, tem esse tempo?

– Ora Roberto, você ainda é meu patrão – disse Cleiton lembrando o tempo do salário-mínimo, da escapada, do milagre…

– Vamos ali para o escritório. Mal chegaram, ele brincou:

– Você sabe que Maria Alice tem você também como pai, mas não se engrace, porque o pai sou eu.

– Sim, mas vamos logo ao assunto, porque já estou ficando assustado.

– Ontem eu estava exatamente aqui neste lugar em que estou sentado, quando minha filha entrou e me pediu se eu podia ouvi-la.

– Nossa filha, você quis dizer, não é mesmo?

Roberto confirmou e foi direto ao assunto, dizendo o que estava se passando no coração de Maria Alice. Ela puxou a cadeira e se sentou, também aí onde você está sentado agora. Sem tirar os olhos de meu rosto, parecendo hipnotizada, ficou me encarando por longos segundos. Como quando era criança, relembrou Roberto. Não sei se já lhe falei, mas tão logo ela foi deixada no Lixão, afeiçoou-se por mim. Vivia agarrada em minhas pernas, sempre olhando fixamente para meu rosto… Hoje isso até me entristece, porque sinto que, naquele tempo ela imaginava – na percepção dela criança – ser eu o pai. E como criança não mente, imaginei-me parecido com você, feio pra burro!

Cleiton riu bastante.

– É, digamos um cacoete herdado da mãe. Também Ronilsa às vezes a surpreendo olhando para mim, parada como uma estátua de bronze.

– Nunca saberemos, porque nem elas sabem o que as fazem agir dessa maneira. Parece que ainda não acordaram para a realidade.

– Imagine o quanto sonharam! Estariam dormindo ainda?

– Pois bem, Cleiton, ontem Maria Alice, depois de gaguejar e quase desistir, perguntou-me sobre Eduardo?

– E você, que não é bobo, logo entendeu o motivo daquela pergunta, não entendeu? Eu até reforçaria, fazendo-lhe a mesma pergunta. Portanto, mais um motivo para você nos responder, sob juramento, a mais pura verdade.

– Como segundo pai, você tem todo direito de saber tudo o que se refere à nossa filha. A existência de Eduardo em nossas vidas justifica-se no conselho do gerente do banco que aplica meu dinheiro. Ele me indicou porque o conhecia havia anos, sempre trabalhando como guarda-costas de milionários, sem jamais alguém reclamar de sua honestidade, coragem e fidelidade. Pois bem, como milionário despreparado eu aceitei os conselhos do gerente, até agora, inteiramente sinceros. Nunca me passou pela cabeça dispensá-lo. De fato, tenho quase certeza: se fosse meu filho, não seria melhor. Agora, porém, diante da pergunta de nossa filha, voltei a ligar para o gerente que o indicou. Falamos mais de uma hora ao telefone. Expliquei-lhe que minha filha havia se interessado por ele e que precisava saber sobre todo e qualquer detalhe do presente, do passado e até do futuro dele.

– E ele, o que disse?

– Disse que gostaria muito se uma de suas filhas se interessasse por ele. Foi adotado como filho pelo irmão dele, tivera apenas uma namorada e nunca soubera de nenhuma falta de lisura e de honestidade em todos os seus empregos. Não gostava de festas noturnas, amava ler e ouvir músicas e vivia procurando oportunidades para auxiliar pessoas que necessitassem de ajuda.

– Bem, com um álibi desse, não preciso nem dar minha opinião. Não bastasse, é bem-apanhado, saudável, solteiro…. Tudo para assumir nossa filha e criar uma família digna. Outro fator importante é a cultura que o Eduardo tem. Se ele também estiver interessado – e aí Roberto também brincou – nossa filha estará em boas mãos.

– Ô cara, não sabe a tonelada de preocupação que acaba de tirar de minhas costas! Nessa hora sim, para dividir tão importante decisão, um segundo pai não somente é necessário, mas imprescindível.

– Eduardo é um homem muito sensato, mas, ultimamente noto-o mais pensativo e mentiria se não dissesse que, ainda que esporadicamente, percebo troca de olhares com nossa filha.

– Você sabe como somos malandros! Imagina: bonita, médica, rica, honesta… Acha que se ela não concordasse viria lhe pedir conselhos? Este, com certeza, deve ser o segundo milagre que se concretizará. Na maioria das vezes encontro-o arrumando, consertando, ajudando em casa. Uma pessoa assim e que ame nossa filha, não será um segundo milagre que está acontecendo? Nunca duvidei, desde que reapareceu lá em casa, que Deus estava procurando a ovelha perdida.

– Estou indo! Note como são as coisas. Quando cheguei imaginei apenas lhe dar um abraço e, quem sabe, combinar uma pescaria de lambari e piau, jantar em algum restaurante, qualquer passatempo, jamais tratar uma das coisas mais importantes de nossas vidas: a felicidade de nossa filha.

Nisto, alguém bateu na porta:

– Pode entrar.

Era Maria Alice que chegava do hospital e trazia várias guloseimas para o café da tarde. Sem suspeitar de nada, ela disse que se não se importassem, tomariam café ali mesmo, porque o ambiente estava refrigerado e lá fora o ar estava abafado. Saiu e, sem suspeitar de nada, voltou acompanhada de Eduardo que fizera o café. Ele chegou, arrumou o espaço, perguntou se queriam mais alguma coisa e já ia saindo quando, em coro, Cleiton e Roberto pediu que ele continuasse ali.

– Ué!, por quê?

– Explica aí pra nós dois, Roberto.

– Para ser sincero, hoje está parecendo o dia em que Cristóvão Colombo descobriu a América. Nunca vi, em princípio, tanta surpresa agradável. Cleiton e eu estamos notando uma certa simpatia recíproca entre você e nossa filha. Sei que assim, no repente, falar sobre isso com vocês dois presentes, talvez seja desagradável. O certo é que um homem e uma mulher sempre acabam sendo infectados pelo vírus do amor e vocês são a prerrogativa de que falo. Maria Alice dispensa qualquer tipo de pesquisas, o que não acontece com Eduardo. Por isso, caro amigo, preocupamo-nos em buscar todo e qualquer tipo de averiguação com todos os que o conhecem. Sabemos hoje de sua procedência, desde seus pais adotivos, assim como dos milionários que o contrataram como segurança. Resultado: ótimo. Totalmente livre e desimpedido.

Desculpem-nos, Alice e Eduardo, porque nossa preocupação dá a impressão de que estamos retrocedendo ao tempo em que os casamentos eram escolhidos pelos pais. Saibam que eu e Cleiton muito falamos sobre isso e queremos, Maria Alice, que saiba, que se Eduardo estiver interessado, sugerimos que cumpram o tempo de namoro, com liberdade de saírem juntos para sentirem a possibilidade de formar uma família digna cristã para o resto de suas vidas. Pedimos apenas que não frequentem ambientes suspeitos, nem fiquem perambulando até a madrugada. Apesar de pequena em tamanho e população, Imperatriz, em violência, já se assemelha a uma grande cidade. Vocês têm o nosso consentimento. Podem sair, jantar fora ou aqui na nossa casa. Acho que, sobre isso, não precisamos falar, porque ambos têm um passado digno e recomendável.

– Para ser sincero – Cleiton entrou na conversa – como pai e sogro, nada mais quero neste mundo do que os ver casados, para sempre. Está conosco a Ronilsa, sua mãe e minha esposa, a mulher que eu não mereço. No fundo, é a mulher que Deus escolheu para realizar o milagre que hoje está acontecendo. Está aí quietinha, ouvindo tudo. Hoje eu consigo ler até o que se passa em seu pensamento. Está aí curtindo a graça que pediu a Deus durante tantos anos. Sempre acreditou que, se fosse honesta e “não voltasse a pecar”, Deus compensaria. E aqui faço até uma ressalva: nosso Criador usa estratégias, mas nem posso imaginar que Ele usaria dinheiro para recuperar uma ovelha perdida. De fato, para Deus nada é impossível. Como já disse o amigo Roberto, quero apenas que me perdoem o excesso de preocupação com a felicidade de vocês que, no fundo, representa também, a minha felicidade e de toda a família de Roberto. Quanto a mim, particularmente, o casamento de vocês representará a proximidade da conclusão da última cartada de nosso Pai para proteger a ovelha desgarrada. Acho que Ele não pensa assim, porque o valor pago foi muito alto. Penso que ainda há muito a fazer, porque toda minha fortuna – graças aos investimentos do Eduardo – continua praticamente intacta.

E, respirando um pouco, ele chamou dona Raimunda, explicou direitinho tudo o que ali havia sido conversado, e se reuniram para uma foto da família. Ao olhar a imagem, Roberto verificou que não havia um dos fotografados que não estivesse com os olhos cheios de lágrimas.

– Não tem problema, pessoal! De felicidade também se chora. Cada um em particular pode responder: Haveria presente ou acontecimento melhor para nos acontecer neste momento? Podemos perguntar a cada um dos presentes: neste momento, há mais alguma graça que alguém aqui gostaria de pedir?

Nisto, Eduardo pediu a palavra:

– Cada um aqui tem motivos sobejos para chorar de alegria, porém, ninguém mais do que eu. Acredito que o que está acontecendo é obra de Deus. Até agora ninguém tem motivos para nos apedrejar. Dona Raimunda, Ronilsa, Maria Alice, Roberto, Cleiton e, submetendo ao crivo, eu mesmo. Merecer, todos sabemos que não merecemos, mas o preço pago em dinheiro usando por Deus, é algo estarrecedor. Sabemos que Jesus sempre nos alertou sobre o perigo das grandes riquezas, mas nesse caso, vale a observação final ante as conclusões dos apóstolos de que todos os ricos não se salvariam, porque jamais, um camelo, animal, passaria no fundo de uma agulha. Mesmo sendo o camelo de que Jesus falava, fosse uma grossa corda utilizada nos navios, que, também, era impossível passar. Agora, bem aqui conosco, temos o mais claro possível de que, para Deus nada é impossível! Desde o dia em que vi Maria Alice, meu coração começou a pulsar diferente. Por mais que eu tentasse reconhecer meu lugar, meu olhos me condenavam, tanto que vocês perceberam. E não adiantava eu jurar que iria me controlar, porque ela era doutora, milionária, enquanto eu, um simples funcionário. Felizmente, o coração não depende da lógica. Então eu olhava de relance e, muitos vezes nossos olhares se encontravam no ar e retornavam ao aeroporto da esperança. Mal Eduardo pronunciou a última palavra, todos bateram palmas por quase um minuto. Era mesmo uma comemoração festiva. Sem qualquer exceção, todos estavam vivenciando a realização de seus sonhos.

CAPÍTULO 033

Ronilsa, em sua eterna simplicidade, ao ouvir de Cleiton o que acontecera à tardezinha, sorria sem parar, demonstrando ser a mulher mais feliz deste mundo. Não deu qualquer demonstração de estar ferida por não lhe ter dada a palavra sobre uma das mais importantes decisões da vida da filha. Pelo contrário, foi ao quarto de Maria Alice e, as duas, choraram de alegria.

Quanto a Eduardo, por mais que tentasse, não conseguia manter a velha postura, porque logo confessara ser Maria Alice o único sonho de sua vida, mas não sentia coragem para se declarar, já que Alice, além de bonita e inteligente – mesmo herdando do pai – era a mulher mais cobiçada de Imperatriz.

A permissão de Cleiton não era tão significativa quanto a de Roberto, a quem ela considerava pai também. Vovó Raimunda, ao tomar conhecimento de tudo o que acontecera, foi internada: ultimamente, tantas coisas maravilhosas aconteceram em sua vida, sendo essa última, a que mais afetou seu coração já cansado.

E se não havia nenhum impedimento, se os “pais” concordavam, se eles se amavam, no segundo mês Eduardo, gaguejando, extremamente nervoso, pediu a mão de Maria Alice em casamento.

Três meses depois, eles se casaram, praticamente exigindo que Roberto e Líria fossem seus padrinhos. Como presente de Cleiton, uma casa totalmente mobilhada, quitada, florida e a apenas dois quarteirões da casa de Cleiton, Ronilsa e dona Raimunda. Maria Alice já havia ganho um carro, por exigência humilde dela mesma, queria que fosse novo, popular, mas com ar-condicionado, devido ao calor da cidade. Como Eduardo continuaria como guardião da fortuna do agora sogro, nada mais faltava para serem felizes neste mundo. Todos sabiam que poderiam ter quase tudo o que quisessem, portanto, não precisava de pressa.

Mas, Cleiton parecia mesmo acreditar que tudo o que estava acontecendo, era mesmo a última intervenção divina para quitar suas transgressões, e ele não perderia essa oportunidade. Continuava praticando a caridade e sentia necessidade de descobrir o que mais devia cumprir. Até o momento, tudo corria bem. O agora genro, extremamente competente e honesto, apenas pela valorização dos objetos adquiridos, superava o patrimônio primário.

E a filha praticamente não ostentava. Vivia humildemente, sempre querendo ajudar as pessoas necessitadas. Agora com Eduardo, ótimo empreendedor, resolveu pedir ao pai se ele podia construir um posto de saúde no Lixão, onde atenderia duas vezes por semana, começando as 8 horas e terminando depois do último cliente.

Cleiton logo autorizou Eduardo a construir. Pediu que nada faltasse e que tudo fosse o mais confortável possível. Avisou logo que todos os remédios que fossem receitados, seriam pagos por ele, por meio da filha. Em suma, um hospital beneficente em miniatura. Alice conhecia bem a origem dos problemas daqueles necessitados. Eram pessoas simples e suas fraquezas eram sempre ocasionadas por verminose, falta de higiene e de boa alimentação. Eduardo supervisionou do começo ao fim da construção. Aparelhos não faltaram, alguns até muito sofisticados, tanto que em caso serem utilizados, profissionais da área eram chamados.

E Cleiton, que acreditava piamente no milagre de sua fortuna, logo encontrou um meio de fazer sua parte: assegurou logo a construção de um refeitório gratuito, contíguo ao mini hospital, àqueles cujo remédio era falta de comida. Não esqueceu, também, da Escolinha, nos moldes daquela que Roberto e Vito Milesi haviam construído e, em cuja, Maria Alice aprendeu o BEA-BÁ.

No dia da inauguração do posto de saúde, 36 catadores de lixo já haviam ali se instalados. Duas famílias eram remanescentes. Ele não conseguia esconder a frustração em seu olhar. Por mais que se esforçasse, qualquer um percebia que sua alegria era forçada. Ele pensava concluir o projeto daquele jeito, mas se esqueceu de combinar com Aquele que precisava lhe mostrar um caminho maior e melhor.

Quando as duas famílias que abandonaram o projeto se achegaram a ele, cumprimentado, ele apelou até para Deus para evitar a frustração que estava vivendo, depois do fracasso de seu projeto. Tornara-lhe comum olhar para a direita e imediatamente para a esquerda, repetir o gesto várias vezes, como se estivesse não aceitando os planos de Deus. Porque Ele permitiu aquele incêndio – perguntava-se. Não estava sendo sincero, não estava ajudando aquelas pessoas? Mais um ano no máximo, o INCRA entregaria a vila Conceição totalmente concluída e funcionando. Será que foi pela vaidade que Roberto lutava? Agora, não aceitando o que havia acontecido, e tendo aprendido que Deus conhece até nossos pensamentos, já até admitia tal possibilidade.  No entorno, os inhambus de seus sonhos, eufóricos e alheios ao que acontecera, piavam incessantemente, como a dizer, ainda lhe resta esta parte de seus sonhos.

CAPÍTULO 034

Roberto, em retrospectos constantes, nunca havia fracassado ao tomar a frente de alguma iniciativa. Em tudo o que planejara sempre conseguira sucesso. Estava tentando encontrar uma explicação pelo que acontecera, mas não conseguia. Fora ferido mortalmente em sua inconsciente vaidade.

Faltou-lhe persistência, mais assistência quando foram abandonados no assentamento? Fraquejou quando as coisas se tornaram mais difíceis? De fato, ir ao menos uma vez por semana ao assentamento, continuar arrecadando e levando alimentos, parecia-lhe impraticável. Agora, não havia mais volta: fracasso total. Todos venderam o pedacinho de terra doado e voltaram à cidade, com a exceção de Francisco, que prosperou, negociou e se deu bem. Hoje é um pequeno fazendeiro. Triplicou o tamanho de sua terra e continuava crescendo. Maria do Côco já nem mais é, porque cuida dos filhos e netos, enquanto Francisco, sempre montado no seu Alazão, cuida do gado, vende leite, cria porcos e galinhas, em suma, tornou-se um pequeno fazendeiro feliz. Se Roberto tivesse persistido por mais um ano, talvez todos estivessem na mesma situação. Era nessas horas que a dor aumentava: se persistisse, não teria transformado aquelas 13 famílias em mais 12 Franciscos? O que a consciência agora não lhe dava tréguas era de que o que fez, qualquer um faria: o Lixão era perto, havia muitos pássaros, contava com auxiliares prestimosos, era considerado gente…. Mas, não passou no segundo teste!

CAPÍTULO 035

Sem a fé de Abraão, de Elias, de Moisés, e tantos outros mencionados nas histórias bíblicas, Roberto voltou a dar prioridade aos passarinhos. Tomara a decisão de criá-los, ou melhor, colocá-los em ambientes que pudessem se reproduzir. Como tema, sempre a mema pergunta: Se fosse Jesus, o que Ele faria?

Para criar pássaros, teria de capturar as matrizes, comprá-las, registrar tudo conforme a lei estabelecida pelo IBAMA, manter mensalmente um relatório, mostrando e documentando tudo o que estava acontecendo.

Depois, cada pássaro receberia um chip implantado e todos deveriam ser enviados à Brasília para serem averiguados e, sendo, retornariam à Imperatriz, onde ficariam, podemos dizer, sob custódia.

Mesmo diante de sua aversão às normas burocráticas e detalhes estúpidos, Roberto começou a contactar o intendente do IBAMA de Imperatriz, sobre a possibilidade de um registro. Verificando o que teria de fazer, percebeu que não valeria a pena, já que o Instituto não possuía o mínimo conhecimento sobre os Tinamídeos. O chefe era um rapaz lá com seus 28 anos, todo meticuloso e sujeito à cartilha do posto que ocupava.

Vinha à casa em que Roberto residia e mantinha seu criadouro; Era lá e cá, aparentemente o vaivém tornara-se rotineiro e amigável. Ele querendo mostrar serviço; Roberto querendo apenas ficar como fiel depositário. Nessas tentativas, ficaram muito íntimos, cada um indo e vindo sem qualquer problema.

O certo é que, nenhum dos dois arredava pé de suas exigências. Roberto jamais iria registrar o criadouro; o IBAMA jamais iria permitir o criadouro sem registro. Funcionara ilegalmente durante mais de 20 anos! A ideia fixa de Roberto era ter o máximo possível de matrizes de Tinamídeos. Chegou a ter mais de 50% das espécies existentes no mundo, porque, em se falando de Tinamídeos, quase todas as espécies são brasileiras.

Num belo e quente dia, depois de escrever seu posicionamento a respeito da situação, Roberto, confiando na amizade, saiu de chinelo e bermuda e foi à sede do IBAMA entregar seus propósitos finais. Confiante, estacionou o carro e foi ao portão. O encarregado atendeu, foi ao chefe e voltou dizendo que ele dissera que não poderia atendê-lo vestido de bermuda.

– Ora, a gente é amigo e quero apenas entregar em mãos estes papéis e retornar, observou Roberto.

O porteiro voltou, falou com o chefe dele e novamente retornou com a negativa. Dissera que era norma e que teria de ser cumprida. Disse que lastimava, porque também não concordava com tal exigência.

O sangue quase ultrapassou a resistência natural da pele do rosto, tal o calor e a pressão que sentiu. Tomou os papéis da mão do porteiro e sem se despedir, retornou para casa.

Quando se casara, Roberto comprou o uniforme completo: calça de casimira, camisa branca de mangas compridas, gravata, meias, correia de couro, até um lencinho já dobrado no bolso esquerdo do paletó…

Fora usado duas vezes: uma no casamento e agora, para poder entrar na sede do IBAMA. Como no casamento, Roberto teve de pedir ajuda a quem soubesse dar o laço certo da gravata. O casamento fora mais liberal, mas, agora, tratava-se de uma apresentação mais séria: falar com um dos diretores do IBAMA de Imperatriz.

Foi ao banheiro, rapou a barba, tomou banho, vestiu-se sob as recomendações de Líria, espanou a calça meio afetada pelo desuso de tanto tempo, uma flanela para limpar os sapatos, última olhada no espelho e aprovação carimbada.

Eram 15 horas, sol a pino, ansiedade sobrando, palavras adequadas misturadas entre os bons costumes e os desabafos foram preparadas meticulosamente. Ao estacionar o carro próximo à entrada, ainda tentou lembrar os itens que exploraria, mas, por mais que tentasse, só lembrava das menos recomendáveis.

Ao chegar ao portão, o atendente, totalmente desconcertado, veio logo com mil desculpas, dizendo que lamentava muito, mas que ele não tinha nada a ver com o que estava acontecendo.

– Sem problema, meu caro. Você cumpre ordens. Quero apenas que me libere para entregar estes documentos ao soberano.

– Desculpas, senhor. Também acho que ele devia abrir uma exceção e atendê-lo, mesmo de bermuda.

– Posso entrar?

– Claro, claro! Devo acompanhar o senhor?

– Bem, a não ser que faça parte de seu mister.

– Percebo que o senhor está muito tenso e isto não é bom. Não bastasse, se não me engano, o senhor está armado e, se estiver é que veio para o que der e vier. O senhor sentiu-se tão ofendido assim?

– Vamos lá. Fique à vontade. Com você ou sem ninguém, o que tenho a argumentar para ele, farei com gente perto ou não.

– Por favor, esfrie a cabeça. Se aceitar meu conselho, entregue os papéis e retorne.

– É que você está deduzindo o que faria se estivesse no meu lugar. De qualquer jeito, vamos lá.

E lá foi Roberto, mais ridículo do que um elefante dançando rock. Quando entrou, já escoltado pelo porteiro, todos os auxiliares do escritório cessaram seus afazeres e ficaram extáticos. Com todo aquele aparato, o intendente animou-se e observou:

– O senhor levou a mal, mas não aconteceu nada além da obediência às regras e costumes.

– Cara, desde que começou a distorcer às suas próprias palavras, apregoando amizade e intenção de me ajudar a resolver o problema, inocentemente, eu passei a acreditar. Mas, quando fui barrado na portaria para simplesmente entregar os papéis, por estar de bermuda, vi que você não leva amizade em consideração. Fui inocentemente enganado, porque sempre primei mais pela amizade do que por leis absurdas de quem pouco entende de inhambus. Estes papéis são apenas para provar que o que estão me pedindo, é inadmissível, próprio de quem nunca tratou de Tinamídeos. A exigência para registrar o criadouro, seria mesmo de demitir quem a estabeleceu como norma a ser cumprida. Por que implantar chips em cada ave, anilhar todas elas, levá-las à Brasília, para o chefão de lá aprovar e mandar de volta? Primeiro, são mais de 100 pássaros e o custo seria inadmissível. Não obstante, Tinamídeos são aves rebeldes. Muitos morreriam e os que escapassem, chegariam escalpelados necessitando de cirurgia reparadora. Portanto, não irei registrar nada. Irei soltá-los.

– Não poderá soltá-los. Já se acostumaram a receber comida e água, são mansos demais e simplesmente serão comidos pelos predadores.

– Pois já conversei com um fazendeiro amigo e ele concordou. Você não saberá o dia e, se quiser os pássaros, terá de fazer o que fiz: aprender a capturá-los de volta, botar os chips, levá-los à Brasília, em suma, apreenda os pássaros e faça bom proveito. Ah, antes dessa decisãozinha de merda, eu ficarei com a cópia dessa papelada e passarei a ser o fiscal sobre as aves que irão destruir. Serei uma pulga na camisola de vocês. Quanto ao meu criadouro, além da captura, encontrem uma vírgula sobre qualquer outro procedimento ilegal. Nunca vendi um pássaros, sempre soltei os excessos e só Deus sabe quantas noites me levantei para socorrer os bichinhos sob fortes aguaceiros.

– Ninguém pode tirar animais silvestres sem autorização do IBAMA.

– Nenhum funcionário do IBAMA poderia desempenhar o cargo por influência política. Não sabem raciocinar sobre os problemas que acontecem. Há traficantes de aves; há os que nunca venderam uma ave sequer. Mas vocês deliberam sobre questões de que nada entendem. Por isso, englobam todo mundo como bandidos. Meu criadouro hoje já se tornou referência para muitos ornitólogos. Há vizinhos e estranhos que ficam sentados nas calçadas, ouvindo os lindos cantos: uma verdadeira orquestra. Eles piam e se reproduzem naturalmente, você viu lá. E como se disse amigo, esperei que, de fato o fosse. Que tal vocês rasgarem esta papelada toda e esquecer que nos conhecemos?

– Agora não dá mais!

– Também acho, retrucou Roberto. Peço apenas que me desculpe porque este foi meu terno de casamento. Nunca tive outro e esta é segunda vez que me paramento com ele. Pensei até em mandar fazer um novo. Afinal, pela importância que se reputa, bem merecia. Portanto, peço desculpas. O certo é que, se quiser falar comigo, sabe onde moro e, como quem deixa de ser amigo, nunca o foi de fato, eu, com a devida ressalva, continuo sendo seu amigo. Se precisar de mim, pode aparecer lá no criadouro, à meia-noite, mesmo de cueca, que o receberei. Passei mais de vinte anos cuidando dos bichinhos, até o infeliz dia em que o convidei para visitá-los. Agora, o caminho será outro. Passar bem.

Com o rosto pegando fogo, Roberto virou as costas, notando apenas que seu interlocutor – que estava com as duas mãos espalmadas em cima da mesa, as elevassem a dois palmos de altura, num gesto costumeiro de demonstrar que nada mais havia para falar ou fazer.

Não houve mais visitas nem intimação. Roberto ficou esperando que viessem apreender as aves, mas nada fizeram.

Um dia, casualmente tocando no assunto com um amigo, ele afirmou que se o problema for registrar, eu registro.

– Pois passe lá e pode fazer a papelada necessária que eu assino, disse Roberto. Quanto à minha parte, fornecerei a quantidade de cada espécie, enfim, o que pedirem eu darei documentado e assinado. Os pássaros já considero seus.

– Amanhã mesmo mandarei construir um criadouro maior do que o seu. Tenho o lugar ideal. Irei cobrir uma área de 20 x 60 metros, toda arborizada, já até com piscininha para tomarem banho. Ficará com mais de 8 metros de altura. Pode marcar: dentro de duas semanas poderá trazer os bichinhos para mim.

De fato, em 15 dias tudo foi resolvido: nova moradia, pedido de registro e dados solicitados pelo IBAMA entregues.

O problema de Roberto estava resolvido. Logo ele iria reconhecer que o bom dançarino é aquele que segue o ritmo da música que se está tocando, ou então, o mais comum: na terra de sapo, de cócoras com ele.

Roberto via mais um de seus sonhos desmoronar. Prevaricou, arriscou, fez verdadeiras loucuras para conseguir uma coleção invejável de Tinamídeos. Trouxe dezenas de variadas espécies, do Espírito Santo para Imperatriz. Na primeira escapada para aumentar a coleção de capturados, deparou-se com uma criança deixada pela mãe no Lixão de Imperatriz. Aquela criança agarrou-se a ele, hipnotizando-o sobremaneira. Esqueceu os passarinhos e passou a viver por aquela criança abandonada. Mas, com aquela dependência e carinho, carregava em si uma das mais inexplicáveis transformações em sua vida.

Agora ele estava novamente tocando o chão com seus pés. Não falava mais sobre Tinamídeos, mas estava preso à Maria Alice. Sonhava registrá-la como filha legítima, mas Deus interferiu e a entregou ao pai biológico, dando-lhe novo puxão de orelhas.

Restar-lhe-ia as caçadas, as pescarias, o futebol. Mas, o tríduo final também se apresentava como dependente do tempo, que não se fazendo de rogado, lembrou-lhe das impossibilidades ocasionadas pelas doenças recorrentes: diabetes, infartos, perda auditiva, de visão, de resistência muscular, labirintite, câncer de pele, Chikungunya, Alzheimer… Tudo foi abeirando, apertando, mostrando sem dó nem piedade, que cada segundo continuava formando horas, dias, semanas, meses, anos…

Roberto agora tentava ser útil, mas a inutilidade era mais forte. Ainda, por amizade, seus companheiros o aceitavam no time. O que seria sua última partida, os companheiros o surpreenderam com uma placa de bronze ao lado do campo em que ele havia construído. Os times já estavam posicionados, e Roberto veio chegando por último.

Seus companheiros estavam em fila indiana dupla, esperando por ele. Sem desconsiderar o carinho, Roberto foi passando pelo meio, recebendo homenagens, abraços e pequenas frases decoradas. Uma delas ainda me lembro: O lateral direito Jorge Baldiane, tomou a palavra:

– Quando estava vindo, eu fiquei pensando: como pode estar ainda jogando tão bem, já com quase 60 anos. Na nossa enquete crítica, ninguém lhe deu mais de 59.

Todos riram e a partida foi iniciada. Roberto jogava na meia esquerda. Como não tinha mais fôlego para ir e voltar, ficava sempre na linha divisória do gramado. Como a Laminadora Paraná pretendesse vencer e o jogo continuava empatado, Roberto ficou isolado no meio de campo. Numa jogada de abafa, a bola foi aliviada pela defesa e veio a seus pés. Roberto parou e ficou calculando sobre o melhor lançamento.

O problema é que ele não combinou com o centroavante adversário: Numa velocidade incrível ele se aproximou. Agora, sem muita escolha, Roberto tentou driblá-lo e não conseguiu. O centroavante disparou, com a bola dominada, para o gol da Laminadora. Se fizesse o gol – como já estivesse nos acréscimos, seu time perderia o jogo. E, convenhamos: exatamente no dia em que Roberto era homenageado. Mesmo sem condições físicas, o pique foi exacerbado. Quando o centro avante foi arrematar para a rede, Roberto tentou o que nunca fez: um carrinho na bola que, prensada saiu pela linha de fundo.

Quando os companheiros chegaram para parabenizá-lo, perceberam que ele não respirava: início claro de infarto. Correria, água e já um carro estacionado ao lado para levá-lo ao hospital.

Mais um item dos sonhos de Roberto, declinava-se. Já sentado numa cadeira no barzinho do proprietário Ildo Costenaro, Roberto foi descalçando as chuteiras e tudo o que se referia a futebol e dando de presente a quem precisasse. Ali mesmo despediu-se dos amigos e companheiros do time e raríssimas vezes compareceu mais a um campo de futebol. Era-lhe norma sagrada: tendo começado, tentava executar; tendo desistido, procurava esquecer.

Dos seus sonhos: caçadas, pescarias, futebol e criadouro, apenas a dolorida saudade dos tempos em que tudo era considerado um ponto de honra a ser conquistado.

Mãos enclavinhadas no queixo, tarde chuvosa, clima agradável, sol poente dançando pelas brechas de nuvens não compactas, Roberto continuava sonhando. Restava-lhe ainda plantar fruteiras, transcrever saudades do coração e da alma: única opção de aproveitar, enquanto vivo, a lembrança dos seus entes queridos, dos seus amigos, daqueles que correm os olhos nas entrelinhas, sobre a vida tensa, ansiosa e atribulada de mais um apaixonado por Jesus Cristo, o Filho Unigênito de Deus Pai.

Nossa vida é como uma semente que passa tempo esperando a chuva, brota, cresce, floresce, dá frutos, é procurada, alimenta. Quem sacia a fome com ela, também joga as sementes em algum lugar, e o ciclo recomeça, com uma nova semente, uma nova árvore, novos frutos…. tudo outra vez.  “Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, Antoine-Laurent de Lavoisier. FIM

 

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