MENINO DA ROÇA

Paráfrase:

O caçador desaninhou a aguiazinha implume e dependente. Tratou-a com desvelo e ela medrou em seu quintal, onde convivia harmoniosamente com seus depredáveis. Vivia sempre quieta, olhar perdido na vastidão do céu escampo. Um dia, depois de tantos anos, viu outra águia cruzar o céu, aplainando serena no gozo pleno de sua liberdade.

Seu peito arfou, seus olhos cintilaram e suas asas tremelicaram na ânsia da liberdade e ela as bateu freneticamente, deixou o chão até ganhar grande altitude e juntamente com a companheira sobrevoante, desapareceu na misteriosa e inexplicável idiossincrasia dos seres, porque bom para ela, era aquilo que ela queria e não o que o caçador imaginava ser.

Apresentação

Nunca se preocupe em enviar muito cedo o seu filho às escolas, pois o prazer de vê-lo emproado numa cátedra pode ser mais egoísmo seu do que desejo dele.

Sabe você, por que os animais não entram em depressão? Eles fazem da liberdade que têm, o que acham que podem e devem fazer: dormem quando estão cansados; procuram alimentos se estão com fome; correm diante do perigo, não agendam qualquer compromisso.
Nós somos animais, e o raciocínio sozinho não nos dispensa dessas características. Os homens devem fazer aquilo que lhes traz alegria e lhes proporciona prazer, mas nunca atropelando os outros para atingir seus objetivos.

Não force seu filho a estudar, se ele preferir os campos. Nem todos nascem para ser doutores, advogados, cientistas. A felicidade independe do conhecimento.

Os cultos amam as ciências, tornam-se escravos dos livros e das descobertas e até podem ser felizes assim, desde que queiram. Os simples, gostam de correr pelos campos, cavoucar com a enxada, ouvir um passarinho cantar… Deixe que Sócrates pregue e que “Gideon” continue a lavrar a terra.

Veja se seu filho quer ser um simples ou um culto. Não há menosprezo ou humilhação na simplicidade. Os pobres de espírito, os simples, os humildes… identificam-se mais com a paz e a salvação.

Todos têm a obrigação de permitir que as crianças sejam felizes e não acreditem tanto que a felicidade esteja dentro dos colégios ou por detrás das cátedras.

Os adultos costumam exigir demais dos pequeninos! Querem vê-los instruídos, cheios de prestígios, para que possam dizer: “Ele é meu filho”. Esquecem-se, no entanto, que muitas vezes o seu egoísmo liquida a vida que fez aparecer, mas que não lhe pertence. Já viram crianças com calçados apertados, roupas desconfortáveis em dia de festa, só porque os pais as desejavam bonitas?

Criança não tem vaidade e acha maravilhosa a liberdade de se lambuzar com picolés e chocolates. A vaidade dos adultos tolhe a liberdade das crianças. Mas elas têm vida própria e por ser simples e não saber de equação, jamais desmerecerão a atenção de Deus. “Deixai vir a mim as criancinhas”; “Se não vos tornardes como uma destas crianças, não entrarás no reino dos céus”. Ninguém deve arrebentar-se para ser um grande em diplomas se sua felicidade estiver nas coisas simples. A felicidade não reside somente no tamanho das coisas. Para um pequenino, um grito estridente pode ser uma grande coisa, tão grande como uma complicada fórmula matemática. A gente se realiza com aquilo que imaginamos grande e não com o que certamente é grande.

Como acentuou Dickens em GRANDES ESPERANÇAS: “Verdade é que as crianças em geral não são expostas, senão, a injustiças mínimas. Elas são, porém, pequenas e pequeno é o seu mundo. 0 seu cavalo de balanço não se eleva senão a algumas polegadas do solo para ficar em proporção com elas, tal como os cavalos da Irlanda que, par assim dizer, são feitos para os irlandeses.”

Se tiver você poder para exigir e nortear a vida de uma criança, cuidado, pois Deus poderá cobrá-lo pelo uso indevido de uma vida que não é sua. A vida é um dom de Deus e surge para desempenhar uma função específica. “Nem uma flor desabrocha por acaso.”

Este livro fala de um menino feliz que foi tirado de seu mundo para tornar-se um grande. Sofreu, chorou, depois pareceu acostumar-se. Cresceu, leu muito, estudou, amou, deu cabeçadas, errou, aprendeu muita coisa, principalmente que havia nascido para as coisas simples, para a terra, para conviver com os passarinhos, com a Natureza. Por isso, por mais que tentasse, nunca encontrou a felicidade, porque o fizeram procurá-la entre os muros do seminário.

Errante pela vida, acabou entendendo que sua felicidade estava no torrãozinho que o vira nascer e quando pode livrar-se da vontade do mundo, voltou para ele e sentiu-se como um peixinho que é retirado de uma latinha com água e lançado num rio caudaloso.

Tudo estava mudado. Seus amigos dispersaram-se, as árvores tombaram. Do que deixara, pouca coisa restava.

Seus irmãos dispersaram-se, seu pai já não mais existia e sua mãe, velhinha, ainda mantinha nos olhos esmaecidos, a certeza de ter desempenhado bem, seu papel de simples. Sua consciência estava tranquila, porque tentara o melhor, porque acreditava piamente que tentara fazer o certo.

O livro respeita o cunho psicológico, tentando comprovar que nem sempre as pessoas são responsáveis por aquilo que fazem: as flores exalam perfume e o estrume, maus odores. Cada coisa, conforme nasce, será.

As pessoas aparecem para desempenhar determinadas funções nesta terra. Têm entranhadas na alma, certas razões que quase as obrigam a agir da maneira que agem. Nem todos obedecem os ditames da consciência, apesar de virem entranhados em nossa personalidade, desde o nascimento.

Só Deus pode julgar pessoas assim. Se os homens tentarem, errarão certamente.

Se os primeiros homens tivessem ensinado somente a bondade, por certo o mundo não seria tão mau. Os pequeninos crescem, falam e agem conforme os adultos ensinam. Uns, quando crescem e percebem que lhes ensinaram errado, revoltam-se, tornando-se inconformados e maus.

A única coisa que importa nesta vida e ser feliz. Ninguém foi posto aqui para ser herói e sim, feliz. Se a felicidade de alguém estiver em viver longe dos colégios, ninguém deve tirá-la. Que se force, quando muito, os duvidosos. Esta é a mensagem deste romance.

Sabem, por acaso, por que um papagaio não degusta um bife, ou por que um gato morre de fome diante de uma salada?

Esta terra tem milhares de opções e cada um deve adaptar-se àquela que melhor condição de vida lhe oferecer.

Tudo o que vive gosta ou tem predileção por alguma coisa. Deixemos que façam, pois para isto nasceram. Cuidemos de nossa própria vida e respeitemos a dos outros.

Aqui as verdades e a imaginação intercalam-se ou vivem juntas, na certeza de que nada é mais coerente que uma verdade, e nada é mais cruel do que ela mesma, dita sem reservas em certas ocasiões.

Pensei em transcrever a pura verdade, mas logo me dei conta de que ainda não estava tão velho para ser odiado por tanta gente. Cada vida explícita pode ser um romance sem precedente, mas nem esta glória pouparia o imprudente do ódio daqueles que imaginam que, escondendo a verdade, ela deixa de existir. Por isto, intercalei as coisas: a verdade serviu de roteiro; a imaginação, de confeito.

O autor

Observação: os diálogos não mostram a diferença de cultura, apenas de sentimentos. Foi a intenção, ajudar os leitores estudantes.

CAPÍTULO 01

Ano de 1882. Sob um frio cortante, Giuseppe fitava seus filhos esmaecidos em volta da tosca lareira, sem presente e sem futuro. Foi à janela e ficou pensativo, vendo a neblina explanar-se pelos campos informes. Sentia-se um fracassado, um homem que jamais devia ter-se arriscado ao casamento. Sua mulher, num tosco fogão, fazia “frittelle” ou “pagnotte” para o desjejum.

A Itália passava por uma crise de desemprego sem que nada pairasse no ar como esperança de dias melhores. Concomitantemente o Brasil que se vira enfraquecido pela guerra frente ao Paraguai em 1870, também se ressentia de braços para cultivar as extensas e férteis terras. O que faltava na Itália, sobrava no Brasil, pelo menos em tese.

O governo imperial, aproveitando-se da situação, de comum acordo com o governo italiano, desenvolveu uma sórdida e ardilosa propaganda: “Partire subito per L’América per il Brasile a far fortuna”. E há pouca coisa mais forte no homem do que a falta de bom senso e raciocínio, diante de vãs esperanças de enriquecimento.

Giuseppe olhava a neblina cair e pensava: “Pior será não tentar”. O espírito afleimado e intrépido, desprezava o bom senso. Apesar da simplicidade e da sensibilidade precária para previsões, o velho Giuseppe sabia, em sua santa ingenuidade, que nunca se deve estar indefinidamente subjugado a uma terra que nada tem a oferecer. E não era homem de passar muitas noites em suposições, porque elas sempre se ajeitam às pretensões. Encontrar falhas e privilégios numa empreitada, depende apenas de se querer ou não empreender tal tarefa.

Voltou-se para a mulher rodeada de filhos e decididamente avisou:  – Irei providenciar os passaportes. Mudaremos para o Brasil.

Era costume o machismo radical e deliberativo do esposo italiano nas decisões da família e, por isso mesmo, ninguém teceu qualquer comentário.

Para as crianças, o Brasil era um mundo utópico, prenhe de controvérsias, onde uma onça-pintada poderia ser fotografada ao lado de uma corsa indefesa a sorver as águas cristalinas que espumavam entre pedras e raízes de uma selva eterna e bela. Para os adultos, uma terra inabitável, ainda hostil, onde Tarzans caminhavam por cipós, assistido por guaribas que, alegremente, dos fastígios, meneavam-se em peraltices ou em esturros tétricos de marcação de território. Em todos os espíritos proliferava a definição radical, muito distante da realidade.

Alguns filhos maiores preferiram ficar, enquanto os menores, sem opção alguma, em lágrimas, tristezas e angústias, no meio de constante tumulto e confusão, subiram no navio. Pela frente, apenas as ondas nauseabundas do mediterrâneo e o céu infinitamente azul; para trás, além dos inesquecíveis acenos, o adeus sofrido da separação. Da plataforma, rostos deformados pelos trejeitos, molhados na amargura das lágrimas e envoltos na melancolia singular de uma eterna despedida, acenavam lenços que iam e vinham, como bandarilhas incertas cravadas no dorso de um touro desorientado nas arenas cruéis da Espanha. A própria Natureza, às vezes, se veste da roupagem malévola dos humanos para se deliciar com suas decisões inconsequentes. Ali no convés, como que sugados por uma nave extraterrena, eles olhavam o mar, o céu, a terra ficando distante; como olhariam os raptados, o globo terrestre, que se reduzia a uma bolinha de gude, conforme a visão limitada de dos olhos.

Entre os que viajavam, havia um garoto sentimental, magro e bastante alto para sua idade. Os seus olhos azuis perdiam-se pela imensidão, num misto de surpresa e mistério. Seu nome era Giovanni Antônio Pupim.

Mar eterno, sem uvas, sem passarinhos; interminável, enjoativo. Viagem de sofrimento, de sede, de fome, de ânsias e ansiedade, de toda sorte de desdita. Crianças (principalmente elas) desfalecidas pela brusca mudança e pela fome, pereciam e eram lançadas ao mar num ato cruel e consternador. Ainda que aquelas mães vivessem duas eternidades não esqueceriam aqueles momentos!

Giovanni ainda não podia entender nada daquilo e os que podiam, preferiam não o fazer. Num desespero total, as mães lamentavam e choravam, olhos perdidos no horizonte, enquanto o navio singrava sem qualquer sentimento ou pressa.

Tudo era novidade para aquelas criaturas enganadas, simples e ingênuas do norte peninsular. Nunca tinham visto um negro e ficaram boquiabertos ante os primeiros que vislumbraram no Cabo da Boa Esperança.

Mar e mar, águas infindáveis. Por fim, o Brasil, o Rio de Janeiro, o Espírito Santo.

Os colonizadores portugueses, sem condição alguma de sustentar tamanha colônia, iam deixando que cada um se adaptasse e sobrevivesse no quinhão de terra doada.

O velho Giuseppe quando pisou terra firme e se encaminhou para as regiões do sul capixaba, sentiu na pele, que a provação que faltava, havia chegado. Desolação, desgraça e miséria. Cobras, chuvas, matas aparentemente inexpugnáveis, mosquitos, febres, falta total de recursos. A grande farsa propagandista do império desanuviava-se diante da verdade irreversível. E tanto foi o desespero que alguém do grupo, ajoelhando-se sobre as pedras de um ribeirão, elevou a voz dizendo:
– Ao diabo minha alma para retornar a Vêneto.

Giovanni continuava não entendendo nada. Comia o que lhe davam e cerrava os olhos ante o cansaço extremo daqueles dias impraticáveis, em que tinha de desempenhar o papel de um homem paladino. Sob intempéries, acossado por febres, envolvido por um mundo diferente, sem neve nem compadres, o velho Giuseppe trabalhava de escuro a escuro, para que quando a noite caísse, os duendes da saudade e da consternação não encontrassem no seu espírito acordado, o púlpito para tantas cobranças e recriminações. Já não tinha coragem para levantar os olhos e fitar de frente sua mulher e seus filhos. Todo o peso da responsabilidade recaía sobre si e até o farfalhar das folhas do pequizeiro parecia gargalhadas demoníacas a se deliciarem com tamanha desdita. E tanto lutou, que pôde ver, enfim, nas margens do Ribeirão do Cristo, uma clareira razoável, onde já se ostentava uma casa coberta com tabuinhas de inhuiba, paredes de tábuas de cedro; um galinheiro de estuque e um paiol de paus a pique. Quando sua mulher chegou para trazer-lhe um gole de café, encontrou-o sentado sobre um toco de cabiúna, como que orgulhoso de tudo o que fizera.

– Agora só falta o moinho – disse ele, enxugando o suor da fronte com a ponta do avental de sua esposa que, por acaso, o vento lhe trouxera ao alcance. Pareço ouvir as pancadas monótonas da água caindo na roda da azenha, sons que ontem me pareceriam triste ritmo de uma marcha fúnebre. Amanhã, porém, elas poderão nos impingir o são delicioso que nos embalará em lindos sonhos. Sabe, minha velha, não fosse por você, eu já teria amarrado uma corda no pescoço e me pendurado no baldrame!

Maria ficou em silêncio, esse mesmo silêncio que se torna cruel quando sentimos a possibilidade real da fatalidade. Depois suspirou a elevar os seios e com grande esforço, encorajou: está tudo bem, meu velho! Todo começo é muito difícil. Tenha calma e não se culpe por nada, pois estou feliz e sinto que nossos filhos terão um lindo futuro.

 

E o tempo foi passando, mais e mais, até que num belo dia o menino Giovanni, agora rapaz, conheceu a Italianinha Emília e com ela se casou. Tinha então 21 anos e para início de vida, adquiriu um pequeno lote de terras nas imediações da vila de Castelo – ES. Como seu pai, teve também dez filhos, dentre os quais, Maria. Era uma mulher linda, de cabelos negros e longos, pernas grossas e os olhos de um azul cerúleo, semblante da mãe de Jesus. Todos os rapazes a cortejavam. Antônio, o mais forte concorrente, usando seu fogoso alazão, vivia fazendo estripulias pelos terreiros do velho Giovanni. Com o tempo, ele desposou Maria.

Passaram, Antônio e Maria, a viver numa propriedade incrustada na margem esquerda do ribeirão do Cristo. O nome do riacho era uma homenagem à imagem que diziam milagrosa, do Cristo crucificado, vinda da Itália. O lugar era montanhoso e frio, o que, nos lampejos de fortes sonhos, transportavam-lhes a furtivas visitas à Vêneto. Altas montanhas elevavam-se de canto a canto, enquanto pelos riachos, escorriam entre pedras, águas cristalinas. Uvas, peras, pêssegos, laranjas e mexericas, cresciam a abundavam. Pelos ares esvoaçavam pássaros multicores e pelas florestas repicavam os guaçus, matraqueavam os bandos de urus e estrondavam os guaribas. Um pouco do passado, um presente intenso.

A saudade peninsular, aos poucos se esvaía da memória decadente dos decanos, e os sucessores, já brasileiros, procuravam amar a terra que os viram nascer.

Antônio é Maria levavam, mesmo assim, uma vida difícil e miserável. A pobreza como herança aparentemente irreversível, acompanhava toda geração. Mas a vontade de vencer era muita; a coragem, a mesma do velho Giuseppe. E também num dia qualquer. Antônio resolveu mudar, deixando o vale do Ribeirão do Cristo e indo para o norte do Espírito Santo, num pedacinho de terra que batizaria com o nome da Mãe de Jesus: Marilândia.

Quando desembarcou na vila de Colatina, último povoado da eterna floresta, deve ter sentido em menores doses, a força do banzo que dizimava nostalgicamente, magotes de negros escravos que não estavam devidamente talhados para se despirem abruptamente da condição humana. Há certos lugares que o homem deveria chegar devagar ou nunca chegar, por respeito à Natureza ou pelo reconhecimento de sua presença nefasta. Foi ali, como indesejado intruso, que recebeu, enquanto passava, dos jacus embandados, as gargalhadas de escárnio. E depois de muitos dias de caminhada por picadas sinuosas, foi vencido pelo cansaço e decidiu, por uma questão de casualidade, traçar divisas que enquadravam a junção de dois córregos, batizados por ele de Liberdade e Santo Hilário. Ali separou uma área de 90 hectares.

Quase três anos depois, os pontos de honra de um bom italiano estavam assinalados: uma casa, o paiol, um quitungo de farinha, um moinho de fubá, uma forja para amolecer ferro e moldar ferramentas, um dínamo com capacidade para 500 velas, movido pela água que desviara do riacho Santo Hilário no percurso de alguns quilômetros de muitas fruteiras que cresciam além das cercas onde já berravam as primeiras vacas de leite.

Mas toda aquela euforia dos primeiros anos logo esbarrou no estado de saúde de Antônio, que passou a conviver com bronquites asmáticas, reumatismo e violentas crises alérgicas. Maria teve de abandonar o fogão e enfrentar as lavouras e a criação da prole que crescia, porque via no companheiro, as forças esvaírem-se.

 

CAPÍTULO 02

Seis horas do dia 26 de junho de 1940. Uma criança imbele, batizada com o nome de Sérgio, com apenas sete meses de vida, jazia enrolada em trapos, na sombra de um pé de café, aproveitando aquele abrigo sombrio da Natureza. O sol ainda não havia de todo despontado, mas os insetos irrompiam às centenas. Maria já estava no meio da leira, juntando com as mãos calejadas, os grãos de café que seu marido derriçara no dia anterior. Antônio, desde que se casara, sentia que sua vida jamais iria se modificar. A dificuldade seria uma constante de geração em geração.

Era alto, corado, aparentemente saudável, dono de uma dentição digna de um javali. Apesar de todas estas prerrogativas, seu organismo não se dera bem com os ares brasileiros e vivia, mensalmente, diante de crises alérgicas violentíssimas cujas dispneias o deixavam entre a vida e a morte.

Maria, acostumada a nada desde de que nascera, nem sequer se dava conta da modificação que sua vida sofrera com o casamento. Vivia apenas o presente: o que diminuía as angústias das previsões. Bela e sempre cansada, surrada pelo dia-a-dia, parecia mais uma santa do que, propriamente, um ser humano. O cansaço torna mais belas as feições abatidas, premiando-as com beleza angelical, como se o prêmio da luta não passasse sem o reconhecimento de Deus.

O seu primeiro filho fora uma dor misteriosa que ela, na sua santa ingenuidade peculiar, considerava uma aparição mística. Certa vez, diante de sua de curiosidade maternal, sua tia havia dito que as pessoas são como árvores: crescem e quando estão grandes e no tempo certo, dão flores e depois frutos. Por isso, quando casou foi para a cama, não à procura de prazeres libidinosos, mas sim para frutificar e gerar filhos, como se isso fosse a razão suprema do casamento.

A ato pela perpetuação da espécie transcende o prazer da cama: assim determina a lei biológica.

Quando ouviu um choro miúdo, ela, terminando de retirar as folhas e gravetos que se misturavam aos grãos de café varridos, desceu, afrouxando um plano barato que lhe servia de turbante para prender os longos cabelos pretos. O menino estava à mercê dos insetos que disputavam a sujeira de suas fraldas. Com a própria folhagem das ervas ela limpou o menino, recolocando-o um pouco mais acima, sob a sombra de um ipê solitário que, qual guardião, assomava-se no meio da lavoura.

Nos quase 17 anos que ali estavam, boa parte das matas de seu sítio já havia dado lugar a um campo promissor em que tudo o que se plantasse, frutificava maravilhosamente. Não bastasse, outros moradores já haviam por ali se instalado, formando um grupo homogêneo de pioneiros. Era por demais compensador estar no terreiro que encimava as planuras da sede e correr os olhos em volta, tendo no coração, a satisfação de saber que cada planta que ali floria substituía os grossos e milenares troncos de jequitibás, bicuíbas e de toda sorte de essências naturais autóctones. As mãos calejadas, inchadas, grossas e duras como cascos de cavalo eram responsáveis diretas por toda aquela transição.

As águas do Santo Hilário que desciam pela valeta idealizada por Antônio, fuçando entre raízes de mangueiras, ia acionar o moinho de fubá, o fole, o gerador e o rodete de ralar mandioca, instalados numa construção de estuque de dois andares, sustidos por esteios de maçarandubas e ipês. Ao lado, mais um paiol para cereais e contíguo a ele, um verdadeiro casarão, cujos encaixes rangiam assustadoramente todas as vezes que bruscamente a temperatura oscilava. Em forma de meia-lua, o terreiro de secar café e o poço de lavagem dos grãos, onde se via ao lado um respeitável monturo de ressequidos excrementos de minhocas. Para além da sede, margeando os leitos dos igarapés, as pastarias de capim-pé-de-galinha, onde as vacas, de ventas atentas, vigiavam os filhotes arredios que, saltitantes, aproximavam-se dos aceiros por onde a suçuarana faminta andava esturrando todas as noites de lua cheia.

A estrada feita a enxadão, picaretas, pás e cavadeiras, também ali se bifurcava, seguindo uma para o sopé das grandes pedras onde nascia o riacho liberdade e a outra para um patrimônio embrionário que acabou tendo o mesmo nome do córrego que o banhava: Santo Hilário.

Tudo em volta era vida sadia, pois nenhuma doença própria das agregações, ainda ali havia se instalado. Bem na orla da estrada, nasceu por si, uma boleira que se tornou frondosa. Dava sombra aos passageiros cansados e estropiados pelas longas caminhadas, transportando fardos de charque, querosene e sal. Na divisa do terreiro, bem perto da azenha, cresceu um pé de laranja seleta que, embora nunca dependurasse os galhos de frutos, fornecia densa sombra na orla daquele terreiro escampo. Mundo primitivo, belo, onde podia se sentir no coração a alegria das coisas puras e se conscientizar de que o homem pode ser mais feliz, quando esta felicidade não tem interligação direta com dinheiro e sexo desregrado.

Maio e junho eram meses gelados que coincidiam com a safra do café. Por isso, a neblina avançava pelo dia, dançando graciosamente ao ritmo dos ventos vanguardeiros, mais ainda bastante suaves, da estação seguinte que se avizinhava.

Maria desceu para preparar o almoço, pois a única filha que possuía, tinha apenas doze anos e frequentava, juntamente com seus irmãos, Anoel e Emil, uma escolinha que funcionava sob os auspícios do consulado italiano.

Uma hora depois seu marido voltava, cheirando mal, todo suado, com um enorme varão de sucanga às costas. Atirou no terreiro e entrou.

Viu Maria que mexia nas panelas com um filho no colo (Jacy ainda não havia retornado da escola), mas nem se deu conta. Aliás, o desinteresse por coisas caseiras seria uma eterna constante em sua vida. A apanhou um trapo, passou pelos braços e testa, atirando-o novamente sobre a balaustrada que dividia a sala da cozinha, formando um cômodo que cobria a engenhoca. Sentou-se a seguir sobre o pilão de arroz e ficou à espera do almoço. Lembrava-se perfeitamente dos 10 centavos com que iniciara sua nova vida de casado e que serviram apenas para sanar parte das dívidas para com o tabelião. Sorriu com desdém enquanto arrancava uma banana do cacho e a deglutia avidamente, com o fim único de economizar o almoço. Mesmo na sua mais pura ingenuidade, Maria entendeu o gesto, mas não estranhou, pois do cacho já faltavam quatro outras que haviam desaparecido com a mesma finalidade: a de reservar os alimentos mais sólidos para o marido e os filhos.

Enfim, a hora. Duas conchas d’água misturadas com alguns grãos de feijão, farinha à vontade e molho de tomate-bravo, misturado sob medida. Aquilo desceu como manjar dos deuses. Antônio não pôde furtar-se ao doce elogio, mesmo que isso não lhe fosse peculiar. Para o jantar, era sempre polenta, leite, queijo, puina e ovos: costume que rompia décadas e se mantinha como tradição na cultura dos imigrantes italianos.

E sempre se alimentavam com a ganância de cães famintos, sem jamais se martirizarem com a lembrança de que, em outras mesas, tantas iguarias e caviares eram desperdiçados.

Deus é muito providente para com os necessitados: subtrai-lhes os manjares, mas lhes conserva a fome milagrosa, capaz de transformar os alimentos mais comuns em caviares saborosíssimos.

 

CAPÍTULO 03

Aos dois anos, Sérgio já falava quase tudo, embora à sua maneira. Perambulava o que dava o dia e tudo fazia crer que apenas mais uma criança havia chegado neste mundo. Antônio, cada vez mais doente, optara por deixar a vida fluir seguindo a corrente dos acontecimentos.

Uma maleita o acometera e toda quinina de que dispunha fora impotente para debelar as febres que o cozinhavam todas as tardes, quase no mesmo horário. Estava lívido e magro, sem mais coragem para enfrentar até mesmo os pequenos reparos da casa.

Um dia, enquanto Maria subia para o morro do café-bourbom, ele resolveu dar cabo de tudo. Apanhou uma garrafa de pinga, sacou-lhe a rolha e sorveu até a última gota, não demorando mais do que trinta minutos para entrar em coma.

Acordou oito horas depois com o quarto cheio de amigos e com duas velas bem acesas, uma em cada lado da cama.

– Está se sentindo melhor, meu velho?

Ele correu os olhos por todo o quarto, indo pará-los nas duas velas que tremulavam. Vociferou:

– Quem acendeu esta merda aí?

– Calma – disse Maria. E virando-se envergonhada para os que lhe assistiam, desculpou-se.
– Querem me matar, não é mesmo? Pois ali no fumeiro do fogão está minha “Peaper” com dois cartuchos carregados com chumbo cigano.

Maria esfregou a ponta do lençol na fronte, enxugando o suor que marejava, enquanto, entendendo o sinal, os vizinhos foram deixando o quarto.

E Antônio muito estrilou em seu humor perverso e enfarruscado, sob a lei infalível e imemorial dos bêbados.

Muitos dias foram necessários para que a ressaca o deixasse e com ela a terrível maleita que tanto o incomodara.

A medicina tem muito a aprender com as casualidades. Mas, não era só a maleita que vivia roubando-lhe a vontade de lutar. Por causa dos bolores e de toda sorte de sinistros alérgenos e das artroses que o enrilhavam, Maria, paulatinamente, ia assumindo toda espécie de responsabilidade e trabalho. Num constante vaivém, podia-se vê-la de um recanto a outro, levando e trazendo objetos, varrendo, cuidando da alimentação da família e dos animais. Sérgio assistia a tudo como o faz um animalzinho irracional. Alimentava-se de frutos, ovos, leite e de todo o mais que lhe dessem, sem que por sua cabeça passasse qualquer momento de consternação. Ainda não sabia avaliar qualquer tristeza. Sua cama era um estrado de peroba, alçado e seguro por dois cavaletes trabalhados a facão, e seu cobertor, uma imensidade de retalhos remendados pacientemente uns aos outros.

Os dias assim passavam, até que aos cinco anos sobreveio-lhe a mais contundente revelação da realidade. Enfiado nuns trapos seguros por suspensórios de borracha que sungavam uma esgarçada calça, fazia ele suas pelotas de “batinga” debaixo da laranjeira que margeava o terreiro. A laranjeira era para ele a eterna confidente. Bem na frente, num som monótono e sonolento, o moinho de fubá friccionava os caroços de milho entre as mós; à esquerda, o casarão e o paiol; à direita escorria pela bica as águas desviadas do riacho Santo Hilário. A bica passava rente ao segundo andar do paiol, dando altura para que a água mantivesse o funcionamento de toda aquela gambiarra de luzes e correões: usina primitiva que fazia funcionar um moinho, uma forja, um gerador e uma debulhadora de espigas. E ali, debaixo daquela laranjeira, com as mãos em movimento semicircular, Sérgio vivia fazendo pelotas e olhando aquele seu mundo conciso. Seu pai vivia mais acamado do que de pé e sua mãe, com um eterno avental e jamais sem a fronte banhada de suor, corria de um lado para outro no afã de resolver todos os problemas, antes divididos com o marido.

Sérgio era um menino travesso, com os cabelos castanhos sempre em desalinho, olhos azuis como eram os de seus pais e o rosto salpicado de sardas, principalmente onde o sol incidia mais fortemente. Gostava de correr pelos cafezais, pelos campos, escalar o dossel das mangueiras e detestava aquela calça com suspensórios, que vivia escorregando e causando-lhe problemas. Por isso preferia não usar nada e sua mãe sempre ralhava:

– Tomara que o galo preto belisque seu bumbum.

– Ehhhhhhh, o galo preto não aguenta comigo! – retrucava ele desconfiado.

– Você vai ver! O dia em que estiver distraído ele comerá sua minhoquinha e depois quero ver como irá arranjar-se sem sua varinha de fazer pipi.

E ele cobria-se com a mão em concha e logo ia vestir o calçãozinho, não sem antes olhar de soslaio para o galo preto, sua constante ameaça. Alguma coisa já lhe passava pela cabeça, como água que enche uma bacia e de quando em vez entorna um pouco por cima. Lampejos de vergonha relanceavam em sua mente, principalmente quando as meninas dos colonos lá iam brincar. Estranhava que sua mãe, sempre quando chegava gente de fora, obrigava-o a vestir-se. Olhava-se de alto a baixo, sem jamais encontrar o que tinha de tão feio para cobrir. Para ele, o pênis, de fato, servia apenas para fazer xixi.

 

Uma seca estarrecedora prolongava-se mês após meses. Detentor de um clima seco, o estado do Espírito Santo logo se ressente das estiagens e as gramíneas são as primeiras a perecer. Com isso o gado padecia e, na maioria das vezes, debruçada tristonha na janela e olhando as vacas que a fitavam, Maria chorava, sempre balbuciando alguma coisa que somente a Deus era inteligível.

Não acredito que alguém neste mundo não se sensibilize diante do olhar de um animal macilento que desfalece de fome. O olhar é dependente e suplicante e onomatopeia alguma jamais foi mais literal em armar uma oração de piedade do que um mugido de uma vaca agonizante. Não pediria, quiçá a Deus, que se condoesse dos humanos mais do que dói em mim ver um animal lamber um filhote esquelético, morrendo de fome.

– Sérgio – disse sua mãe neste dia – vem comigo. Ajude-me a trazer um pouco de folha de palmito lá da mata. As vacas estão morrendo de fome!

– Ah, mãe!, não vou não.

Desde o início, a mãe de Sérgio sentia que seu filho seria causa de alegrias e dores e por isso não insistiu.

Duas horas depois, quando as pelotas já tinham sido espalhadas ao sol para secar, Sérgio viu um espantalho que descia a serra com um pesado saco de aipim nas costas, arrastando um fecho de folhas de pindoba. Aquela silhueta fantasmagórica, ao tempo que se avizinhava, tomava forma. Era sua mãe, cansada, ofegante, suarenta que, quase aos tombos, chegava. Soltou as folhas ao chão e ao tentar arriar a carga, escorregou e caiu. Refez-se, elevou os olhos para o filho e disse enquanto espalhava com a mão direita, um filete escarlate que escorria do joelho ferido:

– Vai caçar hoje ou amanhã, meu filho?

Sérgio, estatelado, como quem acorda de uma anestesia geral, fitou a mãe nos olhos. Eram olhos cansados que brilhavam num rosto lindo. Como era linda sua mãe, pensou! Em seguida ciciou ainda com os lábios trêmulos: – Meu Deus! E sem proferir mais uma palavra sequer, nem organizar o mais infantil dos pensamentos, começou a soluçar.

– Não sei por que chora, meu filho, mas tenho certeza que toda lágrima provém da alma. Ela revela sentimento e faz acreditar que dentro do peito de quem chora há um coração. Pode chorar meu filho e nunca se envergonhe disto. Chorar alivia, desabafa e acalma.

E enquanto dizia isso acariciava aquele rostinho sardento, misturando lágrimas, suor e poeira. Nas mãos, aqueles calos endurecidos e na face, aquela pulsação acelerada de quem ama na simplicidade. A cena que se desenrolava poderia comover uma estátua de granito. Naquela alminha, pela primeira vez acordavam os dois monstros que fariam daquela carcaça, o campo de batalha entre o bem e o mal. O bem e o mal que, naquele momento se encaravam num desafio renhido para conquistar o troféu.

Um vento provindo sul esfriava os corpos doentiamente quentes, embora nem uma nuvem sequer deambulasse pelo firmamento. Para cortar aquela cena tão dura, sua mãe retirou do bolso do avental um maracujá e disse:

– Olha meu filho, ainda está verde, mas dá para você fazer um carrinho-de-pau. (Os garotos da época enfiavam um prego na ponta de uma vara e neste prego espetavam um fruto qualquer e saíam rodando aquilo pelo chão). O menino tomou a fruta impulsivamente e fitou-a enturvada, pois as lágrimas ainda banhavam suas faces.

Começava agora a perceber que seus pensamentos podiam caminhar, embora tropegamente. Enquanto pensava, em sua alma, uma espécie de revolta se avolumava, tanto que mal podia conter seus impulsos. Suas mãos trêmulas estavam apertadas contra o maracujá e sua cabeça envolta no avental de Maria. Diante de tanto trabalho sua mãe mantinha-se impassível e paciente. Sabia, no seu mais profundo ser que, naquele instante, criava um homem e o colocava na encruzilhada da vida. Seu instinto maternal a avisava que o momento era muito importante naquela vida que iniciava racionalmente. Deixou, pois, que a tensão amainasse. Percebeu em seguida que a fruta de maracujá estava espatifada nas mãozinhas ainda trêmulas do menino. Não falava, apenas ia acariciando aqueles cabelos já tão desalinhados.

Minutos após, Sérgio pôs-se de pé e fitou sua mãe num misto de piedade e tristeza. Os olhos cruzaram-se demoradamente. Os lábios da mãe foram os primeiros a tremelicarem, mas foi na face da criança que o sorriso começou a estampar-se. As duas almas chocaram-se e os corpos abraçaram-se fortemente.

Depois daquela cena, poderíamos dizer, divina, Maria começou a juntar algumas raízes que haviam caído e Sérgio, sem que ninguém lhe pedisse, tomando as folhas de palmito, gritou:

– Tom, tom, Morena! Vem comer, Sombrinha!

– Louvado seja o Senhor – balbuciou Maria.

Os filhos são como mãos que nos aliviam dos espinhos e como tumores que nos indispõem ao bem-estar, pensou ela.

 

CAPÍTULO 04

Quatorze de maio de 1946. Há muito a seca se fora. Como foi bonito ver surgir do meio daquela forragem marrom-clara da relva seca, fiapos verdes de capim, e sentir, também, aparecer no lugar de cada folha tombada pela estiagem, brotos virentes que iam substituindo o quadro triste da desolação. A chegada das águas parecia o Natal dos animais, com pássaros felizes e ungulados saltitantes. Era de uma beleza incomum ver os potros fogosos esticarem os rabos e rinchar nos cogotes das vacas pachorrentas que, numa onomatopeia dedutiva, esquivavam-se enfastiadas. Acho mesmo que ainda chove porque os animais não esqueceram de ser gratos a Deus quando isso acontece!

Pelos céus enxaguados, libélulas e cupins faziam circunvoluções, enquanto os bem-te-vis e toda família insetívora capturavam-nos em acrobacias espetaculares. Do nariz ao alcance das vistas tudo cheirava a limpeza e proporcionava alegria. E Sérgio tinha verdadeira loucura pelos dias de chuva, ficando por horas inteiras vendo os salpicos caírem, escorrendo pelo chão, umedecendo, limpando e dando vida a toda a Natureza.

O tempo havia mudado muita coisa, até mesmo a situação financeira da família. Sérgio tinha seus amigos com os quais rondava os cafezais à cata, principalmente, dos pica-paus e das rolinhas-casamenteiras. Apenas Nego era inseparável. Ele tinha os cabelos loiros e encaracolados, a pele bem clara e índole submissa: casava perfeitamente com o espírito autoritário de Sérgio. Viviam juntos porque um só sabia mandar e o outro, obedecer. Para muitos, ser mandado é uma necessidade salvadora: morreriam indecisos na encruzilhada das decisões.

Sua mãe assistia aquele desenvolver com os olhos perscrutadores. Mesmo assim não ousava qualquer previsão quanto ao futuro do menino que a cada dia se tornava mais imprevisível.

Na roça as famílias têm de ser autossuficientes, não aceitando jamais a dependência do dinheiro. A única coisa de que sua família necessitava era o sal. Por isso, as pocilgas, as pastarias e os galinheiros estavam sempre com um plantel bastante superior às necessidades de consumo. Pelo terreiro, as chocas de pinto viviam ciscando e dando sucessivos espetáculos de histerismo e ciúmes a cada vira-latas que transcendia os limites de segurança de sua prole. Um dia, Maria sobressaltou-se com os cacarejos espavoridos de uma delas que parecia ter sido atacada por um predador extraterreno, já que bem se saíra diante de um carcará faminto há poucas semanas. Quando chegou:

– Sérgio, que está fazendo, meu filho?

O menino estava com um porrete na mão e dos oito pintinhos negros que compunham a ninhada de dezessete, quatro já estavam esfacelados. A choca chegara à loucura, esvoaçando, espicaçando enlouquecida e fazendo uma balbúrdia capaz de chamar a atenção até mesmo de um Australopithecus robustus fossilizado.

– Por que está fazendo isto, meu filho – repetiu sua mãe em tom de repressão.

– São feios… feios e pretos.

– Meu filho, que tem a ver a cor das penugens? Por dentro são todos iguais.

– Vovô disse que não, e papai também.

– Ah, meu filho! Não dê ouvidos a estes velhos caducos e racistas. Os pretos só são diferentes na cor.

– Vovô disse que eles são a desgraça do Brasil. Falou também que são eles que deixam as porteiras abertas para as vacas e os cavalos comerem nossas plantações. Além do mais, estes pintinhos vão ficar grandes igual ao pai, não vão? e…

– Ora, filhote, aquilo era brincadeira minha. O galo preto prefere milho à sua minhoquinha.

– Sei lá!

– Olha aqui menino, não sei bem se os pretos são realmente iguais aos brancos ou não; não sei também se eles deixam as porteiras abertas ou estragam este país. Sei apenas que estes pintinhos me deram trabalho e a galinha ficou 21 dias sentada sobre os ovos para que eles eclodissem. Portanto – e dizendo isto lhe apanhou a vara das mãos – vou falar numa linguagem que as crianças malvadas entendem bem. E foram tantas as varadas nas pernas e na bunda que em poucos segundos elas surtiram mais efeito do que muitas horas de cansativas lições de renomados pedagogos.

Desde pequeno Serginho perdia-se à procura do que devia ser certo. Seu espírito era indômito e ansiava precocemente palmilhar cada espaço de que dispunha. Fazia e desfazia, ia e vinha, confirmava e contemporizava, irradiava confiança e se tornava refratário ante a ineficácia de poder desvendar tantas coisas que ainda eram mistérios para sua cabeça. Parecia mesmo haver nascido para buscar sua verdade e, numa premonição disto, vivia sempre desassossegado, como se sentisse o tempo esvair-se, diminuindo-lhe em cada segundo a chance de cumprir sua missão. Era irrequieto, malvado, mas antes de mais nada, um sentimental. Tinha vindo para procurar e não podia furtar-se a tais inclinações, ainda que lhe valessem insônia, dúvidas e muita angústia.

Na manhã de 14 de maio Sérgio vinha de sua caçada com uma linda flor silvestre na mão, guardando-a com um carinho indescritível. Apanhou uma garrafa vazia, encheu-a d’água e colocou o caule pelo gargalo.

– Vou levar para Nossa Senhora – disse à sua mãe. Hoje o diabo quase me pegou. Acho que Nossa Senhora está zangada comigo, com as coisas que ando fazendo.

– Não é nada disso – retrucou a mãe com seu eterno hábito de acariciar a fronte dos filhos – as mães nunca querem mal a seus filhos.

– É, mas hoje o diabo quase me matou de medo. Na hora que ia dar uma pelotada no caga-sebo ouvi uma gargalhada e não vi ninguém.

– Deve ter sido o Arlindo. Aquele só evoluiu em tamanho, pois sua cabeça é de uma criança arteira. O diabo não mexe com as crianças não. Deus não deixa. O mundo dele é outro, é dos homens grandes que se tornam gananciosos e egoístas.

– Não é o que a senhora anda me dizendo.

– Falo brincando, meu filho!

– Eu nunca sei quando a senhora fala sério comigo.

– Está bem filhinho – mas quando falo do diabo, estou sempre brincando. E que sem ele fica difícil segurar você.

– É, mas de qualquer jeito, hoje vou rezar. Não quero brincadeira com aquele bicho não, mãe.

Às dezoito horas, quando o sino anunciava o segundo sinal para a ladainha e as crianças enfileiravam-se levando nas mãos as mais policrômicas flores a Maria, já no horizonte, o sol cansado declinava-se esmaecido. O som juvenil daquelas vozes puras misturava-se aos gorjeios mil dos alados que se recolhiam nos bambuzais da beira do riacho Liberdade.

Marilândia era uma vila bem pequena, esculpida no sertão espírito-santense. Era uma colônia italiana cuja maldade residia apenas nas cantarolas folclóricas que iam noite adentro, roubando o sono de quem quisesse descansar. No mês de maio ofereciam-se brindes, os quais eram leiloados e revertidos em benefício das missões. Era durante estes leilões que as crianças, enquanto seus pais arrematavam brindes, corriam brincando de “camon boy”, esconder, pique, vinte e um de abril etc. Sérgio já havia, certa vez, arremessado aos ares o prato com pudim do velho Palma, no momento que ele iria dar a martelada final. Conseguiu furtar-se das palmadas usando a multidão como esconderijo, mas se praga pegasse ele ficaria com “caganeira” durante um mês inteiro. Nessa noite, porém, fora infeliz. Retirando das ramagens de um jacarandá as pequeninas folhas, arremessou-as sobre os longos cabelos de sua coleguinha Liza, deixando-os todos esverdeados como folhas de samambaia. Ainda olhando para trás, abalroou no irmão da menina e ingenuamente disse:

– Viu que bacana?

O irmão de Liza era um moço alto e forte, cabelos cortados à escovinha e nunca afeito a qualquer tipo de brincadeira – um casmurro introvertido. Virou-se e, num ímpeto cruel, desfechou violento tapa no rosto de Sérgio, deixando-o sentado na poeira da rua. Sem entender nada, vagarosamente, Sérgio foi-se levantando, sempre com os olhos fixos em seu agressor. Sem deixar cair uma lágrima ou dizer uma só palavra, bateu a poeira do calção e, sempre olhando nos olhos dele, foi-se distanciando.

Talvez nem todas as potestades dos quentes abismos possam criar tanto ódio na mente de uma criança como aquele safanão criou. Quanto desejou esganá-lo, mordê-lo, estraçalhá-lo. Rogou-lhe tantas maledicências que somadas deixariam as do Egito desclassificadas no rol dos castigos extremos. Não se é de ficar surpreso que um borrão surta mais efeito de sujeira numa folha branca e muito limpa. Foi neste momento que Sérgio percebeu que já podia odiar.

 

CAPÍTULO 05

Ouvia-se ao longe o espocar dos fogos. A família de Sérgio morava a alguns quilômetros da vila. Bem cedo Marilândia despertara. Era difícil aparecer um sacerdote por lá e quando isto acontecia era motivo para batizados, primeira comunhão, sermões, casamentos, enfim, era oportunidade de se colocar em dia, toda aquela contabilidade espiritual atrasada.

Era bonito aos olhos dos simples todo aquele cerimonial. Adultos e crianças, sem a preocupação da vaidade, numa algaravia sem fim, caminhavam pelas estradas, misturando seus sons à algazarra da Natureza desperta sob o céu escampo, onde cintilava o rei dos astros, enchendo a todos de calor e vida.

Era engraçado sentir a poeira entranhar-se nos dedos dos pés, fazendo cócegas impertinentes e deixando em cada passo o efeito de uma pequena explosão. E quanto mais a distância diminuía, mais os tufos dos fogos tornavam-se visíveis e mais o som estúpido das explosões feriam os ouvidos e enchiam de animação aquelas ingênuas e felizes criaturas.

É inacreditável que no coração daquela gente houvesse motivo para dobrar os joelhos diante do confessionário!

Neste dia Sérgio faria sua primeira comunhão. Tinha sete anos. Com os sapatos na mão, vinha do sítio para a vila acompanhando seus familiares. Os fogos continuavam, enquanto as estradas atapetavam-se de colonos que saíam de seus recantos e encaminhavam-se para a igreja. Como sua mãe havia recomendado, lavou os pés na entrada da rua, calçou os sapatos, penteou os cabelos e ficou de mãos postas durante todo o tempo. Na hora da comunhão foi bastante meticuloso para que a hóstia consagrada não tocasse nos dentes e pediu muito ao Papai do Céu para que o mundo fosse melhor. Tudo foi normal, pelo menos até a volta.

Em seu bolso, uma moeda de dez tostões (presente de primeira comunhão). Dava com sobras para um picolé e um pão-doce dos grandes (sonho de todo pimpolho da roça), compra essa que foi feita na venda do velho Salarolli. Acontece que o velho, já quase cego e bastante esclerosado, equivocou-se no troco, criando uma vantagem de quinhentos réis para Sérgio. Foi, a princípio, a sua maior alegria. Percebendo o engano, ele distanciou-se lepidamente do local, evitando assim que o velho percebesse. Longe de seus pensamentos, qualquer indício de desonestidade. Mas vejam como é a vida e quão maus são aqueles que, mesmo inconscientemente, conseguem colocar a maldade onde ela não existe.

As crianças seriam eternamente puras, se os adultos não tivessem a insensatez de transformar suas ingênuas brincadeiras em atos pecaminosos. A maior dívida do homem está na capacidade demoníaca de pôr a malícia nas coisas simples e normais que Deus criou. Embora o ato de Sérgio não estivesse certo perante os homens, diante de Deus, por não existir ainda a malícia, podia ser considerado “coisa de criança”. Mas…

Um pouco antes do jantar, seu irmão Emil observou:

– Vamos ver agora se fica mais bonzinho, seu pestinha. Não esqueça que comungou e que não pode mais responder aos mais velhos. Não esqueça também de ser bonzinho, obedecer e ser honesto com todo mundo.

Aquelas palavras fizeram-no despertar de seu transe de felicidade. Logo lembrou do calote do troco e sua consciência perturbou-se. Sorrateiramente afastou-se e no cantinho de seu quarto, chorou angustiadamente, como se o irmão tivesse arrancado das mãos de Jesus, a espada justiceira para feri-lo mortalmente.

As lágrimas tombaram por sobre os lábios trêmulos e os olhos molhados pareciam dar trejeitos na face serena do Menino Jesus, dependurado num quadro na cabeceira da cama. Toda aquela alegria e leveza que a comunhão parecera infundir-lhe, agora se arrastava em murmúrios de penitência e de dor. Havia cometido um pecado mortal imperdoável.
Os adultos deviam pensar mais ao falar com uma criança do que quando prestam depoimento perante um tribunal!

No outro dia, porém, tudo seria esquecido. Ele era, de fato, uma criança.

Chovia bastante – era tempo de cheias. Os rios extravasavam e os estreitos leitos dos riachos não continham as torrentes que se avolumavam em instantes. As baixadas e pastarias ficavam prenhes de jundiás, moreias, acarás, traíras, piavas… e a criançada, numa euforia indizível, corria sofregamente de um poço a outro, recolhendo os ilhados.

As piaçocas, socós e mergulhões chegavam ao delírio, voejando de poça em poça, empanturrando-se com as desovas dos peixes e com toda sorte de plâncton que se punha com fartura. Bandos de anatídeos grasniam pelas encostas, voando em grandes bandos, baixando em voos rasantes ou debandando espavoridos com a aproximação de qualquer coisa estranha ou ofensiva. Lá no alto do tronco seco e desnudo da sucupira, um gavião “carapinhé” arrumava as penas molhadas e crocitava esperançoso e feliz diante daqueles bandos incautos de tanagrídeos que o acuavam de través. Não se saberia dizer o que lhe passava pela cabeça, aliás, jamais teremos certeza se os pássaros sentem alegria ou tristeza. Mas acredito que aquele gavião, vendo aquela exuberância ao redor, deveria sentir-se como certos humanos que se dão à sandice de transpor os beirais das mansardas para se autoflagelarem diante das vitrines prenhes de iguarias dos grandes supermercados.

E a vida pululava – podia-se senti-la do chão às nuvens. Com sacolas cheias de peixes, peneiras na cabeça e cacetes com os quais se abatiam rãs inocentes que, além de coaxarem a todo pulmão, ainda se denunciavam nos flocos brancos de espuma, as crianças, como ventos indecisos e errantes, iam e vinham pelos campos alagados.

Depois, os maiores e mais destemidos iam para o banho no Fundão (um remanso do córrego Liberdade). Por causa das fortes chuvas o riacho transbordara e aquele ponto do riacho estava muito perigoso. Sérgio também queria ir, mas seus irmãos insistiam em não permitir.

– Eu vou e vou – dizia ele sempre teimoso e prepotente.

– Vem, vem – dizia seu irmão mais velho – vem pra morrer afogado.

– Eu vou.

– Manhê – gritava constantemente a Jaci, sua irmã muito preocupada – o Sérgio quer tomar banho no Fundão.

– Terá de avir-se com seu pai, moleque safado. Passa já pra casa.

– Eu não – retrucava ele à sua mãe, sempre envolto numa teimosia sem fim.

E assim, entre vou e não vai, falo com papai e pode falar, o magote foi se dirigindo para o poço. Sempre à distância, Sérgio acompanhava a turma. As águas estavam turvas e bastante perigosas, mas mesmo assim, os que sabiam nadar foram saltando, mergulhando, sempre numa algazarra ensurdecedora. O menino aproximou-se. Todos se divertiam, por que ele não podia? Sem que ninguém percebesse, tirou a camisa e disparando em direção ao poço, saltou. As crianças que estavam do lado de fora puseram-se a gritar doidamente, enquanto Sérgio desaparecia nas águas turbulentas do rio. Os maiores correram pelos barrancos, olhando, gritando e fazendo tudo o que tinham direito diante daquele quadro drástico. Uns vinte metros abaixo, havia uma pinguela por aonde um dos meeiros atravessava o córrego para ir até sua lavoura de milho. Pelas bordas da travessia, havia nascido uma vegetação densa, e junto dela, muita tiririca. Já desacordado, Sérgio, numa ânsia incrível de sobrevivência, agarrou-se às folhas da tiririqueira. O primeiro a vê-lo foi o Nego, seu amigo inseparável.

– Olha lá a mão dele!

– Onde? – gritaram todos como se tivessem afinado as vozes para o mesmo grito.

– Ali, corram depressa!

Augusta Crissafi, filha mais velha do velho Chico, atirou-se incontinenti e agarrou a criança, já completamente desfalecida.

Depois de todas aquelas coisas, que normalmente acontecem no interior em ocasiões como aquela, o menino recobrou os sentidos, vomitou muita água e pôs-se de pé. Os olhos purpúreos contrastavam com a lividez do rosto e suas pernas tremulavam como as de um bezerro recém-nascido. O vozerio parecia-lhe ecoar ao longe, como se os ouvidos já mais nada desejassem ouvir. Uma agradável sensação de desfalecimento, do delírio dos desmaios, tornava-o insensível perante o mal-estar que estava por sobrevir.

Nada ouvia direito e talvez melhor tenha sido assim, pois a maior dor dos castigos é aquela que a consciência disto, mais a expectativa do infortúnio, infundem. Quando o sangue vadiou por sua face numa sensação de vida e calor e o estômago contraiu-se, enojado pela água fétida que ainda balançava em sua barriga, sentiu um peso nos ombros e uma voz bastante familiar a perguntar-lhe:

– Como está se sentindo, filho?

Como gostaria ele de estar em delírio! Mesmo sem erguer a cabeça, pôde ver balançando, presa à mão rígida, uma larga tala de açoitar burros empacadores. Aquela corretiva tanto já passeara pelo seu costado, sem jamais penetrar-lhe no entendimento.

As demais crianças emudeceram e nunca, nunca mesmo, o silêncio fora tão cruel. Sérgio respirou fundo, revisou-se num lampejo e decidiu:

– Pior será apanhar como covarde!

Firmou os pés e sem que ninguém esperasse, arrancou célere, respingando água a dezenas de metros.

– Passa aqui moleque, volte se não…

E as palavras do pai morreram-lhe na boca. Sérgio caíra extenuado e perdera os sentidos. Antônio tomou-o nos braços, levando-o para casa. Estendeu-o na cama, enquanto Maria enxugava-o e o enrolava em panos e cobertores de lã.

Paulatinamente seus olhos foram se abrindo. Quando viu em sua frente o pai e sentiu a lucidez voltar, disse languidamente:

– Pronto pai, já pode me bater. Acho que já dá para aguentar.

– Por que faz estas coisas, meu filho?

– Não sei, pai. Tem alguma coisa aqui dentro que me faz ser um menino ruim. Sabe, todos os dias de manhã e à noite quando estou sozinho, eu penso e sei (porque todos vocês me dizem) que sou mau, mas não é assim que quero ser não. Eu até juro que vou ser bonzinho, mas não consigo. Por que pai, que tem que haver crianças más como eu?

E elevou os olhos, mas não encontrou os de seu pai, que torcendo o rosto e deixando entrever repuxos faciais, deixou o quarto.

Há mais pureza nas maldades das crianças, do que na santidade dos adultos!

CAPÍTULO 06

Criança indomável, cheia de ideias esquisitas, com um dom incrível de liderança e uma sofreguidão incomparável para travessuras. Beliscava os calcanhares dos distraídos, dava fortes marretadas nas tábuas da casa quando todos almoçavam distraidamente, inventava histórias fantásticas para deixar preocupados todos que o ouvissem, fugia das orações quando cabisbaixos todos rezavam, enfim, era uma criança esdrúxula, totalmente diferente das demais. Por todas estas inclinações, sua mãe vivia preocupada. Não havia lugar algum que pudesse deixar a panela de leite ou a tijelinha de nata, sem que o mesmo descobrisse. Era no fundo da horta, era sobre os caibros, era no fundo do fogão, atrás das achas de lenha…

Uma noite resolveu escondê-la sob a cama em que dormia. Lá pelas vinte horas, ele voltava de suas andanças, e isto era inconfundível, pela barulheira que fazia ressoar nas portas do guarda-comidas, pelos estalidos dos colheres e canecas, pela entrada e saída de cada cômodo, enfim, pelo esquadrinhar deseducado de qualquer lugar em que pudesse encontrar alguma coisa para matar a constante e insaciável fome.

Sua mãe sempre acordava e por várias vezes já o havia recriminado pela falta de respeito ao sono alheio. Nesta noite, porém, embora acordada, manteve-se quieta e não ralhou, não obstante ele continuasse a demolir a casa à cata de qualquer coisa para comer.

Já não era difícil subentender que ele não havia encontrado o leite, pois, além dos infindáveis barulhos, a panela estava ali debaixo de sua cama.

Depois de algum tempo de silêncio, Maria percebeu que a porta do quarto, muito vagarosamente se entreabria. Ficou extática, demonstrando sono profundo. Pé ante pé ele aproximou-se. Fitou por instantes o semblante de sua mãe, mas a tênue claridade que advinha da sala, não lhe dava muitas chances de qualquer diagnóstico. Agachou-se e logo viu reluzir ao lusco-fusco, o alumínio polido da panela!

De quatro, engatinhou sorrateiro, mas tudo parecia explodir, arranhar, ranger – era como se as tábuas e até as juntas de seus ossos estivessem conspirando contra ele. Só mesmo quem precisa de silêncio absoluto sabe quantos sons qualquer movimento faz vibrar.

Quando destampou a panela, então, foi como se revivesse a explosão de Hiroshima. Parou de respirar, mas os batuques que ouvia de seu coração eram como tambores incontroláveis que desejavam seu próprio flagrante. Os joelhos estalavam, os dedos e juntas das mãos trapejavam e as orlas da camisa que roçagava pelo soalho, pareciam um monte de folhas secas arrastadas pelo rodo. E mais isso se acentua quando fazemos alguma coisa errada!

Tirar a panela seria impossível. Serginho olhou, pensou. Só havia um jeito: tombá-la, cravar os dentes nas bordas e sorver aquele líquido branco e substancioso que Deus, sabiamente, colocara nos úberes das vacas.

O que ele jamais poderia imaginar é que sua mãe estava acordada e com um tamanco de imbuia levantado a um metro de sua bunda empinada, que ficara fora da cama como a de um gato espreguiçando-se. E como que combinados, tamanco e boca chegaram aos objetivos no mesmo tempo. Ele estava embodocado, com os joelhos curvos e as costas encostadas na quina do estrado da cama. Tentem imaginar uma pessoa neste estado, tensa, fazendo o que não devia, com o nariz dentro de uma panela cheia de leite e levando uma tamancada na bunda. Pois é …

Por causa da sujeira e do desperdício, mais tamancadas se sucederam e o gatuno, com leite escorrendo por todo o rosto e equimoses pelo costado, tratou de evadir-se o quanto antes. Todo mundo acordou e enquanto uns riam, outros esbravejavam, pois certamente, depois de tudo aquilo, poucos voltariam a dormir tranquilamente.

Sérgio caçava o que dava o dia, perdido pelas capoeiras e cafezais e não foram poucas as vezes que seus pais o receberam em frangalhos. Certa vez, o vizinho fazia farinha em seu “quitungo”, quando percebeu enrolado no eixo de ferro que acionava todas aquelas engrenagens, o menino que tentara enroscar a ponta da camisa para ver no que dava. Como o eixo passava rente ao forro do porão, Sérgio quase foi esmagado. Foi salvo por estar usando uma camiseta velha que rasgou, soltando-o ao chão.

Doutra feita, um apetitoso biribá jazia desafiante na ponta do mais alto galho da fruteira. Ninguém se encorajava a chegar lá, até o dia em que Serginho o descobriu. Agarrando-se nas finas ramagens de outros galhos ele foi-se aproximando, mais e mais, até que não suportando mais seu peso, o galho em que apoiava os pés quebrou e a queda foi inevitável. Embaixo, pontiagudos estrepes de uma roçada recente estavam de metro a metro e só Deus sabe como ele não foi transpassado por um deles.

Seus coleguinhas o arrastaram para dentro do riacho e arremessavam água fria em seu rosto:

– Sérgio, Sérgio!, gritava Nego, jogando mais água fria em seu rosto e sacudindo-o.

Desfalecido, com uma leve cor roxo-escura a modificar a aparência rosada do rosto, Serginho continuava quieto. Depois aspirou sofregamente e arregalou os olhos, tentando instintivamente agarrar-se a qualquer coisa que não o deixasse vadiar tanto naquele transe de tonteira.

– Mãe, mamãe – foram logo suas primeiras palavras.

Ah, mãe!, mãe dos poetas, Mãe de Jesus. Tanto já se falou de você, mas os únicos que realmente sabem de sua importância, jamais poderão fazê-lo. As crianças sabem o que é possuir ou não uma mãe: somente elas e mais ninguém.

Foi entregue logo depois nos braços de Maria, e não fosse a perícia do Dr. Nickman (um alemão que viera suspeitamente tentar a sorte no Brasil), por certo teria morrido. Durante toda a vida iria ressentir-se da queda e condescender-se às psicoses hitlerianas que acabaram por enviar, forçosamente, um sábio clínico àqueles rincões para salvar-lhe a vida.

Não muito longe disto, tentou com seus coleguinhas, esburacar uma enorme casa de tapiucabas e foi socorrido com mais de duzentas picadas das violentas vespas. Por pouco não entrou em choque e vários dias foram necessários para que a febre cedesse. Quantas loucuras!

Contudo, entre as mil travessuras e perigos por que passou no tempo de menino, talvez a pior foi a do dia em que despencou da laranjeira, ficando espetado na ponta de uma estaca que servia de tabique aos chiqueiros dos porcos. Como naquele tempo não havia – ou pelo menos não se usava no interior – qualquer tipo de antibiótico, a ferida arruinou.

Criança sempre limpa e bem arrumada, na roça, não é propriamente criança normal. O ser humano nasce, emporcalha-se por seis anos, submete-se por mais dez aos caprichos egoísticos dos pais, leva mais nove anos desforrando tudo o que lhe fizeram nos dezesseis anos passados. Em seguida se autodetermina por mais dez anos e depois se casa, tornando-se mais um na estúpida rotina da vida.

Serginho vivia empoeirado, com listras de carvão pelo rosto; as mãos sempre com a cor da terra entranhada na pele e nas unhas. Seus pés descalços com unhas arrancadas; as canelas com perebas e arranhões e o nariz sempre reluzindo pelos achaques do sol constante. Não é de admirar-se que logo as beronhas tivessem encontrado um lugar propício para as desovas. A criança vivia de um lado para outro, sempre se coçando, até que seu irmão Anoel resolveu verificar:

– Maaaãe!, – goelou ele, estupefato – o Serginho está com bicheira!

– Deixa de falar bobagens, seu doido.

– Tá sim, mãe, vem ver.

Ao ouvir qualquer coisa que significasse mexer naquela ferida, Sérgio disparava, mas foi esbarrado pelo grito autoritário do pai que acabava de entrar:

– Deixe-me ver isto, moleque.

– E mentira dele, pai.

– Deixe-me ver, já disse.

Assustado e temeroso, ele se aproximou, sungando a orla do calção e deixando exposto aquele buraco que a estaca fizera. Eram mesmo larvas vorazes que exigiriam muitas aplicações de creolina!

– Mariola!, esbravejou Antônio à sua mulher – que desmazelo é este? Venha ver como está o traseiro deste moleque.

– Deixe os bichos comerem a bunda dele. Vivo falando para ficar quieto e passar água oxigenada e limão, mas ele parece possuído pelo bicho-carpinteiro.

– Olha aqui moleque – fulminou-lhe o pai – se até não sarar eu o vir perambulando pelas capoeiras, destronco-lhe o pescoço, ouviu bem?

Sérgio baixou os olhos num sinal de assentimento, porque, tanto ele como o pai sabiam da caducidade de tais propósitos.

Mas, apesar do espírito irrequieto, não faltavam os momentos de reflexão. Sempre autoritário, detestava arrebanhar-se para os terços que todas as noites eram desfiados. Por esta razão, todos o ameaçavam com o diabo e embora não desse o braço a torcer, vivia assustado com qualquer coisa estranha que acontecesse.

O diabo é o mais pacato e complacente auxiliar das mães na criação de filhos traquinas. Se cobrasse pelas intervenções, certamente teria dinheiro para construir um inferno mais moderno e confortável, quem sabe, até com calor nuclear!

Estava ele um dia debruçado na janela da casa, olhando para a boleira frondosa que dava sombra aos animais e transeuntes. Entre meio a casa e a árvore passava o caminho que ligava o patrimônio Alto da Liberdade à vila de Marilândia. Só Deus sabe o que se passava naquela mente, nos seus quase oito anos. Perdia horas imaginando como seria o diabo e de tanto lhe afirmarem, já não sabia se podia contar com a ajuda de Deus. Ele era mesmo um caso perdido. Seu pai vivia dizendo que iria mandá-lo para a Marinha, que na época definia-se como um exílio forçado na solidão dos mares bravios e no convívio com vorazes tubarões. E imaginava: – “Meu Deus, por que nasci”?

Cavalgava esses pensamentos quando divisou ao longo do caminho alguns transeuntes com suas surradas roupas de trabalho, foices, machados, enxadões, facões e outras ferramentas nas costas. Eles foram aos poucos se transformando em fantasmagóricas criaturas, tomando demoníacas formas. E quando mais se aproximaram, pararam e fizeram menção de se dirigir para o lugar em que Serginho se encontrava. Aos gritos ele saiu correndo e quando encontrou o eterno abrigo das franjas de sua mãe, estava mais lívido que certos mármores polidos.

– Que foi filho?

– Nada mãe, foi nada não.

– Como nada, se está branco como batinga seca?

– Um monte de diabos, mãe. Mãe, estou com muito medo. Peça a eles para não me pegarem. Toca eles daqui.

– Ora filho, quantas vezes preciso repetir-lhe que o diabo não bole com crianças?

– Mas eu sou uma criança má, não sou mãe?

– Não meu filho, você não é não.

– Eu sei que sou, mãe.

– Você é apenas diferente, mas não mau. Há crianças quietas e outras rebeldes, mas todas são filhinhos queridos de Nossa Senhora. Papai do Céu não faz diferenças entre as crianças. Ele sabe porque umas são quietas e outras espiritadas. Você não tem culpa nenhuma de ser arredio, meu filho. Vá em frente e desculpe a gente por não ter paciência com você. Sabe, seu pai e eu gostamos muito, muito mesmo de você.

– Igual gostam do Emil e da Jacy?

– Igualzinho.

– E por que eles não apanham como eu

– Ora filho!, e dizendo isto, apertou-o contra o peito.

Nisso, batem palmas na frente da casa:

– Oi de casa!

Maria foi atender, com Serginho ainda agarrado na saia.

– A senhora poderia nos arranjar um pouco d’água?

E sempre agarrado à sua mãe, Serginho pensava:

– Como são covardes estes diabos. Pensam que estão me enganando!

 

CAPÍTULO 07

Aos oito anos Sérgio foi matriculado na escola. Era uma escolinha simples, mais sofrível e precária do que simples. Uma sala de tábuas serradas à mão com bancos e mesinhas acepilhadas e cujos sanitários, a própria natureza oferecia nos matos que se acercavam. A professora Zilda Mazzioli, era uma santa mulher que despertava antes de o dia amanhecer para que pudesse, além de ensinar o que sabia, evitar que alguma coisa faltasse aos seus seis filhos.

Apesar de irrequieto, Sérgio era extremamente preocupado com as lições, não se abstendo, no entanto, de qualquer tipo de brincadeira ou esporte.

Para os meninos da roça, se os animais não existissem, a vida não teria graça. E muito difícil viver em contato direto com eles e não criar uma forte empatia. Sérgio possuía um frango, o Sabugo, e um gato, o Mim. O primeiro era amigo inseparável do Rolete, o frango do seu irmão Emil.

Jamais se conseguiria, com palavras, retratar as cores da plumagem dos dois galináceos. Como aproximação, eu diria que o Sabugo tinha os tarsos e o bico comum da raça, mas a plumagem era de prata polida. As coberteiras das asas, assim como as remiges formavam pequenas listras argentinas que reluziam ao sol. O peito escurecia mais, mas também era de cor intermediária entre a prata polida e o cobre fosco. Sua crista purpúrea caía em reverência sobre o bico quase adunco e ostentava uma vaga lembrança dos capacetes dos guardas-suíços papais. Quando andava, no vaivém do pescoço e nos negaceios de seus passos, a plumagem era vista em furta-cor, intercalando nuanças maravilhosas. Rolete era tudo isto, apenas com a cor dourada prevalecendo. Eram irmãos.

Os dois conheciam perfeitamente seus donos e preferiam ficar na porta da cozinha esperando a comida fácil, a sacudir os pés no mato. E mais agradecidos ainda se sentiam quando desejando as bravas e prepotentes chocas e sendo estas agressivas e apáticas ao cio, viam-nas subjugadas nas mãos de seus protetores. Eram dois galináceos frajolas e mal-acostumados.

O Mim, há muito mudara seu cardápio. Nada de ratos ou de qualquer outro murídeo. Fartava-se com pratarrazes de polenta com leite e queijo e dormia até ser acordado pela fome. À noite enroscava-se nas cobertas de Sérgio e ronronava despreocupadamente. Quando imprensado ele miava, empurrava o menino com as patas, porém jamais usava suas afiadas unhas. Sérgio não podia ainda imaginar a vida sem o Mim e o Sabugo.

Um dia, porém, o Frederico (papagaio do Roberto) apareceu esfolado, desplumado, capenga… em estado de comiseração. Escoriações havia por todo o costado. Furioso, Roberto não conseguiu ir além das evidências e executou o único que lhe parecia suspeito, o Mim. Quando Serginho chegou para o jantar, logo sentiu falta daquelas costas felpudas e macias que roçagavam suas pernas à espera de alguma sobra.

– Mim, Mim, Mim – chamou ele sem que o gato aparecesse. Mãe – continuou ainda – a senhora viu o Mim?

– Não filho, acho que está caçando coelhos.

– Ele nunca sai para caçar a estas horas!

Nos olhos de todos, o suspense. Somente agora Roberto podia avaliar a extensão do que fizera. Como louco, Serginho chamava por seu bichano que, contudo, jamais atenderia. Ele era tão bonito: tinha a barriga branca e todo costado carijó. Por sobre os olhos azuis bem claros ostentava duas pintas negras e seus bigodes bem aparados e compridos completavam o toque felino e gracioso.

Já naquela tarde, o prato do menino ficou por comer. Muitos dias depois, já abatido e debilitado, Serginho caiu de cama. Os olhinhos azuis esmaeceram e nem mesmo os alentos de Nego e de toda patota, conseguiram devolver-lhe aquele gosto incrível pela vida. Foi então que sua mãe, muito preocupada, chamando Roberto para a varanda, ameaçou:

– Trate de arranjar outro gato para o menino. Disse a você que aquele gato não faria aquilo com seu papagaio. Nem o melro que lhe belisca a bunda ele comeu.

De sua cama, Serginho aguçou os ouvidos e sentindo o rebuliço, ergueu-se, na esperança de que o Mim tivesse retornado.

– A senhora sabe – retrucou Roberto – que só o matei porque pensei que tivesse sido ele. Como poderia imaginar que aquela gata sardenta viesse de tão longe?

– Devia sim. Quanto lhe pedi para averiguar direito?

– Ah, mãe! Agora já foi. Aquele gato não valia nada mesmo!

E tão distraidamente discutiam que não se deram conta de que Sérgio se levantara e estava a poucos passos deles. Seus olhinhos fulminaram Roberto e num misto de ódio e vingança ele balbuciou:

– Eu odeio você – e começou a chorar e convulsivamente.

O maior mal dos adultos é esquecer depressa que foram crianças! Ser criança é preocupar-se com uma tampinha de garrafa ou em molhar a cama; é rir de um palhaço simplório ou amuar-se porque no lugar do garfo, se põe uma colher; é sofrer como ninguém quando se lhe tira um bichinho tão simples e ingênuo como um gato malandro. Ser criança é, ainda, odiar os grandes pela rudeza e insensibilidade de não entenderem as belezas inseridas nas coisas mais simples da vida.

 

No interior tudo é diferente. As crianças improvisam tudo, imitam toda e qualquer brincadeira que seria executada pelas abastadas crianças das metrópoles, com brinquedos de alto valor. A bola por exemplo, era uma meia velha, cheia de capim seco, e as atiradeiras, improvisadas com espetos enfiados em frutas verdes (mangas ou laranjas) e que saíam como bólidos ao arremesso do jogador. De volta para casa, era o jogo de matança, realizado com bolinhas de gude, ou como diziam as crianças, com bolebas. Um arremessava sua bolinha a alguns metros de distância e o outro tentava esbarrá-la com sua bola. Seguidamente, era a vez do outro. Cada toque valia uma bolinha de gude. E assim, numa ferrenha encrenca de mais de uma hora, desfaziam o percurso de quase cinco quilômetros.

E o menino não se cansava de bater e apanhar todas as semanas, pois era extremamente teimoso e prepotente. Custava-lhe aceitar qualquer sugestão e reagia a qualquer ameaça de sua liderança.

Um dia, logo ao sair da sala de aula, desentendeu-se com Lico Sangália, um menino de seu tamanho, cuja incompatibilidade já havia sido notada há muito. Estobe, um rapagão que lhes dava dois tamanhos e que crescera repetindo a mesma série, só pensava em acirrar os ânimos e vibrava quando isto acontecia. Por isso, logo tratou de estender a mão entre os dois que se fitavam hostis e disse:

– Quem for homem, cuspa aqui.

A mãe de Serginho sempre ensinava que jamais se cospe nas pessoas e aquelas exortações vieram-lhe rápidas, o que não aconteceu com seu contendor. Ardilosamente, Estobe baixou a mão e a cuspinhada veio acertar em cheio o rosto de Sérgio. Nada poderia ser mais aviltante e imperdoável. Num ímpeto irrefreável de cólera ele atirou-se sobre Lico que, no afã da defesa, cravou-lhe as unhas na pereba do nariz, descascando-o de alto a baixo. E vendo o sangue escorrer, com medo, desvencilhou-se de seu inimigo e disparou estrada afora com Sérgio em seu encalço. Cadernos e livros iam ficando para trás e quando Lico transpôs a soleira da porta de sua casa, Serginho já quase o agarrava.

– Daqui você não me escapa – disse ele ofegante.

Mas quando Serginho tentou entrar, foi barrado pelo velho Sangália. Ele reagiu:

– Saia daí seu covarde.

– Vá embora menino. Deixe que do Lico cuido eu.

E dizendo isto foi desatando a correia da fivela e pouco som no mundo foi tão mavioso aos ouvidos de Sérgio como os gritos de horror que se misturavam à estridência das lambadas.

 

Tinha seu time de futebol, suas alianças com os melhores “gudeiros” e suas sociedades com os melhores garotos em cada jogo. Em qualquer deles que não se sobressaísse, logo conseguia uma sociedade, e nunca com sócios medíocres. Com isso, sua bolsa estava sempre cheia de bolinhas de gude e seu embornal, com as melhores pelotas de batinga, retiradas dos barrancos da valeta do tio Gin.

Apenas três crianças compunham a classe do quarto ano primário: Valquíria, Liza e ele.

Valquíria era uma menina pobre, preta-clara ou morena-escura, não saberia bem definir, filha de um marceneiro que conseguia atender toda região com apenas um facão, um machado, uma enxó e um cepilho rudimentar (uma lâmina cortante adaptada num cepo de pau); Liza, porém, era uma italianinha de cor rosada, sorriso lindo e corpo esbelto. Muito inteligente, logo chamou a atenção de Sérgio, que tanto pela beleza como por sua incurável mania de tirar partido, logo fez estrita amizade. Foi por causa dela que recebera um tabefe que o levara a nocaute, numa noite de maio.

A professora era dura, mas muito amiga. Durante o ano, o estudo era apertado e os castigos não menos humilhantes. Ora os alunos eram postos de joelhos sobre caroços de milho e com os braços abertos, ora levavam várias reguadas na palma da mão. Contudo, o pior dos castigos era mesmo ficar sem o recreio, com o qual sonhava todas as noites. Era nele que dia após dia, as revanches eram realizadas, no eterno tira-teima dos “De Cima” contra os “De Baixo”. A turma da rua possuía um zagueiro grandalhão, o Touro a Unha, que a simplicidade e cultura das crianças haviam simplificado para “Torraunha”. O zagueirão realmente não era fácil, pelo menos até o dia em que arrancou, com o dedão do pé, uma raiz da mangueira que havia emergido por causa das enxurradas.

Sem a unha e com o dedo parecendo-se com uma ponta de sabugo queimado, o intransponível zagueiro dos De Baixo ficara mais assustado e os De Cima não podiam perder tal oportunidade. Por isso o recreio era, agora, mais do que nunca, muito esperado.

Lembranças corriam pela mente de Sérgio no período escolar. Seu pai continuava inabalável em mandá-lo avir-se com os tubarões; sua mãe concordava com o cônego João de que o menino seria um bom padre; seus irmãos sempre achavam que esta não seria uma boa ideia, pois logo iria indispor-se com o papa e fundar uma nova religião.

Apesar de tudo ouvir e ser uma criança diferente, Sérgio possuía um coração mole e as lágrimas mais frouxas do mundo. Extremamente emocional, chorava diante de qualquer cena triste e não podia cerrar os olhos sem antes sentir na alma um grande arrependimento por todas suas peraltices. Dentro dele havia uma força muito grande, diante da qual sempre se sentia imbele.

Sabia apenas que se sentia feliz ao correr pelos campos, ao acordar com os mugidos das vacas ciumentas e ao ver o sol despontar lá em cima dos morros. Era feliz só por causa destas coisas.

 

CAPÍTULO 08

“Vale de regatos, de fruteiras, da valeta, de passarinhos, de peixes…  Mundo sem fumaça, sem ronco de motores, onde os “barbados” sentados pelos grossos galhos do jequitibá, vendo o sol sumindo, ecoavam pelas montanhas acústicas, ascendendo às nuvens, seus roncos horripilantes. Verde de esperança, sol de vida, cores de felicidade, cheiro de nós mesmos, sem a química dos perfumes. Pequeno vale que me acolhe, que me resguarda do mundo lá fora, que me faz feliz, porque cada gorjeio que me tange, é mais do que os presentes que nunca tive.

Meu pequeno mundo! Como gosto de você!

Não quero jamais conhecer outras coisas, outras plagas. Não deixe que eu os abandone, minha laranjeira, meu moinho, meu bem-te-vi. Mundo de mim, das belezas dos meus olhos, da terra dos meus passos, do aroma de minhas flores. Venha cá, mais perto de mim, bezerrinho maluco, que corre, corre sem parar, sem ter de ir a lugar algum. Não precisa dizer que é feliz, pois também eu o sou – todos nós somos. Como é bom ser feliz, sem saber o porquê!”

Quantos pensamentos corriam na cabeça daquele menino, sem saber que por trás de tudo, num complô irreversível, tramavam seus rumos e seu destino.

Terminava o período primário. Levado como folha ao vento, todos decidiam sobre sua vida, tanto que acabaram descobrindo naquela criança, uma vocação sacerdotal. Como um animal enjaulado, foi levado a Vitória, capital do Espírito Santo. Um ônibus velho e poeirento; a famosa Maria Fumaça, e em seguida, uma decrépita Kombi branca, completaram a melancólica entrega do menino deslumbrado à Praia Santa Helena.

Como são lúgubres os sons e as paisagens, quando se está infeliz. As pancadas cada vez mais acentuadas da caldeira, os apitos ensurdecedores – até as vacas da orla da via férrea – tudo lhe parecia uma matilha encarniçada, disputando seus destroços. Lá longe, além do horizonte, por detrás daquelas matas encobertas de azul-esbranquiçado, estava seu paraíso. É engraçado como o espírito se debate em não acompanhar o corpo em certas andanças. O corpo estava ali, mas os pensamentos ainda podiam se assentar sob a laranjeira do terreiro e se divertir com todo aquele vale, tão seu, só seu.

 

Enfim, Vitória, capital do Espírito Santo.

Tudo lhe era novidade: o tráfego intenso, o mar revolto, o bonde lento, os navios enormes, o jeito diferente das pessoas conversarem…

Os pais, às vezes, são duros na santa ignorância de desconhecer o que se passa na cabeça de uma criança da roça!

Haviam sido longos anos vividos em costumes diferentes, completamente diferentes.

Onde iria encontrar, pela manhã, um recanto de fogão a lenha para esquentar-se, cabeça entre os joelhos enlaçada pelos braços? De quem receberia aqueles bolinhos de fubá e o canecão de café com leite? De quem receberia permissão para, bem cedo, arrumar seu embornal de pelotas e sair como loucos atrás dos “grumarás”, das “sedinhas” e do “joão-bobo”?; onde encontraria ovos fresquinhos para as “gemadas”?; os queijos, as frutas, a liberdade enfim?

A tarde, para ele, caía tristonha, embora para as almas felizes não houvesse cenário mais deslumbrante. Mas aquele sol esmaecido, mergulhado na cripta das ondas, lá no alto-mar, refletia em seus raios, uma amargura tão forte, de tanto, não compatível em nenhures com um coraçãozinho ingênuo. Aquele barulho monótono e embalador das ondas desfazendo-se entre as pedras lá e cá, da praia Santa Helena, formava um mundo de mistérios e de tristezas. E aí, com os antebraços encravados no alambrado do topo do morro, olhos perdidos no horizonte, ouvidos surdos às algazarras dos companheiros, as lágrimas brotavam, uma a uma, até formar um pequeno filete de saudades a escorrer pela face juvenil, despolida pelas determinações dos adultos.
Ainda hoje, aqueles sapotizeiros das encostas devem se ressentir daquelas lágrimas doridas, e como acenos devem balouçar de saudade pelo pranto daquele menino.

Muitas tardes foram repetidas e muito tempo foi necessário para diminuir daquela mente, o achaque das angústias. Depois, passou um pouco e dias e dias se somaram para fazer de Sérgio, um aluno quase comum.

Como a cada um é dado o dever de desempenhar neste mundo uma função compatível com os desígnios de Deus, não tardou que apresentasse seus dotes de liderança em quase todo seminário. Era irrequieto e entusiasmado. Nos estudos, sempre um dos primeiros e nos esportes, um líder sem precedentes.

Nada mais imprevisível do que um animal acuado! E foi assim que Serginho venceu a timidez e todo tipo de dificuldades, tornando-se um líder incomum no seminário.

O estudo era bastante forçado e os padres seculares não podiam desperdiçar a fama que haviam angariado na Idade Média: a de serem a elite superior no mundo da cultura. Pe. João, seu pároco e incentivador, sempre acreditando na capacidade intelectual de uma criança criada livre no campo, não se mostrava surpreendido com os bons resultados alcançados por seu afilhado.

Era diretor de esportes, aprendia música, colecionava aracnídeos e coleópteros, lia tudo o que podia, dedicava-se às pescarias e caçadas, dirigia o precário laboratório fotográfico, escrevia histórias e mais histórias, deleitando-se com a vaga esperança de se tornar escritor.

Para esquecer seu mundo, tudo faria e, nada mais eficiente no tratamento de tais ressentimentos do que a falta de tempo para remoer o passado.

Foram anos duros no começo e pesarosos no final. Primeiro a adaptação e, finalmente, reconhecendo o desajuste estrutural do seminário com sua maneira ultrapassada de ser, a dura tarefa de dizer ao cônego João, que o abandonaria. Chorou muitas noites, na covardia comum de um menino que jamais se deleitou com o desapontamento de quem quer que fosse. Eram tantos que torciam por seu sacerdócio, que o estimulavam, que realmente não era fácil para uma personalidade embrionária, tomar uma decisão tão difícil.

Enfim, com a alma triste, chegou a hora de encarar o cônego João e dizer-lhe toda a verdade:

– Entre filho – disse o cônego no seu sotaque fanhoso e um tanto autoritário. Que boa notícia traz meu herói?

– A bênção padre – preambulou Sérgio, curvando a cabeça e beijando-lhe a mão.

– Não é preciso mais beijar esta mão imunda de pecados, meu filho.

– O senhor é um santo.

– Ora, ora!, onde aprendeu a mentir?

– Provavelmente, no seminário.

– Deus sabe como fazer a gente mentir, mas sente-se. Não, espere, venha cá pra dentro, na cozinha. Estou preparando um café.

– O senhor?

– Por quê? Acha que os padres não sabem fazer café?

– Bem…

– Deixa pra lá e vamos à cozinha.

– Mas padre…

– Venha, venha. Não há nada mais estimulante que um café quentinho depois da missa. Sabe, o vinho já não me parece sair das veias do Senhor, tal sabor de cebola que deixa na boca da gente. Você nunca saberá como era.

Sérgio queria dizer que aquilo, além de uma profecia, era ainda mais cruel pela iminência. O velho cônego estava feliz. Seus olhos brilhavam e ultimamente, sua necessidade de ser, parecia restringir-se àquele menino.

Sentaram, tomaram café com biscoitos de diversos sabores (as beatas nunca deixavam as latas vazias), falaram do projeto do pré­seminário, mas nunca dos estudos. Como uma raposa sutil, ele parecia antever o que seria aquela manhã em seus planos. Para Sérgio, dizer que não mais retornaria ao Seminário significava apunhalar aquele brilho dos olhos e toda aquela esperança que borbulhava no velho sacerdote. Mas tinha de ser.

– Padre, estou confuso!

Ele empurrou a xícara um pouco para frente, firmou as mãos na mesa e com os pés apoiado no chão, forçou a cadeira para trás, que escorregou com um som macio no assoalho encerado. Ergueu-se, respirou fundo e apoiou a mão direita na cabeça de Sérgio.

– Que foi, filho?

– Oh! Padre, não torne as coisas mais difíceis para mim!

– Acalme-se, acalme-se. Não há nada de terrível no que tem a me dizer, estou certo disso.

– Queria tanto ser um ministro de Deus, ainda que fosse apenas para fazê-lo feliz.

– O que foi que o fez desanimar?

– Não sei ao certo, mas lá, não me sinto feliz. Eu quero estar no meu pedacinho de terra, aqui nos campos, junto com minha família e com meus amigos.

– Você acha isto definitivo? Não será apenas um tempo de crise? Os caminhos de Deus são duros, pedregosos, espinhentos, mas é depois deles que se encontra a felicidade.

– Pare. Deus criou cada um para desempenhar um papel nesta vida. Nem todos nasceram para ser padres. Eu sinto que nasci para viver no campo, junto da Natureza e glorificar a Deus na simplicidade. Não nasci para ser ninguém importante, apenas para deixar meu sorriso de agradecimento por ter sido agraciado com a vida – como um cachorrinho que abana o rabo diante de seu dono.

– Você já pensou bem?

– Já. Não seria a um menino como eu que Deus iria chamar.

– Ora, por quê?

– Eu sou um menino mau.

– Quem lhe pôs isso na cabeça?

– Eu sei que sou. Todos falam isso. Não gosto de rezar. Minha alegria está em viver, só em viver. Se sinto vontade de correr, eu corro e sinto prazer em ouvir as batidas dos pés e o resfolegar de meus pulmões cansados. Ser feliz para mim é ver o sol nascer, a borboleta ziguezaguear contra o vento, o beija-flor pairar pela manhã diante de uma flor. Eu, padre, sou simplesmente um animal.

O padre parou como que fulminado pela revelação. Quanto pregar a pureza e a simplicidade, sem aperceber-se que ela estava ali, a alguns metros dele, depois daquelas paredes que cheiravam a livros velhos, missais, estolas e batinas suadas.

Quantas passagens bíblicas poderia o velho sacerdote lembrar-lhe a fim de instigá-lo à persistência e a abnegação: “Amarás ao Senhor teu Deus, de todo teu coração”. “Vai e anuncia o reino de Deus”. “Deixa que os mortos enterrem seus mortos, e tu vai, e anuncia o reino de Deus”. “…buscai e achareis”; “Buscai logo primeiro o reino de Deus e a sua justiça”. “Em verdade vos digo que ninguém há, que, urna vez que deixou pelo reino de Deus a casa, ou os pais, ou os irmãos, ou a mulher, ou os filhos… Logo neste mundo não receba muito mais e no século futuro a vida eterna”. Mas adiantaria? E depois de tudo, ninguém melhor do que ele sabia também que muitos são os caminhos de Deus, Seus negaceios, Suas artimanhas, Seus jogos maliciosos, Suas linhas tortas…

Cabisbaixo, pensativo, o velho sacerdote ainda tentou argumentar, mas logo, apercebendo-se de tudo, calou-se. Quando Sérgio transpôs a cancela da canônica, foi como se para trás tivesse deixado uma pesada carga acumulada há mais de um ano.

Em casa, a notícia não trouxe tristezas, pois a única que torcia por sua vocação era sua mãe que, mesmo assim, sempre pregava aos céus que o destituísse de tal influência, não fosse para tornar-se um verdadeiro condutor de almas pelos caminhos da salvação.

CAPÍTULO 09

É no meio das grandes tristezas que as pequenas alegrias se agigantam. Do tempo em que quase tudo era tristeza, solidão, desapego, adaptação, vida diferente, Sérgio guardava lembranças marcantes de momentos saudosos. Seu irmão Emil, que também estudava na capital e morava na casa de um tio na Vila Garrido, quase todo fim de semana ia visitá-lo no internato. Muitos foram os domingos em que Sérgio ficara atracado ao alambrado que dava vistas para a Praia do Canto, no afã de ver subindo pela encosta, aquela figura inconfundível do irmão; é que seu jeito típico de andar era singular, não bastasse a relutância pela eterna e única calça de linho azul-claro e a camisa listrada de um pano sóbrio e barato. O mano trazia-lhe cocadinhas de leite e ele não sabia mesmo com qual dos dois mais sonhava. A alimentação do seminário era por demais sóbria. Noventa por cento das vezes, ovos cozidos na água fervente de um grande tacho, arroz com muitas pedrinhas, feijão e carne moída, quase sempre dividida meio a meio com sebo.

Há certas coisas que as palavras, por mais bem-dispostas que sejam, não conseguem dizer bem e plenamente o que nos vai na alma. Bastaria apenas que alguém conseguisse dizer da felicidade daqueles encontros tão simples, para que toda humanidade parasse de buscá-la na mesquinhez da ostentação e da ganância. A felicidade é qualquer coisa que chega plenamente em certas ocasiões da vida das pessoas, podendo ser mesmo num encontro mensal entre dois meninos da roça que foram enviados para estudar longe da família.

Ficavam horas a fio confabulando e fazendo planos para as férias. Com toda aquela alegria incontida podiam reconhecer quão significantes são as pequenas coisas para as pessoas que não exigem tanto da vida.

– Você recebeu carta lá de casa? – perguntava sempre Serginho, com os olhos tentando, de uma só vez, olhar dos rotos sapatos ao cabelo repartido ao meio de Emil.
– Não, eles quase não escrevem. Coitados, têm dificuldades para isso.
– Anoel prometeu levar a gente para caçar em Linhares. Será que vai mudar de ideia?
– Não, ele nunca muda. E um irmão e tanto! E…. e lá na casa de titio, como estão?
– São malucos como nós quando reunidos. Falam alto, brigam nos campos de futebol, nos jogos de carta…. Eles até penduraram um quadro na parede, bem na entrada da sala, onde está escrito em italiano: “In questa casa siamo tutti nervosi”.

– É divertido muitos falarem alto ao mesmo tempo, não é Emil? Cada um tenta se fazer ouvir falando cada vez mais alto. Sabe, estou com muita saudade de nossa casa!
– Eu também, mas é preciso estudar.
– Eu vou voltar Emil. Já falei com o padre João Guilherme. Vou só terminar o ano.
– É verdade?
– Emil, por que a gente tem de estudar?
– Para a vida tornar-se mais fácil depois, penso eu.
– Mas conheço tantas pessoas formadas que trabalham dia e noite!
– Bem, talvez seja para serem felizes mais tarde.
– Emil, você é feliz?
– Depende do que você entende por felicidade.
– Pra mim é estar alegre, livre, satisfeito e fazer aquilo que sinto vontade de fazer. Você não pensa assim?
– É, confesso que sim.
– Pois é, eu só encontro isto lá em minha casa, lá nos nossos campos.
– A gente quando é criança não sabe discernir bem as coisas. Por isso os grandes têm o dever de pensar por nós, oferecendo-nos o melhor caminho.
– Eles pensam como se fôssemos um deles. Sabe, é como se a gente visse um gato morrendo de fome e lhe oferecesse uma travessa cheia de salada de tomates com palmito.
Houve um silêncio consternador, cortado apenas pelo sibilo dos ventos e pelo chuá das ondas que se desfaziam nas areias da praia Santa Helena. Ali naquele pequeno mirante, olhando angustiados para a imensidão do Atlântico, eles pareciam perdidos naquele mundo incomensurável. Talvez seja por isto que os potros, os pintinhos e toda vida infantil sem raciocínio, eriçam os rabos, batem as asas e correm em cada manhã. Acho que é assim que Deus tenta nos mostrar o que é, de fato, felicidade.

A despedida era sempre dolorosa, para os dois. Seguravam-se pelas mãos, como se Emil não quisesse ir e Sérgio não desejasse ficar. Eram os únicos que haviam sido levados aos estudos. Emil, mais velho, inteligente e abnegado, sempre soubera ver no irmãozinho, uma criatura desprotegida e extremamente apegada ao mundo em que fora criado. Sérgio admirava-o e tinha nele a razão única de um pouco de esperanças de reencontrar a alegria de viver.

A família era muito pobre, por isso, enquanto Sérgio frequentava um seminário gratuito, Emil ficava na casa de um tio (José Gave) em Vila Garrido e estudava a duras penas. No bolso, nunca um tostão. Em Marilândia, seus irmãos lutavam pela sobrevivência.

Quanta vontade de tomar um sorvete e quanto apetite sufocado ao passar famintos pelas lanchonetes, onde grupos de adolescentes devoravam sanduíches e guloseimas. Por isso, Sérgio jamais esqueceria o dia em que o cônego Acácio o levou junto aos demais seminaristas para visitar a Fábrica Garoto que, à época, deixava à disposição dos visitantes, quantos bombons desejassem comer. Ninguém podia levar. O único que Sérgio tentou separar para o seu irmão, custou-lhe quase a expulsão do seminário. O diretor espiritual fez-lhe crer que aquele ato fora um pecado medonho e que, sem o devido arrependimento, o levaria à terrível geena. Por muito tempo, muitos padres conseguiram incutir nas coisas simples, muita malícia e desassossego. Não faziam por mal. Também eles estavam passando para frente o que lhes ensinaram como certo. Nos seminários mostravam mais um Deus justo e duro do que bom e misericordioso. Ao invés de ensinar que uma mulher de biquíni também era filha de Deus e não tinha culpa de ser bonita e atraente, ensinava-se o pecado pelos pensamentos que poderia fazer germinar nos olhos dos jovens. Os estudantes viviam na porta do diretor espiritual, incomodando-o com crimes que iam de olhares furtivos às meninas que cortavam a praia Santa Helena, ao minuto de distração na hora dos estudos.

Eram pequenas coisas que, remontadas pela estrutura primitiva da época, criavam naquelas cabecinhas inocentes, a monstruosidade da prevaricação.
Os homens que têm a função de orientar não deviam esquecer o tempo em que foram pequenos. Foi este desleixo que deixou infiltrar a malícia e extraiu dos corações a graça de Deus.
Jamais Sérgio esqueceria o dia em que seu irmão Vilbur, depois de receber o pagamento pela venda do café, comprou-lhe um par de meias amarelas, de nylon. Seus olhos brilhavam enquanto seus dedos apalpavam aquela maravilha tecnológica. Ninguém conseguiu fazer Sérgio mais feliz do que Vilbur.
No primeiro domingo Sérgio foi para o riacho, sentou-se sobre o batedor de roupas, mergulhou os pés na água, deixou-os por algum tempo de molho e depois, com bucha e sabão, esfregou até que pôde sentir que eles já eram dignos das meias. Elas vinham embrulhadas em papel crepom e o crepom faz as cores mais belas e os tecidos mais perfeitos. Os santos devem ter invejado aquelas meias nos primeiros domingos. Era só nelas que Sérgio pensava. Vigiava-as como um acará a seus ovos na toca da valeta.

Ah!, tempo meu, que ainda posso tocar e sentir – pensava ele. Um dia Deus fez muitas crianças e depois resolveu fazer o tempo parar. Elas não cresceram e hoje, tantos são os anjos dos céus quantas foram as crianças que Deus não deixou crescer naquele tempo!

 

CAPÍTULO 10

Na roça, um menino quando estuda fora é sempre visto com admiração. Contudo, se esta roça for refúgio de imigrantes italianos e o menino estiver num seminário, então qualquer adjetivo, por mais bem empregado que seja, ficará aquém da realidade. Mas se o herói mais tarde desistir, será tido como desertor, e maus olhos recairão sobre ele. Entretanto, certo ou errado, aplaudido ou crucificado, Sérgio abandonaria a ideia de ser padre secular.

Depois dos naturais transtornos de transferência e dos reclames dos Lorenzones inconformados (eles eram muito religiosos e sempre torciam por aqueles que tentavam o sacerdócio), Sérgio voltou a Colatina para continuar seus estudos no Colégio Estadual Conde de Linhares.
Ainda não seria desta vez que voltaria a seu vale, a correr com os bezerrinhos e a escalar os dosséis das mangueiras que se acotovelavam no seguimento da vala que desviava parte das águas do córrego Santo Hilário para a roda d’água de Antônio.

Implantado na margem esquerda do rio Doce, o colégio carregava sobre si a responsabilidade cultural de mais de cinquenta por cento dos jovens da região norte do Espírito Santo. Era dirigido pelo professor Telmo da Mota Costa, um homem semicalvo, alto, de voz firme, cor morena, dir-se-ia, também fisicamente, lapidado para o cargo. Sua presença sempre representava o fim de qualquer problema, tanto para os alunos como para os professores. Era assessorado por um disciplinário gordo, o Gutto, que vivia pelos corredores, incansavelmente, como um gorila enjaulado que não se fadiga de caminhar em vão de um lado para outro de sua cafua.

Entre outros havia também o professor Sílvio Vitali, exímio professor de Língua Portuguesa, que não se conformava em nenhures com qualquer falha não compatível com as recomendações da série. Foi com ele que Sérgio aprendera a não dizer: despois, nois, galfo, solvete, mim dá…
Quantas vezes ficava ele atônito fitando uma prova, completamente em transe, como se pudesse sentir os algozes do idioma.

– Tropa de asnos – explodia ele – que afirmem que dois e dois são cinco, mas pelo amor de Deus não assassinem a própria língua.
Encafurnados como gatos covardes, os alunos ficavam em tal silêncio que quase se podia ouvir a ira fluir daquela cabeça miúda e despontada do professor. Quantas vezes ele estraçalhava uma prova e deixava a sala de aula em atitude de desagravo à Língua.
Um dia, porém, entre os quarenta e quatro alunos, ele separou um trabalho e, embora com desdém, torcendo os lábios finos e desdenhosos, desabafou:
– Este é o menos ruim.

O trabalho era o de Sérgio que, deste dia em diante, tomou a decisão de não decepcionar tanto o zeloso professor que tanto se esforçava para o “elogio”. Foi a maneira que encontrou para retribuir a crítica/elogio. Havia também o Galeno, um nordestino intempestivo que não hesitava em chamar no muque qualquer brutamonte que tentasse transtornar o silêncio da sala de aula. Era professor de História e, mais tarde, já aposentado mudou-se para Linhares, uma cidade que distava apenas 70 km de Colatina, desempenhando, então, a função jurídica de juiz.

Muito influenciou também os colegas: Natalino Pissinati, Raimundo Sala e Valmir da Cruz. Eram criaturas completamente diferentes, o que atraía sempre a atenção de quem estivesse por perto.
Telmo, o diretor, mais tarde foi dirigir uma revenda de carros da Volkswagen; Gutto, morreu de câncer; Sílvio foi gerenciar uma casa de crédito na Capital; Galeno engajou na promotoria pública e o Valmir, tornou-se exímio anarquista e Deus sabe o que mais. Raimundo e Natalino não se sabe por aonde andam. O certo é que na lembrança de Sérgio essas pessoas viveriam para sempre.
Seu pai dizia sempre que o espinho nasce com a ponta. Era uma filosofia de grande amplitude, em que sempre afirmava ser inútil para alguns, tentar substituir ou modificar a carga genética.

O Valmir, por exemplo, era um autêntico exemplo da filosofia do meu velho. Era um moço retaco, sem escrúpulos de espécie alguma. Sérgio sofrera bastante com o “Pão Tatu”, como era conhecido o baixote Valmir. Naquele tempo, era de uso comum uma espécie de “enê” chamado gomex, que firmava os cabelos por um dia inteiro; um perfeito laquê em sua década de uso. Sérgio possuía cabelos lisos e finos e não fugindo à boa moda do “tempo da brilhantina”, vivia com a cabeça besuntada de gomex. Pão Tatu não tardou em descobrir que, passando-se a mão de trás para a frente, os cabelos ficavam hirtos e o proprietário numa situação bastante vexatória. E o gomex daquele tempo, seco, não era fácil! Não bastasse, Valmir soltava “traques” nas salas de aula, carregava estrume nos solados dos sapatos a fim de afetar as supersensíveis narinas do sempre irritado professor de Português. O senhor Gutto, disciplinário incansável, vivia levando e trazendo o Pão Tatu pelos corredores, sem jamais conseguir qualquer melhora no comportamento do baixote.

Certa vez, num jogo de bola-militar, intencionalmente, fulminou o turco Raflê Salume com um pulo chamado “granada”, levando-o ao hospital em estado de coma. Mais adiante, num treinamento do Tiro de Guerra 108, em campo aberto, detonou um tiro de festim na bunda de um companheiro que rastejava à sua frente, obrigando o sargento Pilro a persegui-lo por mais de uma hora pelos morros íngremes do velho Vitali.

Ele só não se dava bem era com um velho esclerosado professor de música, que criara a bandinha Furiosa de Colatina. O velho, como um neurótico de guerra, entrava na sala de aula, cabisbaixo e compenetrado e ficava a repicar a batuta na tábua da mesa. Mantinha-se assim até que, ao primeiro barulhinho, ainda que fosse de um lápis caindo no assoalho, berrava a todo pulmão:
– Gutto, Gutto! Leve aquele patriota para a secretaria!
O senhor Gutto nunca procurou saber de quem se tratava e o Valmir jamais esperou que outro se levantasse em seu lugar. Todo ano ficava reprovado em música por falta de assistência às aulas. Sorte dos aprovados, pois castigo maior não receberiam os reprovados do que ter de aturar, por mais um ano, o renitente baixote.
O Pão Tatu daria um livro de mil páginas, pois em cada dia de sua vida deixaria para trás uma lista de “aprontos” e confusões propícias a qualquer leitor ávido de suspense. Não fugindo à regra geral, certa feita um colega disse ter lido num noticiário policial, que ele estava envolvido em furtos e assaltos. Não estranhei, porque pessoas assim só terminam celebrando missa ou cometendo crimes pelo mundo: nunca serão pessoas normais.

 

CAPÍTULO 11
Das mãos de um Deus severo, aos deleites de um anjo mau liberalíssimo. O Seminário Nossa Senhora da Penha, da capital espírito-santense, pouco lhe havia trazido de novo ou de bom. Apenas havia aumentado seus escrúpulos e o ausentado dos familiares. Jamais poderia imaginar que por detrás de todas as coisas pairasse a figura, apregoadamente bondosa de Deus e que, apesar de bom e complacente, tantas angústias trouxera-lhe ao coração. Houve um tempo em que jamais parou para pensar, houve um tempo que por certo nem pensava, mas corria, sorria e era feliz… aparentemente sem Deus e com toda certeza, sem o diabo. Não seria à toa que Jesus disse que havia vindo a este mundo para a alegria e condenação de muita gente! Sérgio tinha sido muito feliz, mas agora percebia que teria de viver das recordações daquele tempo, chupando os bagaços de felicidade que fora seu alimento da infância.

A felicidade plena chega em algum tempo, mas nem tanto dura em nossa vida. Por isso, tem-se de ser sábio para vivê-la plenamente e depois, de suas recordações.
Quantas vezes, perdido naquela solidão de vida, fitava os barcos dos pescadores em alto mar, vindo de mansinho para a praia. Abaixo, sempre ao entardecer, os ganidos de um cão qualquer que muito se assemelhava ao seu inseparável Chapocão. Jamais pudera imaginar que aqueles lugares e aquelas lembranças de sua terra natal tivessem marcados tão profundamente sua alma. Estavam ali nele, tão vivos que poderia fechar os olhos e ouvir o tropear ruidoso das cavalgaduras que corriam e escoiceavam o próprio vento, numa descarga de força e prazer de causar inveja. Podia ver também no braço do poste, o joão-de-barro tremelicando as asas, enquanto sua companheira penetrava no labirintoso domicílio; sentir o vento frio da manhã bater-lhe no rosto como se fosse o sopro de sua mãe nos dias quentes de verão. Sentia que se não o perturbassem poderia ter para si, a folclórica sorte do profeta Elias, de cavalgar o céu com o coração a pulsar.

Algumas lágrimas de saudade escorriam e pelas suas faces, enquanto em na mente ficava marcado um pequeno trauma que iria se revelar em sonhos durante toda sua vida. Do seminário, muita frustração por ter conseguido substituir o seu Deus pai por outro exigente, duro e quase impossível de agradar.
Que bom seria se o seu conceito de felicidade pudesse passar incólume pelo mundo e vencer a tradição de que se precisa ser sábio para avaliá-lo. Sentia inveja do cavalinho esguio, que de orelhas alteadas e cabeça transversa, transcrevia na silhueta de seu perfil contra o horizonte, os traços imaginários da pureza e da força. Ele mesmo já fora como aquele cavalinho que era feliz sem precisar rezar, pensar, abster-se…. sem saber de nada, apenas que vivia, que tinha pernas para correr e um mundo inteiro para pisar. Agora não havia mais como mudar. Em sua cabeça, um Deus, e Nele, toda norma capaz de subtrair a alegria pura viver. Haveria de trabalhar arduamente para esquecer que aprendera ser infeliz.

Devido a tantos preconceitos, quando desembarcou na cidade de Colatina e chegou na residência de seu primo Albino, teve de suportar muitas chacotas. Suas calças compridas feitas dom pano de colchão e as camisas esgarçadas pelo uso, davam-lhe um toque inconfundível de autêntico matuto. A adaptação foi dura. Tinha de lavar os pratos, varrer a casa pela manhã e encerar toda a residência aos sábados, enquanto seus primos arreliavam, ora por despertar-lhes do sono, ora pela poeira que se elevava. Aquele inato orgulho espezinhado, massacrado, pisoteado, teria um dia que ressurgir para se ostentar como um crime santo aos olhos daquele que olha, não o ato em si, mas as razões que o fizeram acontecer.

Mas o tempo, a rua, a convivência com gente de todos os tipos, o colégio, enfim, a vida encarregar-se-ia de fazê-lo crer que, ou entrava no sistema, ou sucumbiria diante dele. Se antes, um olhar furtivo levava-o ao confessionário, agora, nem os pensamentos mais levianos sobrecarregavam sua consciência. Totalmente perdido entre o emaranhado de pregações, vivia ele em cada momento de abstração, olhando o infinito em busca de uma resposta que pudesse justificar a razão de estar ali, vivo, naquele lugar.

Já quase não havia tempo mais para aqueles pensamentos duros de saudade da velhinha suada, recurvada sob o peso de um tronco de sucanga. A vida agora era dura e imprevisível. Importava sobreviver, desfrutar o presente e esquecer o passado. E é mesmo no auge das dores, no sofrimento indizível da alma e na expectativa do medo iminente que o fraco desconhece o perigo e liberta a potencialidade que tem latente dentro de si.

Jamais haverá uma dedução perfeita na vida daquele que não viveu, mas apenas testemunhou. Por isso, somente uma criança da roça pode sentir no coração o que realmente é uma vida simples do interior. Esta vida viveu Sérgio, crescendo e labutando, mas tendo em si o carisma autoritário e traquina que o marcaria para sempre. Era incompleto o dia em que não praticasse uma arte ou fugisse das correadas de seu pai, que por sinal, mais ameaçava do que agia. Até então, seus seis irmãos eram pacatos observadores da vida, lutando e trabalhando para obter da terra o prazer de uma vida sóbria.

Ah, tempo que talvez jamais retorne! Todos reunidos em torno da mesa, sentados em bancos de caxeta, com cachorros e gatos roçagando-lhes as pernas e a mãe arreliando nervosa; galinhas cacarejando lá fora e dando gritos histéricos e revoltantes contra os frangos afoitos e insaciáveis; porcos grunhindo cá e acolá ou mascando irritantemente bagaços de cana que dependuravam da moenda; cavalos relinchando e escoiceando-se por causa da égua baia que vinha lá do vizinho (entre as coisas ocultas entre o céu e a terra, o sadismo daquela égua baia); vacas mugindo enciumadas por causa dos filhotes desgarrados que não se cansavam de correr pelas restritas pastarias; psitacídeos desafinados que matraqueavam no poleiro, impacientes ao cheiro do angu que saía do fogão…

Ali todos falavam a um só tempo e cada um podia claramente traduzir o som do outro e entender-lhe as necessidades. Por isso, Serginho ficava, às vezes, estupefato porque a pá de polenta assobiava no costado do Biriba, sem que nada, aparentemente, fizesse. Maria entendia os animais e não hesitava castigá-los, caso as exigências fossem descabidas.

Por que Deus fez o tempo e tendo-o feito escondeu a chave? Quem não tem saudade de uma família reunida, na alegria das coisas simples? Depois a gente cresce, fica adulto. A terra foge de nossos pés e, nas lágrimas dos pais, um filho navega pelas torrentes incertas do mundo. Mais um pouco e ele também sentirá na carne, o corte profundo de ver desmantelada a razão única de um tempo de felicidade. Rodízio eterno e cruel de quem nasceu e teve a desdita de crescer!

Seu irmão mais velho, depois de anos de inadaptação ao serviço pesado, fora aprender odontologia prática. Era de estatura média e gostava muito de caçar, pescar e jogar futebol. Em todas três sobressaía-se admiravelmente, sendo um colecionador exímio de troféus na cinegética. Chamava-se Anoel.

Depois vinha Jaci, muito sarcástica e que só se sentia bem diante de alguma malvadeza. Não admitia nunca ser vencida e se o fosse, desforraria, nem que fosse um ano depois. Era de um coração boníssimo, tão bom que sempre apresentava crédito no balanço de suas malcriações.

O terceiro, Roberto, moreno e estouvado, puxara os familiares da mãe, não sendo perito em nenhum esporte, mas destemido no trabalho e nas encrencas. No futebol, postavam-no sempre na cabeça da área, onde desarrumava, desequilibrava ou mesmo eliminava as pretensões dos atacantes mais agressivos. Um autêntico “vaca-brava” e se canela mais dura já houve, a história não registrou.

O quarto era o econômico dos filhos. Detestava colégios e herdara do pai a filosofia de que o trabalho deve apenas ser realizado conforme as exigências do estômago. Preferia economizar a ter de trabalhar para luxos e confortos.

O quinto, de índole mansa, fora escolhido para estudar. Inteligente e abnegado, logo chegou à medicina, onde se definiu como respeitado pediatra.

Vinha a seguir, o Serginho, como era conhecido pelos familiares, que embora amigo, era extremamente autoritário e orgulhoso, fazendo disto uma necessidade de sua vida. Ainda precoce, manobrava seus amiguinhos. No colégio (pois dos filhos fora o segundo a estudar) sempre liderava, impondo sobre si a direção dos esportes e das agremiações.

A caçulinha chamava-se Iaci. Era inteligentíssima, mas sozinha não conseguiu nada e quis o destino que ninguém a levasse pelas mãos. Cantava maravilhosamente e gostava de passar as tardes dedilhando o violão e alegrando o coração de Antônio, seu pai, que não se cansava de ouvi-la.

Sua voz maviosa enchia os ares como os sons melancólicos de Iara e podia ser muito triste para os vencidos, mas de indescritível beleza para os otimistas e vencedores.

Todos sentavam em frente ao terreiro, vendo a luz tênue da lua em cada cripta, dando um toque de real singeleza. Os pirilampos, piscando suas lanternas iam e vinham como soldados desnorteados sob uma saraivada de tiros. O céu não tinha fumaça e o ar cheirava à Natureza. A rainha-da-noite, conforme os ventos, perfumava o ar de tal forma que se tinha a nítida impressão de um extrato divino derramado. Tudo ali era tão simples e bonito que Sérgio podia entender porque Deus lhe fugira quando de lá o tiraram – lá era a morada Dele.

Depois a Lua subia muito e todos se recolhiam. Os grilos, corujas, curiangos e toda sorte incontável de insetos noctívagos insurgiam lá fora, com bulícios sorrateiros de quem tem que se alimentar sem ser digerido. E todos iam fechando os olhos até que o mundo silenciava, para tornar-se redivivo naqueles sonhos, cuja única malícia era fazer xixi nas águas puras dos igarapés e, às vezes, manchar o lençol limpinho, limpinho.

 

CAPÍTULO 12
Colatina, em 1953, era a cidade mais progressista e importante do Espírito Santo, depois da capital. Encravada nas margens do barrento Rio Doce, dava guarida a imigrantes, principalmente italianos e alemães. Sempre fora uma cidade difícil, porque não havia espaço plano suficiente nas margens para um vilarejo. Os próprios Maias teriam dificuldades ali.

Por isso, em todas as chuvas fortes os lamaçais e dejetos dos morros, entupiam as estreitas ruas de lama, exigindo semanas de trabalho dos garis para que tudo voltasse ao normal.

Não obstante esses infortúnios, vivia ainda a idade crítica de todas as cidades que passam por uma fase de reestruturação e desenvolvimento. Aventureiros lançam-se sobre elas como abutres sobre carniça e também, como eles, não se preocupam sequer em retirar os dejetos do caminho. Exploram a terra e os autóctones, extorquem-lhe o dinheiro e o sossego e depois desertam, levando a carne e deixando os ossos.

Dezenas de carros volantes não permitiam um segundo de silêncio.

De qualquer forma, era nela que se encontrava o mínimo necessário, econômica e culturalmente. Ali, Sérgio continuava seus estudos. Levava tudo muito a sério e raros eram os meses em que cedia seu primeiro lugar a um colega mais esforçado. Sua alma simples, despreparada para tão rude e drástica transformação, vivia uma grande incerteza. Debruçado sobre o peitoril da janela, vendo abaixo o rio Doce, a ponte extática como uma centopeia gigante fossilizada, as pessoas estranhas…. sua mente quase que infantil, ressentia-se da ausência daquelas mãos calejadas a afagar seus cabelos. A saudade vinha forte, doída, arrancando lágrimas que vagueavam luzidias ao vento, indo se chocar contra as pedras que ostentavam o prédio em que morava, misturando-se a seguir com as águas turvas do rio Doce.

Nenhuma dor foi maior que aquela saudade, nenhuma privação poderá ser mais criminosa que aquela. A única coisa que desejava era caçar de estilingue, correr atrás das rabilongas, mergulhar no poço do Liberdade, montar o Queimado, roubar a puina das despensas, correr atrás da bolinha de meia… A única coisa que desejava era viver…. e de maneira intensa.

Por que a minhoca nasce e mergulha na terra? Por que as estrelas-do-mar se arrastam pelo fundo dos oceanos? Por que, enfim, com exceção do homem, todos os animais nascem e seguem as diretrizes pré-traçadas da vida, fazendo exatamente aquilo que desejam? Por que não ele, podia escolher sua própria maneira de ser e buscar o que lhe era bom?

“Considerai como crescem os lírios do campo; eles não trabalham nem fiam; digo-vos mais, que nem Salomão em toda sua glória se cobriu jamais como um destes.”

Não podia entender porque desperdiçar tanta felicidade, quando, num futuro incerto, ela poderia mais não ser possível. Para que entender equações, regra de três composta, saber da vida e da filosofia de Platão, do regime político do Brasil, se não comportavam em si, a beleza e a paz de uma açucena?

Se no pomar estavam as mangas, os sapotis, as goiabas, as pitangas, os cajás, as laranjas, enfim, se a natureza presenteava tudo, para que o resto? “Olhai para os corvos, que não semeiam, nem segam, nem têm despensa, nem celeiro, e Deus, contudo os sustenta.”

Daria a própria vida para estar pelos campos, mas não estava. E quando seu rosto sulcado pelas lágrimas se virava para a cama, então a noite caía mais triste ainda, porque triste estava sua alma e não a noite em si. De barriga para cima, entrelaçava as mãos no cogote e ficava a pensar, com os olhos cravados na laje mofada e quase sumida nas teias de aranha.

O que seria de si?

Padre João Guilherme, o vigário de Marilândia, ainda não havia desistido de fazer daquele menino travesso, um sacerdote Secular. Sérgio gostava muito dele e vibrava ao vê-lo perder a calma diante das beatas que não se afastavam do confessionário, sempre com a consciência pesada por não ter recitado com muita fé, uma única ave-maria do rosário.

Em seu coração puro, irrequieto e juvenil, sempre a mesma pergunta:

– Que será de mim?

Quando o ano terminou, orgulhosamente, de boletim nas mãos, pôde sentir a alegria de um ano bem vivido, mesclado a satisfação indizível de voltar para casa. Roberto e Vilbur vieram buscá-lo. Traziam montarias. Chovia bastante, mas nada, nada mesmo poderia empanar aquela satisfação de voltar ao convívio dos seus. Foi quase um dia inteiro de viagem para que aqueles vinte e cinco quilômetros se desfizessem, com dilacerantes dores pela barriga e nádegas, arrumando as velhas malas que ameaçavam se desintegrar a qualquer momento, ante a insistência das chuvas.

Por fim, a antiga boleira do tio Luís, a valeta do moinho, as mangueiras e jaqueiras mais adiante. Perto delas, a velha casa, sombria e quase tristonha. Mais um pouco, a figura querida de sua mãe que despontava na varanda, avental sujo, lenço na cabeça, mãos calejadas e alegria maternal na face sofrida.

– Oh, meu filho! …
– Mamãe, quanta saudade!

Olhos esfregados ligeiramente nos ombros, olhos turvos pelas lágrimas de felicidade – olhos que quase saíam das órbitas, buscando tudo e todos. No céu não deverá existir felicidade e contentamento maiores. Só no coração ingênuo de um menino do interior, tais sentimentos podem atingir a plenitude da felicidade.
Como era bom estar ali novamente, como advindo de um mundo extraterreno. Sua mãe estava ali, lenço na cabeça, movimentos espertos, mais resistente que um nódulo de jataí, esparramando milho para as criações, chutando um vira-latas sonolento que lhe interpunha o caminho ou esbravejando contra a choca renitente que insistia na incubação das próprias palhas do balaio. Era uma figura estranha, inimitável, destas que, como Halley, só aparecem de tempo em tempo. Com a destreza e exatidão de uma cabra montês revirava o mundo, sem jamais conhecer a doçura de um colchão em plena luz do dia.

O Papa bem podia lembrar de canonizar santas como minha mãe! Lá em cima, no rol das hierarquias do merecimento, só Deus sabe onde se encontram os venerandos das ladainhas.
Maria nascera num vale frio em que a água que despencava das bicas cortava como gumes afiados de navalhas os lombos desnudos. Também ela tivera um tempo em que fora feliz, que saltava como um animalzinho recém-nascido. Quantas vezes contava histórias de pescarias, do sabor das uvas brancas, das topadas em achas de lenha, das mexeriqueiras e romãs…

Naquele mundo onde as águas pulavam de pedra em pedra, perdendo por instante a beleza das medusas graciosas, para crescer em brancas espumas e logo em seguida clarear e repetir tudo outra vez; onde a neblina caía em certas manhãs como nevascas de Navarone, enregelando as orelhas a ponto de insensibilizá-las; onde regatos, fruteiras e tudo de mais puro, mesclavam-se deixando no ar a infalibilidade do equilíbrio natural.

– Mãe – disse ele enquanto a fitava com a mesma admiração com que um incrédulo veria Deus refulgir por entre as nuvens – a senhora não se cansa?
– Talvez, no dia em que eu fizer mais do que faço. A tantos anos realizo estas mesmas coisas, que doente ficaria se delas fosse separada. Tudo é automático. Tem vez que me apanho no meio do caminho com a lata de lavagem nas mãos sem sequer ter imaginado antes, que os porcos grunhiam de fome.
– Sabe mãe, a senhora bem podia deixar eu ficar em casa para ajudá-la.
– Não é preciso filho. Você irá estudar, ser um grande homem.
– Que significa ser grande para a senhora?
– Bem, o mundo está cheio de homens grandes e famosos.
– Ora, mãe! Não é o conhecimento que torna as pessoas grandes. A grandeza não está no aparato e nas verborreias, mas na firmeza e retidão de vida. Por isso, mais admiráveis são os humildes aos olhos de Deus do que toda plêiade que parece enobrecer o mundo. Eu queria ficar.
– Filho, não me peça o que não posso dar.
Sérgio sem mais argumentos, falou entre sons confusos de quem quer suspirar e falar ao mesmo tempo:
– Vocês jamais irão entender que a vida passa muito rápido e que não são donos da felicidade dos filhos.
Não ouvindo direito, Maria perguntou:
– O quê?
– Nada não, mãe, eu apenas pensei alto.

 

CAPÍTULO 13
Ano de 1958. Concomitante à conclusão do curso ginasial, a idade do serviço militar. A vida não era fácil, mormente para um adolescente que, além dos problemas financeiros, ainda não possuía qualquer desenvoltura em relação ao mundo em que vivia. Seus pais continuavam trabalhando na lavoura e a única coisa que lhe faltava era o dinheiro, imprescindível para quem vive na cidade. Por isso Sérgio conseguiu trabalho num laboratório de prótese dentária. Não tardou para que uma séria reação alérgica o acometesse deixando-o fungando pelos cantos, sempre com as narinas obstruídas. Isto valeu-lhe a alcunha de quati e um dia, já enervado com tais sequelas, tomou a mangueira do compressor em carga total, ajustou-a numa das narinas e resolveu abrir caminho à força e a seu jeito: caiu desmaiado e aquele zunir nos ouvidos, misturados aos gritos de socorro de seus companheiros, soaram-lhe, na forçada aquiescência, como um réquiem triste e fúnebre. Não sei por que, aos incautos e imbecis, exige-se um preço mais elevado para aprender.

Ganhava o necessário para sustentar-se, trabalhando das oito às dezessete horas. No entanto, o trabalho e os estudos não o sacrificavam tanto quanto a responsabilidade e o medo de perder o horário dos exercícios do Tiro de Guerra 108, das quatro às seis horas.

Chegava do colégio às 23h e conciliava o primeiro sono, profundo e mortal, onde nem os mais altos estalidos rompiam a barreira inexpugnável do cansaço. Seu espírito inconformado evolava-se para os campos queridos de seu berço natal. E, se acordasse, por qualquer motivo, não mais dormia, pois, o sargento Pilro não acolhia sequer atestados excedentes a três faltas, ainda que por fraturas expostas, tifo ou tuberculose.
Nada houve mais atordoante em sua vida, e se certamente houvesse bem aplicado suas angústias e sofrimentos, a dívida de seus pecados já estaria sanada. Entretanto, muito longe andava seus nobres pensamentos. Preferia maldizer, reclamar e indispor-se com as leis estúpidas do País. Não se conformava com a imbecilidade de levantar as quatro horas, todos os santos dias, apenas para assegurar o salário dos sargentos.

Poucas coisas são mais ilógicas do que os gastos militares. Eles amesquinham a capacidade de raciocínio da raça humana e subvertem o brio de havermos sido feitos inteligentes. Quantas noites, com o corpo moído, a mente atordoada, ficava debruçado na janela, esperando que o ponteiro pachorrento do relógio desse mais uma ou duas voltas, para, enfim, descer as escadarias. Hoje, com despertadores comuns e telefônicos à disposição, aquela vida seria maravilhosa e fácil, ante o fulgor da juventude que sobrava.

Foi um ano difícil sob todos os aspectos, mesmo porque, novamente em sua alma embaralhavam-se as lutas e as dúvidas internas. A ausência de uma fé inabalável sempre fora uma constante em seus propósitos.

Não podia iludir-se ante a convicção de que nenhum ser humano conseguiu, até hoje, crer realmente numa vida eterna e consequentemente, em Deus. A única certeza que povoa os corações privilegiados ou predestinados é uma dúvida menos impiedosa quanto a existência ou não de um Ser Supremo. Isto atesta o desleixo, o pouco caso e a apatia com que os seres humanos tratam as coisas do além. Qual o crente convicto da existência da alma eterna e de um Deus justo, que se arriscaria a uma falha venial? Qual o idiota que ousaria trocar este lampejo de existência por uma eternidade, tendo consciência e certeza da imortalidade da alma? Apenas a dúvida povoa os corações das mais imperfeitas criaturas que Deus pôs neste mundo!

Era crer ou não crer. Os prazeres da vida não se afinavam com as mortificações e abstinências necessárias à felicidade depois desta vida. Se Deus existia, se se acreditasse convictamente neste dogma, nada mais justificaria a não dedicação plena às causas do Eterno. E naquela angustiante dúvida de fé, não se podia arriscar a própria salvação. Mais valia abster-se dos prazeres da vida do que pôr em jogo a eternidade. Nada de fluir apenas: tinha de tomar um partido, uma decisão. “O que não é comigo, é contra mim; e o que não ajunta comigo, desperdiça”.

No meio daquela mocidade eufórica (deuses juvenis que não dependiam e pareciam jamais precisar de alguém) ouvia-se de tudo. A sujeira de cada alma, o descaso ao pudor, o incômodo de um Deus Sóbrio…. tudo era motivo de grandes desilusões. E Sérgio pensava, pensava em oração, rezava em trabalho e dormia penitenciando-se.

Que podia fazer pelo mundo e por si mesmo? Olhos fixos num ponto qualquer, corpo escarrapachado pela insegurança da vida, estirado a fio comprido sobre o lençol enroscado, Sérgio viajava pela azulescência do infinito, sem que jamais seu espírito encontrasse entre o vácuo e a terra firme, a figura palpável do Eterno. Dúvida maior não poderia existir a quem andasse na escuridão, através de pináculos rodeados de precipícios e dragões, à procura de um lugar seguro ou de uma saída digna. E rezava: “Ó Deus de minhas dúvidas, Senhor de minha insegurança, desça de onde se encima e vem acalmar a relutância de meu espírito. A tanto Lhe peço, a tanto Seu silêncio torna-me inseguro e triste. Tire-me destas charnecas onde cavouco e semeio, sem que ressurja dessa aridez inculta, o renovo da fé. Leve-me às terras férteis para que esta minúscula e incerta semente possa compensar-se de suas fraquezas e germinar na crença, segura de que existe algo maior que norteia e dirige os obstinados”.

Foi quando cansado de pensar, resolveu, como num jogo de dados, tomar o caminho que, se não o certo, ao menos o que confirmasse sua boa vontade. Bem mais sensato abster-se dos prazeres desta vida do que arriscar-se à ira de Deus. Se Deus não existisse, perderia apenas esta vida. “Grande fé!”

A notícia explodiu como uma bomba. Familiares e amigos, entre chacotas e piadas, divertiram-se a valer. Ainda hoje, guarda consigo uma caneta de ouro prometida por seu cunhado, se estivesse falando sério. Não foi por mera coincidência que Saulo de Tarso deslumbrou o mundo quando decidiu ouvir a voz do Senhor e mudar o rumo de suas investidas. Ainda hoje o caminho de Damasco deve segredar-se o libelo daquele propósito e os pedregulhos inertes orgulharem-se de haver testemunhado a conversão de um dos mais nobres santos da Igreja. De qualquer forma não se era de estranhar que daquele adolescente ávido de viver, emergissem sentimentos de abnegação e enclausuramento espiritual. Em liberdade, temia a repressão divina; se preso, lamentava a falta de liberdade. Era ele a mais precisa definição de angústia e insegurança.

O que lhe preocupava muito era sua índole autoritária e irrequieta –dotes quase contrários às humildade e submissão. E assim, depois de distribuir com seus irmãos tudo o que juntara com seu trabalho, numa manhã chuvosa e das raramente frias, tomou novamente a “Maria-fumaça” e retornou ao velho seminário da Capital.

 

CAPÍTULO 14

Aquela reprise de alguns anos atrás trazia consigo um sabor menos acre do que o experimentado quando ainda criança. Apesar de ainda conservar um grande apego à família e ao seu mundo, conseguia dominar-se e entender que a vida era quase um castigo para aqueles que a recebem e têm de mantê-la com dignidade e submissão.

Cônego Acácio, um sacerdote italiano de baixa estatura e conflitantemente bondoso e autoritário; Pe. Antônio Wolkers, um sacerdote de origem alemã, recém-ordenado; Pe. Aníbal, o único brasileiro que compunha o quadro de professores; Cônego Maurício, diretor espiritual e mais outros leigos, formavam a plêiade que se dispunha à formação dos seminaristas.

O mesmo alambrado, as mesmas salas de aula, o mar eterno que se aplainava logo abaixo, os bambuzais, os sapotizeiros; bem, quase nada havia mudado. Até mesmo os professores não haviam mudado muito. Apenas o padre Aníbal evoluíra para pior, pois não se cansava de alvejar os desengonçados abutres que passeavam pela praia do Suá à cata dos peixes deteriorados que os pescadores lançavam fora. Era uma arma calibre 22, de precisão incrível e que sozinha, causava mais malefícios aos urubus do que toda falta de peste por um ano inteiro. Apoiado na balaustrada de segurança, hostil em sua indiferença aos sagrados princípios da Ecologia, com sua batina preta acenando ante as lufadas que vinham em impulsões descompassadas do mar, Pe. Aníbal transformava-se numa figura bruxuleante, ainda mais quando hostilizava criaturas como os abutres famintos.

Era interessante notar como no espírito daquele seminário, o respeito à vida dos seres irracionais ficava aquém de um olhar furtivo à menina graciosa que, com toda garra de sua feminilidade, passeava pelas areias da praia. Não existia o certo nem o errado, como também hoje acontece, mas sim, leis quaisquer, feitas pelos homens e, como tal, impregnadas de defeitos e de interesses. Muito cedo Sérgio teria de descobrir o motivo de o terem metido naquela confusão de princípios ou então quedar-se-ia lasso num mundo de controvérsias. A verdade estava nele e não no todo de interesse. Ou se libertava da brida dos legisladores, ou teria de eliminar-se no cumprimento daquelas coisas que outros, em algum tempo, acharam como certas. No lugar das antigas lágrimas de saudade, agora o martírio cruciante das dúvidas o visitava, ali, perante o mesmo Atlântico, incomensurável, azulescente, quase infinito.

Era bem menos triste o uivado do cão insatisfeito lá de um praiano qualquer; o sibilo dos ventos incansáveis e o marulhar daquelas ondas que tanto o haviam feito sofrer. Agora podia olhar as coisas de frente, com naturalidade. Logo fez amizades e procurou desvencilhar-se de qualquer momento que o tornasse solitário. Com isso amenizava a saudade e a tristeza.

O primeiro mês de aula foi terrível. Do latim, mal sabia declinar a palavra rosa, tanto insistira nela o relutante professor Herculano do colégio estadual donde viera. Do grego nunca ouvira falar e quanto ao canto Gregoriano, puxa!, achava de um mau gosto próprio daqueles que insistem em fazer parar o tempo. Só mesmo a mente farta do século VI poderia encontrar naquela monotonia sonolenta, a patética maviosidade de apiedar os espíritos infrenes. Num dia dos mais frios de Roma, certamente um diácono qualquer flagrou no banheiro, um papa feliz a cantarolar e, para sempre estaria criada, a mais perfeita máquina da sonolência – o canto Gregoriano. Mais felizes foram Orfeu e o nosso uirapuru, ambos partilhando a doce lenda de amansar as feras, silenciar as aves, estagnar o curso das águas dos rios e fazer as árvores dançarem.

Mas, decisão era decisão e assim, juntamente com alguns colegas que também não estavam lá muito afinados com o sistema, vivia pelas sombras dos arvoredos, estudando e aprendendo. Sem nunca confirmar a existência da alma e sempre duvidando da presença peremptória de Deus, Sérgio ia levando a vida, esperando e desafiando a própria causa intrínseca de suas perplexidades. Um dia tudo teria de elucidar-se. Se Deus não quisesse chispar seu fulgor entre as nuvens, nem coruscar na pedra as marcas convincentes dos mandamentos, que liberasse, ao menos, um coágulo auspicioso que fizesse cessar em seu cérebro, a incansável procura de Tomé.

Não havia sido agraciado com o dom gratuito e fácil de acreditar e por isso mesmo tinha de pagar o preço de tal abstenção, numa luta quase inglória de, empiricamente, buscar sua própria verdade.

Deus deveria estar em qualquer lugar, senão em todos. Um dia enfadar-se-ia daquela brincadeira de esconder e então se apresentaria normalmente, conforme a simplicidade contundente de sua sabedoria.

E numa das tardes, quando mais fortes retornavam suas dúvidas, Sérgio retirou uma folha de caderno, esquivou-se entre os arbustos que dividiam a praia da pedra que sustentava o colégio e numa angústia martirizante, desabafou:

“Senhor, por que se esconde de mim? Já estou aprendendo as sinuosidades de seus caminhos, mas enfastia-me tão longa caminhada. Não brinque tanto comigo, pois O procuro há tanto tempo. Sei que está em algum lugar ou sentado mesmo aqui do meu lado. Fala-me disto a imensidão das galáxias e a miudeza das coisas infinitesimais. Tenho deixado o lar, andado pelo mundo, caminhado e caminhado. Deixei para trás tantas coisas que gostaria de fazer, subjuguei-me à essas incertezas no afã de sua misericórdia. Deus de minhas dúvidas, acuso-Lhe de durão e sinto­O desapiedado de minhas incongruências. Preciso da força da fé para firmar meus passos e abrir meu sorriso com a convicção de quem realmente está no caminho certo.

Ouço o ruído e a beleza da vida em todos os recantos: nas ondas que se estraçalham nas pedras; nas gaivotas que pairam sobre as ondas; na vida intensa que pulula em cada espaço da Terra. Vejo a singeleza da natureza alegre e pareço não partilhar desta Sua criação. Não quero ser um estranho às coisas belas que fez. Faz-me parte de Sua criação e não deixe de abrir esta cabeça dura para meter dentro dela um pouquinho mais de fé. Já não sei para aonde caminhar, em que moita fustigá-Lo. São milhares, tantas que minha vida não daria para todas vasculhar. Meus pais, minha vila, minha juventude…”

A caneta parou. Todo o ruído da vida cessou. Olhos fixos em um ponto qualquer como que em êxtase, fitava agora um casulo que se rompia pachorrentamente. Seus pensamentos esvaíram-se. Lentamente de dentro daquele invólucro, uma borboleta multicor foi-se desdobrando e tomando forma. Ficou por algum tempo agarrada à casca de onde nascera e depois voou para um ramo mais adiante. Sempre roçagando as asas, vislumbrada pelos ventos, pelo verde, pela imensidão toda sua. Liberdade total, felicidade plena. E era, apenas, uma borboleta.

Sérgio amarfanhou o papel entre os dedos e caminhou até a praia. Num gesto impensado, atirou-o às ondas e os ventos o levaram mar adentro. Ele olhou aquele papelzinho que foi desaparecendo na cripta das ondas. Depois, sem que ele mesmo percebesse balbuciou:

– Estarei sempre esperando por Sua resposta, Senhor!

Cabisbaixo e atordoado retomou o caminho de vota enquanto, para trás, o som enlanguescido das ondas ia diminuindo. Tristeza e angústia entravam-lhe na alma, como se alma fosse coisa capaz de querer saber os porquês, mantendo-se na vacuidade do nada certo. Subitamente assentiu que se odiava pela simples lógica de saber que precisava “meter o dedo no lado aberto” para crer.

Quando o impulso dos braços fê-lo ultrapassar o último tope, já a campainha ressoava e os companheiros enfileiravam-se para o jantar.

– Que bom seria – imaginava – se minha fome fosse apenas a de toda esta gente!

CAPÍTULO 15

Terminado o curso clássico, Sérgio rumou para o Seminário Maior do Calafate, na cidade de Belo Horizonte – MG. Deixava o barulho do mar, os ventos fortes, a praia, a eterna visão das caravelas e iria para os horizontes, realmente belos, da capital mineira.

Os panoramas que se descortinavam ante seus olhos iam se transformando em marcas profundas entranhando-lhes na alma. Por causa da lentidão da locomotiva, a impressão de distância aumentava. Sérgio tinha tempo de sobra para trilhar os passos do Senhor.

Quando o trem entrou em Belo Horizonte foi como se lhe houvessem toldado os olhos e rodado numa brincadeira de “cobra-cega”. Sozinho, jamais sairia dali.

Havia na estação um seminarista do curso de Teologia (Getúlio) com uma velha perua e, percebendo a inexperiência do rapaz, logo se dispôs a tomar as iniciativas. Como um autômato, Sérgio ia fazendo o que lhe era ordenado. Em seus pensamentos, aquela dor nostálgica dos escravos africanos.

Por ruas e avenidas o carro foi passando até chegar ao Calafate, onde se podia ver o seminário: um extenso casarão de dois andares que se fechava num quadrado. Centenas de rapazes estavam espalhados por todos os recantos do grande seminário, cada um se ocupando com futilidades, ou mesmo parados, meditabundos.

A primeira impressão de Sérgio foi de haver se misturado a um batalhão que lutava pelas mesmas causas: a procura de Deus. Em êxtase retrocedeu ao passado: sua infância e sua juventude. O resto de esperança parecia ter acabado naquele momento. Nem do Deus que parecia tê-lo chamado, pôde sentir o conforto. Alguns seminaristas aproximaram-se e tentaram muitas formas de deixá-lo à vontade. Mas tudo era tão diferente! A perda de seu mundo deixara marcas indeléveis em seu coração.

Por fim, foi-lhe mostrado o quarto. Entrou, pôs a mala sobre a cama e como um animal espantado, examinou toda a dependência. Depois arrumou as coisas e saiu para tomar banho. Em cada passo sobrevinha-lhe a saudade do que havia deixado para trás.

– Meu Deus, por que tem de ser assim? Deu-nos um universo e puseram-me numa gaiola. Como gostaria de estar em minha terra, na simplicidade dos simples, correndo pelos campos, amando a vida com toda força do amor de minha alma. Como é duro segui-lo na escuridão, Senhor! Em algum lugar, um som lentamente orquestrado, mais triste do que a própria nostalgia, invadia o espaço, entalhando na alma de Sérgio, para sempre, a saudade forte do passado. Sem dúvidas, Deus jamais olvidaria aquela dor, pois o preço do desprendimento era muito grande, incompatível mesmo à força de um rapaz apaixonado pela liberdade. Ninguém, ninguém mesmo poderá em qualquer tempo descrever o que vai no coração de um homem ao ser-lhe incutida a obrigatoriedade de abster-se da própria felicidade.

Logo no outro dia começou a vida rotineira do seminário, com o despertar às quatro horas de uma gélida manhã. Uma sirene, não tão estridente, ressoava por todos os recantos e logo o silêncio da madrugada era cortado por rangeres de portas, sons de chinelos arrastados, batidas de escovas nas torneiras, gargarejos e tosses crônicas esparsas. Era como se a vida brotasse em cada ponto. Dali, descia-se para a capela: oração da manhã, missa e comunhão. Aquela música gregoriana, monótona e esquisita, transportava Sérgio ainda mais longe da realidade.

Às seis horas, o café da manhã. Quinhentas e sessenta bocas famintas, destruindo toda e qualquer coisa que ousasse cair sobre o bandejão. O silêncio só era rompido pelo tilintar de centenas de copos e talheres e Sérgio não conseguia entender o porquê da incomunicabilidade daquele momento. “Puxa, como tudo ali era diferente”!

Como que levado pelas ondas ou pelo vento, fluía entre a multidão, repetindo palavras ou imitando os gestos do decurião. Seguiam-se quinze minutos de recreio para reorganizar os livros e cadernos do dia.

Veio a primeira aula – Filosofia. Pe. Hélio, um homem calvo, alto, com a lividez de um cadáver, magro bastante para fazer crer em constantes abstinências e que não mostrava os dentes sequer ao dentista, ministrava-a. Falava durante três horas ininterruptas sobre epistemologia, teoria de valores, gnosiologia, crítica, ética, valores, sistemática, normas, conhecimento… Apesar de ter vindo de um estabelecimento com idênticas diretrizes, Sérgio novamente abalroou-se com matérias desconhecidas como o Aramaico e a Liturgia. Isto fez com que nos primeiros meses os seminaristas de berço o deixassem para trás, perdido e confuso diante de tantos termos estranhos. Seu desespero seria ainda maior, quando percebesse que entre quase seiscentos rapazes, difícil lhe seria separar vinte e dois para uma partida de futebol. Aquela atração pelo futebol, música popular, coleção de insetos… teriam de ser substituídos.

O seminário estava plantado numa área satisfatória de terras, repleta de fruteiras e hortaliças, onde a Natureza parecia resistir à paradoxal proximidade de uma cidade tão grande quanto Belo Horizonte. Milhares de borboletas, aranhas e pássaros de muitas espécies, lembravam Marilândia e amenizavam a dor. Havia um colibri que não se cansava de piar sobre o eucalipto, cujos galhos debruçavam-se até o peitoril da janela. Jamais uma alma conturbada, ouviu piados mais tristes.

No descanso do almoço, enquanto a maioria desfrutava da sesta a que tinha direito, Sérgio saía pelos derredores, à cata de aracnídeos, iniciando uma coleção que seria mais tarde destruída inescrupulosamente pelo disciplinário.

Às treze horas reiniciavam as aulas. Seriam interrompidas três horas depois quando sobravam duas horas para o banho e o jantar. Dali ia-se direto para os corredores, onde em grupos acima de dois, rezava-se o terço em voz alta. Depois para a sala de estudos e dali, já às vinte e uma horas, para a oração da noite. Não resta dúvidas que ao se deitarem, todos dormiam e que até mesmo aquela saudade impertinente não tinha mais vaga para aninhar-se no coração de Sérgio. Era o que se podia chamar de ocupação plena. Entretanto, Sérgio logo encontrou tempo para o violão, o futebol e as coleções. Isto desagradava sobremaneira aos padres, e a coisa chegou a tal ponto que, por estes motivos, o reitor chamou-o e disse em tom áspero:

– Soube que anda tocando violão na hora da sesta.

– É verdade. Há algum mal nisto?

– Aqui é um lugar de silêncio, meditação e oração.

– Mas toco baixinho. Creio não estar incomodando ninguém.

– Está sim. Aqui há um regulamento e feito para ser observado.

– Lamento.

– E bom mesmo que lamente, pois está se tornando a vergonha dos seminaristas espírito-santenses.

E Sérgio, cada vez mais ficava sem entender o que se pretendia ali dentro daquele estabelecimento. Faziam-no acreditar na maldade e criavam-na nas coisas mais simples. Com o tempo sua consciência começou a ficar perturbada, mesmo praticando os atos mais normais da vida. Naquele lugar onde a paz devia pairar em cada coração, as filas ao confessionário esticavam-se, demonstrando claramente que ali se fabricavam pecados com coisas simples que em nenhures desagradavam ao Senhor. A estrutura pobre e arcaica, modelava as pessoas ou pelo menos, tentava.

Sérgio conseguiu filtrar-se destes enganos e lutou muito para usufruir das coisas inócuas do mundo. Tornou-se o diretor de esportes, o fotógrafo, o jogador, o violonista, o pesquisador e em pouco tempo, o segundo aluno do colégio. Mas apesar de tudo, era mal visto pelo reitor que o achava por demais atirado e audaz. E a coisa piorou ainda mais quando numa tarde de outubro, numa jogada forçada no futebol, teve uma hérnia estrangulada e foi levado numa ambulância para o Hospital das Freiras. Um acadêmico residente, muito brincalhão, simpático e incapacitado, encarregou-se de deixá-lo por sessenta dias inativo. Emagreceu tanto que, nas férias, nem seus próprios familiares o reconheceram. Nenhuma visita era permitida, e isto marcaria Sérgio por infindáveis dias, fazendo temer a ortodoxia de sua religião. Quando finalmente deixou o hospital, as férias estavam próximas e ele se foi para nunca mais voltar àquele lugar. Havia recebido a mais lúcida e dura das lições quanto ao comportamento religioso. Saberia para o resto da vida que entre a teoria e a vida real há diferenças fundamentais. As igrejas, sem exceção, sobrevivem pela esperteza de alguns, em detrimento dos leais, humildes e sinceros que a conservam e dignificam. Por isto mesmo é que muitos são os chamados e poucos os escolhidos. Somente os chamados desempenham com presteza e alegria as suas funções; os demais atêm-se a ela, como fonte de prestígio e sobrevivência. Não se é de estranhar que haja pelo mundo tantos sábios teóricos e poucos homens de fé.

De qualquer forma aprendera muito, principalmente para a vida. Os princípios fundamentais da pessoa humana ficariam bem gravados, para servir-lhe nos momentos mais cruciais da vida. Soube perdoar inclusive a negação do reconhecimento de seus estudos. Voltou decepcionado com os homens, mas um pouquinho mais forte na fé. Diante de tantas coisas erradas, se Deus não existisse, haveríamos de criá-lo, a fim de que a justiça seja praticada.

O ano de 1961 foi um período conturbado, mas que também passou. Aquele condicionamento a que lhe prostraram os Seculares haveria de ater-se a seus impulsos de leigo normal. Sentia-se um peixe fora d’água, uma pessoa que se via jogado no mundo totalmente despreparado.

 

Quando a tarde caía, ficava na janela do quarto a admirar o pôr-do-sol, um dos mais lindos do Espírito Santo. (Seus familiares haviam mudado de Marilândia-ES para Linhares-ES). Como que mergulhando a montante do rio Doce, o sol ia desaparecendo num rastro luminoso. Não saberia dizer quantas vezes chorou. Olhar perdido no infinito, pensamentos confusos. Havia deixado o seminário, mas não se livrara da influência. O que aprendera lá era alguma coisa cujo impacto com a vida real era por demais contrastante.

Seus companheiros de agora, pareciam-lhe seres diferentes. As conversas, o modo de agir, o comportamento, tudo era tão adverso que mal podia enquadrar-se. Ficava enrubescido se o professor dissesse seu nome na sala de aula e não sabia como, se alguém o elogiasse. Os companheiros aproveitavam-se da situação, sem se importar com seus sentimentos.

Daquele seminário ultrapassado, só recebera o diploma de angústia. O que aprendera, o que o fizeram crer é que nos altos dos céus imperava um Deus exigente, duro e inacessível. A rigorosa disciplina católica medieval ali se tornava rediviva, numa ressurreição deprimente e inoportuna. Sua consciência melindrosa vivia incriminando-o. Pensava: “Se ela é a voz de Deus, como pôde alguém criar essa voz em mim? Como os simples homens puderam fazer ressoar no meu espírito, uma voz tão impiedosa que tanto contrasta com o senso de bondade de Deus? ”

Indevidamente sofria. Em total desequilíbrio emocional, vivia sua alma. Levantava ainda bem cedo. Dava para flagrar o despontar do sol, talvez tão belo quanto seu declínio. Ia para o trabalho e pelo menos lá esquecia a vida, seus problemas, suas angústias. À noite, o colégio – uma escola liberal que contrastava com o rígido regime de onde viera. Era ali, sempre ali, que acumulava matéria para martirizar-se em cada momento de abstração.

Nas horas de folga descia para o botequim do Sr. Ângelo (um velho italiano, conterrâneo de seu pai, que o acolhera) a fim de diminuir as despesas do pensionato. Em troca dos seus préstimos, o velho não cobrava parte da pensão. Era um quiosque onde toda sorte de maus elementos frequentava. As meretrizes ali faziam ponto e as cenas que Sérgio presenciava eram qualquer coisa terrível que feria os princípios que lhe incutiram no seminário.

Se há pouco tempo batia à porta do confessor pela fatalidade de um olhar esquivo às mocinhas de biquíni que trafegavam pela praia, que dizer agora com tantas cenas lascivas explícitas? E as mercenárias do amor, com suas saias suspensas, blusas decotadas, seios flácidos e semblantes tristes, propunham-se à morbidez animal dos homens que ali frequentavam, como se isto pudesse, mais e mais, sufocar a desdita das injustiças sociais.

As “mocinhas” elogiavam seus olhos e ele, cabisbaixo e enrubescido, baixava-os sem saber o que dizer ou como retribuir. Seus dias começavam bem antes de o sol nascer e terminavam depois de muitas horas da noite reinante.

E tal era a correria e as responsabilidades, que não podia sequer dar-se o prazer da vida normal de um adolescente de sua idade. A religião transtornava-o no refreamento cruel do sexo, enquanto todo seu ser vibrava em desejo.

Pelo Natal, Sérgio falou com seu irmão mais velho que gostaria de mudar, mas que não sabia como falar com o pai. Anoel arrumou tudo e no ano seguinte, ele se mudou para a residência de um velho alegre e brincalhão. Além disso, não mais a exigência do exército. A vida melhorara muito.

Pôde dedicar-se mais aos estudos e aos esportes. Ingressou numa agremiação estudantil (U.A.C.E.C.) e logo enturmou-se com os jovens de sua idade. Participou do campeonato estadual e fez parte do plantel vice-campeão do Estado. A vida daquele menino da roça, parecia ter mudado muito, embora em seu interior, emergisse em cada gesto, a consciência falha de uma estúpida estruturação.

Na casa dos Scarpatts ele pode refletir mais sobre a vida e o futuro. Dividindo o quarto com seu próprio irmão, três anos mais velho que ele, dele foi herdando toda fibra e abnegação de que um moço precisa para enfrentar o mundo. O quarto ficava no segundo andar e dava vistas para a estação de ferro e arrabaldes, onde milhares de rolinhas disputavam as sementes de colonião. Sérgio ficava horas e horas (quando podia), olhando os gatos malandros que se esgueiravam à cata de um passarinho incauto. Um velho e costumeiro bando de anus-pretos, eram os eternos estraga-prazeres dos felinos famintos. Mal divisavam a figura esguia do renitente bichano, numa balbúrdia onomatopeica, avisavam aos companheiros do perigo. O felino quando se via flagrado, espreguiçava-se e disfarçadamente debandava.

Seu irmão Emil, sempre fora um exemplo vivo e digno de responsabilidade e abnegação. Vivia de livros na mão, estudando tudo quanto pudesse. Aquela companhia, sempre compreensiva e amiga, amenizava muito aquela dor traumatizante do seminário. O dinheiro continuava escasso e não dava para a passagem de ônibus. Era tão pouco, mas eles não o tinham. A vontade louca de ver os pais e irmãos deixava-os tristes e, sempre compreensivo, Emil decidia:

– Só temos três cruzeiros e não dá para duas passagens. Você vai e eu fico.

– Puxa, mano, isto não é justo!

– Que entende você de justiça?

– Bem…

– A justiça é cega” – completou Emil.

– Não, acho que não é cega, mas que apenas fecha os olhos quando há interesse.

– Olha mano, justiça é algo inexplicável, porque nenhum homem poderá, ainda que munido da melhor das intenções, aplicá-la plenamente. Ela implica tantos fatores, que somente Deus e capaz de consumá-la. Como você julgaria, por exemplo, um ladrão desempregado que tem a incumbência de sustentar a mulher e os filhos? Todo ladrão deve ser preso e castigado, mas é justo prendê-lo e deixar famintas, crianças e mulher?

– Mano, obrigado por confundir-me também nisto. Acrescentarei mais este capítulo ao meu mundo de incertezas.

Emil sorriu, mas nos seus olhos via-se a dor e a vontade indizível de ir também. Apesar de mais novo, Sérgio reconhecia tudo aquilo e perguntava-se a cada minuto:

– Para que serve a vida? Para que viemos a este mundo? Qual a força que nos induz a deixar a certeza em busca das incertezas? Ah, os meus amigos! O Juarez, o Neno, o Nego, o Zequinha, o Capirda…. Todos estão lá pelos campos, escalando os morros, pulando ainda no Poção do Liberdade… Meu Deus! Que não daria eu para ser um deles! Vida, quem é você?

– Vida – responde seu próprio raciocínio – é a coisa mais simples possível, porém, impossível de ser entendida ou definida. Quantos, de Cristo a Marx, já tentaram fazer dela uma passagem de prazer e felicidade, sem jamais conseguir. A vida é isto mesmo, com cobra engolindo cobra, com pacifistas e belígeros, com santos e demônios, com mutilados e atletas, com amor e lágrimas, com miseráveis e afortunados, com tudo enfim que sempre existiu, existe e existirá. Jamais haverá direitos, leis, decretos, justiça, imposição, seita ou religião que a modifique. Mas, apesar da ineficácia de todas as tentativas, todo aquele que tentar, terá o beneplácito e o reconhecimento de Deus. Ele apinhou a terra de falhas, erros, problemas e malefícios para que, em cada passo e em cada segundo, tenhamos a chance de praticarmos o bem. Ninguém modifica nada, mas das tentativas vem a salvação.

E assim, mais um tempo passou. Emil concluiu o curso científico e foi para o Rio de Janeiro fazer o cursinho para enfrentar o vestibular de medicina – Sérgio ficou.

 

CAPÍTULO 17

Com a ida de Emil para o Catete, no Rio de Janeiro, Sérgio alugou um quarto de uma pensão de um conterrâneo. Seu proprietário preocupava-se sobremaneira com a alimentação, embora os dormitórios fossem sofríveis. Todos contíguos, os quartos faziam com que todos os hospedados tivessem plena ciência do comportamento do vizinho.

Durante as férias, Sérgio havia conhecido uma menina simples, muito inteligente e possuidora de uma meiguice angelical. Não era bem um namoro, principalmente porque, pela inexperiência de ambos, isto não tinha ainda nenhum significado. Mas havia qualquer coisa atrás de tudo aquilo, uma atração, um sentimento diferente que não podia ser deixado de lado.

Junto com tais acontecimentos, a família da menina foi morar em outra cidade e ela, objetivando ficar próxima a Sérgio, solicitou da família, consentimento para continuar seus estudos na cidade de Colatina. Não com tanta coincidência assim, hospedaram-se na mesma pensão, em quartos bem próximos. Era o que se podia definir como pureza, tal o respeito e preocupação de jamais se magoarem. Durante seis meses viveram ali, pertinho um do outro, indo ao colégio, ao cinema, estudando juntos, sem que jamais houvesse qualquer desabono ao senso de respeito e de verdadeira amizade.

No entanto, o proprietário da pensão, homem muito ambicioso, aumentava os preços em cada mês e não mais suportando as despesas, Sérgio procurou um outro lugar, bem pior, porém mais acessível com sua receita. Ela ficou, porque seus pais não tinham muitos problemas financeiros. Acontece que na nova pensão havia duas irmãs que logo demonstraram interesse por ele. Uma era morena, de lábios finos, cabelos lisos e olhos negros. A outra, mais velha dois anos, era praticamente o inverso da irmã: olhos claros, quase azuis, cabelos loiros e lisos, pele clara e lábios carnudos.

E ainda que carregasse em si a maior consideração por sua primeira namorada, suas forças não tardaram a sucumbir diante de tantas insinuações.

O quarto de Sérgio era um cubículo sem janelas e cuja porta dava de frente para o refeitório. A única claridade vinha de uma telha de vidro, não obstante fizesse com que o calor aumentasse ainda mais naquele sistema improvisado de estufa. Havia um pequeno ventilador que funcionava dia e noite, soprando aquele ar quente diretamente no rosto, evitando assim que o suor lhe caísse nos olhos.

Por isso, Sérgio, com a exceção dos horários das refeições, estudava no saguão, ao bel prazer das investidas constantes das duas irmãs.

Ércia, sua primeira namorada, logo soube de tudo e não hesitou em pôr fim ao embrionário romance. Totalmente desolado, Sérgio agarrou-se à Beusa, a mais velha das irmãs, embora não sentisse pela mesma, os sentimentos que nutria por Ércia. Depois de tudo, Janaína, a irmã mais nova, não aceitando a derrota, apelou para os baixos sentimentos e no meio de tamanha confusão, tudo acabou.

Os olhares continuavam furtivos e por muitas vezes ele era molestado em seu cubículo pelos olhos lacrimosos das meninas. E mais uma vez, quem muito quis, acabou ficando sem nada. Ércia não lhe saía dos pensamentos e nem tão pouco o coração conseguia esquecê-la. Um pouco mais, ela foi para junto dos pais na capital do Espírito Santo. Sem saber como desabafar, Sérgio escreveu-lhe um caderno inteiro em poemas e poesias, enaltecendo-a e dizendo de seus sentimentos, mas nem a literatura, nem tão pouco suas explicações foram suficientes para convencê-la. Desistiu, afinal, e o tempo encarregou-se de, paulatinamente, transformar a saudade em doses de tempo em tempo.

De qualquer forma as mulheres haviam penetrado em seu mundo, fustigando a força irreverente da malícia e legando-lhe mais problemas. Cada vez que o homem cresce e pensa entender das coisas, mais aumenta o peso de sua cruz.

Deus e a alma já não monopolizavam sozinhos os pensamentos daquele jovem. Agora havia outros problemas e a consciência tardia de que se precipitara demais em encontrar desilusões e questionamentos.

No meio de suas dúvidas invejava os crentes, que com suas Bíblias esfrangalhadas, elevavam os punhos cerrados, davam sopapos aos céus, e demonstravam plena convicção pelos ensinamentos que ensinavam. Invejava todos aqueles que debulhavam rosários, calejavam os joelhos e seguiam tacitamente pelos caminhos traçados por Jesus Cristo.

No mundo tudo é relativo e, de certa forma, interdependente. Somos parte integrante de um todo. Uma bactéria, uma flor, um pássaro ou uma baleia – cada um existindo por causa do outro. Sérgio não se desprezava pela dúvida, mas cria que sua insegurança era necessária, quem sabe, às próprias estrelas. Correlação dos seres com o mundo, por quem bem disse Hemingway “os sinos dobram” em cada manhã de nossa existência.

A maneira escusa de Sérgio, a humildade com que tratava as pessoas, seu jeito de falar brincando, sempre acabavam cativando as pessoas. E diante do clima criado, não havia mais ambiente para ali continuar. Tratou de trabalhar mais e conseguir o excedente do preço, voltando para a antiga pensão. Por coincidência, no mesmo quarto.

Ali, nada parecia ter mudado. Apenas o velho, conhecido pela alcunha de Tic-Tac, acometido de uma icterícia, parecia extremamente abatido. Vivia mais no hospital do que propriamente na pensão e numa manhã quente, veio a falecer, deixando esposa e três filhas menores.

A viúva, mais afável e compreensiva, diminuiu o antigo preço à altura das condições financeiras de Sérgio e este em troca, ensinava, nas horas de folga, as suas três filhas. Tudo parecia ter-se amainado, tanto nas coisas materiais como nas sentimentais. Com o tempo havia esquecido quase por completo (ou pelo menos a saudade já não o incomodava tanto). O trem descarrilado parecia ganhar os trilhos.

Um dia, porém, estava almoçando quando viu entrar um casal de muito boa aparência (coisa não muito normal naquele recinto, que normalmente era frequentado mais por pessoas simples). Ele era um engenheiro que militava na cidade de Aimorés-MG e ela, sua pretensa esposa. Sérgio ficou sabendo depois que a mulher ficaria hospedada por uns tempos ali, pelo menos enquanto durassem os trabalhos da Companhia Ferroviária na cidade mineira.

Sérgio ainda carregava consigo o velho violão azul-metálico que trocara por sua batina quando deixou o seminário de Belo Horizonte. Vivia, pois, a dedilhá-lo, agora sem a acusação do disciplinário e sem a “ira de Deus”. Em todos os momentos em que, ou cansado de estudar, ou saudoso do passado, sentia necessidade de desabafar, tomava-o e ficava a pontear. Isto era uma constante em sua vida. Certa noite viu recostar-se na porta entreaberta, a mulher do engenheiro que o fitava em silêncio:

– Desculpe-me se estou atrapalhando seu sono.

– Pelo contrário, eu adoro violão. Sempre peço ao Orlando (era o nome do seu amante), para comprar um para mim, mas ele faz de conta que nem me ouve. Você toca muito bem.

– Bondade sua. Jamais serei um violinista. Tudo que aprendo é por persistência, jamais por inclinação.

– Pois eu gosto da maneira como toca.

– Obrigado. De qualquer maneira eu lhe agradeço.

– Você se importaria de ensinar-me?

Chocado com o pedido, Sérgio, antevendo tudo o que poderia acontecer, observou:

– Seu marido não iria gostar, sabendo disto. Além do mais estas suas unhas compridas não deixariam sequer que seus dedos pressionassem as cordas.

– As unhas eu as corto. Quanto a meu marido, acho que realmente não iria gostar – e reticente acentuou – se viesse a saber.

– Mesmo assim, não acho viável. Por um motivo qualquer ele poderá chegar inesperadamente e eu não gostaria de indispor-me com ele. Pelo que me parece ele é muito ciumento, haja vista a pessoa que deixa a seu lado.

– Ela é uma vigia subornada. Ele pensa que ela lhe diz tudo, mas na verdade, só diz o que eu peço para que ela diga.

No outro dia, as unhas estavam cortadas e não tardou muito para que Sérgio, mesmo em sua ingenuidade, entendesse que aquela mulher estava gostando dele. E os dias foram passando, até que numa noite de quinta-feira, chegando em casa um pouco tarde, ele começou a tocar seu violão bem baixinho, quase inaudível. Estava absorto em pensamentos outros quando ouviu uma tênue batida na porta.

– Quem é?

– Abra, sou eu – disse ela: e sua voz denunciava seus sentimentos.

Ele abriu. Era ela, mais linda do que nunca.

– Estava esperando você.

– Para quê?

– Para aprender um pouco mais.

– Nesta hora?

– Você não está acordado?

– Bem, fiz uma péssima prova e perdi o sono. Isto sempre acontece quando sou malsucedido.

Ela entrou. Assentou-se bem juntinho a ele e tomou o violão. Depois, sem tirar seus olhos dele, foi colocando o instrumento sobre um pequeno armário rudimentar que havia bem na cabeceira da cama.

O cheiro de alfazema invadiu o ambiente e aquelas mãos sôfregas passearam por seu rosto, num rastro hipnótico e inebriante. Nem todo preconceito de um passado recente foi medida para soterrar os impulsos que revolviam seu ser. Baixou e elevou os olhos, tentou dizer alguma coisa, mas o cheiro e o gosto do batom cada vez mais encharcavam sua boca e a resistência desfalecia. Foi então que Sérgio pode olhá-la de perto e ver que realmente era muito bonita e atraente.

As forças da moral são imbeles ao arsenal da concupiscência, quando investe com a determinação do prazer!

 

CAPÍTULO 19

O não reconhecimento de seus estudos no Seminário Maior do Calafate custou-lhe penosos anos de retroação. Teve de recomeçar e o fez. Formou-se em Contabilidade. Escolheu o caminho mais curto para logo se manter na vida. De tantos que decidiram sobre sua vida, nenhum com a perspicácia de assegurar-lhe que nunca é tarde para recomeçar.

Apesar de fazer parte do grupo de jornalistas que mantinha os jornais “Folha do Norte” e “O Colatinense” ambos da cidade de Colatina-ES, e ganhar relativamente bem numa odontótica, logo que teve a oportunidade de voltar, ele o fez sem sequer um momento de indecisão.

Seus irmãos – como normalmente acontece nas famílias –, dispersavam-se, cada um procurando construir nova família ou sobreviver. Seus pais, juntamente com Jacy, Roberto, Vilbur e Iacy, voltaram para Marilândia, enquanto Anoel, permaneceu na cidade de Linhares. Aquela alegria e prazer de dois velhos sentados à mesa, rodeados de filhos implicantes e desassossegados, aos poucos desvanecia, não obstante aquelas fisionomias cansadas dos pais reclamassem gratidão. Ciclo imodificável da existência!

O apego à origem continuava falando alto no coração daquele jovem inquieto. Por isso, quando completou o curso de contabilidade, tratou logo de voltar para casa. Era como se fosse retirado de si os liames de uma escravidão imposta. Ainda havia tempo para ser feliz, para viver.

Nos solavancos do velho ônibus, a poeira ascendia emporcalhando tudo, mas não havia naquele momento, nenhuma dor física, nenhum cansaço capaz de subtrair daquela mente, a felicidade de voltar às origens.

Serra do Giurizato. Lá embaixo, Colatina e o lamacento rio Doce, serpenteando por entre os morros desnudos. Depois, o Chapadão, o córrego Liberdade, em que, pelas margens, de estilingue na mão, ele, o Nego, o Juarez e o Ivo perseguiam os preás. Tinha sido há tanto tempo! O capim-angola já quase não existia e o pobre regato muito fora aniquilado. Um pouco mais e a vila, sempre pacata, do mesmo jeitinho – sem futuro. Mas fora ali que Sérgio tinha sido feliz, tinha sido feliz.

Finalmente, obedecendo ao pesado pé do Camatão, o velho ônibus, depois do ruído próprio de um decrépito carretão de bois, parou. Cada um ia agarrando seus pertences, sacudindo um pouco a poeira mais grossa e saltando, fustigado pela impaciência de prolongar por mais um minuto aquela desconfortável viagem. Quando viu seus familiares, algo estranho perpassou-lhe o ser, num misto de vitória, fim, recomeço….

– Oh, mano, até que enfim!

– Domingo tem jogo. Veio bom de bola? – disse de chofre o mano Vilbur, que fazia do futebol sua grande paixão.

– Puxa, estou louco pra jogar! Será contra quem?

– Um time de Vitória. Eles já estão na praça. Uma crioulaaaada!

– Não importa. Eles também ficarão surpresos com os adversários… uma italianaaaada! – revidou Sérgio, imitando o tom engraçado do irmão, no prolongamento do a.

Muitos sorrisos, as malas, a casa. Lá, toda a alegria e felicidade que por ventura há nos céus, desabaram de uma só vez. Seu pai, sua mãe, irmãos e amigos abalroavam-se. Quanta meiguice, simplicidade e carinho naqueles corações simples.

O resto da tarde e noite adentro, contaram histórias e mais histórias. De ambos os lados, uma sofreguidão incrível. Todos queriam falar ao mesmo tempo e balbúrdia maior não houve desde o cataclismo do dilúvio. Ainda vivificava naquelas almas, a pureza simples de viver.

Paulatinamente as vozes foram diminuindo, até que apenas um relato ou outro, entrecortado de bocejos, roubava o já quase silêncio absoluto da casa.

Quando Sérgio despertou, já sua mãe estava de pé, batendo claras de ovos com o garfo a fim de preparar bolinhos de fubá com bananas-nanicas – regalia de recém-chegado. Sérgio tanto sonhara com aquele momento. Ainda deitado ficou a pensar:

“Minha vida, quanto já passou! Quantos belos anos de minha existência, no fulgor da juventude, entregues a uma luta inglória. Mas afinal, que será vencer na vida? Papai diz que em se estudando, é mais fácil vencer. Mas, me pergunto: que vale mais, ser um velho bem-sucedido ou um jovem feliz? De qualquer forma, ainda tenho pernas para correr um bocado deste mundo.”

Em seu coração havia uma força estranha, indomável, capaz de torná-lo triste ante a incapacidade de experimentar e fazer de tudo. Cada dia que passava era uma ameaça a seus desejos. Tinha um medo “naveano” da velhice tornar seus passos trôpegos para as grandes caminhadas. Não sabia o quê, mas queria alcançar alguma coisa. Precisava produzir, andar, fazer, deixar marcas, acontecer, amar… e a vida talvez não lhe desse esse tempo. Por isso sentia remorso do tempo em que consumia dias em torno de Alighieri, Camões e outros célebres do passado, cujo estilo e gramática, muito lhe fugiam do entendimento. Tinha de fazer alguma coisa e o fazia, sob pena de pecar por omissão. Obsessão por viver e fazê-lo intensamente.

 

CAPÍTULO 20

Em cada manhã, um novo sol; em cada noite, mais histórias; em cada dia, mais ansiedade. O tempo ia passando. Aquele menino, agora rapaz, sentia que precisava andar ligeiro, pois a vida não seria bastante longa para permitir uma jornada lenta. Entranhou-se no futebol, no colégio, no conjunto musical, nas caçadas e pescarias, na criação de pássaros, na organização de festejos, além de ganhar a vida ministrando aulas, exercendo a contabilidade e realizando exames de laboratório. Sem que percebesse, logo tinha sobre si, problemas e ocupações que muitos homens jamais tiveram em toda existência.

Vida intensa. No corre-corre constante mal se dava o luxo da obscenidade. Toda pessoa era-lhe um amigo, um ser humano, jamais um objeto.

Quatro anos assim foram vividos, até que um dia chegou para matricular-se no colégio em que trabalhava, uma adolescente. Era uma criaturinha linda, ingênua, pura. Os olhos de Sérgio ficaram extasiados ante a pureza reinante naquela alma que ria, brincava, conversava, sem jamais deixar transparecer no olhar, qualquer indício de malícia. E por mais que tentasse chamar-lhe a atenção, nunca conseguia ir além de um sorriso pueril e amigo. Sem perceber, foi se apaixonando.

Um dia, não mais resistindo tanta indiferença, Sérgio, fingindo uma aproximação casual, beijou-a na face e, inopinadamente retirou-se sem se aperceber das reações daquela criatura ingênua, quase criança. Foi uma tarde tensa, cheia de expectativa e emoção. Parecia ter encontrado o amor, aquele sentimento poético que vira tantas vezes em versos e sentira tão pouco em seu coração. Mal imaginava o que dizer quando a visse novamente. Estava temeroso e covarde – parecia preferir não mais encontrá-la.

Com o passar dos dias encorajou-se e quando a oportunidade apareceu, esgueirou-se lentamente por uma porta entreaberta e falou um tanto desajeitado:

– Puxa, pensei que tivesse sumido! …

– Bem, pensei o mesmo de você. Desde aquele dia que saiu daqui apressado não o vi mais.

Animado pela ajuda natural, arriscou:

– Ficou zangada?

– Com o quê?

– Ora, eu a beijei, não se lembra?

– E o que tem isso? Não vejo nada de errado em se beijar alguém por amizade… ainda mais, na face.

– Bem, é que eu… deixa pra lá.

Ia dizer que não era assim, que o beijo fora algo sufocado, bem grande, algo que há tanto tempo desejava. Mas não seria ainda desta feita que se despojaria de sua timidez. E tanto ficou desajeitado que, apesar de sua ingenuidade, Suely acabou interessando-se:

– Deixa pra lá o quê? Diga, sou muito curiosa.

– Todos nós somos curiosos.

– Sim, e daí?

– Bem, acho melhor esquecer. Não foi nada, apenas uns pensamentos malucos que me ocorreram. Sabe, eu gosto de você e….

– Que tem isso? Eu também gosto de você. Sempre foi a pessoa que mais me deu apoio, ajudou e cobriu-me de atenção.

– Esqueça, esqueça – interceptou Sérgio, entendendo que estava diante de uma criança. Para completar a frustração ela se mudou para longe. Por algum tempo, Sérgio ainda ficou saudoso, imaginando aquela figura esguia e bonita que, no entanto, nascera depois do tempo. Mais uma vez, a emoção de viver os cantos dos poetas fora como chegara.

Os sentimentos do amor, mais uma vez não conseguiram brotar no terreno inculto do seu coração. Algumas meninas já haviam passado por sua vida: apareciam como meteoros e como eles desapareciam. Era o bastante para alimentar a saudade de seu tempo de criança. E nele Sérgio adaptava a letra da musiquinha Kell Smith:

Era uma vez o tempo em que todos os dias eram bons
As nuvens eram feitas de algodão
Num mesmo dia dava pra ser herói e vilão
E acabava tudo em lanche:
Um banho quente e talvez um arranhão
Era uma vez, o dia em que tudo era bom

É que a gente quer crescer
E quando cresce quer voltar a ser menino, mesmo ferido
Porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partido

Mas…. dá pra viver
É só não permitir que a maldade do mundo pareça normal
Pra não perder a magia da felicidade de viver
.”

 

CAPÍTULO 21

É desnecessário frisar que, em se fundando duas equipes de futebol em uma vila de mil habitantes, todo sossego do delegado vai água abaixo. E tantos foram os problemas que Sérgio resolveu acatar o conselho de seus pais e acabou se mudando para a cidade de Linhares, onde ficou na companhia de seu irmão Anoel. Vendeu seu escritório de contabilidade, comprou uma Rural Willis do ano e passou a viver de análises clínicas de laboratório. Seu espírito insaciável, mais uma vez arrancava-lhe o torrão dos pés. Contudo era um homem, e um homem não pode viver de saudades. Aquele apego era coisa de criança e admiti-lo ainda agora, seria humilhar-se ante sua altivez e orgulho. Passou a viver com maior liberdade esquecendo muito de suas dúvidas, nas ações escusas da adolescência. Pensando menos, mas não as resolvendo.

Era uma lojinha lotérica, num beco qualquer, entre duas paredes. Guichês enfileirados, pouco espaço até para as funcionárias. Ali, todas as semanas, Sérgio tentava a sorte que, diga-se de passagem, se tivesse delineada pelo jogo, torná-lo-ia o mais infeliz entre os homens. O acúmulo de esperançosos nos primeiros dias da semana, era sempre mais intenso e por coincidência, era exatamente nestes dias que efetuava suas apostas.

Numa manhã qualquer, talvez motivados pelos treze pontos solitários de um pernambucano, os apostadores pareciam ter marcado hora. Todos encurralados num estreito corredor tentavam, como podiam aproximar-se dos guichês. Sérgio chegou, olhou o movimento e já se preparava para desistir, quando um “psiu” bem acentuado, chamou-lhe a atenção. Era uma moça, quase menina, olhos grandes, lábios carnudos, dentes brancos e não bem-dispostos, cabelos negros e lisos, estatura mediana. Era muito bonita, principalmente quando sorria.

– Dê-me o cartão – disse ela meigamente.

Sérgio, tentando amenizar o impacto de deixar tanta gente esperando, considerou:

– Pego-o no fim do expediente.

– Aqui fecha às 18h.

– Passarei neste horário.

 

Quando o carro estacionou, a casa já havia fechado, mas na calçada, com o bilhete na mão, a menina aguardava pacientemente.

– Desculpe-me por tê-la feito esperar, como se já não bastasse o favor da manhã.

– Foi de gosto.

Apanhou o bilhete, colocou-o na bolsa e já acelerava o carro para sair, quando lembrou:

– Ora, ia esquecendo-me. Mora longe?

– Moro sim.

– Aceitaria uma carona?

– Aceito sim.

Entrou no carro. Era uma tarde fria, com vento-sul cortante. Pelo horizonte, uma garoa embaçava de cinzento a visão do céu azul. Os vidros do carro respingavam, enquanto em silêncio quase constrangedor, os dois seguiam para um bairro distante. Em determinado momento, a menina virou-se para dizer qualquer coisa, no mesmo instante em que Sérgio decidira também quebrar o silêncio. Ambos iniciaram uma palavra e ambos ficaram boquiabertos, fitando-se nos olhos.

Puxa, pensou Sérgio, como é bonita!

Entreolharam-se e sem palavras a justificar, puseram-se a rir. Ele foi o primeiro a desembaraçar:

– É interessante o que está acontecendo comigo. Faz tempo estou-lhe querendo dizer alguma coisa e não consigo.

– Pois tente.

– Como se chama?

– Teresinha.

– De Jesus? …emendou brincando, Sérgio.

– Não, das Dores.

– Espero não ser este seu destino. Você é muito bonita.

– Não brinque comigo.

– Estou falando sério.

– Por que um moço como você iria achar uma pobrezinha como eu, bonita?

– Ora, riqueza e beleza não se exigem. Aliás, talvez seja mais por isso que acho você bonita. Veja: não tem os lábios pintados, não usa nenhuma maquiagem, não tem os cabelos tratados – em suma, vem de um dia de luta e mesmo assim está bonita.

Ela enrubesceu, podia-se notar em sua pele morena, o fundo rosado do sangue que aflorava.

– Fica mais bonita ainda.

– Como assim?

– Por acaso, não está sentindo o rosto arder?

– Como sabe?

– Sou adivinho.

– Ora!

Ela possuía uma dentição bonita, com o charme dos dois incisivos não tão bem-dispostos. Sérgio fitava-a de alto a baixo – era de uma beleza natural a toda prova. Perguntou:

– Quantos anos tem?

– Quase dezessete.

– Tem namorado?

– Nunca tive. Minha mãe acha que sou muito criança. E você, o que acha? E esperar que Sérgio opinasse, ela continuou:

– Bem, acho que sou mesmo, pois tenho muita vontade de encontrar alguém que goste de mim.

– Acha que eu poderia fazê-lo?

– Não.

– Por quê?

– Bem, por muitas razões.

– Por exemplo?

– Sou muito pobre, quase não tenho estudos e você…

– Esta enganada. Eu também não sou rico nem culto. Gostaria de encontrar-se comigo?

– Não sei.

– Pois quando souber, não esqueça de avisar-me.

– Não esquecerei.

O que ela pensou nos dias que se seguiram, Sérgio não saberia precisar. O que ele perdeu de sono, os seus olhos atestavam. Por certo, um minuto de prazer e amor, custa semanas ou até meses de sofrimentos investidos, ciúme, apreensão e insônia. O amor deve ser mesmo o sentimento mais caro e precioso dos seres inteligentes, ou então as moedas sentimentais para adquiri-lo perderam de todo seu peso e valor.

 

CAPÍTULO 22

Dois meses depois o carro deixava, vagarosamente, a cidade de Linhares e trafegava, com a mesma lentidão, ao som de “Chegamos tarde nós dois” de Julio Iglesias. Por detrás da mata, meia-lua já se podia ver. O céu estava límpido e a luz das estrelas mais fortes podia ser notada. Bem pertinho um do outro os dois seguiam, sem saber exatamente para que lugar.

– Como a tarde está bonita – disse ela, intentando o diálogo.

– E verdade – assentiu ele. A gente nasce no meio de tanta beleza e poucos a percebem. Na maioria das vezes os homens nascem e morrem sem atentar para tantas maravilhas. Veja a Lua despontando: parece esbarrar no dossel da floresta lá longe. Quadro lindo, não é mesmo? Deus esmerou-se quando criou a Natureza.

– Você fala bonito!

– Deixe que eu fale enquanto não posso ser.

– Bobagem, eu acho você muito bonito.

– É bom saber que também aos cegos são reservadas educadas suposições.

– Não é o que está me parecendo.

– Sabe, ainda que fosse feio, esta maneira de você ser é como uma caiação sobre tijolos sujos.

– Você está gostando de mim?

 

Ela baixou os olhos. Logo à frente, havia uma figueira centenária, cujas catanas firmavam-se bem na orla da estrada. O luar penetrava entre a folhagem esparsa e como disse o poeta, salpicava de estrelas toda a vegetação rasteira que se aplainava. Sérgio freou o carro e virou-se para ela:

– Fiz-lhe uma pergunta.

– Eu sei.

– Pois fale-me alguma coisa.

 

Ela continuava cabisbaixa, absorta em pensamentos só seus. De repente, elevou os olhos e fitou Sérgio com sofreguidão. Sem se aperceberem, atraídos pela química, seus lábios encontraram-se. Ela era quase menina e maior emoção não poderia ter sentido em acreditar que, embora pobre, pudesse ter a mesma chance das meninas ricas, de amar, ser amada e feliz.

– Ó meu Deus, eu não quero acordar! – disse ela.

– Você tem frases que surpreendem. Jamais ouvi uma confissão mais forte de paixão. Farei tudo para que não acorde mesmo porque o seu sonho é minha felicidade. Como é engraçada a vida, como os caminhos se interligam para chegar ao fim do desejo e da predestinação. Já pensou por que estamos aqui hoje, juntos?

– É, a vida surpreende. Sempre pensei em amar alguém, amar muito. Alguém que eu olhasse e sentisse vontade de beijar e que beijando não me decepcionasse. Alguém que me atraísse, que fosse bom, fosse amigo, que não ligasse por ser eu tão pobre. Quantas vezes imaginei que Deus era injusto para com as meninas pobres. Hoje reconheço que nenhuma menina rica viveu o momento que estou vivendo. Por isso, neste momento, sinto-me uma rainha, a mais feliz delas e não quero acordar.

Fez-se silêncio. Sérgio esperou. Os segundos pareciam eternos, tal o desejo de ouvir daquela boca ingênua, palavras tão tocantes.

– Continue, por favor.

– Eu só sei dizer o que me dita o coração.

– Talvez seja por isso que diz coisas tão tocantes.

– Menina, não sei a razão, mas sinto que jamais iremos esquecer um do outro. Estas coisas que agora se afloram espontaneamente de nossos lábios, são escritas com as penas de nossos corações.

Ela elevou os olhos fitando de perto seu namorado. Nele havia todo despertar de um sentimento até então não sentido. Vinha de dentro, era por demais humano e como tal, quase impossível de dominar. O bafejo quente do hálito puro tocava seu rosto. Nenhum dos dois tinha mais nada a dizer. Olhos nos olhos, só a carne falava, só ela dominava toda razão que, por ventura, pudesse interferir para evitar.

– Você é linda, falou primeiro Sérgio, enquanto tocava com a palma da mão, aquele rostinho cálido.

Ela não disse nada, mas seu respirar era profundo e seu rosto queimava.

Lá do alto, talvez mais curiosa que nunca, a Lua, que já testemunhara tantas paixões irrefreáveis, brilhava, esgueirando-se pelas ramagens e salpicando aqueles corpos em delírio.

 

CAPÍTULO 23

Quase dois meses depois, Sérgio foi, como era costume, apanhar Teresinha. Ela veio pensativa, tensa e nervosa. Saíram da cidade e calmamente caminharam como faziam sempre. Ambos gostavam de andar, caminhar, conversar.

– Aconteceu alguma coisa? – perguntou Sérgio, ao perceber que ela estava apreensiva.

– Acho que estou grávida!

Apesar de aparentar calma ele sofreu forte o impacto. Recompondo-se, abraçou-a carinhosamente e a acalmou, tentando transmitir o que em nenhures havia dentro de si.

– Não fique triste. Não há nada sem solução. Vamos pensar e ver como resolver. Você tem certeza?

– Acho que sim. Há quarenta dias minha menstruação não vem.

– Mas isto ainda pode ser normal. Além do mais, não deve ficar preocupada, pois segundo meu médico, tenho um número muito reduzido de espermatozoides, o que impede, quase que taxativamente, a geração de um filho. Muitas mulheres excedem de dez dias, sem problema.

– Mas talvez você não tenha entendido. São quarenta dias após o dia em que minha menstruação deveria ter vindo.

– Bem, neste caso, a coisa parece mesmo séria. Amanhã bem cedo virei apanhá-la. Mandaremos fazer o exame para comprovação.

– Por que você mesmo não o faz?

– Sendo com você prefiro que outra faça. Não fique preocupada, tudo será como foi escrito.

No outro dia à tarde, a confirmação. Encontraram-se e Sérgio tentou ser o mais natural possível, embora no fundo, aquela dúvida da semiesterilidade o martirizasse. Jamais tinha sentido por dentro tanta dúvida e certeza se misturando. Confiava naquela menina, quase criança, que parecia adorá-lo. Não duvidava da palavra médica de que tinha, em um milhão, uma chance apenas de engravidar qualquer mulher. Perplexidade angustiante. De qualquer forma, não deixaria aquela criaturinha só, ainda que tivesse de usar a submissão de São José. Amparou-a carinhosamente, beijou-a bastante, acariciou a barriga dela e disse:
– Não fique triste. Devemos provar agora que somos tão corajosos quanto o dia em que estivemos juntos cheios de amor. Lembra-se daquele dia? Foi bonito e inesquecível!

– Estou com medo.

– Por quê?

– Minha mãe, ela não irá entender.

– Toda mãe entende. Ela é a única pessoa a quem não deve temer. As mães são as únicas criaturas que amam de verdade.

– Puxa! Ela queria tanto que eu me casasse na Igreja!

– Oh, menina, não fale assim! Está fazendo-me sentir o pior dos homens.

– Você não tem culpa, foi eu quem quis tudo isto.

– Nada de remorso, nem heroísmo. Enfrentemos a realidade. Diga-me de todo o coração: que pretende fazer?

– Não sei.

– Não tem nenhuma ideia do que seria melhor pra você?

– Não.

– Quer abortar ou prefere que a criança nasça?

– Abortar?

– Se você preferir.

– Mas é contra a Lei de Deus!

– Deus não usa a Lei dos homens.

– Como assim?

– Os homens são regidos por leis e decretos e qualquer pessoa que chegue a ferir tal deliberação, é punido. Os homens não levam em consideração os sentimentos de cada ser, nem as causas psíquicas que os levaram a praticar tal ato. Eles, quando munidos de poder e autoridade, fazem as leis. Com Deus é diferente, Ele julga cada pessoa em particular, dá castigos diferentes, ainda que o crime seja o mesmo. O que para uns é imperdoável, para outros é falha venial. Por isso, se depois de ouvirmos nossa consciência, deliberarmos por convicção de que esta criança não deve nascer, ainda que para os homens nos tornemos réus de condenação, para Deus será um ato normal.

– Você pensa assim?

– Penso sim. Toda verdade reside na gente e não nos conceitos universais.

– Então decida por mim.

– Meu senso de justiça não pode ir além de mim, assim como sua paz não poderá jamais ser alcançada senão por sua convicção. Eu estou querendo ser coerente com minhas convicções e você terá que fazer o mesmo. Diga-me pois: se optar pelo aborto, ficará intranquila e desassossegada?

– Não sei.

– Mas tem de saber.

– Você não quer se casar comigo? Desculpe, mas com isto não ficaria tudo bem?

– Para a sociedade, talvez.

– Não entendi. Não gosta de mim?

– Gosto sim, muito.

– E então, por que não fazemos isto?

– Teresinha, há uma coisa roendo dentro de mim e não quero magoá-la.

– Como assim?

– Talvez não tenha entendido, mas sou um homem reduzido a menos de vinte mil espermas por milímetro cúbico, o que, segundo a medicina, praticamente me impossibilita de gerar.

– Está querendo insinuar que o filho não é seu?

– Oh, meu Deus! Preferia não falar disto agora. A gente vai acabar se machucando.

– Pode falar. Preciso escutar tudo, hoje, agora.

– Você acharia justo que eu me casasse com está dúvida?

– E é justo jogar sobre mim um erro que não cometi? E justo que esta criança que veio de você, nasça sem um pai? É justo que na sua cômoda desconfiança, fuja da responsabilidade e me lance na sarjeta? Justiça, justiça! Não sei porque existe esta palavra. Nenhum homem praticou, jamais, justiça alguma. Resta-nos apenas usar o direito e o bom senso. Você sabe que o filho é seu, mas está preocupado que outros duvidem. Destrua todas as demais pessoas do mundo e jamais me falará de justiça ou de dúvida. Eu nunca conheci outro homem. Você sabe que foi meu primeiro e único namorado. Sabe também que quase o adoro.

– Por favor, não falemos mais disto agora. Vamos parar para pensar melhor. Sábado virei apanhá-la. Temos, pois, três dias para pensar, imaginar e chegar a uma decisão mais acertada. Vou realizar um novo espermograma e o trarei aqui. Fique tranquila, sim?

– Está bem, mas por favor, ajude-me, estou muito confusa.

E quando Sérgio a fitou, desgarrando-se pelas pontas dos dedos das mãos de Teresinha, nos olhos pôde ver e entender o quanto a insegurança machuca as pessoas. Os olhos tomam um colorido de tristeza e todas as feições do rosto os imitam e, então, mesmo a um leigo é possível compreender que também as emoções e os sentimentos possuem cores. É um colorido só percebido por quem ama.

CAPÍTULO 24

Todo mês no Espírito Santo a região sul presenteia frias aragens que varrem a região norte deixando resfriados e viagens suspensas como lembrança. Até os pássaros emudecem, engurujando-se pelos lugares menos açoitados pelo vento frio. Foi numa destas tardes que Sérgio foi ver Teresinha. Tudo era de uma tonalidade tristonha, por fora e por dentro de tudo. Ah!, se antes do primeiro gole, um alcoólatra vivesse o mal-estar, o ridículo e o vexame que iria passar depois, certamente não o tomaria. Assim também, se cada homem que erra pudesse deduzir sabiamente as consequências de seu ato insensato, muito sofrimento seria evitado. O raciocínio é apanágio da criatura humana, mas poucos o usam nas horas em que ele é mais exigido. E por não o ter usado, Sérgio agora, com mil ideias turvas na cabeça, caminhava cheio de apreensões, ao encontro de sua namorada. Melhor cenário os ventos e toda Natureza não poderiam armar para aquele encontro melancólico.

– Boa-tarde. Como está se sentindo hoje?

– Ainda muito confusa. Minha mãe anda desconfiada porque não estou querendo me alimentar.

– Não sente fome?

– Acho que não. Estou muito tensa.

– Bem, você está pronta?

– Estou sim.

Os dois seguiram por aquela mesma estrada, que tanto amor e emoção já havia presenciado. Ela o olhou demoradamente:

– Fez o exame?

– Fiz sim.

– E então?

– Como sempre, um número muito baixo de espermatozoides.

– Então não confia em mim?

Sérgio ia dizer que não, mas até para a sinceridade há um limite que deve mantido, mormente quando se trata de alguém especial. Preferiu fugir da resposta:

– Prefiro dizer que gosto muito de você.

– Oh, meu Deus!

– Não fale assim, meu anjo. Nós iremos resolver tudo isto, confie em mim. Amanhã iremos a um médico amigo meu e explicaremos tudo. Ele disse que se a gravidez for apenas de dois meses e você quiser, ele fará o aborto. Você concorda?

 

– Não sei o que dizer. Um filho seu é a coisa que mais desejei na vida. Porém sou pobre e sei que ele irá sofrer muito se nascer e não tiver você para ampará-lo. Sei também que jamais irei me perdoar se o matar dentro de mim. Você não percebe que estamos tramando a morte de nosso filho?

– Olha, se pensa assim é melhor que a criança nasça.

– Por quê?

– Porque todo mal está na cabeça da gente e não no ato em si. Eu também temo a Deus, mas não desconheço que a maneira mais eficaz para resolver o problema que ora nos martiriza, é o aborto.

– Não entendi.

– Digo que dos males, o aborto talvez seja o menor. Você será marcada pela família e pela sociedade e esta criança terá sobre si muitos infortúnios. Nós iremos dar início a um problema que só terminará com a morte de um de nós três.

– Por que não casa comigo?

– Acho que não conseguiria ser feliz enquanto esta dúvida subsistir dentro de mim. Nunca senti algo semelhante em toda minha vida. Acredito em você, mas também na medicina e nestas circunstâncias tudo se torna muito paradoxal. Todo problema exige determinação para ser solucionado. Fiquemos combinados que se estiver grávida a menos de sessenta dias, faremos o aborto. Caso contrário, deixaremos a criança nascer.

– Posso fazer uma sugestão?

– Claro, você é a pessoa mais importante nisto tudo.

– Se a criança nascer de olhos azuis e parecida com você, acreditará em mim?

– Acho que sim.

– Então quero que a criança nasça.

– Mas você tem os olhos negros.

– Corro o risco. Deus dará um jeito.

– Não esteja tão certa disto.

– Não acredita no poder de Deus?

– Faço muito esforço para isso. Aliás, das estrelas à poeira do chão, tudo é uma constatação irrefutável de um Criador. Mas o que eu acho e que Ele não interfere nestas coisas e quando o faz, é quase sempre de uma maneira que não entendemos.

– Eu aceito o desafio.

– Eu também. Sendo assim, amanhã, convide sua mãe para um passeio. Quero falar com ela.

– Está louco?

– Ora menina, acha, por acaso que irá ter este filho sem que ela saiba? Nem o Espírito Santo ousou tamanha façanha.

– Mas você terá coragem de dizer?

– A maneira mais correta de se vencer aquilo que nos amedronta é se meter no meio dele, é enfrentá-lo, ainda que seja com os cabelos hirtos e o coração aos pulos. Depois, o importante não é ser corajoso e sim evitar o comportamento dos covardes. Realmente, eu estou temeroso, inseguro, com muito medo. Não será por isto que irei fugir do problema. Ainda que eu tremule como flâmulas ao vento, gagueje e não encontre palavras, quero falar com sua mãe, às 19h30min.

 

A mãe de Teresinha era uma senhora baixa, morena, cabelos negros, lisos e compridos, quase gorda, com muito das feições da filha. Era evangélica e ficou muito assustada quando Sérgio encostou o carro. Ele tentou explicar:

– Não se assuste, queremos apenas falar com a senhora.

– Mas, falar o quê?

As mães são criaturas diferentes, com tal sensibilidade e amor que muitas coisas para elas devem ser ditas apenas por formalidade. Sérgio logo percebeu naquele semblante toda reação digna de uma mãe traída e ultrajada em sua dignidade. Por isso tratou logo de desviar-se daqueles olhos incriminadores.

– Já lhe diremos. Por favor, entre.

Um tanto assustada ela ia entrar, quando Teresinha redarguiu:

– Mãe, a senhora vai na frente – ele quer falar é com a senhora. Deixe que vou no banco detrás.

O carro seguiu vagarosamente pelas ruas e ganhou a BR-1O1. Alguns quilômetros depois Sérgio desviou-se da BR e estacionou na encosta da Lagoa Juparanã. Era linda a paisagem, com pequenas ondas vindo morrer na areia, enquanto a lua clareava de mansinho numa tonalidade de paz e serenidade. Mais abaixo, centenas de pessoas acotovelavam-se para disputar uma lagosta ou se descontraírem de um dia estafante.

Foi diante daquele palco de serenidade, alegria e beleza, que Sérgio entendeu que tudo o que é sereno, belo, afável e alegre só pode existir dentro das pessoas e que para um coração triste, nem toda paisagem multicor do mundo é capaz de fazer aflorar dos lábios, um tênue sorriso de felicidade. A tristeza e o medo estavam nele e conseguiam subjugá-lo, mesmo diante de tanta coisa afável. Tomando fôlego, começou:

– A senhora se chama… perguntou ele reticente.

– Maria de Jesus – completou ela.

– Maria de Jesus – repetiu Sérgio, buscando qualquer tempo que pudesse devolver-lhe a calma. Bem. Não sei se a senhora sabe, mas já há algum tempo, Teresinha e eu estamos nos encontrando.

– Não, eu não sabia. Vocês nunca me disseram.

– Pois bem, eu gosto muito de sua filha e ela parece que gosta muito de mim também.

– Sim, e daí?

Percebendo que ela poderia descrever até os detalhes de tudo o que pretendia dizer e sentindo que quando se tem que extrair algo sem anestesia, o melhor e menos doloroso e fazê-lo num golpe, Sérgio desengasgou de vez:

– Bem, na verdade sua filha está esperando um filho.

– Um filho? – retrucou Maria, como se o mundo tivesse desabado todo sobre sua cabeça.

– Não sei como, mas aconteceu.

– Deve ter sido milagre – contestou ela sarcasticamente.

– E uma coisa difícil de explicar e não gostaria de falar sobre isso outra vez.

– Mas, meu Deus, como difícil? Se vocês dormiam juntos, como acha difícil?

– Dona Maria, eu não queria falar sobre detalhes, porque também eu estou vivendo momentos difíceis. Eu confio em sua filha e sinto que ela me ama. Ficamos juntos várias vezes e mesmo assim, não consigo entender como ela está grávida.

– Já sei, não está querendo assumir. Os homens são sempre assim mesmo: senhores do mundo e da covardia.

– Compreendo como deve estar magoada, mas não é nada disso. Olhe isto aqui – e dizendo isto, tirou do bolso um espermograma. Ela olhou.

– Não entendo nada. Que quer dizer isto?

– Quer dizer que em um milhão, tenho apenas uma chance de engravidar alguém.

– Sempre ouvi dizer que apenas um esperma é responsável pela vida – retrucou ela veementemente.

– Também pensava assim, mas segundo o médico, são precisos muitos milhões para que as enzimas expelidas por eles, tornem possível a flacidez do invólucro do óvulo, facilitando assim a penetração de um deles.

– Então veio aqui para dizer que foi apenas mais um e que minha filha é uma vagabunda?

– Não fale assim, por favor. Por ter que dizer isto à Teresinha, já a magoei bastante a semana passada.

– Afinal, você acredita nela ou não?

– Estou confuso. Tenho que pensar, que chegar a uma conclusão que não me deixe inseguro pelo resto da vida.

– O que pretende fazer então?

– Dona Maria, poderíamos optar pelo aborto e talvez a senhora nem viesse a saber de nada. Contudo não foi o que escolhemos. A criança vai nascer. Sua filha fez-me um desafio e eu aceitei: se ao nascer a criança trouxer em si qualquer aparência comigo, ficarei com ela, caso contrário, com a medicina.

– Isto é um absurdo.

– Bem, para ser sincero, também achei uma maneira vulgar de resolver um problema tão sério.

Que acha disto minha filha?

No banco de trás, Teresinha estava pensativa, olhos perdidos através do vidro lateral. Ao sentir-se chamada, virou-se de chofre e não pensou para responder:

– Eu aceitei o desafio, mamãe. Aliás, foi eu quem o propôs. Tenho certeza que o filho é dele, pois jamais conheci ou namorei outro homem. Por outro lado, compreendo toda insegurança que vai nele. Deus não irá desapontar-me, estou certa disto.

Lá embaixo, entre os morros empastados, as águas da Juparanã esgueiravam-se a perder de vista. No céu iluminado, toda candura da Natureza. Naqueles corações, só Deus poderia dizer o que se passava. Era como se até ali, Ele desejasse tal infortúnio para que, no contraste, mais bela se ostentasse a Natureza. Quanto mais se aproxima uma joia da sentina, pelo contraste, mais refulge sua beleza. Até o mal deixou Deus florescer ao seu lado, para que todos pudessem entender o quão complacente Ele é. Jamais iríamos atentar para as diferenças se tudo fosse uniforme e religiosamente igual.

 

CAPÍTULO 26

Sete meses depois, a criança nasceu. Sérgio estava viajando e só chegou quinze dias após. Quando estacionou em frente a uma cerca de ripas mal pregadas, pôde logo perceber que algo estava diferente. Debruçada no peitoril da janela, Teresinha estava extática, tremendamente triste. Não havia qualquer dúvida que algo muito não desejado havia acontecido. Enquanto fechava a porta do carro, Sérgio a fitava e podia deduzir a imensa angústia que lhe passava n’alma. Aproximou-se. Era uma noite de luar, tal qual a que passaram juntos sob a figueira. Ela estava triste, mas mais linda que nunca. Seus lábios tremiam e dos seus olhos as primeiras lágrimas brotaram.

– Pelo amor de Deus, que aconteceu?

Das primeiras lágrimas, aos fortes soluços.

– Que houve de tão grave, meu anjo?

Ela soluçava e molhava de lágrimas, o rosto do namorado.

– A criança morreu?

– Não, não.

– Tem defeito físico?

– Não, ele está bem, muito bem.

– Mas por que chora então?

Era um momento de muita tensão para que ele se lembrasse do desafio, aposta ou destino. Desgarrou-se dela e deu a volta, entrando pela porta da sala.

– Onde está?

A mãe de Teresinha, que vinha do quintal, encontrando-se com ele na sala, fitou-o embaraçada. Sempre justamente agressiva, deflagrou:

– Pensei que não viesse mais.

– Por que a senhora vive me recriminando?

– Acha que deveria elogiá-lo?

– Não sei. Reconheço meu erro, mas estou em paz comigo mesmo, porque o que fiz foi consciente e de acordo com meus princípios de justiça.

– Os homens falam de amor, como falam de futebol. Amar é coisa diferente do que vocês andam fazendo. Amar é evitar ser motivo de sofrimento para os outros.

Sem continuar ouvindo, Sérgio foi-se retirando. Girou a aldrava e um pouco mais, deparou-se com um bercinho simples, propriamente um catre, onde jazia dormindo um recém-nascido. Emudecido, fitou-o demoradamente. Agachou-se em seguida começou a acariciar o rostinho dele. Bem devagar afastou a touca, deixando a cabecinha exposta. A criança acordou. Tinha os cabelos e os olhos negros, a tez roxo-alaranjada e já nos primeiros dias, expunha todos os traços maternos.

Teresinha aproximou-se, com fungadelas ocasionais, repuxando em espasmos as maçãs do rosto, enquanto a dor da emoção maior aos poucos se desvanecia.

– Eu perdi!

Levantando-se lentamente, ele pôs as mãos em seus ombros. Agora não poderia haver nos dois, angústia maior. Fitaram-se demoradamente, apertaram-se um contra o outro e por fim, Sérgio murmurou:

– Nós dois perdemos.

– Eu…

– Não fale mais nada agora, por favor, não se machuque mais.

Só mesmo quem viver situação idêntica poderá supor quão desagradável é estar no meio de um salão, rodeado de olhos acusadores. Inimigos? Dependentes? Ninguém saberia qualificar-se no meio daquela bateria de olhares com movimentos e palavras reticentes. É nessas horas que se paga o preço justo do furtivo, do momento desonesto em que se sorve o prazer das coisas proibidas. Se aquela noite, sob a figueira, rodeada da luz tênue do luar que borrifava como água de aloés, os rostos cheios de amor – se tudo aquilo tivesse um preço, Sérgio e Teresinha teriam quitado a partir daquela noite. Maior amor e confusão, só armou Vênus ao enviar seu filho Cupido para humilhar Psique, na força mágica de um amor vexatório.

Os olhares iam e vinham, dos rostos ao nada, cavalgando espaços vazios, sem jamais descansarem num ponto amigo que sossegasse as órbitas. Ali no berço, o menino dormia, alheio a tantas emoções que provocava. Era a única paz palpável que subsistia a todas aquelas reações esdrúxulas. Sérgio percebeu que o orgulho venda a razão, tornando frágil o bom senso e relegando o homem à definição mesquinha da imbecilidade. O que havia de mais forte do que todo um tempo de grande amor, para fazer sucumbir a confiança de que aquele serzinho que ali jazia cheio de paz e dependência, era seu filho? O homem, às vezes, torna-se tão estúpido em suas deliberações, que não seria surpresa, se um velho asno dele se pusesse a rir!

 

CAPÍTULO 27 

Mais uns dias se passaram sem que da mente de Sérgio evolassem as acrimônias daquele momento. Certa vez, numa discussão daquelas em que toda razão e o bom senso sucumbem à raiva de esganar, sua irmã o chamara de burro-branco. Recordava-se agora os gaguejos e a relutância para desfazer-se do epíteto e, também agora, reconhecia a verdade esperta da mana, pois jamais alguém se tornara mais burro-branco numa decisão. E nem o silêncio constrangedor, nem o goelar deseducado dos momentos de descontração, conseguiam arrefecer sua cabeça perturbada. Sob miríades de luas, assistido pelos ventos suaves das noites, Sérgio buscava encontrar a razão das coisas simples que complicara. Mas, a dúvida de expor-se ao ridículo fustigava-o como arpéus, oferecendo-lhe a única justificativa da covardia. E quando a noite caía plena e pelos postigos de seu quarto inacabado, os raios do luar entravam, era como se mil dedos em riste descessem imperdoáveis sobre sua consciência. Nunca sentira tanto a desolação, nem pensamentos mais ferinos e hostis. Com voz baixa, sublinhada por murmúrios, homologava suas decisões, procurando em cada interpelação, o ajuizamento de sua vontade de fugir do problema não assumindo seus atos. E como entravam, às vezes, os raios do luar saíam, sem que por aqueles caminhos do céu, os argumentos divinos conseguissem convencê-lo. E era então que descobria e se convencia que, realmente, a sua irmã fora até bastante benevolente: era mais que um burro-branco – era um jumento-mor, dos mais estúpidos e teimosos da família. E quando a burrice tem a aquiescência da teimosia, aí, até Deus desiste.

Ergueu-se numa daquelas noites, tomou de uma esferográfica e papel e decidiu dar fim, quando nada, a seus problemas. Pela manhã, entregou ao primeiro pivete maltrapilho que lhe cruzara o caminho, uma gorjeta equivalente a cinco engraxadas de sapatos. No envelope e nas sucessivas explicações, o cumprimento perfeito da obrigação. O menino repetiu as recomendações e com mil pés, eclipsou-se na distância.

– Aqui mora Da. Maria de Jesus? – Era o moleque maltrapilho, pés no chão, calçãozinho esgarçado, sem camiseta. Portava nas mãos o envelope que Sérgio recomendara.

– Que deseja, menino?

– Um homem pediu para entregar isto à senhora.

Da. Maria apanhou-a. Era para Teresinha.

– Minha filha, chegou carta para você.

– E de papai?

– Ora, minha filha, seu pai não se lembra da gente há muitos anos, por que o faria agora?

– Não sei, acho que é porque agora estou precisando dele.

Apanhou o envelope e logo reconheceu:

– E de Sérgio – e dizendo isto, foi célere para seu quarto, encerrando-se nele.

Com as mãos trêmulas, abriu-a.

Minha querida:
Quanto eu desejaria possuir a força dos fortes e o poder discernitivo de Deus. Queria não errar, não ser injusto, não ferir. Contudo, as coisas se passaram aquém de minhas forças e, imbele, retorno aos caprichos de minha fraqueza. Não saio como um vencido, nem ficarei escondido sob a máscara da covardia. Vou tão machucado quanto deixo você ferida. Mas posso voltar.

Não quero que lhe falte nada. De onde estiver, quero caminhar imaginando vocês dois e não recostarei meu rosto ao travesseiro, sem elevar aos céus o meu pedido de ajuda e proteção. Buscarei a verdade como acorrerei à água, em cada dia de minha vida, para que não pereça um dia no remorso de ter sido injusto com você. Por ora, este é o melhor caminho. Não seríamos felizes desta maneira. Esta marca que ora entalho em seu coração, sei, que será indelével, mas o que neste momento povoa o meu espírito, não poderá jamais ser explicado.

Não consigo coadunar o meu amor por você com esta angústia e dúvida a martirizar-me. Sigo para longe, não para fugir de você, mas para ouvir a voz do bom senso. Continuar aqui é como tentar escrever um tratado filosófico no meio da balbúrdia. Preciso do silêncio, de muito silêncio. Nele espero encontrar a paz e a verdade.

Amo você. Foi um tempo maravilhoso em que fui feliz, em que me desvencilhei dos preconceitos, que implodiram aquela estrutura militar do seminário.

Com você aprendi a crer que temos direito de ser felizes nos momentos que a oportunidade se nos apresenta. Fomos, quero crer, muito sinceros um com o outro. Não quero jamais crer que não me amou e que o tendo feito, fê-lo somente a mim. O tempo dirá. De onde eu estiver, escreverei para você e podendo, ajudá-la-ei a criar o menino. Com muito carinho e tristeza, Sérgio.

A carta ficou nas mãos, como se delas fizesse parte. Os olhos pararam na assinatura e Teresinha sentiu por inteiro, naqueles segundos, o sabor da derrota e de toda angústia que se aninha na alma das pessoas que sentem, irreversivelmente, a perca daquilo com que mais sonhou. Gota por gota as lágrimas tombaram, sem que nenhum trejeito passeasse por seu rosto tristonho. E de todos os sentimentos, o maior é aquele que se revela na solidão, sem a necessidade das encenações vulgares e hipócritas. Era como se o inferno descesse sobre sua carne e o calor das chamas desidratasse em gotas toda a esperança de ser feliz.

Era a última coisa que perdia – a esperança. As pessoas só acreditam mesmo numa verdade, quando ela se faz em toda a extensão. É como a gente ter um ente querido desenganado, mas enquanto não descer à sepultura, a dor e a esperança sobrevivem e resistem como se tudo não passasse de um terrível pesadelo. Mas o dia chega, os olhos se fecham e aí, até a esperança nos abandona.

 

CAPÍTULO 28

A carta havia sido escrita à tarde e pedido para ser entregue pela manhã. Antes disto, sob uma neblina densa, Sérgio viajava, sentindo em toda a extensão a mais cruel das solidões.

Houve um momento mais forte em que parecia preferir que o carro se lançasse pelos precipícios das serras do rio Jucu. A neblina encimava o vale com pinceladas alvacentas, lá e cá esburacadas por borrões marrom-escuros dos rochedos, ou por vezes, pelo verde encardido do dossel florestal de alguns recantos e sopés. O despencar das águas em sucessivas cachoeiras, emitia o som conciliador do sono, e orquestra mais eficaz jamais houve para acompanhar um coração desolado e triste.

Guiava pelo reflexo, acelerando, freando, passando as marchas, sem a mínima percepção de seus movimentos. Olhos fixos no além, ia seguindo, vendo em cada ramagem, em cada pedra, em cada coisa que seus olhos mirassem, o desenho de um sorriso triste a acenar-lhe. Seus olhos fiscalizavam o asfalto como se fosse Adão aturdido diante de um troço sem nome a qualificar: não piscavam sequer, na fantástica ilusão de não prejudicar o raciocínio. Mas Deus vagueava nos átomos e passava penalizado por entre as tramas daquela estupidez. No escalonamento da evolução, o ser predileto de Deus chegava ao triste mérito de se codificar no mais alto grau de imperfeição. Era a esperança de um novo tempo, pois a correnteza arrefece depois da fase máxima de sangramento. Sérgio saíra entre os escombros de seus erros e caminhava estupidamente à procura do nada. Nem ele mesmo sabia porque estava agindo assim, tão aturdido e desolado se encontrava.

E pensava – pensamentos fortes que lhe queimavam a fronte. “Por que tinha de ser assim?” E o eco de sua pergunta dispersava- se, sem que nem mesmo um psicanalista celestial lhe devolvesse a atenção de revidar sua curiosidade com outra pergunta. Não fossem o orgulho e a covardia, toda dúvida poderia ser pisada, massacrada e vencida, ante o afago daquele anjo que abandonava.

Chegou a Brasília às vinte e uma horas. Estacionou seu carro, retirou urna pasta com toalha, pijama e dentifrícios e encaminhou-se à portaria.

– Que deseja? – perguntou com simplicidade o recepcionista.

– Qualquer lugar onde eu possa passar a noite.

Percebendo aquele ar estranho, o gerente aproximou-se:

– O senhor está se sentindo mal?

– Não se preocupe – limitou-se a responder.

– Se precisar de nossos serviços, toque a campainha. Temos refeitório e piscina.

– Obrigado.

Tudo nele estava compatível com seu estado de espírito. Quando o sangue lhe ardia no rosto, espevitando a chama do bom senso, preferia sacudir a cabeça, como se com isto pudesse arremessar do cérebro, as repressões de sua consciência. De borco, abraçado ao travesseiro ou a fio comprido qual múmia egípcia, jamais seus olhos cediam ao peso do cansaço e das dores musculares. Era como se o espírito afleimado castigasse aquele corpo indolente que relutava em seguir em frente, atendendo as exigências do orgulho.

Aquilo fora apenas uma parada, jamais uma noite reparadora. Aquele rostinho lacrimoso, a pressão das mãos em seu pescoço, aquela lágrima quente e salgada a passar-lhe pela boca, não lhe saía do pensamento.

Depois de horas enrolando-se no lençol, desabafou consigo mesmo:

– Ah, vida! – e dizendo isto, desceu da cama, lavou o rosto e saiu.

 

Ainda não havia imaginado onde parar, sabia apenas que queria ficar bem longe, num lugar qualquer do norte brasileiro, distante para não esmorecer e ter de desfazer seus planos. Sabia que era um sentimental e não podia expor-se a tal debilidade.

Dois dias depois chegou a Marabá. Era um lugar terrível, inóspito, quente, sujo e empoeirado – condizia plenamente com seu inferno interior. A única coisa bela era o verde que se aproximava do Tocantins e quase debruçava sobre as águas calmas do Itacaiunas, prenhes de pequenas embarcações que transportavam gente da antiga Marabá para a Cidade Nova.

Uma cigarra zunia agarrada ao tronco de um babaçu que havia no quintal.

Um dia, quando criança, ele estava triste – embora a real essência da melancolia estivesse diminuída por sua ignorância do que certamente fosse tristeza. Ouviu uma cigarra cantar naquela hora e os céus estavam cinza pela fumaça das queimadas de verão. Daí para frente, sempre que ouvia o canto da cigana, uma tristeza inexplicável penetrava na alma. Ele era longo, fúnebre e vinha sempre na desolação da Natureza, que ardia em calor, sol e fogo. E Sérgio sentia-se um condenado, com a voz aviltante de lúcifer a prever seu martírio, no zunido estridente dos élitros daquele inseto.

Se estava querendo chegar a lugar nenhum, havia conseguido. Gente diferente, embrutecida e aventureira cruzava-lhe o caminho, tendo no semblante um ar de mistério e desconfiança. E enquanto aguardava a balsa pacata e pachorrenta sob a castanheira milenar da orla do Itacaiunas, Sérgio pôde, por instantes, fugir de seus problemas e imaginar o crime ecológico e humano que se mantinha sob os auspícios de uma política falsa, ou pelo menos, mal estruturada, de ocupação do território. Gente sofrida que, de terçado em punho, desafiava as agruras daquela imensidão amazônica. Quantos filhos sacrificados em troca de uma política interesseira e estúpida!

Aquelas sepulturas pela orla da Transamazônica haveriam de ostentar-se pelos séculos afora, como lembrança póstuma de um fratricídio que houve em um tempo, graças a interesses políticos escusos. Maior estupidez jamais houve desde que decidiram que a política deveria existir pela necessidade premente de ocultar e tornar impune, a nata pútrida e corrupta que praticamente dirige os destinos do mundo. Quando vejo certos políticos genuflexos perante Cristo Crucificado, certifico-me da eficácia dos ferreiros judeus em conseguir pregos tão eficazes! Quantos crimes contra a humanidade e contra a Natureza, que embora tantos, ainda têm o privilégio de figurar nos anais como mérito de uma realização heroica. As mãos e os pés de Deus devem ter sido mesmo bem pregados, para não escapar dos pregos e dar fim a tanta hipocrisia e fingimento.

Quem esqueceu as 78 mil vidas levadas pelas bombas americanas no Japão? Dos 15 mil poloneses exterminados pelos russos em Datyn? Dos 1,5 milhão de armênios pelos turcos? Do genocídio hitleriano? Da Inquisição e mais hodiernamente, das guerras e da fome que grassam por quase todo o mundo, graças às manobras políticas das superpotências?

A justiça política é a força, e os políticos, a certeza de que se pode ser mais podre que a própria carniça. Todo mal do mundo é fruto da falta de escrúpulos e da ganância insaciável de muitos homens.

 

As marcas do crime impune refletiam-se nas feições tristes e abatidas dos pioneiros; no porte macilento e cadavérico das crianças; na tez lívida das mulheres febris e no embrutecimento de todo um povo que relutava para sobreviver diante daquela vereda sem retorno. Os olhos de Sérgio relutavam em procurar o belo, diante daquelas águas azuladas do Itacaiunas, com a castanheira sentinela postada na margem, onde já a falta de vegetação facilitava o desgaste das margens. Quão belo teria sido aquele mundo! Árvores centenárias, animais sossegados, peixes vadios – onomatopeia de saudades e beleza em cada canto em que ressurgia o som de um irracional. Ninguém fará mais pela Amazônia do que aquele que conseguir mantê-la incólume; ninguém será mais criminoso do que aquele que a destruir em prol do seu bem-estar ou mesmo do progresso.

É, mas agora era hora de pensar na subsistência. Lembrava que ninguém iria financiar sua desdita. Tinha proventos para apenas alguns meses. Escolheu um canto qualquer da cidade e instalou-se com um sofrível laboratório de análises clínicas e um escritório de contabilidade dos mais rudimentares.

Quantas semanas passou olhando o céu clarear e eclipsar-se, sem que um único cliente aparecesse. Era, porém, bom jogador de futebol e mais ainda, um ardente defensor da Natureza. Com o correr dos dias, passou a fazer parte de uma equipe de futebol de salão e mais alguns dias, alguns exames e escritas começaram a aparecer. Suspirou aliviado quando conseguiu equilibrar as finanças – era tudo o que pretendia.

De sua memória não se apagavam aquelas duas criaturas que deixara distante. Muitas noites foram passadas, antes que se desse ao luxo de deitar e conciliar o sono.

Já havia escrito para Teresinha e inclusive, enviado certa importância para ajudar na criação do menino. Dez dias depois, recebia a resposta. Era uma carta impregnada com a sinceridade e avalizada pela mão convencedora de Deus. Num repente, sem jamais entender o que se passava consigo, ele telegrafou:

“Anjo segue dinheiro passagem Banco Brasil pt Traga que puder, tome criança venha pt Estarei esperando Sérgio pt”

 

CAPÍTULO 29

Vinte e nove dias depois, numa tarde de quinta-feira, um táxi vermelho encostou numa casinha de taipa. Deu três apitos seguidos e depois chamou:

– Tem gente em casa?

– Já vai – disse de lá uma voz que, para Teresinha era muito familiar. Estava de calção, com uma chuteira na mão.

– Meu Deus, você veio?

– Oh, Sérgio, quanta saudade!

Ao lado, o motorista do táxi, atônito e curioso, aguardava o pagamento de sua corrida.

– Puxa, como é longe! Pensei que nunca iria chegar. Por que veio tão longe?

– Para fugir de sua lembrança.

– Conseguiu? – entrecortou ela com sorriso matreiro.

Abraçando-a fortemente, ele respondeu:

– Parece que não.

– Entendendo a distração dos dois, o motorista do táxi forjou uma tosse, bastante acentuada.

– Desculpe senhor, é que…

– Não precisa explicar, eu entendo.

A criança permanecia desconhecida. Logo, logo Teresinha percebeu que aquela frieza não era apenas fruto do transtorno da chegada. Tentou disfarçar:

– Olha, tem os cabelos lisos como os seus. Note como são mechas de algodão.

Ele correu a mão sobre a cabeça da criança e forçou uma carícia.

Quando se tem amor e afeição por qualquer pessoa ou coisa, as palavras são sempre dispensáveis. A maneira de olhar, de agir, o brilho dos olhos e a espontaneidade confirmam todos os sentimentos honestos que estão emergindo do coração.

– É lindo como você. Veja os lábios grossos, o formato da boca. Caiu bem em cima da raiz. Mas, vamos entrando. Pensei muito em ter de enfrentar, sozinho, este barracão solitário.

– Nem imagina quanto esperei por qualquer coisa que me desse a esperança de estar novamente ao seu lado, Sérgio.

Depois entreolharam-se demoradamente. Eram olhares penetrantes que conseguiam dizer, perguntar e explicar tudo. Ela parecia a mesma de há dois anos atrás. Aquele sorriso tímido, os olhos que não conseguiam esconder a emoção.

Começou a esquadrinhar a casa. Metia a cabeça numa porta, experimentava uma torneira, olhava para o teto. Na boca, sempre aquele sorriso incerto de felicidade. Fosse como fosse, ainda que durasse apenas mais um mês, valeria a pena. Sérgio era a pessoa que mais amava e queria. Enfim perguntou:

– Aqui é sempre quente assim?

– Talvez hoje não seja o dia mais quente.

– Você já se acostumou?

– Bem, procuro não reclamar.

Nisto a criança chora. Ela corre célere. Sérgio fica à distância. Ela percebe, era demais evidente.

– Você ainda anda confuso, não é mesmo?

– Eu amo você.

– Fiz-lhe uma pergunta, contudo se não quiser responder, não precisa.

– Preferia não tocar neste assunto. O tempo será a solução, tenho certeza disto.

– Eu juro mil vezes…

– Por favor, não fale mais nisto. Estou muito feliz com sua chegada e não quero que um de nós se aborreça.

– Está bem.

A noite veio e com ela todo calor daquele dia. A cidade era incrível. Uma poeira constante pairava no ar e um mormaço típico das grandes tempestades apresentava-se resoluto. No teto havia um grande ventilador que jogava nas pessoas um ar quente e desconfortável. Teresinha sentia tudo aquilo em silêncio e por mais que tentasse, não conseguia entender por que Sérgio foi escolher exatamente ali. Tantos lugares amenos em outras partes do Brasil!

Mas o certo é que ele não escolhera nada. Como um autômato saíra para o mundo, na débil esperança de fugir de si próprio. E foram tantos os seus erros que, mesmo sem a interferência do Eterno, a Natureza ajuizara-lhe aquele severo castigo. Um mundo desolado, onde nem os garimpos promissores ainda existiam como paliativos e justificativas a tão grande desprendimento. A cor da poeira entranhava-se na roupa e na pele enrijecendo-a e envelhecendo precocemente as pessoas.

Ali aprendia-se a retroagir, a perder o dom do raciocínio, como único meio de suportar tantas agruras. Pelas orlas das estradas, a folhagem inocente perdera o verde, para que nem mesmo a ilusão da esperança visitasse os olhos das pessoas.
No entanto, para Teresinha, o lugar e o clima era o que menos lhe importava. Ela, de fato, amava sem reservas. Depois do banho perguntou:

– Desculpe, mas estou com fome. Há alguma coisa que eu possa preparar?

– Aqui, alimento-me numa pensão. Não sabia que vinha. Por hoje iremos lá, e amanhã faremos as compras necessárias.

– Puxa, parece que estou sonhando! Não faz muito tempo que quase enlouqueci de tanto chorar. Nunca consegui entender a crueldade da vida.

– Não volte ao assunto, por favor.

Juntos, como dois amantes felizes, afastaram-se dois quarteirões, enquanto a criança dormia.

– Ela não irá acordar? – perguntou Sérgio preocupado.

– Nunca o fez. Desde que dorme só acorda no outro dia pela manhã.

– Bem, isto é muito bom. Tem-lhe dado muito trabalho?

– Nunca. E de uma saúde invejável.

– A criança tem seus traços, vai ficar muito bonita.

– Não fale assim. Você sabe que sempre quando diz isto, penso que está zombando de mim.

Tente acostumar-se. Acha por acaso que se estivesse mentindo passaria a você o endereço?

E muitos conversaram e se perguntaram. A madrugada já caminhava alta sem que a curiosidade e o desejo se desfizessem.

A distância e o tempo fazem esquecer, amainam, corrigem o espírito, como corretivos a terrenos, e deixam as pessoas com o prazer da primeira vez. Se fosse possível isso a todo mundo, quem sabe, a felicidade visitaria mais vezes os corações dos humanos.

 

CAPÍTULO 30

O menino cresceu. Chegou aos três anos. Era moreno como a mãe, sério, calado e acima da altura normal das outras crianças. Tinha um rosto redondo, a boca bem-feita e seus cabelos negros e macios caíam-lhe sobre a testa. Vivia solitário, brincando só pelo quintal. Parecia ter em si, toda a insegurança de sua origem. Dificilmente falava: aceitava ou recusava as coisas quase sempre com um simples gesto da cabeça. Era dócil e talvez inteligente bastante para perceber o caminho incerto que teria de seguir. Sentindo por intuição uma certa apatia do pai, mostrava-se a ele sempre muito recatado. Era impossível vê-lo atirar-se numa brincadeira ou num ato espontâneo de quem se sente amado. Isto já não era mais novidade para os pais que, por vezes, esquecidos da presença do menino, discutiam em voz alta. Sérgio percebia que precisava confiar para ser feliz, mas não conseguia. Um dia a discussão chegou ao paroxismo:

– Você trata o menino assim porque pensa que não é seu filho.

– Prove-o.

– Eu juro em nome de Deus.

– O Deus de sua cabeça, deve ser comparsa de suas falcatruas.

– O meu Deus é o mesmo seu.

– O meu deixa-me a dúvida. Por que está aqui a três anos e não engravidou outra vez?

– Não sei, não sei.

– Mas é muito fácil saber.

– Eu só tenho Deus como testemunha.

– Apresente-O pois.

– Não blasfeme, pelo amor daquilo que mais ama neste mundo.

– Não vou acreditar nunca nisto.

– Eu vou embora.

– Pois vá.

– Oh, meu Deus!, como você, Sérgio, está sendo injusto e cruel. Que irei fazer por este mundo com esta criança?

– Entregue-a ao pai.

Teresinha irrompeu em prantos e correu para o quarto. Sérgio foi à janela e ficou a olhar as águas do Itacaiunas que rolavam de mansinho. As águas sempre estiveram presentes em suas decisões e angústias. Lembrava do tempo do Seminário Menor, na praia Santa Helena. Havia deixado o interior, desgarrando-se de seus sonhos juvenis e sofrera o martírio da saudade naquele som tristonho das ondas que se desmanchavam na areia da praia. Lembrava quando agarrado ao alambrado do topo, fitava a curvatura do horizonte, naquele azul pontilhado de caravelas e barcos de pescadores que ao entardecer aproximavam-se da terra firme.

Depois, o rio Doce, poluído, nojento, a caminhar devagar para o mar. Lembrava aquela janela do casarão, onde perdido em mil pensamentos, perguntava-se pelo destino.

E agora, a mesma água, parecia assistir a tantas perguntas. Ele era um fraco, um orgulhoso, um prepotente masoquista, que preferia amarfanhar sua alma ante a humildade de aceitar e de perdoar.

Lá no quarto, o soluço amainava-se intermitentemente. Cá, a dor crescia. Fugir outra vez? Para onde? De quem?

A única perseguição estava dentro da cabeça dele. Ao lado, a criança que, embora não registrada, chamava-se Marcos, dormia. Sentou-se ao lado e sem aperceber-se, acariciou-lhe o rostinho. A boquinha entreaberta mostrava os tenros dentes bem-dispostos e, nem mesmo todo clima hostil reinante, conseguia penetrar naquele semblante de paz. A barriguinha subia e descia e, em espaços maiores, um respirar mais profundo, como quem tenta retirar pelos pulmões, as angústias que estão na alma.

Diante de tudo aquilo, daquela situação embaraçosa e espezinhante, ninguém sabia mais o que dizer ou o que fazer. Não se poderia prever por quanto tempo aquela situação angustiante reinaria ali. Por fim, Sérgio recompôs-se. No seu semblante, toda a rigidez e o desconforto de quem se vê obrigado a tomar uma decisão injusta, compatível apenas com a ideia fixa de jamais expor-se aos maldosos comentários do mundo. Num esgar de nojo às suas próprias convicções, cuspiu pela janela, voltando-se em seguida à sua posição enferma de decisão. E de Cristo, naquele momento, a única exortação que pôde fluir-lhe, foi a dita a Judas, por ocasião da Última Ceia: “O que tem de fazer, faze-o logo”.

Jesus sabia que o protelamento é peia à dignidade e além de piorar tudo, ainda deixa as pessoas arrasadas e doentes.

Deu mais alguns passos, entreabriu com a mão esquerda a porta, encostando-se a seguir no umbral. Num cataléptico estupor Teresinha jazia como que hipnotizada, olhando um ponto qualquer, como se dele pudesse brotar, ainda que fosse, um anjo da morte. Sérgio elevou e baixou os olhos várias vezes, fez até menção de deixar o tempo passar, mas por fim falou:

– Teresinha, por favor, chegue até aqui.

Ela veio. No seu rosto a tristeza e angústia dos desiludidos.

– Sente-se aqui, em minha frente.

Ela obedeceu, cabisbaixa, como um autômato. Quando em vez, incontrolavelmente, um soluço retardatário parecia fugir de seu coração.

– Escute, meu anjo, eu sei que estou errado, mas não consigo aceitar a verdade. Sei que já lhe feri bastante e por isso direi tudo agora. Não consigo tirar esta dúvida de mim, embora eu goste muito de você. Se continuar assim, esta criança terá sobre si, o peso de um castigo que será imposto pela minha cabeça. Não quero que isto aconteça. Eu jamais serei feliz ao lado de vocês dois e assim sendo, não farei também a felicidade de vocês.

Vou viver por aí, carregando nos ombros o fardo que escolhi. Jamais quero brigar com você. Nós nunca brigamos antes. Ninguém melhor que nós dois sabe que iremos passar esta noite em claro e não é justo que nos destruamos mutuamente. É melhor que se extraia agora mesmo, todo erro de nós. Logo que puder irá voltar – não precisa de pressa.

Para esta criança, por quem tenho o maior carinho como criança, não como filho, terá meu apoio enquanto viver. Você irá esquecer, assim como eu: pelo menos é o que apregoam os especialistas no assunto. Creiamos neles, pois é melhor viver dessa esperança.

– Está bem – disse ela com a voz sumida e os olhos perdidos num infinito de mistério. Estava certa de que desgraça maior não poderia jamais se abater sobre ela. Sentia que nem a morte podia ser pior. Não fosse o Marquinho, talvez aquela noite ser-lhe-ia eterna. Apanhou o filho, deitou-o carinhosamente, enquanto uma lágrima ficava banhando aquele rostinho angelical e inocente.

Esfregou a lágrima para lá e para cá com o dedo, espalhando-a no rostinho angelical do menino. Não sabe quanto tempo ficou ali, no silêncio do plangente e calado queixume que lhe circulava todo ser. Quantas vezes tivera inveja das meninas ricas que podiam ser felizes; quantas vezes chorou por isto! Depois conheceu Sérgio e desculpou-se: ela era a menina pobre mais feliz do mundo. De uma coisa morreria certa naquele instante: ela fora a menina e a mulher mais feliz e a mais infeliz do mundo.

 

CAPÍTULO 31

Sérgio sempre fora um sentimental, extremamente ansioso, emoções essas bem encarapuçadas sob um véu de dureza e de irredutibilidade. Na verdade, não saberia dizer quantas vezes seus olhos derramaram lágrimas. Vivia qualquer encenação teatral ou cinematográfica, lia qualquer história triste como se fosse o personagem. Por isso, os dias que se seguiram à volta de Teresinha, tinham-lhe sido duros demais. Andava cabisbaixo ou ficava extático ao entardecer, fitando o horizonte sem fim. Aquele quarto, aquela cozinha…

A angústia nascera com ele num deslize digno dos divãs, sem, no entanto, jamais conhecê-los. Vivia sempre com saudades do lugar e das coisas que haviam feito parte de sua vida. No colégio, uma vontade louca de estar em casa; em casa, uma ânsia inexplicável de abraçar o mundo. Nos horizontes ou pelo infinito, a dor da ignorância, a ânsia sufocada da inexpugnabilidade. Seus olhos, perdidos no espaço infinito, buscavam as sagas do passado, como o chão pisoteado de Jerusalém, onde em algum tempo, o Filho de Deus também deixara as marcas de Sua sandália. Por ali muita coisa descomunal e fantástica acontecera. Palco de glória e de mistério, patamar eterno onde brilharam as ribaltas estrelares, capazes de encher nosso pequeno conhecimento de mistérios e de reconhecida ignorância. Na solidão da noite, ou nos momentos de descanso, a tristeza e a angústia do desconhecido. E era sempre nestes momentos de paroxismos que ele acabava por sucumbir e tomava decisões precipitadas:

– Irei embora!

Ir embora seria uma eterna fuga de si próprio, em busca de lugares diferentes em que uma janela, uma árvore, um objeto… não trouxessem a seu espírito, a amargura do perdido. E suas decisões eram sempre concluídas, certas ou erradas. No outro dia, arrumou o que pôde e partiu sem saber o destino.

A menos de trezentos quilômetros da cidade de Marabá, por distração, bateu seu carro num barranco, próximo a cidade de Imperatriz. Toda a frente ficou bastante danificada e o carro impossibilitado de viajar. Auxiliado por uma basculante, foi arrastado até a cidade e mais uma vez, o destino ou coisa que o valha, decidiu por ele, o lugar em que deveria permanecer.

A cidade era cortada pela Belém-Brasília e vivia um momento de esperança com a descoberta de Serra Pelada e com a exploração alvissareira da madeira. O movimento era intenso. O custo de vida acompanhava o desenvolvimento. Perdido naquele mundo de correrias, novamente sem amigos, Sérgio se viu jogado.

Apesar do grande desenvolvimento, a falta de higiene – como constante das cidades da região – pululava por todos os recantos. Os esgotos eram lançados nas ruas e escorriam pelas avenidas e ruas, formando pequenas lagoas imundas e fétidas. O mau cheiro exalado causava um grande mal-estar. Os carros carregavam nos pneus toda aquela imundície, espalhando-a por toda extensão em que passavam. O sol (no verão) tornava tudo aquilo rapidamente em pó e o vento se encarregava de transportar toda sorte de doenças até as narinas e garganta dos transeuntes. Não obstante todos estes inconvenientes, a cidade recebia aventureiros das mais diversas partes do País a cada dia e crescia desordenadamente. E foi exatamente ali, já sem condições de prosseguir por falta de dinheiro, que Sérgio teve novamente de parar. Estava angustiado, mais triste do que nunca.

Telefonou para casa. Falou com Anoel, seu irmão mais velho, eterno confidente. Disse tudo, tentando não esquecer nem omitir nada. Precisava desabafar, dividir um pouco aquele fardo pesado. Aquelas palavras do irmão chegaram-lhe em bom tempo asseguraram-lhe algumas horas de paz.

No outro dia, com auxílio de mecânicos, começou a arrumar seu carro. Os gastos com tudo aquilo baixaram bastante sua disponibilidade, evitando inclusive que seguisse viagem. Sem emprego não tardou a sentir que o dinheiro de que dispunha, daria apenas para mais alguns dias.

Na separação dos objetos que podia vender para arrumar-se até que um emprego aparecesse, estava um ventilador, um rádio e um gravador com problemas. Teria, pois, que colocá-lo em funcionamento. Andando pelas ruas, lobrigou uma oficina de conserto de eletrodomésticos. Entrou. Um senhor magro, de rosto fino, aparentando seus trinta e cinco anos, veio atendê-lo.

– Deseja alguma coisa?

– Este gravador está com problema e….

O telefone toca.

– Nancy – disse o senhor – atenda o freguês.

Nancy era uma criatura quase pequena, cabelos e olhos negros, corpo gracioso, boca de um desenho sensual atinente à ideia de sensualidade de Sérgio e a voz mais meiga que o arrulho grave de uma pomba. Sem dizer nada ela se aproximou e fixou seus olhos nos olhos de Sérgio. Entreolharam-se como que surpresos. Boquiaberto, Sérgio deixou que seus olhos se fixassem naquele rosto que, sem saber porquê, continha algo muito estranho. Ela também ficou extática como se entre eles tivesse havido, em algum tempo, estrita relação.

 

Há certas relações indecifráveis entre as criaturas, que mesmo a um incrédulo soa bem as explicações de Kardec. Mas se nem a descrença, nem o espiritismo puderem ajudar, então fiquemos com o poeta: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Com explicação ou sem ela, havia algo estranho gravitando no espaço de Sérgio e Nancy – eles sentiam, e era forte. Durante toda a explicação, ambos paravam, olhos nos olhos. Nenhum dos dois conseguia entender aquilo. Por fim, ele se retirou.

Naquela noite deve ter pensado mil vezes naquela mocinha de boca sensual, voz meiga e olhar penetrante. Nancy, por sua vez, durante os dias que se seguiram, não conseguia ir além de várias repreensões na escola. Por mais que tentasse, aqueles olhos azuis penetravam-lhe a alma e viam fundo no seu coração. Quando seu namorado chegou eufórico para buscá-la já não a dominavam a meiguice e a atenção do dia anterior.

– Que há com você, Nancy? – obtemperou ele.

– Sinceramente, não sei. Não estou me sentindo bem. Leve-me para casa, por favor.

CAPÍTULO 32

Sérgio vendeu muito de suas coisas para garantir a hospedagem. Procurou serviço nos jornais, nos laboratórios e escritórios. Tudo em vão. Pensou em vender o carro, mas logo entendeu que isto não seria a solução, apenas mais um problema. A coisa não estava fácil.

Foram dias cruéis que lhe fizeram esquecer a angústia de Marabá. Toda noite, depois de um dia infrutífero, ficava a fitar o teto de seu quarto, perdido na retrospectiva de seus últimos anos. A saudade era uma constante. Não possuía amigos, não conhecia ninguém.

Um dia, procurou o dono da pensão e contou sua história, falou inclusive que faria qualquer serviço pela alimentação e pela dormida. O senhor Manoel ouviu-o atentamente sem dizer uma palavra. Era um cearense simples, bom, e acima de tudo, muito inteligente. Não possuía cultura de espécie alguma, mas sabia diferenciar plenamente as coisas. Depois de ouvir Sérgio, tapeou-lhe o ombro dizendo:

– Não se preocupe rapaz. Vai ficando por aí. Quando arranjar emprego você me paga.

– Mas….

– Esqueça. Venho da fome e da dificuldade. Esta vida não tem mistério para mim. Pode ser que um dia eu lhe bata a porta e você me vire as costas – mesmo assim não estranharei. Há tantos que falam e falam em resolver o problema do mundo, sem atentar que eles, os problemas, fazem parte deste mesmo mundo. Isto nasceu assim e assim terminará.

E sem esperar qualquer comentário foi virando as costas e saindo:

– Vai ficando por aí, meu filho.

Pelos percalços da vida Sérgio tinha feito amigos, recebido favores, conselhos, amor e repreensão. Porém, jamais, em toda sua vida, alguém lhe tinha aliviado tamanha carga. Voltou para o quarto e respirou fundo: uma lágrima desceu-lhe dos olhos. Enxugou-a com o antebraço e depois de tanto tempo, pôde sentir que a vida continuava e que neste mundo-cão, nem tudo está perdido. Tomou seu banho, recolheu-se e dormiu, dormiu como a tempo não o fazia.

Quando despertou abriu a janela, voltou-se até o umbral da porta, escancarando-a, e qual galinha que bate as asas e salta ridiculamente pelo amanhecer, esbofeteou os ares, esticou os bíceps, espreguiçou-se como um gato refestelado e bocejou qual deseducado hipopótamo. Freud tanto falou da busca inconsciente dos pais, mas talvez tenha esquecido que se pode encontrá-los nos acasos da vida. Aquele cearense cadavérico, de lestos movimentos, na vacuidade das letras, possuía a singeleza inata de fazer, com uma simples palavra, o que somente ao próprio Deus é facultado: a felicidade.

Como é covarde o homem, diante das dificuldades; como é fraco diante da incapacidade de sobreviver; como é dependente quando retirado de seu mundo. O homem tem momentos de grandeza quando é julgado pelo seu trabalho e, na maioria das vezes se amesquinha na vivência do dia a dia. Isto Sérgio sentia agora em todo esplendor. Quantos – de aonde viera – admiravam-no pela coragem de se autodeterminar e quantos, aqui, dele se penalizavam pelo simples fato de ser humano.

Tinha sonhos bonitos de sobreviver dignamente; de ter um lar em que pudesse ter centralizada, toda sua razão de viver; de poder olhar o infinito sem a angústia de querer estar em outro lugar. Não era o sonho impossível dos nazistas de querer um mundo sem judeus, mas um desejo simples que a maioria dos mortais conseguem.

De qualquer forma, cada ser humano tem condição de ser grande: uns o são nas Letras, outros na Química, outros na Filosofia e outros, no sofrimento e nas angústias.

 

CAPÍTULO 33

Embora contra a vontade do sr. Manoel, Sérgio sempre que podia, ficava no caixa ou atendia os clientes. De alguns artigos que escrevia, recebia pequenas importâncias. O sr. Manoel admirava-o cada vez mais, mas não tinha nenhum prestígio para ajudá-lo. Como todo bom cearense, só aprendera a lutar honestamente pelo sustento da família. E Sérgio pensava, dia após dia, como se fazer presente naquele ambiente desconhecido e aparentemente hostil. Numa noite, arquitetou um plano que, se desse certo, todos saberiam de sua presença na cidade.

Foi para a máquina, debruçou-se, imaginou e começou a escrever. O artigo era a maior afronta contra algumas verdades comuns de qualquer lugar do País. Separou algumas pessoas das mais importantes da cidade e assinou uma denúncia com graves acusações.

Embora se visse amedrontado no começo, logo encontrou calma e tranquilidade na certeza de que seu gesto seria apenas promocional. Dois dias depois, a crônica assinada era o assunto da cidade. Um mês depois estava nas barras dos tribunais. O plano estava funcionando. Agora precisava ter coragem, senão punha tudo a perder. Nunca os trâmites judiciários foram tão eficientes. Testemunhas arroladas, audiências preliminares… tudo o que existe para retardar um processo quando há interesses escusos infiltrados, desapareceu como por encanto. Afinal, certos nomes não poderiam ficar à baila por muito tempo.

No dia do julgamento, muita gente acorreu para ver e ouvir a comprovação de tão graves acusações. O senhor Manoel, sentado num dos bancos como testemunha do comportamento de Sérgio, mantinha-se impassível.

O juiz, empertigado em sua cadeira, ladeado pela promotoria e pelo advogado de defesa nomeado, ostentava um barrete de pelúcia, à moda esquimó, que dava no conjunto da toga, um aspecto de falso poder. Era baixote, rio-grandense-do-norte, possuidor de uma pele bronzeada naturalmente, como se o sol nordestino tivesse chegado um dia para ficar. Seu bigodinho nazista tremelicava sempre ante os “esturros” que emitia, na vã tentativa de equilibrar a defasagem do porte. E sempre muito penoso o trabalho dos baixotes, negros e toda sorte de complexados, quando ocupam cargos hierárquicos não condignos com seu tamanho ou cor. Nestes casos, não sendo eles gênios autênticos, o cargo se transforma em meio de compensação.

O juiz, ferindo a garganta, impôs-se:

– … jura dizer somente a verdade…

– Juro.

E quando acusados, curiosos, jurados, promotor, advogado de defesa, escrivão e demais pessoas ali presentes, preparavam-se para a penosa jornada das eloquências, Sérgio ergueu-se abruptamente e sem vênia nem consentimento expresso, fez-se ouvir:

– MM Juiz.

Venho de longe, a procura de mim mesmo. Minha vida tem sido um martírio, uma constante dúvida, uma infindável batalha por um lugar ao sol e pelo direito de sorrir e ser feliz. Em minhas veias corre o sangue de Vêneto, perpassado da agonia de quem deixa o lar para aventurar-se ao desconhecido. Não consigo achar o meu lugar, porque ele deve estar longe do lugar em que procuro.

– Enlouqueceu – balbuciou o sr. Manoel para consigo mesmo.

O juiz permanecia com a mão sobre a campainha: feição de estranheza e espanto. Ele continuou:

– Jamais tive nada contra esta gente. Aliás, nem os conheço direito, embora possa sentir na ansiedade deles, a anuência às minhas acusações.

Na feição dos acusados, um suspiro de sossego e desagravo: “É realmente um louco, graças a Deus!

 

– Contudo, vocês precisavam saber que eu existo e que só não estou passando fome, graças a este senhor que está ali sentado de chapéu na mão. (Referia-se ao senhor Manoel). Quero que me perdoem e creiam que tudo não passou de uma artimanha para pedir socorro.

O juiz bateu na campainha – não sabia o que dizer ou fazer. Por fim, pediu que Sérgio se retirasse e ficou em seguida a confabular com os “ilustres acusados”.

Embora sem o decoro judicial, fora da ética e de toda norma que rege o julgamento de um réu por injúria ou calúnia, o juiz deu o caso como encerrado.

Mesmo sem comprovação, o que Sérgio delatara era verdade. Por isso, os acusados se deram por satisfeitos ante a retirada da queixa.

Era tal o descaso pela honestidade em Imperatriz que, se Erica Jong os relatasse com a mesma impertinência com que açoita a sensibilidade dos pudicos, por certo desejaria defecar de um lugar bem alto, para ver se sua cega pontaria alvejasse as frontes honradas dos políticos e demais “homens de bem”, que desfilassem por baixo.

Bem cedo, Sérgio compreendeu, como Richard Llewellyn, que de seu traseiro coisas bem mais sensatas já haviam saído do que a demagogia dos exploradores da ingenuidade humana. Por isso os detestava e se não vomitasse, muito se sentia mal, caso fosse obrigado a ouvi-los.

 

CAPÍTULO 34

Na semana seguinte, outro assunto não dominava as manchetes dos noticiários da cidade. Ele tinha conseguido. A maior loja de produtos variados (desde a revenda de carros até o comércio simples de bijuteria), convidou-o ao posto de relações públicas, enquanto o jornal melhorava consideravelmente o preço de seus artigos. A vida voltara e a paz parecia reencontrar-se num coração proscrito. Escreveu para casa. Foi tanta a emoção daquela vitória, que seus familiares lhe responderam cheios de admiração e orgulho. Aquela semana, como que renascido, escreveu para todos seus amigos e dispensou especial missiva à Teresinha:

“Nunca a esqueci nas dúvidas de minha alma. Paira no meu coração forte anseio de revê-la. Sou pequeno demais para desvencilhar-me desta imensa rede de dúvidas que me açambarcou. Daqui de longe vou amando você como posso, na certeza de que nenhum entrave poderá interferir no relacionamento espiritual que nos envolve. Assim somos mais felizes e, por mais tempo viverá nossas recordações. Nunca duvide de minha especial afeição pelo Marquinho, a quem desejo tudo de bom nesta vida. Infelizmente estimo-o apenas como criança, como filho da mulher que quase adorei no passado. Não fique zangada, pois a sinceridade é como a dor de uma cirurgia que extrai um tumor: dói muito, mas depois alivia e a gente reconhece que foi necessária e providencial.

Estou muito feliz hoje. Escrevi para todos aqueles que merecem partilhar do meu contentamento. Não há felicidade maior do que a vitória que advém do sacrifício. Depois de muito sofrer, esta minha boca pode hoje sorrir: o sorriso de uma vitória tardia e bastante esperada.

Queira Deus que eu possa entrar em sua alma com todo este contentamento, e intumescê-la com estas lágrimas de felicidade. Estou empregado, ganhando o suficiente e podendo enfim, assentar-me numa lanchonete sem perguntar pelo preço do pastel. Estava desacostumado a isto.

Dê um abraço bem forte no Marquinho.”

Havia muito tempo que Sergio já não podia respirar fundo, olhar o firmamento e divisar entre os asteroides da imaginação, o mundo pequeno de Exupéry, preparado agora, por sua felicidade, num imenso planeta todo seu. Mas, ainda que fosse menor, que mesmo um gafanhoto danificasse seu universo, ele era rei, rei de seu mundo, príncipe de seu reino, dono de si, do seu sorriso, de sua vida. Meio caminho. Ainda havia tempo para empatar aquele jogo de tantas derrotas: o jogo da vida.

As pessoas têm de ser grandes. Para isso foram criadas e vieram a este mundo. E são muitas as maneiras de ser grande. Quando tudo parece desvanecer, ainda restará, nos resquícios das desilusões, a grandeza do sofrimento.

O certo e que não se pode parar, esmorecer. E Sérgio sentia que poucas pessoas podiam sentir a felicidade em toda a extensão, assim como ele o fazia agora. O prêmio da dor está na alegria de superação.

Nos tempos de criança, quanta a alegria povoava seu coração ingênuo nos dias de Santa Luzia e do Menino Jesus! Aqueles carrinhos de plástico, bolinhas de borracha e toda sorte de miçangas, vinham-lhe com a dedicatória dos céus e nenhum autorama sofisticado das eficientes fábricas de brinquedos hodiernos conseguirá efeito parecido em criança de pais ricos. Deus dosa as pessoas com sentimento e sensibilidade compatíveis com aquilo que podem dar, oferecer e receber!

Só hoje ele reconhecia que aquelas lágrimas de dona Jesuína (uma boa e rica senhora da cidade vizinha), não se justificavam diante daquele carrinho de pau, no dia de Natal. Ele estava feliz, empurrando o brinquedo, explodindo um som gutural de motor, quando esbarrou no vestido de seda branco, tingindo-o do bege da poeira. Vestia uma calcinha segura por suspensórios e estava sujo e suado, com a pele crestada pelo sol. E fitando-o, dona Jesuína começou a chorar, como se o próprio Deus fosse injusto na partilha dos brinquedos. Sérgio pensou que aquelas lágrimas fossem de raiva por ter sujado o vestido dela, mas agora percebia que ela chorava de emoção, entendendo que um simples carrinho de pau pode fazer uma criança, também simples e pobre, muito feliz.

 

CAPÍTULO 35

Lembrando agora daquele galo esquelético da vizinha que, mais bem programado que relógio eletrônico, todos os dias o despertava às quatro horas em ponto. Naquela cidade quente, era o horário mais propício para descansar. No entanto, uma vez acordado, Sérgio não conseguia mais dormir. Primeiro foram os problemas de uma vida incerta; agora, a lembrança daquele olhar profundo, que conseguia dizer tudo sem pronunciar uma única palavra. Porém, toda aquela poesia dos olhos não tornava menos confusas as eternas dúvidas aninhadas em sua cabeça.

De um lado para outro, Sérgio contorceu-se até que os primeiros fachos de luz penetraram pela claraboia do teto. Levantou-se. Abriu a janela e pôde notar que, mais uma vez, sem nenhuma surpresa, o sol reaparecia límpido e ardente lá por detrás da cidade.

Depois de seu costumeiro banho da manhã e do desjejum, vestiu-se e foi apanhar o carro que deixara estacionado sob um pé de limãozinho. Ligou a ignição e saiu, sem saber exatamente para aonde. Não havia nenhum compromisso para aquela manhã, a não ser uma pequena crônica sobre Ecologia. Por isso ia devagar, ouvindo músicas românticas e deixando que seus pensamentos evolassem da terra às estrelas. Ia devaneando quando, ao dobrar uma esquina, notou bem à frente, uma garota que caminhava com a graciosidade de uma rolinha. Usava sandálias simples, calça jeans e uma camiseta rosa-choque. Não era grande, nem forte, mas sobrava-lhe feminilidade. Pressionando o acelerador, Sérgio deu a volta ao quarteirão e veio descendo em direção contrária: era ela. Seu coração pulsou forte e entre indecisão e ansiedade, parou o carro. Ela também o reconheceu e parou para ouvi-lo:

– Menina, por favor, gostaria de falar um pouco com você.

Ela se aproximou, demonstrando no olhar, um grande enigma. Fitava nos olhos e parecia por eles entrar, alcançando os pontos mais recônditos dos sentimentos. Pessoas há que dizem mais com um simples olhar do que muitos com mil palavras numa carta.

– Pois diga.

–Bem, acho mesmo que não teria nada a dizer, porque mal a conheço.

–Talvez.

– Você está lembrada de mim?

– Estou sim. Esteve viajando?

– Não. Apenas nossos caminhos não cruzaram mais depois daquele dia.

– Sim, o que tem a me dizer?

– Não sei como fazê-lo.

– É tão importante assim?

– Talvez, para mim.

– Pode dizer, sou toda ouvidos.

– Você estuda?

– Sim.

– Onde?

– No colégio Graça-Aranha.

– Fica longe?

– Nesta mesma rua, a quatro quadras daqui.

– A que horas começam as aulas?

– As dezenove horas.

– Você se importaria de falar comigo das 6h30min até o início das aulas?

– Por que não diz agora o que tem a dizer?

– Puxa! Não torne as coisas difíceis ainda mais para mim.

– Está bem, eu irei – disse ela, num tom de fugacidade e meiguice.

– Não deixe de ir, é muito importante para mim.

– Não falharei, pode estar certo.

Ela seguiu matreira, num jogo de braços e gracioso bamboleio dos quadris. Era simples e misteriosa. Sérgio pensou na inutilidade do jogo feminil, quando tenta predispor-se ao agrado de quem ama. Não havia nela roupas extravagantes, joias reais, nem maquiagem de salão. Havia sim, um olhar prenhe de mistérios e que deixava desnorteados todos os que tentassem defini-la. Seu jeito coadunava, encaixava perfeitamente, como o côncavo e o convexo.

Ela nascera com tantos problemas quantos povoaram a mente de Jong, em Isadora. E como Isadora, iria mudar, tentar voar, andar cegamente pelos galhos emaranhados, sem se afastar do tronco de angústia, incerteza e desejos sufocados. Como Isadora odiar-se-ia por ser mesquinha, reprimir desejos e medos, enxergar apenas o interesse e massacrar aqueles que a amassem. Enfim, conseguiria gostar e desprezar, numa eterna ansiedade de viver tudo o que se achava com direito. Tinha a falha convicção de que a felicidade tinha preço alto demais para ser adquirida apenas com o necessário.

 

CAPÍTULO 36

Ela veio vestida de branco, incomum à farda habitual do colégio. Morena, bem tratada agora, estatura um pouco abaixo da mediana, cabelos negros ligeiramente ondeados na cabeça e caindo inteiramente lisos pelos ombros, nariz pequeno e bem feito, rosto bem desenhado conforme o senso de beleza de Sérgio, lábios de Brigitte Bardot, dentes claros e andar cheio de graciosidade. Na voz, a ternura e a meiguice do que é realmente terno e meigo; nas palavras, eterno enigma. Era ali, nos enigmas, que ela mantinha todo atrativo. Seus olhos negros sabiam penetrar no âmago das pessoas e deixar transparecer o que, nem o maior dos poetas conseguiria expressar por meio de palavras, caso tentasse.

Com os livros nas mãos ela foi passando pelo carro como se não tivesse notado. De repente, olhou de lado e disse num tom de surpresa:

– Olá, é você?

– Como vai – retrucou Sérgio, boquiaberto com a candura ainda mais acentuada pelo vestido alvo, caído sobre o corpo.

– Imaginei que não viesse.

– Ora, não pensei em outra coisa durante todo o dia.

– E mesmo? Que bom!

– Fala sério?

– Falo sim. A propósito, o que tem de tão importante para me dizer?

Aquela maneira frontal de perguntar desfez os preparativos que Sérgio vinha engendrando para dizer de seus sentimentos. Desconcertou-se um pouco se recompondo em seguida:

– A gente mal se conhece, bem sei, mas os sentimentos existem e despontam, na maioria das vezes, sem nosso assentimento. Bem sei que você é uma menina inteligente, tenho sentido isso desde o primeiro dia em que a vi. Mesmo assim deseja ouvir o óbvio?

– Não sou ninguém – disse ela em tom de brincadeira.

– E como o Ninguém’’ se chama?

– Nancy.

– Todo enamorado repetiria seu nome em tom de surpresa e diria ser lindo – obtemperou ele.

– E você?

– Eu digo que é mais linda que o nome. Nancy – continuou ele sem que ela interferisse – estamos a alguns minutos aqui conversando e deve estar cansada de estar de pé. Não gostaria de entrar para falarmos o que falta dizer, mais comodamente?

– Não sei se devo. Mal o conheço.

– Deve sim. Nunca tema as pessoas que gostam de você.

– E quem me garante que você gosta de mim?

– Meu coração.

– Ele está maluco.

– Talvez.

Ela entrou, sentou-se, colocou os cadernos sobre as pernas e depois de fitar profundamente o rapaz, disse secamente:

– Olha moço, esta cidade está impregnada de fome e miséria. Por isso, a prostituição prolifera, pois, a dignidade sucumbe onde a fome impera. Todos os imigrantes, forasteiros e aventureiros procuram tirar proveito desta situação. Os homens em geral não se diferenciam muito dos porcinos diante dos lamaçais da concupiscência. Tenho apenas 16 anos, mas já sei que os homens não prestam e que a exceção não vai sobrar para mim. Sei que está interessado em mim e espero que não seja apenas mais um que, depois do primeiro quarteirão, irá convidar-me a um motel. Sou pobre e vivo numa rua como a “Poor Boy” de Mavis, mas jamais venderei meu corpo para sair da miséria. Não é por nada não, é simplesmente porque gosto muito de mim mesma.

Estarrecido e injustiçado, Sérgio ouvia tudo aquilo sem dizer uma única palavra. Embora soubesse que pela cultura do lugar, as suspeitas de Nancy fizessem sentido, ele ainda não se prendera a tais possibilidades. De fato, ele mal a conhecia. O que sentia por ela era algo mais sublime, mais real, mais digno do que o medo que imperava naquela cabecinha, certamente, massacrada. Por isso, depois de ficar por alguns segundos pensativo, disse com voz grave:

– Nancy, lamento o que as pessoas têm feito a você. Percebo que apenas em 16 anos já conseguiram fazer de você uma criatura assustada e desiludida. Olha menina, não foi para isso que quis ver você. Pelos percalços da vida tenho sido também, quem sabe, até mesmo um bandalho, mas não estou pensando em você como algo descartável. Na verdade, suas palavras ajudaram-me bastante e deram-me ainda mais coragem para dizer que sinto por você uma grande atração. Há algo muito comum entre nós: a dor. Gostaria muito que me desse a oportunidade de nos conhecermos melhor, não obstante esteja tão desiludida com os homens.

Talvez acreditando na sinceridade daquelas palavras, Nancy, virando-se mais para Sérgio, desculpou-se:

Não se zangue comigo. Não quis magoar você. De tanto a gente ver aviltada a dignidade humana, acaba por ferir as pessoas erradas. Desculpe-me.

– Esqueça. Afinal você não me feriu, pois, a carapuça não coube na minha cabeça.

– Ainda bem.

– Nancy, e o colégio?

– O colégio? Puxa, que horas são?

– Vinte e uma horas. A coordenação permite entrar em qualquer horário?

– Não.

– E agora?

– Agora deverá me levar para casa.

– Poucas vezes tenho recebido sugestão mais desejada.

Quando chegaram à uma casa modesta da avenida Coronel Manoel Bandeira, ela disse:

– E aqui. Ainda deseja encontrar-se comigo?

– Por que diz isto?

– Por nada – limitou-se a responder.

Não era preciso ser muito inteligente para deduzir que naquela cabecinha, ainda tão imatura, já um mundo de desilusão e controvérsia existia. Considerava a pobreza um desastre e transferia o destino das meninas pobres da cidade para si, num escarnecimento à nobreza humana. Não confiava nos homens e entendia que nenhum deles carregava em si, a nobreza de respeitar a dignidade de uma jovem pobre. Por isso, sem apressar-se em entender o que se passava naquela mente introvertida, Sérgio despediu-se com um leve aperto de mão:

– Boa noite Nancy. Meu nome, para relembrá-la, é Sérgio, e gosto de você. Sábado, às 20h passarei por aqui. Se estiver pronta, esperando por mim, iremos jantar juntos. Se não estiver, aceitarei como resposta.

– Boa-noite – respondeu ela, olhando fixamente nos olhos de Sérgio e injetando pela primeira vez o doce veneno que eles continham.

 

CAPÍTULO 37

Ela não imaginava que existisse nas mansardas ribeirinhas do Tocantins, ou nas cercanias daquela cidade sem infraestrutura, qualquer ser humano que não estivesse pretenso a chafurdar-se, levando consigo tantos quantos pudesse. Os homens sem brio, insensatos, já não mais ofereciam às meninas que tencionassem seguir as normas morais, qualquer chance de conseguir seu intento. Era como se a exultação da mulher feita por Nietzche alcançasse nos corações, o clímax do delírio. Era um tempo em que o sexo parecia haver sido apenas descoberto. Do imberbe ao ancião, todos podiam consegui-lo sem qualquer constrangimento. As bancas de revistas viviam entulhadas de publicações pornográficas sem o mínimo de censura. Empilhada de aventureiros, corsos, pistoleiros, homens de todos os naipes: a cidade de Imperatriz viveu nestes anos a pior fase de sua história.

Numa voracidade de valores prepósteros, pessoas “fabricadas” nas universidades exibiam seus diplomas nas paredes como se aqueles papéis garantissem a competência e os valores morais. Não se importavam com a sorte dos vanguardeiros, que chegaram com a única intenção de sobreviver dignamente e criar suas famílias.

Diante das dificuldades, da fome, da miséria e do enfraquecimento moral, os aventureiros lançavam-se sobre as famílias infirmadas e conseguiam, ao preço de uma voltinha de carro, o que as tropas russas impunham às donzelas de Varsóvia por ocasião da segunda grande guerra. Era como se exércitos inteiros se abatessem sobre ela e demolissem os alicerces da família e da moral. Por isso, a prostituição grassava impune, os pais já não estranhavam a filha “buxuda” que vomitava pelos cantos, nem a justiça e a polícia, partícipes do sistema, faziam qualquer coisa para impedir tamanha empulhação. Era como se Caldwell tivesse vindo buscar em Imperatriz, a inspiração para seu “Chão Trágico.

Não era, pois, de se estranhar que aquela menina, relutante em não ceder aos caprichos da horda embrutecida, que sem o mínimo respeito tentava aliciá-la, estivesse assustada, mesmo diante dos mais puros sentimentos de Sérgio. Tentaria compreendê-la e respeitá-la, embora soubesse como iria ser difícil frear os impulsos daquela grande paixão.

Passaram-se longos dias, pois jamais tardaram tanto, as horas daquela semana. À noite, Sérgio não conseguia mais concentração para ler ou escrever seus textos. A cada dia aconteciam descobertas. O mundo evoluía. Era preciso ler muito para estar a par dos acontecimentos. Lembrava os tempos da Idade Média, em que os sacerdotes impunham sua sapiência universal, adquirida num lapso de tempo de algumas décadas. Agora, a caminhada era dura, pois no dia a dia, novas descobertas, novos rumos e modificações o mundo sofria.

Pensou muito. Aquilo seria uma escolha que teria de tomar, e de imediato. Por mais que lutasse, aquela figura diáfana penetrava no recinto, cobrindo seus olhos, embaralhando as letras e paralisando seus pensamentos.

Empurrou o livro de lado, recostou a cabeça na mão. Olhos fixos, pensamentos libertos. Era o recreio que se oferecia, permitindo que sua mente divagasse, amasse, mas que, por fim, aceitasse as ordens da razão e voltasse ao trabalho. Nem se deu conta de que já a noite ia longe e que o sono impiedoso que tantas vezes o derrubara em momentos de relutância, agora o abandonava. Queria dormir, esquecer, mas Nancy o perturbava, venusta e maliciosa; queria estudar, mas ainda ela, deificante e falaciosa, o enlaçava de esperanças e expectativa. E assim, quando as sirenes, numa admonição injusta alertava os sugados proletários que o dia se aproximava, Sérgio pôde agradecer aos céus pelo fim daquela experiência esotérica. Jamais tinha sentido algo semelhante e por isso mesmo, diante daquela cama farfalhada, e com os olhos de um toxicômano, olhou para dentro de si, já inteiramente aturdido com aquela experiência. Teria que reordenar-se, pensar e fazê-lo o quanto antes, pois sentia que suas forças fraquejavam ante a chegada do amor, ou quem sabe, da paixão.

 

CAPÍTULO 38

Quando enfim o sábado chegou, Sérgio seguiu para aquele casebre, certo de que Nancy o aguardava. Não sabia explicar o porquê, mas sentia naqueles olhos uma admiração inqualificável, não obstante uma grande força ainda subsistia relutante à certeza do fim que os aguardava. Sérgio sentia-se redivivo, expurgado daquela sensação de culpa que tantas vezes o acometera por causa dos prejuízos morais causados à Teresinha.

Quando desfez a segunda curva, embocando na rua em que ela morava, percebeu debruçada na tosca janela, aquela figura imaginária e capitosa que o recepcionava com um sorriso. Como que rejuvenescido alguns anos, Sérgio aproximou-se, sentindo que seu metabolismo o traía visivelmente. Ainda que tivesse esculturado uma ninfa com traços mais perfeitos do que a probidade do formão de Miguel Ângelo, não seria semelhante à leniência impassível do olhar fixo, a transpassá-lo por inteiro. O olhar de Nancy mexia com a libido, como mexe com o estômago, a presença de iguarias a um animal faminto. Aproximou-se:

– Boa-noite.

– Bem, posso entender todo este aparato como aceitação a meu último convite?

– Pode sim. Aliás, não pensava em ir, mas embora não entenda as verdadeiras razões, estou pronta.

– Vamos, então?

Ela pediu licença, fechou a janela, disse qualquer coisa à sua mãe e entrou no carro.

– Não demore demais – falou docemente sua mãe, que era uma mulher magra, sofrida, com todas as definições da massa subjugada. Ela era mansa, assim como o são todos os que não reagem. Como mansos cordeiros submetem-se e se definham no holocausto ignominioso de uma partilha injusta e desumana. Nunca lhe passara pela cabeça que podia “tomar a bola do Juca”.

Aquela figura doce da mãe de Nancy ficaria para sempre gravada na mente de Sérgio, egresso de seu Estado, onde deixara sua mãe, com todas as ramificações de amor capazes de confundir até mesmo as mais recônditas suposições freudianas.

Sem saber exatamente para aonde estavam indo, ficaram rodando pela cidade numa deambulação mística, onde só existia a certeza de ambos estarem, naquele momento, no exato lugar onde mais gostariam: um ao lado do outro. Por fim, como que desperto, Sérgio observou:

– Ora! Se não me engano, havíamos combinado um jantar.

– Foi assim, mas se não quiser eu não me importo.

– Quero sim, apenas não estou bem certo de convidá-la para o lugar adequado. Eu sempre me alimento na própria pensão do senhor Manoel e jamais tive alguém com quem pudesse sair. Por isso, gostaria que sugerisse o lugar.

– Bem, podíamos comer qualquer coisa, em qualquer lugar. Na verdade, estou muito feliz para me preocupar com a barriga.

Sérgio virou-se num misto de alegria e espanto, levando a mão direita ao rosto de Nancy. Ela o fitava, sempre com aquela peculiaridade enigmática, firmando os olhos nos olhos de Sérgio e deixando que as emoções escapassem, mais claras e insofismáveis que os versos de um poeta apaixonado.

Na palma de sua mão, ele sentia o calor que grassava, invadindo aquele rostinho imóvel, cheio de ternura. Foi diminuindo a velocidade do carro, enquanto se inclinava levemente como que atraído por uma força estranha. Ela continuava impassível radiante e tentadora.

Nancy – balbuciou ele, tocando aquela boca sensual com seus lábios, bem de leve, como que a sentir a progressividade passional que os invadia.

Era mesmo verdade que, entre o céu e a terra, muitas coisas haviam que nem a mais doentia e apaixonada mente, tinha conseguido imaginar. Tanto supôs Sérgio quando tocasse aquela boca, que mal podia acreditar que a realidade fosse mais doce, envolvente e emocionante do que o devaneio da imaginação.

Aquela boca possuía a maciez de uma tenra folhinha de alface e o hálito confundia-se com a brisa fresca e pura de um jardim florido. Nancy, deste dia em diante, seria para Sérgio, simplesmente Nancy, já que seu coração apaixonado, por mais que procurasse, não conseguia encontrar melhor sinônimo para ternura.

 

CAPÍTULO 39

Depois daquele sábado, a vida de Sérgio se transformara. Tudo tomara forma e cores, como se a acromatopsia suprimida da Natureza pelas agruras da vida, num instante se revelasse no mais autêntico desfile de cores berrantes. Seus trabalhos jornalísticos, ressentidos do desalento, tinham agora ressonância ainda mais acentuada. Sentia em cada minuto da vida, a graça daquele que engendrou o Universo. Feliz da vida, ele dizia para si mesmo:  Deus não poderia ter feito um mundo melhor!

Bem cedo, com um sorriso nos lábios, despertava. Até o sol da tarde, que radiografava como acicates luminosos a face desnuda, parecia-lhe o afago febril daqueles momentos de angústia que quando em vez não conseguia dominar.

Trabalhava, estudava com afinco, voltara a ler com sofreguidão. Era preciso aprender, saber, entender um pouco do mínimo de todas aquelas coisas, agora tão proeminentes. A vida era bonita, tinha graça e singeleza. Era como se toda a força da alquimia, num milagre de vida, insurgisse em sua alma, numa premonição espetacular de felicidade.

Nem mesmo a realidade conflitante da vida, a estolidez dos desanimados, as diatribes impostas aos desonestos, a cupidez insaciável dos dominantes, as erronias da justiça e a incúria da polícia, eram mais fortes do que a certeza de que o mundo era belo e que Deus o escolhera para refúgio de suas andanças pelas galáxias. O amor transformara seu mundo!

Nada poderia ser mais belo que os sentimentos que afluíam agora para seu coração. Tantos anos metido no vórtice das incertezas, na descrença do amor; tantos encontros na vida: a Janira, Herlene, Marta, Lucimara…Um rosário de feminilidade, que foram desfiados no abstracionismo da descrença, no gozo ignaro de tempos de volúpia. Graças a Deus, não foram tantos. Algumas mais belas, outras mais inteligentes, outra mais, com a sinceridade da protagonista do amor exemplar de Shakespeare. Porém, nenhuma delas preenchia, como Nancy, o senso de beleza de Sérgio.

Aquele “alô’; dito ao telefone, conseguia encurtar distâncias, apagar dúvidas, reavivar a esperança e torná-lo feliz; a boca, o andar, em suma, Nancy tornara-se obsessão.

Ela acreditava nele, esperava, fugia dos colégios, ausentava-se do serviço…, não escolhia lugares nem hora para estar junto dele. Sentia em toda extensão de seu ser, o calor da sinceridade. Amava e era amada e ainda que o mundo desabasse sobre si, ao lado dele, estaria feliz.

Não podiam e não deixavam que a graça daquela felicidade se lhes escapasse pelos dedos. Viviam cada instante, como se fosse o último e, em cada encontro, o prazer novo e esotérico daqueles que sentem a doce sensação da primeira vez.

Paulatinamente Sérgio foi se desvencilhando dos preconceitos, descobrindo-se da mortalha funesta com que o encobriram nos tempos de criança e da puberdade, aquela mesma que conseguia criar a maldade, mesmo nas coisas mais ilibadas.

Respeitavam-se pelos limites do bom senso, pela certeza de que a felicidade tem normas e limites e que só é possível o amor, onde predomina o querer e a vontade de ambos. E sempre, quando um se entregava, o outro se controlava, adiando a expectativa do amor total. Quanto desejo sufocado! Sumo que junge, reforça e acresce a vontade de rever, de reencontrar. Ele vivia para ela e ela sustinha aquela vida nas mãos, sopesando seus sentimentos na doce sensação de guardar para si a única coisa desejada na vida. O tempo foi passando, meses após meses.

Dois anos de afirmações, de desejos, de tantas coisas boas e sinceras, como jamais alguém conseguiu. Dois anos soltando-se aos poucos, pelos dedos, como se um desejasse ficar e o outro jamais partir. Dois anos, curvando lá longe, vendo pelo retrovisor, acenos de paixão, ouvindo planos e sentindo plenamente que nada, nada mesmo neste mundo poderia presentear-lhes maior felicidade.

Dois anos, enfim, para provar que nesta vida tudo passa, tudo é suscetível e incerto. Dois anos foram suficientes para provar que devemos agarrar os momentos de alegria e felicidade com unhas e dentes, em qualquer hora ou minuto, ainda que os preconceitos reprovem e a moral rejeite.

 

CAPÍTULO 40

Depois de esperar trinta minutos, Sérgio saiu do local onde haviam combinado se encontrar. Era a primeira vez que isto acontecia em pouco mais de dois anos. Extremamente preocupado dirigiu-se para a casa em que ela morava. Encontrou-a na calçada, ainda com a roupa de trabalho, numa cadeira postada ao lado de outras, conversando com amigas. Ao percebê-lo, levantou-se e foi estar com ele. Tudo parecia estar bem.

– Que aconteceu, Nancy?

– Nada – limitou-se a dizer.

– Como nada? Fiquei esperando por você durante trinta minutos.

– Desculpa-me, hoje não quero sair.

– Mas, Nancy, deixar-me lá como um tolo, não significa nada?

– Hoje estou péssima e quando estou assim, prefiro não conversar com ninguém.

– Conversar um pouco não lhe faria bem?

– Não, hoje não.

Totalmente transtornado ele se despediu. Alguma coisa não andava bem.

Voltou para casa e enclausurou-se em seu quarto. Tomou um livro qualquer e tentou esquecer o incidente. No entanto, por mais que se esforçasse não conseguia incutir-se o teor de uma frase sequer. Tudo era Nancy, em cada linha, em cada palavra. Diante da relutância de sua tensão, colocou o livro sobre a cadeira e deitou-se, ficando a pensar fortemente.

Quando se é débil em dominar certas emoções, o melhor é liberá-las por inteiro. Olhos fixos em um ponto qualquer como a escrever a divagação de seus pensamentos, ficou a martirizar-se por horas inteiras. Foi uma noite terrível, em que sentiu desabar o mundo sobre si.

Quando amanheceu, foi estar com ela que, com evasivas diversas, afirmava não ter acontecido nada, apenas estava indisposta.

– Nancy – disse ele – você fez nascer em mim a crença no amor. Sempre bendisse as circunstâncias que a fizeram cruzar o meu caminho e ser-lhe-ei para sempre grato por me ter devolvido o prazer de viver. Por isto estou preocupado, pois sei que sem você, a vida será dura, porque reconheço que nossa separação será o despertar de um doce sonho. Sabe o quanto me faz feliz e também o quanto a estimo e admiro. Tenho feito tudo para fazê-la feliz e se em algum tempo a magoei, foi sem dúvida alguma, sem essa intenção.

– Por favor – retrucou ela – não falemos sobre isto agora. Você está criando problemas onde não tem. Não seja inseguro. Você para mim é a pessoa mais importante, o melhor dos amigos, a pessoa que mais me ajuda e faz feliz. Passe lá em casa hoje, às 19h. Dizendo isto acionou a tranca da porta e saiu, sem sorriso, sem beijo.

Novamente, a reação era anormal. Não tardou, pois, para que Sérgio refizesse suas meditações e tentasse entender aquela criatura, até então, simples e sem mistério.

Lembrava-se da felicidade dos dias em que por qualquer ocasião, presenteava-lhe qualquer coisa: um vestido, uma joia, uma boneca…

Sentia nela o fulgor da alegria, ainda que estivesse triste ou sem motivação. Sem imaginar em qualquer outra coisa, foi a uma floricultura e solicitou um ramalhete de rosas coloridas (vermelhas e brancas), com as quais açambarcou um minúsculo brinco de brilhantes e, à noite, foi estar com ela.

Como no início, ela estava na calçada, trajando um vestido branco que parecia resplandecer ao lusco-fusco da claridade provinda de longe. Sérgio achava-a ainda mais bonita com aquela roupa e, por instantes, todas aquelas insinuações malévolas de sua insegurança, pareceram desvanecer.

– Pensei que iria presentear-me novo bolo, mesmo sem aniversário – disse ele alegremente.

– Você não esquece mesmo, não é?

– Bobagens minhas. Você está mais linda que nunca, sabia?

– São seus olhos.

Naquela noite, por insistência de Sérgio, foram ter a um Motel, embora não houvesse, em nenhures, a intenção que acolhe as mentes insanas ao penetrar naquele local. Ela entrou assustada, olhando para todos os lados, vasculhando cada recanto, como se em algum deles pudesse haver um olho mágico a espreitá-la. Sem dizer nada, Sérgio pediu o jantar. Ela continuava atônita, sem saber o que dizer ou fazer, mas foi ele quem começou:

– Nancy, aqui, dentro de sua casa, no cinema, no jardim, talvez mesmo numa capela, no escuro ou ao meio-dia, em qualquer tempo e lugar, devemos sempre ser as mesmas pessoas.

– Por que diz isto?

– Em cada átomo do infinito, há um olho forte a perscrutar todos os movimentos – é o olho de Deus. Quis que viesse aqui para que soubesse disso. Verá que não será diferente de nenhum outro encontro que tivemos até então.

– Você é um sujeito esquisito.

– Maluco?

– Não totalmente.

– Na verdade, talvez eu não regule bem. Entre todas as incertezas, porém, há apenas uma certeza absoluta que revive em Minh ‘alma.

– E qual é? – perguntou Nancy com um ar de malícia de quem antevê a resposta.

– E o amor que sinto por você.

Ela sorriu, enlaçando-o num abraço leve, sem o calor de outros tempos. Não o beijou como sempre fazia. Sérgio deixou que ela agisse normalmente, sem nada dizer. Pediu licença em seguida foi até ao carro e apanhou o que para ela havia comprado.

– Aonde vai? – perguntou ela, sempre assustada.

– Fugir. Fugir e deixá-la aqui a esmo.

– Não gosto que brinque assim, você sabe.

– Já volto – limitou-se a dizer.

Quando retornou, ela estava jacente, cabeça recostada no travesseiro, olhos fixos em si mesma, através do espelho do teto. Sem dizer nada, ele apresentou-lhe o ramalhete. Tomando-o nas mãos, ela percebeu que qualquer coisa estava junto ao laço de seda rosa que prendia os estiletes. Tomou o embrulho na mão e abriu-o nervosamente. Fitou os brincos por alguns segundos, acariciou-os e em seguida lançou-se no pescoço de Sérgio, com a sanha de amantes que não se viam há meses. Aquilo foi como se tudo desmoronasse dentro de Sérgio, não obstante, ali, em sua frente, jazesse a razão de sua vida.

Apertou-o, beijou-o, acariciou-o, sem que nele já sentisse a reciprocidade doentia do amor tresloucado. Ao perceber a apatia do namorado, desgarrando-se paulatinamente, e num tom de ainda maior perplexidade, ela falou:

– Fiz alguma coisa errada?

– Não, claro que não – apressou-se em dizer.

E se para ambos emergisse a certeza de que tudo estava por terminar, estariam por demais equivocados. Era, como diria Churchil, apenas o fim do começo – um tempo em que, tendo tudo nas mãos, nada seguravam.

Suas vidas tinham em si a paradoxal anuência da angústia e do imprevisível. E neste misto de felicidade e desilusão, todo calor de de outrora, desfalecia languidamente.

Jantaram e voltaram para casa, agora, com a dúvida povoando os dois corações.

 

CAPÍTULO 41

Foram dias difíceis para ambos, aqueles que sucederam o primeiro impasse criado depois de anos de amor intenso. Ele, com sua insegurança, fizera por nascer também na cabeça de Nancy, dúvidas quanto ao relacionamento. Aquela transformação da apatia para o contentamento ao ter nas mãos os brincos de brilhante havia-lhe chamado a atenção sobremaneira.

Quando se encontraram, já praticamente não conversaram e sim discutiram:

– Você se cansou de mim, não é mesmo Nancy?

– Sérgio, não quero falar sobre isso.

Era sempre assim. Quando se via encurralada por qualquer assunto que evidenciava culpabilidade, restringia-se à covardia de não falar. Ele insistiu:

– Puxa, o que está acontecendo com a gente? Você sabe que tenho profunda admiração por você, mas, se reconheceu que não porto as condições de fazer sua felicidade, pode dizer.

– Eu gosto de você, por que duvida?

– A sua maneira de ser. Sabe, eu nunca, sequer, imaginei-a rica. Aliás, esta questão de dinheiro jamais fez diferença para mim, que também sempre lutei com dificuldades. Não há nada mais sujo que ele, pode acreditar.

O dinheiro descristaliza as virtudes, embrutece os homens, causa as injustiças, joga irmão contra irmão, nação contra nação, evidencia a vaidade, enrijece a humildade, expulsa Deus dos corações, criando o desassossego e a intranquilidade. A pobreza é uma graça de Deus, mas infelizmente, os tantos que a recebem, investem contra o Criador. Os pobres jamais entenderam e jamais entenderão, tal graça. Sempre irão abespinhar o Eterno, crucificando-O a cada instante, por causa destas aparentes injustiças. Entender Deus é ainda mais difícil do que nos entendermos.

Eu gosto de você como você é. Acho mesmo que não sendo assim, não a admiraria e amava tanto. Sinto, porém, que alguma coisa paira no ar e cheira a cansaço, a desamor…

– Se continuar a insistir nisto, preferirei voltar para casa – entrecortou ela, impertérrita. Você sabe que sou assim. Não sou psicóloga para explicar porque nasci assim.

E dizendo isto, baixou os olhos e num sorriso careteado, desabafou:

– Meus pais tiveram uma união forçada. Ele era piauiense e minha mãe paraense. Enamoraram-se num encontro casuístico, numa destas festas em que misturam bumba-meu-boi e carimbó. Lá no interior, você sabe como é. Os pais de mamãe tudo fizeram para impedir o casamento e foi então que meu pai “roubou” minha mãe, numa noite qualquer, há 19 anos.

– Depois disto, entre contratempos, dificuldades e quem sabe, até mesmo fome, vieram instalar-se nesta cidade. Com o tempo eu nasci, quase em plena miséria. Mas o carinho de minha mãe nunca faltou. Por sua vez, meu pai melhorou um pouco de vida, conseguindo um caminhão de transporte, uma casa para morar e mais outra que deixava alugada. Passamos a ter urna vida modesta, toda convergida para mim. Dizem que eu era urna criança linda e assim sendo, todos me mimavam e cobriam de presentes. Já tinha alguma noção da vida quando meu pai, entendendo que já podia ir além, vendeu o caminhão e adquiriu um carro de passeio, vivendo dos juros do pouco dinheiro que sobrara e do aluguel da outra casa. A gente desfilava pelas ruas, ainda rudimentares, sob os olhos invejosos de muitas meninas de minha idade. Mas o sonho foi curto. Logo começaram a surgir as dificuldades e não precisou muito para que nos víssemos numa casa alugada. Meu pai, doente e desanimado, caiu em profunda depressão e passou a ser, para nós, mais problema do que solução. Ainda nova empreguei-me e, juntamente com meu irmão David, comecei a firmar-me como arrimo de família. Não obstante as dificuldades, meus pais legaram-me mais três irmãozinhos: o Adonias, a Janari e a Roberta. Daí para frente, minha vida não mais mudou. Comecei a estudar, indo ao colégio, sempre depois de um dia estafante de trabalho. Às vezes, muito cansada eu não ia e então, jamais pude ser uma aluna excelente ou mesmo razoável. Perdi assim, o estímulo para tornar-me alguém na vida. Ainda hoje a vida continua dura, muito dura. Não são poucos os dias em que a gente se vê num beco sem saída. Nossa primeira casa alugada, ficava no centro e era bem construída, e hoje…, bem, hoje, você sabe.

Depois de dizer isto, baixou a cabeça, para erguê-la com o rosto sulcado por uma lágrima. Sérgio puxou-a suavemente contra seu peito:

– Nancy, eu amo você, falou Sérgio ao pressentir que ela se acusava de ser quem era. E continuou: – Na tristeza, na pobreza, na dor… de qualquer maneira. Lamento quão dura a vida foi com você, mas não esqueça que há milhões de pessoas por este mundo afora, que dariam tudo para estar no seu lugar. Essas emoções fortes que acabaram por esvurmá-la, tornando-a uma autoconfidente, criam-me agora a certeza de que precisa dividir a carga que a subjuga. Carregar a cruz sozinha, meu anjo, é muito penoso. Deixe sempre o orgulho de lado e se não for bastante humilde para pedir auxílio, deixe ao menos que os voluntários a ajudem. Um peso dividido, sempre é mais fácil de ser transportado.

E naquela mesma noite, após se despedirem, já um novo mundo se abria: cada um com a certeza maior de que mal haviam se conhecido. Na verdade, eram pessoas diferentes que, entregues a urna paixão desenfreada por dois anos, conseguiram camuflar profundos segredos.

CAPÍTULO 42

Sérgio estava com sua mente vencida pelo delicado corpanzil, que em trejeitos libidinosos dominava sua razão, tornando-o um autêntico autômato de seus caprichos. Qual passarinho fustigado, metia a cabeça sob o véu da evidência e deixava que as ilusões o dominassem.

Sua verdade, à mercê das lutas internas entre a razão e o coração divagava avariada ante o turbilhão das hostes em conflito. E quando se via vencido pelo raciocínio, balançava fortemente a cabeça como a afugentar aquela conclusão que ameaçava destruir sua felicidade.

Andava pelas ruas entregue àquela doce alucinação, ouvindo a voz tênue e misteriosa de Nancy e sentindo-se febricitante de desejos. Não tinha olhos para mais ninguém e nem de outras aceitava qualquer insinuação, pela estrita razão de que todo o mais não lhe importava, apenas Nancy.

E aquele moço sóbrio, sensato, comedido, cujo caráter parecia delineado pela proposição de Kretschmer, titubeava ante a imperiosidade das circunstâncias. Cedia, tornava-se volúvel, fraquejava diante do engodo daquela voz meiga que, qual plumas aveludadas, vendavam-lhe os olhos e o raciocínio.

Como é imperante o poder do coração, na dependência das grandes paixões! Flâmula impenitente que corrói as forças e imerge o homem sensato na insensatez.

E diante daquela dependência, a lei do bom senso, premida pelo ardor de seus sentimentos de grande paixão, implodia inexoravelmente.

Passou a agarrar-se a todos os meios para prender aquele amor – razão única de sua própria felicidade. Que se danassem os pragmáticos e defensores da moral, ante a força impulsiva do sexo, que o atraía maravilhosamente.

Sérgio não queria ser partidário dos dissídios ao responsabilizá-la pelo resultado, mas no fundo deixou que se travasse sangrenta luta psíquica, onde as hostes embrutecidas não a inocentavam. Não achava justo aturdir-se por um sentimento fiel; não podia entender a falta de reciprocidade ante aquele sentimento nascido na pureza e vivificado no ardor.

Quantas vezes lembrava London e lamentava não poder comungar com sua drasticidade em resolver de modo extremo, aquilo que por outros meios se tornava inviável.

Afinal, ele a amava demais para usar de qualquer estratagema que viesse de encontro aos santos princípios de sua moral. Queria-a, mas queria-a sem constrangimento, na pureza de seus sentimentos.

No entanto, dia após dia, Sérgio ia reconhecendo que aquela criatura adorável, já não tanto o era em seu coração. Os achaques psíquicos da infância e da primeira juventude, deixaram marcas profundas e ostensivas, capazes de quase obrigá-la a um posicionamento de defesa, não afim aos sentimentos de Sérgio.

E com o passar dos dias, ele foi reconhecendo tudo aquilo. Ora ela não comparecia aos encontros, ora forjava desculpas, ora discutia sem a mínima razão de ser.

Um dia, bem cedo, sorridente e feliz ela disse que iria deixar o antigo emprego e trabalhar como secretária de um neurocirurgião.

Sérgio ouviu tudo calado, embora no fundo não aprovasse a mudança.

– Irei ganhar mais e terei mais tempo para estudar.

– Mas…

– Não vejo a hora de mudar. A esposa do médico é minha amiga – foi ela quem conseguiu tudo para mim.

– E se…

– Segunda-feira começarei. Será apenas o expediente da tarde. Como estudo à noite, poderei levantar-me mais tarde. Eu adoro dormir até às dez horas!

E todas as vezes que Sérgio tentava argumentar, ela interrompia como se a opinião dele pouco representasse para suas decisões. Inteiramente jugulado pelos impulsos de fraqueza, num instante de insensatez, ele transformou-se, arquitetando um plano extremo com o fito de não perder aquela criaturinha simples, quase criança, cujas simploriedade e ingenuidade, tanto conseguiam fazê-lo feliz.

Em ambos, os problemas vinham de longe, de um tempo inexplorável e incompreensível da genética. E os homens, por mais que tentem, jamais conseguirão decifrar os problemas psíquicos. Não se pode querer que um navio navegue num igarapé, nem que um caíque suporte as avarias de um mar tempestuoso.

Sérgio e Nancy, como a terra e a lua, atraíam-se muito, mas também como elas, jamais teriam vida íntima, jamais poderiam abafar-se num amplexo, sob pena de se autodestruírem. Admiravam-se: anseios desconhecidos, medo da realidade, desejos reprimidos, timidez de quem olha maravilhado, pela fresta de seus complexos, a pessoa querida que passa, fazendo com ela, espiritualmente, tudo aquilo que faria se fosse livre dos preconceitos.

Lua cheia, lua nova, noite sem luar: Sérgio e Nancy – talvez fosse melhor, defini-los assim.

 

CAPÍTULO 43

Já sem rumo, Sérgio passou a vigiar sua namorada, coisa que até então nunca fizera, pela simples razão de que nenhuma semente de amor pode germinar na desconfiança.

Dia após dia foi sentindo que, realmente, os traumas de infância da namorada eram problema para um renomado psiquiatra resolver. Ela tinha necessidade doentia de amizades importantes.

Um dia, Sérgio, que depois de suas incertezas sempre passava por perto da casa em que ela morava, percebeu-a entrando num carro. Acompanhou-os de longe até à residência de sua avó.

Vivia, sempre que podia, usufruindo de pretensas amizades com políticos ou pessoas de prestígio da cidade. Sérgio foi sentindo que lhe fugia pelos dedos, toda esperança de reconciliação.

Quando se encontraram, depois de muitos minutos de pleno silêncio, ele irrompeu em ciúmes e agressividade:

– Nunca pensei que você fosse tão mesquinha!

– Que está querendo insinuar?

– Ontem vi quando entrou num carro.

– Era um amigo.

– Os homens nunca são apenas amigos de mulheres estranhas, bonitas e oferecidas.

– Você tem a mente poluída para entender dessas coisas.

– E você é tola demais se acha que convence alguém com sua imposição.

Ela mordeu os lábios como quem se dá um tempo para não se arrepender da decisão a tomar:

– Quero voltar, por favor, leve-me para casa.

– Não sem antes eu dizer tudo o que vim para dizer. Para ser sincero, jamais imaginei que as pessoas fossem capazes de mentir tão descaradamente. Foram tantas as vezes que disse gostar de mim e no fim, acabo vendo e percebendo que tudo não passava de embustes.

– Você devia me conhecer.

– E o que estava tentando.

– Sabe de uma coisa, tem horas que tenho vontade de mandar tudo e todos para…

– Pode concluir – já não espero coisas melhores de você.

– Pouco me importa.

– Pois pode acreditar, que não terá mais meu infortúnio.

Ela, como que ferida mortalmente, virou-se para Sérgio e com aquele mesmo olhar penetrante que o dominara um dia, ficou a fitá-lo, mas ele parecia então, totalmente imune:

– Tem horas, que como Stendhal, pela incapacidade de meu entendimento, não admito a existência de Deus. Depois acredito, que como sábio jogador de damas, Ele dispõe as pedras em aparente descabimento para no fim, com uma única delas, destruir todas as pretensões do adversário. No entanto, enquanto Ele dispõe as pedras, fico aturdido, perdido, sendo capaz até de ferir a pessoa que mais quero bem nesta vida. Para ser sincero, não queria que fosse assim, que tudo terminasse assim.

Ela continuava de olhos firmes e fixos. De repente, seus olhos umedeceram mais e mais, até deixar que uma grossa lágrima mourejasse pela face. Nos olhos de Sérgio, também a angústia dominava. Para não sucumbir, ele desviou os olhos e ficou perdidamente alucinado ante o inevitável.

– Por que fez isto, por quê?

– Eu não fiz nada demais.

– Olha Nancy, você terá de escolher: ou eu como namorado, ou então, simplesmente, como amante.

– Nunca mais diga isto.

– E o que tinha de melhor para dizer neste momento. Nancy, eu nunca pedi a você senão o que podia dar com sobras. Ultimamente tenho notado sua apatia em relação a mim. Ninguém está obrigado a amar ninguém, mas é por demais mesquinho iludir as pessoas. Não quero jamais ver empanada a imagem que fiz de você, desde que nos conhecemos. Se já não sente mais nada por mim, porque não confessa? Não irei ficar magoado, pois os sentimentos independem de nós. O que não posso aceitar é que fique comigo com evasivas, na tentativa de manter um amor apenas nas aparências. Aliás, acho mesmo que você ama mais o status que imagina ter ao meu lado, e os presentinhos que lhe caem nas mãos, do que propriamente a mim. Não faça isto comigo, Pequenina, pois entre todas as pessoas que já lhe cruzaram o caminho, sem falsa modéstia, eu sou o que menos merece tal tratamento. Tantos dias e tantas noites perdi com você, amando-a no travesseiro, sentindo no cobertor o seu calor, ouvindo no sibilo dos ventos a sua voz. Lembra da fita que lhe pedi? Do primeiro esboço de suas aulas de pintura? Eram coisas simples e pequenas, bastante possíveis a você. Pedi-as exatamente por serem pequenas e possíveis.

Nesta altura, Nancy já chorava em prantos. Sentindo que aquilo apenas a feria cada vez mais, Sérgio dirigiu-se para casa, deixando-a em silêncio e, pela primeira vez, sem beijos.

Seus acessos de ciúmes mais uma vez conseguiram estremecer os alicerces daquele amor doentio. A presença da estranha luz do ódio refulgia em seus olhos quando se encafuou em seu cubículo.

Há tantas maneiras de fazermos nossa desgraça – esbravejou em pensamentos – e não será desta maneira que farei a minha. E por fim, alquebrado e puído, jogou-se contra a cama, esforçando-se por crer que aquela noite não seria barganhada por uma insônia aquém do valor. Mas estava enganado, muito enganado.

 

CAPÍTULO 44

Quanto mais se torna tenso o vime, mais se corre o risco de a corda romper-se. E assim, quanto mais se debatiam por aquele amor agastado (tudo aquilo que um simples acaso havia posto em conflito), mais sentiam que se separavam. E neste ínterim, ante os transtornos que se sucediam, Nancy deixara seu antigo emprego e passara a trabalhar como secretária de um consultório médico: premonição do fim.

Dia após dia, o descaso foi povoando seu coração e por mais que Sérgio tentasse impor-se, mais regredia naquele terreno minado de ciúmes. Contudo, não queria desistir sem lutar de sua única chance de felicidade. E, um pouco mais, percebeu claramente que ela se enamorava de um jovem acadêmico que, mais amiúde, frequentava o local onde trabalhava. Suas dúvidas dissiparam-se ainda mais quando, pela primeira vez, ela argumentou que ele era um homem comprometido, tinha um filho e uma mulher, a quem não podia deixar no meio do caminho. Era uma desculpa esfarrapada, própria de quem já não via nenhum motivo para ater-se a ele. Durante dois anos, nunca se falou naquilo, pois uma razão mais forte sempre suprimia todo e qualquer problema. Depois de todas as tentativas imagináveis para mantê-la perto de si, Sérgio resolveu dar um tempo. Um dia, quando ela descia as escadarias e tomava a direção da praça, como se fosse obra do acaso, ele se aproximou:

– Onde vai a desertora, disse em tom de brincadeira.

– A procura do desertor, retrucou ela como chiste.

Rodaram bastante pela estrada, estacionando depois sob frondosas mangueiras de uma boate desativada. Ela parecia descontraída, não obstante, numa encenação não menos perfeita, ele também assim se definisse. Falaram por muito tempo de coisas abstratas, fúteis… casos corriqueiros e inexpressivos. Não era preciso ser muito fugaz para reiterar-se da comédia. Por fim, tomando ares de compenetrado e fazendo com que ela ficasse bem frente aos seus olhos, começou a desabafar:

– Nancy, foi tudo muito bom, enquanto durou. Hoje sou um homem frustrado, machucado, mas valeu a pena. Refaria esta caminhada mil vezes. Ser-lhe-ei eternamente grato pelo tempo feliz que me proporcionou. Que o fim seja agora, para que o tempo não faça aflorar qualquer mal que desfaça esta imagem linda que sempre fiz de você. Desculpe-me por todas as vezes que a magoei e feri, sempre com o intuito sincero de acertar e velar por nossa felicidade. A gente encerra na alma, um sem fim de mistérios e perplexidades. Por isso, muitas vezes, querendo acertar, a gente erra. E como erra!

Há muito venho insistindo por uma resposta sua, uma resposta que saísse dos seus lábios, já que seus olhos me falam a cada instante. É que ficou muito difícil admitir a derrota. Quero ser coerente, com o velho brocardo: “Quem deixou de amar, nunca amou de verdade”.

Pedirei sempre a Deus para que este sorriso lindo que angeliza seu rosto, ostente-se sempre com a anuência de seu coração. Rogarei por sua felicidade em qualquer tempo de minha vida. Vai em frente, menina, e não olhe para trás. Só quero que acredite que jamais menti para você, que fui sempre sincero e que no meio destas incongruências, serei sempre o homem que mais a amou e desejou.

– E quanto a você? – intercalou ela, num misto de alívio e tristeza.

– Irei por aí. Nasci assim e não lamentarei o destino. Já posso definir-me como um homem instável, um cigano solitário. De minha infância até hoje, saudades, alegrias, angústias…, tudo tem sido uma constante. Mais uma vez a bonança passa! Não vai ser fácil, bem sei, mas também este tempo de transtorno, irá passar.  Neste mundo, tudo passa, tudo.

– De agora em diante é uma menina livre. Pode fazer de sua vida o que bem desejar, sem a chateação de minhas recriminações.

– Não vai mais me ver?

– Farei força para isso.

E com afrasia, quase gaguejando, lábios trêmulos, cabisbaixo e visivelmente arrasado, ele continuou:

– Que pena Nancy, que pena! Tantos planos foram engendrados sobre os alicerces deste amor simulado! Às vezes fico a imaginar como um sentimento tão bonito, edificado sobre fortes alicerces, pôde implodir num segundo. Quanto amei você, Nancy!

Calou-se por instantes, permitindo que o turbilhão de reminiscências invadisse sua cabeça confusa. Elevou os olhos para Nancy: ela chorava. Instintivamente Sérgio esfregou a mão direita em seu rosto, espalhando por toda a face aquelas gotinhas luzidias impregnadas de dor. Ela – parecia agora – não querer que fosse assim.

– Ah, o tempo, sempre desumano! Meu anjo – continuou ele, diga que ainda me ama. Certamente é a frase que, agora, mais desejo ouvir.

– Não posso. Não sei nem explicar, mas eu não posso.

– Está gostando de outro homem?

– Por favor, não dificulte as coisas. Eu, de fato, não sei o quero da vida.

Ela agora soluçava e Sérgio, por mais que tentasse não conseguia suprimir sua emoção. Seus lábios se juntaram como a dividir aquela afrodisíaca emoção que, diante de um adeus abrumado, ia-se de mansinho e tristemente.

Ao deixar o carro ela se virou para Sérgio, entreabriu a boca, mas não disse nada. Sérgio, por sua vez, viu apenas um vulto embaçado que se despedia.

 

CAPÍTULO 45 

Dias difíceis os que se seguiram. Para equacionar o que sobrou da derrocada, Sérgio passou a dedicar-se novamente a suas pesquisas ornitológicas, passando os fins de semana nas florestas do Pindaré. Durante o dia encerrava-se no escritório e como desvairado lia Voltaire, Locke, Rousseau, Santo Agostinho e toda sorte de filósofos e pensadores que lhe caísse nas mãos, com o fito de encontrar, em algum deles, as respostas para suas tantas dúvidas. Mas cada um tinha sua verdade, sua maneira própria de enxergar as coisas e sua força peculiar para fazer valer seus princípios: verdades e afirmações paradoxais, próprias daqueles que conseguem educada e cordialmente se contradizer.

Os cérebros humanos são, sem dúvidas, uma rede complexa de computadores diferentemente programados e cujos segredos só quem os fez poderá entender. E por mais que tentasse encontrar a razão de tudo aquilo, Sérgio se via cada vez mais distante da verdade.

Quando se cansava das leituras, ia para a Academia de Ginástica, com o fito de relaxar um pouco e diminuir a tensão. De Nancy, nunca mais tivera nem procurara notícias. Muitas vezes ficava ao lado do telefone na ânsia que o mesmo tilintasse e que do outro lado viesse, cheia de ternura e trejeito, aquela vozinha inconfundível: “Alô”!

Mas nunca veio e, pelas doses excessivas de tempo e solidão, até a saudade foi murchando. Todas as vezes que a saudade de Nancy lhe sobrevinha ele reagia com movimentos capitais que quase lhe custaram um cacoete.

E assim, sua vida foi seguindo: estudos, leituras, trabalho, esportes…, até que um dia, ao deixar a academia de ginástica, foi abordado por três marginais, que o lançaram abruptamente para o interior do carro e com dois revólveres apontados, respectivamente para sua nuca e coração, evadiram-se do meio de centenas de pessoas.

Tomado de surpresa, Sérgio limitou-se a perguntar confuso:

– Que pretendem comigo? Não estão sequestrando a pessoa errada?

– Nosso negócio – falou em bom português o que parecia comandar aquela horda alucinada – é sangue, é morte.

Ainda na cidade, os bandidos foram para a Vila Lobão, sob um manguezal que ali havia. Atiraram-lhe para fora do carro aos empurrões, entocaram-no no porta-malas, trancafiando-o com balbúrdia. Em seguida arrancaram com frenesi por uma vicinal cheia de buracos. Os solavancos arremessavam Sérgio de um canto ao outro do porta-malas, causando-lhe uma série de hematomas. Diante daquele transtorno indizível e jamais experimentado, ele sentiu na carne a utopia daqueles que sonham com a recuperação de bandidos. Neles não havia qualquer sentimento que demonstrasse estas coisas que definem os racionais. Aliás, bandidos drogados ainda não foram catalogados em qualquer ordem animal. Ainda que sejam classificados acima da pior e mais covarde das espécies, serão beneficiados.

Regidos por dosagens excessivas de tóxicos e predispostos a azáfama de humilhar, eles caminhavam como cães raivosos que, sem saber o porquê, perseguem com ódio demoníaco as indefesas lebres dos campos. E ali, sem nenhuma condição de reagir ou fugir daquela matilha, Sérgio procurava, quando nada, um instante de paz no qual pudesse coordenar seus pensamentos e aliar-se a Deus, como última instância. E num esforço supremo, encontrou aquele instante:

– Senhor, não sei quanto tempo tenho para clamar por Sua ajuda. Clamo pela fé, pois somente crendo, poderei entender seus desígnios. Quero crer que com o Senhor serei forte bastante para enfrentar e vencer esses inimigos. Junto agora todo centavo de meus merecimentos para pedir-Lhe, quando não mais puder raciocinar pelo achaque direto desta turba, que esteja comigo e considere este meu pedido pelo tempo que Lhe amei denodamente.

E dizendo isto, tentou acalmar-se, enquanto os solavancos continuavam arremessando-o de um canto a outro do porta-malas. Depois de algum tempo, pararam e confabularam baixinho. Dividiram o que havia na bolsa e no carro, deixando que um silêncio tumular, cortado apenas pelos coaxares e pelos estrondos de trovões distantes, pairasse no ar. Sérgio pensou: certamente se trata apenas de um roubo simples. Devem ter me deixando aqui até alguém me socorrer.

Mas não foi assim. Um pouco mais e aquela mixórdia de vozes longínquas já se podia definir como palestra de drogados, dispostos a levar a efeito a macabra empreitada. Aproximaram-se e um deles, soqueando a lataria, esbravejou:

– Como é, filho de uma puta, ainda está vivo?

– Estou – respondeu encurralado, Sérgio.

– Então saia para morrer, desgraçado.

Um calafrio perpassou-lhe a espinha e então, como numa correnteza de tristes prenúncios, muitas recordações avançaram em sua mente, numa premonição fúnebre de despedida. Seus livros, sua mãe, seus familiares, aquele cartãozinho de Natal em cima da escrivaninha, dedicado à sua mãe e que, nem sequer havia ainda sido posto no correio. Que diria ela quando visse aquele cartão e soubesse que seu filho fora assassinado? E Nancy?

E ao pensar nela, seus pensamentos sedimentaram-se como se ali ela tivesse entrado, impertérrita. Tão perdido estava nestes delírios que quase assustou-se ao sentir que a tranca cedia e a porta se entreabria.

Um cano frio de revólver tocou-lhe as costelas e ele, imediatamente, sem que o percebesse, pronunciou o nome de Deus. O tiro não veio e a porta acabou sendo aberta por completo. Os três assaltantes postaram-se em semicírculo, a uns três metros de Sérgio, e ordenaram que se despisse. Ele obedeceu. Depois ordenaram que descesse devagar e se encaminhasse para uma cerca de arame farpado que, por certo, dividia algum pasto daquela fazenda abandonada.

Nesta hora, uma tremenda angústia apossou-se de seu coração. Sentira, finalmente, que seu dia havia chegado e entre todas as formas nunca desejadas de morrer, talvez fosse aquela a mais preterida. Protegeu a nuca com as mãos entrelaçadas e deu alguns passos trôpegos, totalmente arredios às determinações cerebrais. Como era difícil caminhar para a morte, inocentemente e sem uma chance para escapar, salvo os fiapos de esperança num Deus em que jamais acreditara firmemente.

Atrás de si, o pelotão abespinhado aguardava a hora dos disparos. Minutos de desolação, difíceis até mesmo para Cristo que, não se indispondo com as credenciais humanas, fraquejou ante o fim iminente. Mas, também ele tentou, ao solicitar ao pai, a dispensa do amargo cálice.

Sérgio parou no meio do caminho e tentou falar, agora pela segunda vez:

– Por que irão me matar?

– Cale esta boca, filho de uma égua!

E ato contínuo, um estampido ecoou, assistido apenas pelos respingos de um temporal que a pouco se fora e por lampejos de claridade que advinham da tempestade que seguia ao longe em fragores. Num ato impensado, Sérgio virou-se um pouco e pôde ver, num acoplamento de visão e relâmpago, os três assassinos: um alto, um de estatura mediana, com capacete de motoqueiro e outro de baixa estatura, retaco e de bigode prolixo. A bala não o havia atingido e sem saber a razão, ele continuou extático, totalmente indeciso.

Depois, dizendo sempre o nome de Deus, foi caminhando para a cerca de arame farpado. Quando tocou a barriga desnuda nos fios ouviu o bater das portas e o roncar kracatoano daquele motor, já sem os canos de escapamento. Virou-se e, pelos constantes relâmpagos, pôde perceber que estava ali sozinho, acompanhado apenas por Deus e pela Natureza em rebuliço.

Respirou fundo e olhou para o alto, onde nuvens retardatárias corriam atrás daqueles cogumelos eletrificados que chispavam a terra com a luminosidade de mil geradores. As estrelas já podiam ser vistas, como olhinhos perdidos de um Deus, cuja onipresença assistira aos rogos e acatara a súplica pela sobrevivência. Como era emocionante renascer, tão lindo e maravilhoso que pôde entender, até mesmo, porque se diz que Deus escreve certo por linhas tortas.

Aqueles respingos gélidos que salpicavam seu corpo febricitante, causavam-lhe a sensação de ter descido de outro mundo, com a curiosidade dos primeiros astronautas a tocarem a Lua. Tudo parecia estar sendo visto e sentido pela primeira vez. Ele, realmente, estava renascendo naquele momento.

Chegava, afinal, de além-mar, a primeira resposta às suas dúvidas. Enquanto caminhava nu, pela vereda lamacenta, ia lembrando de um dia, ainda criança, na areia da praia, a perguntar-se por Deus.

Explodiam lá longe os trovões, o firmamento negro abria-se ante a força dos raios, enquanto por cima, milhões de estrelas piscavam aflitas no incomensurável. Mas todo aquele aparato imenso, ainda era menos Deus do que o silêncio profundo que existia dentro de sua alma.

 

CAPÍTULO 46 

Há alguns dias os puxadores de carro, assaltantes e pistoleiros haviam desembarcado na cidade de Imperatriz, a fim de aproveitar os presenteadores afoitos que, como loucos acorriam às lojas, como se o nascimento de Jesus devesse ser comemorado com presentes e com toda sorte de coisas não espirituais. Os policiais davam batidas constantes, surpreendendo os incautos que perambulavam sem documentos ou que portavam qualquer objeto que pudesse ser classificado como ofensivo. Mas, a intenção não era coibir os gatunos e sim multar ou receber propinas para equilibrar a defasagem do promíscuo ordenado que o governo lhes pagava.

Era um rebuliço total, que não era convergido para as reais causas dos desajustes. E enquanto o pai de família era flagrado na padaria sem a carteira de identidade e era encaminhado para a delegacia, donde voltava até mesmo sem a correia das calças, um verdadeiro contingente de marginais agia impunemente pelas noites. Por isso, os jornais, com aquele prato cheio de sensacionalismo e de prazer sádico, exploravam a avidez humana de sempre aceitar, com estarrecimento covarde, as infâmias que grassavam dia após dia.

Foi assim que Nancy recebeu o jornal de seu patrão e logo correu os olhos pela última página. Mal imaginava que aquela fotografia bastante conhecida, ali estivesse estampada. Como louca, pulando as palavras, leu toda a história do sequestro, já um tanto deturpada pelos policiais. Ato contínuo, tomou o telefone, mas Sérgio não se encontrava. Durante todo o dia, ficou apreensiva, errando nos seus afazeres e ligando a toda hora, recebendo sempre a explicação de que ele havia saído tão logo o dia amanhecera.

Às 19 horas, quando cerrou as portas do consultório e, como sempre, tomou o caminho da praça, ela percebeu Sérgio que, cabisbaixo, caminhava em sentido contrário. Apressando em princípio o passo e logo em seguida correndo, foi ter com ele, enlaçando-se em seu pescoço e dizendo coisas desconexas, condescendentes e de ternura. Contrariamente, ele estava hirto, impassível, totalmente insensível a tudo aquilo. Sem que percebesse, mais uma vez sentia, inconscientemente, que ela era a razão de tudo aquilo, o motivo que o levara, independentemente de sua vontade, a se submeter a tantos infortúnios.

– Sérgio, Sérgio – dizia ela – que fizeram com você?

– Não foi nada, para quem já não tem muita coisa a perder – respondeu ele, visivelmente abatido.

– Não fale assim, você é uma criatura maravilhosa, com um mundo pela frente.

– Se é meu, entrego-o a você. Já não tenho muitos motivos para orgulhar-me de meu “asteroide”. As belezas que encerrava foram destruídas, tão pequenas eram, e o que é pior, pelos…

Ali interrompeu, pois sentiu que teria de ferir a pessoa que mais queria bem no mundo. Como que alheia a qualquer ofensa, ela continuava enlaçada em seu pescoço, molhando o peito de Sérgio com lágrimas sentidas.

– Por favor, controle-se, deixe-me.

Ela foi se desgarrando e cravando aquele olhar penetrante nos olhos de Sérgio. Ela sabia da força de seu olhar e ele não o desconhecia. Como que atraído pelo magnetismo ofídico daquelas pupilas, sentindo o mundo às avessas, ele acabou por sucumbir e, num ato infrene, beijou-a ardorosamente.

Os transeuntes, a princípio apáticos, agora passavam, deixando para trás um olhar de surpresa. Ainda não era comum, em Imperatriz, comportamento similar.

Tão logo passou aquela emoção mais forte, foram assentar num banco do jardim e ficaram a conversar por longo tempo.

– Nancy, não está sendo fácil para mim.

– Nem para mim, Sérgio.

– Mas então, o que impede de estarmos juntos?

– Não sei, juro que não sei.

– Eu amo você Nancy, como nunca amei, nem irei amar ninguém. É a criatura que mais desejo bem e quero nesta vida.

– Eu sei disso. Comigo estão acontecendo coisas esquisitas, estranhas, que mesmo que quisesse, não saberia explicá-las. Já não consigo alimentar-me direito e viro noites com insônia. Tudo está confuso.

– Você precisa dividir mais o fardo que carrega. Como arrimo de família, todos os problemas recaem sobre sua cabeça ainda não preparada para resolver tantos problemas. Esforce-se, conte-me sua vida e suas dificuldades e tentarei ajudá-la.

– Não, não – disse com rapidez, como se um medo indomável dominasse a possibilidade de abrir-se: ninguém me pode ajudar.

– Pode sim, Nancy. Tudo fica mais fácil quando a gente tem a humildade de reconhecer a fraqueza. Este seu orgulho sempre lhe tem trazido problemas. Por que o retém tanto?

– Por favor, vamos mudar de assunto.

Era sempre assim: como um sarcófago, retinha seus problemas e jamais admitia o sacrilégio de o abrir.

Na verdade, ela amava Sérgio como tudo nesta vida, mas sentia que ele não tomava a iniciativa de selar para sempre aquela amizade. Os anos foram passando, e entre juras e beijos, abraços e intimidades, o amor supremo foi enfraquecendo e nela criando a desesperança de possuí-lo para sempre. Mas não dizia e mesmo quando ele falava em casamento, ela, demonstrando desinteresse, dizia que ainda não havia pensado naquilo.

Por ser pobre e orgulhosa não acreditava, não cedia a seu maior desejo na vida. Mas de qualquer forma, quando saíram dali, estavam felizes, pois haviam reatado seus sentimentos com maior fervor do que antes. Todo aquele desprezo pela vida, como fumaça ao vento se desvaneceu e novamente o azul do céu resplandeceu num alento incontido para aquelas almas, até há pouco, tristonhas e inseguras.

E quando pisou firme a soleira da pensão do senhor Manoel e cumprimentou alegremente algumas pessoas que conversavam em cadeiras dispersas pela calçada, um amigo comentou:

– Que diabo de bicho o mordeu hoje?

 

CAPÍTULO 47

Ninguém consegue entender as pessoas que não se abrem. A complexidade que cada um carrega dentro de si é algo apenas pouco confuso para o Criador. E foi assim que, Nancy, tão logo caiu na rotina, sentiu novamente suas emoções enfraquecerem e atingir o fastígio das desilusões. Tudo que Sérgio queria era entender aquela menina que conseguia, com nada, fazê-lo feliz; e ela, guardando para si os eternos mistérios de sua personalidade, subtraía-se a sonhada felicidade.

Quantas vezes ele cobrava-lhe humildade, sendo autêntica e aberta aos problemas. Mas ela passava dias e dias, encurralada por problemas ínfimos, que poderiam ser resolvidos com uma pequena ajuda, mas não o fazia. Ruminava suas mágoas, suas desilusões e seu imenso ciúme camuflado, demonstrando sempre uma firmeza bastante aquém da realidade. Por isso sofria.

Depois do sequestro, sentindo que teria de mudar para não voltar a cometer os mesmos erros, Sérgio tentou refazer sua maneira de ser. Apesar do imenso carinho e do amor shakespeareano, aventurou-se a prendê-la para sempre. Naquela oportunidade, o fim justificava os meios e, como diziam os romanos, a necessidade dispensava então a lei natural das coisas.

Já havia perdido muitas noites em conjecturas, tentando descobrir a fórmula mágica dos alquimistas, com a qual pudesse, num passe de mágica, transformar toda aquela insegurança no mais estável relacionamento. E não obstante o seu esforço, jamais conseguiu entender aquela criaturinha aparentemente tão simples e verdadeiramente tão complicada. Mas era assim mesmo que ela o fazia feliz; talvez fosse a eterna procura em desvendar aquele mistério, o motivo de tanto apego.

Ele queria entendê-la, adivinhar seus desejos e pensamentos, descobrir o que desejava… e nunca conseguia. Como que premeditando as transformações, ela conseguia num minuto transformar-se, de uma menina triste e desiludida, numa criatura adorável. Conseguia também, em plena festa, entre risos de felicidade, transformar, inopinadamente, a alegria de viver num descalabro de amarguras. Era como se seu cérebro, apinhado de momentos intercalados de agruras e contentamento, a todo instante deixasse evadir os resquícios enfileirados do que dentro continha.

De uma coisa certificara-se: tinha de mudar, pois do contrário cairia na rotina e tudo voltaria ao ponto de partida, sem nenhuma inovação e seguimento. Foi assim que numa noite falou com ela:

– Nancy, uma vez disse a você que a gente é massa feita e que, por mais que nos esforcemos, dificilmente conseguiremos levar longe a farsa da não autenticidade. Hoje estava querendo novamente falar com você em algum lugar em que nem as estrelas testemunhassem.

Que está pretendendo – disse ela assustada?

– Nada demais, pelo menos assim imagino. Nunca tenha medo das pessoas que a querem bem, tema antes as que disto não lhe dão segurança.

– E quem me garante que me quer bem?

– Eu.

– Acredito.

– Você sabe que pode acreditar. Minha vida tem girado nesses últimos anos em função de você.

– Eu acredito que gosta de mim.

– Pois então vamos. Estou pensando mais no seu bem do que você própria.

Jantaram e depois se assentaram na cama sob o frescor do ar condicionado, que era um bem necessário naquela região quente. Como da primeira vez que ali estiveram, ela olhava curiosa para todos os detalhes. Depois, virando-se para ele, disse em tom inquisitivo:

– Estamos aqui. Que queria me dizer de tão importante.

– Queria um filho seu.

– Mas você…

– Eu sei, mas poderíamos tentar.

– Por que isso agora?

– Porque assim teria mais certeza que gosta de mim e que, com um filho, encontraríamos mais motivo para não nos separarmos.

– Eu nunca me separarei de você.

– Não diga isso. A boca confirma os fatos, mas o passado os evidenciam.

– Sérgio, não seja inseguro. Eu gosto de você e se em algum tempo eu tiver que ser de alguém, este alguém será você.

– Não sente mais nada por mim, não é mesmo?

– Por favor, vamos mudar de assunto.

E ao dizer isto logo começou a narrar histórias bizarras que sempre chateavam Sérgio. Para vingar-se, ele quase sempre quietava, deixando que ela reconhecesse por si própria, que aquilo não era assunto entre duas pessoas que se desejavam e queriam. Ela acabava reconhecendo:

– Desculpe-me, não queria magoá-lo.

– Deixe para lá. Você sabe que a coisa que mais gosto neste mundo é tê-la perto de mim, sentir seu hálito e apertá-la contra meu peito. Você me atrai muito menina e por isso mesmo, em cada segundo que passa sem que isto aconteça, fico ansioso.

– A felicidade não existe.

– Não inteiramente. A única felicidade que existe é aquela conseguida com a graça de um momento inesperado. Por isso, não suporto perder um segundo com conversas que não levam a nada. Todo momento que nos dá prazer deve ser usado em toda extensão, pois nisto consiste a felicidade. Até o mais ardente e verdadeiro amor nos proporciona mais dores do que alegrias. Contudo, um mundo de decepções e sofrimentos não vale um só momento de felicidade. Tenho sofrido muito mais com você do que tido alegrias. No entanto, quando tudo isto acabar, terei certeza de que refaria mil vezes esta caminhada, se a mim fosse dado a oportunidade.

– Você pensa assim?

– Um dia também pensará.

– Já fui assim também, cheio de preconceitos e por eles abrenhei por caminhos escuros que só me legaram depressão. Mas tinha de ser um homem honesto e digno dos elogios de velhos retrógrados. Hoje só me resta a esperança de que Stendhal esteja enganado, quando afirmou que a única justificativa de Deus ante as desordens que assolam o mundo, é não existir.

– Abstive-me do prazer como se ele fosse contra as determinações do Criador; fugi da carne ou nela imiscuí-me, sem jamais deixar de transportar n’alma, a angústia do pecado. Vida, vida… que é isto enfim?

– Vida é tudo isto mesmo. E problema, é sentir, rir e chorar.

– Mas para que chorar?

– Por que a vida não permite apenas o riso, penso eu. O riso não teria definição sem as lágrimas e o sofrimento.

– É, talvez esteja certa. Eu mesmo já imaginei que Deus escolheu os contrários para engendrar o Universo. Mas de qualquer forma, não encontro razões plausíveis para o Perfeito fazer coisas imperfeitas. Onde Ele quer chegar com tudo isso?

– Aos céus, penso eu.

– Que tem a ver um lugar de alegria com o sofrimento?

– A vida, os contrários. Você o disse.

– Nancy, bem sei que desde de que o assunto não seja nós dois, você falaria por uma noite inteira. Mas na verdade, nem os mistérios da vida me incomodam quando estou pertinho de você.

E dizendo isto foi puxando-a contra si. Deitou-a levemente e ficou a fitá-la. Mil vezes já tinha delineado seu rosto. Ali, pequenina, moreninha, de formas excêntricas à beira da perfeição, olhar de “laser” a penetrar-lhe o ser, capaz de desacorrentar os demônios da libido. Ela sabia que despertava tudo isto nele e já agora não mais encenava. Passou a língua sobre os lábios, umedecendo-os tentadoramente. Bem de leve, ele roçou as mãos por seu rosto cálido. Depois foi desabotoando a blusa até deixar os seios expostos. Perdido naquele mundo de emoção, Sérgio tocou neles seu rosto em chamas.

A luz tênue dos abajures salpicava aquele corpanzil ofegante que aflorava envaidecido ante a debilidade de Sérgio. E o ímpeto que sucedeu à lisura dos carinhos afáveis, embeveceu-os no suor do prazer.

 

CAPÍTULO 48

Os dias se passaram e não obstante as mil e uma peripécias de Sérgio para sair da rotina, tudo voltou ao estado último das coisas. Com desculpas e evasivas, ela ia-se esquivando dos encontros, até que, um dia, quando ele chegou ao local de trabalho para apanhá-la, ela se desculpou dizendo que precisava acompanhar um acadêmico para uma visita de rotina ao hospital. Sérgio ficou estatelado no meio da rua, completamente transtornado.

Fosse qual fosse o motivo, a razão ou a justificativa, ele, desta feita, não aceitaria. Como um autômato, saiu caminhando pela rua, vagarosamente. O mundo ruía sob seus pés. Lá no alto, a eterna Lua testemunhal, despontava com brilho intenso, como se o Sol ainda estivesse insatisfeito com o calor do dia findo.

As coisas não andavam bem. Ao sequestro em que levaram seu carro e muitos de seus pertences de maior valor, juntou-se a dor da desventura de sentimentos não correspondidos.

Sentou-se num banco da praça. Lá do meio horizonte, a Lua continuava a subir, agora austeramente, refletindo nele toda doutrina dos maniqueus. Sua luz, impregnada de maldade, penetrava em sua mente, fazendo emergir, até mesmo do inconsciente, os momentos felizes que jamais se repetiriam. Era a desolação do irrecuperável, do imodificável, de tudo aquilo que, apesar da imensa dor que ocasiona e de toda a inconformidade que gera, ninguém pode modificar. O único caminho digno era reconhecer, pela primeira vez, que havia perdido.

E como em todos os momentos importantes de sua vida, num lapso de segundos, tomou a decisão e, resolutamente, seguiu para a rodoviária, comprando passagem para sua terra natal.

Durante a noite arrumou tudo o que tinha direito, comunicou por carta sua decisão ao jornal em que trabalhava, deixou alguns bilhetes para amigos e, no outro dia pela manhã, viajou.

Não se despediu de Nancy – estava ferido no mais profundo de seus sentimentos – o orgulho. Depois de tantas considerações acabou por entender que a única maneira racional de se abjugar daquela imensa paixão, era dela fugir.

Enquanto o ônibus rodava, sentia esfacelar-se por inteiro, como se a força motriz o partisse ao meio, tão apegado estava àquela menina simples, ingênua, cuja introversão conseguia escravizá-lo por inteiro. Sentia que sua presença, além de tudo, só iria piorar as coisas, inclusive para ela, que não tendo o brio e a coragem de dizer que não mais sentia amor por ele, acabaria por enfastiar-se e até mesmo odiá-lo.

O mínimo que desejava agora era manter a saudade de uma mulher indecifrável, de alguém que teria passado por sua vida com o único intuito de convencê-lo de que é impossível entender as mulheres.

O ônibus corria célere pelos campos de Goiás, onde já afloravam os primeiros ipês. Os de cor amarelo e outros de roxo – duas cores ostensivas e testemunhais do momento. Mas, por mais que o mundo retratasse símbolos, sua mente não conseguia desvencilhar-se do labirinto das incertezas.

Sentia que havia perdido, que havia fracassado por inteiro. Lembrava o dia em que ela, melancolicamente, confessou que nunca conseguira amar verdadeiramente ninguém e que ele desafiara:

– Vou fazê-la perder muitas noites, deixar muitos pratos de comida incólumes e agir abestalhadamente, aturdida pelo ciúme.

Ele era um homem comum, o mais comum de todos, incapaz inclusive de entender uma mulher simples, sem grandes conhecimentos de psicologia, cuja vida era apenas o colégio, o trabalho e as leituras de cordel. O que mais se lhe estampava aos olhos, não enxergava: ela tinha verdadeiro pavor da miséria e um grande desejo de vencer na vida: com amor ou sem ele.

Aquela menina que chorava diante das mais simples emoções o confundia por inteiro quando, diante de tantas atenções recebidas, massacrava de forma impiedosa, a única pessoa que velava dia após dia por sua felicidade. Achava-se injustiçado por aquela indiferença.

E pensava – enquanto o ônibus corria, parava, gente saltava e entrava – sem que qualquer uma das ações o perturbasse. Amar! O que seria amar? Nunca acreditara na retórica dos poetas que enalteciam este sentimento como capaz de transformar e responder por todos os atos insanos e, também gloriosos da humanidade. Que força estranha e incontrolável esta, que consegue dirigir as pessoas pelos mais incertos caminhos?

 

CAPÍTULO 49

Quando naquela terça-feira chuvosa, o telefone tocou na casa de seus pais, e de lá veio aquele atendimento em puro sotaque italiano, Sérgio percebeu que, finalmente, despertara de um pesadelo horrível em que agonizava o seu prazer de viver.

– E a senhora, mãe?

– Sérgio, é você, meu filho?

– Sou mãe.

– Onde está, meu filho?

– Aqui, bem perto da senhora, na rodoviária.

– Aqui?

– Sim, mãe, aqui.

– Oh, meu filho!

– Mãe, tem algum carro aí para vir apanhar-me? Está chovendo muito.

– Tem sim. O Elder comprou uma fubica que mais vive quebrada que rodando, mas hoje você deu sorte, ela está rodando.

– Estou maluco para ver vocês, venham logo.

Pouco depois, por largas e limpas ruas arborizadas, Sérgio seguia para sua casa – uma enorme construção que servira, nos primórdios, de centro hospitalar. Eram quatorze cômodos bem-dispostos que, em fins de semana, tornavam-se pequenos para o verdadeiro contingente de netos que jamais dispensavam os bolinhos de banana com fubá que a vovó fazia.

Pouco depois de ter viajado para o norte brasileiro, seus familiares mudaram-se para lá. Linhares era uma cidade interiorana que crescia e já assumia a posição de segunda colocada no Estado, deixando para trás suas rivais: Colatina e Cachoeiro do Itapemirim.

Muitas coisas haviam mudado ali, mas o que mais lhe chamou a atenção foi o crescimento das árvores que pareciam ocultar no fastígio esplendoroso do verde, todo progresso que chegara.

Rua da Conceição, 377. Lá, como insetos insurgentes de uma tempestade, os parentes aglomeravam-se. Foi um desembarque psitacídico, que erradicou num golpe cutelar a monotonia do Norte e o lançou nas folias de Vêneto. O sangue italiano novamente emergia, corria-lhe à flor da pele e entre abraços, gritos e chacotas, ninguém mais pôde se entender. Em sua família, o número de decibéis nos reencontros, bem podia deixar avariado os tímpanos de um rinoceronte.

Passado o primeiro impacto, Sérgio correu os olhos para certificar-se de que não estava enganado e perguntou:

– E papai?

Houve um silêncio tumular, constrangedor, como se depois de um estampido ocasional, os sobreviventes olhassem estarrecidos e confusos para os destroços e as vítimas.

– Que foi? – indagou mais firmemente Sérgio?

– Bem, redarguiu Jacy – ele não está bem.

– Mas não estar bem, não representaria tanta angústia como vejo em vocês.

– Ele teve um derrame cerebral.

– Quando aconteceu isso?

– Há poucos dias. Escrevemos para você, mas percebo que não recebeu.

– Claro que não.

– É que quando o vimos imaginamos que tivesse vindo exatamente por este motivo.

– Eu não sabia de nada.

– Não sei mesmo porque estou aqui, mas foi muito bom ter vindo. Papai sempre falava em você quando bom.

– Onde está ele?

– Aí na clínica do Emil. Foi há quatro dias. Ele se levantou e quando tentou escovar os dentes percebeu que não acertava mais a cavidade bucal. Coitado! Começou a rir, sem saber o que estava se passando. Logo chamamos o Emil que, apressadamente, o medicou, mas apesar de tudo ter sido evidenciado até com relativa precocidade, ele teve uma crise bastante forte algumas horas depois e….

– E…. – forçou a continuação Sérgio.

– Ele está muito mal. Não conhece as pessoas e também teve grande parte dos membros paralisados.

– Quero vê-lo logo – e dizendo isto encaminhou-se para a clínica, que ficava contígua ao casarão.

Lá estava seu velho, com quem gostava de forjar brigas inopinadas, com quem rolava pelo sofá e discutiam por prazer, totalmente vencido por uns míseros coágulos sanguíneos. Estava imóvel, olhos, agora de um azul esmaecido, fitando um ponto qualquer da laje.

Aonde teria ido todo aquele fulgor da juventude, a força daquele homem que desbravara selvas, enfrentara feras e maleitas, que a trancos e barrancos criara sete filhos e entregara-os ao mundo com todos os recursos da honestidade e da coragem de sobreviver honestamente?

Depois de fitá-lo por alguns segundos, Sérgio aproximou-se, tomou-lhe a mão imbele, apertou-a contra o peito dizendo:

– Ô pai, que fizeram com o senhor?!…

Ao ouvir aquela voz, ele girou os olhos cravando-os nos de Sérgio. Entreolharam-se por um tempo que, naquelas circunstâncias, pareceu uma eternidade.

Como a gente é sábio em dizer as coisas mesmo sem abrir a boca, quando não se tem meios, nem tempo… e se sabe como dizê-las!

Alguém ali não poderia precisar em qual dos olhos tombou a primeira lágrima.

CAPÍTULO 50

É nestas horas que a gente se indispõe com as limitações de nosso entendimento!

Vendo ali seu pai estirado, albentes cabelos esparsos encimando o rosto lívido, espicaçado pela humilhação de ser inclusive tratado como um bebê recém-nascido, totalmente incapaz, sequer, de atrair para si o descanso da morte, os pensamentos de Sérgio divagaram superiores. Lá buscou as razões do mal e da dor e maldisse a dependência filial. Eram os homens, como dizia Santo Agostinho, criaturas boas, mas não totalmente perfeitas. Conforme ele, Deus nada fez de mal em Sua criação, mas, paradoxalmente, sem o mal, somente as coisas incorruptíveis ou Ele próprio. E aí estava o pouco mal a evolar-se para libertar a alma, incorruptível e invulnerável.

O entendimento de Sérgio estava aquém do ordálio celestial e não podia entender, como Gandhi, como um deus, postergava o sentimento humano em prol de sua maneira dura de praticar a justiça.

Na ortodoxia desses ensinamentos, na mente de Sérgio, pairava a brutalidade dos meios. Como onisciente e onipotente, bem poderia Deus fazer tudo de outra maneira! Quem iria contestar, ou, contestando, impedi-Lo?

Mas, querendo ou não, as coisas assim eram e seriam por todo o sempre, enquanto a mão do Altíssimo assim achasse por bem. E, numa tarde de domingo, sessenta e três dias depois do primeiro derrame, sobreveio-lhe o quarto, acompanhado de uma ulceração estomacal irrecuperável. Emil, o filho médico, reunindo sua mãe e irmãos explicou:

– Nosso pai irá morrer de hemorragia estomacal. Poder-se-ia, em última instância, tentar uma cirurgia. No entanto, devido a imobilidade causada pelos derrames e a idade avançada, clinicamente, acho uma tentativa desnecessária e desumana. Contudo, nós somos a família.

– Se houver uma chance, tentemos – disse Sérgio – talvez até mesmo sem saber ao certo o que estava dizendo. Na verdade, o que importava era segurar, ainda que por algumas horas, aquela presença paternal, amiga e que por uma vida inteira lutou pelo bem deles todos. Era-lhe difícil admitir a hora!

Os outros irmãos interferiram, considerando a operação, como havia dito Emil, um ato desumano. E assim, a hora seguinte chegou e com ela, vômitos de sangue rubro e coagulado. Com a cabeça do pai sobre as coxas, Sérgio recebia os jatos de sangue que extravasavam da toalha e escorriam perna abaixo. Olhos fixos na tez que ia enfraquecendo a cor rosada e apertando as mãos do velho, cujas unhas já tomavam a coloração roxo-escura, ele ia assistindo àquela agonia. Panos e mais panos eram-lhe esfregados no rosto, retirando quanto possível, as listras escarlates da morte. Peito arfante, pálpebras que se cerravam, vida que se ia.

Pelos cantos da boca, agora, apenas um leve filete rubro escorria. Um médico piauiense, inseparável companheiro de canastra e verdadeiramente amigo da família, bateu com a mão no ombro de Sérgio, como a transmitir-lhe força para o momento crucial.

– Ele já não sente nem ouve nada. Está clinicamente morto – disse ele. É melhor você deixá-lo e ir respirar lá fora.

Sérgio elevou os olhos para aquele amigo sincero que, apesar de médico, sentia na carne a dor de ver um velho admirador partir. Em seguida fez menção de obedecer, mas seu pai, num vômito impulsivo lançou para fora uma grande quantidade de sangue coagulado que o sufocava e daí para frente, não mais seu corpo se mexeu. Estava finda a agonia.

O médico de Picos afastou-se cabisbaixo e alguns soluços contidos começaram a ser ouvidos. Firme e aparentemente insensível, Sérgio continuava fitando aquela carcaça relegada a destroços e uma estranha sensação foi-lhe perpassando todo o ser.

Um formigamento característico que sempre antecede às anestesias, veio-lhe subindo pelas pernas e infiltrando-se por todo o corpo. Um pouco mais e seus músculos faciais, em repuxos indomáveis, deixavam à mostra que uma emoção muito forte estava por explodir. Virou-se para alguém ao lado e disse:

– Por favor, ajudem-me, estou me sentindo mal.

Estiraram-no numa cama e logo foi medicado com um calmante qualquer. E entre a aferência do passado, a acídia do presente e a incerteza do futuro, Sérgio foi cedendo à força hipnótica do medicamento, como se a loucura interviesse, legando-lhe a conformidade desonesta de aceitar a desdita do próprio pai.

 

CAPÍTULO 51

Não há nada mais eficiente e necessário, do que o tempo para sarar feridas psíquicas, superar angústias e devolver a alegria de viver, perdida em um tempo qualquer da existência. Como defendem os homeopatas: “similia similibus curantur“. E assim, o mesmo tempo que criara tantos infortúnios, fazendo recair sobre seu coração tantas angústias, agora se encarregava de aforar-lhe a conformidade e o desejo de continuar vivendo. Seu velho querido, infelizmente se fora; Nancy já figurava apenas como um passado feliz – uma talha vazia que outrora tanto adunara os licores do prazer – e Teresinha, também curada pelo tempo, tratava com ele sem ressentimento algum. Era hora de retomar o caminho à cata de um novo tempo.

Seus irmãos: na medicina, odontologia, ourivesaria e lavoura, pareciam levar a vida que escolheram. Somente ele, ainda continuava apalpando na escuridão, vasculhando veredas no intrincado de picadas, à cata de uma direção. Aquele sonho de menino de ser escritor nunca o abandonara, embora jamais seus escritos passassem de velhos cadernos escolares, amarelecidos pelo tempo, encerrando escritos diversos, ligados sempre àquela infância cheia de incertezas.

Muitas vezes corria os olhos por aqueles cadernos e sorria feliz por entender que tudo aquilo não passava de desconexas versões sobre as diretrizes da vida. Isto era muito bom, comprovava que havia evoluído, aumentado seus conhecimentos e melhorado sua maneira de entender a vida. Mas, logo lhe advinha a dúvida tenaz de que, também para o futuro, possivelmente, teria de rir-se das asneiras que agora imaginava verdades. Onde estaria ele agora, em que estágio da vida?

Estava demorando muito a amadurecer, tomar um único caminho. Mais de trinta anos vividos! Com esta idade muitos já tinham se tornado grandes escritores ou respeitados empreendedores.

E como sempre, para selar suas decisões importantes, saiu a caminhar, buscando no arrefecimento dos ventos vespertinos, o sopro e a intervenção de Deus. Bastava de erros, de escorregões, de indecisões e de turbulência emocional. Sempre caminhando, dobrou uma avenida, entrou pela Praça da Prefeitura e foi debruçar-se no paredão que defendia as crianças do despenhadeiro das barrancas do rio Doce. Pontilhado de ilhotas e serpenteando pelas planuras de seu leito, o rio Doce continuava barrento, como se carregasse em si a árdua tarefa de uma dragagem insana. O vento estava ameno e a visão, a mais suave possível. Os dois velhos coqueiros implantados por ocasião da visita de D. Pedro II, ainda se mantinham incólumes, como testemunhas impenetráveis do segredo do monarca. Mais acima, a ilha do Velho Quincas, onde D. Pedro fizera ligeira parada para um convescote e dissera que jamais seus olhos tinham visto coisa mais bela.

Quanta história, quantos segredos a Natureza enclausurava em suas entranhas! Ali, em cima de seu rastro, já estiveram feras e cordeiros, pombos e abutres.

A noite caía e mais uma vez o sol, como a se higienizar para o sono da noite, parecia mergulhar, lá longe, nas águas do rio. Um panorama de linda imensidão, cuja beleza e tamanho conseguiam infundir na alma de Sérgio, uma desolada sensação de pequenez.

E o Sol se pôs, como que guinchando a Lua que opostamente surgia, sem que em sua cabeça, os pensamentos se coordenassem. Tudo ainda estava confuso.

Às 23h, quando já grande parte da balbúrdia cessara, ele se ergueu e repetindo lentamente sua decisão, como alguém repetiria com convicção uma determinação, ciciou-se:

– Aqui não ficarei. Haverei de arrumar-me pelo mundo.

Voltou para casa, conversou bastante com seus familiares, deixou que seus irmãos o desculpassem aos amigos pela súbita decisão e no primeiro ônibus partiu de volta para o norte.

Em Cristalina, perto da capital federal, o ônibus avariado fez uma parada de um dia. Ali o frio era intenso, principalmente durante a noite, tornando-se mais agradável depois que o sol despontava. Foi nessas horas que Sérgio, num ato quase impensado, telefonou para Nancy. Ficou estupefato quando do outro lado da linha, ouviu aquele “alô” impregnado de ternura, como se essas coisas pudessem andar juntas com o som.

– E você Nancy?

– Sérgio?

– Sim, sou eu.

– De onde está falando?

– De Cristalina.

– Está morando aí?

– Não, estou em trânsito. Houve um problema no motor do ônibus e conforme previsão, somente à noite deixaremos esta cidade.

– Pra aonde está indo?

– Adivinhe!

– Gostaria que fosse Imperatriz.

– Seu gosto será satisfeito.

Fez-se um silêncio constrangedor – um daqueles momentos em que se tendo milhões de coisas para dizer ou perguntar, nada se diz ou pergunta. Ambos estavam adurindo de emoção, buscando inutilmente no meio daquela tensão, qualquer palavra que pudesse tirá-los da situação embaraçosa. Por fim, ela falou:

– Você está bem? Por aonde andou e o que fez durante todo esse tempo?

– Estava na casa dos meus pais. Acho que descansei bastante e acredito ter conseguido as forças para continuar vivendo.

– Por favor, logo que chegar venha me ver. Eu mudei para um bairro distante, mas continuo trabalhando no mesmo lugar.

– Irei sim, pode esperar. Daqui a três dias estarei, com pontualidade britânica, às vinte horas, na Praça Brasil.

Falaram ainda alguma coisa e depois se despediram.

Voltar a Imperatriz, para perto de Nancy! Estranha decisão.

Nancy era-lhe problema, obsessão…. Por que então, iria para junto do problema?

Haveria de ser coerente com seus princípios de que, quando se tem grande medo de uma coisa, a melhor maneira de resolver o problema é enfrentá-lo, é entrar nele, é encará-lo de frente, pois nenhum homem pode certificar-se de suas reações diante de uma situação embaraçosa, sem vivê-la plenamente.

 

CAPÍTULO 52

Para qualquer pessoa que se ausentasse de Imperatriz por dois meses, logo poderia perceber o crescimento desordenado da cidade. Quando pisou na Praça Brasil sentiu isso. O número de veículos que ruidosamente ia e vinha, não coadunava com o curto tempo, não tão ido, em que esteve nela. Apenas a falta de educação, a ausência total de infraestrutura e os montes de lixo pareciam desafiar o tempo e as autoridades.

Era novembro, tempo das primeiras chuvas de inverno no Maranhão e, consequentemente, menos calor e poeira. Alguns sopros suaves tocavam-lhe o rosto e na pele não sentia emergir o suor, tão comum na maior parte dos dias.

Faltavam alguns minutos para as oito horas. Enquanto esperava por Nancy, perdia-se em conjecturas, caminhava abstratamente pelo universo de suas emoções. Nem sequer percebia as explosões estúpidas dos “cadrons” e não só aquilo, como toda a algazarra do mundo, conseguiria penetrar no insondável abismo de sua abstração.

Como estaria ela? Que lhe diria? Gostaria do presente que comprara com tanto carinho? Puxa, viria correndo e se atiraria em seus braços, dizendo palavras de saudade e de amor? Certamente que sim.

E tantas foram as divagações, que acabou por circundar seus oceanos de ilusões e, como Magalhães, voltou ao porto real de onde partira. Balançando a cabeça como a afugentar a maviosidade irreal das suposições, olhou num leve movimento do antebraço, o relógio: 20h23min.

Certamente não era motivo para angústias, pois ela sempre se atrasava, ainda que para isto não houvesse motivo. E realmente já com quase uma hora de atraso, ela apareceu, acompanhada de uma amiga, e dando as eternas e bastante conhecidas investidas temperamentais das estrelas de cinema:

– Desculpas Sérgio, mas hoje estou péssima.

– Mas disse que aqui estaria às 20h!

– Poderia não estar. Afinal, não dependia só de mim.

– Mesmo assim poderia ter arriscado, não?

Sem importar-se muito com o que se estava dizendo, Nancy, com ares de quem havia se esquecido da boa etiqueta, desculpou-se com a amiga:

– Ora, perdoe-me Lucimara, por não lhe ter apresentado meu amigo.

Os dois cumprimentaram-se, entreolharam-se rapidamente e logo se revestiram da impassibilidade. O amargor de toda aquela apatia penetrava-lhe no mais profundo ser. Tantos sonhos, tanta expectativa…. Tudo implodia ante a recepção fria e inesperada. Ainda que tentasse, estudasse, utilizasse toda sapiência dos mais afortunados estudiosos da alma, Sérgio não conseguiria definir a frustração daquele momento. Só agora ele percebia o motivo de sua decisão de deixar a terra natal e voltar à cidade de Imperatriz.

Aquela criatura ali postada em sua frente, totalmente despida de qualquer sentimento, cravava-lhe no coração, o aço frio da falta de calor humano. Nem que fosse por piedade, ela deveria estar alegre; nem que fosse pela coerência de seu modo de ser, deveria abraçá-lo; nem que fosse pelo passado, deveria ser reconhecida; nem que fosse por respeito à grande paixão de Sérgio, ela deveria ter vindo sozinha, alegre, para juntos caminharem noite adentro. Como sabia machucar, desiludir!

Nas mãos rígidas, Sérgio sustinha o presente. Não tinha sequer coragem para mencioná-lo. Num último alento, disse-lhe:

– Nancy, sua colega importar-se-ia de deixar-nos a sós? Precisava muito falar com você.

Antes que dissesse qualquer coisa, muito educadamente, Lucimara assentiu:

– Claro, claro, vocês devem ter muito que falar.

Mas ainda fria e calculista, Nancy arrematou:

– Lucimara, espere-me na esquina do colégio. Logo, logo estarei lá.

Como dois bonecos de cera, dois autômatos destituídos de emoções, eles caminharam em direção ao colégio. Poucas palavras, nada de tudo aquilo que Sérgio tanto sonhara depois do telefonema. E mal chegaram às proximidades do colégio, ela, totalmente apressada, despediu-se e, quase correndo, foi ao encontro da amiga. Ele ficou estatelado, fulminado pela indiferença, arrasado em seus sonhos mais puros. Nas mãos, o presente; na alma, a tristeza maior dos tristes.

Sem saber a direção a tomar, ficou ali parado por alguns segundos. Parecia flutuar, não sentia a terra nos pés. Depois, virou-se e cabisbaixo foi retornando, sem saber exatamente para onde. Em seu coração, para sempre estaria, indelevelmente cravado, o estigma da vingança.

Permeio ao turbilhão de sentimentos extravasava ódio, amor, desilusão e toda sorte de dependências que desolam e afetam um homem. Ao passar por uma adolescente que revirava o lixeiro de um supermercado, ele se aproximou e a chamou, usando uma interjeição qualquer, por desconhecer o nome.

A menina assustada fez menção de fugir, espavorida pelas constantes ameaças do fiscal noturno, mas percebendo que dele não se tratava, aproximou-se.

– Que foi?

– Nada de especial. Eu havia trazido um presente para minha namorada – eu estava viajando e não sabia – e quando cheguei, encontrei-a morta. Fiquei sem saber o que fazer, pois não estava bem certo que os mortos gostem de receber presentes. Por isso, gostaria que aceitasse o que agora lhe passo de coração, como se fosse você, a minha namorada, e o sendo, se sentisse feliz por isto.

Cada vez mais assustada, a menina, antes de levar a mão para pegar o embrulho, ainda o fitou medrosa. Ele a encorajou:

– Não tenha medo, pode olhar. E uma joia verdadeira que me custou exatamente tudo o que eu podia dar. Guarde-a com carinho e se for possível, não se desfaça dela por maior que sejam as adversidades.

Ela agarrou o pequeno embrulho e em seguida, sempre olhando aturdida para trás, desapareceu na escuridão, sem que Sérgio pudesse ao menos guardar os traços fisionômicos daquela pobre menina.

 

CAPÍTULO 53

Quando Sérgio sentou-se na cama, não sabia mais definir se tudo aquilo era castigo ou provação. Fosse o que fosse, doía muito e conseguia – se esta fosse a pretensão – desterrá-lo, impor-lhe o duro jugo dos fracos. Maldisse seus sentimentos e exortou a razão, num acinte aos mais puros sentimentos de perdão e compreensão. Sentia os grilhões inconscientes da ingratidão perpassar-lhe e já sem tanta luta, deixava aninhar dentro de si, uma vingança terrível, aquém de sua criação.

Tanta humilhação e desprezo – embora sob o consentimento de sua fraqueza e não pela imposição – marcavam-no profundamente. Mas ainda agora, depois de tudo, não conseguia odiá-la. Dentro de si flutuavam a maciez e a doçura daquelas palavras e em sua boca os ternos beijos daqueles dias de paixão. E sempre a desculpava, pois jamais, depois de um tempo, ela insistira em reencontros. Ainda mais agora, em desvantagem com os outros rapazes que possuíam carros do ano e se deliciavam com o dinheiro fácil dos pais! Sérgio não tinha mais sequer o direito de alimentar esperanças de reter para si, aquele coração cheio de ilusões, insatisfeito com a pobreza.

Pensou e pensou. Concluiu, enfim, que jamais, ainda que para o futuro ela o desejasse, ele seria feliz. Sentia penetrar incontrolavelmente em seu âmago, o juramento de uma vingança instintiva, independentemente de sua força de vontade. Haveria de esquecê-la.

Ajoelhou-se no pé da cama, elevou os olhos ao acaso tentando coadunar o direito de vingança, à justiça divina. Jurou para si próprio que jamais pensaria em Nancy com esperanças de felicidade e não pôde deixar de ver adstrito no espaço das suposições, o amor e o ódio, de mãos dadas, num estranho entrelaçamento de conivência.

Ele mesmo não saberia explicar ou refazer a caminhada dos seus pensamentos naquela tétrica noite de desconforto e desilusão. Sentiu nela a força acoroçoada do mal, que se avultava quando se entregava à lembrança daquele encontro decepcionante. E num monólogo deprimente, acabou por jurar de joelhos, que iria vencer na vida, ou pelo menos, caminhar em degraus mais altos, a fim de que jamais mendigasse o amor de outra Nancy.

Quando seus olhos deram mostras de cansaço e seu primeiro bocejo indicou-lhe que seu corpo precisava descansar, já o sol impertinente fustigava a escuridão fraca da noite. Esfregou as mãos pela face, tomou um banho demorado e sem mesmo o café da manhã, seguiu firme para o primeiro desafio de sua nova vida.

Tudo o que podia render qualquer centavo, ele fez durante alguns anos seguidos. Embora já tivesse conseguido novamente comprar um carro e controlado suas despesas, Sérgio não estava ainda no segundo degrau de seus planos.

Continuava vendo Nancy, mas nunca mais para falar de amor ou coisa parecida. Eram conversas sempre com a real preocupação de não recordar. Ambos sabiam disto e ambos fingiam não saber. Saíam para almoçar, conversavam em algumas tardes dando voltas pelas cercanias da cidade e chegavam a passar longas horas em lugares privativos, onde o ambiente predisposto à libido, não passava de mera e ineficaz tentativa de aproximá-los. Era um eterno estudo, uma vigília paciente e cheia de mistérios. Sérgio sentia uma atração muito forte por Nancy, mas fazia de tudo para não demonstrar, e ela, por mais que tentasse, vez por outra era delatada pela maneira indisfarçável de olhar.

Nancy andava com um moço recém-formado e que clinicava na cidade. Era um moço culto e inteligente bastante para usufruir de toda aquela meiguice, sem a estupidez de um envolvimento que viesse roubar-lhe as horas de sono. Por isso não se importava de vê-la com amigos, jantando ou mesmo se divertindo em balneários e praias. Quando lhe era bom, ele usava.

E foi neste ambiente quase hostil, incolor, capaz de destruir todo o atrativo das paixões, que o tempo foi passando e criando coisas novas, capazes inclusive de ab-rogarem de um crente, os deleites da fé.

O tempo faz nascer, deixa crescer, permite o envelhecimento, assiste o fim e espalha com o vento, a poeira de tudo. Ele faz, ele desmancha.

 

CAPÍTULO 54 

Por mais que se tentasse desvendar os mistérios que envolviam Nancy, não se conseguia. E foi assim que ela conseguiu também deixar a seus pés, o Dr. Strauss, cuja origem germânica não lhe legara o apanágio de ser superior nas coisas sentimentais. Dr. Strauss, além do prestígio que gozava como precursor e bom psicanalista, não conseguiu separar para si, a cultura anímica de sua faculdade. A tantos ensinara, mostrara o caminho, apontara erros, previra o futuro…. Esqueceu-se, no entanto, que em certas ocasiões, um ótimo psicólogo deve consultar a bola de cristal para direcionar dignamente a própria vida. Além de estar sempre com o consultório abarrotado de pretensos doentes mentais, que já não conseguiam manter a tradicional sanidade perante a tribulação das dificuldades que lhe impunha o dia a dia, tivera o privilégio de bamburrar no garimpo de Serra Pelada e ostentava, orgulhosamente, por aonde passava, os excessos daquilo que tanto faltava à maior parte das pessoas.

O casamento fora notícia de primeira página e toda a nata pútrida dos escalões superiores a que, aberrativamente cognominam de sociedade, estava presente.

Para culminar com a fatalidade, Sérgio havia sido escolhido para cobrir o acontecimento. Trajado modestamente ele esteve todo o tempo à distância, embora engasgado com a impertinência do destino que tanto exigia de sua condição humana.

Ela estava linda. Permeio as dezenas de rendas alvas que cobriam o longo vestido, ela estampava sempre aquele sorriso dominante: dentes graciosamente um pouco sobrepostos, coroados por lábios sensuais: lábios que tantas vezes ele havia tocado e matado a sede da paixão.

Os convidados iam e vinham pela igreja florida e transformada em ambiente de festa mundana, onde os flashes ininterruptos dos fotógrafos chispavam o lusco-fusco como se, novamente, a Casa de Deus estivesse sendo adulterada.

Esquivando-se quanto podia de um martirizante encontro, Sérgio mantinha-se à distância, averiguando os acontecimentos e guardando-os para a resenha que faria. E por mais que tentasse, aquela dor de vencido, de amor próprio ferido, não o abandonava, agastando sua alegria naquele momento que, para tantos, só possuía a cor do contentamento. Pela primeira vez (como quem vê num esquife a figura de um ente querido seguindo) ele sentiu com todo peso, o gosto acético e nauseabundo da derrota. Sempre desassossegado, acorrilhado pelas recordações, andava de um lado para outro, distribuindo falsos sorrisos e demonstrando uma impassibilidade difícil de ser encenada.

Centenas de carros, logo após os primeiros cumprimentos, dirigiram-se para o coquetel que seria dado na mansão do casal. Era uma construção cuja pomposidade reclamava a honestidade de uma grande sorte nos barrancos do garimpo, pois nenhuma profissão honesta, conseguiria alcançar tamanha disponibilidade.

Bebidas importadas circulavam em litros e garrafas inteiras, sempre assessoradas por licores coloridos, a todo instante postos à mercê por lindas garçonetes, vestidas de seda cor-de-rosa.

Num canto do salão de recepção, uma pequena orquestra executava músicas suaves, para tantos, maviosas, mas, para ele, revestidas do luto do irreversível.

Em trejeitos peculiares, embevecida da suntuosidade a que sempre sonhara, Nancy circulava pelo salão, sorvendo até a última gota de tudo aquilo que sempre sonhara. Dava para perceber como se sentia vencedora e como empinava o rosto pelo salão, desfilando com graça, frente a todas as pessoas de maior destaque da cidade.

Num canto à direita, quase escondidos pelo instrumental, estavam os familiares de Nancy, todos reunidos numa única mesa, acuados pela orgia, bem aquém de suas personalidades. Olhavam assustados e às vezes com orgulho, para a filha que, afinal, merecia admiração por ter galgado o ponto máximo de suas pretensões, abstendo-se apenas do amor. Ela nunca se dera o trabalho de imaginar que, o amor, talvez seja o único tesouro que nem toda riqueza do mundo pode comprar e que, sem ele, tudo é efêmero e passageiro.

Divertiu-se, ostentou, escolheu e separou, sem importar-se com os achaques das artimanhas mesquinhas. Ela era o que era: meiga e diabólica, pobre e requintada, simples e misteriosa. Estava predestinada a distribuir em lindas taças coloridas, o sabor amargo do indecifrável.

Sérgio ia sempre se esgueirando de um possível encontro, até que em determinado momento, um amigo o abordou e, na distração da conversa, Nancy, mesmo sem o perceber, aproximou-se. Quando seus olhos se encontraram, foi como se chispas magnéticas, numa atração incontrolável se atraíssem e tal foi a emoção, que quando ela se retirou, o amigo de Sérgio, visivelmente chocado, observou:

– Que houve entre vocês no passado?

Sérgio, enrubescido, tentou desculpar-se com evasivas desconexas, enquanto por todo seu rosto, aquele afogueamento próprio de tais emoções, ardia-lhe na face e o deixava transtornado. Pediu licença ao amigo e sem ao menos elevar mais os olhos, retirou-se da sala. E o vozerio da mansão pareceu-lhe o inferno com mil demônios lhe escarnecendo.

 

CAPÍTULO 55

Os anos foram passando. Quando em vez, Sérgio via Nancy sempre em carros do ano. Percebendo-a à distância, desviava a cabeça, com o fito de simular a coincidência de nunca a ver passar. Por isso, jamais ficava sabendo do seu comportamento. Devia estar muito feliz, já que a felicidade, para ela, sempre estivera intimamente ligada à ostentação.

Quanto a ele, perdera muito a obstinação de fazê-la, fossem quais fossem os meios, admirá-lo e desejá-lo. Abandonara as maneiras aviltantes de enriquecer e entregara-se aos estudos, jamais esquecendo de se apegar aos fiapos de fé que lhe restavam, para conseguir do alto, o carisma da retórica e da escrita fluente. Mas, sem capacidade nem fé, tudo se ia arrastando.

Sua edição do primeiro livro (alcançara a sorte do “Significado dos Sonhos” de Freud): permanecia encalhada. E se viesse a ter o mesmo fim, estaria dispensado, pois não era das glórias póstumas que precisava. E embora já entendesse que livros era um peso morto em sua economia, continuava lutando, escrevendo e lendo, no afã de, pelo menos, de onde estivesse pelos séculos, pudesse ver na lápide fria de sua morada, um epitáfio que como tal o identificasse.

Quantas vezes metia os olhos desdenhosos em suas páginas e cabisbaixo sentia o rosto arder de vergonha, como se críticos impiedosos o acusassem de dedo em riste.

O criado-mudo vivia atulhado de estúpidas obras importadas, de escritos encomendados, de ideias sem cérebro ou cérebros sem ideias, exclusivos em plagiar, em compilar frases construídas e relacionadas de autores em êxtase de inspiração.

Mas havia obras que o humilhavam, que ameaçavam fazê-lo amarfanhar seus escritos, como o dia em que espatifou seu pinho depois de uma apresentação de Dilermando Reis. E realmente há carismáticos que espezinham, pendores inigualáveis que se impõem pela graça da predestinação.

Os medíocres o animavam, os capacitados deixavam-no em desalento, mas a pilha dos primeiros soterrava a dos segundos e Sérgio persistia em sua luta burlesca. Burlesca? Depois de tudo perguntava-se:

O que seria bom, ótimo, razoável, regular ou péssimo? Sim, quais obras seriam verdadeiramente originais e inigualáveis, por merecimento?

Tudo que se faz, fala ou acontece neste mundo, recebe elogios, justificativas ou escarnecimento. Há gente de todos os naipes, pensamentos, ideologias, grau de loucura ou pontos de vista e, por isto mesmo, o mundo vive estonteado, sem saber o que é certo ou errado.

Amanhã, se levados pelo sensacionalismo, interesse ou piedade, a imprensa e o povo resolvessem sublevá-lo, por certo, mixarias, contrassensos e trabalhos sinceros de sua vida galgariam, de mãos dadas, os pórticos dos imortais. Afinal, nada neste mundo é certo para todos, pois o senso de perfeição e verdade depende de cada um.

Urna coisa é importante quando assim se define ao chocar-se contra o nosso entendimento. Quem está com a verdade absoluta: Cristo, Buda, Maomé, Kardec, Alziro, Komeini, Lutero, Brama…, a Bíblia, o Rig Veda…, o socialismo, o Tora, o imperialismo…, os sátrapas, os párias, Santo Agostinho, Nietzsche…, quem? Se se fizer mil divisões, haverá gente adeptos para todas elas. Com quem está a verdade?

Mundo de ideias exclusivas, de particularidades e idiossincrasias próprias, de crenças e desejos particulares. A verdade está na pessoa e não nas pessoas e nisto Sérgio cria sem reservas. Acreditava e continuava a trabalhar, a escrever e a dizer asneiras, as quais, em algum tempo, tinha certeza, algum crítico, em seu senso de julgamento diria: – “Um asno”, ou então, “Um sábio”.

Por obra da fraqueza ou de reações inexplicáveis do espírito, transferia para os livros aquele amor fracassado por Nancy. Amava os escritos e deleitava-se com frases auspiciosas, como se fossem beijos inesquecíveis da criatura que quase adorara. E sempre, numa mistura homogênea da qual jamais se consegue centrifugar as substâncias que a compõe, ia formando suas definições de amor e ódio, de esperança e desilusão.

Surpreendia Sérgio nunca a encontrar depois do casamento, ao lado do marido, que vivia fora das rodas sociais e sem a badalação de outros tempos. Apesar de tudo, não procurava sanar suas dúvidas, mesmo porque, sua sorte era irreversível e pouco importava se entre eles havia ou não felicidade. O que lhe importava agora era viver honestamente e acreditar, quanto podia, num Deus que tantas dúvidas lhe derramava no coração.

Depois de Nancy, poucas foram as namoradas que teve e mesmo assim os encontros não sobreviviam a mais de algumas semanas. Era muito difícil encontrar alguém, cujos mistérios o desafiassem, cuja frialdade emocional ou emoções incontroláveis, surgissem a cada encontro, retirando a monotonia que sempre ocorre nas pessoas estáveis. Ela sabia inovar, mudar, modificar, fazer coisas diferentes em cada dia ou hora. Era exatamente estas iniciativas que destruíam sonhos ou os criavam em plena luz do dia. Um desafio, por assim dizer, à sua capacidade intelectual.

No ano de 1984, estava ele em seu escritório: um quadrado respeitável de mármore. Com os cotovelos apoiados, as mãos enclavinhadas escorando o queixo para suster o peso da cabeça solta, ele estava pensando numa saída para um romance que chegara a um ponto em que a imaginação esbarrara, quando o telefone tocou. Como não estava com vontade de saber de nada e nem de falar com quem quer que fosse, deixou que o mesmo tilintasse até o automático desligar.

Alguns minutos depois a cena repetiu-se acrescida da impertinência, mas ele também não atendeu. E tantas foram as insistências que, com ares de mal-educado, resolveu acorrer.

– Alôôôô! – disse ele quase gritando, como quem, açulado pela impertinência de alguém, reage sem os requintes da boa educação.

Ninguém respondeu. O telefone continuava silencioso. Apenas podia-se ouvir, quase sumidamente, Fábio Júnior cantando “O que é que há” música que por sinal sempre lhe fora muito significativa.

Sérgio sempre achara que as músicas são como os alimentos, os afagos e tudo o que nos acontece: se acontecerem em momentos bons, serão para sempre bons, assim como a recíproca é verdadeira.

Disse alô algumas vezes e depois ficou ouvindo a música, na certeza de que, fosse quem fosse, estava passando-lhe um trote de muito bom gosto. Ouviu a música por inteiro e sentiu que alguém do outro lado, com muita delicadeza desligava o aparelho. Sérgio olhou para o telefone, teve alguns pensamentos furtivos e balançando a cabeça como quem vai morrer sem entender certas coisas, também colocou educadamente o aparelho no gancho.

CAPÍTULO 56

Depois de quase duas semanas de mudos telefonemas, com músicas que tantas e mesmas recordações sempre lhe traziam à mente, Sérgio acabou por entender que aqueles telefonemas eram de Nancy. Novamente sua cabeça sentiu os revides da fraqueza e diante de todas suas decisões, vingava a possibilidade de sucumbir. Embora lutasse contra o cacoete de balançar a cabeça no afã de afastar certos pensamentos, sentia que sempre que nela pensava, isto acontecia, instintivamente.

Aquela visão meiga, cheia de artimanhas diabólicas, começou a intrometer-se em suas noites e nos seus afazeres. Quantas vezes chegava ao fim de uma página, sem lembrar de uma palavra que havia lido. Seu rosto queimava na ilusão de afagos furtivos e não poucas vezes assustava-se ante a chegada inesperada de alguém que, possivelmente, o flagrasse em adultério.

Que havia – pensava – de sobrenatural em tudo aquilo? Por que não conseguia livrar-se daqueles grilhões? Onde andava sua fé que não conseguia devolver-lhe a força de vontade de reconhecer que tudo aquilo não podia dar certo? Que havia naquela mulher que tanto o fascinava?

E sem jamais encontrar explicação, nem se dominar, acabava sucumbindo diante da possibilidade de um minuto de felicidade, ainda que isto redundasse em semanas ou mesmo meses de angústias e arrependimento.

E foi assim que, um dia, quando o telefone tocou e do outro lado, novamente o silêncio se fez, ele arriscou:

– É você Pequenina?

Pequenina era a doce alcunha com que sempre a chamava. Ela sorria quando ele dizia isso e retribuía:

– As bactérias matam os elefantes, sabia?

Do outro lado da linha, paulatinamente, aquele silêncio dorido, entrecortado apenas pelo som sumido das mesmas músicas de sempre, agora passava a contar com mais um som: o de um soluçar preso e sufocado.

– Nancy?! – exclamou Sérgio em tom inquisitivo.

O soluçar, extravasando as emoções que o barravam, irrompeu em choro incontrolável, próprio de quem atingiu o limite da resistência. Não havia dúvidas – era ela.

– Nancy, meu anjo, que está acontecendo com você?

E como (por mais que tentasse) nenhuma resposta obtinha, ele começou a falar, na certeza de que ainda desta feita pudesse fazer alguma coisa por ela… ou por ele mesmo.

– Ouça Nancy: sei que é você, pois seria capaz de reconhecer até mesmo seu bafejo. Sei também que não é mulher para chorar tão facilmente, assim como sei que não é por nenhum acidente ou morte que está a soluçar.

A vida é assim mesmo, meu anjo! A gente luta denodadamente para conseguir alguma coisa que acha ser fundamental e, quando consegue, percebe que o importante está mais além. A gente nunca se satisfaz com o que tem ou realiza. E a insaciabilidade humana!

Os nossos sentimentos, apesar de falhos, sempre prostrarão a razão, mesmo porque o segundo é divino e o primeiro, humano. E como humanos, temos sempre que ser felizes, usando de nossas atribuições de fracos.

Nosso coração fez-nos errar muito, mas somente ele (sacrário de nossos sentimentos) é capaz de oferecer-nos momentos de felicidade

A gente nunca consegue a felicidade plena nesta Terra, pois somos quase perfeitos, mas não totalmente. Se fôssemos totalmente perfeitos não teríamos, jamais, os achaques do que é errado e, automaticamente, seríamos divinos. Teremos, pois, de carregar sempre esta mistura, lutando para abreviar aquelas coisas que nos perturbam, e segurar mais as que nos podem ocasionar felicidade.

Você sempre pensou em conseguir as coisas sem imaginar se tais coisas tinham o aval da consciência. Olha, Pequenina, minha fé é fraca e tremula como chama de lamparina exposta ao vento, mas ainda é capaz de reconhecer que nada dura e é bom, senão provir da sinceridade.

Sempre imaginei e entendi que tinha dentro de si uma vontade e um desejo indomáveis de ser rica, de ostentar, de pisar com a cor álgida do ouro, o destino que lhe pusera em desvantagem com as outras mulheres. Sempre buscou seu valor nas coisas materiais e, como tais, elas se deterioram, acabam. A felicidade só compartilha com a riqueza quando não é levada em conta. No entanto, se a gente a busca sem olhar os meios e sem dar ouvidos aos reclames do coração, nem toda a pomposidade do mundo poderá fazer com que seu sorriso seja espontâneo.

Sua felicidade está nas raízes, Nancy, está na pobreza. Por isso nunca a entendi, já que sempre encenou um papel adverso, truncado, forjado. Suas palavras nunca traduziram a sinceridade e sim a vingança contra a vida que, aparentemente, legou-lhe uma posição que acredita injusta. Mas haveremos de crer que o cabelo que temos, a cor dos nossos olhos, o tom de nossa voz, tudo enfim o que somos, para nós é o melhor, é o que fica melhor.

Sempre haverá, atrás de tudo, uma razão de ser e que embora nos pareça cruel, tem uma finalidade divina. Você errou muito, Pequenina, tentando modificar, não aceitando as diretrizes de Deus e querendo impor suas próprias verdades, sem antes, fazer uma verdadeira reflexão.

Eu concordo e até já lhe disse certa vez, que não existem verdades, mas sim, nossas verdades. Mas disse também, que para tanto, devemos sempre chegar a elas com reflexão e honestidade.

Hoje chora e vejo que é humana. Ah, Pequenina!, quantas vezes desejei ouvi-la chorar e dizer, ainda que fosse com lágrimas, que alguma coisa estava errada e que se achava frágil para carregar sozinha o peso de sua cruz. Somente hoje percebo que toda aquela impassibilidade, aquela maneira dura de tratar os problemas sentimentais, não era própria de você. Hoje sinto que estou tratando com uma mulher frágil e humana, capaz de sentir e reconhecer que é incapaz de levar, sozinha, a cruz que escolheu.

Você não está feliz, eu sei. Mas agora tudo está muito difícil. Jamais deixei de amá-la e, até hoje, também não cerrei meus olhos sem antes pedir ao Deus de minhas dúvidas por seu sorriso e felicidade. Contudo, minhas orações de outrora eram egoístas porque me punham no meio em que eu pensava tirar proveito de sua presença; hoje minhas preces se evolam como éter ao sol. Meu coração está enfermo e como todo doente, não sente mais fome de você. Por isso, tudo o que posso fazer agora é rogar aos céus para que me console na derrota e me dispense a hombridade de desejar a felicidade a quem tanto me machucou e fez sofrer.

Por você sacrifiquei minha vida e com ela tantos planos! Se soubesse quantos castelos de areia erigi, sem saber que eram mesmo de areia. Foram fracos e sucumbiram às marés.

Houve um dia em que minha alma também soluçou e seus ouvidos não quiseram ouvir. Você nem sequer se deu conta. Quando retornei do Espírito Santo, você apunhalou-me, matou-me sem a piedade humana de uma palavra de conforto. Hoje é você quem agoniza. Se eu estivesse vivo, correria para você, juro que correria.

Aqueles soluços, Sérgio acompanhara todo o tempo. Iam e vinham, paravam ou irrompiam em choro incontrolável. Depois, quase em convulsão, ela desligou o aparelho, e foi bom que assim tenha sido, pois aquelas palavras concatenadas, vindas de livros e da imaginação, jamais retratavam o que ia na alma de Sérgio.

Na verdade, o que ele queria mesmo era largar o telefone e correr para ela, mas, como sempre, resistiria enquanto pudesse.

 

CAPÍTULO 57

Esvaiu-se do céu o lenço branco-acinzentado da fumaça das queimadas. Na passagem dos carros, apenas os esguichos das poças d’água acumuladas; no alto, os raios claros do sol curioso que se metiam por entre as nuvens ambulantes. Acima delas, um azul límpido absorvia nossa visão pelo dia e, à noite, deixava exposta a figura de retalhos celestes salpicados de estrelas. Era o inverno que chegara. Em poucas semanas a terra trocava sua roupagem murcha e enrijecida, pela virência de novas folhas. Alguns pássaros migrantes, já cantarolavam pelas cercanias.

Aquele panorama desolador de alguns meses atrás, somado aos ventos tempestuosos que empoeiravam tudo, agora se transformava. Várias vezes por dia, blocos açorados de nuvens emergiam dos horizontes e entre chispas e estrondos, derramavam água por todos os cantos. As ruas pareciam verdadeiros igarapés sem direção, entrando por todos os lugares mais baixos e sendo a diversão da criançada. O rio Tocantins, dia a dia subia, trazendo consigo destroços mil, como se o tivessem transformado em um grande esgoto a céu aberto.

Era um tempo diferente em que a lama dos sapatos bem valia a ausência das golas encardidas do verão. O clima tomava-se mais ameno e por força da meditação, Sérgio gostava de caminhar até as barcas, para ali, debruçado em algum parapeito, ficar pensando enquanto arremessava pedregulhos nas águas revoltas.

Quando em vez, os botos emergiam sincronizadamente das águas, como se estivessem num palco desempenhando uma coreografia bem ensaiada. Sérgio lembrava, então, os tempos de criança, quando pela primeira vez vira de perto o mar e os tais peixes que passeavam pelas águas rasas, perto da praia. Os outros seminaristas diziam que os botos eram providenciais e amigos dos naufragados; que empurravam as vítimas para fora d’água. E numa corrente de pensamentos retrospectivos, pôde então esquecer que se tornara um adulto, um ser incapaz de entender as coisas simples da vida, a beleza dos pensamentos puros de uma criança.

Ah, que saudades de Marilândia! Saudades daquele tempo em que ficava intrigado até mesmo com a almíscar do alazão; saudades do tempo em que agarrava a perna de uma galinha ensopada e podia saboreá-la até mesmo com a testa, sem que ninguém se incomodasse; saudade do tempo em que ouvia aqueles sermões do missionário Ponciano, esbravejando aos céus, palavras compridas e que nunca pôde saber o significado: devia ser coisa de gente grande. Saudade até mesmo das tamancadas que levava na bunda, por causa das peraltices ou por não querer comportar-se durante o terço das tardes de maio; saudade das noites em que ficava a ouvir histórias do lobisomem e depois voltava para casa com os cabelos enristados como o de uma escova de engraxar sapatos; saudades do tempo em que ficava a conversar com os grilos ou arrumando seus pedacinhos de pau, como se cada um deles tivesse vida e emoção; saudades do tempo em que, continuamente, sungando o calção que lhe ameaçava cair, perseguia as mariposas que se enroscavam nas moitas de capim; saudades daquelas conversas simples: das cetras, dos zovos, do mindá, do vai-a-merda, do passarim, do não vô…, saudades de um passado no qual era ele um deus de inocência a pisar na terra maculada dos grandes.

Como desejava, naquele tempo, ser um adulto, sem imaginar que teria o resto da vida para se meter em encrencas e complicações. Houve uma idade que Deus não pensou bem quando a admitiu: é a idade dos dez anos, em que não se pode acompanhar os homens por ser criança e nem tão pouco brincar de bolinha de gude por se tratar de um marmanjo. Mas tudo passa! Tudo passou.

E ali, enquanto destroços navegavam serenamente a jusante, seus pensamentos, como paus, papéis e toda sorte de imundícias, também navegavam pelo abismo de suas dúvidas nos mares de seu passado. Iam e vinham seus pensamentos, da tenra infância feliz, às dúvidas massacrantes e cruéis do presente.

E as águas seguiam. As águas – ele pensava – sempre as águas! Existira isto em toda sua vida, como se a ela, surpresa por ver os declínios de sua origem, sempre estivesse presente diante daquilo que vira nascer e convergir para o homem. Só agora se entranhava na verdade simples de Euclides da Cunha: “A volubilidade do rio contagia o homem”.

Quantas vezes estivera ele ali. Já conhecia os sons e podia fechar os olhos e saber quem, em tal hora, descia para o restaurante flutuante. Absorvido pela Natureza, assistindo o desenrolar da vida e crendo cada vez mais que a mesma passava ante seus olhos cansados, como as águas do Tocantins passavam.

Das duas partes em que dividira sua vida, apenas a de tornar-se um escritor ainda vingava. A construção de um lar feliz, em que o choro de uma criança e os gritos de uma mãe aflita fossem músicas de vida, já havia se ido. Restava-lhe a outra, mas por mais que lutasse, sentia em cada folha que escrevia, maior acervo de coisas desconexas que o humilhavam, até mesmo, diante das ingênuas e comerciais literaturas de cordel.

Tinha muita vontade de ser um homem incomum, mas por mais que se debatia, quanto mais procurava as diferenças, mais se convencia que elas não existiam: era, entre todos, o mais simples e comum dos mortais. A única coisa que poderia ter feito bem, não o fez, já pela inoperância de sua capacidade.

Com a perda de Nancy, sentira todo o peso da incompetência em defender a própria felicidade.

 

CAPÍTULO 58

E tantas foram as noites que no inverno passou às margens do Tocantins que, em uma delas, quando soqueava a muralha dura do parapeito, num desabafo de inconformidade com a vida, ouviu atrás de si, a maviosidade de uma voz que bem conhecia, ainda que dita das estrelas:

– Sérgio!

Seu corpo enrijeceu-se como se atrás de si tivesse soado uma ordem de assalto. Sentiu algo estranho correr-lhe do dedo do pé ao cabelo da cabeça. Virou-se rapidamente por inteiro, arranhando as costas na areia do muro. Diante dele, com seu eterno olhar penetrante, ainda menina, estava Nancy.

Trajava um vestido branco curto e tinha numa das mãos, uma pequena bolsa de couro, cujas tiras para tiracolo, achavam-se enroscadas nos dedos. Impassível como uma rainha e suplicante como uma escrava, jazia ela, totalmente entregue. A luz do luar que vinha de encontro a seu rosto, dava o toque final de poesia para aquele encontro inesperado. Pelos sulcos dos olhos e reentrâncias da boca entreaberta, impunha-se um colorido mais denso, como a cortar aqui e ali, sua beleza plena de traços informes. Como o brilho de uma estrela esmaecido pela imensidão da distância, ela ainda tentava impor-se.

O vento que passava arrefecia a face acalentada de desejos. Pela força das circunstâncias, pela tentação do momento, pelo erro daquele encontro, os corpos entrelaçavam-se em pensamentos e desejos. Bem longe, como lâmpadas de pisca-pisca nas noites de Natal, os relâmpagos riscavam a escuridão.

Não saberia dizer por quanto tempo tudo aquilo durou. As águas que passavam levavam consigo todos os segredos daqueles dois corações apaixonados. Como disse Richard Llewellyn pela boca de um de seus personagens: “Quando o prazo é curto, pouco é a utilidade”.

Talvez seja por isto que tanto deixaram os olhos falarem, pois, ninguém melhor que eles sabiam, que jamais a boca encontraria vocábulos para expressar tudo aquilo que lhes ia na alma e no coração.

Quando uma estrela brilhou nos olhos de Nancy, Sérgio percebeu que seus pensamentos a haviam machucado e deu um passo à frente, dizendo:

– Não sei o que dizer.

– Quando não se tem o que dizer, o melhor é ficar calado, respondeu ela com a voz visivelmente trêmula.

– Seria indiscreto perguntar–lhe porque está aqui?

– Passei uma vida inteira falando com meus olhos. Não entende o que eles dizem agora?

– Mas não é direito.

– O que é direito para você?

– Aquilo que sobrevive pelo bom senso, que não fere o direito dos outros nem a nossa consciência.

– Para o diabo a moral e a Lei. Eu não consigo mais evitar.

– Mas é uma mulher casada e assim deve comportar-se. Conhece alguma coisa, como: “Não desejar a mulher do próximo”? Parece-me, salvo engano – chasqueou Sérgio – que foi Jesus quem ensinou assim.

– Deus é fruto da Bíblia. Ele vive num mundo diferente do nosso. Ele se fez perfeito. Por isso as coisas são fáceis para Ele. A força de Deus exclui nossa debilidade e temos direito às nossas fraquezas, quando nos podem dar esperanças e felicidade. Estou lutando por um direito meu, o de ser feliz.

– Não é bem assim, Nancy. As coisas que nos machucam não são castigos; às vezes, provações.

– Ora, Deus não tem necessidade de nossas abnegações e nem dos nossos sofrimentos.

– Descoloridos e sem glórias são os prêmios imerecidos. A água que molha e viceja nossa alegria é o sofrimento, o trabalho, a luta e, enfim, o merecimento.

– Eu tenho direito de ser feliz.

– Eu também pensava assim e talvez até não estivesse enganado. Contudo minha felicidade dependia de uma pessoa e, infelizmente, essa pessoa não pensava como eu.

– Você não gosta mais de mim?

– Como antes. Talvez mais. Quem deixa de gostar, na verdade, nunca gostou. E tanto a amo e quero bem que, ainda desta feita, encontro forças para dizer–lhe que tudo acabou.

– Não é verdade. Eu sei que não é verdade.

– Como sabe?

– Porque também eu menti a mim mesma, quando o reneguei.

– Para mim agora é mais fácil. Tenho certeza que teria de galgar muitos degraus para safar-me do cheiro dos seus pés. A sua glória nos distancia e impossível é a um germe, amar uma estrela.

– Eu mudei, eu mudei.

– Na verdade nunca é tarde para isto, mas para provar que assim o é, por favor, tome seu carro e retorne para seu marido.

Ela adiantou-se e, por ser pequena, ficou de cabeça forçosamente levantada, fazendo com que sua boca entreabrisse. Sérgio desviou os olhos. Ela o tocou no antebraço, roçando os seios hirtos em seu peito. E já diante do esforço inseguro de largar-se, sentiu que o mundo descia sobre ele com toda a singeleza do firmamento. Vagarosamente foi descendo seu olhar até cravá-lo naqueles olhinhos negros e cheios de paixão. Ela era a força do mal personificado e ele, a presa imbele de uma planta carnívora. Enquanto morria sua dignidade, o mel cálido da sedução o envolvia totalmente.

Agarrada à sua boca ela tentava dizer qualquer coisa, numa técnica feminina enlouquecedora.

Depois, como uma cobra que injeta seu veneno e enrosca-se nas anfractuosidades de seu esconderijo, ela desgarrou-se e, quase correndo, tomou o carro e desapareceu na noite.

 

CAPÍTULO 59 

Como podia haver tanta maldade, tanta malícia embutida naqueles traços, cujas simetria e desconexão, tão bem casavam com a ideia de atrativos para Sérgio. Era como se ela, diante de um sedento na aridez desértica, enchesse uma taça com água cristalina e derramasse na areia, ante os olhos suplicantes do desvalido. Sabia criar desejos, simular emoções.

Quantas vezes, nos idos, quando já para ela Sérgio pouco significava, numa perspicácia digna da mais completa das atrizes, telefonava-lhe cheia de ardor, só porque necessitava de algum favor. E tão logo conseguia o que pleiteava, voltava à apatia costumeira.

Como diria Graciliano Ramos de sua Marina: “Nesse ambiente empestado Marina continuava a oferecer-se negaceando. Conservava-me preso, fazendo gatimanhos, esticando a saia estreita que lhe mostrava bem as coxas e as nádegas”.

Certa feita, quando já em eternas análises, acabou sucumbindo às carícias do curador e parecia perdidamente apaixonada pelo divã, telefonou para Sérgio:

– Preciso falar com você.

Sérgio não esperava mais que aquilo acontecesse. Havia posto tudo na qualidade de jogo findo, em que o resultado lhe fora adverso. Não se conformava com a derrota, mas sua opinião jamais mudaria o resultado. Por isso, procurava sempre afastar os constantes pensamentos que, como hostes implacáveis, avassalavam seus momentos de reflexão.

Mas, qual experiente jardineiro que em longas secas consegue manter com vida uma planta sofrida, ela, ao sentir que as folhas daquele amor murchavam, vez por outra derramava-lhe no tronco algumas canecas de água. Por isso o amor ainda vivia e tão forte era que, diante da mínima gota que lhe umedecia as raízes, logo o renovo da paixão revigorava. Sorvendo antes a doçura daquela voz, respondeu:

– Quando?

– Não sei – disse ela cheia de malícia.

– Hoje à noite, está bem?

– Às vinte horas, na casa da vovó.

– Tudo bem! Mas o que aconteceu?

– Não posso falar por telefone.

– Está bem, falaremos à noite.

Ela veio diferente, toda perfumada, com um vestido que lhe ficava muito bem. Estava alegre e feliz, como poucas vezes ele a tinha visto. Pediu desculpas pelo eterno atraso de trinta minutos e em seguida saíram. Ela sorria bastante e dizia, constantemente, que nem ela sabia o porquê de tanta felicidade. Sérgio mantinha-se quase que calado, fazendo, quando muito, algumas observações ao acaso.

– Você já jantou, Nancy?

– Não, mas não estou com fome.

– Se quiser, não faça cerimônias. E só escolher o lugar.

– Vamos andar, andar apenas.

Perdido no seu mundo de conjecturas, Sérgio tentava decifrar o pior dos enigmas, aquele que é engendrado pela mente humana. Sentia-a descontraída, alegre e feliz. Alguma coisa estranha estava para acontecer. Sérgio quis logo saber:

– Mas enfim, o que deseja falar comigo?

– Não sei se devo dizer.

– Deve sim. Para isso me chamou; para isso vim.

– Eu queria um favor seu.

– Pois diga.

E fingindo-se temerosa, em evasivas comuns de sua estratégia, ela mudava de assunto, como quem se constrange ao pedir um favor:

– Eu queria que você me desse um revólver, desses pequenos de bolsa, só para eu ter comigo.

– Está brincando?

– Estou falando sério.

– Está tentando matar-me? – gracejou ele.

– Jamais faria isso com você.

– Com uma arma, talvez sim – disse ele, mas ela fingiu não entender o que ele insinuara.

– Como é, vai me dar?

– Não é de meu agrado fazer favor desta natureza. Uma arma traz mais prejuízo que benefício para quem a porta.

– Mas eu queria.

– Insisto que desista desta ideia. Peça-me outra coisa, por favor.

– Não, quero um revólver.

– Diga-me ao menos, para que deseja essa arma?

– Acho bonito tê-la, miudinha, na bolsa.

– Não é motivo convincente.

– Está bem, não precisa me dar nada, esqueça.

Era uma jogada como os dribles de Garrincha: sem mistérios ou inovações, mas sempre deixava o zagueiro para trás.

– Este revólver – disse ele – é como o cigarro. Digo-lhe primeiro que não deve, mas se insiste e não quer entender, então faça-se segundo sua vontade. Você não é mais criança.

Ela sorriu. Havia conseguido seu primeiro objetivo. Daí a exatamente ao lugar aonde pretendia chegar, era um pulo, pois na verdade, o que desejava era algo que custava bem menos que o preço de um revólver. E Sérgio imaginava: quanta inteligência e sagacidade havia naquela cabecinha, aparentemente simplória.

Pararam em seguida sob uma árvore e, um tanto escondidos da curiosidade das crianças que corriam de um lado para outro, ficaram a conversar. Ela continuava alegre e insinuante. Sentara-se bem próximo a ele e como que por simples acaso, virou-se de chofre, ficando com seu rosto bem próximo ao dele. Ela sabia do poder de seu olhar e Sérgio não o desconhecia. Por isso, todas às vezes que isto acontecia, ele desviava rapidamente os olhos, e cabisbaixo falava o que lhe vinha à mente. E imaginava quão idiota se torna um homem apaixonado.

E ao perceber que ela o fitava sem trégua, tirou em princípio os olhos da terra e cravou-os em sua barriga; depois, num segundo impulso, fitou o pescoço e por segundos, titubeou em alçar o último degrau. E quando por fim o fez, ela, respirando fundo, cerrou as pálpebras e bafejou-lhe o rosto, com o cheiro da perfídia e da maledicência. Num impulso instintivo, ele elevou as mãos e lhe acariciou a face febril:

– Isto não é justo, Nancy!

Ela nada respondeu e então, ele, tragando-a com a voluptuosidade de seus mais íntimos desejos, beijou-a sofregamente. E quando toda aquela tensão se descarregou, voltando a si daquele delírio proibido, ele, recompondo-se, observou:

– Por que somos assim, Nancy? Que há atrás de tudo isto que nos impele a tantos erros consecutivos? Por que há de ser sempre assim, com esta paixão e este interesse dominando a atração que existe entre nós? Por que temos de sacrificar nossos mais puros sentimentos num holocausto de magia, como se amar fosse crime? Por que me deixa amá-la e ao mesmo tempo impede, deleitando-se com o sofrimento que me vem de tão curtos momentos?

– E que amar de verdade – disse ela – é mais sofrer que ser feliz.

– Não entendi.

– Para termos certeza de que nos amamos, haveremos de sofrer mais do que ser felizes, pois tudo aquilo que nos vem da paixão, como ciúmes, possessividade, desejos etc., são bem mais dolorosos que os próprios momentos de juras e beijos furtivos.

– Você ainda me ama?

– Por favor, não falemos nisto.

– Mas por quê? Afinal, que há de errado em nosso amor?

– Eu tenho ciúme até mesmo da companhia que Deus lhe faz. Por isso não quero você, pois irei sofrer muito.

– Por Sócrates — disse Sérgio – o que mais se exige para uma união do que um grande amor?

– Nunca deveria haver união num grande amor.

– Você me surpreende.

– Às vezes não me parece muito inteligente.

– Isto não me magoa, pois jamais duvidei disto.

– Por favor, saiamos daqui.

– Mas, está tão agradável!

– Vamos sair, por favor.

E quando deixaram aquele lugar, ela parecia transtornada, medrosa, escolhendo ruas e locais, como se mil olhos a espreitassem. Era a segunda parte da estratégia. Sérgio observou:

– Nancy, eu sempre penso mil vezes (se assim se pudesse reforçar uma expressão) antes de fazer alguma coisa. Por isso, estou com você sem preocupação alguma com o que pode acontecer no minuto seguinte. Sei que seu namorado pode flagrar-nos, mas quando aceitei seu convite, já havia imaginado isto. Assim sendo, qualquer lugar para mim é lugar. Acho que devia pensar assim também, pois toda pressa não vale o fim. Quer que a leve para casa?

– Acho que está na hora, não é mesmo?

E no caminho para casa, ela observou:

– Eu estava brincando quando lhe falei do revólver. Como sabe, tenho medo de armas e não consigo nem as ver perto de mim.

– Ora, você conseguiu enganar-me.

– Eu sei.

– Mas, então, o que deseja enfim?

– E muito caro, estou receosa e chateada em falar.

– Pois diga, se estiver ao meu alcance, eu o farei.

– Estou precisando de cento e cinquenta mil cruzeiros para…

– Não diga – interceptou ele – diga apenas a importância, o fim a que pensa destiná-la não precisa mencionar.

– E então?

– Você terá esta importância, agora.

Os seus olhos brilharam e Sérgio pôde mais uma vez, sentir que aquela menina se ressentia de causas da infância, que tinha um preço e que acreditava que toda ninharia e mesquinhez que o dinheiro pudesse comprar, far-lhe-ia muito feliz. Estava concluída a manobra.

– Isto lhe faz feliz? – disse ele, passando-lhe a importância.

– Muito feliz. Você nem imagina quanto.

E entre sorrisos de pretensa felicidade, totalmente vitoriosa e considerando-se, quiçá, a mais ardilosa das mulheres, ela se despediu, enquanto nele, mais fez se fundamentar a certeza de que, pela primeira vez na história, a felicidade podia ser adquirida com dinheiro.

Cento e cinquenta mil cruzeiros por uma encenação: um sorriso e alguns beijos e carícias.

 

CAPÍTULO 60

E agora, mesmo depois de casada, ela voltava a minar toda prospecção de uma saída digna que coadunasse com sua educação moral e religiosa. Novamente se via prostrado diante da tentação de ter, somente para si, aquela criaturinha problemática.

Seu sangue italiano, de uma tradição honesta de respeito e dignidade, chocava-se contra o instinto incontrolável do sexo. Aquela carência sentida por seus avós e pais, longe da terra natal, entregues às falcatruas de uma política arguta, fluía-lhe nos olhos e no coração, tornando-o submisso à pele morena e as carícias que nunca tivera, por educação e contingência do destino.

Tudo isto abalroava em Nancy, que fora menina mimada na infância, quando recebera em sobra o que faltava a Sérgio. Havia muita contradição nestas forças oponentes que tanto se aproximavam e se atraíam. Mas, assim como a corrente elétrica gera força por ondas oponentes, assim também eles, em mundos contrários, mantinham a força e o poder de amar. Um não podia viver sem o outro, pois a luz da felicidade só brilhava quando juntos, em mundos, escalas e fórmulas diferentes, encontravam-se. E a luz era necessária, era a causa e o alimento que os mantinham dependentes.

Mas havia chegado o momento. Por mais que buscasse a solução e o direito de ser feliz, ele sempre acabava esbarrando na certeza de que sua felicidade podia, honestamente, ir até onde a do psicanalista começava. Era como a luta metafísica dos pensadores em desvendar os mistérios da alma: uma caminhada de suposições onde somente os pés da fé podem pisar e seguir adiante.

Já não havia mais nenhuma dúvida de que a constituição daqueles seres era predestinada à junção triste de uma derrocada, de um curto circuito que, fatalmente, deixaria mágoas e infelicidade.

E Sérgio tinha de agir rápido para não se enredar no triste destino de Nancy. Desquite, divórcio, confusão e ameaças… tudo enfim o que envolve a tentativa vã de sarar uma ferida incurável. Além do mais ele estava certo da força da vingança instintiva que o marcaria para sempre, se juntos ficassem. Jamais, apesar de todo aquele amor, iria esquecer aquela volta amarga do Espírito Santo ou aquelas tantas vezes que, por horas a fio, ficara prostrado na calçada ou no carro, esperando por alguém que não viria.

Nunca sentira tanto no coração, a força do amor e do ódio, em empurrões emocionais, na luta pela hegemonia.

Ao beijá-la às margens do Tocantins, apertou-a contra si, como se não controlasse a ansiedade de esganá-la, num misto de carinho e paixão. Teve medo de si mesmo.

Nancy havia destruído a ele a si própria. E somente Deus poderia entender a proscrição daquelas duas almas que, embora se amando como ninguém, jamais conseguiram ser plenamente felizes. Havia algo que eles não podiam conter e tão iguais eram em força, que por mais objetivo que fosse o juiz, não preveria o resultado.

Em Nancy, eram tão agudas as marés de seu passado, os aviltamentos de sua paz, que conseguia em uma hora, ser dez vezes feliz e infeliz. Em Sérgio, a inconstância e o domínio que ela exercia sobre ele, conseguiam fazê-lo aceitar e desistir pela mesma quantidade de vezes no mesmo período.

Por isso, eram felizes e infelizes a cada momento, num intercalonamento abrupto e desolador. Ele, na eterna luta contra a força da paixão e do medo; ela, incansável na relutância de resguardar seus segredos e suas psicoses, ainda que para isto tivesse de ferir ou pôr tudo a perder. Não havia lugar nem ocasião em que ela não se sentisse temerosa. Sempre presa a seus preconceitos e fiel aos traumas de infância, ela era o desafio ao mais renomado psiquiatra.

E embora Sérgio tivesse como certo, que somente a razão é capaz de assegurar e perpetuar uma união, jamais fazia jus às suas convicções. Vivia entregando-se aos apelos das emoções, sem destituir-se daqueles alucinógenos que o destruíam, mas que, em o fazendo, agiam plenos de sonhos etéreos e de ilusões cada vez mais desejadas.

Jamais alguém saberá o que é obsessão, não vivendo a dependência de uma Nancy!

 

CAPÍTULO 61

A única saída digna e talvez covarde que restava a Sérgio, era mudar para longe, onde nem as próprias coincidências pudessem interferir no total esquecimento.

Como se lhe tornara cruel a vida e os ensinamentos morais: ali tão perto, estava a seu alcance, a plena razão de sua vida e, se por um lado, podia tê-la quando bem quisesse, por outro, os entraves morais o impediam. Alguém ou alguma coisa teria de mudar.

Como se fosse um detetive particular, Nancy sabia dos passos dele e sempre o flagrava quando estava sozinho. Da última vez, a conversa tinha sido dura e cheia de verdades:

– Está fugindo de mim?

– Esteja certa disto.

– Por que, se quem está ferida e necessitada sou eu?

– Eu já não existo.

– Você está aí, posso tocá-lo.

– Ninguém morre duas vezes Nancy e eu já morri.

– Não entendi.

– Você me destruiu como um veneno que mata definhando aos poucos, gota a gota, até a debilidade total.

– Por favor, não fale assim. Você sempre me ensinou a perdoar, e agora não está sendo coerente com o que sempre pregou.

– Não consigo fugir do passado.

– Eu não posso mais viver sem você, Sérgio. Quando meu marido me abraça, sinto seus braços e, às vezes, nos momentos de amor maior, não ouço, sinto ou vejo outra pessoa senão você. Quantas noites fico sozinha, desfilando lembranças diante dos meus olhos, no afã de fazer ressurgir daquelas coisas pequenas, a grandeza de um sentimento que só sei sentir ao seu lado.

– Por que só percebeu isto agora?

– Eu sempre amei você, mas fui obcecada pela vaidade. A humilhação de ter um vestido pior, de não poder desfilar com as pessoas importantes nos clubes, de me sentir sempre acuada pela matilha cruel da pobreza, transtornou-me. Como a gente erra, quando pensa resolver os problemas sentimentais com as coisas materiais! Hoje tenho carros, tempo, vestidos, joias… minha casa vive apinhada de gente importante, mas em meu coração uma tristeza profunda fez morada.

– Você agora é uma mulher casada, Nancy, não há mais solução.

– Sempre há solução quando a gente quer. Note bem, digo quando a gente quer, pois entre o querer e o poder, há uma diferença como da terra ao infinito, e, no entanto, ambas têm a mesma força e poder.

– Agora foi eu quem não entendeu.

– Quando a gente quer Sérgio, tudo é possível. A gente não pode, porque eu sou uma mulher casada, porque irá criar um escândalo, porque toda esta cidade pequena e todos nossos conhecidos irão nos crucificar. Isso a gente não pode. Mas se quisermos, tudo isto cairá por terra.

– Ninguém pode ser feliz fazendo uma coisa conflitante com seus princípios morais e religiosos.

– Esqueça isto Sérgio. As coisas de Deus, registradas na Bíblia, nem sempre podem estar ajustadas às coisas humanas. Entre a Bíblia e o homem, há uma diferença tão grande como o poder e o querer. Uma foi feita pela divindade, para as coisas do Divino e outra para as coisas humanas, do homem. Depois de tudo, você não pode crer que o que tudo o que está na Bíblia foi dito por Deus.

– É muito fácil torcer as palavras, impossível é fazê-las convencer. As palavras bonitas e aparentemente perfeitas têm a força de iludir apenas. No entanto, a verdade é sempre uma só e vive na cabeça da gente. Não há nada que gostaria mais de ter nesta vida do que você, mas não nestas circunstâncias. Eu não conseguiria ser feliz assim.

– Que quer que eu faça?

– Só sei o que farei.

– Que está insinuando?

Sérgio quietou-se, baixando a cabeça. Ela aproximou-se ainda mais, embora já falasse deixando que seu respirar removesse, vez por outra, os tênues fios do cabelo de Sérgio. Lutando como desvairado para não encontrar no caminho, os olhares dominantes de Nancy, ele sempre falava de través, ou com os olhos para o chão. Ela sabia que ele sempre sucumbia a seus encantos e por isso, percebendo que a cada dia ele mais se tornava irredutível e que o perdia, puxou-o para si, tresloucadamente.

Sem poder pronunciar as palavras direito, pois os lábios de Nancy o sufocavam, ainda tentou por alguns segundos, dissuadi-la. Depois, entendendo que já sua consciência o dispensava dos castigos da anuência, entregou-se plenamente àquele pecado que, embora estivesse tão claro na Bíblia de Deus, era bastante obscuro no livro da vida.

– Nancy – disse ele fora de si – não é justo nem direito.

– Nada é justo nem direito, tanto aqui como fora daqui.

– Você está sendo egoísta, tentando tornar-me conivente com seus problemas e seus erros. Você está encrencada, eu não. Sou um homem livre e que ainda poderei ter chance de encontrar outra Nancy.

– Eu o mataria.

– Ninguém morre duas vezes, já lhe disse isto outras vezes.

E naquela noite, foram tantos os erros, os pecados e as falhas, que não seria fingimento andar como se tivesse atrás de si, os impertérritos anjos de Sodoma. Quando Sérgio penetrou em seu quarto, sentiu como se em cada canto, um anjo justiceiro, de espada em riste, o acusasse.

Sentou-se e por momentos pôde recriminar mais uma vez aquela infraestrutura rígida que recebera no seminário. Parou diante de sua escrivaninha, olhar fixo em qualquer ponto.

– Diacho de vida – exclamou esmurrando com tanta força a mesa, que alguns livros estremecidos, caíram ao chão. Sem importar-se caminhou um pouco mais, abriu a janela e ficou debruçado no peitoril. Droga de vida!, pensava.

E agora sozinho, tendo apenas atrás de si os escudeiros da santidade, peando suas malícias e defendendo seus bons princípios, ele pôde entregar-se aos delírios dos pensamentos hostis à sua formação. E tanto justificou-se que quase já podia sentir-se encorajado a acreditar que, realmente, entre Deus e os homens, havia urna diferença tão grande que certos deslizes poderiam receber a anuência de Aquino, ao não responsabilizar o réu por certas mentiras e omissões. Foi então que pôde lembrar na voz do reverendo Gruffydd, a exortação ao espírito impulsivo de Huw: “Por tão bela desculpa, vou revelar-lhe que o julgo um bom rapaz, mas mal guiado na sua bravura. Nunca se importe com o que sentir. Pense. Observe. Torne a pensar. E depois um passo de cada vez. Para que a construção seja sólida e seja boa. Da mesma forma com o pensamento. Pense. Construa um pensamento por vez. Pense solidamente. Depois aja. Ouviu?”

Mas as forças da boa formação sempre vicejavam, mesmo no campo desnudo e triste de seus fracassos e tentações. Algumas lágrimas, sem que mesmo ele percebesse, riscaram sua face. Pôde senti-las, pois, ao passar pelo rosto ardente, deixaram um risco úmido que a aragem fresca da noite tornava frio. Esfregou a mão, espalhando a doce frieza por todo o rosto cálido. Assoou-se em seguida no próprio braço, certo de que Deus, único presente a tudo aquilo, não se importava com a consequência de nossas fraquezas.

E mais uma vez, suas investidas contra os píncaros inexpugnáveis de sua sobriedade redundavam em fracassos, não vingavam. Quantas vezes, como os aliados na travessia de Navarone, sua tentativa de destruir seus bons princípios, tão antagônicos ao que imaginava ser-lhe felicidade, terminava em desastrosos fracassos.

Fechou a janela, sentou-se na cama e como que transtornado pelos pensamentos fortes de toda aquela situação, olhou de través para os cantos, como assegurar-se de que aqueles anjos imaginários, fiscais incorruptíveis de Deus, haviam se cansado e subido aos céus.

Era desagradável para ele saber que as tempestades que avassalavam sua alma, para muitos, não iam além da normalidade do vaivém da vida e até de garganteios em rodas de amigos. Deitou-se. Passou as mãos pelos cabelos já desgrenhados, e embora não fumasse, forjava baforadas ao léu, como se com elas extraísse todas aquelas tensões que o dominavam. Jamais saberia precisar em que momento, o peso das ondas que transcendem o domínio da lucidez, o venceram e prostraram-no em sono profundo.

 

CAPÍTULO 62

As outras noites foram piores, pois a força das tensões sobrepujava o cansaço físico, encafuando-o em desassossego e tristeza. A saudade da herdade que o vira nascer tornava-se pouco complacente. Só agora se apercebia das tantas coisas boas que o tempo havia levado.

Seu quarto era contíguo ao de duas pensionistas que tantas vezes fingiam rolar na cama e bater com os joelhos na parede, numa demonstração inequívoca de que o barulho de suas insônias as estava incomodando.

Por isso, Sérgio movia-se com calma e justeza, embora estranhasse os estalidos emitidos até mesmo de um virar de folha de caderno. E todo aquele cuidado insuflava-lhe respeito pela consciência ferida por tantos desacertos. Como tivera pressa em se complicar! Tinha uma vida inteira para isto, mas afobou-se, sobrecarregando, ainda tão cedo, o seu cérebro de problemas. E tanto imaginou, que sentiu, ainda uma vez, sua intrepidez de paladino reverter-se em bagas de pranto a rolarem pelo rosto imóvel e desbotado.

Como era diferente o seu choro agora. Saudade do tempo que esperneava, escoiceava em manhas, rolando pelo chão num berreiro infernal e que somente por isto, e não pelas travessuras, acabava recebendo na bunda aquela correia de couro de veado mateiro, curtida caseiramente por seu pai. A presença daquela correia, aqui, equivalia ao histerismo de qualquer “Reich” alemão. Pouca coisa Sérgio temeu mais na vida!

O olhar fixo, a boca inerte – apenas aquelas salobras gotículas que vez por outra lhe caíam na boca, deixavam externamente a presença da dor que lhe corroía o coração. Quanta angústia!

Se ainda fosse criança, por certo rir-se-ia de sua face apaixonada, pois somente aos apaixonados não se tornam idiotas as feições e o procedimento. Mas era adulto e estava, além de apaixonado, pelas suas tantas mercês, entregue aos vândalos caprichos de uma formação ultrapassada, subjugado à tutela do “Deus dos exércitos”.

Seu pai sempre fora um homem austero, que jamais lhe roçara os cabelos com as mãos grosseiras, justas e honestas, jamais talhadas às coisas impenetráveis do espírito. Quanto se ressentia agora de palavras amigas, de passeios pelas azinhagas da fazendola, ao lado de um pai sorridente que lhe falasse de amizade, carinho e compreensão. Quanta falta de tudo aquilo, pois pelas transformações culturais, seu coração também deixou de ver o passado apenas como tal.

Somente agora sentia saudade dos acarás bobões, que de guelras sempre abanando, avançavam para um anzol quase sem minhoca; das piabas espertalhonas, que qual voejar de um lépido beija-flor, roubavam a isca sem dar tempo ao reflexo da fisgada; dos campos verdes e bonitos, cheios de flores e passarinhos; da felicidade de correr pelas pastarias, cabelos desgrenhados, rosto purpúreo pelo sol impiedoso do meio-dia, para, à tardezinha, meter no curral os bezerrinhos que saltitavam dos morros às várzeas. Não havia nada, nada mesmo que, à noite, deixasse seus olhos pregados na cumeeira à espera do sono! Do ar puro que rondava os morros e varria os baixadões, arrancando de dentro dele as contrariedades, como se fosse o toque tépido das asas de seu anjo da guarda.

– Meu Deus – imaginava – o que permiti que fizessem comigo! O mundo agora desaba, trinchando-me sem piedade, legando-me duendes loucos que vozeiam como orquestras de mil sons embaralhados, enlouquecedores.

É sempre na dor que ascendem as sãs virtudes, pois o homem doente consegue entender, enfim, quão inútil e imbele é a força vital diante de micróbios invisíveis. Os micróbios são agentes divinos que cutucam o homem e o tiram da insensatez! É na dor que a gente se encontra e fica sabendo do quanto a fraternidade é importante para a felicidade das pessoas!

Ali, enfurnado, sem forças, sem amigos verdadeiros, longe dos seus entes queridos, sentia que, somente a razão poderia salvá-lo. Lá fora, o mundo continuava bonito e sem problemas. Somente ele estava triste, porque a tristeza escolhera. Todo homem é feliz ou infeliz por si próprio!

O sol esplendia quando seus olhos cansados lhe roubaram o primeiro bocejo. Estava tonto ainda. De tanto pensar, deduzir, conjeturar, não teve tempo de nada concluir. Saiu às ruas despojado de tudo, pois nunca se alcança o objetivo, quando se caminha sem um ponto determinado a alcançar.

As pessoas cruzavam-lhe o caminho com rostos desiguais: sérios, sorridentes, emburrados… Ninguém se dava conta de ninguém, cada um remoendo seus problemas ou dando evasão à sua alegria. Carros lentos e velozes trafegavam e com mais o burburinho de uma cidade desperta, tudo criava movimento e confusão. Era-lhe triste a solidão no meio de tanta gente!

Gente, muita gente, pejada pelo egoísmo ou direcionada pela ânsia de sobreviver, abalroava-se sem se dar conta de que ali ia uma alma definhada e cujo único lenitivo residia num simples sorriso amigo. No meio daquele ror de pessoas que ia e vinha, chegava e saía, como certamente fariam loucos de guerra bombardeados em plena noite, Sérgio caminhava. Misturava-se às pessoas, conservando as feições comuns de quem apenas viu mais um dia normal nascer: não é muito difícil infundir-se ilusão, quando se é incapaz de viver dentro da realidade!

 

CAPÍTULO 63

Se os homens não tivessem o dom de mentir e fingir, todos os aparentemente normais estariam atufando os manicômios.

Quantas coisas as emoções fazem emergir! Era como se a ameaça bíblica das gerações problemáticas encontrasse, na dele, a comprovação. Seu pai desabafava, quando em vez, considerando-o, senão a ovelha negra, ao menos um estranho aos costumes e à educação da família. E realmente ele era. Moldaram-no assim.

Forçaram-no a deixar tudo o que amava e o desterraram pelas cafuas internas de um seminário medieval, aquém do que esperava encontrar para seus projetos. Depois, como a vingar-se de tudo, saiu pelo mundo tentando provar que jamais se firmaria como um problema para aqueles que, involuntariamente, o renegaram. Tinha consigo demasiado sofrimento para amenizar. Sofreu por tempos, quando o que precisava para não sofrer, era apenas o beijo da Natureza, nas plagas ondulantes do rincão que o vira nascer.

“Querida casinha em que vivi, quanta felicidade viste antes mesmo de eu haver nascido. Dentro de ti aprendi a balbuciar as primeiras palavras e conheci a felicidade. Sair de ti, abandonar-te, foi abandonar a mim mesmo.”

E quando uma pessoa desperta para a realidade, ela se torna tão clara e forte, que machuca. Somente as crianças reconhecem o dom da vida e ficam alegres, e sorriem, somente porque vivem ao sol e convivem com toda espécie de vida que Deus pôs em volta.

 

Depois de muito andar, Sérgio foi à sombra de um galho de abacateiro que se esquivara do quintal para buscar sol na rua. Assentou-se num topejo de madeira ali esquecido, suspirando fundo:

– Trinta e poucos anos. Aqui, meus ossos e minha carcaça sofrida. Toda malevolência atraí sobre mim. De nada adiantaram as chantagens inconscientes de ser uma vítima do sistema.

Apalpou-se. Ainda havia músculo e força. Velhos recurvados cruzavam-lhe o caminho, com tal prazer de estar ali, que Sérgio envergonhou-se. Pôs-se de pé. Como num passe de mágica, a fauce vermelhejada daquele monstro que tentava engoli-lo, desfez-se acabrunhada. E num esforço altivo, firmou-se na ponta dos pés, para que mais baixo lhe ficassem todos os problemas.

Uma semana depois, quando já o sol se declinava, Sérgio despediu-se do senhor Manoel. Depois de ficar por alguns segundos olhando os derredores como a despedir-se dos próprios objetos que tantas vezes o viram chegar e sair, entrou no carro e, vagarosamente, ligou a ignição.

Curvou a primeira esquina à esquerda ganhando a Belém-Brasília. Era, naquele instante, muito bom ter o mundo como casa. Quando atravessou o igarapé Cacau, num último alento curvou a cabeça e olhou para trás, na vã esperança de que, pelo menos agora, pela última vez, novamente Nancy o estivesse a vigiar. Mas nada havia em toda a extensão, nem para trás, nem para diante. Apenas uma jamanta despontara no cocuruto do asfalto, lá longe. Respirou fundo e acelerou, como a extirpar num golpe, toda aquela angústia com que o momento o premiava.

Dez quilômetros abaixo, ao notar um carro estacionado na orla da estrada, seu corpo estremeceu. Era bastante conhecida, aquela cor metálica com um gancho de trailer adaptado no para-choques traseiro. Diminuiu a marcha e pôde ver, recostada calmamente na porta entreaberta, Nancy. Sem dizer uma palavra ela fez menção de um leve sorriso e acenou como quem pede socorro, enquanto se aprumava em seu vestido de seda que roçagava na relva verdejante.

– Aonde vai o fugitivo?

– Nancy – disse ele como a pressentir mais uma queda.

Ela veio de mansinho, deixando no ar um frufru que se confundia com a singeleza de toda uma tarde límpida que caía.

– Vim despedir-me.

– Você é diabólica. Como soube?

– Os anjos me avisaram.

– Os anjos não compactuam com nossos erros.

– Os anjos maus.

– Faz sentido – respondeu Sérgio laconicamente.

– Tem certeza que quer ir?

– Acho que sim.

– Então não tem. Jamais irá livrar-se daquilo que mais quer.

– Não seja presunçosa.

– Eu sei que gosta de mim.

Mas desconhece a força da razão para vencer estas fraquezas.

– Eu amo você.

– Eu também já fiz de você a razão de minha vida. Mas passou.

– Fique.

– Acredito que, pela primeira vez, terá de aceitar a derrota. Hoje não será como deseja. Foi bom ver você. Para ser sincero, o diabo, às vezes machuca tanto, que acaba por compadecer-se.

– Em se indo, estará me destruindo, quero que saiba disto.

– Não é esta minha intenção. Estou apenas tentando fazer o certo.

Ela baixou os olhos. Pela primeira vez sentia que iria perder definitivamente a única pessoa que a amou na vida.

Sérgio fitou-a demoradamente. Parecia ainda uma menina, a mesma que conheceu saltando o alambrado do colégio ou mentindo doidamente para encontrar-se com ele. Com todos os cuidados de sua vaidade, estava ainda mais bonita e atraente. Contrastando com o batom leve dos lábios, a alvura dos seus dentes irradiava a frescura dos desejos, enquanto sua pele morena e macia, simetricamente delineava um rostinho singelo.

Trajava um vestido de seda que lhe delineava o corpanzil. Suas mãos repletas de joias esboçavam na silhueta da noite que se avizinhava, a figura de uma rainha ultrajada e vencida. E Sérgio podia sentir e definir bem o que lhe passava n’alma, pois fora um caminho que trilhara até o último centímetro.

A tarde era amena e límpida. Ainda antes que do ocidente os resquícios do astro rei recolhessem o tênue fulgor dos últimos raios, já do outro lado, como luz de vela para um momento de ternura, a lua ascendia devagar. Os raios dela se acentuavam, quão mais a mortalha da noite era lançada, deixando nos rostos as marcas sofridas de uma despedida irreversível. E nada é mais cruel do que as coisas irreversíveis, do que a morte da esperança. O momento se lhes vinha como taças de cicuta e, diante de um cenário pleno de alegria, definhavam-se os últimos fiapos de esperança. Nos olhos de Nancy os raios do luar dançavam, pois, as lágrimas umedeciam suas pupilas e, era deveras desolador, sentir aqueles olhinhos negros perdidos num infinito de tristeza.

– Não se vá – disse ela angustiada. Fique comigo, pelo amor de Deus!

– Não misture Deus nisto. Ele jamais nos ajudaria a fazer uma coisa errada.

– Por amor de quem quer que seja, fique comigo!

Jamais alguém poderia transcrever o que mais se passou. Quando já ia longe a noite, dois carros partiram em direção contrária, vagarosos demais para duas pessoas que caminhavam rumo ao infinito.

Nela, a dor do irreversível; nele, a esperança do esquecimento.

 

CAPÍTULO 64

– “Oh!, terra dos meus idos, que me viu nascer e chorou, tenho certeza, quando a apartaram de mim. Relva verde que vicejava ainda mais quando os golpes duros das foices a massacravam. Pássaros canoros que acompanhavam, do primeiro ao último raio do sol, os passos serenos do Senhor Deus, que tenho certeza, por aqui descansou muitas vezes das andanças pelo infinito. Minha terra, meu rincão, quanta coisa mudou! Aquela mata imponente onde piava o jaó – que fizeram dela? E você, meu jaó, que fizeram de você?

Mas aqui ainda está, minha terra! Sinto no seu pó os fragmentos de minha infância. Quanto chorei por você e sei, quanto sentiu minha falta! Quanto sofri, meu mundo pequeno, mas meu, única coisa certa para deixar que em cada manhã me sentisse feliz, somente por estar aqui, bem junto de você!

Meu pé de boleira, você ficou. Suas folhas e galhos estão sofridos, mas o pouco de sombra que ainda ostenta dá para o pouco que trago de volta comigo. Apanhei pelo mundo, minha boleira, mas como você, resisti e aqui estou.

Ali está meu pezinho de laranja, metade seco e ainda com um galho renitente de um verde desbotado. As chuvas retiraram de suas raízes a terra fértil e elas, descobertas e descascadas, agarram-se como eu, no pouco que sobrou para sobreviver. Quantas vezes fiquei aqui sob você, fazendo pelotas, escavando biras e sonhando com os caga-sebos e as marias-bobas lá dos cafezais. Foi aqui, bem aqui que tantas coisas aconteceram pela primeira vez em minha vida!

Ah!, meu pequeno mundo, mudaram-lhe um tanto a roupagem, mas você está ainda aqui, e como dois velhinhos decrépitos e renitentes ainda poderemos claudicar juntos pelas veredas das recordações.

Lá está o Liberdade, sinuoso e quase seco, mas lá está. O poço que me viu levar uma grande surra por banhar-me nu logo após o almoço quente, parece uma lagoinha de rã. Foi bom levar aquela surra, pois ainda posso ver os braços fortes de meu pai erguendo a correia de veado no ar. Vejo também as suas feições austeras, mas amigas, que batiam para ensinar, batiam para que eu não corresse o risco de morrer: ele acreditava que não se podia tomar banho logo após as refeições.

O campinho de peladas! Já não há mais traves, mas era aqui. Quantas barreiras, unhas arrancadas, palavrões e urras felizes por acertar o gol do Tonico…. ele era um goleirão e tanto! Você se foi meu campo. Muitas coisas se foram, como muito de mim já não existe. Mas estamos aqui, lado a lado, para compartilhar o pouco que nos resta.

Meu pé de manga-chupeta, como está ressentida! Não saberia dizer qual de nós dois saiu mais ferido nessa separação. Sei que se fechar os olhos, o doce de seu caldo me encherá a boca. Como era bom ser criança, minha mangueira! Quando assestava aqueles toletes de assa-peixe em seus ramos carregados, sentia seus frutos repicarem no chão e podia entender que seus galhos balouçantes, para cima e para baixo, recriminavam-me pelo mal que fazia. Mas, mesmo assim, todos os anos, você se recuperava e oferecia mais.

O jataí… lá está. Ele á duro e eterno, mas da acrimônia de suas frutinhas, jamais quero provar novamente: um dia quase morri por tanto delas!

Os bezerrinhos arredios, nem bois são mais. Foram-se, quem sabe para aonde. Assim como eu deixaram este paraíso e foram jogados no mundo: eles sem a complacência dos humanos e eu, como um deles. Quando se encafuavam pelas capoeiras das beiras do riacho e eu xingava por não encontrá-los; quando corriam e escoiceavam os ares ou passavam pelo curral sem entrar… ah!, vocês me zangavam e faziam feliz. Aliás, felicidade é coisa que ninguém compra, define ou escolhe. Ela vem por si e não sei mesmo se lutar por ela, vinga. É tão frágil, sutil e pequenina e jamais tem a pretensão de ostentar-se em coisas grandes. A minha era viver aqui, só isso.

Minha casa, meu quarto! Aqui, entre estas paredes escoradas jazia aquela caminha de peroba do campo que meu pai mesmo fizera. Era ali, bem ali neste cantinho, que me deitava de borco e só acordava com as palmadas de minha mãe que me esquentava a bunda por ter mijado na cama. Mas era gostoso sonhar que estava atrás daquele toco de mata-pau lá do alto do morro, vendo os transeuntes passarem pelo caminho. Eu os via por inteiro e eles jamais imaginavam o que eu pudesse estar fazendo. Como é bom a gente não ligar sequer para os olhos vigilantes de Deus! As ilusões de uma criança inocente o tornam realmente escondido, e ninguém jamais poderá recriminá-lo. Não havia pecado sem flagrante.

Era por aqui, entre as duas construções: a sala e a cozinha, que ficava a moenda em que eu e meus irmãos, cada um num cabo, fazíamos girar os cilindros que espremiam as canas e deixavam escorrer aquele caldo doce das javas e caianas. Os bagaços intumescidos e cheios de caldo, saíam depois de algum tempo, tão secos de nossas bocas, que podiam pegar fogo. Lá fora, mais tarde, meu pai fez uma engenhoca maior e o cavalo Queimado é quem arrastava aquela geringonça, enquanto a gente só ficava segurando as canas. Quantas brigas fizemos ali, pois ninguém queria ficar do lado em que as canas eram enfiadas. Do outro lado, a moenda as espremia e a gente podia retirar, com cuidado, bons nacos de miolos intumescidos e cheios de caldo.

As amoreiras, romãs, parreiras… todos se foram. Mas estiveram num tempo por aqui, cumprindo a missão de seus destinos.

Minha terra! Quanto desejei nunca me ter separado de você! Era aqui que me sentia feliz. Proscreveram-me de sua face, explodiram sob os meus pés, a desesperança. Quantos erraram tentando acertar!

Minha mãe, minha velhinha. Ali está, cabelos branquinhos como as neves que nunca vi, mas que tantas vezes as revistas e livros mostraram, encobrindo as montanhas com mechas albentes. Aquelas mãos calejadas que me arranhavam o rosto nos carinhos, tinham em si toda uma história de sofrimento, de trabalho. Elas eram grossas e insensíveis, mas não o bastante para eu não sentir o ardor que delas emanava. Jamais irei sentir mais segurança e amor. Posso vê-la, qual espantalho dos arrozais, qual silhueta fantasmagórica, a caminhar pelos morros, recurvada sob o peso de grandes quiçambas de mandioca. Jamais olvidarei seus dias em minha vida, minha querida velhinha! E quem sonhava, depois de tudo, pôr-me em busca da felicidade, mais dela me distanciou, quando deixou que me levassem para os colégios.

Era aqui, a seu lado, junto com meus irmãos, pelos campos, no meio a esta dádiva de Deus, que estavam as razões de tudo. Por que a gente precisa errar tanto para aprender?

Saudades de meu velho e angústia por já não me poder enturmar como antes, com toda família, para juntos goelarmos ao mundo a gratidão por haver nascido.

Ó Deus de meus princípios, aqui estou de volta, como o filho pródigo de suas parábolas! Já não posso ver na balaustrada da varanda, meu velhinho de braços abertos, mas posso sentir no coração, o retorno do meu espírito às plagas da simplicidade. Aqui quero estar. Se já não tiver os bezerrinhos arredios para encurralar, nem as águas fartas para os mergulhos, nem tantos pássaros a riscarem os ares enchendo-os de melodias, nem as sombras de minhas árvores que comigo nasceram… se tudo tornou meio passado, não tem importância, porque assim também sou eu, mais passado que presente.

Hei de tocar o cajado pelo que restou, na certeza de que o que restou não é mais sólido do que ficou de mim. Juntos levaremos os dias que restam em confidências, ensinando a lição simples da vida de que jamais devemos nos afastar à procura do muito, quando o pouco nos torna feliz.”

 

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