NUVENS PASSAGEIRAS

Cada IDEIA que alimento
Cada personagem que crio
Cada frase é uma nascente
Cada livro, um caudaloso rio.

O canoeiro que por ele navega
É o leitor que atento lê
É aquele que nota as pedras
E fica de sobreaviso
Esquiva-se das correntezas
Evita as cachoeiras
E ancora pensativo.

Cada palavra é uma célula
Do autor que a escreve
Cada personagem é o escritor
Que nos momentos de dor
Camuflado aparece
Para dizer o que padece
Em tom de revolta ou de amor.

E o canoeiro navegante
Que um dia por ali passou
Só lançará novamente a canoa
Se a lembrança lhe ascender
A fome de esperança
Ou o desejo de aprender.

APRESENTAÇÃO
Passo a passo, devagarzinho, às vezes claudicando, às vezes me arrastando ferido, caminhei literariamente até aqui. Já me deparei com grandes obstáculos e ferrenhos críticos: hostes que me imaginavam ameaçador e orgulhoso, mas que tão logo perceberam o equívoco, afrouxaram a resistência. Nada de ressentimentos: não houvesse eu passado sob a marquise, não teria o caibro caído sobre minha cabeça.
Aos humildes, a investida dos que criticam – ainda que maldosamente – sempre se transforma num grande benefício. O inimigo sincero ajuda mais ao humilde, do que o amigo fingido. Há 15 anos aqui estou, mais determinado que nunca em alcançar o objetivo de um dia – se for a vontade de Deus – tornar-me um bom escritor.
Nossos anseios e desejos são como sementes de relva: de milhões, apenas algumas acontecem. Por isso, como criança que tem tudo a aprender, vou estudando, atropelando a sintaxe, aceitando as críticas e seguindo os bons conselhos. Vou semeando, na esperança de que algumas sementes brotem, cresçam, sejam boas e frutifiquem. Se alguma nascer, se se tornar uma árvore, se der frutos, que sejam frutos de fé e de esperança. Se não, que o sol do amor de Deus a queime antes de germinar.
Nuvens Passageiras não passa de mais um round de minha luta difícil e infrene para errar menos. Embora cheio de hematomas e escoriações, mantive-me de pé por nove assaltos. O adversário é forte, quase imbatível, mas com minha tática de humildade ensinada pelo Técnico Divino, pretendo vencer. Se não posso voar, caminho: também andando se desfaz longos percursos.
Este livro contém artigos diversos nos quais exponho minha maneira de ver o mundo e as pessoas. Explorei cada emoção de minha alma: revolta, felicidade, fé, planos, tristeza, utopias, devaneios, imaginação, dúvida, alegria, humor, saudade, esperança, desabafos, desilusões, fraquezas…, tudo transcrito honestamente. A fé é, para mim, a prioridade, o ponto marcante, a presença e o poder quase total de Deus em nós. A convicção sincera, o caminho certo para consegui-la. Por causa disto a persigo ferrenhamente. Afinal, seria insensatez desistir ou voltar agora.
Paulatinamente vou progredindo nessa longa estrada. Durante 40       anos li e pensei bastante a respeito de como tudo começou e, também, de como tudo irá terminar. Queria saber tudo e logo. Perto da loucura desisti da pressa, respirei fundo, afrouxei os passos e, ainda hoje, sigo sensatamente, mas com muita determinação.
Retornar será extremamente arriscado: posso ficar no meio do caminho. O prazo urge. Depois de concordar e discordar intermitentemente de muitas verdades, depois de me assentar cheio de dúvidas na encruzilhada dos tantos caminhos, acabei por erguer-me e tomar um deles. Nuvens Passageiras, ainda que nas entrelinhas, mostra como estou vendo, agora, as pessoas, a Natureza, as religiões, as crenças, a fé, enfim, como me sinto nesta inter-relação.
A cada mês que passa, mais busco minhas convicções. O dia em que eu encontrar a verdade suprema e absoluta, ou me convencer honestamente de alguma mentira, estarei certo de haver posto termo em minha caminhada. Avalizo o Talmude quando diz que, aos olhos de Deus, a boa intenção vale tanto quanto as ações. Não tenho mais a pretensão de entender os desígnios de Deus, mas de apenas aceitá-los.
Há situações em que não há como desistir, como retornar. Sentimo-nos como alguém que se mete por um buraco estreito e que vê no prosseguimento, sua única esperança de sair. Foi assim que me senti ao tentar entender os mistérios de Deus. Sei que não devia ter entrado, que não havia necessidade de tamanha incúria, mas me enfiei por ele no afã da liberdade. Entrei e, sem poder retornar, ainda hoje continuo me arrastando na esperança de encontrar a saída.
Cada livro que lanço, faço de meus personagens solidários cireneus, confidentes de minhas dúvidas. É por meio deles que pretendo encontrar a saída. Nela, um dia, com certeza, dar-se-á O ENCONTRO: tema preestabelecido do livro que, com a graça de Deus, pretendo escrever um dia dando testemunho de minha vitória.

A MENINA, O SORRISO E A LÁGRIMA
Quando a conheci, era simplesmente uma criança. Viera com os pais de algum lugarejo de Goiás: não me recordo o nome agora. Pele rosada, extrovertida de nascença, saudável como uma corsa das campinas. Tomava-a nos braços e, meneando o corpo, corria com ela acavalada no cogote, saltando como um potro arredio o faz ao sair espicaçado de um curral de rodeio. Ela ria, dava gargalhadas diante do perigo de domar um cavalo – devia imaginar – louco. Se eu parasse, ela estalava a língua contra o céu da boca e depois instigava-me atropelando as palavras:
– Mazi, mazi, pula mazi, meu cubal! …
Ah, o tempo! Espaço de difíceis escolhas. Devagarzinho ele foi passando, corroendo, destruindo sonhos e fantasias, fazendo daquela menina pura e feliz, uma jovem pobre e desiludida. Depois disso, muitos anos se passaram sem que a visse, e por causa dos malefícios causados pelas agruras da vida, quase não reconheci mais a filhinha de olhos vivos de meu vizinho de outrora. Empreguei-a como cozinheira numa frente de serviço que mantínhamos a quatrocentos quilômetros daqui. Ela ficou mais dois anos trabalhando com a gente. Quando encerramos o serviço, foi embora.
Durante mais de cinco anos, em qualquer bate-papo, se as recordações daquele tempo sobreviessem, comentávamos sobre o desaparecimento da Maria, a cozinheira, então, de olhar tristonho, que passava o dia cantando a versão de HEY JUDE, de Lennon e McCartney. Ainda pareço ouvi-la enquanto mexia nas panelas: “Ei, tu, não fique assim! Sabe, a vida ainda é bela. Esqueça de tudo que aconteceu, amanhã será um novo dia….” Ela gostava tanto desta música que, certa vez, toda acanhada, pediu-me para que lhe comprasse uma fita e gravasse, toda ela, com “EI TU”. (Era assim que ela a conhecia).
Dissera-me que havia casado, amado como ninguém e sido vilmente traída pelo companheiro. Por isso, renovava a esperança quando, quase chorando, entoava: “Ei, tu, pra que chorar por alguém que não te ama? Se o mundo agora te faz sofrer, tudo vai passar, você vai ver. Muita coisa vai fazer você mudar; não tem mais razão de ser, esta tristeza. Se alguém te faz sofrer, pra que lembrar? Mais vale tentar viver de esperanças…”
Hoje, enquanto dirigia pelas ruas de Imperatriz, tendo ao lado dois colegas de trabalho daquela época, por estranha coincidência, liguei o rádio no exato momento em que começava a música de que tanto a Maria gostava. No mesmo instante lembramos dela e comentamos o chá-de-sumiço que tomara, desde que os trabalhos da CIAMA foram concluídos.
Ainda antes que um de meus companheiros completasse o comentário de que, a última vez que a havia visto fora há um ano e oito meses, e que na época ficara penalizado com o estado em que a mesma se encontrava, eis que, surpreendentemente, a vimos caminhando pela calçada da Avenida Getúlio Vargas.
Estacionamos o carro e fomos falar com ela. Fitou-nos num misto de surpresa, alegria e dor: dor por reminiscências cravadas no coração, agora vivenciadas por nossa presença. Aquela criança bonita, cheia de vida, alegre e que nunca imaginara a crueldade das pessoas, agora estava pálida, sorriso tristonho, olhar sem destino, vadio. Percebi que seus olhos umedeciam na desesperança de refazer a vida, de ver um novo sol nascer, de recomeçar tudo pela garupa de seu “cubal”, para sufocar a emoção angustiante que se formara, corri para o carro, abri a porta, aumentei o volume do rádio, alcançando ainda as últimas estrofes:
“…olha pra mim, veja o dia como está lindo, esqueça de tudo o que já passou, amanhã será um novo dia. Muita coisa vai fazer você mudar, não tem mais razão de ser, esta tristeza. Se alguém te faz sofrer, pra que lembrar? Mais vale tentar viver de esperanças.” Aí, então, ela baixou a cabeça e começou a chorar, convulsivamente. Chorei com ela, enquanto meus dois companheiros viravam de costas e baixavam as cabeças.
Nunca pensamos que saudade e desilusão doessem tanto!

AVE-MARIA
Somos treze irmãos, todos nascidos na roça, no interior norte do Espírito Santo, hoje, Governador Lindenberg. Todas as tardes, minha mãe reunia a família em torno de um velho rádio, sintonizava a Tamoio do Rio de Janeiro e nos fazia ajoelhar para ouvir a Ave-maria. O apresentador Júlio Lousada, com seu timbre grave de voz, emocionava: “Seis horas da tarde, ouvinte amigo; que a paz da Virgem Maria encha de graça seus lares e que as bênçãos de Deus invadam seus corações, hoje e sempre.”
Ainda quando pequeno minha mãe amamentava-me ouvindo a Ave-maria. Fui crescendo, crescendo e enquanto vivi sob a expensas da família, nunca deixei de me ajoelhar às 18 horas, juntamente com todos meus irmãos, bem juntinho do velho rádio.
O tempo foi passando e quando mais tarde me casei, resolvi tentar a vida sozinho. Saí de casa e fui aprender o ofício de dirigir caminhões pesados – sonho que sempre fez parte de minha juventude. Achava lindo e emocionante ver alguns rapazes, meus amigos, chegarem à vila buzinando seus carros enfeitados com faixas e penduricalhos em cores berrantes. As meninas suspiravam por eles como se fossem verdadeiros gênios ou heróis.
Mesmo longe de minha mãe e do restante de minha família – se viajava – nunca deixava de ligar o rádio do caminhão na Tamoio, todas as tardes, às 18 horas. Se estava fora, achegava-me perto de um rádio qualquer e pedia ao proprietário para que me deixasse ouvir as palavras de Júlio Lousada. Era uma fé condicionada, um santo e bom costume, e também, um grande respeito pelos ensinamentos de minha santa mãe.
Tirei carteira profissional, consegui um caminhão e comecei a trabalhar. Meus irmãos e meu pai deram o jeito de comprar-me um Mercedes 1113 e com ele saí pelo mundo. Trabalhava dia e noite, o tanto que minhas forças suportavam, a fim de não atrasar o pagamento das malditas prestações.
Na véspera do Natal do ano de 1959, vinha eu pisando fundo para chegar em casa e passar o dia em que se comemorava o nascimento de Jesus Cristo, Filho de Deus, juntamente com minha mulher e, então, meu filho recém-nascido.
Muitos quilômetros separavam-me de Governador Lindenberg e apesar de todo esforço, a tarde vinha caindo, vagarosa, mas implacável. Eu queria chegar, eu precisava chegar! Levava comigo presentes para minha esposa e estava certo que ela, sofregamente, vigiava a curva em que eu devia aparecer, acionando fortemente a buzina a ar. Aqueles pensamentos enchiam meu coração de saudades e apreensão.
Comecei a subir a Serra do Pinga-Fogo. Ela é íngreme e comprida, famosíssima por sua altitude e curvas perigosas. Aproximava-me da atual cidade de Venda Nova do Imigrante. O caminhão, em primeira marcha, subia lentamente. O barulho estridente do motor, e ao mesmo tempo monótono, associado ao extremo cansaço em que me encontrava, fez de mim uma presa fácil do sono: o sono da morte.
Hoje, quando relato isso, ainda sinto um arrepio me varrer a espinha e não posso impedir que meus olhos se molhem de lágrimas. O certo é que em determinado momento, o sono fez-me deixar o caminhão à deriva de seus caprichos, em plenos mil metros de altitude, com despenhadeiros ao lado capazes de tornar em poeira a mais bruta máquina que por eles despencasse.
Estando a dormir, sobreveio-me um rápido sonho. Nele eu vi minha mãe se achegar à varanda e gritar desesperada para mim que pescava num riacho, distraidamente: “Marinho, Marinho, venha logo, venha correndo! Já vai começar a oração da Ave-maria.”
No mesmo instante eu acordei e vi que meu caminhão saía da estrada para se precipitar num dos tantos despenhadeiros sem fim. Pisei automaticamente no freio e ele parou de chofre, ficando a balançar entre a estrada e o precipício. Olhei no relógio e eram, exatamente, 18 horas. Percebi que havia acontecido um milagre e que não foram em vão a persistência e a fé de minha mãe durante aqueles tantos anos. Liguei o rádio imediatamente e ouvi as primeiras palavras de Júlio Lousada: “… porque se estás com Nossa Senhora, nada de mal poderá acontecer-te.”

A ÁGUA MILAGROSA
Conta-se que numa paróquia do interior vivia um sacerdote humilde e pobre que se tornara milagroso por causa de sua “Água de São Geraldo”. Nunca se soubera, até então, a fonte em que o velho sacerdote apanhava a tal água que possuía a força intrínseca de resolver contendas e acabar com velhas e constantes discórdias entre as pessoas.
Naquele tempo, segundo a história, casou-se um jovem intempestivo que, embora muito religioso, não conseguia dominar seu gênio terrível. Sua maneira impulsiva de reagir a qualquer contratempo estava prestes a dissolver seu matrimônio. O escândalo parecia iminente, já que, por aquelas bandas “o casamento continuava a ser um sacramento indissolúvel”.
Todas as noites ao regressar de seus afazeres, o homem o fazia com os nervos à flor da pele. Se não encontrasse a toalha ou qualquer objeto no lugar desejado, começava logo a reclamação. Já cansada de toda aquela impertinência, a esposa reagia, advindo daí uma discussão sem precedentes. E de tal forma o problema foi se agravando que, certo dia, após o jantar, a mulher, tomando a palavra cheia de aflição, disse ao marido que iria para a casa da mãe dela, pois não suportava mais tanta incompreensão e nervosismo.
Um vizinho amigo, ouvindo o bate-boca acirrado, acorreu solidário:
– Caros amigos: estou sabendo que a coisa não anda nada fácil por aqui e o zunzum que corre é que os prezados pretendem a separação por incompatibilidade de gênio.
– É verdade! – Suspirou o homem – ninguém consegue viver com uma pessoa relaxada como minha….
– Relaxada, vírgula! – Retrucou a esposa ofendida. Você, com esta sua petulância…
– Por favor, tenham calma, escutem-me um minuto apenas. Conheço um velho e santo sacerdote que possui uma água milagrosa, capaz de acabar com qualquer desentendimento, principalmente entre marido e mulher.
Os dois quietaram um pouco e depois de ouvir o vizinho, concordaram em procurar o velho ministro de Deus a fim de conseguirem, em última instância, a tão propalada “Água de São Geraldo”, capaz de acalmar os ânimos mais acirrados e promover a compreensão e a concórdia. Dias depois foram falar com o velho sacerdote.
Quando chegaram ele estava ajoelhado num tosco genuflexório, passando vagarosamente as vistas cansadas sobre as orações matutinas de seu missal, ainda em latim. Ouviu-os atentamente e observou:
– Apenas um dos dois precisa usar da água e vou optar pela esposa. Por favor, acompanhe-me – falou designando-a com o olhar.
Lá dentro da sacristia, o velho sacerdote explicou:
– A Água de São Geraldo é de fato milagrosa, desde que se observe rigorosamente sua maneira de ser usada. Todas as vezes que seu marido chegar em casa nervoso e começar a arreliar, você deve colocar um pouco da água na boca e segurá-la sem que vaze uma só gota. Não poderá engoli-la também. Tão logo seu marido se acalme e cesse de acusá-la, você deverá ir até seu quintal e jogar a água que estiver na boca numa plantinha de sua estimação. Verá que quando o litro secar, ou mesmo antes disso, seu esposo chegará em casa calmo e compreensivo. O milagre terá acontecido.
Embora duvidando, a mulher assentiu. O velho sacerdote foi sozinho ao fundo do quintal e encheu o litro com água comum da torneira que utilizava para molhar as parcas flores do jardim. Voltou e, cerimoniosamente, entregou-o à mulher que incriminava o marido como único culpado.
– Muito cuidado – recomendou – se a água derramar, coisas piores poderão advir.

Dois meses depois os dois voltaram cheios de gratidão e felicidade:
– O senhor é, de fato, um padre santo. Deus lhe pague o que fez por nós. Agora, por favor, mostre-nos a fonte dessa água milagrosa. É injusto privar tantas pessoas que dela precisam.
O sacerdote, sorrindo, levou-os ao fundo do quintal, mostrou a torneira comum que utilizava para molhar as plantas do jardim, e explicou:
– Filhos, a água nem sequer foi benzida. Na verdade, quando uma pessoa está nervosa, ninguém deve tentar convencê-la de coisa alguma, pois toda razão estará prejudicada. Por outro lado, ninguém, por mais nervoso que se encontre, ficará falando sozinho. Você, com a boca cheia d’água não podia revidar as acusações, e ele, sem o revide, acabava percebendo a estupidez de estar falando ao vento. Por isso a Água de São Geraldo funcionou mais uma vez – e irá funcionar sempre que um dos exaltados se calar dando chance ao outro de reconhecer a ignorância que toda violência acarreta. Agora podem ir em paz e que Deus os acompanhe.

OS CRISÂNTEMOS
Conta-nos a lenda que no sertão de um país bastante frio, morava uma família de camponeses. Como vivessem do amanho da terra, era comum o chefe da casa preocupar-se mais amiúde com as plantações, mormente nos tempos de neve e de tormentas. Numa tarde cinzenta de inverno, a temperatura caiu bruscamente e começou a nevar forte. O camponês, ao sentir que sua roça poderia ser dizimada pela intempérie, vestiu o sobretudo e foi verificar suas tenras plantinhas. O vento gélido soprava forte, criando uma verdadeira rajada de flóculos através dos campos.
Ao retornar cansado, numa curva ainda mais fria, ouviu um gemido de criança que parecia agonizar. Achegou-se mais e deslumbrou no meio da neve, um menino pobre, seminu, que mal conseguia mover os bracinhos arroxeados. Surpreso e comovido, o camponês, num ato impulsivo, retirou a criança da neve, enrolando-a em seu sobretudo e partindo à pressa para sua casa.
Lá chegando, colocou-a ao lado da lareira, enquanto sua mulher preparava qualquer coisa para saciar a fome daquele menino desamparado. Quando o mingau chegou, já a criança dormia profundamente e acharam por bem não a acordar. Colocaram-na num berço e também foram descansar.
Pela manhã, ainda antes de o sol nascer, acorreram curiosos, mas não o encontraram na caminha. Vasculharam, procuraram vestígios: nada. Era como se o menino tivesse evaporado por encanto.
No outro dia, domingo, por ocasião da missa, o camponês viu, pregada numa das paredes da capelinha, uma gravura do Menino Jesus. A semelhança daquela gravura com o menino que salvara deixou-o incrivelmente surpreso. Chamou a mulher e segredou-lhe o que estava imaginando. Ela, também, ao olhar para a gravura, ficou estupefata, mantendo-se boquiaberta como se estivesse vendo uma miragem do além.
Na segunda-feira, ao voltar para o serviço, o pobre camponês não resistiu à tentação de examinar o lugar em que havia encontrado o menino. No mesmo lugar, por entre flocos de neve, dezenas de lindas flores coloridas e perfumadas, cresciam cheias de vida. O camponês, já não tendo mais dúvida alguma de que aquela criança que socorrera se tratava do Menino Jesus, colocou nos renovos o nome de CRISÂNTEMOS, que quer dizer, flores-de-cristo.
Pois é, caros leitores, as lendas estão por aí, sempre avivando nossa sede de fé. De fato, o ser humano é o único animal que crê em Deus ou, ao menos, em alguma entidade superior e criadora de tudo. É um dó que existam seitas e crenças falsas misturadas à verdadeira religião. Elas são como o dinheiro e outras coisas falsas de estrita semelhança com as verdadeiras e que a tantos confundem e prejudicam. De qualquer forma, Deus nos julgará pelas intenções e não pela religião que seguimos.
Hoje o que me importa é lembrar que muitos “meninos jesus” são colocados em nossa porta, no nosso lugar de trabalho, na nossa cidade…, todos esperando nossa solidariedade e ajuda. Esses pobres, miseráveis, injustiçados, doentes… são verdadeiras graças de Deus àqueles que desejam se salvar. É por meio deles que na neve, nos cortiços, nos hospitais, certamente em todo recanto do mundo, surge-nos a oportunidade de fazer florescer milhares de crisântemos.
Notemos quantos, em vão, batem à porta, imploram nosso socorro, solicitam emprego, um prato de comida…
Não é por outro motivo que em nossos dias seguintes, ao cruzarmos os locais em que nos solicitaram em vão, os encontramos áridos, inóspitos e vazios. Na verdade, quando fazemos a caridade, quando socorremos nossos semelhantes necessitados, em algum ponto do universo nascem crisântemos – ainda que nos recônditos de nossos corações, eles certamente nascem.

VOCÊ PODE SER DEUS
Um dia ele se olhou no espelho e percebeu que se deixasse a barba e os cabelos crescerem, ficaria se parecendo, fisicamente, com Jesus Cristo. Puxa! Jesus Cristo sempre fora seu herói, seu ídolo, seu Deus. Se toda sua admiração por Ele se convertesse em fé, certamente ele seria também Deus.
Começou a não mais rapar a barba, nem tão pouco cortar os cabelos. À medida que eles cresciam, não só ele, mas qualquer um notava certa semelhança com os traços fisionômicos que os pintores deixaram de Jesus.
Iniciou-se, a partir dali um processo de transformação doentia: a cada dia ele ia se convencendo mais de que era a reencarnação do Filho de Deus. Deixou seus vícios, lia e relia a Bíblia e tudo o mais que podia sobre esse Homem que deu a própria vida para remir os pecados da humanidade.
Aquele ser frágil que vivia nele, cheio de defeitos, de desejos escusos, de malícia, inveja e egoísmo, paulatinamente foi cedendo lugar a outro, cheio de compreensão e desprendimento. Mais um pouco e ele completaria os trinta anos. Seria a hora das pregações, de reapresentar ao mundo adormecido e ingrato, as belas e esquecidas leis do perdão, da justiça, da mansidão e da fraternidade. A idade chegou.
Deixou sua casa onde já ouvia rumores de que estava mal da cabeça, e foi para as regiões semidesérticas do Nordeste. Na própria terra, pouco se consegue – lembrou-se disto como se estivesse em Nazaré, diante de conterrâneos descrentes: “Não é este o filho do carpinteiro?”
Depois de quarenta dias comendo o que encontrava nos cerrados, apareceu numa vila do sertão nordestino. Sentiu muitas tentações, porque mesmo nos tresloucados, os desejos são fortes. Houve dias em que teve medo do que estava fazendo. Quis desistir, mas todas as vezes que se olhava no espelho, a semelhança divina incitava-o a prosseguir.
Em busca de uma tábua de salvação que flutuasse no mar de corrupção, de fome e miséria em que se encontrava o País, as pessoas sofridas da região acorreram a ele cheias de esperanças. A notícia espalhou-se rapidamente por todos os recantos.
O bispado reagiu, delegando uma comissão com o fito de demovê-lo daquele alucinado comportamento. Ninguém é mais incompreendido do que os idealistas, os predestinados, aqueles que chegam a este mundo antes da hora. Por causa destes pensamentos, não desistiu. Ele mesmo nunca soubera se era normal ou louco.
Meses depois a Igreja Católica tomou posição definida e drástica: ou ele parava com suas pregações, ou seria, sumariamente, excomungado. Ora – pensava – quem poderá fazer isso a mim se toda autoridade de mim emana? Rogava mais uma vez ao Pai para que lhes perdoasse, porque apesar dos quase dois mil anos, “os rabinos” ainda não sabiam o que estavam fazendo.
Numa tarde, enquanto pregava a uma multidão, subiu até aonde se encontrava, trazendo consigo um surdo de nascença, um sacerdote muito esperto. Interrompeu o sermão, desafiante:
– Caros fiéis, o próprio Jesus afirmou que aqui só voltaria com sua presença física para julgar os vivos e os mortos, no Juízo Final. Este homem vive fora da realidade. É um autista que, por causa de problemas mentais, criou um mundo irreal e autônomo, e isto pode ser muito perigoso para suas almas. Trouxe aqui comigo o Joel, surdo de nascença que todos vocês conhecem. Vejamos se este jesus lhe devolverá a audição.
Sem temer, o pregador retrucou em riste:
– E se o Joel passar a ouvir, acreditará em mim?
O sacerdote inquietou-se sobremaneira, mas apesar da ameaça cheirar-lhe a “tentar Deus”, não recuou. Estava mais que certo que o Joel continuaria surdo e que aquele homem seria desmascarado. Por isto, desafiou prepotente:
– Não só eu, mas todos os que estão aqui, certamente, acreditarão que você é Jesus Cristo. Faça com que ele ouça os trinados deste bando de galos-de-campina e acreditaremos.
Tomando ares de intensa compenetração, o “tresloucado” foi ao surdo e apoiando as mãos nos ombros dele, fitou-o nos olhos, repreendendo o sacerdote:
– Por que duvida? Acha isso impossível a meu Pai que está nos céus?
Fez-se silêncio sepulcral. Sem saber ao certo o que estava se passando, e vendo diante de si uma figura que tanto já vira em folhinhas e igrejas, o surdo de nascença foi entrando numa espécie de transe, em seu mundo de ilusões e sonhos. Seu coração encheu-se de fé; sua alma transbordou de esperanças. Já não tomava sentido ao que se passava ao redor. Cada célula de seu corpo foi sendo invadida por uma força capaz de remover montanhas: a fé. Ele sim, entre todos, era o único que não tinha dúvidas de estar diante daquele que poderia livrá-lo da surdez: Jesus Cristo.
E o lindo véu escarlate que naquela tarde encobria o horizonte árido, testemunhou, pelo milagre daqueles ouvidos que se abriram, os belos trinados dos galos-de-campina. De joelhos, rosto banhado em lágrimas agradecidas, o até então surdo, ascendeu aos céus um olhar comovente.
O homem que se dizia Jesus Cristo não havia dito, pedido nem ordenado nada. O surdo havia se curado pela própria confiança. Então ele, voltando à realidade, desceu a colina certo de que era o mais comum dos mortais, mas que poderia ser Deus sim, se conseguisse ter fé, ainda que do tamanho de um grão de mostarda.

O FANÁTICO
Apareceu um dia em minha casa um homem alto e magro, descalço e de roupas esgarçadas, barba e bigode crescidos, alguns dentes na boca. Era moreno, aparentava uns cinquenta anos e refletia nos olhos castanho-escuros, um brilho estranho: desses que a gente só percebe nas pessoas desajustadas ou carismáticas. Uma grande cicatriz que se estendia da cabeça à ponta do queixo, chamava a atenção.
Muitas vezes já havia visto pessoas assim: todas apresentavam desvios psíquicos. Por isso, quando ele se aproximou, com toda sutileza possível, convidei-o a entrar e a sentar-se. Ele esfregou os pés casquentos e empoeirados na calçada, pediu licença e entrou. Percebi, então, que era quase careca, e que os cabelos remanescentes há muito não eram aparados. Perguntei:
– O senhor deseja falar comigo?
– Não sei – limitou-se a responder enquanto se entretinha com qualquer coisa que esfregava contra o chão com a planta do pé direito. Supus aí que aquele homem poderia mesmo ser um desajustado mental. Insisti:
– Se veio aqui, certamente é porque tem alguma coisa a me dizer.
– É que ando pelas ruas gritando pros home se lembrá de Deus e por isso me chamam de louco. Você acha que sô doido mesmo?
– Não penso assim – arrefeci. Muitos dos que foram tachados de loucos no passado, hoje se afirmam como gênios nascidos antes do tempo. Quando alguém apresenta uma ideia diferente, um pensamento que não condiz com o conhecimento da época, logo é considerado anormal. Mas, entre loucura e genialidade, até hoje, poucos sabem da diferença.
Sem dizer mais nada ele se ergueu e, cabisbaixo, contou uma rápida e triste história:
– Eu morava no Centro do Toim, tinha muié e um fio. Uma noite, quando abri os zóios, vi um home de facão na mão, no pé de minha cama. Assustado, eu quis levantá, mas ele meteu o gume na minha cabeça. Só vi o facão que vinha e nada mais. Quando vortei do desmaio, vi minha muié e meu fio, tudo morto, picotados. Logo que vi o que tinha acontecido, panhei de uma faca de cozinha e quis metê ela na minha goela. Não consegui: tinha arguma coisa segurando minha mão. Eu oiei dos lado e não vi ninguém. Então eu entendi que era Deus que segurava, e que se não deixava eu me esgoelá era porque esperava arguma coisa de mim. Aí eu comecei a senti vontade de gritá pros home se lembrá de Deus. Acho que é isso que Ele qué de mim.
Dizendo isto, rodou nos pés e foi embora. Apenas a silhueta fantasmagórica, eclipsando-se na curva da estrada, ficou-me como lembrança.
Alguns dias depois, voltando eu de uma viagem ao Pará, subi meu carro na balsa de travessia do rio Araguaia. Muitos passageiros se misturavam aos veículos. Era noite e chovia muito. Não havia luar, ventava forte e as águas estavam turbulentas. De repente, os solavancos das ondas arremessaram um caminhão para frente. Na confusão que se seguiu, uma senhora tropeçou e, na ânsia de agarrar-se ao corrimão, deixou que o filho de dois anos caísse nas águas tempestuosas.
No meio do tumulto e do desespero, ela gritava para que acudissem. Seus gritos, porém, confundiam-se com a melopeia fúnebre de ventos uivantes e ondas agitadas. Foi então que ouvi uma voz um tanto familiar, a voz do lunático (?) que me visitara dias atrás. E sua voz sufocou a balbúrdia num grito épico de fé:
– Carma, tenha fé, fios de Deus! Nada vai acontecê se Deus não quisé.
A mulher desesperada, revidou:
– Deus, Deus! … Meu filho caiu na água e tou certa que Deus não vai salvá ele.
– Se Ele quisé Ele salva sim – respondeu o fanático, ou o homem de fé, não saberia precisar.
Não fosse a feição ardente de um desvairado, dir-se-ia que a fé transmitida por sua confiança era palpável. A luz sem presteza vinda dos faroletes e de algumas lanternas alumiava o rosto transfigurado do homem que diziam louco ou fanático. Braços erguidos, olhos fixos para o alto, ele orou:
– Deus do céu e da Terra, nunca pedi pra mim nem pro meu fio o que vô pedi agora pro Sinhô: salva a vida do menino desta muié. Tire ele da água pra prová que aqui na terra as coisa só acontece se o Sinhô quisé.
Fez-se silêncio tumular. Parecia que o homem ouvia uma voz desafiante. Depois de alguns segundos ele replicou anuente:
– Eu vô no lugá do menino. É preciso prová, agora, que o Sinhô existe. Este povo todo pensa que sô doido porque sei que se o Sinhô quisé, esta criança vai saí viva do rio.
E dizendo isto atirou-se nas águas escuras do Araguaia, deixando no ar apenas o marulhar das ondas agitadas e a escuridão das incertezas. Ninguém esboçou o menor gesto para salvá-lo: todos acreditavam que era louco. Vivia pelas ruas das cidades gritando o nome de Deus e alertando aqueles que o ouviam para que não se esquecessem do Criador.
A embarcação continuou singrando até encostar, enfim, na margem oposta. A mãe já não gritava: soluçava apenas. Um senhor comovido tomou-a pelos braços ajudando-a a descer. Quando ainda não tinha pisado o solo, ouviu-se um grito que vinha de um canoeiro que subia, misteriosamente, o rio:
– Gente, nois pegô uma criança trepada num gaio de pau lá embaixo. Ela caiu daí?

O CHORÃO
Todo pai de grande prole sabe que, apesar da mesma origem, os filhos não são todos iguais. Uns estão sempre irritados; outros morrem de preguiça; uns são destemidos; outros, covardes… Só mesmo quem tem uma grande família compreende essas vicissitudes.
Na comunidade – que é o agrupamento logo acima da família – também encontramos gente das mais diferentes índoles. Dizem que é por isso que o mundo é bonito. Vale aqui o velho provérbio: “Que seria do verde se todos gostassem do amarelo?”
Dia a dia nos encontramos com gente de todo tipo. O mais interessante mesmo é o chorão, aquele que é sempre incansável na arte de reclamar. É, tem pessoas que pensam sempre que estão levando a pior, que o vizinho, o pai, o sócio, o amigo, enfim, todos os que com ele convivem, o extorquem, exploram e sugam.
Era comum, nos meus tempos de criança, a visita de missionários católicos em nosso vilarejo, hoje, cidade de Marilândia. Esse acontecimento significava, na época, o que hoje talvez representasse a visita do próprio papa João Paulo II aqui em Imperatriz. Mal o Jeep despontava lá no começo da vila, na fazenda do Luís Catelan, os foguetes espocavam, os vivas ecoavam pelo vale como se fossem as trombetas do Juízo Final, ou as cítaras, timbales, liras, e saltérios na locomoção do Tabernáculo Sagrado nos tempos do rei Davi.
No almoço, muitas galinhas caipiras regadas a vinho de laranja davam o toque típico da hospitalidade genovesa: particularidade preservada da saudosa península. Com a exceção da de Corpus Christi, não havia naquela comunidade italiana, festa maior.
Esses missionários não passavam mais que uma semana nas localidades que visitavam, mas era o bastante para não serem esquecidos até a próxima “inspeção”, quase sempre, um ano depois. As penitências eram tão rigorosas e excêntricas que, às vezes, tínhamos a impressão de havermos sido condenados ainda em vida. Para se ter uma ideia, um coleguinha meu, por haver paquerado as cabritas do Eurides Canal, teve que rezar cinco terços com a estuprada nas costas. A turminha ficou tão assustada e cheia de escrúpulos que, até por lembrar das cabras, já interrompia a comunhão dominical. Não havia para a criançada, pecado mais horrendo.
Numa dessas visitas, o padre Ponciano, missionário holandês aloirado, alto e de voz estridente, mandou que fizessem cruzes, tantas quantos eram os pecadores dispostos a sanar as dívidas para com o Todo Poderoso. Embora do mesmo tamanho, as cruzes tinham pesos diversos, já que eram feitas com as mais diferentes essências da região: bicuíba, paraju, baraúna, pau-sangue, jequitibá, caxeta… O paraju, por exemplo, só perdia pelo ébano africano, chegando a pesar mais de uma tonelada e meia por metro cúbico. As cruzes feitas de cedro e vinhático, eram as mais leves, mesmo assim passavam de quarenta quilos cada uma.
Chegada a hora, entusiasmados, os fiéis meteram as pesadas cruzes às costas e partiram. No começo, tudo pareceu fácil. Algumas horas depois, porém, já poucos não arrastavam seus pesados lenhos. A euforia não diminuía, pois com seu sotaque engrolado, o padre Ponciano não se cansava de lembrar a cada um, que Jesus Cristo havia sofrido horrores por causa dos pecados que haviam cometido durante o ano.
No meio da multidão havia um fiel, o Altino, proverbial em sua mania de possuir todos os sintomas de qualquer doença que se tivesse notícia. Era desses eternos reclamadores que todos nós conhecemos. Não foi preciso mais que alguns minutos de caminhada para que começasse a proclamar-se injustiçado por terem lhe dado a cruz mais pesada. Os demais, porém, seguiam quietos e resignados.
Caiu a noite. A primeira etapa estava cumprida. Cada um arrancou do embornal um bom naco de polenta, puina e queijo e foi saciando a fome que parecia digerir o próprio estômago. Em seguida, cada um foi se estirando pela pastaria. Fazia parte do sacrifício, a noite ao relento. O cansaço, no entanto, desvalorizou o sacrifício, pois em poucos segundos tudo o que se ouvia eram roncos e bufadas. Nenhum outro colchão de penas ou taboas seria, naquela noite, mais macio que o capim-pernambuco do chão. Extenuados fisicamente e aliviados espiritualmente, os camponeses dormiam e sonhavam, novamente, com as paragens celestiais.
O Altino, porém, não conseguia dormir. Revoltado com a desdita de haver tocado a ele o lenho mais pesado, saiu de fininho e, apesar da escuridão, foi aonde se encontravam as cruzes amontoadas. Com sua resistência debilitada funcionando como sensor de qualquer grama, separou uma cruz que lhe pareceu de cedro seco: a mais leve de todas.
Às cinco horas, embora um tanto escuro ainda, o missionário, com sua voz estridente e inconfundível, deu o toque tempestuoso de alvorada: “Vamus, pecatores, que las chamas do inferno estã acessas e…” O Altino levantou-se à pressa e, sorrateiramente, foi apossar-se do lenho que havia separado. Afinal, ninguém mais que ele sofrera tanto no dia anterior e não era justo pagar, sozinho, a conta daquele batalhão de pecadores.
Imaginem a decepção dele quando, ao clarear plenamente, reconheceu na cruz que havia separado, a mesma que transportara durante todo o dia anterior.

OITO ANOS SEM ÁGUA
Há quatorze anos, mudamo-nos de Linhares, no Espírito Santo, para Imperatriz, no estado do Maranhão. Entre familiares e funcionários, contávamos vinte e duas pessoas entre homens, mulheres e crianças. Toda a patota foi condensada dentro de uma única casa que não possuía mais que cento e vinte metros quadrados. Para diminuir o espaço, tínhamos ainda a companhia de gatos, cachorros, centenas de pássaros que eu trouxera do meu estado, um caticoco e mais o Cruck, papagaio de estimação de minha saudosa mãe.
O caxinguelê, tenso pelo celibato forçado de longos anos, mais a balbúrdia avessa a seus princípios naturais, passou a se tornar agressivo. No mesmo instante em que saltitava de um galho para outro – pois vivia solto – ele quietava, eriçava o rabo, emitia um tchac tchac característico e depois investia contra quem estivesse mais perto. A esposa de um de meus funcionários, depois do curativo na canela, assinou-lhe o atestado de óbito: numa trágica manhã ele apareceu com as tripas de fora.
Os gatos logo debandaram para as bandas da Vila Lobão e entre cacetadas e pragas, somadas às perseguições ferrenhas de seus inimigos eternos, os cachorros, desapareceram.
Os cachorros, por sua vez, um tanto desacostumados com o tráfego intenso de uma BR, terminaram seus dias sob as pesadas rodas de jamantas açodadas. Somente o “Cruck”, papagaio de minha mãe, assistiu-nos a até pouco tempo, quando a crise forçou um magote de pivetes a entender que não seria mau negócio, um velho “curupaco” que conseguia, com versatilidade impressionante, interpretar várias músicas de nosso folclore.
Pois bem, todo esse preâmbulo serve apenas para traduzir nosso agradecimento a esta terra que nos deu a oportunidade de crescer e fazer sólidas amizades, pois foi aqui que, pouco ou muito, conseguimos aumentar nosso patrimônio em nível de classe média.
Depois de uns tempos, construímos nossas casas. Em todas observamos o princípio de justiça, usando o mesmo tipo de material e a mesma metragem construída. Apenas o formato diferia. Por azar ou coisa parecida, as torneiras da cozinha e da área de serviço de minha casa pareciam entupidas: nelas a água era minguada, quase pingava.
Nas de meus irmãos e também nas demais torneiras de minha casa, ela jorrava aos borbotões. Aquilo me dava uma inveja danada… e entreveros também, pois não é fácil ter que suportar em cada toque de torneira, o sermão de uma esposa afoita, sempre afobada e irritada com o almoço atrasado.
Muitas vezes pensei em arrebentar tudo e examinar a causa, mas sempre concluía não valer a pena, já que dos azulejos e cerâmicas que seriam danificados, não mais havia similares no mercado. A casa ficaria remendada e feia. Oito anos passamos assim: a água pingando e a mulher com os nervos à flor da pele.
Um dia, a bomba d’água deu problema. (Nosso sistema de água era particular). Trocamos por outra que também durou pouco. As torneiras que antes pingavam, secaram definitivamente. Neste comenos, chega minha mulher, indo diretamente lavar um copo ou um pires, não me lembro bem. Nem uma gota de água.
Intempestiva de nascença, investiu furiosa:
– Antes tivesse me casado com um bombeiro; pelo menos não teria que passar oito anos nesse sofrimento. Que diabo de homem é você que não dá jeito nesta droga de torneira?
– Ao invés de desejar um bombeiro, deveria maldizê-los, pois foram eles que fizeram esta droga emperrada – defendi-me num repente.
E no jogo pouco amistoso de palavras, acabamos por nos emburrar, cada qual realizando sua catarse em resmungos imbecis. Não satisfeita, minha mulher, depois de esgotados os recursos verbais, apelou para a desforra física, agarrando torneiras e canos e forçando-os para todo lado. Não sei a razão, mas em cada torção de torneira, sentia meu pescoço doer. Estava certo que eles, altruisticamente, estavam me substituindo. Tudo que via e que imaginava ter ligação com água, não escapou. E foi assim que ela descobriu um objeto que há oito anos estava silencioso e abandonado num canto, ao lado do exaustor do fogão.
Aquilo, amigos, estava ali há oito anos, fosco e empoeirado, untado pela gordura que escapava da aspiração, bem em frente aos nossos narizes, diríamos, rindo de nossa falta de raciocínio e observação. Aquela pecinha empoeirada, ali havia oito anos, por cima do fogão, num lugar em que quase se batia com a cara ao se mexer nas panelas, aquilo…, bem, aquilo, amigos, era o REGISTRO da pia, e estava quase fechado desde a construção da casa.
Quando o abrimos e a entrada de ar foi eliminada dos canos, o jato que se seguiu parecia querer descontar o atraso. Minha mulher e eu nos entreolhamos penalizados: não havia dizer.

ATÉ NO CÉU HÁ FARSANTES
No último fim de semana estive viajando por aí. Quase sempre minhas andanças restringem-se à fazenda ou similares. Nesses lugares, muito caboclo, muita gente simples e humilde. Durante o dia quase não os vejo, mas à noite, num banco tosco de madeira sob cajueiros e à luz do luar, ouço casos e histórias, as mais engraçadas e filosóficas possíveis:
“Lá pras bandas de Machacalis, em Minas, tinha um home que morava perto do rio Grumará e esse home ganhava o sustento da famia plantando mio. As roça dele era sempre as maió da região. Cumo onde tem comida sempre aparece os bicho pra comê ela, logo os pássaro-preto invadiro a prantação.
Vendo que seu mio era arrancado inté antes de nascê, o fazendero resolveu mandá o fio, que tinha dom, fazê um espantaio de vinhático, madeira mole, leve, faci de escupi. O menino era bom fazedô de boneco de pau e o espantaio ficô pronto em duas semana. Eles foro lá na beira do Grumará que cortava toda a prantação e enfiaro o tal boneco pra mode espantá os passarinho.
Numa noite quando as chuva do tempo apertaro, o rio subiu muito e carregô o espantaio que tava na bera. No amanhecê do dia o boneco tinha sumido e ninguém mais achô aquela coisa por bom bocado de tempo.
Deixa que as água levô o troço mais de quinze quilômetro pra baixo e lá, num remanço que feis praia, por coincidença, o boneco ficô de pé, enterrado na areia até a cintura. Um matuto que primeiro viu aquela geringonça saiu espaiando a notiça dizendo que um santo havia descido do céu pra ajudá eles.
Não foi preciso mais que meis pra que o santo desandasse a fazê milagre, livrando todo mundo das infermidade. Gente vinha de todo canto de Minas e inté de outros lugá mais distante e todo mundo voltava falando maravias.
Deixa que o fabricante do santo caiu doente tombém. Embora a notiça do santo milagroso já tivesse passado por lá, eles nunca tinha ido vê. Já havia sido inté construído uma capelinha em vorta e pela marge do Grumará uma vila começava, com quiosque e tudo.
Sem jeito do fio miorá, o pai resorveu, um dia, arriá os animal e levá ele inté o santo milagroso. A viage foi difici, mas num domingo à tarde eles chegaro lá. A beira do Grumará estava parecia festa, todo mundo apinhado esperando a veis pra entrá na tenda dos milagre.
Manco arribava as perna, nego que não trabaiava de dor nas costa saía dando cabaiota pela areia, muié de corrimento saía do oratoro oiando o marido de lado. A fé aumentava cada veis mais em cada milagre que acontecia. Foi inté que chegô a veis do menino entrá na igrejinha. Ele foi de cabeça baixa, cheio de confiança, pedindo, primero perdão dos pecados da mocidade sem muié pruque entendia que o santo não ia passá em caminho intupido, e sua foia corrida não era das mió.
Ele se aproximô do altar com lágrima escorrendo na cara. Quando levantô os zóio e enxergô aquela coisa que ele mesmo tinha feito, pulou em pé como se tivesse sido curado. O pai que tava fora, socorreu agoniado cumu leitão de porca de muito fiote:
– E aí, fio, ocê tá curado?
– Pai!, – disse ele – a image que tá lá dentro é o espantaio que o sinhô mandô eu fazê pra mode espantá os grumará do mio. Isto nunca foi santo não, pai!
Daquele dia em diante nunca mais aconteceu lá um milagrinho siqué. Acho que aqueles que diz que Deus somo nóis mesmo pro meio da fé estão com a razão pruquê enquanto o povo acreditava que aquilo era santo, mesmo sendo um espantaio de espantá grumará, os milagre acontecia. Depois que descobriro que era só um pedaço de pau véio, a cabocada cacetô ele como se fosse o Juda da Semana Santa.”
– É…. concluí, “para quem acredita, cabeça de peixe faz milagres”!

É DANDO QUE SE RECEBE
Se os seres humanos fossem mais observadores, certamente não precisariam frequentar escolas para viver mais dignamente e em paz neste mundo. A própria vida, com suas nuanças e surpresas, é uma professora constante a nos ensinar os segredos da boa convivência. É lamentável que apanhemos todos os dias por causa das mesmas incidências e jamais nos libertemos das falhas, dos vícios, dos maus costumes e de toda prática invirtuosa.
É erro crasso imaginar que os ricos não precisam dos pobres; que o culto não aprende com o ignorante e que – como diz o matuto – o aviador não possa, um dia, precisar de um velho jegue. Sempre, enquanto existir vida humana no planeta, os seres humanos, sem distinção de raça ou cor, de riqueza ou pobreza, precisarão uns dos outros. A ideia de que não dependemos de nossos irmãos é a mais ilusória que existe.
Quando jovem, cheio de sonhos e ilusões, comprei um Rural Willis (embora isso deponha contra minha idade, devo dizer que esse tipo de carro não é mais fabricado). Aquele veículo, erroneamente, era uma das coisas materiais mais importantes que eu possuía. Cuidava dele como, talvez, não cuidasse de mim.
Naqueles idos comecei a namorar uma estudante do interior. Ela morava a uns sessenta quilômetros de mim e quando o fim de semana se aproximava, eu começava a dura tarefa de dar limpeza e brilho no meu Rural – a intenção era impressionar o quanto possível.
Aquele sábado – apesar de distante – parece-me hoje. Lá ia eu devagarzinho (nem a poeira queria que entrasse) quando percebi um senhor de cor negra que, de cacaio às costas, caminhava tropegamente pela estrada, acompanhado da mulher e mais três famélicas crianças. Entre a formação que me pedia para dar carona, e a vaidade de chegar com o carro perfumado e limpo, venceu a formação. Eles entraram. Estavam sujos, fedorentos: sinceramente, não pareciam humanos. Meu impecável carro ficou em situação deplorável. Na fazenda do então senador Lindenberg eles desceram e, com mil agradecimentos, adentraram na capoeira. Adiante ficava a tapera em que moravam. A vida de muitos brasileiros – se desconhecem – é subumana.
Quando olhei a sujeira interior de meu estimado carrinho e aspirei o ar fétido que entranhou em tudo, arrependi-me. Que iria pensar minha namorada?
O que ela pensou, nunca me disse. De qualquer forma, aquilo não foi motivo para que me deixasse. Muitas outras viagens fiz para o interior, mais precisamente de Linhares para a, então, vila de Governador Lindenberg. A estrada, em boa parte, margeia o rio Doce e, naquele tempo, quando chovia, transformava-se em verdadeira tortura para quem passasse por ela.
Numa de minhas viagens, voltava eu da visita. Eram vinte e três horas. A chuva surpreendeu-me no caminho. A estrada ficou lisa e perigosa, porque nas margens do rio Doce, a maior parte da Terra é massapê. Num determinado trecho, o carro atolou. Eu estava sozinho e, em volta, apenas capoeira, som intermitente de chuva, algum cricrilar apaixonado e um cenário de pirilampos que riscavam a escuridão como se fossem fagulhas de fogos de artifício. Acelerei o carro o quanto possível, na tentativa de sair daquele lugar ermo e fantasmagórico. Mais de trinta minutos vivi aquela agonia.
De repente, como por encanto, vi que a luz de uma lamparina se movimentava pela capoeira e vinha em minha direção. Fiquei apreensivo e, confesso, com muito medo. Como não tinha para aonde correr, aguardei os acontecimentos. Era um negro e sua mulher que, ouvindo o roncar do motor, vinham em socorro de quem ali estivesse. Rasparam o chão, empurraram, lutaram e lutaram em plena noite de chuva, até que meu carro saiu do atoleiro.
Em estrada firme desliguei o motor e saí para agradecer. Qual não foi minha surpresa quando, depois de conversarmos um pouco e com a ajuda da claridade da lamparina, reconheci naquele “cireneu”, o mesmo homem que há um ano atrás, com sua família, emporcalhara e empestara o meu carro numa simples carona.
Entendi que, diretamente pelas mãos de nossos semelhantes aqui nesta terra, ou indiretamente pelas mãos de Deus na outra vida, tudo que fizermos aos outros, um dia tornará a nós.

A TEIMOSIA DE UM CURURU
Tudo começou quando resolvi criar inhambus no quintal. Os inhambus fazem parte da família Tinamidae. São pássaros que vivem no chão pelas florestas, capoeiras e campos e que somam menos de cinquenta espécies, sendo mais de quarenta, brasileiras. Para quem é caçador ou mero curioso, devo esclarecer que o pé-de-serra, a tona, a perdiz, a codorna, a sururina, a chorona, o chororó, o chintã…, são membros dessa família.
Pois bem, tentando criá-las em cativeiro (porém com um pouco mais de espaço), operei-lhes uma das asas e deixei-as pelo quintal arborizado de 360 x 60. Num canto adequado coloquei uma vasilha de barro com água. Não demorou para que eu encontrasse, todas as manhãs, dentro dela, um “recado” promíscuo e fedorento.
Só na segunda semana preocupei-me com o fato e resolvi vigiar, a fim de descobrir o autor daquela brincadeira de mau gosto. Ainda antes das vinte e duas horas fui dar a primeira verificada: lá estava, todo escarranchado, no sossego dos justos ou folgados, um velho sapo cururu. Para ser sincero, só fui acreditar ser ele o autor daqueles “recados” depois de constatações oculares. Com certeza eu não sabia, até então, que os cururus… bem, “vá lá”: cagavam tanto e tão grosso.
Com a calma de toda primeira vez, delicadamente, tirei-o da água, fustigando-o carinhosamente com a ponta do pé. Com boas maneiras – logo percebi – não iria convencer aquele velho sapo a escolher outro lugar para suas necessidades fisiológicas. No dia seguinte, o “recado” estava lá outra vez. Apanhei um saco plástico, protegi a mão da sensação desagradável de tocar um animal frio e, tradicionalmente asqueroso, e levei-o para a outra extremidade do quintal.
No outro dia, outra vez estava ele lá, só com o “nariz” do lado de fora. Um pouco mais atrás… bem, eu só queria saber por que tinha que ser dentro de minha tigela cheia de água para os passarinhos! Já ciente da pouca simpatia que lhe devotava, ao perceber-me, ele pulou da vasilha e tentou escapar. Peguei-o no segundo pulo e já sem a mesma paciência de dias atrás, lancei-o por sobre o muro.
Uma semana depois, talvez se metendo pelo buraco do esgoto de águas pluviais, o velho e teimoso cururu voltou. Numa onomatopeia tácita trocamos alguns insultos. Demonstrando sensatez ele tentou dar no pé, mas agarrei-o na terceira tentativa, apertando-o com raiva. Enfiei-o dentro de um saco plástico e levei-o a uma poça d’água a mais de cem metros de minha casa, atrás da Tocauto, revendedora dos carros Volkswagen.
No mês seguinte, chegando o inverno, depois de uma noite de chuvas e trovoadas, quando eu já nem mais me lembrava dele, a surpresa: de pernas abertas como se estivesse cansado de uma longa caminhada, dentro de minha tigela com a água que servia aos inhambus, estava o cururu. Um pouco mais magro e, pareceu-me, mais realizado, ele chegara. Atrás dele, nenhum “recado”. Quem sabe, teria ele aprendido bons modos? Apesar da raiva não contive o riso e chamei meus familiares:
– É outro, seu bobo! – Pilheriaram eles tentando convencer-me.
A falta daquela inconfundível, fedorenta e enorme cagada dentro da tigela era um álibi que deixaria confuso o mais veemente acusador. No entanto, aqueles olhos semicerrados e cínicos não se cansavam de lembrar-me de um velho e renitente sapo cururu que me causara certo transtorno.
No outro dia, a prova incontestável e definitiva: dentro da vasilha, mais grossa, preta e fedorenta que nunca, o palpável sinal da desforra. Sapo nenhum do mundo conseguiria tal façanha. Era ele.
Agarrei-o, enfiei-o dentro de uma caixa de papelão, coloquei-o em cima da camioneta e dei ordens para deixá-lo na sede da fazenda, lá no Pará, a duzentos quilômetros daqui. Segundo meus cálculos ele só deverá retornar ali pelo ano dois mil, caso não lhe ocorra algum acidente ao longo do penoso percurso. Diante de tanta teimosia e determinação, sinceramente, não direi que foi trazido por alguém se o ver depois do ano dois mil, dentro de minha tigela.

UM PAVAROTI APAIXONADO
Começamos a nos incomodar com o cricrilar persistente que vinha da varanda. Era tão estridente e ininterrupto que já não se podia usar o silêncio como forma de concentração para qualquer exercício mental. As crianças se trancavam dentro do quarto para estudar, pois qualquer compartimento da casa que apresentasse ligação com o corredor estava impregnado com aquele som alto, enjoativo e irritante. Poderíamos compará-lo a um cantor de óperas executando uma destas chatas canções bregas, ininterruptamente.
Estava metido sob caixas, mudas de abacaxi, pneus carecas, sacos velhos…, debaixo daqueles célebres amontoados de sucata sempre presentes em toda residência que se preza, principalmente, de italianos. Várias vezes tentei expulsá-lo de lá, revirando-lhe o esconderijo, mas tudo o que consegui foi espirrar seguidamente diante daqueles terríveis alérgenos fustigados.
Ele quietava, escondia-se, aguardava. Mal eu virava as costas e ele, a princípio educadamente e em seguida, à toda capacidade das cristas, mostrava sua dor clamando por sua amada temperamental.
Nunca vi ortóptero com tégminas mais estridulantes do que o grilo de minha varanda! Não foi à toa que Deus premiou a espécie com os ouvidos na “canela”! Seu canto parece agulha afiada a espetar nossos nervos, sem pausa para recuperação. Ah, se os homens possuíssem a determinação dos grilos!
O pesadelo durou duas semanas. As ideias macabras, regadas a uma aplicação letal de inseticida já não cediam mais aos princípios ecológicos de que se deve respeitar os rituais de amor de cada espécie, ainda que seja de grilos. Debaixo dessa tensão, estacionei o carro na garagem contígua ao esconderijo dele.
Ao dar a volta para entrar em casa, vi, esgueirando-se pelo portão, a rogada fêmea que há duas semanas resistia aos apelos do teimoso e arrebatado grilo. (Os grilos não enrouquecem porque não usam a garganta para emitir os sons. E quanto as cristas das asas, nunca irei entender porque Deus as fez mais resistentes que o diamante.)
Ao vê-la expondo-se, inconsequentemente, ergui o sapato para esmagá-la, mas ao perceber que o som exasperado não estava sendo produzido por ela, contive-me envergonhado. Ela, vagarosamente (parecia zangada, no TPM rsrsrsrsrs ou, ao menos, mal-humorada), passou por mim e adentrou pelas mudas de abacaxi. Eram duzentas mudas, o que justificou a esticada da seresta por mais uma hora. Depois, silêncio sepulcral, entrecortado aqui e lá, por cricrilarezinhos safados.
Mais ou menos um mês depois, retirando uns pneus velhos do local, vi dezenas de grilinhos saltitando de um lado para outro, na indizível satisfação de quem vê o mundo pela primeira vez. Não pude me furtar à ideia de uma possível “denúncia vazia”, caso todo aquele coral resolvesse instalar-se nas gretas da garagem de minha casa. Apesar de poder eliminá-los facilmente, não pude vencer o carinho que sempre se apossa de mim diante de criaturinhas ingênuas e indefesas. Certa vez quase capotei o carro ao desviar de um calango que tomava banho de sol no asfalto.
Lembrei-me que os animais, pela preservação da espécie, são muito mais persistentes e indomáveis que nós. Não sei se a primeira “esposa” daquele grilo havia morrido ou sido flagrada em passeio noturno por algum cururu traiçoeiro e faminto… não sei! Mas o grilo sabia que dia menos dia uma fêmea passaria ao alcance de sua voz enamorada e se aproximaria para atender à lei natural de que se deve, mesmo a um grilo arrogante, entregar-se pela preservação da espécie.

A ESTUDANTE
Como um passarinho ela acorda cedo. Lá fora, o barulho dos madrugadores a desperta. A ânsia de curtir a vida não a deixa permanecer na cama. Espinhas no rosto, vontade de comer chocolate branco, ciúmes da Marisa que lhe dizem mais bonita e elegante. Pensamentos rápidos vêm e voam de sua cabecinha cheia de planos.
Bolsa pesada nos ombros, tênis surrados, calça jeans, blusa amarrada na cintura, um fitilho do Senhor do Bonfim enlaçado no punho esquerdo, lá vai ela pela rua, apressada como se o dia fosse curto para saborear o direito de viver a juventude. Em cada esquina o jornaleiro grita: “Mais dois assassinatos. A inflação sobe. Escândalo e corrupção no Congresso…” Ela, porém, não quer saber de coisas tristes e desalentadoras, de brasileiros ingratos e desonestos. Para ela o sol apenas desponta, o casulo mal se abre: há um mundo muito grande e bonito para curtir.
Seu corpo está inquieto. Nos seus olhos, o brilho da pureza, a graça plena de Deus. Não pensa nas coisas feias dos adultos. Quer viver, correr pelos campos, andar pela cidade, conversar com a Tânia, combinar um convescote, jogar vôlei na quadra da Escola Santa Teresinha, acertar a turma para a tarefa de Português.
Suada, rosto rosado pelo sol forte, encontra-se com amigos. Olha o Pedrinho de soslaio. Os hormônios já começam a incomodá-la. De volta à casa, olha-se no espelho, força o nariz para cima, encosta as orelhas para trás, sorri de perfil… Apesar de toda beleza com que a juventude lhe agracia, acha-se feia, inveja a Marisa. Não gosta da cor de seus cabelos; precisa de alguns quilos a mais.
Meneia a cabeça, lembra que o sol está brilhando no firmamento, que os passarinhos estão voando livres, que as borboletas, desengonçadamente, caminham resolutas para o oriente. Faz trejeitos de riso: “as bobocas das borboletas pensam que um dia alcançarão o sol!”
Dirige-se ao corredor. Esbarra com o pai que chega apressado:
– E aí, velho, estou bonita?
O pai a olha: a criatura mais linda para o seu olhar. Sensatamente responde:
– Por mais que eu tente, filha, não consigo ver seu interior.
– Ah, pai! …
Sorri mais uma vez enquanto segue, aos pulinhos, corredor afora. Olha para trás, sorri: dentes de nácar, fortes e brancos como marfim. É o belo do despertar da adolescência, do botão que se abre. Dentro de seu coração, tantos sonhos, muitos planos, alegria sem fim, gratidão e reconhecimento por ter nascido.
Volve os olhos: o céu está quase todo azul, o vento sopra, algumas nuvens esparsas brincam pelo infinito. Como é bonito o mundo – imagina.
E eu que a vejo agora, minha querida estudante, com seus cabelos revoltos, tênis surrados, calça jeans desbotada, blusa amarrada na cintura, mochila pesada sobre os ombros, coração cheio de desejos e de esperanças, alma repleta de emoções, fico com medo que este mundo mau também sorria de sua ingenuidade, quando você imagina – como as tenras borboletas – que pode alcançar o objetivo de seus mais lindos sonhos.

O RADIALISTA
Às vezes vivemos longo tempo ao lado de uma pessoa e não a conhecemos inteiramente. Aquele que nunca toma um porre, jamais se conhece plenamente – assegurou-me, certa vez, o Dr. Abrantes: “As amarras da tradição, da religião, da formação e do interesse, moldam-nos de acordo com as exigências da sociedade em que fazemos parte”.
Logo que somos gerados já recebemos nossa sorte, nosso caráter, nossa personalidade. Depois vem o tempo e com ele a certeza de que as inclinações com que nos agraciaram nem sempre são ajustadas à convivência harmoniosa com nossos semelhantes. Então mudamos, fingimos, prendemos, eliminamos por assim dizer, grande parte do código genético com o fito de evitar problemas com a comunidade. A personalidade verdadeira, normalmente, fica enclausurada a sete chaves e somente em ocasiões muito especiais é apresentada à sociedade.
Há cerca de um ano, enquanto trafegava pelas ruas da cidade de Imperatriz, liguei o rádio numa estação de rádio AM. Acertei num programa musical. O apresentador, com voz firme e contundente (?) falava do lindo sol daquela manhã, da beleza do verde que emergira após as fortes chuvas e da alegria que representava estar ali vivo, naquele momento e naquele lugar. Como estava procurando notícias, fui, em vão, mudando de estações, mas todas pareciam afinadas ao mesmo objetivo daquele horário. Desliguei.
Algumas horas mais tarde, passando pela rua em que estão instalados os estúdios da emissora cujo apresentador eufórico demonstrava segurança e felicidade, vi um rapaz sentado na calçada, cabisbaixo, o rosto enfiado entre os joelhos numa posição desoladora. Chamava a atenção, um rapaz de seus vinte e poucos anos, naquela posição, sentado numa calçada muito movimentada, em pleno dia de sol. Estando o sinal fechado e tendo meu carro parado bem ao lado, pude perceber que chorava. Logo que o sinal abriu, atravessei a rua, estacionei o carro seguramente e voltei solidário:
– Amigo, problemas difíceis?
Ele ergueu lentamente a cabeça. Os olhos estavam rasos, o desespero parecia palpável. Nunca havia, até então, me deparado com um olhar tão suplicante e dependente. Depois de alguns segundos ele se ergueu por inteiro:
– Foi nada não, amigo! Coisas da vida.
Talvez mais por curiosidade do que por qualquer outro sentimento, insisti:
– Velho, uma carga dividida, sempre fica mais fácil de ser transportada. Vamos lá, desabafe!
– Esqueça! Certamente tem seus problemas, tem sua carga como falou. Por que colocar nos ombros mais uma parte da minha?
– É que nem sempre a tristeza é fundamentada. Às vezes tornamos grandes, coisas insignificantes. Ainda há pouco, estive ouvindo um radialista entusiasmado, falando da vida como se ela, por si só, fosse motivo sobejo de alegria e esperanças. O mundo me parece estranho: enquanto uns vivem cheios de otimismo e fé, outros se deixam vencer pelos problemas e dificuldades da vida. Aquele radialista, pela manhã, melhorou meu astral. É bonito saber que existe gente que não se entrega, que exorta, que semeia a alegria. Foi um dó que não tenha ouvido aquele homem! Se tivesse, como eu, tido a sorte de sintonizá-lo, certamente não estaria tão angustiado.
O rapaz, magro e alto, olhos vermelhos, esfregando o braço no rosto molhado por lágrimas incontidas, respirou fundo, olhou-me demoradamente como se fosse um sacerdote piedoso em seu ato sublime de absolvição e, num suspiro exclamativo, arrematou:
– Ah, amigo, eu sou o radialista que você ouviu hoje pela manhã!

A JUSTIFICATIVA DO VELHO
Quando se vai ficando velho – à maneira dos elefantes – vamos buscando as origens: o lugar em que a gente nasceu, os velhos amigos, as antigas estradas…. Foi assim que há vinte dias voltei ao meu Espírito Santo. Fui de ônibus, pela Viação Açailândia, de propriedade dos Irmãos Galetti: conterrâneos e velhos amigos. Tudo em casa! …
Mesmo antes que o ônibus chegasse à rodoviária, notei um homem (como se diz aqui no Maranhão) fogoió, que com sua maleta surrada, andava de um lado para outro com ares de inquietação. Pensei: é um passageiro do ônibus em que irei viajar. Sua fisionomia não me era estranha, assim como a minha lhe fora familiar. Aproximamo-nos:
– Você é Fregona? – Inquiriu-me em riste.
Sem lá muita surpresa, contra-ataquei:
– E você, Milhorelli, sou capaz de jurar!
– Filho do Nilo – confirmou ele. Moramos muitos anos no térreo do prédio de seu irmão Adalho.
Depois de nos despirmos totalmente de toda privacidade, estávamos ali, dois velhos amigos, prontos a apagar do tempo, um longo intervalo de passado obscuro. Como nossas cadeiras não coincidiam, ele foi acomodar-se lá para trás. Mal chegou ouvi alguém que se apresentava a ele sem parcimônia, falando a todo pulmão:
– Então você é lá de Linhares?!… Sei que fica perto de Colatina, mas nunca fui até lá. Tenho uma filha que mora em Aracruz e minhas viagens limitam-se a esse lugar. Sou de Xinguara, desquitado, … tenho lá um quiosque, meio parecido com a venda do Lidirico: vendo revistas, cachaça, tira-gosto de paca, tatu, anta, veado, nambu ou qualquer outro bicho que consigo surpreender lá pras bandas daquelas matas. Lá tudo é bicho e aquele que pode mais, chora menos.
Foi dizendo essas coisas enquanto pendurava, bem por cima de meu velho e, ao mesmo tempo, recente amigo, um bom naco de carne de anta moqueada. Não demorou para que os solavancos do ônibus fizessem com que alguma coisa da carne começasse a cair em cima da cabeça e ombros do fogoió, meu recente amigo. Ainda antes de perceber que se tratava de bichos de mosca-varejeira, ele reagiu:
– Meu senhor, essa carne não poderá ficar aí. Está deixando cair (e aí verificou o que caía) … droga, isso é bicho, bicho de varejeira! …
Meio sem graça, desculpando-se como podia, o velho foi logo tratando de recolher seu naco estragado de carne de anta. Sem perder tempo, tentou justificar-se:
– É que moro num lugar desgraçado onde, quando o carro quebra no meio da viagem, a gente quase morre de fome. Além do mais, na minha última viagem, quando tentei almoçar numa pensão, quase morri de caganeira. As pensões do interior não perdem nada. As sobras de uns são jogadas em outra vasilha e devolvidas ao cliente seguinte: é um sarapatel danado.
Além do “jabá”, não esqueço também o papel higiênico e esta lanterna (exibiu-a a todos do ônibus) – coisa de velho vivido nos matos. Como estava dizendo, na última vez que comi numa pensão, não precisei mais que alguns quilômetros para suplicar ao motorista que, incontinenti, parasse. Os carros do interior não têm privada na traseira. Meio contragosto o motorista freou num lugar desgraçado e foi logo avisando que eu não poderia prejudicar os demais que estavam doidos para chegar. Com a dor fina que me roía as tripas, achei a recomendação desnecessária. O desabafo seria rápido. Desci às pressas.
A noite estava escura e o que se passava comigo não me permitia que escolhesse lugar mais ou menos adequado. Saí da margem e fui logo arreando as calças. Quanto mais saía (você entende, não é?), mais a dorzinha infeliz amarfanhava-me as tripas. O motorista, cruelmente, começou a buzinar. Fiquei em apuros. Ainda com cólicas terríveis comecei a procurar alguma coisa para a higiene: em todo alcance, apenas torrões e terra solta que um trator havia espalhado há pouco. Nem um graveto por misericórdia!
A buzina não parava; o murmúrio desumano não cessava. Depois de correr e raspar as mãos pra tudo quanto era lado, fui forçado a resolver meu problema com o que tinha disponível mesmo, fazendo uma lambança maior do que se tivesse deixado a ” coisa” como estava. O barro misturado lambuzou tudo e fiquei em estado deplorável. Barbaramente fizeram-me viajar até à próxima parada, na última cadeira, enquanto o restante se amotinou ao redor do motorista. Nunca irei esquecer aqueles diabos de cochichos que se fizeram intermitentes lá na frente:
“Isso é que dá viajar com velho cagão e frouxo!…” “Ao invés de se meter na estrada, devia estar numa rede e com a caixa mortuária em dia!”… Naquele mesmo momento, amigo, fiz meu juramento de que jamais viajaria sem meus próprios alimentos, sem uma lanterna e um rolo de papel higiênico.

UMA ONÇA DESMORALIZADA
Sempre digo que um porco e uma flor, assim como o progresso e a Natureza, jamais viverão harmoniosamente. Foi baseando-me neste princípio que me indispus com as onças que viviam degustando meus gordos bezerrinhos lá no Cajazeiras. É claro que elas estavam lá há mais tempo que eu, assim como os índios aqui no Brasil, mas na luta direito versus interesse, sempre vencerá o segundo.
Armei espingardas e trabucos, aratacas, contratei matilhas de onceiros…. Esgotados os estúpidos, ultrapassados e perigosos métodos, apelei para a razão, na certeza de que esse privilégio me livraria das renitentes salteadoras.
Dalgas Frisch havia lançado no mercado uma dúzia de fitas cassetes com piados de aves e vozes de animais amazônicos. Na miscelânea ecológica havia vários esturros de canguçus. Segundo o cientista, aqueles urros significavam domínio territorial e uma bela cantada às fêmeas no cio. Qualquer concorrente intruso, portanto, seria logo rechaçado. Concluí daí que poderia funcionar como desafio ou chama para atraí-las à armadilha fatal.
Pedi a meu gerente que construísse, em lugar estratégico, um mutá com cinco metros de altura e, numa noite bem escura, acompanhado de meu irmão e sócio, fui para a grota sombria, armado até os dentes. Meu equipamento de som e as armas de grosso calibre eram de causar inveja a “metaleiros e Lampiões”.
Curiangos pelas veredas, urutaus nos aceiros e corujas nas moitas assombrosas alimentavam nossa imaginação, criando um cenário tétrico e fantasmagórico. Dois simplórios caçadores de pacas e tatus na espera que nos acompanhavam, despediram-se sarcasticamente:
– Nois vai pra bem longe daqui pruquê onde pintada esturra, paca e tatu não sai dos buraco e veado inté trepa nas impuca. Falam por aí que elas quando vem pra briga derruba inté os pau mais fraco.
O mano e eu nos entreolhamos num misto de ceticismo e precaução. A cada insinuação dos caboclos eu verificava minhas armas, e o mano, as munições. Enfim, nos instalamos no jirau e começamos a reproduzir os esturros da saqueadora. Aquele som pavoroso, amplificado, feria, não somente o silêncio sacrossanto da floresta, mas principalmente nossa reputação de incipientes caçadores de onça.
Não havia um só fio de cabelo, por mais anos que estivesse enroscado, que não se eriçava diante daquela escuridão plena na qual chamávamos para perto de nós, uma ou todas as feras da floresta. Uma coruja orelha-de-gato, sádica como bruxa de história infantil, parecia incansável em sua onomatopeia horripilante. Era um “tu, tu, tu, tu, tu, tuuuuuuuuu” incansável e constante. Nosso estado de espírito, bem que dispensava o sarcasmo daquela infeliz coruja!
De repente, no auge de nossa tensão, um roçagar pelas folhas secas denunciou alguma coisa que descia, sem muita cerimônia, a encosta da grota. Com pacas e tatus nos buracos e veados trepados nas empucas, só mesmo a onça poderia estar se aproximando para tirar satisfação da desafiante. Arrepiados, tomamos posição. Armamos nossas escopetas, preparamos as lanternas e quando o barulho se fez sob nós, clareamos ao mesmo tempo: um velho e, possivelmente, surdo tatu, fuçava despreocupadamente as folhas secas do chão. O mano apagou a lanterna e lembrou:
– Bem que nosso pai sempre dizia: “O papel aceita tudo”. Referia-se ao que afirmara sobre as onças, o ilustre cientista.
Mais um pouco e continuei a reproduzir os esturros captados por Dalgas Frisch em pleno Inferno Verde. Nem havia desligado o aparelho e novo ruído se fez ouvir, dessa feita, mais sutil e sorrateiro.
– Agora é ela – cutucou-me com mão trêmula, o mano. Não sei por que ele achou necessária aquela maldita observação!
O sangue me subiu ao rosto, o coração disparou. Pus a escopeta na posição, armei os dois cães e esperei o momento oportuno. Quando embaixo, acendemos as lanternas ao mesmo tempo: agora, uma paca, “uma paca veia”, como dizem nossos caboclos, mariscava tranquilamente à cata das flores do pequizeiro que vigiávamos.
Defendemos o almoço do dia seguinte e descemos do mutá decepcionados. Havíamos perdido tempo caçando a onça mais desmoralizada da Amazônia, ou então, aquele tatu e aquela paca eram surdos de nascença.

PESCANDO E CAÇANDO
Falar de pesca e caça, mesmo aqui no Portal da Amazônia, é algo que cheira a desrespeito ao decreto-lei nº 289 criado em fevereiro de 1967, objetivando proteger a nossa fauna. No entanto, se entendermos que a contravenção tenha vindo de italianos, haveremos de acreditar que, ao invés de o IBDF puni-los, deveria incentivá-los a que todo ano viessem até aqui para caçar e pescar.
Estiveram aqui há quinze dias. Primeiro foram ao Bico do Papagaio, lá no Centro dos Mulatos. A primeira semana seria de pesca ao pirarucu – principalmente a essa espécie. Debaixo de torós temporãos, muriçocas mil… eles passaram os sete primeiros dias sobrevivendo à custa de picanhas, linguiça de porco, muita polenta, alguns míseros berés, oito grades de cerveja, dez galões Imperial de vinho e vinte e um litros de cachaça trazidos por eles. Depois desse tempo concluíram que a lagoa do senhor Cícero não era diferente das poças d’água lá do sul do Espírito Santo: “Só tinha berés”.
Partiram então para a caçada. Escolheram a Fazenda Cachoeirinha, perto de Dom Eliseu, no estado do Pará. Uma das camionetas levava o pessoal, e a outra, a bagagem: entre ela, mais doze grades de cerveja, muitos galões de vinho e mais vinte e dois litros de boa pinga, pois concluíram que o racionamento da pescaria prejudicara bastante o bom desempenho deles.
Logo no primeiro dia, já com a noite avançada, chega o mais velho do grupo, o senhor Ambrósio. Como todos, nada tinha no picuá, mas vinha mancando, quase arrastando-se para chegar. Sentou-se num tamborete de freijó, respirou fundo e desabafou:
– Mais Varda (todos eles misturavam italiano com português, invejavelmente) dopo di tri ani questo escarpe maladeto resolvest arrancar-me las undchas e me tornar ei ded pien de calos.
Enquanto se preparava para retirar os suplícios, o seu filho Edelcio, muito esperto e observador, cutucou o Tcheron, seu primo Arlindo e observou:
– Dê uma olhada nos pés dele!
O Tcheron olhou e encompridando os lábios para facilitar o uivo, começou um cainhaim digno de um cão alvejado por uma pelota certeira. Todos olharam ao mesmo tempo e não foi difícil constatar que o segundo-tenente reformado do Exército Brasileiro, havia andado caçando o dia todo com os sapatões trocados.
Durante os outros sete dias, conseguiram apenas alvejar um mísero e abestalhado tatu que fuçava, inocentemente, na beira de um igarapé. Mas, mesmo a falta de peixes, e agora, de bichos, não os preocupava. Quando vinha a noite, reuniam-se em torno da comprida mesa feita com um pranchão de angelim-pedra e bebiam tanto que um agregado da fazenda observou:
– Mas é água, não é?!…
Retornaram ontem. Alegres, olhos vermelhos, alguns quilinhos a mais, centenas de manchas pelo corpo levadas a efeito pelos pernilongos e carrapatos, alguma maleita como lembrança e célebres queimaduras ácidas de potós: nossa mais autêntica marca de hospitalidade a ingênuos visitantes.
Levaram daqui a melhor das impressões. Sorveram o espírito festivo dos maranhenses; ficaram maravilhados diante do nosso forró; saíram menos revoltados com os políticos ladrões de sua terra e prometeram voltar no próximo ano.
Caçadores e pescadores desse quilate deveriam ser incentivados pelo IBDF a cometerem tais contravenções, pois tanto os pirarucus como os bichos perseguidos por eles, jamais serão mortos, ainda que por exímios pescadores e caçadores: estão escorraçados até o ano 2.000.

TUDO O QUE É BOM DURA POUCO
A Bahia e o Espírito Santo somam-se aos estados em que ainda se encontram remanescentes capões de Mata Atlântica. A Mata Atlântica, possivelmente, foi (nos tempos áureos não tão distantes) uma das florestas brasileiras mais ricas em animais silvestres. Isso ocasionou o aparecimento de milhares de caçadores, mormente nos tempos em que se podia desfilar pelas cidades com uma Pipper a tiracolo, uma respeitável matilha esganiçada e muitas pacas abatidas e dependuradas em fila num reforçado varão. Como lembrança dessa época, ainda hoje guardo muitas fotos de amigos, tios e pai.
Fauna rica, liberdade total, ausência de toda e qualquer fiscalização…, eram ingredientes perfeitos para o aparecimento de milhares de caçadores, principalmente nas pequenas cidades interioranas. Itamaraju, Teixeira de Freitas e Eunápolis na Bahia; Colatina, Marilândia, Linhares e São Mateus no Espírito Santo, eram as detentoras do maior contingente.
Quando mudei de Marilândia para Linhares, fiquei conhecendo uns doze caçadores de paca: havia, entre nós, certa afinidade, pois era eu, na época, talvez o mais afoito devastador de macucos da própria Reserva Biológica Sooretama do Barra Seca, a quarenta quilômetros da cidade de Linhares. Mais tarde os tempos mudaram: em 1970 o I.B.D.F. intensificou a vigilância. Fui pego por seus agentes florestais, preso, processado e, felizmente, convencido (?) a desistir de tão indigno esporte.
Os caçadores de paca de Linhares, diante da fiscalização ostensiva, começaram a organizar expedições à Bahia. A parte leste da Bahia é muito parecida com o nosso Pará: os órgãos governamentais não se preocupam com o meio ambiente, principalmente com a fauna e flora silvestres.
Como permaneciam sempre mais de trinta dias por lá, logo a saudade da família se encarregou de lembrá-los que não haviam feito nenhum voto de castidade. Já na segunda excursão, passaram no “puteiro da cidade” (era assim que lá denominavam a zona do meretrício) e cada um escolheu uma parceira, rumando, sorrateiramente para a Bahia. Logo que chegaram à fazenda em que já haviam estado no ano anterior, apressaram-se em avisar o capataz de que as mulheres que os acompanhavam eram de programas.
A coisa funcionou melhor do que esperavam. Caçavam pela manhã e depois passavam a tarde em bacanais numa praia deserta. À noite bebiam e curtiam as “esposas”, na mais completa orgia. A experiência foi tão boa que, ao invés de uma excursão, passaram a fazer duas por ano. O capataz que também era o mais normal dos homens, do retraimento inicial, passou a vincular os favores: cedia a fazenda em troca de namorada exclusiva. Não fizeram objeção: sempre levavam uma de sobressalente.
Tanto estímulo e euforia dos cinquentões acabou por despertar a desconfiança das pacatas esposas que ficavam solitárias por um mês inteiro, cuidando do lar. Afinal, não havia explicação convincente para que, de uma hora para outra, seus maridos se tornassem tão apaixonados por caçadas de paca. No comadre aqui, comadre ali, elas decidiram, unanimemente, que três dias antes da próxima excursão, iriam fazer-lhes uma memorável surpresa: oferecerem-se para acompanhá-los na estafante tarefa de perseguir os roedores cuniculídeos.
Os caçadores (agora já mais de quinze), depois do conluio aprovado numa breve assembleia, decidiram a saída para o semestre seguinte. Exatamente quando tudo estava pronto, cada mulher achegou-se a seu marido e disse de sua pretensão. “Afinal, não é justo vocês ficarem em jejum por quase um mês! Além do mais iremos cuidar da cozinha e das roupas sujas.”
Embora cada um argumentasse e relutasse, as esposas foram peremptórias e acabaram por convencê-los – por livre e espontânea pressão – a anuírem. Muito desconcertados, os intrépidos caçadores rumaram para a Bahia. As mulheres que já andavam desconfiadas, aumentaram suas suspeitas quando começaram a perceber os olhares furtivos e os resmungos ininteligíveis dos maridos em dificuldades. Lado e outro, diante do quadro irreversível, resolveram, depois de algum tempo, demostrar calma e aguardar os acontecimentos. Fosse lá o que Deus estivesse estabelecido… ou aprontado.
Quando chegaram à fazenda, já o gerente acorreu solidário, abrindo a cancela. Trajava uma calça jeans apertada, uma camisa de tergal listrada, botas e chapéu country: um verdadeiro caubói. As mulheres se entreolharam desconfiadas: ele em nada se parecia com o caboclo ingênuo e simplório desenhado pelos maridos; e o local nada tinha de sertão abandonado onde as onças esturravam em toda noite de luar.
Eufórico e ridiculamente extrovertido, o capataz, depois de fechar novamente a porteira, passou um olhar perscrutador de mulher em mulher e, exatamente quando todos ainda espanejavam a roupa empoeirada, foi lacônico, enfático e singularmente infeliz:
– “Desgraceira, patrões, dessa veis oceis avacaiaro mermo: trouxero uma putada runha demais!”
No outro dia estavam todos de volta e, pelo menos enquanto morei por lá, nunca tive notícia de que os viciados caçadores de paca tivessem voltado à Bahia. Alguns, embora esporadicamente, tentaram se adaptar às caçadas de perdizes; outros, penduraram logo as espingardas no fumeiro. Naquela altura do campeonato, caçar qualquer coisa com a esposa a tiracolo, incansável no refrão “vamos lá, velho safado!”, realmente não dava mais.
É! …, como diz o velho provérbio: “Tudo o que é bom, dura pouco!”

BUNDA DE VACA
Só mesmo convivendo com pessoas que não tiveram possibilidade de estudar, aquelas analfabetas e simplórias a quem nem ensinaram assinar o próprio nome é que podemos nos convencer, ainda mais, de que as diferenças humanas são acentuadas, apenas, por causa da situação financeira de alguns. A inteligência em si é inata, seria comum a todos os seres humanos normais como graça de Deus, não fosse a interferência egoísta e malévola do homem nas regras preestabelecidas pelo Criador.
Se ligarmos a televisão num programa humorístico apresentado por Jô Soares ou Chico Anísio, veremos o quanto usam a cultura para estimular-nos o riso. Entretanto, embora com outro jeito de se expressar, o matuto também consegue o mesmo efeito, ainda que ferindo a gramática e suas regras. Essa pureza autêntica surpreende-me.
Na semana que passou, estava eu numa roda de peões, quando começou uma calorosa discussão em torno de quem era ou não corno naquele exílio de quinzenas continuadas. Um dizia que punha a mão no fogo pela esposa; o outro enumerava as qualidades da companheira como fiel e dedicada…, enfim, todos tinham bons motivos para estar despreocupados ali no trabalho.
De repente, as atenções se voltaram para o Valdenor, o Lindoiá do livro “OS HUMILDES”, lembram-se? O crioulo vesgo estava quieto num canto da mesa quando foi abordado – podíamos dizer, acuado – pelos demais companheiros.
– E este excomungado deste nego aí engurujado no canto? Nesta hora deve tá com a testa coçando! Diz que lá na paioça dele os pé-de-pano se atropela.
Sem perder a fleuma britânica que lhe era peculiar, o crioulo, protegido pelo estrabismo, virou o rosto para o centro da mesa, e sem nos dar chance de a quem era dirigido o olhar, apresentou a prova de sua imunidade:
– Eu tô tranquilo! Minha muié tá veia, impenada…, ninguém se interessa mais por aquele caco. Voceis é que tem que se cuidá: muies novas, sortas na rua, toda imperequetadas!… voceis sim é que deve tá com a testa coçando.
O Baiano (também o mesmo de “OS HUMILDES”, aquele que certa vez entrou no quarto das cozinheiras para enfrentar o fantasma que atirava seixos: entrou falando grosso e saiu resmungando fino como rapariga amedrontada) tomando ares de interventor, replicou num curto, mas convincente aparte:
– É, meu cabra, muié é como enxada: acaba a foia que capina mas fica o buraco do cabo. Tu sabe cuma é que é.
– Tem jeito com voceis não – desistiu o Lindoiá, voltando à sua antiga posição fleumática.
Depois, não contente com sua primeira defesa, acrescentou:
– Explicá arguma coisa a voceis é como chutá bunda de vaca: num dá em nada, só machuca os dedo da gente.

“O MIÓ DO BODE É A FUSSURA”
Lá vinha ele cansado, claudicando do pé esquerdo (um espoinho de capa-garrote havia transpassado o sapatão e lhe ferido a sola do pé). A tarde já caíra e os demais companheiros aguardavam o jantar sentados numa tosca mesa de angelim-pedra. Uns conversavam sobre o trabalho, outros jogavam cartas, outros batiam dominó, enquanto um grupinho de três agredia-se verbalmente em caloroso humor caboclo. Mal deram pela chegada do Chico, investiram:
– Tá lá um péssimo investimento do patrão: contratá um velho acabado, de andar chaco para trabaiá como vaquero, só mesmo um fazendero doido. De gado este aí só entende mesmo de bebê o leite.
– Sô Brando, trais de Imperatriz pra mim três baxeros, uma torqueza, uma chave de bobi e uma pinhola. Tem animal aí fora do brede e tu sabe como é, se não amançá a tempo depois não se dá conta mais – foi logo se defendendo o trôpego caboclo.
– Corta essa, cintura de pacu, tu é bananeira que já deu cacho, só serve pra substituí estrume nas estercage.
O Chico passou ao largo, e sem perder a calma, assegurou laconicamente:
– Sai de meu pelo, cambada! Oceis sabe que o mió do bode é a fussura e que de quarqué manera, em vorta do zóio só é bera.
– Fussura o que, mundiça, é frissura que se fala. Nem cunversá ainda aprendeu. Fala buchada mesmo! Eu já disse pro patrão que quando eu dissé que o jegue morreu, ele pode vendê a cangaia. Contratá um homi como você é o mesmo que botá bracaiá pra vigiá galinha.
– Se invez de me enchê o saco oceis fosse trabaiá, ganhava mais. Agora mesmo dou um tapa nas venta de um que até os neto vão nascê doido. Nesse negão, nariz de chapoca, toda veis que lembrá do meu tapa vai cuspi sangue e ficá tonto.
– Vigi do céu – retrucou um outro que amolecia bacaba em banho-maria – se arguém perguntá se me viro por aqui, diz que não; diz que eu tava descansando os macaco das pestana. Não quero testemunhá este chafurdo.
E a discussão corriqueira, por ser apenas mais uma entre as dezenas que ocorriam todos os dias, não me chamou muito a atenção. “O mió do bode é a fussura”, porém, deixou-me curioso. Procurei o Chico depois do jantar e o argui a respeito:
– É um ditado muito certo, meu sinhô. Oceis vê aí na televisão rei casando com rainha, luxo que não deixa nem as oreia de fora; cada carro que parece trole de Papai Noel…, mais no fundo mesmo, eles não aproveita nada mais que nois aqui do mato.
– E por que, não? – Perguntei-lhe.
– Ora, pru que, pru quê?!… Pruquê o mió do bode é a fussura e de quarqué manera, em vorta do zóio, só é bera, tanto das rainha como das sendera. Eles casa pra tê aquela princesa, rica e perfumada na lua de mé. Nois também fazemo o mesmo nas nossa trapaiada, porque a fussura é a mesma hehehehe.
Ao lado, o jogo de pife-pafe esquentava:
– Quá, quá, quá…fissofó outra veis.
– Feis o fó uma ova. Vai tê que catá a batida no monte pruque cicuitô.
Fissofó, cicuitô…, que diabo de palavras são estas? – interferi curioso.
– É que ele fez o fó, isto é, bateu com as dez cartas. O outro reclama porque ele ameaçou apanhar o bagaço para bater e ao notar que a carta não completava o jogo, foi e voltou com a mão. A isto chamam de circuitar ou entrar em circuito danoso. Quando isto acontece, a pessoa tem que buscar a batida no monte – explicou alguém mais esclarecido que nos visitava com o fito de comprar uns tombadouros de maçarandubas e que conhecia as tiradas do jogo.
E o crioulo que estava em dia de sorte, sem ouvidos para qualquer interferência, continuava “fobando”:
– Eta moleza! Ganhá dum pato deste é mais mole que chupá tumô.
– Dexa de sê nojento, excumungado dum nego!
– Óia quem tá querendo dá uma de muricim: esse vesgo maldito! O que tu sabe mesmo, nego, é coiê arrois pros otros.
A lembrança feriu o brio do crioulo, proverbial por seus péssimos negócios em toda colheita de arroz. Reagiu peremptório:
– Os braços são meu e trabaio pra quem quero. Se tu qué sabê, nasci dentro de um quixó e nunca precisei vendê beré seco pra matá a fome dos meus fio.
– Que nada, nego, tu é burro mesmo! E tem mais, tu fica quieto se não vô contá pro patrão aquela do impréstimo pra comprá o remédio da muié que tava doente e que tu usô pra…
Ao perceber que o companheiro iria entregá-lo, o crioulo estrábico, quase centralizando os olhos, reagiu a tempo de evitar:
– Ah!, não tá guentando pressão não? Tá estorando o mangote, tá? Se fô pra alegá, também vô parti pro alegamento. Pensa que não sei das suas fusacas não?
– Que diabo de alegamento é este, que nunca ouvi falá?
– Nunca ouviu porque tu é mais burro que eu. Mais se tu quisé sabê mesmo, fala arguma coisa do segredo que te contei e vai aprendê rapi, rapi, mais uma pra melhorá seu falatório.
– Rapi, rapi!… É rápido que se fala, mundiça!
Entre fusaca, rapi, alegamento e tudo quanto constituía um linguajar paralelo ao nosso vernáculo, os caboclos continuavam seus entretenimentos e suas saudáveis agressões verbais, que nunca iam além das 21 horas, pois o cansaço de um dia de muito trabalho não lhes permitia. Cada um, tão logo terminava o Jornal Nacional, ia se retirando para sua rede e em menos de quinze minutos, os motosserras que haviam funcionado durante um dia inteiro, pareciam acionados outra vez, tal a zoeira dos roncados que ecoavam em cada canto do barraco de palha.

PARÁFRASE A SEATHL
Em 1855 – conta-nos a história – o então presidente norte americano Franklin Pierce resolveu adquirir as terras da tribo Duwamish, no estado de Washington. Na carta, Franklin dizia de sua amizade e benevolência para com os índios, ao que o cacique Seathl respondeu:
Assegura-me de sua amizade e benevolência, mas não precisa delas. Sei que, se por mal, a posse de minhas terras lhe será assegurada por armas. Estranho apenas a pretensão de comprar coisas que nunca irá possuir, como o céu, o calor da Terra, as águas, o ar puro…, tudo quanto existe como testemunho de gerações que se sucedem.
Para nós, a Terra é uma dádiva de Deus para todos. Ela é sagrada para o meu povo. Como pode, então, comprá-la? Cada folha, todas as praias, a neblina nas florestas escuras, os insetos que zumbem, os pássaros, os peixes e animais, tudo enfim o que vive à nossa volta é, para nós, sagrado. Sem isso, estamos certos, não viveremos também.
O homem branco não tem a Terra como irmã: vem, usa-a e depois vai embora, não se importando, sequer, com o túmulo de seus pais e antepassados. Quer nossas terras para transformá-las em pastarias e cidades, esquecendo-se que nós somos gente diferente, somos seres que não vivem sem o desabrochar da primavera, sem o silêncio da noite, sem a voz do corvo noturno ou o coaxar dos sapos no brejo.
Nossa música é o sussurro do vento; nosso espelho, a água cristalina; nosso perfume, o aroma do pinho; nossa ganância, a partilha; nossos anseios e pretensão, o sossego e a paz até o último dia de nossa existência.
Como sou obrigado a aceitar sua generosidade em pagar por uma coisa que não é minha, exijo apenas que respeite os animais, porque são seres como nós. Não esqueça que isso é uma suprema exigência para nosso negócio. Sem ela não precisará pagar nossas terras, bastará apenas sepultar nossos guerreiros.
Entenda que o seu Deus é o mesmo nosso e o de toda a humanidade. Ele ama a terra e todos os bichos e plantas que nela pôs para viver. Desrespeitar a Natureza é desprezar o Criador.
Hoje nos destrói, mas amanhã, possivelmente antes que nós, desaparecerá também, porque imagina viver sem os bisões, as fontes, o ar puro, as florestas…, mas não conseguirá. Tudo o que existe na Natureza, além do homem, é necessário e fundamental à sua existência.
Gostaríamos de compreender os planos do homem branco! Se soubéssemos quais esperanças transmitem a seus filhos nas longas noites de inverno, quais visões do futuro oferecem às suas mentes, talvez pudéssemos entendê-los.
Os sonhos do homem branco são ocultos para nós. E por serem ocultos, temos de escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos, é para garantir as reservas que nos prometeu. Lá, talvez, possamos viver os nossos últimos dias conforme desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se lhe vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Proteja-a como nós a protegíamos.
Nunca esqueça como era a Terra quando dela tomou posse. E com toda a sua força, seu poder e coração, conserve-a para seus filhos e ame-a como Deus nos ama a todos. Uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus de vocês. Esta Terra é querida por Ele. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.
Depois de traduzir com minhas palavras a carta de Seathl, só me resta pedir a Deus tamanha sensibilidade e amor para com as coisas da Natureza.

GERAÇÃO PRIVILEGIADA
Houve um tempo em que minha ocupação literária era apontar erros, criticar e viver angustiado por causa de tudo quanto eu não conseguia entender. Hoje eu ainda não aceito as coisas erradas, mas pelo menos não perco horas de sono revoltado com as injustiças sociais e com a corrupção geral do país.
Entendo que somos responsáveis pelo nosso destino, tornando-nos felizes ou infelizes por nós mesmos. Se queremos Democracia; se viver num país democrático é aceitar que a maioria escolha seu destino; se a maioria entende que o que temos de melhor é isso que nos governa… por que reclamar, espernear, não aceitar? Se a minoria derrotada não aceita, se entende que foi erro crasso e engano triste as opções da maioria, porque permite, passivamente, que tudo isso aconteça debaixo de seu nariz? Será mesmo que a maioria está enganada, ou será que a revolta da minoria se fundamenta em interesses particulares prejudicados?
Há dois tipos de reclamadores ou revoltados: o primeiro é aquele que, de fato, percebe os conluios e se sente impotente para impedi-los; o outro, mais comum, é aquele que por qualquer motivo, ficou de fora do rateio político.
Até hoje, nunca assisti a movimento ou eleição, cuja preocupação não fosse, única e exclusivamente, o poder e o bem-estar próprio. Nenhum deles até esta data, primou pelo povo e pela nação. Os políticos que responderam pelo governo há algumas décadas e os que atualmente respondem, têm vida fácil e sem problemas, enquanto que as camadas pobres continuam na mesma desgraça de mendigar emprego, saúde, salário digno e educação. A corrupção, as mordomias…, tudo de errado enfim, continua do mesmo jeito.
Aprendi a detestar reuniões de planos, aquelas em que tanto se fala e nada se faz. Como sou mais um brasileiro covarde que assiste aos desmandos e a toda sorte de roubos sem ter a coragem de empunhar um trabuco e partir para a luta, resolvi falar de flores, de pássaros, da beleza do luar e da alegria de, apesar de tudo, estar vivendo numa geração privilegiada.
Ontem, nossos ancestrais tinham a Natureza incólume, bela e majestosa, mas não conheciam o progresso que hoje nos maravilha com seus efeitos e recursos quase divinos. Amanhã, nossos sucessores poderão até ter o sol como energia de locomoção, mas não verão mais tantas coisas bonitas que Deus criou para servir e deleitar aqueles que foram criados à Sua imagem e semelhança.
Hoje, porém, temos ainda muito das duas coisas. É-nos possível encontrar, algures, uma nascente cristalina, uma sequoia ou mesmo um jacarandá, cachoeiras e canhões profundos, pássaros livres e até gente pura, honesta e sem maldade.
No ar, aviões supersônicos cruzam os céus; a televisão mostra um acoplamento espacial de naves; alguém diz alô lá do outro lado do planeta e nós respondemos daqui, vendo-lhe a fisionomia triste ou alegre. Choques de maravilhas que acontecem de um lado e de outro do muro que encimamos, o muro da transição de mais duas importantes eras.
E ficamos atônitos, sem saber se lutamos para adiar o que jamais poderá ser visto ou recuperado, ou se mergulhamos de cabeça neste novo tempo de progresso e descobertas. De qualquer forma, por força de circunstâncias irreversíveis, a Natureza sucumbirá para dar lugar ao progresso, pois, enquanto ela se enfraquece e se deteriora pela insensatez humana, o desenvolvimento se instala invitatório, oferecendo conforto e maravilhas, novidades e surpresas, tão afeitas ao ser vivo mais curioso e irresponsável da Terra: o homem.
O certo é que Natureza e progresso não convivem harmoniosamente: um ou outro terá de perder a majestade. Há quem defenda a possibilidade de se fazer as duas coisas ao mesmo tempo, mas no fundo, nem a eles próprios convencem. Criar um porco dentro de um jardim sem que este seja destruído, todo mundo sabe, é algo impossível.
De minha parte, estou muito feliz por estar aqui, vendo o sol nascer e sentindo ainda as pulsações de meu coração. Vou vivendo enquanto puder, achando até graça pelo esforço inútil daqueles que pensam que alguma coisa material foi feita para sempre. Tudo isso passará, não só a Natureza, mas também tudo o que nela vive e existe.
A Terra passará, as galáxias desaparecerão e outras coisas, outros mundos, outros seres surgirão, no rodízio eterno dos mistérios. Quando todos entenderem isso, as noites serão mais bem dormidas, os dias mais bem vividos, e até a ganância de tanta gente perderá sua intensidade desmesurada.
Olhemos, agora, o pouco de Natureza que nos sobrou e maravilhemo-nos com o progresso estonteante que nos invade. Afinal, somos pequenos deuses, feitos por um Deus maior e que… bem… é melhor tentar entender: preocupa-Se com a gente e sabe até quantos fios de cabelo tem a nossa cabeça – e que continue “sendo feita a Sua vontade, assim na Terra como nos céus”. Afinal, se as coisas tivessem de ser diferentes, certamente seriam, pois Deus, como onisciente, onipresente e poderoso, não teria criado tudo isso se não Lhe conviesse que assim fosse.

O UNIVERSO DE CADA UM
Diz lá um provérbio: “O que seria do verde se todos gostassem do amarelo?” Este anexim encerra, podemos assim dizer, o grande segredo para entendermos as pessoas e sermos por elas compreendidos. Quem de nós ainda não se deparou com pessoas que não aceitam, definitivamente, que outros pensem e ajam diferentemente delas?
Deus, quando engendrou o nosso mundo, pensou em tudo. Por incrível que pareça, em muito breve atingiremos o patamar de sete bilhões de seres humanos e mesmo assim, ou mil vezes mais, jamais haverá duas pessoas, física e mentalmente iguais.
Se atentássemos mais amiúde para esse detalhe, possivelmente seríamos mais compreensivos para com aquelas pessoas que vivem diferentemente de nós. Houve um tempo em que, como produto do meio, também eu acreditava nas chamas do inferno para aqueles que não eram católicos; aqueles que se suicidavam; aqueles que matavam…. Nunca houve alguém que me chamasse a atenção para o detalhe da genética usada na criação de cada ser humano.
Os homens vivem tentando copiar as coisas que Deus deixou. A partir do funcionamento de nosso organismo, engenharam as máquinas; observando nosso cérebro, os computadores. E apesar de medíocres aos olhos de Deus, os inventos modernos bem nos dão a ideia de perfeição com que fomos criados, pois ainda que rudimentares e sofríveis, ficamos maravilhados diante deles.
Vejam como os computadores são programados e tentem realizar algum trabalho fora de seus programas. Não é por outra razão que hoje, não só não condeno ninguém, como ainda os entendo melhor. É extremamente difícil navegar em alto mar numa bacia de lavar os pés e, simplesmente impossível, executar a mesma tarefa com um trem de ferro. É que cada uma dessas coisas foi feita para outro tipo de utilização.
Apesar de não entender de genética e muito menos de suas variações, sei que nossas inclinações, nossa vocação, nosso jeito ou não para determinadas tarefas ou profissões, vem sem nossa escolha ou opção, embutido misteriosamente no dia em que nos geraram. Ora, que reclamar da máquina que foi construída para correr em cima de trilhos, se insistirmos que voe?
Sei que há também algo mais em nosso âmago (a força de vontade, por exemplo) capaz de, ao menos, refrear as más opções genéticas de nossa criação, mas que, também, em muito desobriga o portador de uma prestação de conta mais rigorosa. O bom senso, a sensatez, a paciência…, funcionam como freio a um carro criado para alta velocidade e que, nem sempre, trafega por rodovias compatíveis.
Já tantas vezes afirmei minha crença nos sobressaltos do além, onde certamente nos surpreenderemos com capetas no céu e santos no inferno. Por mais que tentemos, jamais será possível um julgamento justo a nossos semelhantes. As razões que levam determinadas pessoas a cometer crimes ou atos de bravura, só Deus as conhece e pode entender.
Somos um universo singular, mais complexo e inexplicável que as longínquas galáxias do infinito. Ninguém, aqui neste mundo, tem condição de julgar seu semelhante. Se o fizer, certamente será réu de mau juízo. Temos por obrigação reconhecer isto, aceitando o nosso irmão como ele é, na certeza de que, também nós, somos vistos por ele sob o mesmo prisma com que o enxergamos.
Saber ou descobrir o autor de um crime ou de qualquer outro malfeito, é bastante possível; difícil mesmo é absorver e aceitar as razões que o levaram a tal desvario.

PARA SER O MELHOR
Quando lemos a biografia de Rui Barbosa, Machado de Assis… Quando vemos pela televisão as jogadas criativas e incríveis levadas a efeito por Pelé, Garrincha… Quando nos falam da vida de Chico Xavier, da irmã Dulce, de Antônio F. Lisboa… Quando, depois de tanto tempo ainda se derramam lágrimas pela morte do maior piloto de Fórmula 1 que o mundo já conheceu… Quando ficamos orgulhosos por nossas celebridades maiores, imaginamos que foi a graça de Deus que os fez sobrepujar outros tantos competidores.
Também acredito que sem a anuência de Deus, sem Seu veredicto proclamado nos céus no dia da geração da vida, nenhuma criatura chegaria a se destacar entre os milhões de concorrentes que existem em cada ramificação dos esportes, da cultura, da música, dos inventos, das artes e de tudo quanto o homem se digne realizar.
No entanto, jamais (e se apontarem um, é falso) houve um maior, um melhor, pela simples graça de Deus. Não é que Deus seja incapaz de fazer de um preguiçoso, um campeão. A verdade é que, embutida no contrato, vem a cláusula que exige a nossa força de vontade, a nossa coragem e a nossa determinação, tão necessárias quanto a graça de Deus. Como testemunhas temos grandes homens que desempenharam missões que embasbacaram o mundo, e que foram escolhidos entre pessoas simples, humildes e até deficientes.
Ninguém nasce sabendo tudo. É muito abrangente o provérbio que diz que o espinho nasce com a ponta. Deus dá a inteligência, mas não o conhecimento; dá a ginga, mas não os passos; dá os músculos sadios, mas não a velocidade e a força; dá o raciocínio rápido, mas não resolve os problemas; dá o caniço, mas não o peixe; dá a vocação, o tino, o dom, a perspicácia: dá o diamante bruto, mas não o burila para que brilhe por si.
É indispensável nosso consentimento e participação a cada minuto de nossas vidas, para que o dom de Deus atinja sua plenitude e o homem venha a ser o melhor em sua atividade. Isto custa muito esforço, horas de sono, anos de dedicação, abstinências, mortificações, estudos, disciplina, enfim, uma série completa de virtudes, tão custosas quanto a glória a que equivale: a de ser o melhor naquilo que faz, entre mil, milhões ou até bilhões de concorrentes – se enquadrarmos o homem no contexto mundial.
Durante os meus “muitos poucos anos”, conheci milhares de pessoas, tanto nos esportes como nas artes e no trabalho. Vi, no futebol, muitos Pelés serem Zés Pretinho; muitos Ruis Barbosa gritando pelas ruas: “Olha o jornal!”…; muitos Robertos Carlos, fazendo serestas, embriagados pelas ruelas escuras de minha vila; muitos grandes homens relegados ao anonimato por causa da pusilanimidade.
Eu notava neles a grande facilidade de tocar na bola, de dar o drible; de escreverem uma lauda inteira e bem escrita, sem erguer a caneta do papel; de cantarem músicas de improviso, quase sem tropeço algum. Era fácil perceber que haviam nascido (cada um, respectivamente) com o dom para jogar futebol, ser escritor ou um exímio cantor. A graça de Deus era quase palpável, mas o desleixo, a preguiça, a falta de coragem e de força de vontade, transformaram-nos em mortais comuns.
Em rodas de amigos, hoje, depois de tantos anos, lembramos deles com pesar, pois seriam grandes e imortais homens, orgulho da terra, não fosse a cachaça, as drogas, a vida airada e o pouco caso para com a graça de Deus.
Quem tem algum conhecimento da história, percebe que, quando está escrito nos fastos do Eterno, só nossa preguiça pode impedir que a graça de Deus realize em nós, maravilhas. Por isso a Irmã Dulce, talvez a mais pobre e debilitada das baianas, propiciou mais bem-estar e conforto aos pobres e necessitados de Salvador, do que muitos milionários do mundo inteiro. Ela recebeu a semente, plantou-a, irrigou-a, cuidou dela e colheu seus frutos.
Qualquer um, quando tem vocação, pode se destacar. Não é preciso ser rico, ter patrocinadores…, é necessário apenas querer e lutar. Não é por menos que temos grandes pintores sem os braços; grandes altruístas, extremamente doentes e pobres; grandes campeões vindos dos guetos e das favelas; grandes alpinistas, totalmente cegos; grandes homens em todo o mundo, passado e presente, que nos estontearam e estonteiam pela capacidade incrível de superar todas as dificuldades. O homem pode falhar com Deus, mas Ele jamais com os homens.
Gostaria muito que os adolescentes lessem e acreditassem nisso. Há entre eles, certamente, muitos Shakespeares, Einsteins, Freuds, Moisés, Spencers, Cíceros, Platões, Demóstenes, Da Vincis, Zicos, Ayrtons Senna, em suma, grandes cientistas, atletas, inventores, sábios, cirurgiões, artistas, atores…, anônimos portadores de dons presenteados por Deus e que vivem despercebidos entre nós por causa pusilanimidade.
Não duvidem: quem quer uma coisa possível e honesta, e luta por ela, consegue. Quando se almeja algo assim, temos o aval de Deus, e com Ele, sem restrições, se fizermos a nossa parte, as coisas acontecem.

AS RENEGADAS
Ali na Rua Pernambuco, entre o aparecimento temeroso do sol e a lama de março provocada pelas chuvas de nosso inverno, uma senhora famélica, tendo nos braços uma criança de seus dois anos, pedia um prato de comida. A dona da casa entreabriu a porta, conversou com a maltrapilha, voltando em seguida para a cozinha. Pela fresta deixada via-se um aparelho de televisão ligado num dos noticiários do meio-dia:
“Pelo oitavo dia consecutivo não há quórum no Congresso. Milhões são pagos a parlamentares que não comparecem…”
A mãe, cansada, põe a criança no chão. A menina logo começa a esfregar o naco de pão seco na calçada para em seguida levá-lo à boca.
“Novo escândalo na Previdência: milhões de dólares são desviados enquanto os doentes morrem por falta de assistência…”
A mãe, recostada no muro quente e úmido, estende a mão a um transeunte. O noticiário continua:
“Deputados legislam em causa própria e aprovam salários exorbitantes, enquanto se nega ao trabalhador a recuperação das perdas salariais…”
Um vendedor de frutas passa, olha a miséria que cerca aquela mulher e aquela criança, compadece-se, despenca duas bananas e as oferece. A mulher, olhar sem brilho, olhar de filha abandonada por sua própria mãe Pátria, apanha as frutas. Descasca uma e divide com a filha que continua a esfregar o pão no chão imundo e a metê-lo na boca.
“A Justiça, última instância de esperança para coibir a corrupção desenfreada, alia-se ao poder deixando o povo humilde totalmente órfão…”
Mãe e filha continuam ali na calçada, esperando que a mulher caridosa retorne com o prato de comida.
“A comissão parlamentar impede o andamento do processo porque há filhos dos mesmos envolvidos na acusação…”
A mulher caridosa não vem. Ela descasca a outra banana, torna a dividir com a filha e permanece paciente. Não há pressa além da fome, não tem onde chegar. O noticiário continua, agora, com os últimos acontecimentos locais, notícias da cidade que a viu nascer, que já lhe deu emprego, que já a fez feliz um dia.
“Um delegado da Polícia Federal apresenta provas de corrupção e desvios de verba na Prefeitura. Milhões foram roubados da merenda escolar e usados em causa própria enquanto as crianças choram de fome e a educação não se faz…”
Mesmo em sua santa ingenuidade, a maltrapilha imagina estarem falando dela. Mas o que falavam? Era coisa boa ou ruim?
“Embora seja inacreditável, aqueles que sempre acusaram o ex-prefeito de pistoleiro e ladrão, agora, em busca de votos, aliam-se a ele e sufocam os movimentos em prol da moralização e da ética. Misteriosa ordem judicial impede que as contas dele sejam verificadas…”
Passa um velhinho bem arrumado, olhar bondoso. Ela arrisca pedir. Ele para, mete a mão no bolso e lhe passa algumas moedas. Ela toma coragem:
– Que horas são?
– Duas da tarde – respondeu o homem.
Ela olhou para dentro da casa: ninguém, nenhum movimento. Agachou-se, tomou a filha nos braços mirrados, olhou para um lado, para outro, atravessou a rua e foi seguindo para qualquer lugar.
Às quinze horas, a mulher bondosa lembrou-se das maltrapilhas e veio com o prato de comida. No lugar, apenas, duas cascas de banana.
Aquela mulher e aquela criança nunca irão entender porque a PÁTRIA MÃE faz tanta diferença entre seus próprios filhos. Não entenderão nunca porque há gente que precisa se vestir de seda e outros andarem nus; porque uns precisam de bons colégios e outros não têm o direito de estudar; porque uns moram em palácios e outros são enxotados das marquises; porque alguns se estabelecem o salário e as imunidades e outros não têm o direito, sequer, de reclamar: NÃO SABERÃO JAMAIS QUE NASCERAM NUM PAÍS CUJAS LEIS NÃO PASSAM DE LIXO DA PIOR ESPÉCIE.

 

O SONHO DE UMA CRIANÇA
Quando abri a porta não poderia imaginar, senão, que mais uma vítima do descaso social estivesse ali, pedindo a caridade de trapos ou comida. Não era.
Uma criatura de seus quatorze anos, uma criança, mocinha talvez, pobre e esquálida, queria falar-me. Do lado de fora do muro, mais três coleguinhas esperavam. Pedi que as chamasse. Um tanto envergonhadas elas se negaram, alegando que a que estava comigo diria tudo.
– Sente-se – disse-lhe com a maior afabilidade possível.
Ela obedeceu. Apesar de pobre e humilde, era bonita, era criança. Há – como nos botões das roseiras – uma beleza indefinível nas crianças. Para mim, todas as crianças do mundo são bonitas. A falta de maldade premeditada, a força da vida e o brilho dos olhos não me permitem vê-las de outra maneira.
– O que deseja, ou o que desejam, afinal?
– Elas só vieram me fazer companhia. Não se lembra mais de nós? Já estivemos aqui antes.
Lembrei-me, então, que certa vez as havia flagrado revolvendo lixo e recolhendo pedaços de velhos brinquedos, atrás do muro de minha casa.
– Lembro-me agora – respondi com um aperto no peito, como se meu coração tivesse recebido a contragosto, aquela recordação de curto passado. Nós não gostamos quando somos chamados à atenção pelos descasos que praticamos: preferimos, antes, tentar esquecer o mais rápido possível. Deus, porém, é incansável em nos alertar, mostrando em cada dia, em cada esquina, em cada favela, o quanto há de sofrimento e o quanto poderíamos diminuí-lo.
– Estou precisando de sua ajuda.
– E acha que posso ajudá-la?
– Acho sim. O senhor só pode.
– Então, diga.
– Estou com vergonha. Mal conheço o senhor e já venho pedir favor.
– Eu vou entender – respondi, com a intenção de forçá-la a dizer logo o que pretendia.
Percebendo que, possivelmente, eu estivesse procurando me esquivar, ela gaguejou logo:
– Sabe…, bem…, eu estou precisando de dinheiro. É pouco, não é muito não. Comprei um objeto a prestação…, bem, na época eu estava empregada e achei que podia pagar.
– Agora está, pelo que me parece, desempregada.
– É isso. O patrão me mandou embora.
Sentindo que estava mentindo, mas vendo nela uma criança com sonhos do tamanho de sua ingenuidade, tentei ajudar:
– De quanto precisa?
– Trinta reais.
– E ganhava isto por mês?
– Não. Fui para lá sem combinar nada. No fim do mês ele só me pagou dez reais. Quando disse que era pouco, ele insinuou que só havia um jeito de aumentar meu salário.
– Entendo, entendo – entrecortei a conversa, percebendo que, mesmo sendo ainda uma criança, o germe da malícia já a havia infectado. Por isto, fui conciso mais uma vez:
– E você aceitou?
– Não, mas agora estou arrependida. Meu pai irá esfolar-me se o cobrador for lá em casa.
Conversamos ainda um bom bocado de tempo, quando já não sabendo como continuar com a mentira, ela abriu o jogo:
– Nunca trabalhei e nem devo nada a ninguém. É que vai haver uma festa lá no meu bairro e fui escolhida para rainha. Só que a melhor roupa que tenho é esta e mesmo assim, não serve. Oh, meu Deus, eu queria tanto participar! É um sonho! O senhor já teve sonhos?
– Muitos! …
– Pois é, é um sonho.
Olhei-a bem: uma criança, uma adolescente, sonhando com um vestido rendado e sendo a rainha de seu bairro. Sonho de criança pobre – o sonho, talvez, mais importante de sua vida. Eu ainda estava absorvido por esses pensamentos, quando ela, talvez me imaginando indeciso, tentou encorajar-me:
– Eu faço qualquer coisa para lhe pagar. Pode pedir que eu faço, juro.
– Por favor, não diga mais nada. Reze apenas para que Deus, sempre que lhe permitir sonhar, a enderece bem.
– Não entendi.
– Eu sei, mas Deus, com certeza, fará você entender um dia.
Quando fecharam o portão, curiosamente, olhei por cima do muro. Vi pequenas saias esvoaçando. A felicidade parecia ser tocável naquela menina. E então, voltei pensativo para debaixo das mangueiras, imaginando que, até mesmo o dinheiro, essa coisa suja que faz matar, roubar, espezinhar, empedernir corações, que é a causa principal de toda desgraça que assola o mundo, pode, também, fazer a felicidade de uma criança.

DUPLO ASSASSINATO
Paráfrase ao diário de uma criança.
Na rústica sala de aula, quarenta pares de olhinhos me fitavam curiosos. Eu devia participar de um debate sobre um dos meus livros. Embora raramente, alguns colégios solicitam isto quando lanço alguma obra.
Entre as estudantes, chamou-me a atenção uma adolescente gorduchinha, quieta e triste em seu canto. A angústia que emanava de seu olhar perdido e distante, parecia palpável. Ela era alguém que olhava sem enxergar; alguém que retinha para si, o mistério de estar morta em vida. Quando o debate terminou, esgueirando-se assustada, ela veio correndo até meu carro que já saía.
– O senhor se importaria de ler meu diário?
Embora surpreso, tentei ser o mais natural possível:
– Posso fazê-lo com muito prazer, se é o que deseja.

Era um velho caderno sem capa, iniciado em agosto de 1988. Em cada página havia uma confissão de angústia, de dor e de tristeza.
“Resolvi escrever este caderno porque não tenho amigos… Meus momentos são uma eternidade escura… A solidão de nove meses no ventre de minha mãe ainda continua comigo… Ah, se eu pudesse ser sempre uma criança! … Pai, por que deixou que lhe matassem? Um dia, estou certa, encontrarei o senhor outra vez e juntos riremos de minha solidão… A tristeza invade-me de repente… É complicado, eu não consigo entender… Meus olhos ainda têm brilho, mas é um brilho medroso, reflexo de minha angústia… Sou, nesse circo da vida, um palhaço sem graça: sou a tristeza mais triste que existe… Minha solidão, nem um mundo de gente afasta… Meu Deus!, minha única esperança!…”
E por fim:
“Um dia conheci uma criança. Era linda, gorducha, cheia de vida. Tinha pai e mãe e os amava. Tudo era lindo. Um simples gesto, um simples toque a encantava e fazia sorrir. Não conhecia a dor, nem a tristeza, nem a amargura. Tudo era uma linda e real fantasia. A criança tinha nove anos e só conhecia a pureza, o amor e a amizade verdadeira.
Dois anos depois seu mundo de sonhos se desmoronou: uma tragédia se abateu sobre sua cabecinha infantil e sonhadora, incapaz de entender a crueldade humana. Alguém sem alma, de maneira brutal, matou o homem que ela mais amava: seu pai. Aquele homem era seu mundo de fantasias, sua felicidade, seu herói. Ele a havia gerado e durante onze anos lhe dado carinho, proteção e amor. Como foram curtos aqueles anos! Quanta coisa para dizer, quantos abraços a serem trocados, quantos beijinhos nas bochechas ainda poderia ter recebido! …
Se alguém selvagem e desumano não tivesse apertado o gatilho, ela hoje não conheceria a dor, a fome, a tristeza de uma lágrima, o sofrimento da solidão. E aquela criança que fora doce e meiga, cheia de sonhos e de felicidade, naquele exato momento do disparo, embora longe, fora atingida em cheio, morrendo também.
O tempo passou, a vida continuou pra muitos. Aquela criança, de um momento para outro se viu obrigada a trocar a pureza de seus sonhos, pela malícia da sobrevivência. Sua infância ficou no passado. A fome, o frio e a angústia tornaram-se seus companheiros de infortúnio. Depois que lhe destruíram os sonhos ela se fechou em seu próprio mundo de dor. Tenho muita pena dessa criança que assassinaram tão cedo, mesmo porque esta criança sou eu.”
Sinceramente, fosse eu um assassino, pensaria muito, antes de apertar o gatilho contra o pai de uma criança!

ÁGUAS PASSADAS
Hoje estou com saudade, muita saudade de meus idos de criança. Agora percebo, como cantou Ataulfo Alves, que eu era feliz e não sabia. Tempo que nunca mais terei de volta!
Quantos adultos hoje não passam horas perscrutando o céu – olhando sem ver nada – procurando, na retrospectiva, um tempo em que foi feliz! Não encontra – hoje entendo – felicidade completa e permanente neste mundo não existe. Acho que é por isso que só a encontramos em Deus, no sossego e na paz de nossa consciência.
A gente passava seis dias da semana sonhando com o domingo. Nele sempre estava previsto algum lazer sem maldade. É exatamente aquela pureza que havia que hoje me dá saudades. Toda preocupação era com a bola de borracha, varas de pescar, câmaras infláveis e, principalmente, com a comida, que generalizávamos de farofão.
Lotávamos um velho Chevrolet e saíamos para um canto qualquer do município, ora para o futebol, ora para um convescote à beira de um rio ou riacho, ora para uma pescaria ou caçada… e todos – hoje posso afirmar – só pensavam em se divertir. Agora, o mundo em que vivo evoluiu muito, mas temo que para pior. A maioria anda apressada, parece afoita na ideia fixa de posses sem limites. Daí aos descaminhos que geram todo tipo de injustiça social e de impudicícia, é um pulo.
Ah, aqueles tempos, que saudade deles! Saudade do Capirda, do Neno, da Zenaide, do Nego… O Nego! …. Foi a amizade mais pura e duradoura de meus tempos de criança. Dócil, servil, amigo. Onde estará neste momento? Cresceu, casou-se, venceu na vida, ainda vive? Para ser sincero, enquanto os cientistas perdem o tempo organizando teses para explicar o aparecimento do Universo, eu o perco imaginando por aonde andam os meus amiguinhos de infância.
E o Pão-Tatu? É…., desse não guardo boas recordações! Era o pesadelo de nossa terceira-série. Quantas vezes ouriçou meus cabelos empastados de gomex: uma brilhantina que depois apelidaram, acredito, de laquê. O diabo é que uma vez encrespados, ninguém ajeitava mais. Eu ficava parecendo um autêntico anu-branco. Com o Pão-Tatu aprendi que ódio não mata ninguém.
O certo é que naquele tempo a gente era feliz e encontrava prazer mesmo fora do sexo. Em cima de uma carroceria de um velho caminhão, a moçada cantava, ria, brincava… A vila era pequena mas dava para ser feliz. Ah, como dava! …
O meu torrãozinho natal não passava de dezoito alqueires de erra, mas se felicidade possuísse fórmula, eu diria que era feita de um galo carijó de nome Sabuco; de um gato pedrês chamado Romeu; de uma gaiola de imbaúba com um gaturamo-da-serra dentro; de um cavalo-de-pau feito com haste de assa-peixe; de uma “seta” (estilingue) com gancho de jataí; de bolinhas-de-gude coloridas e de uma bola de tênis, presenteada como de borracha: na época nem sabíamos o que era tênis.
Para sentir esta graça é preciso não saber o que é vaidade, ter o nariz pelado de muito sol, usar calças com suspensórios, levar a tiracolo um embornal de pelotas de “batinga”, rezar ave-marias apressadas e xingar, xingar muito quando o dedo sem unha esbarrar num calhau ressequido. É, para ser feliz, de fato, é preciso ser criança. Que saudade! …

O ESPELHO E A FLOR
Quando o dia amanheceu, a flor havia desabrochado. Um dia antes era um botão enroscado em si mesmo, sem expressividade alguma. Um chuvisco intermitente acumulara pequenas gotas cristalinas em suas pétalas. As gotículas, como se fossem crianças travessas, agarravam-se em suas bordas, e ao receberem a incidência amena do sol da manhã, refratavam estrelas miúdas que caíam como lágrimas de fogos de artifício.
Aproximei-me maravilhado: jamais me acostumarei com a beleza das flores! Em cada uma que admiro vejo algo diferente, como se os céus, fazendo das roseiras seu correio, estivessem nos enviando sortidos e policromáticos cartões de felicidade.
Agachei-me. Puxa! Era bonita e perfeita demais! Teriam: Da Vinci, Botticelli, Michelangelo, Portinari…, absorvido a técnica de reproduzir, fielmente, uma flor? Teriam conseguido, na química daquele tempo, um jogo de cores que a elas se assemelhasse?
Uma abelha que passava não se furtou à tentação: pousou sobre ela desfilando como se fosse uma rainha; a borboleta amarela sobrevoou, esperando pacientemente por sua vez. Depois, também pousou, tateou-a apaixonadamente, abanando-a com suas asas singelas. Quantas flores estariam desabrochando naquela manhã, sem que a sensibilidade humana percebesse! E Deus, por meio de sua obra prima, a Natureza, continua utilizando desses subterfúgios sutis para dizer que nos ama acima de todas as outras coisas que criou.
Ao sair daquele êxtase quase místico, já sentia as pernas dormentes por causa da posição de cócoras em que me encontrava. Afastei-me cautelosamente a fim de não atrapalhar o prazer da borboleta amarela que passeava com suas minúsculas antenas clavadas por sobre as folhas modificadas e coloridas.
Quando voltei do trabalho, já era noite. No outro dia saí cedo pela porta da sala e também não fui ver a flor que parecia ter vindo para dizer-me alguma coisa. Ao meio-dia quando retornei para almoçar, lembrei-me dela. Já não era manhã, já não havia aquela garoa de boas-vindas para ela que nascera. O sol queimava, ardia, fazia ondas de calor em tudo que se olhasse. Mesmo assim fui visitá-la, sempre com aquela imagem bonita que me ficara do dia anterior: imagem alegre e fresca de tudo logo que nasce.
Que decepção! … Pétalas caídas, folhas sem frescor, murchas, envelhecidas… envelhecidas sim, porque até os segundos podem, às vezes, ser longevos. Olhei-a penalizado. Nem a abelha, nem a borboleta…, nem um besouro desastrado assistia à sua desdita. Gostaria de refazê-la, torná-la bela e perfumada outra vez, mas fui obrigado a afastar-me frustrado por causa de minha impotência diante do irreversível.
Ao chegar em casa, o almoço estava sendo servido. Fui ao banheiro lavar as mãos. Na frente, um grande espelho. Ali, durante tantos anos, aquele espelho estivera em minha frente, mostrando meu declínio, avisando-me que o calor abrasante dos infortúnios estavam me destruindo e que eu devia atentar para o fato. No entanto, eu insistia em não querer observar.
Aproximei bem meu rosto e percebi que a manhã orvalhada havia passado e que o sol do tempo jogara por terra grande parte do frescor de minha existência. Percebi que também nós somos como os cartões de felicidade que os anjos nos enviam por meio das roseiras: enroscamo-nos como os botões, no feto; desabrochamos no parto; murchamos com os sofrimentos e desaparecemos queimados pelo sol impiedoso do tempo.

VENDO ESTRELAS
Era uma vez um homem que gostava da Natureza. Embora morasse numa cidade do Maranhão, sempre, nas oportunidades, deslocava-se para sua modesta fazenda no estado do Pará. Todas as noites ele saía para o terreiro e ficava escutando os sons noturnos e olhando o infinito estrelejado. Lá, como costumava dizer, era possível ouvir o barulho do próprio silêncio. Miríades de pontinhos brilhantes ornamentavam a galáxia: planetas, estrelas, satélites, meteoros errantes…
O céu, por causa das chuvas rigorosas do inverno que apenas se fora, parecia-lhe lavado e enxaguado, tal a nitidez cintilante dos pontinhos luminosos do firmamento. Até o Caminho de Santiago mostrava, a olho nu, suas sinuosidades luminosas.
Por hora inteira aquela imensidão e aquele silêncio entranhavam nele, questionando a razão de sua estada ali, naquele lugar e naquele momento. Quando estes pensamentos acorriam, ele recostava a cabeça no tronco da ingazeira e ficava cismando. As perguntas avassalavam-no, atropelavam-no, todas afoitas à cata de respostas que ele jamais encontrara.
Milhões de pontinhos pisca-piscavam no infinito. Ele sabia que todos eram estrelas maiores que a Terra. Imaginava também que cada uma – como nosso sol – bem podia possuir planetas, e neles, outros tipos de vida. Mas tudo se tornava parecido quando os imaginava pendurados no nada, perdidos na imensidão, sem rumo, sem garantias, inteiramente ao bel prazer de uma rota sem destino.
Dentro de cada mundo – imaginariamente com vida – seres sem certeza do futuro viveriam também um presente de egoísmo, de ganância e de violência?
Seus pensamentos retornavam à terra, seu lar. Naquela liberdade de raciocínio, lembrava os pensadores, as religiões…, os tantos que pregaram suas ideias, imaginando-as verdadeiras. Os materialistas afirmando que tudo se deu por acaso; os espiritualistas asseverando que um Ser Superior foi o autor de tudo quanto existe. Quem está com a razão, se ambas as partes que afirmam são formadas de seres humanos? Balançava a cabeça numa vã tentativa de espantar tais pensamentos. Eles sempre o atenazaram como sádicos inquisidores.
No mundo das milhões de probabilidades, não achava impossível a vida ter surgido por acaso, mas daí a acreditar que o acaso tenha criado machos e fêmeas nas trilhões de espécies, não conseguia entender, nem admitir. Concluía, então, que a existência de Deus era fato consumado. Rememorava Sua exortação lembrando que Seu reino não era desta Terra: afirmação das mais importantes do Evangelho e, também, das mais consideradas pela maior parte dos políticos e homens ambiciosos da Terra: se não é de Deus, bem pode ser deles.
Olhava para dentro de si: mais de a metade da vida vivida, com quase nada realizado. Dia após dia pensando na sobrevivência, preocupando-se com o amanhã… bem…, sendo mais um idiota entre os tantos que se imaginam fisicamente eternos.
Sentia inveja dos tauistas quando lembravam que é melhor parar um pouco antes de atingir o limite; de que não se deve afiar demais a lâmina, pois se cegará mais rapidamente; de que quem ajunta muito não se livrará dos ladrões; de que também aos colecionadores de riquezas e títulos, a morte é uma indesejada realidade.
Cabisbaixo, “tão certo como aqueles que duvidam”, ele voltava à sua rede. Ali ainda se pode dormir com as janelas abertas sem o perigo de ser assaltado ou roubado por ladrões. Por elas ele via o firmamento límpido e estrelado. Assim dormia. Dormia e sonhava com um povo fraterno, cada um estendendo a mão para o seu próximo, na expectativa de que, no voo perdido de seu mundo pelo infinito, cada um pudesse ser a esperança e o amparo do outro.
Parecia-lhe que cada um vivia o drama dos perdidos no deserto, nas florestas, nos altos-mares… e que só restava, como esperança, a solidariedade e a incerteza do dia seguinte.      Quando acordava pela manhã, era-lhe estranho ver funcionários afobados, apressados, cada um se dirigindo às pressas para o trabalho. Só então percebia que havia dormido muito e sonhado demais. Tudo continuava do mesmo jeito.

“OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO…”
Caminhávamos por uma vereda da floresta, quando percebi um cipó qualquer que estendia um verdadeiro ramalhete de flores ao lado da nossa trajetória. Foi como se eu visse – na direção em que caminhava – anjos de Deus dizendo: “Este presente de Deus é para você!”
– Olha – disse para meu companheiro, apontando com o indicador – vê que maravilha da Natureza!
– Maravilha? – Limitou-se a perguntar como se não tivesse visto aquele buquê multicolorido que se estendia em cachos até nossos pés.
– Não significa nada para você? – Insisti surpreso.
– As flores? Ora, isso é tão comum! E dizendo isto foi passando por cima, esmagando com as botas, muitas delas.
Se Deus fosse passível de erros, eu diria que tinha falhado quanto a sensibilidade de muita gente, pois a mim me parece impossível passar desapercebido por uma flor, um regato cristalino, sem ater-me extasiado diante da beleza que encerram.
As borboletas amarelas, brancas e azuis que se agrupam em torno de uma poça d’água como se fossem átomos gigantes em constantes circunvoluções; os tangarás que dançam e gorjeiam à sombra de um bosque; o firmamento que nos cobre com seu lençol de estrelas; os vaga-lumes que cruzam a escuridão da noite com suas lanterninhas acesas; os oceanos, os mares, lagos e rios, com seus peixes e seus mistérios, suas florestas submarinas; as montanhas geladas; as dunas ambulantes; as nuvens, o azul do infinito, o pôr-do-sol, o sol que nasce, a lua que desponta; a águia que plana; a mais bela mulher que desfila; a criança que reza de mãos-postas na cabeceira da cama… Meu Deus, quanta beleza, quanta cor, quanta maravilha!…
Tanta coisa para ser admirada e agradecida e nós, como filhos desajuizados que recebem dos pais finos e quebradiços cristais, quase tudo degradamos. Caminhamos, pisamos, destruímos tudo o que, apesar de belo e sagrado, não nos torna rico e poderoso.
Sabe, eu gosto de pássaros! Crio centenas deles numa área aberta de dez alqueires. Sairinhas coloridas, bombeirinhos, curiós, bigodinhos, pipiras, pintassilgos, corrupiões, inhapins, curicas, pombinhas…, e mais para o lado da mata, araras, ararajubas, gaviões-vigia, pararis, tucanos, jacus, enfim, centenas de aves de pequeno e de grande porte que se apresentam todas as manhãs como se fossem um coral de anjos alados a receber o nosso Astro Rei.
Quando eu os criava em cativeiro, sempre tinha a visita de ratos. Pela manhã era comum eu encontrar meus passarinhos coloridos (cores que Picasso morreu invejando) estirados e amarfanhados pelo chão. Os belos trinados que Beethoven invejou e a graciosidade que as mais célebres modelos ainda tentam imitar, eram silenciados e desfeitos, brutalmente, pela avidez dos roedores.
Somos – imagino – ratos invasores do viveiro de Deus. Maus inquilinos que sujam e degradam a casa alugada. Os ratos, no entanto, não estariam devorando meus pássaros se eu não tivesse antes ocupado seus nichos; meus pássaros não estariam à mercê de tais vândalos, se estivessem em liberdade, com todo espaço para voar e se proteger.
Por isso, somos piores que os ratos, pois construímos nossos próprios males, sujamos e destruímos nossa própria casa. Como devia ser lindo este planeta antes da interferência do homem! Como ainda tem coisas lindas este nosso mundo! Para alguns olhos, ainda existem regatos cristalinos, flores e pássaros policromáticos e avisos constantes de que nossa ganância e nosso afã de tudo querer, não passa de ação insensata.
Este mundo é grande, bonito, e dá, sobejamente, para todos os viventes. Sugiro que, ao despertar, cada um olhe pela fresta da janela e contemple a beleza deslumbrante de nosso planeta: as borboletas, os passarinhos, as flores, o sol que desponta, a baleia que esguicha, a lua cheia em seu esplendor, o grilo que saltita, a azulona que chororoca na encosta, o colibri que suga o néctar num beijo de adolescente apaixonado, …
Escute com atenção e ouça uma vez por todas, a voz que ainda ressoa: “Olhai as aves do céu que não semeiam nem segam, nem fazem provimentos nos celeiros e, contudo, nosso pai celestial as sustenta; olhai os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam, no entanto nem Salomão em toda sua glória se cobriu jamais como um desses.”
Para que tanto corre-corre, tanta preocupação, se somos apenas uma diminuta parte desta conjuntura? Neste viveiro de Deus, sejamos como quase todo reino animal: saltitemos e cantemos a alegria de termos nascidos, dia-a-dia, vivendo cada minuto fosse o último – e esqueçamos o temor de que ser feliz é pecado.
Você que só pensa em acumular, pare um pouco, pense: ainda é tempo. Entenda a vida de uma vez, volte para ela e “deixe que os mortos enterrem seus mortos”.

A ROSA VERMELHA
Seis de outubro de 1994.
Um funcionário amigo e eu vínhamos conversando sobre a vida e seus mistérios quando percebemos um aglomerado de gente no meio do asfalto da BR 010.
– Ali aconteceu alguma coisa anormal – logo lembrou o amigo.
– Certamente, um acidente grave – arrisquei.
Encostamos o carro e fomos averiguar. Do lado esquerdo, um amontoado de latas corrugadas do que tinha sido, até bem pouco tempo atrás, um Santana cinza-metálico. Não posso afirmar se era novo ou de luxo: fora reduzido a sucata inqualificável, qualquer coisa com menos de meio metro de altura.
A cinquenta metros dali, do lado direito, um Mercedes Benz, sem as rodas e eixo dianteiro, colado ao barranco, atestava a violência do impacto. Gente acotovelava-se, perguntava, imaginava, criava hipóteses. Esgueirando-me, encostei no monte de latas amassadas. No asfalto, manchas de sangue, pedaços de gente, restos de tudo. Nada parecia inteiro, nem os mais compactos blocos de ferro maciço.
Eu que já vinha cismando sobre a vida e seus mistérios, entreguei-me ainda mais às conjecturas. Olhando bem aqueles destroços, vi, entre as ferragens, uma fita cassete quebrada e uma rosa vermelha que, apesar de tênue, ainda permanecia no meio das ruínas, com suas pétalas no lugar. Estava tão perfeita e saudável no meio do sangue coagulado que parecia estar vivendo sua primeira manhã orvalhada.
Quem estaria dentro daquele Santana? Pensando o quê? Quais eram seus planos? Por que foi tentar a ultrapassagem exatamente numa lombada? Por que tanta pressa? Aonde teria, impreterivelmente, de chegar? Que compromissos seriam tão inadiáveis a ponto de justificar tamanha imprudência? Era homem, mulher, adolescente? De quem ganhara ou para quem levava aquela linda rosa vermelha? Parecendo inconformada, a rosa resistira misteriosamente. Afigurava-se mensageira de uma enigmática e inadiável mensagem.
E enquanto as suposições revoluteavam em minha cabeça, eu continuava pensando na vida, confirmando cada vez mais a filosofia de que a coisa mais importante é viver dignamente sem se preocupar tanto com os negócios, com a riqueza e com o futuro. A pressa que ceifa a vida de quem dirige transforma-se, um dia, em sossego e paciência eternos de quem a usa indefinidamente.
É prudente trabalhar durante os dias úteis e descansar, se possível, todas as noites. Usar os dias santificados para pedir novas graças e agradecer a Deus as recebidas. É bom e justo usar os feriados para se divertir e aliviar as tensões. É sensato juntar apenas o necessário, para que Deus não nos cobre, mais tarde, a parte tirada dos outros irmãos. É de justiça dividir o que nos sobra, mesmo porque jamais iremos conseguir dormir em duas camas ao mesmo tempo. Os seres humanos são uma grande família; somos todos irmãos e o mundo é a nossa casa. Direta ou indiretamente, tudo o que nos sobra, falta a alguém.
Estou certo que concordam com isso, mas, praticam? A maioria tem uma coisa na boca e outra no coração, porque o que vemos a cada dia é o fortalecimento do império da ganância.
Ali, naquele acidente, a coisa mais sensível e singela, mais frágil e delicada – a rosa vermelha – apesar da brutalidade do impacto, continuava inteira e formosa entre os destroços. Não tivera pressa, não se desesperara com o tempo. Dependente, desamparada, como se fosse uma criança perdida, ela aguardava os acontecimentos.
Quantos sonhos encerrava! Agora estava sozinha, sem as fantasias, sem as ilusões ou lembranças de quem a levava.
A um velhote taciturno, que também bisbilhotava de braços cruzados, perguntei:
– Quantos havia no carro?
– Me dissero que era uma tal de dona Helena, proprietária de uma serraria lá do Zero. Estava sozinha. Ela sempre andava com pressa. Parecia que…

Hoje, quando escrevo estas coisas, fico sabendo pelos noticiários, que acabam de assassinar o prefeito Renato Cortez Moreira. As balas cruéis do revólver assassino, eliminaram também, milhares de sonhos. Certamente, muitas rosas vermelhas o acompanharão na misteriosa caminhada. Durarão mais que o homem em si, porque a roseira de onde foram extraídas, representará em cada novo botão que fizer desabrochar, a doce saudade de seus amigos e familiares. Haverá um século em que ele será esquecido, porém, nunca, as flores vermelhas. Em cada dor, elas estarão presentes, até os últimos dias do mundo.
Por tudo isso, por essa passagem curta e da qual não levaremos nada é que defendo a filosofia do apenas necessário, sem egoísmo ou ganância. Somos mortais e amanhã, talvez, o sol não nos nasça outra vez. É estupidez imaginarmo-nos imortais aqui na Terra. Somos, certamente, mais frágeis que uma simples rosa vermelha.

FORO ÍNTIMO
Quem é você, tristeza inexplicável, que nesta manhã tão bonita me invade o coração? Quem é você que não consigo entender nem explicar? Ontem, quando o dia terminou, fui deitar-me alegre e feliz. Lembro que dormi bem só acordando às sete horas. Ao fazê-lo, senti uma angústia profunda em minha alma, uma aflição que vinha não sei de onde nem por que tomava conta de mim.
Tudo o que ontem era sonho, planos, vontade de viver e empreender, hoje é desilusão, apatia e desânimo. Venha cá, meu coração, conte-me o que aconteceu enquanto eu dormia. Que lutas empreendeu, que recordações o avassalaram, que entraves lhe puseram no caminho? Vamos lá, não fique aí amuado e triste, conte-me, desabafe.
– Está bem, vou lhe contar. Nós, os corações, não temos tranca. As portas estão sempre abertas. Nosso interior é hospitaleiro à todas as emoções que nos chegam. De fato, ontem, quando se deitou, pernoitaram aqui arautos da alegria. No entanto, antes que o dia amanhecesse, eles se foram dando lugar a outros caminheiros carregados de problemas e transtornos, viajantes estes criados por você no passado e que só agora chegaram e arriaram os alforjes aqui dentro de você.
Todas as coisas que faz no seu dia a dia, logo ou em algum tempo qualquer, acabam por aninhar-se aqui em seu âmago. Por causa dessas vicissitudes você se deitou feliz e acordou triste. As emoções que sente são meu alimento. É delas que vivo. Se me alimentar de coisas boas, nunca terei coisas ruins para oferecer, porque sou apenas um hospitaleiro, um espelho, um escravo de seu comportamento. O que me der, eu guardarei. Jamais gasto à toa. Sempre irei devolver o que me confiar a guardar, embora não possa precisar-lhe a hora.
– Não me lembro de ter querido, em tempo algum, minha infelicidade!
– Ah, como se esquece logo! Quantas vezes foi egoísta, preguiçoso, interesseiro, injusto, agressivo, ignorante? E todas as vezes que assim agiu, sem que percebesse, enviou-me esses infortúnios e eu os armazenei. Se não quiser, mais adiante, voltar a ter estas desagradáveis surpresas, cultive sempre as virtudes.
– Ser perfeito é impossível a um ser humano. Não me peça tanto!
– Não disse para ser perfeito, mas sim para cultivar as virtudes. Fazer coisas louváveis ou não, é sempre uma questão de persistência. Em tudo o que insistimos, acabamos nos viciando. Há coisa pior do que o primeiro cigarro ou a primeira dose de bebida? No entanto, são milhões seus dependentes neste momento em que falamos.
– Ah, coração, bom conselheiro e amigo! Na verdade, criamos nosso destino, agora estou convencido. Colhemos sempre o que plantamos. Você, agora sei, é um produto de meus pensamentos. Sua saúde depende de meu relacionamento e de minhas emoções. Entendo assim que posso ser feliz em qualquer situação, mesmo diante da pobreza extrema ou de qualquer conflito pessoal que possa me afligir.
– Percebo que está entendendo meu comportamento.
– Hoje me devolve os frutos da árvore que plantei há tempos atrás. Entendo você: não poderá devolver-me jabuticabas se plantei carrapicho. De agora em diante, plantarei apenas sementes de paz e concórdia, de humildade e de tudo o que possa deixar você feliz e em paz.
– Se assim o fizer, garanto que jamais deitará feliz e acordará triste, porque sou, apenas, um reservatório de suas emoções.

A ABELHA E EU
O carro deslizava pelo asfalto, mergulhando nas ondas daquele mar de mormaço que o sol a pino criara naquele dia ensolarado de outubro. Apesar do vento quente que estapeava meu rosto por causa do impacto que a velocidade do carro criava, eu percebia não haver qualquer tipo de aragem a arrefecer as plantas que se expunham ao alcance de minha visão limitada: a responsabilidade não me permitia admirar os panoramas que se descortinavam em cada curva, em cada lombada.
Sempre quando viajo sozinho, burlo a lei de que não se faz duas coisas ao mesmo tempo, pois tanto me distraio ao volante, como divago pelo mundo de minhas ilusões e de minhas dúvidas. Há muito em mim da angustiante preocupação que acompanhava Graciliano Ramos, principalmente quando me apanho desprotegido da companhia de alguém. Também eu, quando solitário, não preciso mais que uma folha seca rolando pelo chão para passar algumas horas fazendo conjecturas, às vezes, imbecis.
Foi por causa dessa inexplicável preocupação que me prendi à luta vã de uma abelha que, ao tentar atravessar a pista, entrou na boleia da camioneta que eu dirigia. Embora os vidros laterais estivessem escancarados, a pobre abelha logo se pôs a procurar a liberdade pelo lugar impossível: o para-brisas dianteiro.
Sem me distrair fiquei a observá-la: incansavelmente ela batia no vidro e caía no painel quente. Sem um segundo de descanso novamente se atirava em rasantes para, inutilmente, procurar o vasto mundo de onde viera. Por mais de meia-hora ela lutou sofregamente, a fim de não desmerecer a misteriosa graça de Deus de haver nascido para sua minúscula, mas importante, missão aqui neste mundo.
Como me pareceu tolo aquele pobre inseto! Tão perto da liberdade e ali prisioneiro! Seria tão simples pousar no painel, olhar a abertura de uma das portas e voar pelos prados e campinas. Contrariamente, ele não olhava (imagino os olhos dos irracionais como elementar resquício de nosso raciocínio), tombava e se reerguia para esbarrar no vidro e novamente cair.
Com o tempo as forças foram lhe faltando, até que, não mais resistindo, começou a debater-se em estertores de morte. Cuidadosamente o tomei pelas asas e o lancei fora. Não sei se sobreviveu, mas fez-me bem não assistir ao fim daquele ingênuo inseto. Fiquei com meus pensamentos, divagando.
Seria tão fácil para aquela abelha, parar um pouquinho e olhar melhor o próximo passo! Mas ela, como tantos seres humanos, agia inconsequentemente e, inadvertida, lutava, desgastava-se e, possivelmente, se destruiria. Depois de filosofar bastante, sinceramente, senti-me como aquela abelha.
Quantas vezes me desgasto, perco noites de sono, crio problemas, acuso e reajo, cometo injustiças, torno-me miserável e egoísta…, bato no para-brisas da teimosia, insensatez e orgulho, sem imaginar que as portas da alegria, da paz e da felicidade estão em Deus, aqui bem juntinho de mim, dentro de meu coração, por meio da compreensão, da paciência e da humildade.

EU NÃO TINHA TEMPO
Houve um período em minha vida em que eu tinha tempo para me divertir. Acordava cedo como os passarinhos, apanhava meu embornal de pelotas, meu estilingue e corria para a casa do Nego, meu companheiro de infância. Impreterivelmente saíamos juntos todos os dias pelos cafezais a fim de caçar os mansos e indefesos cambacicas que saltitavam pelas vergônteas dos carirus que infestavam as lavouras novas.
Depois fui crescendo e me mandaram para um colégio interno. Ali me levantavam antes que os passarinhos acordassem e era quase impossível separar uns minutos para dedilhar um velho violão que me haviam presenteado. Naquele lugar me deixaram alguns bons anos, até que um dia, achando que podia ser dono de meu próprio nariz, proclamei minha independência e deixei o internato.
A ideia de liberdade me perseguia. Quando interno, surpreendia-me ao notar as pessoas na rua caminharem sofregamente, como se cada uma estivesse com o pai ou a mãe em seus últimos instantes de vida. Agora que me encontrava na rua, percebia claramente, o motivo que levava tanta gente a toda aquela correria. Eram pessoas necessitadas ou mesmo gananciosas. Umas lutavam para sobreviver, para manter a família; outras, injustificavelmente, para serem cada vez mais ricas, para obterem sempre, mais bens e poder. Senti que havia chegado o momento de escolher ou decidir de que lado ficar.
Sem deixar o colégio, consegui um emprego. Trabalhando de dia e estudando à noite, toda a liberdade que pensava existir, escapou-me pelos dedos. Mais um pouco e a juventude também foi desaparecendo. Trabalhando e estudando, consegui me formar… e um pouco mais tarde, casei-me. Sem me dar conta, havia escolhido minha própria sorte: a de lutar incansavelmente pelo desnecessário ou, quando nada, pelo inexplicável.
Nesse estágio, pessoas sensatas convidavam-me para uma pescaria, um aniversário, um retiro…, mas eu não tinha tempo. Mesmo à noite eu trabalhava, juntava e juntava e nunca me pareceu bastante. Um dia, porém, deitei-me para descansar, e sem entender a razão, não mais acordei. Como se fosse um pesadelo, fiquei a observar pessoas que, como eu, iam e vinham numa sofreguidão estúpida, todas se movimentando como se não pudessem perder um único minuto da vida.
Ali postado, quieto e pensativo, tive tempo suficiente para aquilatar a estupidez de toda aquela gente. Como me pareceram imbecis! Ao invés de tomarem os bens materiais por empréstimo, queriam-nos para si, como se isso fosse possível. Ali parado, todo dois de novembro, eu tentava falar, mas ninguém me ouvia, nem se dava conta de que eu estava, agora, com todo o tempo do mundo para papear.
Em minha madorra angustiante, embora achasse a correria uma insensatez a toda prova, eu nada mais podia fazer. Que esperavam levar – as pessoas que trabalhavam apenas para somar mais e mais – de toda aquela correria? Por que não paravam um pouquinho para descansar? Por que até aos domingos não sossegavam um pouco? Por que não percebiam que haviam nascido, também, para se divertir e ser felizes?
Os sensatos, porém, amigos e parentes de outrora, se aproximavam de mim e carinhosamente insistiam no convite para um convescote ou uma pescaria. Agora, não mais com a desculpa de que não tinha tempo, eu respondia que estava descansando e que meu corpo extenuado de uma longa luta, sentia-se velho e indisposto.
Às vezes pensava: “Que está acontecendo comigo? Antes eu não descansava porque precisava trabalhar, juntar sempre mais, ser um homem rico e bem-sucedido; agora que sou rico, que tenho todo tempo do mundo, também não me divirto. Droga, que está acontecendo comigo?”
Foi então que, ao olhar para dentro de mim, percebi que estava deitado na lápide fria de um cemitério: eu estava morto.

TREZE ANOS DEPOIS
Depois de treze anos voltei à minha terra natal. Percebi que tudo havia mudado, ficado diferente, se transformado em gente e coisas que pareciam não mais se lembrar de um menino simples e feliz. Sinceramente, terem destruído meu mundo de criança, achei uma afronta, um desrespeito. Fizeram de meu vale, um mundo puramente de adultos interesseiros.
As encostas dos remanescentes jaós, agora são cafezais bem cuidados; as várzeas de capim-pernambuco viraram mamoeiros, laranjeiras, limoeiros… O homem, mais uma vez demonstra não estar satisfeito com aquilo que Deus fez e que eu, ainda hoje, acho o máximo. Mesmo o mais belo edifício, para mim, não supera, em beleza, uma frondosa jarana.
A antiga vereda de dois quilômetros que dava acesso à Escola Singular Professor Ananias Neto e que me parecia uma grande distância, agora se comprime num rastro preto de asfalto, desfeito em apenas duas ou três aceleradas de carro. As fazendas do tio Luís, dos Sangálias, dos Ceolins, dos Falquetos e dos Nogueiras, neste momento se resumem a um tapete verde centralizado por uma única sede. Nem a boleira pouparam – aquela boleira que me dava sombra, que dava guarida a um verdadeiro coro de passarinhos, que me escondia dos olhos de Deus todas as vezes que eu rogava pragas naqueles que me esquentavam o traseiro.
Depois fui rever meus velhos amigos. Companheiros de futebol, de pescarias e de caçadas. Estavam grisalhos, alguns muito enrugados, dentes caídos… Meu Deus, como me pareceram envelhecidos!
À noite, em frente a um relógio de parede, fiquei observando o ponteiro das horas. Parecia parado, mas estava certo que caminhava, que progredia lentamente abreviando meus dias. Em cada segundo – cismava eu – uma célula de minha juventude se perde. Ergui-me e fui ao espelho: não me vi tão velho quanto meus companheiros. Não há dúvidas, no entanto, que pensaram o mesmo de mim, que não encontraram, por mais que buscassem, aquele “alemão” de nariz pelado, indômito, quase incansável, de vinte anos atrás.
Restou-me, então, baixar a cabeça e meditar um pouco. Pensar nos meus pais que já se foram; naqueles veteranos vinte anos mais velhos que eu e que agora se apoiam em cajados para se manter de pé; em mim que, querendo ou não, estou morrendo sem perceber, corroído a cada segundo pela ação nefasta do tempo.
Logo mais estarei calvo ou mais grisalho; mais um pouco me apoiarei também num bordão; terei meus olhos esmaecidos e sem brilho; minhas pernas estarão trôpegas e cansadas; meu cérebro confuso… Um pouco mais ainda e, como meus pais, viverei de curtas lembranças, vivenciadas em todo dois de novembro numa lápide quieta e fria.
Quando esse tempo chegar, apesar do medo, saltarei no escuro com o frenesi de um excitado, pois estou certo que as dúvidas que me corroeram a paz a vida inteira, serão então elucidadas. Em menos de cinco segundos, as tantas perguntas sem respostas até então, serão respondidas.
Estas coisas são verdades duras que muitos não gostam de lembrar, mas que servem para não nos deixar esquecer do grande estúpido que nos tornamos quando perdemos noites de sono e dias de sossego, em busca de um tesouro que nunca será nosso: as coisas materiais desta Terra.
É bom que olhemos nossos velhos amigos e que vejamos neles o nosso retrato. É conveniente volver folhas de velhos álbuns à cata de registros passados, velhas fotografias de dez ou vinte anos atrás. É oportuno que saibamos que amanhã, todo orgulho, espírito de vingança, traição, egoísmo…, estarão depondo contra nós em algum lugar. É aconselhável sermos sensatos, vivendo a vida sem tanta correria e buscando apenas o necessário. Nisto reside a fraternidade e a justiça, pois, sem dúvida alguma, o que nos sobra, falta a alguém.

O MILAGRE DA CHUVA
Há um mês, depois de mais de cento e cinquenta dias de sol causticante, poeira nas estradas e ruas, muito calor e suor, a Natureza estava desbotada, triste e sofrida. Para aumentar o infortúnio, o fogo inconsequente das queimadas deixava no ar um lençol sufocante de fumaça. Nada de flores. Verde sem viço. Sinais angustiantes de coisas que definham ou perecem à míngua.
Um dia, porém, ao passar por um amontoado de sarrafos de um canto do quintal, ouvi o coaxar de uma perereca: há muito não sabia, sequer, de sua existência. Meu pai sempre dizia que os animais pressentem quando a Natureza se modifica, quando o ar se torna mais úmido ou mais seco. Ele mesmo nunca tivera motivos para duvidar de um calo seco que, quando doía, era sinal inconfundível de chuva. Os potros fazem estripulias pelas mangas; os bezerros torcem o rabo e correm desordenadamente; as pererecas e sapos coaxam; os cupins deixam seus claustros; os pássaros ficam excitados…. Todo ar fica diferente, revestindo-se de um mormaço sufocante e de uma expectativa contagiante que nos surpreende.
Aqui onde moro não há poldros nem bezerros, mas pássaros e batráquios encontramo-los em qualquer parte. Por isso, ao adentrar em casa arrisquei um palpite:
– Até que enfim vai chover!
Minha filha chacoteou, atacando-me, carinhosamente, de falso profeta, velho caduco e outros adjetivos que nunca são escassos quando a gente passa da fase de herói para aquela de quadrado ranzinza.
À tarde, porém, o calor abafado aumentou. Um pouco mais e lá longe, fortes trovões ribombaram. Aquele vento, amigo das donas de casa que sempre avisa que está na hora de recolher as roupas dos varais, veio expulsando o ar mais leve e seco, arrefecendo o mormaço sufocante de até então. Um pouco mais e chispas desconexas de fogo riscaram o firmamento, numa pujança que nos diminuía ao nada: prenúncio de tempestade medonha.
Debrucei-me, mesmo assim, no peitoril da janela. Não acredito que a chuva possa exercer maior fascínio em alguém do que aquele que exerce em mim. Alguns pingos vanguardeiros, esparsos e grossos, foram se misturando à poeira das folhas, fazendo escorrer um líquido cor de café com leite. As folhas, as árvores, a Natureza toda, a cada minuto se transformava milagrosamente. Parecia-me, no devaneio de um poeta bucólico, que tudo o que se definhava pela sede, sorvia a goles deseducados, aquele maná descido dos céus.
A noite foi chuvosa, mas terminou com o mais lindo dos sóis nascendo lá longe, num horizonte que há muito não se percebia tão límpido. Quando abri a janela tive a impressão de ter viajado a noite toda e por fim chegado a uma nova terra prometida. Puxa!, não sei se em russo – com suas milhares de regras e exceções – eu encontraria as palavras adequadas para exprimir o sentimento e a emoção que me invadiu naquele momento!
Até as pessoas pareceram-me diferentes: mais alegres e bonitas. Os pássaros chilreavam; os sapos saltitavam à cata de cupins e besouros; as andorinhas, em acrobacias olímpicas, disputavam toda sorte de insetos que também se desentocaram. O comportamento dos seres transformou-se tão repentinamente, que a mim me pareceu milagre dos céus.
Então imaginei: que bom seria se todas as semanas chovesse, oferecendo-nos uma terra molhada, fertilizada, cheia de flores e de verde; que aqui não houvesse essas duas prolongadas estações: ora de muita chuva, ora de muito sol; que fosse, enfim, uma eterna primavera, cheia de flores e de passarinhos.
Por tudo isso, é bom que não nos esqueçamos do lugar que Deus nos deu para morar, lembrando sempre que podemos favorecer um pouco mais o milagre das chuvas, desde que não degrademos tanto a Natureza. Se insistirmos em não a respeitar, as nuvens, numa vingança tácita, porém inflexível, poderão cada vez mais se afastar de nosso céu.

O PREÇO DA FELICIDADE
Lembro ainda sua mãe misturando lágrimas de alegria e dor: o cordão umbilical não havia ainda sido cortado. Lembro-me a água morna que lavou seu corpinho, as noites que perdemos cuidando de você, o prazer de seu primeiro sorriso.
Jamais irei esquecer o dia em que leu a primeira palavra e aquele aniversário em que usava um fitilho de seda vermelha a enfeitar seus cabelos castanho-claros. O primeiro ato de rebeldia maliciosa: desejo ou necessidade de autoafirmação.
Quinze anos! … Seios aprumados, flor que desabrocha. O bem e o mal num tabuleiro: a bandeja da vida. Festa. Dezenas de adolescentes cortejavam-na e eu, de um canto do sofá, cismava o futuro e revivia o passado numa retrospectiva de saudade. Termina a festa. Portas trancadas. Silêncio acusatório: depressão.
O colchão, como espinhos pungentes, prejudicava-me o descanso: incertezas. Rodou a Terra, amanheceu um novo dia. Vieram as semanas, os meses…, dezenove anos! Formatura, última festa de quimeras. Vão-se os sonhos, empossa-se a realidade. A correria, a crise, a vida num país malgovernado: chacais no poder.
Nem eu percebia em minha filha a força dos desejos, nem ela, as rugas de meu rosto: conhecidos desconhecidos. Eu em busca da sobrevivência; ela, do ideal. Que ideal?
Passa o tempo devagar e determinado, surpreendente e inflexível. De herói, passei a ser um velho imprestável; de sábio, um ranzinza quadrado: alternância dos racionais. As mesmas mãos que me acariciaram, agora me ferem. Senhora de si, dona de seus projetos e caminhos. Entrava e saía sem me dizer aonde ia ou de quem se faria acompanhar.
Venceu o prazo: dezenove de dezembro, vinte e três horas. Passou por mim na sala. Eu estava acordado, esperando que chegasse: pai. Ela, ventando do quarto, tornou a sair: dona de si.
– Aonde vai a esta ho…
Não me disse nada, simplesmente bateu a porta. Voltei ao sofá. Eu já não era seu herói, seu protetor, seu conselheiro, seu pai. Doeu fundo. Meu olhar prendeu-se, então, num canto inexpressivo da cadeira em frente. Os pensamentos enredavam-no como uma aranha à sua presa. De repente, meus olhos começaram a ficar turvos e uma nuvem pardacenta envolveu-os pelas lágrimas. Chorei… como chorei diante de minha impotência! … Era mesmo – agora entendia – um velho imprestável. Ajoelhei-me, mas somente Deus podia penetrar na balbúrdia e desencontros de minha alma angustiada.
– Que devemos fazer? – Perguntei à minha companheira.
Ela enxugou os olhos em silêncio. Vesti a camisa e saí. Saí pela cidade, sem rumo, instintivamente. Era madrugada fria, chovia fino. Andei, sofri, chorei. Qual arauto do mal, rumo à desgraça. Lá longe, no fim de uma rua, um aglomerado de pessoas e alguns carros. Era minha direção e não desviei: morte. Um rapaz estava estirado, mas ela, minha filha, ali já não se encontrava. Seguira com os assassinos. Como algo que de tão veloz ultrapassa a barreira do som, minha dor venceu as lágrimas: choque.
O dia amanheceu. Novamente o canto do sofá, o rosto maltratado de minha velha companheira em cima de minhas coxas trêmulas. Às oito horas, entregaram minha filha estuprada, violentada, exangue: trapo humano.
Claudicando, olhos amortecidos pela dor, fui recebê-la. Exânime, ela entreabriu os olhos mortiços e balbuciou, dependente outra vez:
– Pai, ô pai! …
Apertei-a entre meus braços mirrados e meu coração parecia sair do peito. Há dez anos eu não ouvia aquelas palavras! Há muito tempo, quando ainda criança, quando ainda eu era seu herói, foi que ela me disse que precisava de mim e que eu nunca a abandonasse. Ali eu estava, com ela nos braços, muito mais herói agora por ter resistido a dez anos de desprezo e atendido, como se fosse um deus, à sua súplica: “Não me abandone”.
Misturamos lágrimas. O preço foi alto, porém, justo. Paguei dez anos de sofrimento, mas readquiri a felicidade perdida.
Hoje, estou no meu canto de sofá outra vez, pensando tudo isso, escrevendo essas coisas. Minha velha já dorme; minha filha prepara o enxoval de seu primeiro filho. Olho o canto da cadeira: está claro e limpo. Perco-me – como um velho teimoso que sou – em novos sonhos. Vejo outra criança correndo pela casa e, se apertada, gritar dependente: “Vô, não me deixe apanhar, não me abandone nunca”.
Não preciso mais que isso para agora, aos sessenta e cinco anos de idade, ser o velho mais feliz deste mundo.

MEIO SÉCULO DEPOIS
Escrito em novembro de 1994.
Mais ou menos há cinquenta anos, era eu uma criança abacinada, nariz sempre em feridas por causa dos raios solares. Do nascer ao pôr do sol metia-me nos campinhos de pelada ou nos cafezais perseguindo calangos e passarinhos. Lembro-me como se fosse agora: o mano chamou-me de lado e convenceu-me a torcer pelo Botafogo do Rio de Janeiro. Fez-me crer que eu era o protótipo do Pirilo, o maior goleador da época, aquele que atemorizava as defesas adversárias. Os argumentos foram tão contundentes que, ainda hoje, posso declinar a escalação: Osvaldo, Gérson e Santos; Rubinho, Ávila e Juvenal; Paraguaio, Geninho, Otávio, Pirilo e Braguinha. Com esse time o Botafogo foi campeão e registrou em cartório, minha sina de sofredor. O diabo é que me é impossível desgostar de alguma coisa quando aprendo a amar verdadeiramente. Ao Botafogo, quando muito, dou o desprezo de não lhe acompanhar as desditas.
Estas duas inclinações (caçar e jogar futebol) nortearam minha vida por longos e longos anos, transformando-me em seu verdadeiro escravo. Da primeira só fui me livrar vinte e cinco anos depois, quando, pela grande prática adquirida, já fazia um verdadeiro estrago à nossa fauna. Um dia, meu pai, vendo a quantidade de macucos abatida, ameaçou denunciar-me ao IBDF, caso eu não parasse com aquela matança desordenada e cruel. A segunda, deixo-a agora, meio século depois.
Não que tenha desgostado, mas simplesmente por respeito aos meus companheiros de equipe. Reconheci que há um tempo para tudo e que não justifica o apenas gostar. Para ser sincero, ainda ontem eu contava nos dedos os dias dos jogos de minha Laminadora Paraná. Neste time ingressei há quatorze anos quando aqui cheguei; dele me despeço com toda gratidão de alguém que, mesmo aos cinquenta e seis anos de idade, ainda era colocado em campo.
Gostar eu gosto: na verdade foi uma das mais duras decisões que tomei na vida. Meus irmãos sempre brincam comigo, dizendo que se ao invés de futebol eu tivesse me declinado para o lado das drogas, Escobar seria pintinho.
Quem conhece o velho adágio popular: “Deus, quando tira os dentes, abre a goela?!…” Quando percebi que matava a bola para o adversário, que precisava de tempo excessivo para os lançamentos, que meus companheiros me cortavam no caminho para pressionar o adversário que entrava na área…, senti claramente que era o momento de trocar a bola por um computador. Não era justo sacrificar meus companheiros, exigindo deles que suprissem minhas deficiências.
E agora, quando o Natal se aproxima, quero aproveitar a data para não só desejar o dezembro mais feliz entre todos os que já aconteceram na vida de meus companheiros, mas também, agradecer, do fundo de meu coração, a todos os desportistas que sempre me deram apoio e me respeitaram, apesar de minhas limitações.
Jamais irei esquecer o silêncio de meus colegas quando, prejudicado pelo peso dos anos, eu não alcançava a bola ou fazia um lançamento desastroso. Há muito eu percebia a paciência, a amizade e compreensão deles, mas devo confessar que, mesmo assim, não me foi fácil compreender e abandonar.
Aos companheiros que me aturaram; aos adversários que me respeitaram; a todos quanto conheci pelo meu longo tempo de futebol aqui em Imperatriz, quero deixar, do fundo de minha alma, a minha gratidão e o meu muito obrigado. Foram maravilhosos esses quatorze anos! Conheci gente amiga que pensei em extinção. Para representar a todos, quero entregar, num gesto de apreço e consideração, a simbólica taça de gratidão ao companheiro “Toinho”, esse incansável amigo que, nos últimos anos, correu por ele e por mim na armação. É em consideração ao seu supremo esforço, caro “Toinho”, que agora me despeço do meu maior vício: o futebol.
Que vocês continuem honrando o nome de nosso time, jogando com determinação e disciplina, respeitando os companheiros, a arbitragem e os adversários. Nunca se esqueçam que futebol é apenas um esporte, inventado para entretenimento e que, como tal, na maioria das vezes, sempre vence o melhor. Se possuírem um bom time, certamente serão campeões; se o adversário for melhor, contentem-se em lhe valorizar a vitória. Não esqueçam nunca que futebol é jogado com os pés e que a língua apenas atrapalha. Não deixem que a falta de futebol excite a ignorância, fazendo com que agridam os adversários mais bem preparados. Para se ser o melhor é preciso muita força de vontade, treinar excessivamente, respeitar e, acima de tudo, ter nascido com o dom de jogar futebol. É ingenuidade pueril acreditar que se pode perder noite, ingerir bebida alcoólica, jogar pela manhã e ser o melhor no jogo da tarde.

É exatamente por causa dessas máximas que hoje penduro as chuteiras. Houve tempo que também eu chegava na frente, protegia bem a bola, lançava bem…, é, houve um tempo. Agora é hora de deixar meu lugar para outro, pois na verdade, há um tempo para tudo, inclusive para parar.

APENAS MÁSCARAS
Dar asas à imaginação, sonhar…, são coisas comuns a todo ser humano. Sonha-se com a riqueza, com mulheres atraentes e bonitas, com a justiça, com a paz, a felicidade…, depende apenas das fantasias e da formação de cada sonhador. Eu sou um devaneador, um homem consciente de que jamais conseguirei transformar o mundo, mas que sonho com isso como se fosse um miserável obcecado pelas loterias. “Imagine um mundo cheio de paz, um mundo em que todos se tratassem como irmãos, um mundo sem egoísmo, pleno de fraternidade…”
Sonho com um mundo que só pode existir em minha cabeça, um mundo que deve acontecer em algum lugar, mas que minha fé combalida hesita aceitar, mesmo com a afirmação de Jesus Cristo: “Passará o Céu e a Terra, mas minhas palavras não passarão”.
Hoje, durante a sesta, veio-me em sonho, esses pensamentos embaraçosos e frustrantes. Pareceu-me estar caminhando por uma estrada de chão, ladeada de árvores e flores: uma paisagem bonita e, na realidade, muito difícil de ser encontrada. Dizem que enquanto dormimos, nossas almas passeiam pelo quarto, pela casa… e até por lugares mais distantes. Há coisas que qualquer um pode dizer e até afirmar, já que se torna impossível prová-las.
Em determinado ponto desviei os olhos para uma das margens e percebi, à sombra de uma árvore frondosa, quatro homens inteiramente despidos, que pareciam demandar o direito sobre a roupa mais luxuosa que ali se encontrava pendurada. Vendo-me ao largo chamaram-me para resolver o impasse: cada um dos quatro afirmava que a melhor roupa que estava dependurada num dos galhos, era dele.
Mesmo em sonho não pude esconder minha apreensão, porque achei extremamente difícil olhar para quatro pessoas inteiramente nuas, e descobrir a quem pertencia a melhor e mais luxuosa roupa, simplesmente baseado na riqueza apregoada por cada um dos contendores.
– Eu tenho quatro fazendas – disse o primeiro – e somente eu poderia adquirir uma roupa tão cara.
– Sou dono da maior agência de automóveis da cidade e posso comprar roupas até melhores que essa aí em questão – argumentou o segundo.
– Ambos estão mentindo – acusou o terceiro – a melhor roupa é minha. Sou dono de fábricas diversas em todo estado.
– É minha – assegurou o quarto. Nenhum deles possui a minha riqueza.
Eu que simplesmente passava por ali e fora chamado para dirimir aquela divergência, fiquei atônito, muito confuso, porque não podia, por mais que me esforçasse, distinguir a qual deles pertencia a melhor roupa.
Todos os quatro eram bem parecidos em suas compleições. A roupa mais luxuosa cairia bem em qualquer um dos quatro. Todos eles eram muito ricos. Essa particularidade dificultava ainda mais minha dedução.
Enquanto imaginava, crianças barulhentas acordaram-me, mas a lembrança do sonho continuou em mim. Impressionado, fiquei a meditar. A primeira lembrança foi aquela de que “a batina não faz o monge”.
Aqueles quatro homens de meu sonho, por mais luxuosas e diferentes roupas que pudessem usar, nus, eram exatamente iguais: estavam despidos da falsa importância que o luxo atribui.

SUBLIME RESGATE
Tochas de fogo se movimentam por entre as oliveiras. O Filho do Homem estremece como se ao Filho de Deus fosse possível a surpresa, o medo e o esmorecimento. Nem Ele – insinua a história – parecia ter plena consciência da capacidade inventiva do homem em praticar a crueldade.
Isso começou há quase dois mil anos, e não estamos certos por quanto tempo ainda continuaremos crucificando nosso próprio Salvador. A única coisa certa é que todo pecado de nossos ancestrais, os desta geração e aqueles que, infelizmente advirão, estavam sobre seus ombros naquele dia fatídico da caminhada para o Calvário.
A cruz foi o resgate exigido para sanar a dívida da humanidade. Sem ele – afirma-se – ninguém se salvaria. Que Jesus continue tendo paciência com a gente e que cada dia que nasça seja-nos motivo de arrependimento, e mais uma oração contrita por essa lição divina de amor.
Em algum dia desta semana, certamente você irá passar por uma igreja; certamente irá ter um minuto de solidão e silêncio; certamente Jesus tocará com mais carinho o seu coração. Pare um minuto companheiro, e pense. Apalpe-se: você existe; respire: você está vivo; lembre-se: um pouco mais e não estará mais aqui. Há motivo maior para não se preocupar tanto com as coisas materiais? Se tem dúvidas a respeito de Deus, não se preocupe, pois, todos os homens da Terra as tem.
Você é um dos maiores milagres do Criador, porque veio do nada e será eterno. O firmamento, as estrelas, os planetas, as galáxias, tudo enfim, um dia voltará ao nada. O homem, não.
Não se preocupe tanto com seus erros e fraquezas, mas sim pelas vezes que não se esforçou para diminuí-los; não inveje os que lhe parecem superiores, nem os santos, pois pode ser que tenham recebido muito mais graças que você. Se recebeu pouco, Deus não lhe cobrará tanto.
Respeite sua verdade honesta e sincera como se fosse um mandamento de salvação. Não se acovarde diante daqueles que querem lhe impor cega submissão ao que imaginam certo, como se você não pudesse raciocinar e escolher seu próprio caminho. Siga antes sua convicção e fé. Só há uma verdade: aquela que acredita com sinceridade; só um pecado: aquele que fere sua consciência. Nas coisas do espírito, o mais importante é a intenção, porque ela é o espelho fiel do relacionamento mais íntimo do homem com Deus.
Nesta semana, converse com Jesus. Chame-O a um cantinho qualquer e, na surdina, bata um papo com Ele. Não importa sua crença, mas sim, sua intenção. E depois desta conversinha reservada, procure melhorar o quanto for possível, dia a dia, sem tréguas, com determinação.
Erga os olhos e as mãos e se tiver coragem, balbucie com humildade e emoção, a mais linda oração que foi ensinada: “Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino…”

ALÉM DO INFINITO
No jornal da TV Globo mostram, antes de cada bloco noticioso, um globo que vai se afastando da tela rumo ao infinito até desaparecer. Não sei a razão, mas sempre que isso acontece, invade-me uma angústia desgastante. Fico imaginando os seres humanos em cima daquele corpo esférico, como se fossem micróbios agarrados a uma bola de futebol fortemente chutada sem direção. Essa bolinha – no conceito de outros possíveis seres do universo – certamente, nem é classificada no rol dos planetas. Em cima dela, porém, os homens se perseguem e se matam estupidamente no afã de possuí-la.
É, minha gente, se refletíssemos um pouquinho só, perceberíamos o quanto nos tornamos irracionais quando insistimos na ideia fixa de nos considerarmos eternos aqui nesta Terra!
Um dia, conversei com uma pessoa muito simplória e ingênua (falamos a respeito da existência de Deus e de seus mistérios). Ele deu o parecer dele a respeito do assunto:
– Eu não penso nestas coisa. Querendo ou não, pensando ou não, eu não vô mudá nada. Se Ele for bom e me dé um bom lugá quando eu morrê, melhó pra mim; se Ele for mais justo que bom e me condená, eu também não posso fazê nada. Por isso vou vivendo minha vida como todo mundo vive. Não é possive que se todo mundo é assim eu tenho que sê diferente. Sabe, quando estes pensamento me vem eu até balanço a cabeça e jogo eles fora. Não quero nem perdê tempo!
Sábia dedução! Para mim foi de grande ajuda. Mudou muito minha vida. Parei de passar horas e horas matutando, imaginando como Deus apareceu; onde termina o infinito; o que há depois dele; …
Estas perguntas, se muito repetidas, podem se transformar em ingredientes bastantes para enlouquecer o mais equilibrado dos mortais. Se formos fundo na questão, usando apenas a cota de raciocínio que temos, chegaremos à conclusão de que realmente as coisas se fizeram por acaso, pelo menos até o aparecimento de Deus. Você consegue imaginar alguém ou alguma coisa que não teve princípio?
Isto fere profundamente a Teologia e é aconselhável que ninguém ouse invejar Galileu, no que tange a verdades fora de tempo: seria uma pretensão, no mínimo, insensata. É óbvio que a maior prova de que há um Criador para nossa Terra, é a existência das coisas e dos seres que a compõem, já que sempre baseamos nossas deduções na premissa de que não pode haver efeito sem causa que o produza. Por esta razão, qualquer ser sem princípio, não é reconhecido pelo nosso cérebro.
Apesar de ser explicável, o cálculo preciso que torna possível as viagens espaciais, é simplesmente ininteligível a um matuto. Para as incógnitas do universo, assim como diante dos mistérios de Deus, os maiores sábios não passam de matutos. A distância que separa um iletrado de cálculos matemáticos sofisticados é milhões de vezes menor do que aquela que separa o maior dos sábios do intrincado mistério do aparecimento da vida e de Deus.
Nossa inteligência é limitada: só vai até determinado ponto. Daí para frente, tudo fica obscuro e misterioso. Isto não significa que não tenha explicação, mas sim que nossa inteligência não foi programada para entender.
Se não podemos explicar, por que ficar cismando em vão, perdendo horas e noites com algo impossível? Como aquela pessoa pobre e humilde, deixemos o barco singrar pelas águas tranquilas de nossa limitação. Será perigoso metermos nosso caíque de compreensão pelos mares revoltos dos mistérios. Sem ferir nossos semelhantes e a Natureza em geral, vivamos nossas vidas com tudo quanto temos direito, porque querendo ou não, o que tiver de ser, será.
É importante que saiamos da cama como as aves de seus poleiros: alegres por um novo dia. Sem prejudicar ninguém, vamos à luta, sempre com a simplicidade dos passarinhos que cantam alegres em cada dia que amanhece.
Estamos aqui: Deus existe. A máquina jamais explicará o engenheiro, mas o engenheiro gosta e cuida do que faz. Quando uma de suas máquinas dá problema, ele procura arrumar e só desiste mesmo quando percebe que não tem jeito. Acho que isto é uma conclusão que deve nos tranquilizar… um pouquinho… ao menos.

MÃOS ESTENDIDAS
VÉSPERA DE NATAL
Há muitos anos, ali no Calçadão da Avenida Getúlio Vargas, vejo uma velhinha maltrapilha e cega, sempre com os braços estendidos à cata de algum centavo para sua sobrevivência. Se alguém se der à curiosidade de vigiar, verá que é muito raro alguém parar para depositar qualquer moeda em suas mãos enrugadas.
Mais uma vez se aproxima o Natal, o dia do nascimento do Filho de Deus, o surgimento da esperança dos desvalidos, fracos e oprimidos. Mesmo assim, sem nada mudar, lá está a velhinha, olhos infeccionados e cegos, de mãos estendidas, implorando aos transeuntes, a caridade de um prato de comida. Há quantos natais aquelas mãos estão ali estendidas?!…
Pelas ruas, as pessoas passam, aglomeram-se: aproxima-se o mais lindo e importante dia da Terra. Mãos abarrotadas de presentes, gente se acotovelando, quase pisando na pobre velhinha de mãos estendidas. Ela nada mais representa que estorvo àqueles que estão pensando nos filhos, no pai, nos parentes… e, por incrível e paradoxal que pareça, talvez em Jesus Cristo.
– Uma esmola pelo amor de Deus! Brada ela incansavelmente, mas as pessoas parecem não notar a sua presença. Como formigas-correição que se desorientam se mexermos em sua trilha, as pessoas andam de um lado para outro à procura do CAMINHO, sem imaginar que o cruzam a todo instante. Ela não passa de um instrumento de Deus, uma oportunidade constante de praticarmos a caridade. Entretém-se escutando o falatório e o roçagar das saias de seda.
Não sabe ela o motivo de toda aquela correria, daquela euforia, daquela algaravia que se forma a seu redor. Pudesse ela entender que tudo aquilo era porque se aproximava o dia em que Jesus, que tanto demonstrou sua opção pelos desvalidos, fracos e oprimidos, estava aniversariando! Soubesse ela e se ergueria às cambalhotas para gritar como Bartimeu: “Filho de Davi, tem misericórdia de mim”!
Mas ela também é uma de nós: anda cega, sem fé, tendo a felicidade, a paz e tudo quanto deseja em suas mãos, mas preferindo a cegueira e as lástimas de uma pedinte sofrida: “uma esmola pelo amor de Deus!”
Os sinos repicam, o planeta todo está em festa, bilhões de lâmpadas coloridas piscam pelas cidades e catedrais, corais entoam hinos de alegria…. Até parece que todos os miseráveis do mundo já não existem e que a felicidade se trancou dentro de nossas casas, na troca de presentes, na comida farta, na bebida que alegra. Ninguém percebe, porém, que o nosso presépio está vazio, que o berço está frio e que Jesus, certamente, está tremelicando debaixo de uma marquise ou nos calçadões das cidades, com as mãos estendidas, implorando a caridade de um prato de comida.
Quem quiser ver o Menino Jesus renascido, não vá às igrejas e catedrais, mas sim aos ínfimos e imundos guetos das cercanias, naqueles lugares em que nosso egoísmo empurrou os verdadeiros filhos de Deus e irmãos de Jesus. É de lá que estará ecoando a cada segundo, o grito comovente do cego de Jericó: “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim”!
Escolha um presentinho qualquer e dê a uma criança abandonada. Se assim o fizer poderá vangloriar-se de ter visto no dia 25 de dezembro, o Menino Deus recém-nascido. Nos presépios das igrejas, nas comemorações pomposas em que refulgem luzes e extravasam cores, certamente, o Menino pobre de Belém não estará. A quem duvidar é bom que leia o Sermão da Montanha. Ele foi proferido pelo Homem mais importante da humanidade, cujo aniversário estamos comemorando. Natal!

DEUS E OS HOMENS
Deus existe. A verdade mais fácil de se admitir na vida é a existência de um Ser Superior. É infantil demais admitir que tudo quanto há sobre nosso planeta e acima dele se fez por mero acaso. Só mesmo quem nunca observou a Natureza ou olhou para os céus com espírito perscrutador, poderá afirmar tamanha tolice. Agora, por meio de nossa limitada razão, jamais iremos explicar como Ele apareceu.
A tão apregoada evolução de Charles Darwin, embora tenha papel relevante na elucidação de muitos aparentes mistérios naturais, não chega, sequer, a estremecer a certeza da interferência divina na construção do mundo em que vivemos.
Há sempre por detrás do que se diz incrédulo, uma tentativa vã de justificar seus deslizes, fraquezas e interesses. A probabilidade de a vida ter surgido e chegado ao ponto em que se encontra, por casualidade, é semelhante à admissão de que, em se jogando ao vento todas as letras que constituem o Dicionário Aurélio, elas possam, ao cair, reconstituí-lo novamente por inteiro, sem uma única falha.
É bem verdade que as tentativas que se registram pelo infinito e pela eternidade são incontáveis, mas mesmo assim não conseguem ultrapassar a barreira do impossível.
Apesar de em minha adolescência eu haver contestado a onisciência de Deus ao demonstrar o não entendimento pelas coisas que imaginava injustas, jamais duvidei, ao olhar em torno de mim, que ALGUÉM, muito inteligente, engendrou tudo isso.
Foge-me ao conhecimento, as razões que levaram o Senhor do Universo a extirpar de nosso raciocínio toda e qualquer fórmula científica plausível que pudesse, se não dirimir, ao menos arrefecer as afirmações de: um Deus sem princípio e sem fim; uma sequência de galáxias sem limites e, principalmente, seu amor inexplicável a nós, ínfimos seres. O amor de Deus para com os homens é, a meu ver, o maior de todos os mistérios. Não consigo entender que Ele tenha enviado o próprio Filho para submeter-se à morte mais humilhante da época – a crucificação – simplesmente para nos dar a chance de sermos eternamente felizes. Sinceramente, isso não cabe em meu entendimento!
Hoje, vivendo a era da eletrônica com seus computadores sofisticados, sinto os seres humanos como se fossem essas máquinas, porém, com um programa limitado de informações que impossibilita o entendimento dos mistérios.
Somos, então, obrigados a ver e a concluir apenas, sem jamais provar nada. Deixou-nos Ele a fé, esta característica singular dos seres privilegiados. Sem esta graça duvidaremos sempre dos mistérios e passaremos a crer, apenas, naquelas coisas que a ciência pode provar.
Não duvido da existência de Deus, mas não consigo entender “que tenha tempo a perder” com esse nada que somos nós. Que seremos diante de um ser poderoso que criou trilhões de galáxias, cada uma longe da outra bilhões de anos luz, com a luz, no vácuo do infinito, caminhando a trezentos mil quilômetros por segundo?
Se os americanos, para enviarem Neil Armstrong em julho de 1969 à Lua, já consideraram uma proeza ímpar, como alcançar os demais planetas dos sistemas planetários de outros sóis? Isto deve representar bem nossa capacidade ou a nossa diferença com Deus e também justificar o porquê de eu considerar a Sua morte por nós, o maior de todos os mistérios.
Entendo, pois, que Deus existe, mas fico confuso ao me deparar com a grande fé dos que acreditam piamente que Ele se preocupa ou “tem tempo” para se inquietar com cada um de nós. Parece-me mais lógico termos sido criados e avisados das leis que devem nos reger para conseguirmos um outro mundo melhor. Neste caso, vigoraria, plenamente, a lei da liberdade total, com cada um escolhendo a própria sorte.

DEUS: UM SALTO NO ESCURO
Heródoto nos relata histórias milagrosas dos mais diversos povos, das mais variadas crenças e religiões. Entre elas, a de Creso, rei dos Lídios, considerado um dos homens mais ricos de sua época. Quando os oráculos o aconselharam a investir contra Ciro, rei dos Persas, ele acreditou. Foi derrotado, preso e posto por Ciro sobre uma enorme fogueira para ser queimado vivo.
Apesar de rico, Creso era um homem muito sensível e amante das verdades morais e filosóficas. Amigo e admirador de Sólon, dizia não trocar os ensinamentos do sábio grego por riqueza alguma deste mundo.
Quando o fogo foi ateado, ele homenageou o mais sábio legislador ateniense, bradando que, mesmo os reis ricos e poderosos eram passíveis de castigos; que tudo era passageiro e que somente as virtudes enalteciam o homem e o tornavam imperecíveis.
Estas palavras comoveram profundamente o rei persa que ordenou que apagassem a fogueira. O fogo, porém, se tornara incontrolável. Diante da emoção geral dos que assistiam ao ato, e da fé pessoal, o rei mais rico da antiguidade implorou a Apolo que o livrasse daquela morte horrível. O céu que estava claro, conturbou-se em minutos, trazendo trovões e fortes chuvas que apagaram as labaredas. Diante do acontecido, Creso passou da condição de vencido condenado à morte ao importante cargo de principal conselheiro do vencedor.

No livro de Jonas, a Bíblia nos relata que ele, Jonas, foi engolido por um enorme peixe, ficando em seu ventre durante três dias e três noites, sendo depois vomitado numa das praias da Assíria, a fim de promover a conversão de Nínive. O próprio Jesus confirma isso.
Percebemos assim, desde os primórdios, a ansiedade dos seres humanos quanto ao transcendental. Centenas de seitas e religiões foram sendo criadas, cada uma dizendo-se dona da verdade e apresentando em sua propagação, milagres estonteantes, ações que só são concebíveis a Deus. Afinal, Apolo também tinha poder para ordenar que do céu caísse chuva e que as nuvens obedecessem?
Nós, católicos, acreditamos que, por ordem de Deus, Jonas passou vivo, três dias e três noites no ventre de um peixe; acreditamos que Lázaro, morto há quatro dias, já em estado de putrefação, por ordem de Jesus, ergueu-se do túmulo para espanto de todos quantos estavam lá; acreditamos, enfim, em todos os milagres relatados pela Bíblia e por nossa Igreja.
Tornamo-nos cépticos ou mesmo não acreditamos quando homens, de crenças pouco ortodoxas, relatam que foram contemplados com os benefícios do deus deles. Hoje, com raríssimas exceções, todo ser humano acredita que há um só Deus, criador de todas as coisas. Como explicar, então, para não citar outros, o milagre relatado por Heródoto?
Houve tempos (e talvez ainda os há) em que a preocupação maior dos chefes religiosos era impor sua doutrina, buscando a hegemonia de seu Deus. Em nome, então, de um Criador Bom e Justo, foram cometidas as maiores maldades e injustiças que podemos imaginar. Nem as coisas de Deus foram poupadas do interesse político dos homens.
Por essa razão só nos resta apelar para quem criou tudo isso, independentemente de denominação, e pedir a Ele que tenha pena de nós – humanidade desorientada. Não importa que seja chamado de Jeová, Alá, Lua, Apolo…, importa sim, que no coração do homem que pede, resida a fé num Ser Superior Único.
Entendo que quando Creso implorou a Apolo; quando os índios pediam socorro ao Sol ou à Lua; quando qualquer ser humano, antes da vinda de Jesus Cristo, contritamente pedia socorro aos céus, Deus Pai, considerando os tempos, não levava em conta os apelidos com que era chamado.
Agora, em pleno século XX, diante de um presente religiosamente ainda indefinido, olhamos aturdidos para o passado e não encontramos o fio da meada para o futuro. Sentimo-nos num pináculo em noite escura, esperando a hora de saltar sem estarmos certos do lugar em que iremos cair.

OURO E LIXO
Se eu fechar os olhos e pensar, poderei senti-la através da imaginação. No dia dezessete de outubro de 1931 comemorávamos os seus quinze anos. Meu Deus, como tudo em você era perfeito e bonito! Seus dentes pareciam de nácar, seus cabelos lisos desciam pelos ombros com a vitalidade de trepadeira recém-nascida em terra fértil, sua pele ainda não apresentava estrago algum do tempo…. Em você, o frescor da juventude – esse lenitivo tão eficaz que impede qualquer pessoa de ser feia.
Sim, posso vê-la! … quanta alegria havia em seu semblante! Ainda não descobrira a realidade da vida, ainda não se preocupava com a maldade do mundo. Para você, a vida seria sempre daquele jeito: um intercalar de surpresas agradáveis.
Na escola, os amigos; em casa, todo carinho; na rua, os primeiros eflúvios do mais nobre e perigoso dos sentimentos: o amor. Que graça tão grande, que pedra preciosa, a vida! A cabeça funcionava como um relógio novo e bom; o cérebro assemelhava-se a uma folha de pergaminho branca, aberta para receptar, gravar e marcar tudo o que ali fosse escrito.
Não sei como foi a transição, mas o tempo, vagaroso e implacável, roubou-lhe o brilho dos olhos, a vitalidade e a cor dos cabelos – amareleceu a folha branca de pergaminho. Hoje tem sessenta e quatro anos, cinco filhos, um companheiro doente e ranzinza, um emprego público miserável. Esquece facilmente das coisas, deixa o fogo aceso, irrita-se com a calma daqueles que ainda vêm no começo do caminho por aonde passou.
Tento arrancar-lhe as rugas, as mechas grisalhas, o ofuscamento dos olhos, mas sinto que não possuo o bisturi divino para realizar tamanha e milagrosa cirurgia plástica. Seria como tentar fazer do Corcunda de Notre-dame, a Mona Lisa de Leonardo da Vinci.
Na alma, também os traumas da desilusão, a tristeza de quem nunca imaginou que a vida fosse uma armadilha tão cruel e malvada. O olhar que corre fugidio pelo espelho, denota a angústia desoladora de reconhecer que tudo passou e que aquela pedra preciosa que lhe fora a vida aos quinze anos, agora se transformara em lixo inútil.
É preciso muita fé e coragem para descer os degraus da escada da vida! Faz-se necessário não se iludir quanto à caducidade, não se esquecendo em um só dia que tudo passa e que até as coisas mais preciosas, um dia se tornarão lixo. Mesmo o maior dos impérios já construídos na Terra seria dado a quem adiasse por alguns dias, a morte do rei detentor que se encontrasse em agonia.
Lixo e ouro, no fundo, são a mesma coisa: é apenas uma questão de tempo e de lugar. Poderão ser diferentes se um dia os seres humanos descobrirem um jeito de parar o tempo…, ou então, possuírem a fé e a convicção de crer que, de fato, o que entendemos por fim, é apenas o começo.

O FUTURO
Quando abri a porta da garagem, deparei-me com um rapaz alto, sorridente, quase extrovertido que, nem ao menos esperou meu bom-dia:
– E aí, patrão, está lembrado de mim?
Era impossível esquecê-lo: tinha sempre um sorriso nos lábios, vivia cantando músicas para o velho pai na calçada, bem em frente à minha casa. Normalmente a criançada fazia coro, e ele, como se fosse também um menino, corria as mãos sobre o tosco piano e divertia a todos. Por isso não hesitei na resposta:
– Claro que me lembro de você! Embora não saiba, é muito difícil alguém desta rua esquecê-lo.
Ele, então, aproximando-se mais um pouco, fez seu pequeno comercial:
– Estive fazendo uma ronda de serviços pra firma em que trabalho, mas agora estou de volta. Se algum motor elétrico precisar de qualquer reparo, não se acanhe em me chamar.
– Claro que não! – Confirmei, em tom de brincadeira, com entonação de quem jamais iria sustentar a afirmativa.
Sempre sorrindo em sua extroversão peculiar, ele acenou com a mão e foi ganhando a esquina da rua. Para ser sincero, senti inveja daquele astral, daquela alegria contagiante que afetava a todos que dele se acercavam. Imaginei, a princípio, ser fruto da juventude, mas não era. Seus familiares e, principalmente sua avozinha que o criou desde a tenra infância, diante do caixão, não se cansavam de apregoar a alegria que sempre brilhara nos olhos daquele, hoje, rapaz morto por afogamento. Nascera feliz, vivera feliz e, certamente, também morrera num momento de alegria, já que estava curtindo um fim de domingo na Praia do Cacau.
Hoje, dia cinco de setembro, mês das flores, ele, com toda sua alegria, tomando para si as primeiras rosas temporãs da primavera, abraçado a elas serenamente, se prepara para levar sua alegria a outra dimensão.
Olhei-o por algum tempo: não havia mais aquele sorriso espontâneo e largo, aquele desejo intrínseco de expandir sua alegria. Não estava certo se ainda se encontrava por ali, mas vez por outra, aquela imagem contagiante do dia anterior, fazia-me crer que sim. Parecia-me a cada instante que ele relembrava: “Não esqueça: se precisar de mim, estou por aqui”.
Ao voltar para minha casa, por causa dos atropelos do acidente, percebi que havíamos deixado a televisão ligada. Nela, o maior acinte à paciência do povo brasileiro: o Horário Político, gratuito e obrigatório. Nele o Lula apegava-se – como se fosse um desesperado – ao vexame do então Ministro da Fazenda que afirmara não ter escrúpulos em explorar os efeitos positivos e omitir os negativos do Plano Real. “Não importa a ele a minguada esperança de livrar o Brasil dessa inflação galopante. O importante mesmo é derrubar os adversários, ainda que com eles caiam o País e seu povo sofrido” – vomitava o Lula.
Diante de toda aquela luta pelo poder e pelo dinheiro, lembrei de meu amigo lá estendido, sem vida, longe de todo engano, abraçado às primeiras rosas do mês da primavera, e quase o invejei. Senti que havia aceito a solidariedade do amigo e que ele, cumprindo o que prometera um dia antes, convencia-me de nossa estupidez ao nos preocuparmos tanto com esta vida.
Entendi que não pode haver insensatez maior do que aquela que nos leva às correrias, às preocupações e até aos desentendimentos por causa de coisas que cedo, muito cedo, só nos servirão de ferrenhos promotores no Juízo Final.

O VERDADEIRO MILIONÁRIO
Desperto sempre com o canto estridente da araponga. É como se ela fosse um ferreiro a malhar os primeiros raios de sol que desponta em cada dia que amanhece. Não preciso nem olhar a hora, pois serão, pontualmente, sete horas. Início do dia, começo de um período que foi feito para cada um se levantar e ir à luta.
Sempre fui contra àquelas pessoas que trocam o dia pela noite e vice-versa. Isto, parece-me, fere a Natureza. É muito estranho, improdutivo – burrice mesmo – usar a foice para capinar; o garfo para tomar sopa; o dia para dormir. Não me refiro às exceções necessárias.
Pela coerência dessas deduções, não consigo entender, também, a ganância desmesurada de tantos homens. Durante minha vida, no meu dia a dia, encontro, tomo conhecimento ou convivo com gente assim. A sede dessas pessoas quanto a possuir cada vez mais, parece-me inadmissível.
Como “recompensa”, em geral, morrem de infarto; sob um jamanta em dia de muita pressa; assassinados em tramas ilícitas… Quando escapam dessas tragédias, envelhecem precocemente, estando sempre tensos e nervosos por ter perdido uma boa oportunidade de ganhar mais, ou então, pelo prejuízo sofrido em alguma transação. Pessoas assim passam pela vida na mais extrema miséria. Sim, porque não há pobreza pior do que aquela que usurpa o direito de viver em paz e ser, quanto possível, feliz.
Rico, milionário mesmo, é o homem que tem, no máximo, uma casa para morar, um carro para passear e uma fonte de renda que lhe permite viver e educar (se casado) dignamente seus filhos. Além disto, todo o mais é estupidez, ganância injustificável. Entretanto, aos que necessariamente sustentam grandes empreendimentos como fábricas, universidades, indústrias…, não deveriam nunca esquecer que também têm o direito de passar algumas semanas no sossego, sem o infortúnio que a importância lhes acarreta.
Não que eu afirme que possuir muitos bens seja crime. Minha dedução lógica se prende ao fato de que a riqueza endurece as pessoas, deixando-as, na maioria das vezes, insensíveis e egoístas. Dividir o que se tem é uma coisa divina e como tal, muito difícil. Entretanto, o maior mal que “o além do necessário” causa é à própria pessoa que o retém.
Conheço muita gente assim: todos nós conhecemos. Se chamados para um sarau, um convescote, uma pelada ou pescaria, nunca têm tempo. É um inquilino inadimplente; uma praga na fazenda; um gerente desonesto; um telefonema suspeito; um carro batido…, meu Deus, são tantos os problemas que afetam homens assim que, no final das contas, talvez não haja maior infortúnio, azar ou castigo, do que ser muito rico.
Bom mesmo, feliz mesmo é aquele que consegue ter, honestamente, o necessário. Em paz com sua consciência, ele dorme bem e tem tempo para ver e usufruir um pouco deste mundo maravilhoso que Deus criou com tanto esmero.
Toda essa miséria que grassa, essas desigualdades sociais que imperam, esses sofrimentos que nos levam às lágrimas, tudo isso, enfim, não é do agrado do Criador. São gerados pelos gananciosos, aqueles que manipulam o poder, imaginando-se eternos – e também os preguiçosos que têm medo do trabalho, esperando que sua condição de miserável acomodado comova os governantes e o próprio Deus. Na verdade, pessoa alguma cumpre plenamente sua função neste mundo.
Não há, em resumo, um único adulto sobre esta Terra que não seja, direta ou indiretamente, responsável por tudo quanto de ruim acontece.

ENQUANTO DORMIMOS
No dia vinte e oito de outubro de 1993, pela quinta vez no ano, víamos e ouvíamos pela televisão, notícias aviltantes contra os mais elementares direitos dos seres humanos. Bem na hora do jantar (e o repórter pedia desculpas pela coincidência) mostraram ao mundo, um verdadeiro campo de extermínio e morte. A única diferença dos campos nazistas é que lá se matava com gases de ação fisiológica asfixiante ou a tiros, e ali, de inanição – literalmente, de fome.
Não acredito que alguém, neste século XX, tenha visto cenas mais traumatizantes, ainda que tenha revivido o pesadelo da Divina Comédia de Alighieri, no que tange ao inferno, é claro.
Como se comportam as nações que tanto apregoam os direitos que cabem fundamentalmente ao homem e que devem ser universalmente respeitados, diante do sofrimento e morte de milhares de crianças inocentes? Onde se meteram as organizações que mandam emissários vasculhar os presídios quando policiais eliminam bandidos? As religiões e os religiosos que tanto aconselham a caridade cristã? Nós, que tanto criticamos e exigimos que a justiça se cumpra, o que fazemos para que isto aconteça?
Que fazem nossos líderes cristãos que não usam do prestígio e da fé para congregar seus fiéis seguidores, a fim de que tenham como prioridade, salvar aqueles milhares de irmãos jogados como cães sarnentos, morrendo à míngua nos desertos da Somália, na Etiópia ou em Biafra?
A desculpa de não interferir na soberania de um país é a história mais forjada e menos convincente que podemos ouvir. Os Estados Unidos, a antiga Rússia, enfim, todos os países considerados grandes, desde que haja conveniência e vantagem, invadem qualquer nação sem o mínimo respeito a qualquer “SOBERANIA ou DIREITOS HUMANOS”.
Agora, como no passado, não há – e a mim me parece – não haverá no futuro, lei para todos. Ela foi e será estabelecida sempre para os mais fracos: pessoas ou países. Há um parágrafo invisível na “Constituição do Mundo” que estabelece a força e o poder como tronco principal de onde partem todas as demais leis universais.
As imagens mostraram uma área maior que um campo de futebol, atapetada de crianças a pele e osso, os dentes para fora, os esqueletos apenas recobertos por fina e ferida pele; crianças cheias de moscas entrando pela boca, olhos esmaecidos, semblantes de morte. Caveiras humanas secando ao sol como reses mortas nas longas estiagens do Nordeste Brasileiro. Meu Deus, onde chegamos!
“É guerra civil: ninguém deve se meter. O problema que criaram, eles mesmos devem resolver” – justificam os acusados líderes do mundo. Mas eu pergunto: e a invasão do Afeganistão, do Vietnã, dos países da América Central…?
Não, não se está respeitando a soberania de ninguém e sim evitando um gasto sem retorno econômico. Onde houver petróleo, rotas importantes, minerais imprescindíveis…, os tais DIREITOS HUMANOS nunca serão respeitados. O mundo, acumulando erros sobre erros, já não tem diretriz para a fraternidade. De fato, estamos transformando a casa de Deus num covil de ladrões. Resta-nos a esperança de que nossos líderes, ao menos os religiosos, esses que nos ensinam os mandamentos como prioridade de vida, não se esqueçam que devemos amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Será que há alguém que sonha morrer de fome e sede, totalmente abandonado num deserto quente?
É, no mínimo escandaloso repetir a verdade de que se gasta com armamentos e guerras, mil vezes o que daria para resolver o problema da fome no mundo. Mesmo assim a situação nunca mudou, os grandes nunca modificaram seus objetivos diabólicos.
Por que será que escolhemos o mal no lugar do bem? Plantamos o ódio no lugar do amor? Semeamos a discórdia no lugar do entendimento? Odiamos ao invés de amar? Queremos tudo para nós, quando poderíamos – sem que o necessário nos faltasse – dividir com nossos irmãos, aquilo que Deus nos emprestou?
“Quando os ramos estiverem tenros e nascidas as folhas, conhecei que está perto o estio.”
Se não acordarmos depressa, iremos morrer dormindo, acreditem. Já não há como encobrir as evidências. Acontecem a cada dia, em cada lugar, bem pertinho de nós – enquanto dormimos.
Só não tenho medo de presenciar o fim porque para Deus Eterno, o amanhã pode ser daqui a um trilhão de anos…. Ou mais.

AMOR
Certamente, foi num momento de amor que Deus criou o homem. Com certeza, desceu dos céus e submeteu-se às maiores humilhações neste mundo para nos ensinar a amar. Do amor, o homem fez as paixões – uma réplica falsa que tenta, vãmente, substituir o mais belo dos sentimentos.
Além de alimentar-se, os seres humanos parecem não ter outra preocupação, senão amar. Os romances literários, as composições musicais, os bate-papos de esquina…, tudo, enfim, é uma eterna repetição de relatos e histórias sobre o amor. No entanto, o que imaginam ser amor, quase sempre, é efêmera paixão: paixão pelo sexo, pelas riquezas, pelo poder, pelo prestígio…
Quando duas pessoas se unem pelo matrimônio; quando alguém tira a própria vida porque foi abandonado; quando encontramos alguém bêbado na calçada; quando as maiores aberrações humanas acontecem…  Quase sempre o amor/paixão explica.
Mas, qual é o conceito que fazemos de amor? Será que vale a pena lutar por alguém que não gosta da gente? Será que quando um parceiro trai o outro, há jeito de repensar, acabar com a traição e fazê-lo tornar sinceras as declarações contritas dos primeiros tempos? Será que quem deixou de amar uma pessoa, a amou em algum tempo? Será que se pode confiar na regeneração da mulher casada que cometeu adultério uma vez?
Tal fato não acontece com todo mundo, mas acontece a toda hora: com o vizinho, com o amigo, o parente… O certo é que acontece todos os dias bem pertinho da gente. Vejo apaixonados clamarem pela volta da rebelde; vejo mulheres se sujeitarem à inconstância dos maridos, implorando fidelidade e amor.
Será que quem trai, abandona ou mata, ama ou amava o companheiro ou a companheira? Será que há possibilidade de o amor verdadeiro morrer ou se acabar?
“Mais antigo que pé de serra”, é a máxima que apregoa que “quem deixou de amar, nunca amou”, e nisto eu estou de pleno acordo. Houve paixão e que, como tal, tão logo os seios dependuraram, os quadris se alargaram, e os entraves da convivência se acentuaram, evaporou-se como éter exposto ao sol. E quanto isso acontece, nada é mais inútil e estúpido do que tentar fazer renascer uma paixão que acabou ou um amor que nunca existiu. O ódio é irmão mais velho da paixão e sempre a socorre nos momentos de tribulação.
Mesmo a paixão, com aparência de amor, quando acaba, só Deus, através de intervenção direta, poderá ressuscitá-la: ela nasce da atração que um – por alguma qualidade física, ou mesmo moral – sente pelo outro. O amor verdadeiro, no entanto, além de não se preocupar com estas coisas nem com o que o outro possui, nunca acaba. Se se diz que acabou é porque nunca existiu. Contrariamente, a paixão aparece e desaparece, bastando, para tanto, qualquer motivo fútil. É mais que possível um homem apaixonar-se muitas vezes: amar, não. O amor só acontece uma vez e tendo acontecido, não se desdobra, porque é um sentimento único e divino.
Ele é raro, difícil de ser descoberto, ativado e dado a alguém. Não é por outra razão que, às vezes, morre um cônjuge e o outro passa o resto da vida sozinho; não é por menos que, às vezes, um casal comemora bodas de brilhante, depois de setenta e cinco anos de lutas e sofrimentos.
Em contrapartida, milhares se separam depois de pomposa festa de casamento e de bem estudadas juras de amor eterno. Noventa e nove por cento dos matrimônios se dão por interesse, por paixão ou por imposição. Cem por cento desses casamentos, se resistem, é por responsabilidade, por causa da sociedade, dos parentes e, principalmente, dos filhos.
O amor é como a vida que só temos uma. É ele a pedra preciosa mais profunda e mais bem escondida que existe dentro de nossos corações. Não é raro as pessoas passarem pela vida sem descobri-la, sem usufruir da felicidade que dela emana. O amor total é quase impossível de ser utilizado, porque representa a doação completa em troca de nada. Jesus Cristo em lugar absoluto, e muitas mães em relação a seus filhos, são os mais dignos representantes do verdadeiro amor.
Enquanto namoramos, enquanto nos interessamos por alguém ou por algum ideal, estamos escavando o âmago de nosso ser à procura dele. Se não se é um bom conhecedor, pode-se tomar turmalina por esmeralda, o que é mais comum. A falsa descoberta, em geral, encerra nosso trabalho de procura. É quando o homem se contenta com a paixão e se esquece do amor verdadeiro, ficando sujeito a sérias frustrações.
Todos nós temos amor no coração. Se nunca amou ninguém, continue procurando, porque ele existe e está em você. Ele é a essência da vida. Sem ele ninguém nasce, pois, a vida é fruto do amor de Deus. O amor é a dose certa do ódio: se abusar da medida, pode matar.
Hoje, o mundo vive atrelado à religião, aos costumes, à moral, à tradição e entende que não se pode desunir o que Deus uniu, no caso, o homem e a mulher pelo casamento. Aqueles que acreditam nisso, com amor ou sem ele, pela responsabilidade, carregam a cruz até o fim; os que não acreditam, se não foi por amor que se uniram, nos primeiros contratempos e percalços, esquecem o juramento e se somam aos renegados e frustrados do mundo.
Em sendo assim precisamos garimpar o amor, descobri-lo, burilá-lo e não errar na hora de oferecê-lo a alguém. Sim, porque de nada adiantará oferecer seu amor se o outro, em troca, lhe der paixão ou interesse. Se isto acontecer, você será uma pessoa fiel, e mesmo com amor, infeliz, porque a traição, ou quando nada, o descaso, ser-lhe-á, apenas, uma questão de tempo. Não é por outro motivo que a maioria dos casamentos são imbeles aos contratempos materiais e às incompatibilidades de gênio.
Quando duas pessoas se unem porque a idade já não permite escolher; porque não está vivendo bem em casa; porque o futuro cônjuge é rico; porque o candidato tem prestígio; porque ficou grávida; porque os pais fazem gosto ou mesmo forçam; porque as coleguinhas dizem que o rapaz é um galã; porque a rapaziada estica os olhos no bumbum arrebitado que desfila; … Quando isto ou coisas inerentes acontecem, para predizer um fim trágico, não é preciso agourar, apenas ter um pouquinho de paciência e esperar.

A IRA
O homem parece ser o ente inteligente mais burro do planeta. Não há nenhum outro animal na face da Terra que tanto incorra nos mesmos erros e que tão cego se mantém diante das evidências, dos exemplos e das lições do mundo durante uma vida inteira. Os animais silvestres (posso dizer isso com embasamento porque lido com eles desde criança) uma vez presos em armadilha, se soltos, não pisam mais naquele mesmo tipo de laço, armado nos mesmos moldes daquele em que caiu.
Era eu ainda menino e já trazia comigo o orgulho de não perdoar, ou quando nada, de não esquecer as maldades ou qualquer coisa de que eu não gostasse que fizessem comigo. Em menos de dez anos consegui aborrecimentos, angústias, insônias e sofrimentos para o resto da vida. O mais interessante é que eu ficava estarrecido com a estupidez de meus semelhantes quando se metiam em encrencas, quando se achavam intocáveis e revidavam animalescamente. Pior ainda quando me convencia de que eu era igualzinho a eles. Sofri muito, perdi noites de sono e descanso, abreviei meus dias…, meu Deus!, não poderei agora precisar o quanto perdi de amizades, de alegria e de paz!
Mas fui vivendo, apanhando, sofrendo, entendendo, enfim, que na realidade, bem-aventurados serão sempre os mansos, “porque possuirão a Terra”. Dia a dia, passo a passo, fui vendo naqueles que me criticavam ou acusavam, que me machucavam fisicamente ou me feriam a alma que, possivelmente, eram melhores do que outros que me bajulavam apenas para tirar proveito. Olhando para dentro de mim, verifiquei que minhas falhas eram apenas outras, porém não menos graves do que aquelas que estranhava nos outros.
Hoje – ainda um monumento de defeitos – posso perceber que a grande construção defeituosa que represento, vive, ao menos, uma promessa de restauração. Aprendi um pouco que mais ganhamos baixando a cabeça do que erguendo a voz; que enquanto ouvimos, aprendemos mais do que aqueles que estão falando; que depois de recebermos com resignação uma ofensa, vem-nos uma sensação melhor do que quando revidamos. Comecei a ver e a perceber nos que se agrediam, uma coisa degradante, desagradável, deseducada e vergonhosa. Notei que, às vezes, eu levava um tempo muito grande para conseguir uma amizade, e depois, qual um prédio implodido – por inconveniente observação – punha tudo a perder.
PASSAR deveria ser um verbo inerente à nossa alma. O que passou, teria a obrigação de desaparecer mesmo. Por que, então, eternizar o rancor? Assim como iremos embora daqui um pouquinho, assim também os nossos momentos desagradáveis deverão passar. Para que esbravejar, gritar, agredir, arreganhar os dentes, se a vida nos mostra que sempre a vantagem fica com os tolerantes e comedidos?
Um pequeno esforço, um contar até dez, uma mordidinha na língua, pode evitar muitos dissabores. É nos momentos inesperados, difíceis e de descontroles que conhecemos o verdadeiro homem. “Com o mar calmo, todo mundo é bom timoneiro”.
Quem assiste a qualquer jogo – futebol, vôlei, basquete… – sabe que, da arquibancada, é muito mais fácil perceber as falhas dos jogadores. Nota também que o jogador violento, preocupado em reclamar de tudo e com todos, dificilmente desenvolve todo seu potencial esportivo. O jogador “reclamão” é sempre um atleta que leva para os campos e quadras, as suas questões pessoais e particulares, problemas que ele mesmo criou. E há muito já se disse que todo problema que a gente mesmo cria, não tem solução.
“A ira é sempre mais prejudicial do que a ofensa que a provocou”. “Se pudéssemos ser corteses por um dia, a inimizade entre os homens se transformaria em amor”. A sabedoria antiga é rica em enaltecer a paciência e a humildade e a incriminar e desdizer os descontroles emocionais. A vida, em nosso dia a dia, mostra essas verdades. O homem – a história prova – desde os primórdios de sua existência, continua buscando, conscientemente, sua própria desgraça.
A gente dificilmente brigaria ou discutiria com alguém se deixasse a discussão para mais tarde. Experimente quietar quando alguém lhe diz algo de que não gosta. Vá para casa, tome um banho, jante, sente-se num lugar sossegado e pense nos prós e nos contras que um desafeto pode ocasionar; lembre-se que está montado num planeta que zune perdido no infinito; que amanhã fará uma viagem sem retorno e que seu destino será marcado pelo seu comportamento. Sim, porque quando os outros animais morrem, apenas o couro fica como lembrança; mas o homem não: do homem ficam suas obras e o bem que praticou.
Houve um tempo em que, maldosamente, eu incitava a ira só para saber o que pensavam de mim. Uma pessoa zangada perde o escrúpulo de dizer o que pensa a nosso respeito. Nesse tempo eu não quietava por humildade, mas sim por esperteza e maldade. Serviu-me, ao menos, para perceber que jamais devia retrucar quando estivesse fora de mim. Auxiliou-me, outrossim a avaliar o que tantas tapinhas nas costas, tantos sorrisos e tantos elogios encerram de hipocrisia. Se pudéssemos traduzir e ver o que a educação e o interesse, às vezes encerra de falsidade, certamente ficaríamos desolados e desiludidos com muitos de nossos amigos.
É sábio reconhecer que não existe verdade absoluta além da existência de Deus e que as coisas nem sempre são aquilo que nos parece ser. São o ângulo e o tempo que determinam nossa definição e nossa verdade. Por isso, aquele que defende uma ideia, poderá não estar errado, apenas olhando e vendo a coisa por outro ângulo.
Quando retrucamos, quando difamamos alguém que tem o hábito de falar mal dos outros, estamos nos igualando a ele. Quando dizemos: fulano tem que ser castigado porque errou; ou quando insistimos em retribuir um mal que nos fez, certamente estamos sendo iguais a ele. O diferente não age do mesmo modo. É, sem dúvida alguma, olhando as pessoas, vendo como atuam, o que dizem e fazem, que podemos, mais precisamente, saber quem somos nós.
Um homem irado transforma-se. A gente vê em seus olhos, a flama do ódio; em seu rosto, a lividez do descontrole. Transforma-se num retrato amarelecido, sem aquela cor rósea da pureza de uma criança sem maldade. É como se, por alguns instantes, Deus lhe arrancasse o raciocínio e o transformasse num animal irascível. Por isso, não há argumento que justifique uma discussão. Havemos de pensar um pouquinho antes de proferir qualquer agravo, mesmo porque, uma pedra, mesmo sem ser atirada propositadamente, se pegar, machuca.
Uma das razões que mais devia nos convencer do quanto é sensato ser manso, são os estragos que os desafetos causam às duas partes conflitantes. Se colocarmos dez pessoas falando bem a nosso respeito e uma falando mal, certamente as dez perderão. Outra razão é que o ofensor também é um ser humano, capaz de mais tarde reconhecer o erro, emendar-se e se tornar um nosso benfeitor e amigo. Reconhecer o erro não é fraqueza e sim uma grande prova de equilíbrio e humildade. Você já pensou se todas as vezes que foi indelicado, as pessoas afetadas se vingassem? E se Deus, nosso Pai, não nos remitisse pelas milhões de vezes que fazemos coisas erradas?

A PERSONALIDADE
Personalidade é a marca registrada de cada pessoa. Ainda que houvesse um trilhão de seres humanos, não existiria um exatamente como o outro. De fato, somos um universo misterioso que jamais será verdadeiramente definido por alguém.
Nossas preferências, inclinações, temperamento, enfim, todos os sintomas e vicissitudes são estilhaços de nosso caráter, criadores de nossa personalidade. Ainda que filhos dos mesmos pais, ainda que vivendo sob o mesmo teto, ouvindo e vendo durante a vida inteira o que dizem e como agem seus genitores, jamais qualquer filho será uma cópia fiel daqueles que o geraram, criaram e instruíram.
Num todo somos muito parecidos, mas nos detalhes, as diferenças são inumeráveis. Mesmo em famílias numerosas, não há dois rebentos iguais. Um gosta de levantar tarde, outro não suporta carne de porco, outro é vidrado em jiló…. Torna-se dispensável a enumeração, pois todos conhecem.
Um amigo conviveu com uma família unida que criou três filhos homens. Todos receberam os mesmos cuidados e orientações, frequentaram os mesmos colégios e igrejas…. Um se tornou padre, outro, homossexual e o terceiro, bandido. Quem puder, explique.
Nossos vícios, virtudes e costumes formam nossa personalidade. Mas, ainda que sejamos sinceros, que abramos nossos corações, que digamos a um amigo de fé o que sentimos, o que queremos e o que esperamos, jamais ele poderá prever nossa reação nos momentos inopinados.
Na verdade, diante de situações embaraçosas e inesperadas, tomamos decisões equivalentes. No entanto, se o problema for qualquer coisa em que se leve muitos dias ou até meses para resolver, preferimos nos despojar do que somos na realidade, para agir de acordo com a família, a comunidade, enfim, de conformidade com o que esperam da gente.
No caso de infidelidade da mulher, por exemplo: a maioria dos homens, quando ama ou ao menos tem paixão pela companheira, gostaria muito de esquecer o fato, mesmo porque sabe que a maioria dos homens também é infiel. No entanto, o vizinho, os amigos, a comunidade em que vive, a sociedade enfim, parece não admitir que algum homem possa perdoar a mulher adúltera. Isso fere mais a estúpida tradição de machismo do que propriamente a moral.
Embora isso seja mais comum no relacionamento entre homem e mulher, o mesmo acontece em outras situações. Nos desafetos, por exemplo, quando alguém fere a moral do outro, muitas vezes ele gostaria de quietar, deixar para lá, não aumentar o problema…, mas, os que viram e ouviram, aqueles que desejam ver o circo pegar fogo, os tais falsos amigos, na incansável maldade de reavivar o fato, acabam por desencadear um ódio que quase sempre acaba em tragédia.
A personalidade de cada um é sempre muito truncada pela educação, pela religião e pelo medo. Por entender que é feio reagir irascivelmente, o homem quieta; por medo das chamas do inferno, humilha-se; pelo medo do adversário, acovarda-se. Mas lá dentro, ele é capaz, ora de reagir; ora de agredir; ora de mandar matar. Aquelas coisas que não fez, mas que, não houvesse sido criado como foi, faria, são os tópicos de sua verdadeira personalidade. As pessoas com quem vive podem acionar ou não os traços maus de seu caráter, mudando sua personalidade. Daí o grande valor de boas amizades.
O que constatei durante o mais de meio século de minha vida é que o homem é propenso a refrear seus instintos maus. Porém, o meio em que vive; a falta de compreensão e amparo; as amizades que compartilha e a comunidade com a qual se relaciona, são os grandes responsáveis pela maior parte de seus desatinos.
A gente percebe que se é possível comover o pior dos criminosos; que se é possível cativar uma criança delinquente que vive assaltando e roubando nas ruas; que se é possível mudar qualquer pessoa, desde que ela acredite, confie e veja naquele que a ampara, a honestidade de se preocupar com ela.
Assim como nossa omissão cria muitos revoltados, assim também nossa fraternidade ativa, retira do mau caminho muitos marginalizados. A inter-relação tem um grande peso na conquista de uma sociedade mais ou menos justa. Automaticamente, tem a força de redefinir nosso comportamento.
A personalidade é um tanto comum ou parecida num povo, conforme seu desenvolvimento. Já foi dito que as pressões de uma sociedade muito influenciam na personalidade de cada membro. Num país subdesenvolvido, as pessoas parecem (mas só parecem) mais agressivas do que nos desenvolvidos. As pessoas são parecidas, mas a personalidade é freada ou solta, conforme o meio em que vive e a educação que recebe.
O homem civilizado parece usar a personalidade conveniente, criada, adaptada à convivência em grupo; o não civilizado usa aquela com que nasceu. O civilizado é imprevisível em suas decisões, quase sempre tomadas de acordo com seus interesses pessoais. Aquele que não trabalha a personalidade com que nasceu, os silvícolas por exemplo, agem, quase sempre de maneira parecida.

PECADO
Pecado, consciência acusativa, remorso…, são algumas entre as tantas vicissitudes que desassossegam o espírito do ser humano. Certamente, todo aquele que sente remorso depois de qualquer ato praticado, pecou, porque a nossa consciência é o juiz que nos julga e que especifica com retidão aquilo que devemos ou não fazer.
Não existe pecado indicado, prescrito, delineado, preestabelecido por Deus, a não ser aqueles que ferem nossa tranquilidade e paz. Cada religião tem seus mandamentos, seus dogmas, seus conselhos, mas tudo não passa de recomendação ou lição preliminar à formação plena da consciência.
O mandamento não matar, por exemplo, não afirma que todo aquele que tirar a vida de outrem, estará condenado ao fogo do inferno. É muito comum, infelizmente, causarmos acidentes fatais a nossos semelhantes, independentemente de nossa vontade. Uma arma que, acidentalmente dispara; uma árvore que se derruba e que, eventualmente cai em direção contrária, atingindo pessoas que lá se encontram; um carro que solta a barra da direção, desgoverna-se e atropela pessoas na calçada; … Na verdade, o primeiro item que Deus certamente usará para culpar-nos, ou não, é a averiguação de nossa intenção e de nosso consentimento.
Um conceito errado a respeito, tanto da bondade como da justiça de Deus, poderá comprometer seriamente a nossa paz e felicidade. Há pessoas tão escrupulosas que vivem em desassossego espiritual somente porque disseram um palavrão ou porque foram sobressaltados por pensamentos libidinosos, ainda que sem seu assentimento pleno. Quem, até hoje, já não foi acometido daquilo que os ascetas chamam de tentação? E o pior é que, para aquele que acreditar que dizendo um palavrão estará cometendo um pecado mortal, certamente assim será julgado. Afinal, ele mesmo é o seu juiz e ele mesmo estará se sentenciando. Como sabemos, embora os critérios judiciais difiram e, às vezes nos pareçam injustos, são sempre impostos e cumpridos. Nossa consciência é nosso juiz.
Outros há que não veem pecado em nada. Acham normal ou aceitável o sexo fora do casamento; o desvio da merenda escolar; a sonegação de impostos; a grilagem de terras públicas; o uso de mentiras para efetuar um bom negócio; … Pessoas assim, depois de sufocarem por longo tempo os reclames da consciência, acabam por criar sua própria religião, modelando o seu deus conforme suas fraquezas, e não as vencendo por amor Àquele que o criou. Quando alguém chega a esse estágio, torna-se perigoso e não confiável.
Importante mesmo é buscar o equilíbrio, fugindo do radicalismo que, como tal, é pernicioso. Ainda é válido o provérbio: “Nem oito, nem oitenta.”
Somos imperfeitos e fracos. Uns mais, outros menos, mas na verdade, todos nós falhamos todos os dias. O erro, pois, faz parte do ser humano. Está em nosso ser como o sangue. É possível até que não consigamos viver sem ele. Afinal, Deus não seria único se também nos fizesse perfeito. Jamais os computadores desenvolverão todo trabalho do cérebro que o engendrou.
Ninguém é culpado pelas taras da hereditariedade, nem pelas inclinações genéticas. Nem todo santo é tão merecedor pelas virtudes que pratica; nem todo assassino é tão culpado pelos seus desatinos.
Se construo uma bicicleta, não posso exigir que desempenhe o papel de um ônibus. Somente Deus sabe o percentual de graça dado a cada um de nós. Entendo que todo nosso merecimento se firmará no quanto evoluímos a partir daquilo que recebemos de Deus, assim como todo castigo se imporá pelo descaso à graça recebida.
A quem tem muito dinheiro não é difícil a construção de monumentos; a quem não tem nada, até uma palafita é custosa.
Quem nos garante que os grandes benfeitores da humanidade não poderiam ter feito muito mais? Quem nos provará que Hitler, por exemplo, não poderia ter praticado um genocídio ainda mais catastrófico?
Deus, somente Ele, poderá avaliar como as pessoas usaram as “dracmas” que lhes foram confiadas”.

FELICIDADE
Felicidade é sempre um momento de satisfação que, às vezes invade nossa alma. Ela é um vaivém constante em nossa vida. De quando em vez alguém se deita mal-humorado e sem que encontre explicação convincente, acorda alegre, contente, achando que o mundo não poderia ser melhor nem mais bonito. Foi como se, durante a noite, anjos houvessem descido dos páramos celestiais para realizar todos os seus sonhos, mesmo aqueles que considerava impossíveis. Comumente o contrário acontece também.
A felicidade é um sentimento encontrado em todas os ambientes de prazer de nosso espírito e varia muito de valor, indo de um simples sorriso às mais extravagantes fortunas da Terra. Convivendo com as pessoas a gente percebe isso em cada encontro. Há aquelas que resumem a felicidade em ter sempre mais, assim como há outras que vivem nos contagiando com sua alegria, simplesmente por estarem vivas.
Ontem fui ao fórum testemunhar o casamento de dois jovens humildes. Aqui em Imperatriz – informaram-me – os casamentos no fórum só acontecem às quartas e sextas-feiras. Talvez, por causa desta formalidade, havia mais de vinte casais, todos simples e humildes. Na hora de dar o nome, percebi que a pessoa que anotava (escrivã, talvez), cobrava a quantia de trinta e sete reais. Quase todos os casais se entreolhavam e um dos dois acabava sempre saindo de fininho à cata da “vultosa” quantia.
Na primeira oportunidade perguntei aos noivos a quem eu testemunharia a união, quais eram os planos deles para a nova vida. Disseram-me que pouco iria mudar, além do compromisso assumido de se respeitarem e de se protegerem pelo resto da vida. Ela continuaria na casa em que trabalhava há mais de três anos, e ele não deixaria a residência dos pais. Começariam, naquele exato momento, a economizar todo centavo, na esperança de um dia ter um barraco com o indispensável para se virarem sozinhos na vida.
Apesar de toda essa dificuldade, seus olhos brilhavam. Ela sorria o tempo inteiro e ele não conseguia esconder seu contentamento ao ir e vir pelas salas e corredores do fórum. A felicidade que lhes parecia palpável, era comum a todos os demais nubentes. Pelo brilho dos olhos não ficava difícil perceber esse detalhe.
Entendo que em tudo o que acontece ao nosso redor – do desabrochar de uma flor à erupção de um vulcão – há uma necessidade, ainda que sutil, uma explicação, uma lição que ALGUÉM nos passa para vivermos melhor neste mundo. É um dó que muitos sejam insensíveis, passando pela vida sem se aperceber dos matizes das flores ou da singeleza dos pores-do-sol.
Se observarmos um pouquinho (um pouquinho só) da vida, haveremos de perceber como são diferentes as pessoas quando se trata de felicidade. Umas, se não tiverem dinheiro para gastar, prognósticos alvissareiros, roupas novas em cada festa, carro do ano…, estão sempre de mal com o mundo, tornam-se azedas e desagradáveis. Outras, contrariamente, agradecem a Deus a saúde; disseminam alegria se ganham um ursinho de pelúcia; passam uma semana inteira tensas e afoitas para conseguirem a passagem à Pedra Caída; permanecem ao espelho, por horas a fio, esticando os cabelos encaracolados para a festa de logo mais à noite; …
Na verdade, ninguém faz a felicidade de alguém. Ela é apenas a consequência de nossa conformidade. Pode-se dar o mundo a uma pessoa insatisfeita que ela não sorrirá; deem uma bolinha-de-borracha a uma criança compreensiva, e isto se transformará num presente inesquecível.
Não culpo os eternos insaciáveis, nem deixo aqui os louros àqueles que nos parecem exemplo de conformidade e contentamento. Poderia fazê-lo se, ao invés de Deus, fosse a mim dado o poder de estabelecer-lhes as características genéticas. Se assim o fosse, eu saberia quem merece ou não, o castigo ou o galardão. Hoje, não duvido: somos aquilo que a genética estabelece.

PAIXÃO
Paixão é um sentimento ou uma vicissitude responsável por quase tudo de extraordinário que acontece no mundo. Quando forte ela se transforma numa avalancha que arrasta a razão, a sensatez, o bom senso e tudo quanto nos ensinaram como racional, justo e honesto.
Fantasiada de amor ela é tão perigosa como transar com aidético; numa eleição, é inconsequente a ponto de o povo escolher os próprios algozes como se o eleitor fosse um autêntico masoquista; se nos esportes, tem a capacidade de agigantar aquele que entra para apenas competir, podendo fazer dele um campeão.
Faz chorar e sorrir continuamente; cria tensão, insegurança e medo; torna-nos injustos, fazendo com que criemos fantasmas e inventemos fatos que jamais existiram; alia-se ao ciúme para justificar sua permanência doentia. Faz-nos seus dependentes, subjugando nosso bom senso e nossa sensatez, transformando-nos em autômatos de suas ordens.
Anda próximo do ódio, da vingança…, é uma das explicações mais bem aceitas para os acontecimentos provocados pelo homem, aparentemente inexplicáveis. É desrespeitosa, irreverente: pisoteia, sem piedade, toda norma, toda tradição, toda religião, todo princípio digno. É responsável pelos santos que enfeitam nossos altares e pelos demônios que padecem no inferno.
Coirmã do desespero, às vezes elimina do ser humano a principal característica que o torna diferente dos outros animais: o raciocínio. É o caminho mais usado pelos desesperados, fazendo com que optem pelo fim da própria existência, diante de seu achaque intermitente.
Bela e efêmera, faz com que, mesmo os mais sensatos lhe abram espaços, intercalando em sua vida um tempo de prazer, e também de angústia. Não há um só ser criado neste mundo que já não tenha passado pela amarga experiência de tê-la dentro do coração.
Faz-nos perder o sono, torna-nos nervosos e agressivos, alimenta nossa resistência, enche-nos de estranha e inconsequente coragem, transforma-nos em imbecis e idiotas, leva-nos a ações degradantes e inconfessáveis. Fragmenta nossa honestidade, faz-nos baixar os olhos perante o espelho como se tentasse poupar-nos das acusações da consciência.
Quantos crimes, quantas desilusões, quantas ações nefastas, e quanto prazer também, ela já proporcionou! Guerras, suicídios, assassinatos, lágrimas…, sorrisos, grandes movimentos humanitários, tudo por causa das emoções criadas por ela.
Pudesse o ser humano eliminá-la e estaria livre da maior fraqueza que assola sua existência. Cada mal tem sua influência:
– Menina, tão nova e bonita, por que insiste em ferir as leis naturais? Não consegue entender que não é normal, nem aceitável, viver maritalmente com outra mulher? Tem, ao menos, lutado contra isso?
– Nunca vi ninguém lutar contra aquilo que gosta – respondeu-me ela, cabisbaixa, talvez um tanto chateada pela revelação. Bom para as pessoas é aquilo que elas querem. Por acaso não luta você por aquelas coisas que imagina fazê-lo feliz?
– Mas, e a consciência, não a acusa de nada?
– Estou certa que imagina que sim, mas não é o que acontece comigo. Minha companheira me trata bem, a gente se respeita; levamos em conta as dificuldades uma da outra. Não acreditamos que o prazer seja pecado. Lutamos para vencer na vida e quando nos sentimos sós, quando a tristeza tenta avassalar nossa resistência, achegamo-nos mais e conversamos, e nos amparamos, e nos transferimos o grande amor e apreço que mantemos uma pela outra. Não tenho nada contra os homens, porém, nunca houve um que me desse felicidade e respeito.
Mergulhada em sua paixão, a menina dobrou a esquina. Não me pareceu com problemas além daqueles que afetam toda moça pobre e desempregada. Também meus conceitos se recolheram, sem que houvesse em qualquer parte de mim, alguma coisa que a censurasse. Como condenar alguém, como atirar a primeira pedra naquele que tem a consciência tranquila e luta por aquilo que gosta e o faz feliz?

RELIGIÃO
Em não se acreditando que possa haver duas verdades para uma mesma questão, fica difícil admitir que toda religião salva. Se num julgamento alguém é acusado de haver furtado alguma coisa, a verdade deve ser uma só: ou, de fato, roubou e é culpado; ou, não pegou nada e é inocente. Também uma religião: ou é verdadeira e salva; ou é falsa e condena. Para se viver em qualquer crença, há rituais e normas, dogmas e mandamentos, obediência e sacrifícios…, um longo percurso a ser desfeito.
A questão, porém, não é saber o caminho, mas sim o ponto a que essa caminhada vai nos levar. A verdade, neste caso, é o fim da estrada e não ela em si. Eu, por exemplo, posso sair de minha cidade de Imperatriz, seguir rumo a Belém passando por Açailândia, Cajuapara, Itinga, Paragominas e Castanhal; posso também chegar lá passando por Goiânia, Brasília, Belo Horizonte, Vitória, Salvador, Feira de Santana, Picos e Castanhal, dando assim uma imensa volta, mas alcançando, do mesmo modo, a cidade de Belém.
Nossa caminhada é empreendida para alcançar a salvação e por meio dela, o nosso Deus Criador. O problema, pois, é Deus. Como Ele é o único verdadeiro e eterno, quem se atrever a ter outro, ou melhor, quem optar por itinerários que levem a deuses estranhos, falsos e efêmeros, terá uma recepção frustrante e irreversível quando chegar ao fim de sua caminhada. Pode até encontrar lá um deus, mas será um deus revoltado que só quer o nosso mal e que nos mergulhará nas trevas da inexistência no Juízo Final.
Toda religião, ou todo caminho, se na direção do mesmo Deus verdadeiro, certamente levará o fiel à vida eterna. Não foi por menos que quando os apóstolos protestaram contra outros que, embora não sendo do seu grupo, estavam operando milagres em nome de Jesus, foram repreendidos pelo mestre que explicou: “Não lho proibais; porque não há nenhum que faça milagres em meu nome, e que possa logo dizer mal de mim; porque quem não é contra mim, é por comigo.”
Todas as religiões cristãs (pois é inegável a divindade de Jesus), quando praticadas com convicção e amor, quando não se deixam levar por ideologias radicais, quando visam a paz e a salvação das pessoas, representam o curso certo para se chegar à salvação; contrariamente, se viverem com imposições, dando soberana importância às coisas deste mundo, não tendo humildade de espírito, transformam-se num caminho adverso que nos levará, fatalmente à perdição.
As religiões cristãs se assemelham a diversos caminhos que levam ao Pai. Por meio de qualquer um deles poderemos alcançar a salvação, bastando para tanto, estarmos convictos e amarmos a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a nós mesmos. Por causa disto, é sempre inglória a luta que muitos cristãos empreendem com o fito de forçar irmãos a mudarem de caminho. Melhor seria lutar por aqueles que ainda não reconhecem o Filho de Deus como redentor, e que, por isso mesmo, estão desperdiçando a maior oportunidade deste mundo. Para ser sincero, não acredito em condenação eterna, nem ao pior dos seres humanos, – os suplícios e as humilhações pelas quais o Filho Deus passou para nos remir, são suficientes para quitar qualquer pecado cometido na Terra – mas sei que o preço que os infratores irão pagar para quitar a dívida equivalerá a um espaço de tempo que somente Deus Pai poderá equacionar.
Fico sem entender quando, aqui em meu escritório, tantos chegam para afirmar que a religião deles é que salva e que estou desperdiçando (ao relutar) a grande chance que Deus está me dando com a visita deles. No meu modo de entender, qualquer religioso tem o direito, e até a obrigação (se convicto) de falar de sua fé, sem jamais querer impô-la. Deve-se propor, nunca impor. Afinal, quem dos humanos pode garantir ser o dono da verdade? A certeza de nossa felicidade espiritual está na reta intenção e na sujeição à nossa consciência. Para se chegar a Deus, não precisa ser santo: apenas lutar para ser.
É aconselhável ler ou se informar sobre todas as religiões e crenças que existem. Estudá-las, compará-las, observá-las se são caminhos que terminam no único Deus verdadeiro. Caso em seu entendimento não sejam, deve eliminá-los e procurar, entre os tantos verdadeiros que existem, o caminho que entender como mais curto e preciso. Certamente, se assim o fizer, estará caminhando em direção certa e quando partir desta vida, ou seja, chegar ao destino, verá, com agradável surpresa, a incomensurável e eterna glória de Deus.

CONVICÇÃO E PAZ
A verdadeira paz só existe numa consciência inteiramente tranquila. Uma consciência tranquila só é percebida naquele que se convence de uma verdade e a segue fielmente.
Para o religioso convicto, a única verdade é Deus. Nele ele hasteia sua confiança e sua esperança. Pode desabar o mundo, sobrevir adversidades…, ele acredita que tem ao lado um ser superior que, embora lhe permita sofrimentos e angústias, não o irá abandonar na hora extrema. Tem plena certeza da continuidade da vida após a morte e não lhe foge da memória a promessa de que o verdadeiro reino não é deste mundo. Falta de dinheiro, injustiças, desemprego, doenças, cansaço, ameaças, temporais…, adversidade alguma consegue abalar sua fé. Desde o princípio do mundo, apenas Jesus Cristo, como homem, conseguiu atingir esse estágio.
Para outros, paz é algo relacionado com saúde, prestígio, conforto e dinheiro. Divorciam-se pelo simples desejo de trocar de mulher, aprontam, mandam matar se preciso for, extorquem…, fazem tudo o que acham necessário para manter a empáfia de serem considerados ricos e poderosos. São capazes de promover guerras em nome de seu bem-estar, porque sempre veem na hegemonia do poder, sua estabilidade financeira e também, “sua paz”. Deus, para esse tipo de gente, não passa de probabilidade remota. Não é que desacreditem peremptoriamente, mas sim porque, diante de suas fraquezas e inconstância, optam pelo mais cômodo.
Outros ainda, de sono fácil, baseiam sua paz nas noites bem dormidas, entendendo que isso representa tranquilidade de consciência. O egoísmo e a ganância não parecem incomodá-los. Afirmam que, neste mundo, quem pode mais chora menos e que tudo termina com a morte. Normalmente, são pessoas que já conseguiram sufocar ou matar os reclames da própria consciência, mediante um longo e continuado exercício de descaso à moral e aos bons costumes. Não sabem que, até Deus acaba abandonando aqueles que, quatrocentas e noventa vezes, recebem com descaso, Seus conselhos e recomendações. É, possivelmente, o fim da condescendência cristã de se perdoar, não uma vez, mas até o limite de setenta vezes sete.
De fato, enquanto vivos, crentes e descrentes vivem apenas de suas restritas convicções, não podendo, nem um nem outro, vangloriarem-se de seus pontos de vista, por serem apenas pessoais. No entanto, entre convicção dita e convicção sentida, há uma diferença que só Deus pode determinar. Afirmar uma coisa por interesse é como bajular alguém para tirar proveito, como acontece nos aeroportos quando um político desembarca; afirmar algo por convicção é como deixar a família e o país para se entregar totalmente ao bem-estar do próximo, ainda que nos mais ínfimos e desoladores recantos da Terra.
O convicto não tem uma coisa na boca e outra no coração. Aquele que, de fato acredita em Deus, é coerente, amigo, prestativo e humilde; o convicto por interesse, no entanto, é perigoso, tem duas personalidades, sendo amigo, apenas, nos momentos oportunos e, mesmo assim, daqueles que o servem. Fácil para esse é dizer uma coisa agora e desmenti-la em seguida; elogiar quando na presença e apunhalar quando pelas costas.
O bajulador é amigo enquanto estiver tirando proveito e o pior dos inimigos, quando isso lhe é tirado. O exemplo mais contundente dessa modalidade é encontrado na classe política. A maioria dos políticos troca de partido, briga e defende hoje um ponto de vista para, na eleição seguinte, criticar ferrenhamente as mesmas diretrizes que tanto apoiou e defendeu. São pessoas que não acreditam, senão, nos seus interesses, e nunca, nos da nação e do povo.
Mas, por mais contraditório que pareça, tanto os mais como os menos convictos, podem afirmar que estão em paz com sua consciência. Óbvio é, porém, que apenas os cristãos convictos dizem a verdade por acreditar que um dia deixarão este mundo para prestar conta de todos os seus atos a Deus. Excetuando-se Jesus Cristo, nenhum homem, totalmente convicto, viveu nesta Terra. Tanto os religiosos como os ateus passam pela vida pregando suas verdades com uma interrogação invisível no final de suas afirmações. Uns mais, outros menos, mas todos duvidam.
Dizendo ou não, todos sentem grande necessidade do amparo de uma entidade boa, complacente e poderosa; todos têm, embutido em alguma parte que ainda desconhecemos, caracteres transcendentais, capazes de identificar cada ser humano, como proveniente de um Ser Criador. Provas contundentes, por enquanto, só através da fé.
Ainda que milhões afirmem o contrário, estou certo que não estarão traduzindo as mensagens de seus corações, pois a saudade, o medo e a necessidade de Deus, em todo e qualquer ser humano, são sentimentos e dependência que não podemos dominar. Vivendo um infarto, a necessidade de Deus é superior à presença de um médico; a saudade é mais forte do que a lembrança da mãe que partiu para sempre, e o medo é o mesmo que sente todo aquele que, ainda consciente, vê sendo colocada em sua mão, um toco de vela aceso. Todos nós, quando sentimos a proximidade do fim, trememos ante o imprevisível.
É nessa hora que todos, indistintamente, reconhecem que passaram pela vida, duvidando de Deus… e do diabo.

FÉ E VOCAÇÃO
Fé não se consegue: ganha-se. Há gente que por acreditar em tudo quanto se lhe diz é taxada de ingênua. Há outras que, não obstante a peçam insistentemente a Deus, vivem e morrem duvidando de tudo. Acreditar facilmente em tudo e em todos, não deixa de ser um indício de propensão à fé. A recíproca faz sentido.
Talvez não tenha sido outra a razão que levou o apóstolo Paulo a dizer: “Porque pela graça é que sois salvos mediante a fé, e isto não vem de vós, porque é um dom de Deus”.
Nenhum livro falou mais da fé do que a Bíblia, que a meu ver – ressalvadas as modificações sofridas pelo tempo, pelas traduções e pelos interesses tristemente escusos – é um livro inconfundivelmente inspirado, destinado a toda criatura que acredita na eternidade de sua existência.
A fé é uma porção de força extrema e divina que nos é dada ao nascer ou, posteriormente, por graça. Ela é um pouco de Deus em nós. Não deve ter sido por outra razão que Jesus disse que ela, literalmente, tem o poder de remover montanhas.
Os chineses há muito entenderam a força inerente e operante que existe naqueles que acreditam com convicção. Chega-se a dizer lá que “pra quem acredita, cabeça de peixe faz milagres”.
Deus e fé bem podem ser confundidos, já que em ambos é atestada a força de transformar o impossível, por meio da realização de milagres. A fé é o único poder capaz de “forçar” o próprio Deus a fazer aquilo que queremos. E todos nós temos dela um pouco, com possibilidade de a possuirmos totalmente. A fé é a sombra de Deus.
Ela não precisa das religiões: vive por si e mantém sua ação independentemente, mesmo porque se é impossível separá-la de Deus, seu núcleo gerador. É como disse Jesus: “Quem não é contra mim, é comigo”.
É também a fé a responsável direta ou indiretamente pelo sucesso das pessoas. Quem acredita naquilo que pretende, certamente já andou a metade do caminho. Daí para frente, resta-lhe, apenas, trabalhar, lutar, não desanimar. É claro que a perfeição daquilo que se deseja dependerá, grandemente, da vocação, mas mesmo sem ela, se é possível conquistar um lugar ao sol.
Contudo, a vocação ou tendência é algo embutido em nossa missão preestabelecida por Deus e não é nada interessante contrariar os Seus desígnios. Por isso mesmo, ficaria extremamente incompatível, se Pelé, ao invés de jogar futebol, fosse tentar enviar um foguete à Lua, ou ser um cantor de óperas.
Em todas as profissões sempre temos aqueles que se destacam, aqueles que, pelo dom ou pela força de vontade se sobressaem. O dom, no entanto, é mais primordial e importante do que a força de vontade, ou seja, é mais fácil se destacar na profissão quando sentimos prazer em desenvolvê-la do que quando apenas a aceitamos como uma necessidade meramente de sobrevivência. As duas juntas se completam, mas para gerar os gênios não será possível dispensar a fé: sustentáculo da persistência.
Aqueles que acreditam, não desanimam: caminham sempre e, aos poucos, vão deixando para trás os preguiçosos, aqueles que, ao primeiro obstáculo, arriam os alforjes e se acomodam.
É preciso ter vocação, força de vontade, fé e persistência, mas ao se crer em muitos pensadores ascetas que nos antecederam desde os primórdios da história, ficaremos em dúvida se, em alguns casos, mesmo desenvolvendo todas essas virtudes, conseguiremos chegar à genialidade. Tratar-se-ia, neste caso, dos misteriosos e, humanamente inexplicáveis, desejos do Criador.
Há quem pense que, por essa razão, não se justifica lutar. É um erro crasso raciocinar dessa maneira, pois aos que não lutam até as chances são subtraídas. Todos devem cumprir, humildemente, sua missão: afinal, seremos julgados por Deus, não apenas poderoso, mas acima de tudo, justo.
Talvez não haja virtude ou graça mais importante e grandiosa do que a fé. É por meio dela que chegamos ao impossível. É através dela que se pode até ressuscitar os mortos.
Que outra força seria capaz de estimular uma carinhosa mãe a enviar todos seus filhos a uma fornalha de azeite fervente para não negar o seu Deus?
A fé é o símbolo da igualdade, a magia que elimina a diferença entre o fraco e o forte, entre a servidão e o poder. É ela que movimenta a perna do paralítico, que ergue o morto do túmulo…, que faz o seu detentor caminhar para o cadafalso com um sorriso nos lábios.
Haverá alguma coisa mais importante e divina que um homem possa desejar?

VERDADE
Só é verdade aquilo em que acreditamos. Toda verdade nasce da convicção e só é desfeita com o aparecimento de elementos que desfaçam a convicção. Daí a procedência em se dizer que todo aquele que deseja ardentemente uma coisa e nela acredita, já andou metade do caminho estabelecido.
A verdade vem do conhecimento, do discernimento próprio de cada um em relação a tudo que o cerca ou lhe diz respeito. Por isso, toda pessoa que não tem conhecimento pleno das consequências danosas de seus atos, não deverá pagar por elas.
Seremos sempre nossos próprios juízes. Quando alguém é levado às barras dos tribunais, todo trabalho que envolve testemunhas, advogados, promotores e juízes é convergido para a procura de provas incontestáveis. Evidências não condenam. Não havendo como provar a autoria do crime em questão (mesmo que o réu o tenha praticado), o juiz não deverá penalizá-lo. O medo de condenar um inocente é extremamente maior do que o de inocentar um culpado.
Verdade é como fruta: possui vários estágios até amadurecer e ser saboreada. Com o tempo, porém, outras frutas serão oferecidas e degustadas, e da primeira, apenas lembranças frustrantes podem restar. Ela tem seu tempo e seu ângulo.
Desde que o ser humano passou a registrar seus pensamentos e suas deduções, as verdades têm intercalado as convicções dos homens. O que hoje é verdade, amanhã poderá deixar de ser. Houve um tempo em que a Terra era o centro do universo; que a Inquisição era justa; que a raça ariana era uma necessidade benéfica; que muitas guerras eram levadas a efeito pela paz…. Ainda hoje vemos guerras civis, boicotes, sanções econômicas, ameaças, intervenções e tudo o mais que cerceia o desenvolvimento e a liberdade individual e democrática, acontecerem em nome da repressão aos errados.
Toda contenda se dá em nome da razão. Todos têm suas verdades, mas poucos podem apregoá-las. A maioria é obrigada a viver sob o jugo da “verdade imposta” pelos vencedores.
Só há uma verdade absoluta: DEUS, cuja sapiência acaba por gerar nos criados um sem fim de verdades próprias, já que Ele é inexplicável e nem todos admitem. É bom não esquecer o próprio silêncio de Jesus no exato momento em que Pilatos O inquiria sobre o que era a verdade.
Hoje, tendo o homem pisado na Lua e inventado os computadores, imagina-se um semideus. Esquece-se, porém, que lhe seria inviável, por autonomia de tempo, alcançar, por enquanto, os mais próximos planetas de nosso sistema solar.
Verdade, pois, é algo tão vago e inexplicável que a única maneira de não enlouquecermos é decantar do amontoado delas, as nossas próprias convicções. Decantá-las e segui-las como único mandamento para a nossa salvação. Fomos criados livres e inteligentes, e é ledo engano imaginar que somos obrigados a seguir as ideias dos outros. Temos obrigação sim, de estudar, verificar, usar nosso raciocínio para buscar a verdade… a nossa verdade.

 

PESADELO DE UM POBRE-DIABO
Dezembro de 1994
8.511.965 km², o quinto país em extensão territorial do mundo; detentor do maior rio; possuidor da maior floresta tropical; terceira maior reserva de madeira do planeta; maior produtor mundial de águas-marinhas, topázio, bauxita e nióbio; trinta mil toneladas de ouro e trinta bilhões de toneladas de ferro em reserva…
Lençóis petrolíferos para ser autossuficiente e exportar; maior produtor de café e cana-de-açúcar do mundo; sessenta e cinco por cento da população com menos de trinta anos; terceira mais bela cidade do globo terrestre; maior metrópole da América do Sul; maior usina hidrelétrica do mundo; mais avançada tecnologia de exploração marítima de petróleo; melhor seleção de futebol do mundo;… Aleijadinho, Pelé, Jorge Amado, Paulo Menotti del Picchia, Antônio Carlos Gomes, Alberto dos Santos Dumont…
Ah, como eu gostaria de ser filho de um país assim: grande, portentoso e rico, mas acima de tudo, justo! Um país que não me deixasse tilintar de frio debaixo das marquises!
Um país que me desse o direito e a oportunidade de estudar, de trabalhar, de progredir, de constituir dignamente uma família!
Uma terra que não confundisse Democracia com Anarquia e que os eleitos fossem dignos do cargo que ocupassem!
Uma nação que não tivesse tantos ladrões no comando, tantos saqueadores do erário público, tantos irmãos sem coração!
Um país em que aqueles que escrevessem e aprovassem as leis, não as sancionassem somente pensando neles próprios!
Uma Pátria em que, mesmo as leis sendo injustas, fossem cumpridas!
Um país de imprensa livre, que não se vendesse, que não se calasse diante dos desmandos e conluios!
Um lugar onde fosse proibido chamar um governador de “rato-de-esgoto”; um prefeito de “pistoleiro”; um presidente de “bunda-mole”…
Um país que não tivesse no poder: ratos-de-esgoto; bundas-moles nem pistoleiros!
Uma nação em que a juventude pudesse ter esperanças; as crianças, proteção; e os idosos, reconhecimento pelo que fizeram de bom à Pátria.
Um país em que as instituições funcionassem, o povo pagasse honestamente seus impostos e que esses fossem aplicados com retidão!
Um lugar honesto onde ninguém pudesse legislar em causa própria e onde a Constituição não fosse tida como uma farsa, um lixo imprestável à população carente e humilde!
Um país onde houvesse respeito, onde se acreditasse mais nos valores morais, onde o comando fosse exercido pelos mais honrados e capazes, um país em que os chefes temessem – ao menos – a DEUS.
Um país que não fosse refém das estatais… dos sindicatos; de um partido político; um país que não se preocupasse, senão, com a educação, a saúde e o bem-estar social!
Uma nação onde se pudesse averiguar as administrações públicas e onde não se permitisse que ladrões, assassinos e oportunistas fossem, sequer, candidatos!
Um país em que os políticos estabelecessem o salário do povo e o povo o dos políticos!
Uma pátria onde não se permitisse o “monopólio político”, esse emaranhado macabro de pai, filho, irmão, genro e até amigos que acabam por formar verdadeiras quadrilhas que se protegem mutuamente, impedindo a ação da lei!
Um país onde não houvesse tantos covardes que morrem sob as solas dos sapatos, sem esboçar qualquer tipo de reação.
Ah, como eu gostaria de ser filho de um país assim! Infelizmente, sinto-me aqui apenas um forasteiro, um pobre-diabo. Não sei ler, não tenho lar…. Nasci num lugar estranho, num país que não me reconhece, que me sufoca e me tolhe até a mais ínfima oportunidade de crescer e dizer que sou um cidadão, um ser humano…, que tenho uma Pátria.

NO BANCO DOS RÉU
Ah, você que me embalou nos braços, deu-me o peito, esquentou-me a bunda quando travesso!
Que me enrolou em fraldas, levou minha mão direita à fronte, ao peito, ao ombro esquerdo, ao direito e ao coração!
Que me ensinou a balbuciar: mamãe, vovó, água, não, dá, pai…!
Que me instruiu a arredondar bolotas de batinga, e depois cortou as tiras de borracha do meu estilingue!
Que me fez o primeiro short azul, a primeira camisa branca, a gravatinha azul com uma listra branca; depois duas; depois três e depois quatro!
Que me flagrou mexendo por entre as pernas, que me disse pela primeira vez o que para você era certo e o que achava errado!
Que me levou ao quadro-negro e me arguiu sobre os descobrimentos, declinações, crase…; depois premissas, reprodução, línguas, filosofia, …!
Que me enxugou os olhos nos momentos tristes, que se alegrou comigo nos de felicidade!
Que me amou, fez-me errar, deu-me conselhos bons, falou-me de Deus… ou da evolução natural e independente!
Que pisou estranhos lugares comigo, que me levou, que foi por mim levada, que sofreu e me fez sofrer!
Que foi para longe e nunca mais se lembrou de mim; que foi mas nunca me esqueceu; que me escreveu, não escreveu…, que talvez nem abriu minhas cartas!
Que sorriu de meus chistes, que levou a sério demais minhas brincadeiras; que me achou um chato, um quadrado, um letrado, um idiota!
Ah, vocês que viram a chegada de meus primeiros fiapos de cabelos, hoje novamente escassos e grisalhos!
Que me aplaudiram por golpes incríveis, por tiros certeiros, por reflexos invejáveis, em feitos que só a juventude justifica!
Que hoje me criticam porque os anos me roubaram as forças; os olhos, a precisão; o raciocínio, a rapidez; a determinação, os projetos!
Ah, vocês todos não têm o direito de me julgar! Não têm o direito de me criticar!
Não, não me recriminem, não me castiguem, porque também eu sou muito um produto do meio. Foram vocês que me fizeram assim; são ainda vocês que continuam me construindo, modelando-me, preparando-me para o fim que se aproxima.
O que sou hoje senão o resquício do que me fizeram ver, ouvir, dizer e acreditar? Foi na infância que me ensinaram que meio ovo e um pouco de polenta com leite, seriam necessários para eu viver. Foi naquela escolinha do interior, sobre os auspícios de Dona Zilda Mazioli que aprendi que também palmatória e caroços de milho são bons professores.
Foi lá no Colégio Estadual Conde de Linhares que o professor Sílvio Vitalli me chamou de burro, que o advérbio era depois e não despois e que, por fim, penalizado, concluiu: “Não desanime, pois ainda é o menos burro da turma.” Por causa deste “elogio” hoje martirizo vocês com minhas baboseiras. Foi no exército que o sargento Pilro mostrou-me o que era irreverência, indelicadeza, brutalidade…
Foi no seminário que me mostraram Deus, a esperança… e também a malícia e o pecado. Foi depois de tudo isso que me fizeram, que um dia eu parei para pensar e percebi que era um homem sem identidade própria, que não passava de uma colcha de retalhos humanos. Ouvi tantas coisas, andei por tantos lugares, sonhei com tantas realizações, experimentei tantos erros, escutei tantos conselhos…, puxa, quantas coisas me ofereceram para escolher!
Hoje sou o que fizeram de mim. Por causa disso não me aplaudam porque não mereço; não me atirem pedras porque irão ferir-se. Eu sou muito de vocês e vocês um pouco de mim. Há prova mais contundente de que somos um só, de que constituímos uma única família e de que devemos nos respeitar mutuamente?
Depois destes cinquenta e seis anos de vida, carrego comigo a docilidade e a fraternidade de minha mãe; a justiça e a honestidade de meu pai; a religião que professavam em meu torrão natal; a filosofia de meus mestres e tudo quanto separei do que vi e assisti em relação à honestidade, à sensatez, à compreensão, à fidelidade e à justiça daqueles que comigo conviveram.
Como resultado de toda esta miscelânea, aqui estou para ser julgado, aplaudido ou apedrejado.

GÊNESIS BRASILEIRO
O clamor do povo brasileiro aumenta cada vez mais e o seu grito tem chegado até mim, diz o Senhor. Enviarei, pois, meus anjos para que constatem se as reclamações correspondem ao clamor que chegam aos meus ouvidos.
Então partiram dali os emissários de Deus e foram para o Brasil com a determinação expressa de destruí-lo, mas o povo sofrido, vendo aquele momento extremo, postou-se novamente diante do Senhor:
– Quererás tu perder o político honesto pelo corrupto? Se houver cinquenta políticos honestos no Brasil, perecerão todos juntos e não perdoarás o Brasil em consideração aos cinquenta políticos honestos, se aí os houver? Longe de ti que faças tal coisa e mates o político honesto juntamente com o corrupto. Isso não te cairá bem.  Tu que és juiz de toda a Terra, de forma alguma darás tal sentença.
– Se eu achar no Brasil cinquenta políticos honestos, eu perdoarei, por amor deles, a todo o País.
– Uma vez que comecei, falarei ao meu Senhor ainda que eu seja pó e cinza. Que sucederá se faltarem cinco para os cinquenta políticos honestos? Destruirás todo o Brasil porque nele se acham somente quarenta e cinco políticos honestos?
– Não, eu não o destruirei se achar nele quarenta e cinco políticos honestos.
– Mas se nele houver somente quarenta políticos honestos, que farás tu?
– Eu não castigarei o Brasil se achar nele quarenta políticos honestos.
– Rogo-te, Senhor, que não te indignes se eu ainda continuo a falar. Que farás tu se no Brasil achares trinta políticos honestos?
– Se eu achar nele trinta políticos honestos, não o destruirei.
– Porque comecei, falarei ainda ao meu Senhor. E se forem achados vinte políticos honestos?
– Não arruinarei a nação por amor aos vinte.
– Eu Te conjuro, Senhor, não te enfades se eu te falar ainda uma vez. Que será se tu não achares no Brasil senão dez políticos honestos?
– Eu não destruirei por amor aos dez.
– Sei que tua paciência é infinita e então me atrevo a perguntar-Te pela última vez. Que farás se encontrares aqui um único político inteiramente honesto e cumpridor de seus deveres?
– Se eu encontrar no Brasil um único político inteiramente honesto e cumpridor de seus deveres, eu perdoarei o país.
Tendo terminado de falar, o Senhor se retirou, e o povo voltou triste e desiludido com a terra em que nasceu.

MEXE COMIGO
Ver as pessoas em renhidas contendas, injuriando-se, agredindo-se, matando-se por coisas que seriam facilmente resolvidas por meio do bom senso e do diálogo; perceber no jogo econômico internacional, país escravizando países; países submetendo país; países juntando forças para viverem às custas de outros países; admirar nos jornais, rádios e televisões, nações em guerra, com os seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus, destruindo-se por caprichos de inconsequentes superiores.
Constatar que, apesar de sermos irmãos, há uma discrepância, um desrespeito, um egoísmo sem par, fazendo com que uns tenham em excesso e outros morram, literalmente, de fome; ouvir o dia todo, nos bate-papos dos bares, nas filas dos bancos, no rádio e na televisão, em todo canto e lugar, as pessoas falando de negócios, mulher, dinheiro…, em tudo, menos em Deus.
Olhar para uma velhinha em trapos, estirada na calçada quente de uma cidade implorando, pelo amor de Deus, alguma migalha para não morrer de fome; ouvir alguém se lastimando da sorte porque não pôde trocar, neste ano de 1995, seu carro com apenas seis meses de uso; presenciar um ser humano esmagando uma flor, quando poderia desviar os sapatos e admirá-la como uma das obras primas do Criador.
Notar, nas margens de uma lagoa, dezenas de jacarés em estado de putrefação, mortos por caçadores inescrupulosos que se deleitaram experimentando suas armas; ler e ouvir, quase todos os dias, notícias de mortes hediondas, frias, cometidas com todos os requintes de perversidade; comprovar a ganância sem limites da maioria dos políticos que exploram a ingenuidade e a ignorância de um povo para submetê-lo depois a seus caprichos.
Saber que um “religioso” usa o santo nome de Deus para iludir os incautos e humildes, extorquindo-lhes em nome da salvação; entender que alguém mente, friamente, vendendo sua sinceridade por parcos centavos ou por milhões que, na realidade, nada valem também.
Assistir em Biafra, na Etiópia, no Nordeste Brasileiro…, a crianças abandonadas, morrendo por falta de um prato de comida, enquanto outros são internados para se livrar dos males que o excesso de comida acarretou; esbarrar em companheiros de idade avançada que quase atropelam as pessoas numa eterna correria em busca de ganhar sempre mais; encontrar em pleno dia do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, dezenas de caminhões entrando e saindo das matas, lotados de madeira, porque assim o quer o dono da empresa; perceber nos olhos cansados dos trabalhadores o desejo ardente de estar com suas famílias, sem poder, no entanto, pôr em jogo, o alimento dos filhos.
Compreender que a cada dia que passa, as pessoas continuam enxergando um cisco no olho do semelhante e ignorando a trave que cobre os seus; ouvir e ver na Igreja, pessoas que erguem os braços, fecham os olhos e repetem da boca para fora “perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”; enxergar nas faces de uma criança, uma lágrima que rola; no desconcerto de um pai, a dor de um não à uma simples balinha de mísero centavo; assistir ao espancamento desumano de um animal esquelético, sarnento e imprestável, por alguém que explorou sua força durante anos infindáveis.
Conversar com pessoas que só veem seu lado, não admitindo, nem aceitando nunca, os argumentos e as necessidades dos outros; perceber o egoísmo ou a estupidez das famílias que através dos milhões de anos ainda não entenderam que “todo reino dividido é fraco”.
Mexe comigo, enfim, notar pelo mundo, tantos animais que andam em cima de duas pernas, que falam e raciocinam…, que parecem gente, mas que no fundo, não passam de uma falha da criação.

 

MIJANDO CONTRA O VENTO
Escrito em janeiro de 1995, diante dos desmandos e da corrupção que avassalavam a cidade de Imperatriz.
Aos três anos de idade, minha filha ainda não tomava os remédios que lhe eram ministrados. Filha única, dengo de sobra, paciência que talvez “Jó” invejaria. A gente conversava, pedia, negociava, chantageava, quase implorava… Meu Deus!, usava de artifícios e artimanhas que qualquer estranho saía da beira: não dava para testemunhar tanta moleza de quem se diz responsável para educar uma criança.
Todas as vezes que colocávamos os remédios em sua boca, ela enrugava a testa, respirava fundo, apertava os lábios e soltava um esguicho que qualquer cetáceo assinaria, sujando tudo e todos que estivessem por perto.
Um dia, porém, depois de esgotados todos os recursos supracitados e os não citados, até o pai extremoso “enJÓou” e acabou optando pela ignorância incontida: fora de mim, empurrei-lhe a colher de remédio pela garganta abaixo, jogando minha filha querida de pernas para o ar, quase sufocando-a. No mesmo instante, tomando consciência de meu descontrole, retirei-me envergonhado, sob o olhar acusativo de minha mulher.
Daquele dia até hoje, no entanto, nunca mais precisei me preocupar com medicamentos: tornou-se a criança mais dócil do mundo para ingerir qualquer remédio, ainda que fosse o repugnado boldo.
Um ano atrás, talvez tenha sido eu o pobre coitado que mais escreveu ao vento, esperneando contra os roubos, crimes e desmandos de Imperatriz. Cheguei a reclamar de meus confrades, porque considerava-os omissos, ou pouco ativos, diante da vergonhosa calamidade que se abatia sobre a cidade. Sem que a historieta do rapazinho que “falara anos após anos na praça” me convencesse, acabei quietando, na certeza de que, lutar contra certos elementos mancomunados e inescrupulosos da cúpula da Polícia, da Justiça e da Política, era o mesmo – como dizia meu velho e saudoso pai – que mijar contra o vento.
Mas, não podemos esquecer, também, “o exemplo do beija-flor”, nem a filosofia sensata dos que pregam a “esperança das sementinhas”. Tudo são armas que não podemos dispensar, pois são as únicas disponíveis àqueles que ainda acreditam em compreensão, justiça, fraternidade… que creem, enfim, que se é possível demover corações de pedra, de seu egoísmo e ganância doentios.
Hoje, depois de minha estiagem de revolta, retomo a consciência da luta, enfileirando-me, outra vez, aos companheiros persistentes que mantêm a bandeira do brado, na esperança de que Deus, ao menos Ele, tenha compaixão dos raros “Lots” que possam haver, perdidos nesta Sodoma de conluios, descasos e crimes.
Dói-me ver, principalmente os filhos deste torrão, implorarem à população para que não permita que maus políticos solapem e destruam a cidade, conclamando a cada um em particular, que faça sua parte (a parte do beija-flor) limpando as ruas, recolhendo o lixo, tapando os buracos…. Com todo respeito e admiração pela ideia e pelas pessoas de boa índole e de caráter ilibado que assim pensam e agem, sinceramente, tomo a liberdade audaciosa de discordar. Acho que é hora de mudar de tática, é hora de enfiar a colher pela garganta da própria filha querida.
Contaram-me, quando criança, que quase todos os pilotos de aviões a jato, morriam porque ao acionar a alavanca de subir, a aeronave não obedecia, voltando-se direta para o solo. Um dia, um piloto maluco, ao notar o problema, numa revolta desesperadora, virou a alavanca para baixo a fim de tornar o impacto ainda mais violento: o avião, então, subiu. Descobriu-se assim, por puro acaso, que a coisa funcionava invertida.
Vamos lá, minha gente sofrida! Vamos apanhar o lixo e soterrar a Prefeitura; vamos nos unir e expulsar esses solapadores desavergonhados de nossos direitos; vamos… êpa!, pode dar processo!
Bem, vamos meter a colher pela garganta abaixo dessa gente que não quer tomar o remédio da vergonha. Quem sabe se o “similia similibus curantur” dos homeopatas dará certo? Tentar não custa. A cura de toda essa imundície pode estar no monte de lixo, vamos experimentar. É minha maneira de amar Imperatriz, fazendo com que a coisa se torne insustentável e calamitosa, comovendo assim os raros homens honestos do Maranhão a que usem o poder e o prestígio que Deus lhes deu, para promover a justiça.
Aqui, os verdadeiros filhos de Imperatriz estão manietados, castrados no seu mais sagrado direito democrático, o de expressar suas ideias e seus pensamentos. Como é triste a gente olhar para nossos televisores, ouvir nossos rádios ou ler nossos jornais! É como se fossem igrejas, tendo cada uma em seu altar, o demônio da outra. Sei quanto custa a determinados jornalistas terem que dizer e mostrar no ar ou nos jornais, aquelas coisas que lhes valem o pão de seus filhos.
Que Democracia é essa em que mais de noventa por cento da mídia está nas mãos de políticos e só se põe no ar aquilo que eles autorizam, castrando assim o direito constitucional de cada um expressar suas ideias? Sei que temos, embora esporadicamente, gente de fibra e honesta, sofridos sonhadores que vivem, como bola de pingue-pongue, jogados de um lado para o outro, sem jamais poder matar sua sede de justiça. São sempre transferidos, exonerados e até mortos, dependendo do quanto estiverem incomodando os donos do poder e da situação.
Nesta terra sem lei, onde os que tentam cumpri-la são taxados de doidos, e exonerados, e mortos; onde na chegada do Fundo de Participação, uma corja invade o Banco do Estado saqueando até o último centavo; onde não se paga os professores; não se paga o funcionalismo; não se gasta um centavo com limpeza urbana, nem com a saúde; não se paga os postos de combustíveis, os mecânicos, as peças de reposição…; onde não se presta conta; onde tudo é encoberto; onde todos sabem quem são os ladrões e assassinos e nada se faz, só mesmo poetas sonhadores podem se virar contra o vento par dar uma mijada. Mas, mesmo respingando as calças, vamos lá! Afinal, não há nada eterno e, mais cedo ou mais tarde, ainda que sejam nossos tetranetos, verão o raiar de um novo sol. É só não desistir; é só não perder as esperanças; é só deixarmos a covardia de lado.

QUALQUER SEMELHANÇA É MERA COINCIDÊNCIA
Maio de 1995.
Era uma vez um país chamado Brasil. Por ser muito grande foi dividido em muitas partes, e a uma delas denominaram Maranhão. Maranhão! …. Já pela sua origem etimológica, a expectativa não era nada promissora. Nesse estado havia, para o sul, uma grande fazenda com o nome de Imperatriz.
O seu primeiro proprietário a adquirira com a melhor das intenções, mas depois ele morreu e a fazenda foi passando de mão em mão, ano após ano, até ser, finalmente, de homens nocivos e desumanos. Hoje, além de estar abandonada por seus proprietários, explorada e saqueada pelo capataz, ela conta ainda com uma boa dezena de superintendentes corruptos que forjam prejuízos com o fito de justificar a rapinagem. Suas pastarias estão pisoteadas, suas estradas intrafegáveis, a sede entregue a vândalos incompetentes e inescrupulosos: um caos.
Alguns raros vaqueiros que para cá são enviados, na medida do possível, procuram proteger os implementos, os adubos, os silos e as verbas que são remetidas com a finalidade de proteger e alimentar o gado e…. os burros: há muitos na fazenda. Tenta-se impedir a ação criminosa do capataz e seus superintendentes, mas não se encontra apoio nem nos próprios proprietários da fazenda. Inexplicavelmente, eles, ao invés de punirem os que lhes avariam a propriedade, exoneram os bons vaqueiros ou os transferem para outras estâncias. Há neles, interesses inconfessáveis.
Todo mês, a fazenda recebe um grande queijo e muito capim a fim de que as necessidades sejam supridas. O capim é armazenado em silos, e o queijo numa despensa exclusiva do estado.
A despensa tem aparato e até parece bem segura, mas os ratos acham sempre um buraco que lhes dá acesso. Apesar de perceberem a armadilha casual – pois em se entrando nela fica quase impossível sair – eles não resistem ao cheirinho do grande queijo e pulam para dentro. Há ratos grandes e ratos pequenos, ratos fortes e ratos raquíticos. Sem compaixão ou fraternidade, os roedores mais poderosos se apossam do queijo sozinhos, deixando aos demais, migalhas babadas e comprometedoras.
Todas as vezes que os vaqueiros cumpridores de seus deveres vão buscar parte do grande queijo a fim de reparti-lo, só encontram no local, dezenas de ratos em refestelos, barrigudos, empanturrados, com as caras salpicadas de farelos de queijo e os bigodes ainda untados com resquícios de manteiga rança. Reúnem-se, então, a portas fechadas, para tratarem da questão. Como a maior parte dos ratos já cresceram e ficaram fortes por terem comido muito queijo, alguns vaqueiros, amedrontados, quietam com medo de ser devorados por eles.
Os raríssimos vaqueiros de fibra, honestos e zeladores idôneos da fazenda, no entanto, tentaram, várias vezes, castigar os grandes ratos. Dentro de seus princípios de justiça, denunciaram aqueles que mostravam indícios claros de haver comido o queijo. Quando já se preparavam para trancafiá-los em lugar seguro, eis que chegaram os proprietários e perguntaram aos subordinados, vaqueiros cumpridores de seus deveres, o que estavam pretendendo:
– É que somos responsáveis pelo grande queijo e…. (contaram toda a história, relatando as evidências insofismáveis que apontavam aqueles ratos acusados como autores da dilapidação). Até rastros inconfundíveis existiam na despensa, mas uma misteriosa ordem judicial impediu que se colhessem as impressões digitais.
Seus superiores, então, entendendo que os ratos acusados, por já estarem fortes pelo grande queijo comido, e por entenderem que assim podiam causar-lhes sérios problemas, pediram, dos vaqueiros idôneos, outras provas além das apresentadas. Os vaqueiros honestos lembraram, incontinenti, dos ratos esfomeados e magricelos que foram inocentados, e voltaram ao monte de tábuas para solicitar-lhes a confirmação do que acabavam de dizer. Os ratos miseráveis, famintos e covardes, no entanto, meteram os focinhos nas gretas e não tiveram coragem de confirmar nada. Aguardaram também, que os bois e os burros – ao menos esses – que meses a fio permanecem nas filas aguardando um punhado de capim dos silos, se manifestassem, mas nada aconteceu. Sozinhos na luta, quietaram.
– Como estamos percebendo – disseram os donos da fazenda – vocês não têm provas suficientes de que esses ratos, apesar de barrigudos, bigodes e caras sujas de queijo, cheirando a manteiga rançosa, foram os que comeram o grande queijo de minha fazenda. As aparências podem enganar e apesar das evidências, é mais sensato libertar os culpados do que arriscar condenar inocentes.
Ordenamos, pois, que se retire a denúncia, imediatamente. E quanto a vocês, por me terem criado sérios problemas acusando meu capataz e meus superintendentes, considerem-se despedidos por justa causa.
E assim, caros leitores, os ratões que comeram o queijo continuaram impunes. Os vaqueiros honestos foram: uns transferidos; outros exonerados; outros mortos. Conforme os incômodos, o castigo. Livres e protegidos pelos proprietários, o capataz e seus superintendentes acabaram acusando e pondo na cadeia, alguns ratos pequenos, magricelos e esfomeados, e hoje, mais que antes, continuam roendo a maior parte dos queijos que são enviados à fazenda Imperatriz.
Ah!, os burros? Os burros! … Estes continuam nas pastarias devastadas, implorando o molho de capim a que têm direito, sendo extorquidos e castigados, sem a coragem de, ao menos, escoicear aos que lhes cilham e montam há mais de cinco anos.

 

O POETA, A BORBOLETA E OS CHACAIS
Escrito em seis de outubro de 1994 por ocasião do assassinato do prefeito Renato Moreira
O poeta vai à rua e ouve sussurros e conversas: “Foi fulano quem matou; sicrano quem mandou; beltrano quem arquitetou o plano diabólico”.
Pelas casas ele ouve noticiários cheios de deduções e palpites: “É uma palhaçada! Todos nós sabemos quem é o mentor, mas o interesse político e econômico abafa tudo.”
O tempo passa; o devaneador retorna, adentra em sua casa, angustiado. Liga a televisão: vice-prefeito algemado, depoimentos de implicados, revolta de quem sabe, mas não ousa falar, não pode provar. A lei agora é o poder. Não há mais justiça, não há mais polícia. Quem não aceitar o jogo será transferido, exonerado ou morto.
Balança a cabeça, desliga a televisão e o rádio, não quer saber de jornais, não acredita mais em ninguém. Campeia o jogo de interesse. Um tempo de angústias e sofrimentos aguarda o povo.
Dirige-se para o quintal. É primavera, as flores desabrocham. O vento que sopra é fraco para amenizar o calor intenso, mas o cenário é bonito. Em sua imparcialidade, a Natureza parece feliz mesmo diante de tamanha desolação. Algumas nuvens se acotovelam no céu: prenúncio de trovoadas e chuvas. Ele para, enclavinha a mão esquerda no queixo, cisma.
Uma borboleta colorida, fazendo acrobacias, desce suavemente a um botão que se abre. Pousa nele, examina, fica frustrada. Alça voo novamente, faz novas circunvoluções, e então sim, vê uma flor desabrolhada, bem aberta, bonita. Pousa sobre ela e absorve o pólen da antera. Não há pressa nem sofreguidão. Há muitas flores pelo mundo, e Deus que as fez não as monopoliza. Sempre existirão flores para todas as borboletas. Haveria, também, paz e alimento para todos os pobres da Terra, não fosse a maldade e a ganância de alguns.
Lá fora os políticos especulam, supõem, denunciam, apelam. Há uma impertinência, uma avidez, UMA AMBIÇÃO tamanha que deixa o poeta estonteado. Enquanto isso, a borboleta acaricia sua flor, alimenta-se, abre e fecha as asas refrigerando-se do calor sufocante.
O poeta fica a admirar a borboleta e a flor; lembra do que está acontecendo pelos bastidores da cidade. Há um clima de tensão, de loucura e pressa: o tempo urge.
O poder está disponível e os chacais se apressam em dividir a presa. Um lado e outro – sem que ofereça qualquer esperança ao povo sofrido – fala, grita, esperneia: não há tempo a perder. O povo ingênuo assiste a tudo sem saber se o crime foi pelo bem de Imperatriz, ou pela ganância do poder.
A borboleta ergue-se outra vez. Num sobe e desce contínuo vai seguindo seu instinto. Alcança a primeira esquina. O poeta a acompanha com o olhar, medita, conclui: como a borboleta são os passarinhos, o veadinho da campina, os peixes das águas, os insetos…. Também eles lutam pela sobrevivência, mas não matam por ganância ou maldade.
Lá fora, os homens continuam sua batalha insana. Os jornais, as rádios, o povo…, a mídia inteira comenta, arrisca palpites. Os mais covardes e desconfiados puxam o vizinho pela manga da camisa e sussurram: “Foi ele, todo mundo sabe, mas quem terá coragem de abrir o bico?”
Olham dos lados, certificam-se da privacidade e arriscam mais um pouco: “Os Magris, Alcenis, Quércias e Collor da vida, jamais irão para as grades. Que se cuidem os seguranças, as secretárias e os motoristas. Eles tomaram o poder e agora farão as leis. Não há dois políticos neste país que lutem pela Nação. São toda uma corja de facínoras.”
A borboleta vai ultrapassando lotes e muros, passa por cima do magote que especula e deduz. Um bem-te-vi, tenta, num rasante estratégico, capturar a indefesa borboleta. Ela se esquiva, faz piruetas, vai ao chão, escapa por milagre. Algumas, como o prefeito, não têm a mesma sorte.
Os homens se entreolham, entendem o jogo da vida. Despedem-se, com um simples e rápido nuto e adentram, temerosos, em suas casas. O depredador lhes fora mensagem e, ao mesmo tempo, aviso.
O poeta apenas percebe, meneando a cabeça mais uma vez. De fato, somos todos, indefesas borboletas, cercadas de bem-te-vis afoitos e famintos. Mas também eles, um dia (e isso é mais certo que o ar que respiramos) estarão à mercê de gaviões implacáveis, porque aqui na Terra ainda não se descobriu entre os homens, qual deles encima a cadeia alimentar. Sempre aparecerá um para engolir aquele que achávamos mais forte. É só uma questão de tempo e, principalmente, de interesse. O poder é constituído por gananciosos e a própria ganância será o veneno que os destruirá. Aquele que não abandonar a cidade, tendo paciência, verá.

CUIDADO, CLASSE DOMINANTE!
Dezembro de 1994.
Lembro-me bem, éramos garotos, amigos de infância. Todos os dias subíamos os morros que ladeiam o Liberdade, à cata de sairinhas ou das mangas-chupetas de nossos vizinhos. Ele era um menino dócil, palrador e, ao mesmo tempo, medroso aos extremos. Paradoxalmente, no meio de qualquer discussão, logo ameaçava de morte o contendor: “Vô panhá a espingarda do papai e vô ti dá um tiro na cara”.
Fomos crescendo juntos. Depois do primário, internaram-me num seminário e ele abandonou os estudos. Sua família mudou-se para a margem direita do rio Doce e ele foi junto, a fim de ajudar os pais e os irmãos no amanho da terra. Em algumas férias estive lá e nunca vou esquecer as caçadas de tainhas. A gente subia num jirau armado no vau do rio e ficava aguardando que o cardume passasse por ali mariscando. Muitas vezes, com o estrondo do cartucho carregado com pólvora preta comum, o jirau inseguro se desfazia e desabava por sobre as tainhas que boiavam desacordadas. Até hoje não entendo como não nos matamos com aquela loucura. Acho que nunca nossos anjos da guarda tiveram tanto trabalho!
Meu amigo, de menino, tornou-se rapaz. De tanto falar e não cumprir, todos logo passaram a desacreditá-lo, atingindo, inclusive, sua integridade moral. Por dois casamentos seguidos foi traído pelas esposas. E ele, sem mudar a característica da infância, vivia ameaçando: “Um dia ainda mato um!”
E lá se foi o tempo, moroso, mas inflexível. De rapaz cheio de vida e saúde, passou a ser um homem adoentado, meio velho, nervoso e cansado. Mesmo assim, todas as vezes que se sentia ofendido, o gene agressivo com que fora premiado ao ser gerado, vinha à tona: “Um dia ainda mato um!”
Mais anos se passaram. Num belo dia, o telefonema. Era meu amigo de infância pedindo-me emprego como gerente de uma fazenda que há pouco eu havia comprado às margens do rio Cajazeiras. Concordei.
Meses depois, pediu-me para que aceitasse um seu sobrinho, marginal confesso, procurado pela polícia de Manhumirim. Como havia de se esperar, neguei peremptoriamente. Ele insistiu:
– Sou o único que poderá afastá-lo do mau caminho. Ele me obedece, ouve meus conselhos. Pode acreditar: vai ser bom para ele e para você, que poderá contar com mais um braço forte na lida da terra.
Desconfiado, muito contra minha vontade e desejo, acabei concordando. Três meses depois, seu sobrinho teve uma recaída: encheu a cara de cachaça e depois de tentar tomar-lhe também a terceira mulher, agrediu-o a facadas. Ele, então, sacando de seu revólver, depois de sessenta anos de ameaças vãs, cumpriu a promessa, eliminando o próprio sobrinho.
Pois bem, caros leitores, aí está o retrato do pacato e paciente povo brasileiro. Há quantos anos estamos sendo espezinhados, massacrados e escravizados pela classe dominante deste país? Durante todos esses anos estamos ameaçando, avisando, insistindo que a coisa está ficando insustentável, que é preciso que a classe política ponha a mão na consciência, pois não há mais limite na paciência do povo.
Nunca houve na história do Brasil, uma avalancha tamanha de impunidade e corrupção. Nunca, também o povo se envergonhou e se revoltou tanto como está acontecendo agora. Continuamos, como há décadas atrás, ameaçando, esperneando, clamando por justiça, por isonomia, por equidade, enfim, implorando para que nos tratem, também, como filhos desta nação.
Há sempre a esperança de que a medida do egoísmo dessa gente se encha. Já roubaram muito, já têm dinheiro e bens para três ou dez gerações…
Mas, como se fosse castigo, a ganância deles não para. Continuará até que o limite de paciência do povo se esgote e eles sejam execrados como escória da nação.
A classe dominante continua desconhecendo os clamores gerais: não tem motivo para levar a sério a mais essas repetidas e vãs reclamações. Tantas vezes já ameaçaram e nunca cumpriram. Mas, cuidado, classe dominante, porque quando menos esperar – como o meu pacato amigo de infância – esse povo humilde e covarde poderá cumprir o que vive prometendo!

LUTA E GANÂNCIA ESTÚPIDAS
A fila era comprida, o calor sufocante. O suor – apesar de alguns condicionadores de ar estarem funcionando – escorria pelo pescoço, nodoando a gola da camisa. O rapaz, cansado e desestimulado, atendia as pessoas numa morosidade enervante. Alguém que me conhecia, puxou prosa:
– E aí, como estão os negócios?
– Devagar, capengando.
– Esse governo está uma bosta, não é mesmo? – ciciou ele, olhando à pressa, a fim de certificar-se de que a gafe não havia atingido senão a mim.
O governo, os negócios, o dinheiro! ….
Mais adiante, já numa loja de tecidos, outro observava:
– Este ano ninguém vai ganhar dinheiro! Com essas medidas econômicas, será feliz quem fizer para comer.
Alimento, dinheiro, comércio…. Durante todo o dia, em cada canto que entrei, com as pessoas com quem conversei, só ouvi falar de dinheiro, de planos para enriquecer, de negócios mais ou menos vantajosos, enfim, de todas essas coisas que, com certeza, amanhã nada mais significarão para nós.
Arrumei as compras na camioneta e viajei para a fazenda. Havia lá uns vinte empregados, comandados por um gerente que também parecia entender, única e exclusivamente, de capim, gado de corte…, coisas que poderiam ou não dar lucros.
A tarde caía mais bonita do que em outras vezes. O sol esmaecido inclinava-se sobre o dossel da floresta ao fundo, pondo sombras a dançar aos ventos suaves que varriam o vale. Do outeiro em que me encontrava, eu observava o aterro e os peões suarentos que amontoavam a juquira cortada, para que quando as águas subissem não ficassem poluídas. O gerente, forte e exaltado, esbravejava porque o serviço era lento, porque parecia-lhe que aquela seria a última tarde de sua vida.
Lá embaixo, o filete de água cristalina que formaria a lagoa depois do aterro, corria serenamente, driblando graciosamente os obstáculos e devolvendo aos céus, os últimos raios de sol que ainda lhe tocavam a superfície. Então, assentei-me sobre um monte de terra e fiquei cismando nosso destino. Durante todo o dia ouvi falar de dinheiro, de planos, de negócios. Pareceu-me, então, que aos homens, aquele sol, tão logo descesse, não mais voltaria; que aquela nascente de águas límpidas iria secar algumas horas depois; que o amanhã não mais surgiria e se surgisse, seria de miséria, de angústias e de sofrimentos. Correria, nervosismo, ansiedade! …
Vi criaturas humildes deixarem o serviço, ferramentas às costas, suadas e muito cansadas. O gerente acenou-me, mas meneei a cabeça, fazendo-o entender que permaneceria mais um pouquinho por ali. Meus pensamentos revoluteavam, buscavam sentido.
O sol escondeu-se. Eu não via mais a água límpida que corria, mas estava certo que continuava esgueirando-se pelos meandros do leito. A lua começava um clarão sem presteza do outro lado da floresta e as primeiras estrelas pisca-piscavam no firmamento. O chilreio das pipiras, os piadinhos agudos e alegres das sairinhas, o matraquear das curicas, as imitações irreverentes dos xexéus, enfim, a algazarra de toda espécie diurna, logo foi cedendo lugar a coaxares de anfíbios, à melancolia dos urutaus, a sons metuendos que zumbiam pela escuridão da noite, criando duendes e fantasmas. Rodízio imutável e eterno.
Olhei, então, para a imensidão dos céus e para a beleza eterna das coisas. Percebi que tudo aquilo já existia há milhões de anos e que perdemos a vida em vão, imaginando poder possuí-las ou levá-las conosco para algum lugar. Nossos antepassados se foram e não levaram, senão, suas obras. Ninguém até hoje levou qualquer coisa material.
As águas continuarão correndo, as estrelas brilhando no firmamento, as terras ficarão em seus lugares, repassando de mão em mão, à revelia de nosso desejo e ganância.
Durante todo o dia ouvi pessoas falarem de planos, de negócios, de dinheiro, de futuro, de coisas materiais, coisas de que nunca seriam donas. Gente preocupada, arriscando a saúde e a vida para ter mais e mais, sem imaginar que não poderá levar nada daqui. Não ouvi ninguém falar de DEUS! Por que será que ninguém falou DELE uma única vez sequer, durante todo o dia?
Estava certo que quando retornasse, meus familiares viriam correndo, perguntando-me, com aflição, se a represa havia ficado boa, se o gado estava gordo, se a vizinha tinha resolvido  vender a área contígua…
Como eu, milhões de pais, estou certo, estariam ouvindo a mesma história em cada recanto deste planeta. Não sei quantos tiveram a surpresa de um “obrigado meu Deus por esse dia”; não sei quantos pararam de correr um instante para tomar consciência da grandiosidade e beleza da natureza; não sei quantos se lembraram que tudo quanto há foi feito por ALGUÉM, para todos.
Por causa desses pensamentos, ali, de cima daquele montículo de terra, olhando os desenhos quase fantasmagóricos que a luz fraca da lua pintava entre os arbustos, eu não pude deixar de me sentir o mais estúpido dos seres vivos, o mais ingrato entre os filhos de Deus. Para que tanta preocupação?
Para que correr, brigar, se amanhã não estarei mais aqui e se as estrelas que desejei todas para mim irão brilhar para outros olhos, queira minha ganância ou não; se esses pássaros irão piar para outros ouvidos; se essas águas irão saciar outras sedes; essas terras irão apoiar outros pés; essas árvores irão dar sombras a outras pessoas; essas crianças de pureza angelical irão correr para outros braços; essas noites irão povoar de lindos sonhos, outros corações;… Para que tanta ansiedade, se podemos usufruir, enfim, de tudo isso sem ódio e sem brigas, gratuitamente, das mãos de Deus?

TEMPOS DIFÍCEIS
Tenho em minha frente jornais e revistas. Nos noticiários das TVs, os jornalistas policiais fazem a festa, pois nada dá mais ibope que crime com requinte de violência e crueldade. Nesses noticiários, normalmente, só me atenho às manchetes. A explanação já se tornou tão comum que, tenho certeza, sei-a por antecipação.
Uns dizem que o problema da miséria, da fome, das injustiças sociais, dos crimes hediondos…, é devido aos maus políticos; outros explicam ser a falta de Deus nos corações. Há também os que afirmam ser a presença do diabo, que fez da Terra seu quartel general.
Bem, se todo mundo fala, eu também – usando o único privilégio de nossa democracia, ou seja, a garantia de dizer despropósitos, acusar, criticar, emitir opinião sem ir para a cadeia – vou dizer o que acho ser o motivo principal de todo esse caos.
Todos os analistas têm um pouco de razão, pois é muito difícil grandes e crônicos problemas acontecerem por meio de um único motivo. Mas, para mim, a causa social chave que provoca toda rachadura no sistema que deveria ser de justiça é a superpopulação de algumas áreas do planeta. Nesses lugares, não há, sequer, um lugar a esmo para a queda de um raio; não pode haver uma torrente, sem que seres humanos sejam arrastados; não pode cair uma casa, sem que alguém seja esmagado…. É gente demais vivendo em área de menos.
Em alguns lugares, a procura está sendo violentamente superior à oferta. Os alimentos, os colégios, os hospitais, os empregos…, estão sendo poucos para tanta gente, assim como as melhores coisas não estão dando para satisfazer a ganância desenfreada de uma eterna minoria de empresários e políticos.
Sei que é complexo falar de Controle de Natalidade, de Planejamento Familiar; acusar igrejas e instituições por discordarem de qualquer método que modere o nascimento de tantas crianças, mas tudo e todos têm que repensar o assunto, pois nesta progressão geométrica de nascimentos, o mundo estará fadado a se transformar num verdadeiro manicômio. Sim, porque matar é uma coisa, mas esmigalhar o morto é outra bem diferente. Dar um tiro e correr é uma coisa, enquanto que arrancar as entranhas, retalhar, esquartejar, é outra. Só uma pessoa doida faz isso.
Jamais haverá alguém que se preocupe mais com outrem do que os pais com os filhos. Por isso, depois de milhões de anos, ainda é a família o marco decisivo para se conseguir uma sociedade mais justa e fraterna. Nas famílias bem estruturadas, a educação se torna viável, os casos de desemprego e miséria, de ignorância e crimes são bem mais raros. Certamente os há, mesmo porque estamos na Terra, e não no céu.
Todo ser vivo agrupado em quantidade excessiva, cria problemas. Os seres humanos estão se multiplicando desordenadamente. Se todos tivessem Deus no coração, até que o excesso de gente não seria tanto problema, já que Seus ensinamentos são de fraternidade e amor. No entanto, desde a criação do mundo até nossos dias, a maioria dos seres humanos ainda não aceitou tais normas de vida para conseguir uma justiça social com harmonia. O que se vê é uma ferrenha e eterna luta pelo poder e pelas riquezas, ainda que, para tanto, tenham que roubar e matar cruelmente o semelhante.
A saída está em cada um de nós. Somos minicomputadores de Deus e só Ele reconhece o programa instalado em nosso disco rígido. Daí minha afirmação de que nem sempre somos tão culpados por nossos desvarios, nem tão merecedores de nossas virtudes. Não se pode esperar que um fusca efetue o trabalho de um trator de esteiras, embora ambos possam desempenhar, dignamente, as funções para as quais foram construídos.
Diante de tudo isso, só nos resta aceitar os problemas e as pessoas conforme se nos apresentam – fuscas ou tratores. A culpa não será nossa senão quando tentarmos colocar o trator no asfalto para uma longa viagem ou exigir que o fusca realize grandes desmates e terraplenagens.
As igrejas, instituições e todos que vivem agarrados a um conservadorismo antigo, com história e imposições impossíveis de serem provadas, têm, a bem de suas próprias consciências, de entender que o Deus que tanto dizem respeitar e seguir, colocou dentro do crânio de cada um, uma massa que pensa, capaz de discernir o que é bom e certo para determinados momentos. Agora é mais que chegada a hora de se fazer, na maior parte do planeta, um planejamento familiar, a fim de que, em nome de Deus, não se permita que crianças nasçam para serem assassinadas logo depois, pela fome ou por estar transgredindo as leis dos homens.
Não é apenas limitando os nascimentos sem condições que o problema do mundo será resolvido, mas entre tantos, talvez seja o que mais pese na balança que demonstra a desigualdade social. Para reforçar minha opinião, gostaria que cada um imaginasse um mundo em que todos os trombadinhas, miseráveis, ladrões e assassinos predestinados (?) não tivessem nascido.
Quando me refiro a “predestinados” certamente falo daqueles que são jogados no mundo, tendo, desde o princípio, parcas oportunidades de se imporem à aceitação no meio em que vivem. São aqueles que apresentam, logo ao nascer, a grande possibilidade de morrer por inanição ou de sobreviver à duras penas. Daí a se revoltarem, quando adultos, contra a sociedade injusta que os escraviza e explora, é um pulo.
Muitos dirão que todos têm chance e que há muitos homens célebres vindos da miséria. Mas, será que a percentagem de mil por um vale a pena? Para mim, como membro desta sociedade injusta, é melhor evitar tais nascimentos do que deixá-los nascer para matar depois.

Mas, já que a coisa chegou ao ponto em que se encontra, o paliativo está em aceitar a vida como ela é, as pessoas como são, esquecer o passado, não se preocupar tanto com o futuro e viver o presente com tudo o que se tem direito, desde que tal direito não implique em sofrimento e infelicidade do semelhante.

O TEMPO QUE DESPERDIÇAMOS
Relato do Nini
A tarde, sem levar em consideração que eu tanto precisava de tempo, caía apressadamente. O carro evoluía célere, irresponsavelmente, pelas curvas e lombadas. Não sei se por impressão ou mesmo na realidade, os ponteiros do relógio, sádicos e vingativos, atropelavam os segundos. Pareciam repreender-me: “tantas horas desperdiçou na vida e agora luta por míseros segundos!”
O Delcir, meu irmão, já não gemia mais. Meu olhar ia e vinha, corria da estrada à sua fisionomia lívida. Seus lábios estavam brancos; toda sua pele tinha a cor plúmbea da morte.
Ao lado, o mano Vilmar massageava o rosto dele a fim de evitar que ele – como um passarinho magoado – desistisse de viver. O sangue que até há pouco escorria pela poltrona, havia cessado e coagulava lentamente. Não era preciso muito raciocínio para deduzir um fim iminente. A pressão devia estar próxima a zero.
Eu pisava forte no acelerador, fazendo a velha camioneta atingir a velocidade máxima. Nunca a estrada me pareceu mais longa, nem a velocidade tão baixa. Eu olhava de soslaio e rapidamente para o meu irmão acidentado e ficava recordando o passado: nossas lutas, nossos planos e até nossos desentendimentos. Tudo ia e vinha em minha mente numa velocidade incrível, salpicando-me de prematura saudade e doloroso arrependimento.
– Nini – balbuciou num soluço entrecortado de emoção, o mano Vilmar que o sustinha nos braços – acho que pode ir devagar. Não vejo nele mais sinal algum de vida.
Fiz que não ouvi – eu não podia ouvir. Forcei quanto pude o acelerador contra a proteção do fundo. Rezei também: orações desconexas de quem não consegue mais terminar qualquer raciocínio lógico.
Imperatriz distava, agora, menos de oito quilômetros. No posto da Polícia Rodoviária Federal passei a cento e trinta quilômetros e, incontinenti, os agentes saíram em minha perseguição. Na sonorização que antecede o perímetro urbano, um pneu explode. O carro dança na pista. Seguro firme o volante e continuo, saltando por cima dos obstáculos como um canguru perseguido por mil cães.
Todos que passavam por mim em sentido contrário faziam sinal, buzinavam tentando avisar-me de que a calha estava sem o pneu e soltando faíscas para todos os lados. Mesmo assim consegui chegar ao Pronto Socorro dos Acidentados, na avenida Dorgival Pinheiro de Sousa. Os policiais rodoviários encostaram. Olharam, menearam a cabeça e se retiraram solidários. Subi as escadarias gritando por socorro médico. Havia um de plantão. Desci e com a ajuda do Vilmar, transportamos nos braços o mano desfalecido. O médico fez um exame preliminar, procurando-lhe a pulsação:
– Parece-me que chegaram um pouco tarde. Providenciem sangue imediatamente.
Vilmar e eu corremos para o laboratório. Foi coisa rápida, mas pareceu-me um século. Não me saía da mente o tanto tempo que já desperdiçara na vida. Agora daria um século inteiro por alguns segundos. Senti-me um rei perdido no deserto, dando todo seu império por um simples copo d’água.
Logo nosso sangue foi transferido para as veias murchas do mano acidentado. (O galho de uma árvore o atingira mortalmente lá no nosso serviço de extração de madeiras no vale do Pindaré.) O médico animou-nos:
– Ainda temos um fiapo de esperança!
Não me contive e comecei a chorar. Uma forte emoção há muito me comprimia o peito. As lágrimas, à revelia, começaram a descer pela face. Percebi, então, que me encontrava imundo, que a boca estava seca e o estômago doendo terrivelmente: minha velha úlcera nunca concordava com fortes emoções. O corredor já estava cheio de familiares com fisionomias tristes e abatidas.
Fui a uma torneira, lavei as mãos e o rosto, bebi bastante água e agachei-me num canto do corredor, enclavinhando as mãos entre os joelhos, fazendo deles um lugar para recostar a cabeça. Os músculos afrouxaram como se fossem apertados nós que se desatassem. Entrei numa modorra cheia de curtos sonhos indecifráveis. Quando acordei percebi que conversavam mais alegremente, e então, embora temeroso, arrisquei
– Como está ele?
– Vive – respondeu alguém.
Meu irmão sempre fora forte como um touro e se resistira até o sangue encher-lhe as veias, certamente não morreria mais.
Ergui-me num salto. Naquela altura do campeonato, uma batida do coração valia a taça. O médico que estava passando, observou:
– Mais alguns segundos e o quadro seria irreversível.
Alguns segundos! … Meu Deus, quantos deixei que formassem minutos, horas e dias e os desperdicei inutilmente! Entendia agora que o bem e o mal, a sorte e o azar, a vida e a morte…, tudo enfim o que nos acontece de mais importante, se faz num segundo. E tantos jogamos fora, à toa, pelos dias de nossas vidas! Tantos! …

QUEM QUER, TEM GRANDE CHANCE DE CONSEGUIR
Quando cheguei ao local já capinado e pronto para o plantio, vi que uma semente – talvez deixada ali por algum pássaro, germinava no solo. Com a biqueira do sapatão, removi-a, mas chovia muito e ela enraizou logo adiante. Dois meses depois, voltando ao local, percebi um renovo virente em meio à plantação: era aquela mesma semente que um dia eu tentara eliminar. Entendendo tratar-se de erva daninha, ceifei-a, dessa vez, a golpes de facão. Mais algum tempo, o pequeno tronco decepado brotou, e quando o notei, já não prejudicava mais os pés de milho que se avizinhavam. Por isso, deixei-o em paz.
Cessou o inverno, vieram as flores, depois o verão. As espigas de milho já haviam sido colhidas e a arvorezinha ficou lá, bem verde, no meio do cenário ressequido: era um jambeiro. No final do terceiro inverno já se transformara numa fruteira adulta, e quando novembro chegou, centenas de flores e pequenos frutos já podiam ser notados em cada galho que se observasse. Caminheiros e pássaros ali mataram a fome ou, simplesmente, descansaram em sua sombra nos dias quentes de verão.
Dezenas de suas sementes que em volta caíram ou foram jogadas, germinaram e cresceram também. Aquela árvore mãe, teimosa e persistente, já mal era notada. Tornara-se velha, meio murcha, com muitos galhos secos e mortos. Transformara-se numa inútil árvore frutífera. Nem os pássaros diurnos pousavam mais em seus galhos, nem os homens a escolhiam para usufruir sua sombra. Abandonada, agora quase sem vida, para nada mais servia. Tornara-se estorvo: uma bruxa assustadora em todas as noites de luar. Apenas os urutaus e as corujas encimavam seus galhos secos, emitindo lamentos aterrorizantes.
Pensando apenas nisso, mandei que a cortassem e lançassem fora, pois prejudicava a beleza e o desenvolvimento das demais. Foi eliminada, enfim, por já haver concluído seu importante papel na Natureza.
Mas nada acontece sob o sol que não tenha uma finalidade. Já foi dito que nem uma flor nasce por acaso. Hoje, passados muitos anos, também envelheci, tornei-me como o jambeiro de minha roça. Vejo meus filhos – sementes que caíram de mim – agora precisando de meu lugar. Sem que queiram ou percebam, eles acionam o rodízio imutável dos seres, exigindo lugar e espaço.
Da Natureza podemos tirar as mais claras lições de vida. O próprio Jesus a usou constantemente, falando do joio e do trigo; do semeador; da figueira seca; do grão de mostarda; da árvore e seus frutos; da vinha… Agora, agarro-me à vida com todas as forças que me sobram, mas nem as crianças, nem os jovens, lembram mais do meu passado. Sinto-me, também, um jambeiro que definhou, um jambeiro que apenas foi necessário, mas que já cumpriu a missão.
Noto meus braços mirrados, minha visão embaçada, meus ouvidos moucos, meus passos curtos, meus ralos cabelos brancos…. É chegada a hora! Embora pareça assustador, o fim se aproxima!
Mas, mesmo não mais existindo deixará seu legado, permanecerá nos anais da história. Como aquela semente do meu milharal, temos a obrigação de lutar pela vida, exigir nosso direito de crescer e dar frutos e, por fim, aceitar a regra do mundo. Mas, antes que isso aconteça não devemos esmorecer, ainda que nos pisoteiem e massacrem, cortem ou dificultem nossas tentativas. Aquele jambeiro, se tivesse desistido de viver, não teria criado sua história: seria, apenas, uma semente que não nasceu.
Todo aquele que quer uma coisa possível e luta incansavelmente para consegui-la, normalmente alcança seu objetivo atingido.

SORRIA
Aí está o caos! …. Todo tipo de desordem social minando até as mais belas instituições do mundo. Fome, doenças, corrupção, violência…. Parece impossível sermos felizes diante dessa falta de equidade e de tanto egoísmo, pessoal ou coletivo, que cada vez mais impera na Terra. Vemos, então, muitas pessoas se achegarem lastimosas, desfiando rosários de problemas:
– Não dá para ser feliz com tanta impunidade! …
– Lá em casa, todos estão doentes e não temos o que comer.
– Queria participar da festa, mas não tenho roupa adequada.
São inumeráveis as causas que parecem responsáveis pela infelicidade das pessoas. No entanto, todo ser humano normal, embora pobre, feio ou de cor, tem condição plena de ser feliz. É apenas uma questão filosófica, uma questão de cabeça, de determinação, de querer.
Quando alguém não se entrega, diminui a intensidade dos problemas que surgem, ficando muito mais imune à tristeza e à depressão; quando se certifica de que felicidade e tristeza são meros estados de espírito, sorrir ou chorar passa a ser opção.
A chibata pode ferir o corpo, mas não a alma. O corpo não concorda em buscar a felicidade através do sofrimento, enquanto o espírito parece não possuir outro caminho. Por isso, nenhum opressor conseguiu, pela força, demover os obstinados benfeitores da humanidade de seus sublimes ideais. Razão: o espírito é intocável e nem todos os exércitos do mundo podem derrotá-lo.
Se quiser a felicidade é bom lutar por ela. Ninguém faz a infelicidade de ninguém. Nós mesmos nos imputamos os males. Quem não conhece pessoas das quais se diz: fulano está sempre sorridente, não obstante viva cheio de problemas; quem desconhece a recíproca: sicrano anda sempre triste e infeliz, embora não lhe falte nada!
É preciso que a gente usurpe do emaranhado de propensões, o segredo da constância. É funcional não dar ouvidos às insinuações que nos subjugam por causa da preguiça, covardia e falta de determinação. Já perceberam que, enquanto milhões não conseguem emprego, há pessoas empregadas que recebem convites de trabalho a todo momento? É que o mundo foi e sempre será assim: fácil para aqueles que enfrentam a vida como ela se lhes apresenta e ruim para os preguiçosos e covardes que não se cansam de esperar que o próximo lhes resolva os problemas.
Que ninguém fique esperando que outros venham fazê-lo feliz. Vá, você mesmo em busca de sua felicidade. Ela depende mais de você do que dos outros. Se gosta de alguma coisa, corra atrás; se detesta, foge dela. Se gosta de alguém, lute por esse alguém; se está com fome, busque comida. Lute, batalhe por si mesmo, pois poucos ou ninguém irá fazê-lo por você.
Não seja escrupuloso em excesso e nem dê tanto ouvido aos ensinamentos exageradamente repressores. Afinal, Deus não nos colocou aqui para sermos infelizes e nunca estabeleceu que prazer honesto é pecado.
Há coisas que nos ensinaram como criminosas, mas que só o são se avalizadas e confirmadas por nossas conclusões. Somos um universo único, responsáveis por nós mesmos, livres para escolhermos nossa própria sorte. Seguir os outros sem observar direito o caminho que seguem, deve ser a última opção de um ser livre e pensante.
Portanto, amigo, busque sua felicidade. Diga sempre: está tudo bem, amanhã será um novo dia. Sorria o máximo que puder; não reclame da crise, mas combata as causas. Não se revolte em demasia. Tendo feito sua parte, sossegue. Deixe que os maus dividam entre si as angústias e os infortúnios da consciência.
Olhe para os céus, para as árvores, para as águas e os animais. Quanta coisa bonita para ser admirada! Pense: você poderia não ter nascido – muitos não nasceram. Hoje, você é um milagre maior do que a criação de todo universo, pois ele passará, mas você, não. Seja agradecido e sorria, pois só esta deferência já é motivo de felicidade. Afinal, cara de derrotado, de sofredor, de vítima…, além de não resolver problema algum, ainda é própria de ingratos e covardes, e você não é um desses…, ou é?!…

TODO DESNECESSÁRIO E NECESSÁRIO AO DIABO
Quando deixei o Seminário Maior do Calafate, em Belo Horizonte, e voltei para minha terra natal, fiquei conhecendo um homem muito rico e avarento: diziam que era o mais abastado da região. Apesar de seus cinquenta e três anos de idade e de algumas mechas de cabelos grisalhos, possuía uma compleição física invejável. Jamais eu vira alguém com tanta disposição ao trabalho e possuidor de tantos bens. Como a maioria dos habitantes da pequena vila, também ele vivia da pecuária e da agricultura. Galo algum anunciava o amanhecer sem que ele fosse testemunha.
E quando a noite chegava, era sempre ele o último a encostar a camioneta na porta do paiol. Não adentrava sem antes retirar todos os objetos de cima. Todo suarento, fedendo a azedo, passava pela sala sem ao menos um alô para a esposa que corrigia cadernos: ela era professora.
Lá pela década de quarenta, a desordem financeira ainda não havia afetado, tão desastrosamente, a economia brasileira. Por essa razão, todo aquele que trabalhasse e ao mesmo tempo fizesse economia, tinha grande chance de enriquecer rapidamente. Já no tempo em que o conheci, possuía ele milhares de alqueires das melhores terras e também incontáveis reses, espalhadas pelas dezenas de fazendas. Mesmo assim, ninguém o flagrava num bar ou num bate-papo informal, ainda que fosse domingo, dia santificado ou feriado nacional. Em qualquer lugar, tempo ou situação, sua preocupação era sempre gado, fazendas, milhões…
Desde que saí de minha terra natal, sempre recebo notícias de meus familiares, dando-me conta dos acontecimentos mais importantes. Foi assim que fiquei sabendo do falecimento do homem mais rico da região. Havia morrido só, sem esposa porque fora abandonado; e sem filhos porque não se dispusera procurar um especialista para descobrir a causa de sua infertilidade. Aos oitenta e sete anos, depois de andar o mundo à procura de médicos que o livrassem de um câncer generalizado, sua vida foi ceifada.
– As exéquias deram até manchete de televisão – segredou-me minha sobrinha.
– Ele era um homem notado por causa do patrimônio que possuía – observei com certa ironia – e isso sempre interessa ao mundo.
– Fui ao enterro dele – continuou ela – e o que mais chamou a atenção de todos foi o epitáfio que, segundo parentes dele, foi extraído de um trecho da longa carta que deixou.
Fiquei curioso porque nunca imaginei que aquele homem, embora soubesse ler e escrever, fosse capaz de alguma proeza literária ou filosófica. Sempre me pareceu despreocupado com a vida e seus mistérios. Mas, como aos mortos é dado o mito com seus mistérios, quis saber do admirável feito póstumo.
Minha sobrinha, depois de algum tempo procurando o papel em que anotara o epitáfio, leu-o vagarosamente, com suas palavras, porque ele era homem de pouca cultura: “SÓ AGORA, DEPOIS DE HAVER CONQUISTADO O MUNDO É QUE PERCEBO COMO FOI INÚTIL MINHA LUTA.”
Esta foi a frase que seus familiares separaram do texto para sintetizar e definir aquele homem que, pela ganância sem limites, passara pela vida sem percebê-la. Não teve herdeiros diretos, não ajudou ninguém, nem a si próprio o fez!
Mas, como nada é totalmente inútil, mesmo de um avarento como o Gaspar, alguém poderá aprender a lição salvadora de que, TODO O DESNECESSÁRIO É NECESSÁRIO AO DIABO. Sim, porque todo o mais de um é o menos do outro.

OS BURROS, TALVEZ! …
Para se entender a vida é preciso um acurado espírito observador. Faz-se necessário parar quando em vez e refletir, ao menos, sobre os motivos que nos causam alegrias ou tristezas. Também quanto ao que acontece a nossos semelhantes, tanto na comunidade em que vivem, como na sociedade que os engloba, é bom a gente observar e tirar as conclusões sobre os reais motivos que desencadearam os chamados “acontecimentos de comoção social”.
Ouvir, ver, notar e praticar as coisas que são boas e eliminar as que percebemos tornar as pessoas tristes, desiludidas ou desesperadas, é o segredo maior de nossa própria paz e da felicidade que podemos obter ainda neste mundo…, e a garantia suprema de salvação. Mas apesar dessas lições acontecerem todos os dias, persistimos no erro.
Às vezes me questiono sobre o valor ou, quando nada, sobre o funcionamento do raciocínio humano. É mais que sabido que somos seres racionais, totalmente diferentes dos demais animais. Através de nossa inteligência podemos sobrepujar, escravizar, destruir, manipular irracionais gigantescos como se fossem insetos desprezíveis.
Esse inconfundível detalhe que permite até preestabelecer certos acontecimentos com grande acerto – embora seja uma irrefutável prova de que somos os seres mais importantes da criação – é também a marca registrada de nossa irresponsabilidade.
Todos os dias, quando praticamos o mal, quando reagimos irascivelmente contra nosso semelhante, quando negamos ajuda a um irmão necessitado, quando esquecemos a sobriedade na hora de nos alimentar, quando ingerimos bebida alcoólica e cometemos desatinos…, todos os dias, quando estas coisas acontecem, vemos a noite chegar como se fosse um juiz implacável ditando-nos a sentença condenatória por meio da insônia e do desassossego. Mesmo assim, pelos dias, pelos anos, pelos séculos dos séculos, as gerações se sucedem repetindo os mesmos erros.
Assistindo aos noticiários do mundo inteiro, percebemos a estupidez – não só das guerras civis – mas também daquelas que envolvem interesses políticos e econômicos entre nações. Mesmo assim, do misterioso aparecimento do bicho pensante, até hoje, nada mudou em termos de ganância e poder.
Crescem as ciências, e quanto mais crescem e se desenvolvem, mais mergulham na incapacidade de vencer, até mesmo, seres vivos praticamente invisíveis, como é o caso do vírus da AIDS, do câncer e, agora mais recentemente, do “ebola”. Mesmo assim, insistimos em aceitar o crescimento geométrico das populações, cujo excesso avança pelos recantos mais sagrados da Terra, modificando a Natureza, tão bem bolada pelo nosso Criador.
Sempre a Natureza aceitou, sem reação iminente, as investidas criminosas do homem, mas sempre também se vingou a longo prazo, por meio de epidemias misteriosas que, vez por outra, assolam determinadas regiões do Planeta. O excesso de gente é a principal causa. Mesmo assim, instituições “respeitadas” continuam sendo contra os planejamentos familiares, alegando que o próprio Deus estabeleceu que crescêssemos e multiplicássemos sobre a face da Terra. Quando essas pessoas irão entender que o Ser que nos criou com inteligência, quer que façamos uso dela nos momentos mais cruciantes e necessários? Já pensaram se em todos os países e em todas as famílias do mundo o “crescei e multiplicai” fosse levado ao pé da letra?
Cortejos e mais cortejos fúnebres, todos os dias levam aos cemitérios, cadáveres de pessoas abastadas que se imaginavam fisicamente eternas. Mesmo assim, continuamos a explorar nosso irmão, insistimos em ludibriar com palavras, com juramentos, com tudo o que é sórdido e vil, àquele que em situação de desespero, precisa negociar seus bens.
Os hospitais especializados andam cheios de fumantes e alcoólatras. Ainda assim, em qualquer bar, quiosque ou festa (até mesmo pelo Natal e nos aniversários infantis isso acontece), as pessoas se reúnem e transformam o que poderia ser um momento agradável de lazer, em mais uma dose de veneno para todos os presentes.
Passando pelas ruas, é comum ouvir vozes exaltadas de marido e mulher, pais e filhos…, uns acusando os outros. É a mulher que causa suspeitas por sua vaidade exagerada; é o homem infiel que chega em casa fora de hora; é o filho adolescente e revoltado que se droga; é a filha que se prostituiu… Famílias assim já vivem no inferno, mesmo em vida. Não obstante, quantos de nós, mesmo vendo essas coisas, não estamos indo para o mesmo caminho?
Quantas vezes vamos a um restaurante, churrascaria, festa de casamento…, e achamos que, por estarmos pagando, ou por termos farta e gratuita comida, comemos e bebemos desregradamente, enchendo nossas veias de colesterol, ou sendo castigados por uma desagradável infecção intestinal? Mas, mesmo assim, dificilmente, nos tornamos sóbrios e educados quando nos apanhamos nesses lugares.
Raramente se viaja por um dia inteiro sem se deparar com um acidente de trânsito. Motivo: alta velocidade, pressa ou outro tipo qualquer de imprudência. São de estarrecer as estatísticas que envolvem essas tragédias e, mesmo assim, cada vez que entramos no asfalto, alguém nos ultrapassa a mais de cento e vinte quilômetros por hora em lombadas, curvas proibidas e faixas duplas.
Em todos os países do mundo e principalmente no Brasil, a maior parte dos políticos, em todo período eleitoral, fazem as mesmas promessas mirabolantes e enganosas de dar emprego, saúde e educação; de transformar a vida de cada eleitor num paraíso que, possivelmente, só Deus pode oferecer. E apesar de sermos enganados eleição após eleição, em cada uma que acontece, votamos nos mesmos salafrários e continuamos debaixo da mesma opressão.
Hoje – sabe Deus quantos séculos já se passaram desde que decidiu nos colocar aqui para viver – as coisas se passam do mesmo jeitinho. Começou com Caim, passou por Nero, chegou a Hitler e ainda hoje, em pleno século XX, a famigerada dinastia segue fortalecida. Apesar de todos esses exemplos, os povos se destroem, as pessoas se destroem, a gente se destrói estupidamente em cada vez que a ocasião se nos apresenta.
Quem sabe um dia, Deus, entendendo o grande equívoco que cometeu em Sua deferência, arranque-nos o privilégio da inteligência e o entregue a outra espécie de animal mais merecedora: OS BURROS, TALVEZ!

OS FORTES E OS FRACOS
Gosto da Natureza. Curto seu verde constante e o matiz das flores que ornamenta a primavera. Admiro o universo com seu zênite estrelejado, cheio de pontinhos brilhantes e misteriosos. Não posso esquecer os mares, os rios, seus peixes…, nem tão pouco as milhões de espécies animais que enfeitam e dão musicalidade e vida ao nosso planeta.
Mas o que mais sempre me chamou a atenção, e ainda chama, são os pássaros e os animais silvestres: normalmente, sempre perfeitos, fortes e sadios. É a manutenção da lei dos mais fortes – uma única lei preestabelecida pela Natureza a fim de que sua majestade e magnificência sejam preservadas.
Nestes tantos anos vividos junto a esta “casa que Deus nos deu”, destruindo-a ou, às vezes, preservando-a, raríssimas vezes me deparei com qualquer animal adulto aleijado, a não ser quando afetado pela mão nefasta do homem ou por disputas que empreendem pelo domínio de território, e de fêmeas no cio. A explicação parece-me simples: os fracos, ainda tenros, são deixados para trás, eliminando-se pela própria falta de capacidade de subsistirem. Quando sobrevivem são prejudicados na tentativa de se reproduzir, pois acabam sempre sendo rechaçados pelos mais fortes. Suas fraquezas genéticas não são repassadas. Por esta razão, os animais que vivem na Natureza sem a presença do homem, são, fisicamente, fortes e perfeitos.
Na raça humana – única espécie animal que pensa – tem-se a impressão de que as coisas não se passam da mesma forma. É apenas impressão. A vida dos seres humanos prima pelo espírito e por este prisma, também, é dirigida pela lei dos mais fortes. A beleza de um ser humano está na felicidade que vive e transmite. Apenas as almas fortes são felizes.
Há pessoas saudáveis e bonitas fisicamente, mas que não têm força de vontade, não enfrentam as adversidades, não dominam suas más inclinações, não acreditam nas virtudes, não têm fé e nem procuram adquiri-la, não respeitam as leis nem as normas vigentes. Permeio aos inúmeros problemas causados por estas fraquezas, vivem sempre angustiadas, ameaçadas, perturbadas e infelizes.
Estes seres são os fracos, aqueles pintinhos perrengues que não conseguem acompanhar a choca nem disputar os petiscos descobertos pelos pés ciscadores da mãe; representam ainda o filhote que saiu do ovo atrasado e morreu no ninho, de fome e frio, quando a mãe abandonou o recinto para obedecer à lei natural de não deixar o certo pelo duvidoso; representam também aqueles peixinhos fracos que servem apenas de alimento aos depredadores mais robustos.
Humanamente raciocinando, parece-me injusto esse decreto da Natureza. No entanto, para o Criador que recicla a vida a cada segundo pelo instinto prazeroso do sexo, a vida só se torna importante para quem a detém. Poucos perdem um minuto de sono, ou derramam uma lágrima por uma criança etíope que morreu de fome. A dor é quase sempre egoísta e interesseira, sobrevindo-nos, apenas, por entes queridos ou pessoas muito ligadas ao nosso bem-estar.
Há um provérbio escrito nos para-choques dos caminhões que diz: “A vida só é dura pra quem é mole”. Na verdade, os fortes (de espírito) sempre vencem. Há gente que pinta sem as mãos, que lê sem enxergar, que é útil sem jamais sair de um leito, que se transforma em benfeitor da humanidade sem possuir uma casa própria para morar. É, pois, o espírito quem determina o forte, através da fé e da força de vontade.
Hoje temos milhões de desempregados. Andam de porta em porta pedindo emprego. Em contrapartida, há outros que ganham bom salário e são disputados pelas empresas. Para esses nunca falta emprego. Motivo: responsabilidade, trabalho, honestidade, fé e competência. São os humanos fortes.
Ficar para trás, ser um fraco na condição humana é não ter coragem nem fé para enfrentar as adversidades. De fato, a vida é dura para quem é mole. É um dó que quando se fala em vencer, pensa-se logo em dinheiro, poder e riquezas. Mas não é bem assim. Vencer é transportar a cruz que nos foi colocada nos ombros, sem reclamação nem revolta. Vencer é seguir as próprias verdades, aceitando a vida como ela é. É usar do privilégio de pensar para se convencer que, espiritualmente, somos todos iguais. É ter a certeza de que não há poder nem força capazes de vencer as ideias, ainda que venham do mais ínfimo e pobre dos homens.
Ser forte é, acima de tudo, lutar incansavelmente para amenizar as desgraças que nosso egoísmo e nossa insensatez causam quando criam miseráveis, ignorantes, mutilados, famintos e doentes.
Também nós, seres humanos, somos regidos – embora espiritualmente – pelas mesmas leis dos demais animais: a lei dos mais fortes. Infelizmente, por causa de nossa estupidez, somos uma raça defeituosa e cheia de problemas, tantos que se torna impossível viver inteiramente em paz aqui nesta vida. O cultivo e o valor do pensamento perderam terreno pelos efêmeros e mesquinhos prazeres do corpo. Talvez tenha sido por esta razão que Schopenhauer, entre os filósofos Byron, Musset, Heine, Leopardi…, o mais pessimista, não se cansava de apregoar que a felicidade positiva e durável era coisa impossível.

NÓS, OS CEGOS
Aqui estamos, montados neste planeta, zunindo pelo infinito na velocidade de uma bala de canhão. Há bilhões de anos a rota não parece ter mudado, mas bem que poderia ou poderá ser mudada por qualquer ordem ou transtorno do universo. Aí, como um grão de areia vadio – já que no contexto universal nosso planeta não passa de poeira cósmica – certamente todo nosso orgulho, egoísmo e demais defeitos irão congelar-se ou incendiar-se, dependendo do rumo.
Fica claro que por causa desta temeridade ninguém irá perder um minuto de sono, nem mudar de vida. Afinal, há bilhões de anos ela vara o espaço sempre na mesma rota preestabelecida por ALGUÉM que ainda teimamos não aceitar como Supremo Criador de tudo quanto existe.
E as coisas vão acontecendo aqui em cima da crosta, com os seres humanos cada vez mais insensatos, não se importando com as gerações futuras, nem tão pouco com seus semelhantes do presente.
Estamos vivendo uma época que será lembrada pela história como o é Sodoma e Gomorra. Não nos parece tanto porque vamos nos acostumando, como quem se vicia ao longo da vida a tomar um copo cheio de cachaça sem cair pelas calçadas. O efeito é tão danoso como quem o toma pela primeira vez, mas a força do hábito força o organismo ao extremo esforço de se defender. A ação nefasta existe, mas de uma tal forma controlada pelo organismo que, aparentemente, mal algum está acontecendo.
A corrupção, a impunidade, o egoísmo, os crimes, a falta de decência ou decoro… já nos parecem tão normais que nem mais estranhamos, tal a intensidade com que acontecem a cada instante de nossas vidas. Hoje vemos televisão, ligamos o rádio ou uma lâmpada, filmamos uma festa de aniversário… usamos da tecnologia moderna sem sequer atentar para o que está se passando. Na verdade, ver daqui da Terra, um homem pisar na lua no exato momento do acontecimento, é alguma coisa de extraordinário e, para os leigos no assunto, um milagre divino.
É sabido por tradição que a gente se adapta a quase tudo neste mundo. Por isso os gostos são tão diferentes. A razão está no costume, no hábito, no vício ou nas virtudes, adquiridos ao longo de nossa existência. Todos nós, ao nascer, somos testemunhas dos atos e aptidões daqueles que nos criam. Por isso, é muito comum termos crenças e costumes iguais ou semelhantes.
Recordo-me da família de meu gerente de fazenda. Ele tinha seis filhos e nenhum deles conhecia asfalto, carros… nunca haviam saído da roça. Ano atrás colocamos lá energia e televisão. Quando apareceram as primeiras imagens de beijos na boca, mulheres seminuas, cenas de assassinatos e todo tipo de agressão à pureza e aos bons costumes, as crianças não sabiam nem para que lado olhar… A menina de apenas onze anos de idade e que nem sinal de seios apresentava, em menos de três meses, transformou-se como que por encanto, numa bonita mulher de verdade.
Se a televisão continuar na progressão atual, apresentando filmes de sexo explícito antes das vinte e três horas, não será de estarrecer se os cientistas flagrarem fetos se masturbando. É inegável a excitação que certas cenas causam, e hoje em dia é muito comum os pais dormirem antes dos filhos.
Triste época esta nossa, vivida no desrespeito, no desamor, na falta de fé ou religião. Fazemos do dinheiro e do poder um deus de violência, de egoísmo, de injustiças sociais e de tudo o que é vil e desumano. E todas estas coisas estão aí, ao nosso lado, ou mesmo dentro da gente. Deitamos como animais irracionais e se pensamos é apenas nos negócios, nos lucros ou em vantagens materiais. Acordamos afobados, ouvindo o preço do dólar, fazendo cálculos, pensando em bons negócios.
Enquanto isso a vida vai passando, passando e nossa oportunidade desaparecendo. Um pouco mais e a hora que deveria ser a mais feliz de nossa existência, certamente se transformará em desespero, diante do tempo exíguo e minguado que nos restará para o arrependimento. Iremos, então, sabe lá Deus para que lugar.

BONITO, MAS NÃO CONVENCE
“Para uma amizade a dois é necessário a paciência de um.” “O nicho preferido da felicidade é o bom humor.” “Não dá para esbofetear um rosto sorridente.” “Toda infelicidade vem da boca.” “Apesar de não chegarem aos cem anos, os homens inventam preocupações para mil.” “Faça amizade com a bondade das pessoas, nunca com o que possuem.” “Quem é esperto demais nunca tem amigos.” “Quem me insulta hoje, pode ser meu amigo amanhã.” “Se realmente ama seu filho, deixe-o sempre com um pouco de fome e frio.” “O que sussurras ao ouvido de alguém é ouvido a milhas de distância.” “Até hoje, céus e Terra, homens e espíritos sempre apreciaram os humildes.” “Transformar um machado em agulha é apenas uma questão de trabalho.” “Saber como se faz uma coisa é fácil, difícil é fazê-la.” “Quanto mais se enche o bolso, mais se esvazia o coração.” “Aquele que comete o mesmo erro mais de uma vez, não mais o considera pecado.” “É melhor se dar o trabalho de acender uma vela do que viver na escuridão.” “É mais fácil um camelo passar…”
Tenho aqui comigo, uma dezena de livros estritamente de provérbios e de sabedoria antiga. Poderia, pois, encher cem laudas enumerando-os, e ainda ficariam muitos de fora. Não houve escolha nos supracitados, apenas fui compilando de acordo com as páginas que eram abertas. Mesmo assim, dão, claramente, a ideia de que, apesar de bonitos, significativos, verdadeiros e, até certo ponto, comoventes, nada significam para a maioria das pessoas.
Belas tiradas e frases inteligentes sempre foram escritas e proferidas, mais por pensadores e filósofos do que por santos convencidos da verdade. Não é por menos que tanto as usamos em prol de nosso interesse, em ocasiões especiais em que nos vemos acuados por críticas e acusações. Mas, no fundo mesmo, não mudam nossas vidas em nada, mesmo porque são fabricadas e não sentidas.
Muitas chegam a ser contraditórias. Um provérbio chinês reza: “É preciso cavar o poço antes de ter sede.” Um indiano reforça: “No comer e nos negócios, não se deve ser moderado.” Tagore depois rebate: “Saber renunciar às coisas materiais é ser rico.” O próprio Jesus Cristo nos ensinou que não devemos ficar preocupados com o dia de amanhã.
Quase todos os provérbios enaltecem a humildade, a conformidade, a paciência, a sobriedade, a pureza, o respeito, a fraternidade, o amor, a simplicidade, a persistência, a fidelidade, a sinceridade e todas as demais virtudes que enriquecem o caráter das pessoas. Sempre desaprovam os irritados, os gananciosos, os inescrupulosos, os avarentos, os corruptos, os empedernidos, os egoístas, os orgulhosos e todos os homens que não “amam a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmos”.
Mas, apesar de tudo isso, quantas conversões sinceras e duradouras foram, até hoje, motivadas unicamente por palavras bonitas? Elas até podem encantar e emocionar, desde que extraídas da convicção e da sinceridade. Os livros sagrados que nos foram deixados e que poderiam ser responsáveis por tantos seguidores, não convenceram senão por testemunho o exemplo deixado por seus fundadores. Realmente, saber o certo é fácil, o difícil é praticá-lo!
Normalmente, a gente nasce, vê, nota e imita nossos pais e aqueles que nos cercam, e depois, só Deus, através de seu poder milagroso, consegue modificar-nos. Vivendo num mundo e num tempo em que o comum é levar vantagem sem olhar os meios, quase todos acham normal enganar, desviar, mentir…, praticar qualquer ato que venha resultar em benefício próprio.
No início nossa consciência reluta, mas depois (porque é de nosso interesse ou porque somos pusilânimes) a sufocamos com o argumento de que aquilo que andamos fazendo é normal e necessário. Atingimos aí um estágio que nem toda sabedoria do mundo, por melhor que tenha manipulado a frase, e por mais verdadeira que ela pareça ou seja, irá modificar nossas vidas. É o tempo de se acreditar que “rios e montanhas podem ser modificados: homens não”.
Pelo que entendo da vida, há duas grandes graças que cada ser humano pode receber: a primeira é ganhar, ao ser gerado, os caracteres genéticos das principais virtudes de seus pais e antepassados; e a segunda é ter a possibilidade de desenvolvê-los na comunidade ou sociedade em que estiver vivendo.
Meu pai sempre dizia que o espinho nasce com a ponta, embora de vez em quando não aceitasse a asserção e me enchesse a bunda de vergões. Hoje, mais que antes, concordo com ele, não obstante tenha aprendido que as pontas podem ser aparadas com uma boa vara de guaxima e muita paciência.
Neste momento, por uma contingência qualquer, você pode estar lendo este texto. Pode até estar concordando com tudo quando estou escrevendo. É possível que não seja compreensivo e paciente, é possível que seja um homem cheio de defeitos e que perceba que seria bom se pudesse mudar. Quem sabe, até faça algum esforço, tipo carta de intenções. Deus queira que não, mas antes que o sol se ponha, você pode receber uma proposta desonesta ou ser tentado a fazer uma. A oportunidade é boa, mas os provérbios lhe recriminam. Que decisão irá tomar?
Sabe, amigo, ficaria feliz se, ainda como a exceção que prova a regra, você pudesse me contradizer. Temo, porém, que depois de tantos anos sendo, digamos, um limoeiro, consiga colher dele, agora, alguma laranja-lima. Mas, para não ser pessimista ou causar desespero tipo “não tem mais jeito”, devo dizer-lhe que é fácil, muito fácil mesmo, você fazer um enxerto e ter, daqui a mais alguns anos, limão e laranjas-limas no mesmo pé. Eu mesmo acredito, piamente, que não somos responsáveis pelos limões, porque não tivemos escolha quando nos plantaram, mas seremos responsabilizados sim, se agora podendo, não tentarmos um enxerto para, também, produzirmos laranjas-limas.

NATUREZA ESTONTEADA
Mal cheguei de viagem, a televisão noticiou que uma frente fria se aproximava do Brasil. Surgia assim uma nova esperança de chuvas ou, ao menos, uma temperatura mais amena, sem o sol causticante de dias sem nuvens no céu. Que Deus – embora não mereçamos – mais uma vez se compadeça desse povo ingrato, tão ingrato e inconsequente que acaba por confundir as próprias leis da Natureza.
Tanto mexemos no planeta destruindo as florestas, criando barragens, desviando cursos de rios, secando lagoas e charcos, explodindo bombas atômicas, envenenando solo, ar e água… que a própria Natureza anda confusa.
Há mais de três meses não chove por aonde passei. Dos estados do Maranhão, Goiás, Minas Gerais e Espírito Santo, apenas o primeiro sofre menos com as estiagens prolongadas. É que aqui estamos sujeitos à umidade amazônica e o sereno das noites compensa, satisfatoriamente, os dias quentes que se intercalam.
O que vi em minha viagem foi desolador. Centenas de animais mortos por toda extensão da estrada, principalmente na região limítrofe entre Minas e Goiás. A situação pareceu-me mais séria no município de Ceres. Os rebanhos se assemelhavam a manadas de caveiras ambulantes, locomovendo-se pachorrentamente à cata de algum ramo verde perdido nas encostas e valões. Impressionou-me, sobremaneira, uma ema (animal autóctone adaptado e afeito a tais intempéries), parada na orla da estrada, como a implorar aos transeuntes, um pouco d’água.
As queimadas constantes, à noite, pareceram-me longínquas cidadelas perdidas na imensidão dos sertões; a fumaça sufocante, fantasmagórica e intensa, complementava o inferno retratado por Alighieri. Em dezembro, quando passei por Ceres, voltei dizendo que idiota éramos nós, viver aqui tendo um paraíso ao lado. Hoje, sinceramente, não penso da mesma maneira.
A região por que passei fez-me lembrar marcantes recomendações de ecologistas como Valdiki Moura e Emílio Ayoub de que se os homens não cuidarem com mais seriedade da casa em que moram, possivelmente terão de voltar às tocas e grutas. A Natureza é muito mais sensível do que imaginamos. Não obstante ainda não tenhamos conseguido poluí-la totalmente, isto acontecerá um dia se desde agora não forem tomadas sérias e enérgicas providências.
Entendo que tudo tem seu tempo, mas a transição não poderá acontecer de maneira drástica e inconsequente, sob o perigo de os imprevistos nos pegarem sem uma solução adequada a evitar grandes e inesquecíveis catástrofes. Um porco não pode viver em harmonia com um jardim florido: ou uma coisa, ou outra. Assim, é ingenuidade querer-se progresso industrial e Natureza intocada ao mesmo tempo e no mesmo lugar; desejarem florestas naturais e grandes criações de gado ao redor é, quando nada, vã tentativa. Tudo tem seu tempo, sua hora, seu lugar.
A pretensa ação do IBAMA a fim de evitar, por exemplo, a total destruição dos capões restantes de Mata Atlântica é uma luta inglória e até mesmo estúpida. Rodeada de pastarias e de todo tipo de agricultura, sujeitas assim ao fogo, mormente nas grandes estiagens, elas terão que sucumbir, quer queiram, quer não. Haveremos de substituir o que foi destruído ou o que está fora de tempo, com projetos que favoreçam a existência de algo compatível com o progresso atual. A única maneira de amenizar o impacto dessa transição é conscientizar o povo a que faça as coisas com menos ganância.
Ninguém obriga aqueles que não querem. Podem até escravizar temporariamente, mas todo jugo é efêmero, mesmo porque o espírito é livre e intocável. O Espírito Santo que já foi o lugar mais caçado do Brasil, hoje conta com o maior reduto do país de protetores de animais: colonos e proprietários, agora, independentemente do IBAMA, querem os bichos e as aves em suas fazendas.
O que percebi pelo caminho, bem sei, não passou de uma pequena amostra do que acontecerá ao mundo se não tratarmos, já, de compensar, por meios modernos, a destruição impensada que estamos infundindo ao nosso planeta. Vocês sabiam, por exemplo, que até água potável poderá faltar aos habitantes do Brasil, o país que mais a tem na Terra?

TERRA: UMA EXPERIÊNCIA DIVINA
Garantir que foi Deus quem projetou e fez o universo é tão simpático e aceitável como assegurar que tudo se deu por acaso. Hoje, mais que antes, a Terra está povoada por pessoas que duvidam de tudo: tanto da existência de Deus, como de sua inexistência.
Isso é mais que provável quando vemos pessoas que, frequentando igrejas, cometem desatinos, possibilitando a perda de uma eternidade feliz por efêmeros momentos de prazer escuso; é ainda constatado quando notamos que pretensos ateus levam uma vida inteira de sacrifícios a fim de não prejudicar seu semelhante e também seu bom nome. Apesar de um tanto paradoxal, as pessoas acreditam duvidando.
Numa viagem por estradas desconhecidas, numa ocasião não tão distante, meu irmão mais velho discutia com seu filho – meu sobrinho que dirigia o carro – a possibilidade de ele estar indo em direção errada. Eu acho – dizia o mano – que você está voltando. Meu sobrinho, então, foi lacônico e incisivo: “Quem acha não tem certeza” – e continuou seu caminho. Verdadeiramente, aquele que duvida não tem certeza absoluta do que afirma, embora, em se tratando das coisas de Deus, hesitar é melhor que nada. Também por medo se é possível evitar o pior.
Certa vez, um outro meu irmão devaneou, dizendo que os vírus, os micróbios, as bactérias…, não passavam de armadilhas que a morte estendia pelas trilhas de nosso caminho. Todos os que caíam, se fracos, pereciam; se fortes, mal pegos ou socorridos a tempo, escapavam. Como ele, pelo mundo da fantasia, também eu acho que Deus, em relação aos homens e à sua criação, é perfeito, sendo passível de evolução, quando definido em sua coexistência no universo dos espíritos.
Até aqueles que se dizem ateus são, no mínimo, supersticiosos: dizem não acreditar em Deus, mas vivem preocupados com os despachos e as maldições. Será que, entre bilhões que afirmam a continuidade da vida após a morte, apenas alguns raros dissidentes estão com a razão? Temos exemplos na história, mas de tão raros, desconsiderados.
Fico pensando, ao mergulhar nos conhecimentos superficiais da genética, se como os cientistas – que hoje criam ratos para serem utilizados como cobaias – também Deus não nos colocou nessa Terra como um laboratório de suas experiências, a fim de obter a perfeição para um outro universo. Não se assustem nem se escandalizem: é apenas devaneio.
Jamais irei esquecer o saudoso padre alemão Antônio Wolkers! Alto, magro, rosto afilado, topete castanho cobrindo os olhos… Ele foi meu professor de matemática no seminário e depois, por coincidência, pároco e professor da vila em que nasci. Sempre que o momento permitia, ele trepidava uns grunhidos semelhantes a gargalhar sufocado, e afirmava: “Nós somos palhaços de Deus!” Também ele andava meio incerto quanto ao que se prega desde o início do mundo.
Quando W. Bateson, por meio das unidades celulares, constatou a transmissão de caracteres hereditários de célula para célula e, consequentemente, de pais para filhos, mas admitiu que nessa herança estavam implícitas probabilidades de certas variações e muita evolução, pareceu querer afirmar, também, que aqui fomos deixados como cobaias de experiências divinas.
Embora invisível a olho nu, como os átomos da Física, os genes existem. São códigos ainda inexplicáveis mesmo aos mais sábios entendidos do assunto, mas existem e são responsáveis por essa quase constante e misteriosa formação de cada espécie com suas devidas características.
Não é por outra razão que os ornitólogos ficam extasiados diante de uma das duas espécies de saí-de-sete-cores da família dos traupídeos, que chega a apresentar sete matizes diferentes em apenas alguns centímetros que constituem seu corpo. E não há geração que possa constatar qualquer diferença de coloração, em seu hábitat comum, de um para o outro.
Nos dois últimos séculos, por meio de certas descobertas, a humanidade imaginou estar próxima da equação armada pelo Criador para formar toda essa maravilha que chamamos de Planeta Terra. Isso, porém, foi e sempre será uma vaga pretensão, porque Deus, para nós será, em todo tempo, ininteligível, assim como um relojoeiro o foi e jamais deixará de ser para suas pequenas máquinas do tempo: os relógios.
Ao notar a aparente (?) imperfeição dessas armações genéticas quando das mutações que acarretam defeitos hereditários como a hemofilia, a idiotia…, fico me questionando se, também nós, não passamos de cobaias de pesquisas do GRANDE CIENTISTA ESPIRITUAL.
Quem pode afirmar ou não, que Deus que é eterno – por isso não tem pressa alguma – não está usando alguns trilhões de anos para verificar o que será melhor para “SUA FUTURO CRIAÇÃO”? Isso admitiria a hipótese de que o próprio Deus, em suas experiências divinas, tem a possibilidade de criar seres e coisas ainda mais perfeitos e maravilhosos. Humanamente falando, não deixa de ser uma falha, a criação de anjos com possibilidades de revolta. Entretanto, a literatura bíblica esclarece que os demônios que nos perturbam e tentam, eram, no princípio, anjos da confiança do Criador.
Enquanto tudo isso continuar, sei que, como eu, outros devaneadores ficarão usando o raciocínio para tentar penetrar nos mistérios que transcendem nosso limite, na ansiedade de encontrar uma resposta lógica para tanta aparente contradição. Tentarão buscar a perfeição de um relógio que não marca as horas, sem saber ao certo se o culpado foi o relojoeiro ou seus usuários. Tentarão agarrar coisas invisíveis, explicar o não como sim; continuarão entrando nos motéis com um crucifixo de Jesus pendurado no pescoço; destruir-se-ão em nome de um Deus que só nos ensinou a mansidão, a compreensão, o respeito, a liberdade, a justiça; usarão as leis para…

CARNAVAL
Está chegando o dia da maior festa popular do planeta. Nenhuma outra a ela se equipara. Pobres e ricos, credores e devedores, crentes e descrentes, extravasarão suas taras e fantasias, emergidas pela alquimia do álcool e das drogas.
Haverá também os bons samaritanos, aqueles que irão enclausurar-se em retiros, propondo a Deus que se digne descontar de seus sacrifícios, um pouco das tantas ofensas que irá receber nestes três dias de loucura.
Bem se sabe que é mais fácil destruir do que construir. Talvez por isso estabeleceu-se a Quaresma: quarenta dias de penitências com a finalidade de ressarcir os céus de tantas agressões morais praticadas por seus incautos filhos em apenas três dias. Para aqueles que, embora não podendo, irão endividar-se pelo Carnaval, certamente a Quaresma será um tempo longo e triste. Na Páscoa, o acerto de contas.
Há um dizer sensato que, apesar de sensato, não encontra lá muita ressonância nos corações das pessoas. Diz ele: “Se sabe que perderá a cabeça bebendo, não tome o primeiro gole.”
De fato, a gente deveria usar a privilégio do raciocínio para prever um pouco os males. Cada um, enquanto há tempo, deve pensar um pouco se a folia, as bebedeiras, os gastos… não irão afetar a sua família, a sua reputação e até mesmo o seu crédito e saúde. Pense antes de começar ou tão logo comece, pois todos os atos, ações, dores, alegrias, enfim, as coisas que se passam em nós, mais prejudicam ou ajudam, do meio para o fim.
Tudo começa com inexpressivos pensamentos. Eles são as sementes de nossas ações. Vem-nos um leve pensar. A gente para, lembra alguma coisa…. Se essa coisa for alimentada, certamente irá tomar corpo, como uma semente que nasce. Se notarmos que tal semente não deve nascer, devemos eliminá-la antes que brote e se transforme numa frondosa árvore difícil de ser desarraigada.
Está, pois, nas mãos de cada um a decisão de mais esse Carnaval. Ele vem aí, apresentado pela mídia como mais uma vergonhosa afronta (em nome da arte) à moral e aos bons costumes. Muita gente não vê a hora de poder curtir um bumbum de fora, encher a cara de cachaça, vomitar pelos cantos e salões e depois vangloriar-se de muitas “cervejinhas geladas”, ou tantas meninas ou mulheres usadas.
Eu só queria saber quantos estarão, nestes três dias, assinando seus próprios atestados de óbito! Se a AIDS, apesar das precauções de pessoas sóbrias e sensatas, já afeta milhares de precavidos, imaginem agora, quando a maioria não irá se preocupar com o fato, achando que com eles essas coisas não acontecem.
Por essas razões, é bom que cada um pare um pouco para pensar, deduzir, concluir o que deve fazer para não se arrepender depois. Afinal, uma vida é bem mais que três dias e os filhos, a família…, são bem mais importantes que qualquer Carnaval.
Ainda há tempo suficiente para fazermos um roteiro destes três dias, transformando a Quaresma, como disse (parece-me) Benjamin Franklin, num tempo bem curto, agradável de ser vivido. Se usarmos um pouco de nosso raciocínio – um pouco apenas – dificilmente iremos nos arrepender depois. É claro que podemos nos divertir sem cachaça e sem prostituição!
Quando paramos para pensar, usamos nossa condição privilegiada de racionais. Esta condição nos favorece sobremaneira, impedindo-nos de usar a covardia de, diante dos problemas criados, proclamarmo-nos inocentes ou ignorantes. É vergonhoso e vexatório para um homem, depois de seus desatinos, tentar justificar-se com o “eu não sabia; aconteceu; …”
Pensem bem no que irão fazer. Calculem suas possibilidades financeiras, suas condições de saúde, seus deveres cristãos e depois de tudo bem pesado e pensado, brinquem o Carnaval. Se fizerem assim, certamente não irão se arrepender.

PONTOS DE VISTA
De doido a santo, tudo parece ser uma simples e misteriosa questão de polaridade. Ambos parecem ser a consequência de uma programação errada ou, se desejarem, preestabelecida. Se se inverter a “tomada”, o caráter inato de um santo, por certo se transformaria num caráter perverso. A recíproca bem pode ser verdadeira. Santos e tiranos, comumente, são radicais.
É normal os suínos fuçarem a terra; os equinos e bovinos pastarem; as galinhas gostarem de milho…. Deduz-se daí que se virmos um cavalo dormindo em cima de um poleiro; um porco encilhado ou uma galinha fuçando a lama, certamente alguma coisa não estará funcionando direito. Haveria, neste caso, “um defeito na instalação”.
Diante desta dedução pode-se concluir, até, que todo aquele que tenta modificar o mundo, transformá-lo numa Utopia de Morus ou numa Cidade do Sol de Campanella, é alguém cuja montagem apresenta algum fio fora do lugar convencional. Pior ainda é quando a coisa se dá de maneira adversa, como aconteceu com Adolf Hitler no passado e ameaça acontecer com Sadam Hussein agora. Notem, por exemplo, como são comuns, conversões extremas. No âmbito religioso temos a história do perseguidor Saulo, tornando-se o apóstolo cristão São Paulo; do confuso Agostinho, hoje tido como um dos filósofos e santos mais respeitados da Igreja Católica; de tantas pessoas que conhecemos e que, de repente, de marginais, passam a pastores exemplares. Pode ter sido por acontecimentos similares que se disse um dia que os extremos se encontram.
Se atentarmos bem, a maior parte das pessoas é muito egoísta, não medindo esforços para, mesmo contra os princípios e as leis, conseguir o conforto, a independência e o prazer. Já se torna raro ver alguém preocupado com a desdita do próximo ou mesmo com a falta de eqüidade e isonomia, tão comentada atualmente. A verdade está com essa minoria? Afinal, a voz do povo é ou não a voz de Deus? Nós que vivemos protestando, gritando, esperneando… não seríamos apenas pusilânimes revoltados?
Na área sentimental (amor e paixão) também tudo tem se modificado muito no último século. Recordo-me que, lá no meu torrãozinho natal, Marilândia, nos meus tempos de criança, era o fim do mundo um beijo na boca. A moça que fosse flagrada em “tamanha obscenidade” só tinha duas alternativas: casar com o beijoqueiro ou morrer solteira. Hoje, os motéis já fazem parte do itinerário final de uma noite de namoro principiante, taxando-se de fria ou quadrada, a mocinha que não se prestar a isso.
Houve um tempo que, mesmo sob o prisma religioso, não era infiel o homem que tivesse quantas mulheres desejasse. O Velho Testamento é rico nesses registros. Salomão, por exemplo, tido como autor dos livros bíblicos Cântico dos Cânticos e Livro dos Provérbios, segundo a história, possuía um harém com mais de setecentas mulheres. Foi o tempo da “mulher escrava ou mulher objeto”. Naqueles idos era uma questão de cultura e tradição, bem sei, mas devemos avisar que é chegado um novo tempo?
Grande parte das mulheres, atualmente, se desvalorizam e se oferecem tanto, que já faz titubear nossa convicção quando contra-atacamos aqueles que apregoam a volta dos tempos.
Se noventa e cinco por cento das pessoas, segundo a moral vigente, agem erradamente, apenas as cinco por cento estarão certas? Sinceramente, não sei, mesmo porque esta minoria me lembra o porco selado ou o cavalo ressonando em cima de um poleiro. Por outro lado, o comportamento humano está (como costuma dizer um amigo) batendo de frente com os ensinamentos da moral e da religião. No contexto atual – já que ainda é vigente os princípios morais que resguardam a pureza dos costumes – só nos resta acreditar que nosso equipamento racional anda em gambiarras e precisa, urgentemente, de uma reparação.
Hoje está difícil, muito difícil, seguir o que nos ensinaram como certo. Parece-me mais coerente: primeiro, seguir o princípio de que devemos ser felizes (desde que esta felicidade não implique em sofrimento a outras pessoas); segundo, seguir cegamente aquilo que, depois de pensado, acharmos certo. Penso que, em se fazendo assim não correremos o risco de nos arrepender daqui a mais alguns anos, quando será julgado o mérito de tão instável e polêmica questão… aliás, já julgado em última instância por Nosso Senhor Jesus Cristo.

DESDITA DE UM ATEU
De repente, as ruas enchem-se de piões, de amarelinhas: é como se fossem as flores na primavera. Quando menos se espera, aqui no Maranhão, os céus que durante seis meses estiveram límpidos, enchem-se de negras nuvens: é a chuva que chega para sua temporada de cinco meses.
As coisas parecem obedecer a Alguém e de uma forma tão sutil que nem nos damos conta. Se fizermos uma análise retrospectiva, iremos notar que também nossas vicissitudes são norteadas por processos que fogem ao nosso domínio. No mesmo instante em que só pensamos numa coisa, ela passa a ser desprezível, sem que tenhamos explicação razoável para o fato.
Também para escrever sobre determinados assuntos, temos o tempo adequado. Agora, por exemplo, não consigo me furtar ao desejo das paráfrases, relembrando histórias que tanto ouvi e li no passado. Og Mandino, Malba Tahan…. Fogem-me as datas e os nomes, porém não, as mensagens. A história era mais ou menos assim:
Num palácio qualquer habitava uma princesa muita sensata e temente a Deus. Vivia também ali um “ateu sábio” que se vangloriava de ser o único que não acreditava em Deus nem O adorava. Ao professar isto publicamente numa festa do palácio, foi repreendido pela sensata princesa que o convidara:
– Engana-se, nobre amigo, quando afirma ser o único aqui que não acredita em Deus e nem O adora!
Empolgado, cheio de si, o pretenso ateu entusiasmou-se:
– Ora, imaginei ser o único sensato e inteligente aqui nesta festa! Diga-me, pois, quem aqui pensa como eu?
Sem descer de sua postura educada e sensata, a princesa explicou:
– Os meus cães e os meus cavalos, caro amigo.
Enrubescendo de vergonha o ateu defendeu-se:
– Digna princesa, compara-me a esses animais?
– Não, pois seria injusta com eles. Perceba que esses animais, apesar de não possuírem inteligência para adorar a Deus, ainda assim não cometem a imprudência de ficar se vangloriando de tamanha infâmia.
Humilhado e triste, o ateu retirou-se da sala. Sua dor era profunda, pois feria o orgulho de se dizer inteligente e amigo íntimo da princesa.
De fato, não há ateus em qualquer parte do mundo. Há sim, aqueles que mentem a si próprios, já que é impossível admitir qualquer efeito sem causa. Em se olhando o céu estrelejado, o mar revolto e tudo quanto nos cerca, torna-se simplesmente impossível negar a existência de um Ser Criador.
Passados alguns dias, a princesa mandou que chamassem o “ateu sábio” pois pretendia pedir-lhe desculpas. Sem perder a petulância costumeira, ele veio. A princesa levou-o, então, ao laboratório de Braile. Lá, o sábio inventor mostrou-lhe uma peça mecânica que idealizara, reproduzindo fielmente o sol com seu sistema planetário. Os planetas giravam em torno do sol e os satélites em torno dos planetas, tal qual se acreditava naquele tempo. Ao examinar o engenho, exclamou surpreso:
– Admirável! – quem foi o autor desta máquina?
– Ninguém – respondeu Braile, laconicamente.
– Não me imagina estúpido a ponto de acreditar que isso se tenha feito por acaso!
– Ora!, que estranha? Acha impossível isso se fazer por si e no entanto admite que os céus, a terra e tudo quanto vemos e também o que não vemos, tenha acontecido por acaso. Belo sábio me saiu!
Ao ouvir isso, o agora, realmente sábio, admitiu:

– Embora a existência de um Ser Criador me perturbe, ela é uma realidade incontestável, agora percebo.

IMAGINAÇÃO
A imaginação é um artifício que propicia a igualdade entre as pessoas. Ela cria situações impossíveis e ao mesmo tempo delas nos livra, transformando fracos e incapacitados em heroicos desportistas.
Através dela podemos criar um mundo invulnerável, uma fortaleza inexpugnável mesmo aos maiores e, belicamente, mais preparados exércitos do mundo. Com ela viajamos pelo espaço, visitamos planetas, mergulhamos nas zonas abissais dos oceanos, penetramos nas crateras incandescentes…. É por meio dela que o moço pobre e desvalido entra numa igreja florida para desposar a mais linda e atraente das princesas; que o deficiente físico sobe ao pódio para fazer tremular a bandeira de seu país, na olimpíada de seu sonho.
É ela que nos permite voar, planar como a águia, pousar no mais alto píncaro e olhar maravilhado as planícies conquistadas; faz-nos, também, andorinhas mirabolantes, acrobatas do céu num alvorecer qualquer de inexplicável beleza.
Tendo-a acionado, podemos nos transformar num conquistador como Alexandre; num deus de resistência como Hércules; num sábio matemático como Einstein; num famoso dramaturgo como Shakespeare; num “mahatma” como Gandhi.
Foi ela que celebrizou Júlio Verne, Wells, Woolf, Stanley, Murray, Hugo Gernsback e tantos outros que um dia, insatisfeitos e cansados com a realidade de seu tempo, adentraram no futuro, modelando-o em consonância com suas aspirações geniais.
Quem sabe um dia o homem não precisará mais desses combustíveis convencionais, nem das máquinas que servem para transportar as pessoas e as coisas; quem sabe um dia o homem voará pelo céu, normalmente, movido pela luz solar, planando como a águia ou fazendo circunvoluções como as andorinhas.
Quem sabe um dia não ouviremos o próprio Jesus falando, pregando sua doutrina pelas praias do Genesaré; Cícero nos encantando com sua retórica; Hitler incutindo suas loucuras ao povo alemão; Wagner ensaiando suas composições dramáticas; Moisés repreendendo seu povo de dura cerviz; …
Quem sabe um dia iremos nos entender por telepatia, resolver todos nossos problemas simplesmente com o uso da mente; entender o valor da justiça e abandonar tudo o que é ruim e degradante.
Quem sabe um dia todos os médicos serão fiéis ao juramento de Hipócrates; os comerciantes taxarão honestamente seus produtos; os empresários se contentarão com menos lucros, e já que nada é impossível à imaginação, os políticos brasileiros serão honestos, trabalharão mais, dividirão com os irmãos necessitados o tanto que se estabelecem de salário…, serão idealistas, brasileiros de fato, homens que, recebendo a confiança da população que os elegeu, lutem em prol de sua própria dignidade e do engrandecimento de nossa Pátria. É…., haja imaginação! …

UM HOMEM DA LEI
Há um ano, trabalhou comigo como mestre de obras, um senhor baixo e retaco, cor morena, muito trabalhador e que nunca se esquecia de frisar que primava pela lei e pela honestidade. Tive que passar horas no escritório tratando com ele a forma de pagamento. Por fim chegamos a um acordo: ele trabalharia com um pedreiro e seus dois filhos menores como ajudantes e perceberia oito salários e meio.
Concordei com ele, fazendo apenas a exigência de que o montante fosse dividido pelo tempo normal de trabalho do mês e que as horas perdidas, ou acrescidas, fossem levadas em conta. Concordou. Assim trabalhamos três meses, sempre com ele falando de lei e de honestidade.
Num dos primeiros dias da semana do quarto mês, veio ele ao meu escritório: desejava tratar de negócios. Queria receber os domingos e feriados na alegação de que isso fazia parte da lei. Argumentei que não fora o que havíamos acordado, e então, o homem da lei que se dizia tão honesto, simplesmente foi lacônico em afirmar que receberia de qualquer jeito.
Como sei que os sindicatos e o próprio Ministério do Trabalho sempre veem nos empregadores os carrascos do proletariado, resolvi evitar o confronto. Tentei negociar com ele, alegando não ter sido isso o que havíamos conversado. Com a empáfia daqueles que sentem prazer em pisar num inimigo, não abriu mão. Dei a ele o que me pedia. Estava certo que se procurasse a “justiça dele”, seria pior.
Exigi, então, que me assinasse um recibo afirmando que não lhe devia mais nada daquela data para trás o que ele, prontamente, contestou:
– Não! Se eu fizer isto, como irei sobreviver quando a sua obra terminar? Tenho ainda direito pelo tempo de serviço e ao Seguro Desemprego.
– Neste caso – retruquei – prefiro assinar sua carteira.
Ao optar pela própria lei de que tanto me lembrava, o homem honesto, negaceou:
– Não é preciso. Você me paga isso por fora. A gente combina.
Foi então que entendi, que apesar de tão honesto e falar tanto em lei, aquele mestre de obras era mais um entre os tantos corruptos deste país: também recebia o Seguro Desemprego, estando empregado. Quando lhe disse de minha conclusão, apesar da aparência humilde e ingênua, ele mudou de agressor para condescendente.
Combinamos, então, que a partir daquela data, ele embutiria os tais direitos na folha de pagamento da semana e que, quando a construção terminasse, eu não ficaria mais lhe devendo nada. Quatro meses depois as casas ficaram prontas e quando quis me despedir dele, começou a resmungar alguma coisa ininteligível que me custou mais quatrocentos reais. O pedreiro que estava ao lado, aproveitando a carona, pegou-me mais duzentos e cinquenta. Extorquiram-me mais seiscentos e cinquenta reais, que no final das contas, preferi dar a eles do que a um advogado qualquer. Normalmente, quando encontramos gente deste tipo, temos que escolher a quem entregar o dinheiro: se ao empregado ou ao seu advogado. O certo é que nunca conseguimos manter o nosso dinheiro no bolso.
Pois é, caros leitores, esta história é mais uma faceta da desorganização e da corrupção em nosso Brasil. Este conto bem poderia se transformar numa denúncia, pois são milhões e milhões de trabalhadores brasileiros que assim agem: empregam-se por alguns meses, dão um jeito de deixar o emprego, requerem o tal Seguro Desemprego, empregam-se novamente e ficam recebendo do governo e do empregador. O dia em que, também nesse setor houver uma sindicância, iremos ver o tamanho da corrupção que nele existe.

MÁQUINA DE ESCREVER
Autor: Ulisses Braga

Não quero a prefeitura de minha cidade:
Quero mais!
Não quero nada que me diminua a felicidade:
Quero mais!

Não quero uma vaga no senado:
Quero mais!
Não quero me unir ao desalmado:
Quero mais!

Não quero a presidência da República:
Quero mais!
Não quero essa deferência estúpida:
Quero mais!

Não quero nenhum cargo importante:
Quero mais!
Não quero ser arrogante:
Quero mais!

Não quero o ouro nem o diamante do mundo:
Quero mais!
Não quero do mundo aquilo que é imundo:
Quero mais!

Sossego, amor, paz e fraternidade:
É tudo que desejo.
Longe das querelas e da falsidade:
É isto que almejo.

Que fiquem com a ganância e a insensatez,
Com os conluios e a traição,
Que se destruam na mesquinhez,
De seus projetos sem coração.

Fiquem com o dinheiro e com o poder,
Já disse: eles eu não quero.
Quero muito mais para um dia dizer,
Que meu egoísmo é querer,
Uma consciência tranquila,
E uma simples máquina de escrever.

Com ela direi ao mundo,
O que dele fico a pensar:
O poder e o ouro são fumaça,
Ilusão que Deus rechaça.
Nada restará da matéria,
Permanecerá apenas a ideia,
Que com ela irei plantar.

 

TEMPO DOS MILAGRES
LF
Hoje, tanto se diz
Que a era dos milagres acabou
E que Deus esqueceu-se
Do mundo que criou
Já não vemos cegos enxergarem
Nem Lázaros ressuscitarem
Os coxos continuam claudicando
Os possessos blasfemando…
Em seus antros de dor

Mas os milagres continuam
Nos grãos de trigo contidos
Na mão estendida de um irmão
Que ao ver o olhar sem brilho dos sofridos
Por amor a Deus lhes dá o pão

Eu os sinto quando estou pensando
Noto-os sempre em minhas andanças
Vejo-os no desabrochar de uma flor
E no sorriso puro das crianças.

É milagre sobre milagres
Em cada tronco crestado
Em cada semente que nasce
Do chão seco massacrado

É milagre a esperança que se renova
Em todo coração arrependido
Que embora estivesse perdido
Elevou os olhos aos céus
E viu no desfraldar dos véus
De Deus os braços estendidos.

Isso acontece todos os dias
Em cada recanto da terra
Em cada contrito coração
Que ao ver faltar o pão
Nas mãos de Deus se entrega.

SAUDADES DO MEU VELHO
Saudade, dor macia que chega de mansinho e se aninha no coração da gente. Às vezes maltrata, machuca, mas mesmo assim aprovo sua presença. Gosto porque me traz de volta os meus mais belos e felizes tempos de criança, quando podia sentir meu pai ao lado. É graças a você, minha saudade, que o meu velho ainda está comigo, que eu o vejo em cada silhueta de nuvem que cria imagens no firmamento: no seu peito eu recosto a cabeça em cada devaneio de minha mente.
Saudade, venha sempre, de minuto a minuto se o desejar, porque em meu coração está seu ninho e nele o pai saudoso dos meus idos. Sei que enquanto fizer de mim seu abrigo, ele existirá; enquanto persistir, ele viverá.
Saudade, como é bom que esteja comigo! Minha dorzinha gostosa, continue machucando, porque mais cruciante será perder a esperança desta felicidade que ora se abriga no meu peito; mais doloroso será desiludir-me desta comunhão. Pode continuar seu eterno rodízio de amor e crueldade: um vale o outro.
Mas não venha nunca como depressão. Venha imbuída da meiguice e dos exemplos dele. Venha forte, bem forte, para fazer da ilusão, a realidade; das conjecturas, a certeza. Venha assim, com toda força e amor para que minha mente se amaine no sonho de afagos passados, dos meus idos de criança.
Saudade, você nada seria se não fosse dele a lembrança! Seria má se não possuísse em si, o poder de trazê-lo até mim. Por isso, hoje, depois de tudo, eu a desejo e quero com o ardor de um masoquista. Você, minha saudade, é perfeita bastante para não permitir que se extinga a chama ardente dessa amizade que é bem mais que simples amizade: é uma agradável obsessão.
Exalto-a, saudade de você, meu velho ranzinza, porque sei que este quase poema, transformar-se-á no detalhe singelo que o fará sempre, do céu, lembrar-se de mim. Porque sei que, mesmo diante dos percalços da vida, no vendaval de minhas emoções, você resistirá e será sempre, mais e mais, a saudade de um tempo que jamais tocarei, embora esteja aqui tão dentro de mim.
Amo você, minha saudade, dor que me mata e me ressuscita a cada sonho, porque você é ele, e ele, a razão de você. É tão forte que rompe as barreiras dos preconceitos; é tão real que me faz balbuciar cheio de sinceridade: que saudade de você, meu querido velho!
Que pena ter precisado ir para ensinar-me a realidade da vida! O descaso com que a juventude recebe a sabedoria dos pais, é-me a certeza de sua razão – entendo isso agora que me curvo em sua tumba para retomar a cruz pesada dos anos que lá deixou. Como sempre a saudade agora dói muito e eu nada mais posso fazer senão debater-me nestas lembranças desejadas, no entanto, duras, muito duras.
Você foi morar noutras plagas, em outra dimensão. Seu passado ficou escrito e ainda que Deus o quisesse, não poderia mais modificá-lo: é o preço que os céus me cobram por minha displicência em vida. E no amargor do irreversível, martirizo-me pelos sorrisos negados, pelas incompreensões…, por não ter sido um filho ideal.
Meu querido velho, por que o levaram de mim? Ainda posso vê-lo com intensidade, pelas marcas que deixou pelos longos dias de sofrimento. Hoje, mais que nunca, sinto sua falta, a falta, quando nada, daquele olhar perdido, daquela obstinação invejável de querer viver. Se eu fosse Deus não lhe negaria os dias que tanto queria!
Começo a me lembrar das caçadas, do futebol, das canastras, das divergências…. As nossas lutas, meu velho, lembra delas? Pelo menos nisso fui um pouco carinhoso, quando permitia ou facilitava sua superioridade e…. bem… está certo: aquela do nariz, realmente, o senhor acertou.
Sabe, eu não aceitava suas ideias porque, como caçula, vivia em outro tempo, mas, sinceramente, eu o amava muito. Há um tempo na vida, meu velho, que os filhos pensam que sabem tudo e que o certo é apenas o que imaginam, o que pretendem e o que acham certo, e não, propriamente, o que é certo. Foi duro vê-lo partir naquela noite. Como foi duro, meu velho!
Com o olhar perdido em seu corpo inerte, meu coração padecia. Sofria de arrependimento pelas ingratidões, pelo egoísmo, por não ter dado tudo de mim em vida. Desculpe-me, meu velho, desculpe-me mesmo. Volte sempre que quiser, povoe-me de saudades, para ainda que, com lágrimas nos olhos, eu fuja um instante da orfandade.
Coloque sobre meus ombros, a suas mãos pesadas; estire seus pés cansados para que eu os acaricie e lave novamente. Fale-me daqueles planos, de suas ideias: quero ouvi-las mil vezes agora. Sim, porque somente neste instante reconheço a pureza de sua alma sincera, a perspicácia de seu jogo simples de palavras. Ah, passado mau, imodificável e cruel! Por que nos joga a realidade quando já é passado? Hoje, queria modificá-lo, mas não posso; ontem eu podia, mas não o fiz.
Meu velho, estas palavras vão assinadas sim, mas apenas o senhor poderá reconhecer a rubrica, porque a tinta é branca: veio dos olhos e foi rabiscada numa noite turbulenta, com lágrimas cheias de saudades.

FIM

Voltar