O CAÇADOR
Explicação prévia:
Nos meus quase 70 anos de existência aconteceram fases e épocas de que muito me orgulho e pelas quais também me recrimino e penitencio. Sou um ser humano normal, com todas as vicissitudes comuns dos que já nascem programados geneticamente para receber vaias e ovações.
De uma coisa me orgulho: nunca fiz nada pela metade. Sempre entrei de cabeça e lutei à exaustão pelos meus planos, assim como nunca mais falei deles ao ter desistido. Não fui “morno”, não permaneci em cima do muro.
Agora lanço minha décima-quarta obra que, pelo título, pode escandalizar, ou parecer atrevimento aos que acompanham a comoção global pela proteção ao Ambiente. Mas não me crucifiquem sem ler todos os capítulos. O livro, como relato de um tempo, não é uma apologia à destruição da Natureza, mas uma confissão de quem reconheceu, ainda em tempo, o erro que estava cometendo.
Não estranhem a repetição intencional da descrição de alguns lugares e personagens em capítulos diferentes. É que há sempre alguém que irá ler apenas um ou alguns capítulos, pois, reconhecidamente, caçada não é assunto que agrade a roqueiros ou cantores de ópera. Não agrada, certamente, mas, a quem tem o bom hábito de ler, o velho ditado popular, “quando não se tem cachorro, caça-se com gato”, ainda não caiu em desuso.
Os personagens, assim como os relatos, são reais. Nas últimas páginas deste livro, havendo curiosidade, você poderá ver quem é quem… ou, quem foi quem. Que a leitura lhe seja agradável.

O autor.

UM PECADOR INOCENTE
O desconhecimento da verdade
Charles Robert Darwin nasceu em Shrewsbury, Shropshire, no Reino Unido, em 12 de fevereiro de 1809. Em 1825 foi para Edimburgo estudar medicina, carreira que abandonou por não suportar as dissecações. Todavia, interessou-se pelas ciências naturais.
Visitou as costas do Brasil: Bahia e Rio de Janeiro. Depois seguiu para Patagônia, ilhas Malvinas, Terra do Fogo, ilhas Galápagos, Nova Zelândia, Austrália, Tasmânia, Maldivas e outros recantos, numa viagem que durou quase cinco anos.
Colecionou fósseis e observou inúmeras espécies vegetais e animais, além de assistir a fenômenos geológicos como erupções vulcânicas e terremotos. De todo esse esforço, acabou surgindo uma das teorias mais famosas e importantes para o mundo: “A evolução das espécies”.
Morreu devido a uma taquicardia, em Down, em 19 de abril de 1882. Seu trabalho talvez tenha sido o primeiro a despertar interesse e respeito pela Natureza. Até então, nosso mundo parecia grande demais, indestrutível, e ninguém se importava com as florestas, nem tampouco com a fauna existente. Naquele tempo, abater um macuco seria como entrar na Casa da Moeda para levar uma de cinco centavos.
Mas, depois de Darwin, outros nomes se interessaram pela Natureza. No século XIX, o zoólogo alemão Ernst Haeckel, para designar a “relação dos animais com seu meio ambiente orgânico e inorgânico”, criou o termo Ecologia. Daí para a frente novos termos seriam frequentemente utilizados: nicho, ecossistema, meio ambiente, poluição ambiental, habitat, plano sustentável, cadeia alimentar, equilíbrio ecológico, evolução, recursos naturais, depredação e mais de uma centena de outros, criados pelos conservacionistas ou ecologistas.
O certo é que, quando nasci – apesar de alguns focos de ecologistas já alertarem para o perigo dos ataques indiscriminados do homem à Natureza –, lá naquele lugarejo perdido ao norte do Espírito Santo, ninguém sabia de nada. A bem da verdade, nem rádio havia na terra em que nasci, Marilândia.
Mas, principalmente da Europa, os alertas eram emitidos frequentemente. Um marco nessa tendência foi a realização, em Estocolmo, da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em 1972, que oficializou o surgimento da preocupação ecológica internacional.
Nesse tempo abandonei minhas caçadas e me tornei um dos mais fervorosos defensores dos animais, não por causa da Conferência de Estocolmo, mas pela sábia advertência de meu velho pai.
Considero-me, portanto, um “pecador inocente”, alguém que fez um grande mal à Natureza sem imaginar a gravidade de seus atos. Espero que, não os homens, mas a Natureza me perdoe por tantos crimes cometidos num tempo em que imaginava o mundo restrito à minha geração.
Serei honesto em minhas narrações, ainda que muitos não entendam como um ser humano pôde ferir tão brutalmente a Natureza. É aconselhável ler este livro debruçado sobre a década de 50.
Que cada leitor entenda: o que foi possível naquele tempo, hoje não o é mais; o que é normal, ou ao menos comum hoje, não o será amanhã. É a transição infalível dos tempos, das verdades… a substituição dos paradigmas.

POR QUE ME TORNEI UM CAÇADOR?
O começo de tudo
Meus avós vieram de Vêneto, na Itália. Fizeram parte daquelas levas de pobres, ou miseráveis, que para cá a Itália enviava, matando dois coelhos com uma cajadada só. Primeiro se livrava de grande parte de uma classe sofrida que nenhum benefício econômico trazia ao País e, segundo, atendia às exigências brasileiras da falta de mão-de-obra na lavoura.
Os negros libertados da escravidão e os índios – nunca acostumados ao trabalho – não supriam a ganância de nossos coronéis e barões, insaciáveis no possuir sempre mais. Quem assistiu à novela brasileira “Terra Nostra” poderá fazer uma ideia, sem muitas distorções, de como saíram da Itália os meus avós, como aqui foram recebidos, como viveram, nos criaram e, enfim, como se foram desta vida.
Depois de Benevente, meus avós instalaram-se em Ribeirão do Cristo, ao sul do Espírito Santo. Nessa região acidentada, meus pais se conheceram e se casaram. Ali nasceu, em 14 de março de 1919, o primogênito da família, batizado com o nome de Adalho Fregona, falecido em 24 de abril de 1997.
Depois de desbravarem aquela região montanhosa e fria, muitas famílias se dispersaram. A minha foi para o norte do Estado, indo fixar morada entre os riachos Liberdade e Santo Hilário, a dois quilômetros da atual cidade de Marilândia. Nesse tempo, apenas a cidade de Colatina, à margem do rio Doce e a 120 quilômetro da capital Vitória, existia por aquelas bandas como referência populacional. Do outro lado do rio Doce, seguindo-se para o norte, tudo era selva aparentemente inexpugnável. Sem dinheiro nem instrução, meus pais saíram de Ribeirão do Cristo, atravessaram o rio Doce e, a jusante, caminharam 22 quilômetros, demarcando, ali, o que viria a ser nossa herança material: 18 alqueires de terra. Tudo era terra devoluta, mas, sem qualquer outra intenção que não a sobrevivência, escolheram apenas uma pequena área para plantar e sobreviver do que ela produzisse.
O primogênito contava, então, 12 anos. Cheio de vida, sem vizinhos próximos, sem escola, com uma natureza exuberante a cercá-lo, logo achou um jeito de gastar um pouco da energia que lhe sobrava. Contudo, nosso pai não permitia que apanhasse a espingarda, o que ele fazia às escondidas, sempre contando com a conivência de nossa mãe. Mais tarde, ela justificaria:
– Perigo maior seria deixá-lo desocupado.
A região é de terreno irregular, com apenas a pedra do rio Liberdade assomando-se na nascente do riacho. Ali, como toda a floresta Atlântica ainda intocada, a riqueza da fauna e da flora era exuberante. Jacarandás, perobas do campo, vinháticos, louros, cedros e jequitibás apinhavam-se pelas encostas, mas, naquele tempo, só serviam para aumentar o sacrifício das derrubadas. Tudo era no machado, na foice, no facão, no fósforo e na enxada.
A flora parecia encantar os próprios anjos dos céus que, principalmente nos meses de agosto e setembro, “desciam” das alturas para se embalar com os mil cantos das aves que se despediam do dia que findava. Enquanto as macucas chororocavam nos valões e os jaós, do alto dos morros, tentavam trazer as odaliscas dispersas de seu harém, os tururins emitiam seus longos e tristonhos piados como se fossem ave-marias de despedida e agradecimento por mais um dia vivido.
Bandos de jacus “gargalhavam”; jacutingas, qual matracas da paixão de Cristo, riscavam as asas nos mais altos galhos de alguma árvore seca. Os chorões demarcavam suas áreas, os urus empoleiravam em alguma moita e, durante cinco a dez minutos, lembravam aos mutuns retardatários de que era hora de, também, encontrarem um lugar seguro – talvez o dossel de algum itapecuru – em que pudessem gemer suas mágoas e saudades sem ser incomodados. Tucanos, araçaris, pica-paus, papagaios, araras (é…., naquele tempo elas existiam por lá!), gaviões e bandos de pequenos pássaros insetívoros de espécies diferentes misturavam seus piados aos esturros de onças e barbados, a guinchos de macacos e a mais de uma centena de sons estranhos, ora metuendos, ora maviosos, que claramente denotavam a transição entre os diurnos que se recolhiam e os notívagos que despertavam. Um pouco mais e apenas esparsos assovios do pica-pau avinhado era ouvido naquela eterna extensão verdejante.
Agora era a vez dos esturros das pintadas, do passo sorrateiro dos veados, do roçagar insensato dos tatus, do passo leve das pacas, da caminhada sem qualquer sutileza das antas, do assobio triste e ameaçador das raposas, dos guinchos inconfundíveis dos macacos da noite e dos gritos metuendos das corujas e urutaus.
E ali, numa clareira de apenas alguns hectares, o mano tentava dormir, sempre pensando numa maneira furtiva de apanhar a Peaper do pai para caçar.
No começo foi difícil, porque o Velho sempre descobria a falta de um cartucho ou percebia a ausência do verniz nos canos lustros de sua arma: óleo extraído da semente da bicuíba. Com o tempo, talvez pela idade do mano, talvez pela insistência, meu pai acabou concordando com que ele, aos sábados e domingos, saísse para caçar. Em poucos anos, tornou-se um exímio caçador de inhambus: o maior que conheci em toda a minha vida. Aprendeu a imitá-los e a atraí-los, aperfeiçoou a pontaria e, em pouco tempo, como dizia minha mãe, ele não saía para caçar, mas sim para apanhar aquilo que ela encomendasse. Nunca mais faltou carne em nossa alimentação.

DE PLATÃO A ARISTÓTELES
O discípulo maior que o mestre
Se meu pai fora um bom caçador, o mano Adalho, seu filho primogênito, foi maior que ele, porque além de absorver suas técnicas, ainda descobriu e aperfeiçoou outras. Meu pai só caçava bichos, normalmente veados e pacas, porque considerava a carne mais saborosa. Naquele tempo, antas, tatus, cutias, lagartos, quatis, jabotis e macacos não eram ainda incomodados. Entre os pássaros, meu pai também só gastava um cartucho se tivesse certeza de que o macuco ou o mutum avistados não teriam chance de escapar. Além de nunca ter dinheiro, conseguir munição só andando 22 quilômetros mata afora.
Com o tempo, outras famílias foram chegando, outros caçadores disputando as melhores caças e, quando meu pai já não enxergava nem ouvia direito, entrou em cena o mano Adalho. Agora, já não se podia mais escolher tanto. A picada que ligava Colatina a Marilândia já podia ser percorrida a cavalo e muitas famílias foram tomando conta daquelas terras que hoje representam o município de Marilândia.
Em 1939, eu nascia. Em 1950, dei meu primeiro tiro de espingarda, depois de lavar o gabinete dentário do mano e de ajudá-lo a carregar mais de 100 cartuchos. Ele me levou para o fundo do quintal, colocou uma tabuinha contra um muro, desenhou, com carvão, a silhueta de um macuco, colocou a espingarda em minhas mãos, certificou-se de que não havia qualquer perigo e me autorizou. Fiz rápida pontaria e puxei o dedo. A marca estava a 12 metros e 80% dos caroços de chumbo atingiram o que seria a ave.
A alegria que senti talvez tenha sido maior do que aquela que algum filho de pai abastado sente, hoje, ao receber um carro de luxo. A lei da felicidade relativa é algo mais que divino, porque não estabelece diferença no sentir entre o rei e o súdito, entre o sábio e o iletrado, entre o rico e o pobre.

E O MANO LEVOU-ME
Eu contava apenas 12 anos
Atualmente, ver meninos de 12 anos com uma espingarda ao ombro não chega a ser alarmante, mesmo porque, alguns deles já manipulam, versatilmente, até AR-15 e metralhadoras giratórias. Mas, naquele tempo, lá onde eu morava, quem estivesse com 12 anos, era criança mesmo. Não se tinha a malícia de uma criança de hoje com cinco anos.
As primeiras ejaculações aconteciam naturalmente, sem qualquer excitação visual, escrita ou comentada. Aliás, apenas um rádio havia num raio de mais de 30 quilômetros. Tanto que, quando isso me aconteceu, só não procurei um médico porque não tinha dinheiro, não havia médico, e muito menos coragem de contar a meus pais ou irmãos o que me havia acontecido. Medo maior era de levar uma surra de minha mãe por ter sujado o lençol.
As moças – se alguém soubesse que haviam sido beijadas – ficavam “faladas” e, daí para frente, só se casavam se mudassem de lugar ou encontrassem um viúvo rejeitado. Por sorte, ninguém conhecia, por lá, o Pentateuco, o que livrou a negra Lolita do apedrejamento.
Naquele lindo fim-de-mundo, eu fazia progresso empunhando uma garrucha de dois canos, calibre 36, de cartuchos, para caçar inhambus, frangos d’água, juritis e tudo quanto valesse um tiro, sendo ainda uma criança – uma criança com 12 anos de idade.
A promessa do mano em levar-me para caçar cumpriu-se num dia em que arrebanhou alguns malucos, reuniu a cachorrada preparada para caçar preás e partiu a jusante do riacho Liberdade.
Acompanhavam-me os manos Adalho e Ildebrando e o João Bona, que atendia pelo apelido de “Ruóc”, devido a sua mania de tentar atrair os araçaris-poca, cujo piado assemelha-se à luta de um velho asmático querendo livrar-se de um pigarro encruado.
De repente, num cantinho de mata que descia ao rio, debaixo de uma moita, um tururim. Fizemos rapidamente o cerco a fim de que ele não fugisse para a mata grande, de onde viera. Foi quando, por uma fresta, vi algo se mexendo. Levei a garrucha e, ao mirar, vi que, além do objeto que se mexia, havia um homem. Mas, matar o tururim seria a glória e o “Ruóc” que desse um jeito de se esquivar dos chumbos. Puxei o dedo e, mesmo antes que o eco da explosão desaparecesse, ouvi o protesto:
– Quem foi esse doido?
Silêncio tumular. Depois, como seria impossível esconder minha insensatez, assumi com ares de inocente:
– O senhor estava do outro lado?
– Isso é que dá deixar que criança pegue em arma de fogo! Por um triz não me encheu as pernas de chumbo. Até na cara me veio terra – protestou o “Ruóc”.
Passado o susto e as recriminações, fui buscar o tururim. No lugar, um mísero calango. Enterrei-o quanto pude, quase sangrando as unhas na terra seca, a fim de evitar as gozações e, é claro, o castigo. Só hoje, depois de várias décadas, ouso confessar.
Por causa de minha afobação, além de ser proibido por mais um ano de pegar em arma de fogo, ainda fui apelidado de “Pim Scarpat”: um caçador maluco que atirava em tudo que se mexesse dentro do mato. E, devo admitir: nunca um apelido caiu tão bem.
Mais tarde, já renomado caçador, mesmo tentando policiar o impulso maldito de atirar sem prévio exame, tive outras recaídas. Numa delas, sendo o último de um grupo de cinco que caminhava em fila indiana pela mata, atirei num chororão que correra na frente do primeiro da fila, deixando o penúltimo – por azar, o mano Adalho – surdo por vários dias. Como o bicho não tivesse ficado no tiro, tentei arrefecer:
– Vou olhar se não arranquei penas dele!
– E, desde quando veado tem penas? – Argumentou o mano.
Só, então, percebi o engano.
À noite, depois de eu ter enchido um prato fundo até onde cabia, afastei-me, indo sentar sobre um pedaço de pau que caíra a alguns metros da porta de nosso barraco. Engolindo sem mastigar, como faria um cachorro morto de fome, eu dividia o olhar entre o prato e a mata, distraidamente.
Acordei em minha rede, com todo mundo preocupado. Eu não sabia o que acontecera. Não sentia dores, apenas um zumbido constante no ouvido direito.
Bem, o mano, para descontar o que eu lhe fizera no mato, sem imaginar a consequência de sua lição, sorrateiramente encostou o cano da espingarda em meu ouvido e detonou. Naquele tempo a gente usava a pólvora preta, também conhecida como pólvora comum, e os carregos eram sempre para o que desse e viesse: de pica-paus a antas e onças.
Somente meses depois, minha audição, devagarzinho, começou a se normalizar. As sequelas nunca me abandonaram. Ainda hoje, se tento dormir em lugar de pleno silêncio, tenho dificuldade: o zumbido parece enlouquecer-me.
Nunca disse isso ao mano, porque sei que jamais se perdoaria pela inconsequente brincadeira que fizera. Acho que ele, com 32 anos, como todo mundo por aquelas bandas, ainda era, apenas, um adolescente!

OBSERVAÇÕES INTERESSANTES
Tem de ser no tempo certo
Apesar de conviver com a Natureza há mais de meio século e de tê-la estudado por muitas décadas, houve coisas referentes aos inhambus que me deixaram intrigado. O aparecimento rápido de chintãs, chororós, perdizes, codornizes – para citar apenas alguns – em clareiras recém-abertas a dezenas de quilômetros de seu habitat, é uma delas.
Certa vez, caminhando pelas linhas de terra da Companhia Vale do Rio Doce, nas florestas que divisam com a Sooretama (reserva federal), percebi que havia um pássaro diferente no meio do picadão. Picadão é o nome que nós caçadores dávamos à linha reta e limpa, com quatro metros de largura, com que a Vale dividia, em talhões, seu latifúndio florestal. Era pássaro, era grande e, portanto, merecia minha atenção. Engatilhei a espingarda e fui caminhando em sua direção, passo a passo. Minha intenção era disparar somente quando ele demonstrasse a intenção de se retirar, caminhando ou voando. Ao invés de tomar qualquer iniciativa, ele agachou-se, ficou imóvel, permitindo que eu me aproximasse a ponto de poder alvejá-lo na cabeça. Era uma perdiz.
Doutra feita, depois de quatro horas de caminhada pela Reserva Federal, Linhares – ES, o mano e eu arranchamos. Iríamos passar ali três dias. Depois de escolher um lugar adequado para o barraco, subimos a encosta de um dos afluentes do rio Quirino e fizemos a primeira choça. A hora era das mais impróprias para atrair qualquer pássaro (14h), mas não tínhamos nada melhor para fazer. Dormir nas matas de Linhares é um desafio que só ao caçador dopado é permitido. Milhares de pernilongos disputam qualquer área descoberta ou desprotegida do corpo. Por isso, usávamos meias e meiões, calças jeans por baixo e outra camuflada por fora, camiseta e camisa de mangas compridas, bonés com abas para cobrirem as orelhas e o cogote. Na parte sem proteção, repelente, muito repelente no rosto e nas mãos. Ao dormir, além dessas precauções, usávamos ainda cortinados próprios para redes. Logo, dormir, só mesmo quando o cansaço vencia o medo de ter o sangue sugado pelos insaciáveis mosquitos.
Ali na choça, sempre com as orelhas em pé por causa dos agentes florestais que podiam vistoriar o interior da Reserva, ouvimos o piado de um inhambu chintã.
– Êpa!, observou o mano, aqui não é lugar deste tipo de inhambu. Ou estamos perto de alguma abertura ou é gente que está piando.
Mas, como piasse constantemente e o fizesse com perfeição, por experiência, o mano percebeu que, de fato, era um chintã perdido. Apenas uma resposta e ele se acercou da choça. Nem é preciso dizer que foi abatido. Naquele tempo, não perdoávamos nada, mesmo porque não havia em nós qualquer consciência do mal que estávamos fazendo à Natureza.
Outros pássaros foram encontrados muito distantes de seus habitats durante meu não memorável período de caçador, assim como fracassada seria, posteriormente, minha experiência de adaptar pássaros de todo o País numa área de matas do Pará.
Certa feita mandei que ilhassem dez alqueires de mata na fazenda Cachoeirinha, a 100 quilômetros da cidade de Dom Eliseu, no estado do Pará. A reserva fora protegida por uma faixa de 300 metros de pasto ao seu redor. Havia muita água e duas picadinhas em forma de cruz, pelas quais, toda quinzena, eu mesmo passava (pois não permitia que mais ninguém o fizesse) e jogava ao lado das picadinhas, um saco de milho, arroz em casca, raízes de macaxeiras e tudo quanto pudesse auxiliar na alimentação dos animais que ali eu soltara em excesso. É que eu ia capturando pássaros por todo o Brasil e depois de uma quarentena em viveiros dentro da própria reserva, abria as portas e os deixava livres.
Assim sendo, soltei:
Sete jaós da mata, vindos de Linhares, no Espírito Santo; 11 guaçus poca-taquaras, vindos de Uruará (PA); seis guaçus vindos das serras de Venda Nova do Imigrante (ES); 15 chintãs, vindos do Araguaia (PA); 12 macucos (ES) e quatro macuco-de-topete ou de cabeça vermelha, vindos de Uruará (PA).
Tudo isso sem contar com uma centena de inhambus autóctones (azulonas, chororões, choronas, tururins, pés-de-serra, pixunas…) que eu capturava nas regiões limítrofes e levava para dentro de minha reserva. Para os chintãs preparei um alqueire de capoeira; os chororós, as perdizes e codornizes eram soltos na pastaria que circundava minha reserva experimental.
Depois de alguns anos, comecei a ouvir comentários de que haviam visto ou ouvido piar alguns desses tantos pássaros, a muitos quilômetros de minha reserva. Eles saíram da mata, atravessaram o capinzal, embrenharam-se nas matas vizinhas e só Deus sabe que fim tiveram. Em minha reserva mesmo, excetuando-se azulonas e chorões, nunca ouvi um piado dos demais, nem os encontrei em uma de minhas tantas incursões.
Isso provou, para mim, que é bobagem introduzir espécies alóctones em nichos estranhos a eles. Jamais irão aceitar qualquer imposição de habitat se lhes for dado o direito de escolher. Claro que há exceções e perigosas adaptações, mas isso é exceção.
Em Marabá, mais especificadamente às margens do rio Cajazeiras, certa vez levei para as pastarias da fazenda do mano Ildebrando, 37 perdizes e nove codornizes. Durante 10 anos ninguém viu uma sequer, nem na fazenda do mano, nem nas fazendas vizinhas.
Hoje, 20 anos passados, a região encontra-se infestada delas. Chegaram no tempo certo e lá, espontaneamente, permaneceram. Não precisou que ninguém forçasse sua chegada antes da hora.

RECAÍDA
Desta feita foi o Agenor Gava
Nunca um ano demorou tanto para passar! Ainda que implorasse, o mano não abriu mão da punição e tive mesmo que envelhecer um ano até que recebesse nova oportunidade de empunhar uma espingarda. Todos os domingos eles saíam pelas margens do rio Liberdade, quase sempre nas terras do Carlos Franco, do velho Catelan ou dos Passamanis, para caçar rolinhas, frangos d’água, piaçocas, saracuras e preás. Saíam com uma matilha esganiçada e com dezenas de caçadores. Centenas de tiros eram dados, mas sempre respeitando a direção. Eu morria de inveja e de vontade.
Enfim, chegou o dia. A comemoração seria lá nos Passamanis e eu carreguei 80 cartuchos, pois pretendia “descontar o atrasado”.
Havia gente por todos os lados e era preciso sempre olhar bem se o tiro tivesse de ser disparado à meia altura.
A cachorrada batia o brejo coberto de taboas quando vi um belo frango d’água voar e pousar na ponta de um assa-peixe. Levei a espingarda e, novamente vi, do outro lado, o Agenor Gava espreitando um preá que se mexia no capim.
Lembrei do tururim, mas a punição fora pouca para impedir que eu pressionasse o gatilho. Puxei o dedo e, incontinenti, ouvi o grito:
– Me balearam.
Quem foi, quem não foi…. Acabei banido das caçadas, ainda que jurasse não ter visto ninguém do outro lado e apresentasse o troféu. Achei a punição severa demais, porque apenas um chumbo atingiu o joelho do Agenor e, mesmo assim, ficou na pele. Foi tirado facilmente com a ponta de um canivete.
Enquanto isso, frequentemente, o mano Adalho saía para suas caçadas de paca ou de macucos pelas matas contíguas, ou mesmo em excursões por vários estados, com caçadores que se tornaram famosos: Balim, Sasso, Vieira, Croscop…
Quanto a mim, como não servisse para caçadas e não obedecesse a ninguém, fui enviado para o Seminário Nossa Senhora da Penha, em Vitória (ES). Ali deveria ordenar-me padre secular. Hoje, certamente me aconselhariam a Marinha: profissão que os velhos italianos imaginavam sob medida para alguém arredio, intempestivo e sem conserto como eu.
Ali, durante três anos, construí todos os problemas que até hoje carrego pesadamente. Perdi Deus-Pai e ganhei um padrasto duro e quase cruel: um Deus que vigiava, que cobrava, que exigia e que só perdoava depois de muitos vergões pelo costado.
Aquela praia que circundava a grande pedra, em cujo cume construíram o Seminário Nossa Senhora da Penha, se armazenasse tristezas, certamente se transformaria num monte maior que o Corcovado. Todas as tardes, na hora do banho de mar, eu me sentava sobre uma pedra, e de olhos fixos nas velas dos barcos dos pescadores e nos navios que entravam pela baía, procurava entender a razão de um castigo tão grande para um menino que não aspirava ser importante, apenas feliz.
Eu não queria ser padre, não queria estudar…. Queria apenas ser livre como os potros de minha terra. Queria correr, pular, caçar e, à noite, cair cansado no colchão de palhas de milho para dormir profundamente e sonhar com as saíras coloridas que, em bandos, festejavam o amanhecer.
Queria acompanhar meu velho pai com sua trela mestra de cachorros de paca, Tiozinho e Chapocão, na perseguição das pacas ariscas da fazenda do João Lorenzoni. Eu só queria e precisava disso, mas eles não procuravam saber o que me fazia feliz e, sim, o que os realizava.

SE CONSEGUIR, MANTENHA OS OLHOS SECOS
Numa de minhas férias acompanhei meu pai na perseguição da paca que já o chateava havia alguns anos. Paca e cachorros estavam tão acostumados àquela monotonia, que o Chapocão já nem se dava o trabalho de latir na toca. Do meio do morro já avisava, à paca, que estava chegando. Dava três a quatro latidos graves e fortes e já esperava na trilha para tocá-la até ao riacho São Pedro.
O Tiozinho, então, estava mais mal-acostumado ainda: aguardava o bicho na margem do riacho. Iniciada a tocada, a gente ficava de prontidão, mas nunca acertava a trilha escolhida pelo esperto roedor. O ladino jamais repetia a mesma passagem. Parecia ter “assimilado” as dicas que a polícia divulga para dificultar o ataque de malfeitores: não ir aos lugares sempre pelo mesmo caminho.
Por isso, quando percebi que a danada estava se desviando de minha direção, saí em disparada pela orla do riacho. Ao passar por uma “empuca”, um dos cipós agarrou no cão da espingarda. Eu forcei, a coronha elevou-se e o cano ficou em direção à minha nuca. Não imaginando o que estava acontecendo, forcei ainda mais. Foi quando ouvi um estampido ensurdecedor, acompanhado de uma dormência na cabeça. Fiquei tonto e caí de bruços nas folhas. Já não ouvia os latidos, nem os chamados de meu velho pai que, com certeza, gritava para saber se eu havia alvejado a paca.
Quando recobrei a consciência, passei a mão na cabeça e vi que não havia muito sangue. Os cabelos estavam repuxados para cima e o boné cortado na parte detrás. O disparo passara tão rente que fiquei com o couro cabeludo inchado, mas sem ferimento grave.
Quando cheguei em casa, o mano Adalho, mais uma vez, repreendeu-me:
– Agora deve entender a razão de eu sempre lhe dizer que a correia estava muito comprida!
E, para ser sincero, só nesse momento entendi, pois, sendo a correia comprida, a espingarda desce e o cano fica abaixo da cabeça. Qualquer disparo acidental pode ser fatal.
A segunda foi a execução do Tiozinho: um cachorro pequeno, marrom-claro, gordinho e extremamente dócil e obediente, que pertencia ao meu irmão Adalho. Fora adquirido de ciganos e não existiu, em toda a região, um cachorro mais mestre de pacas do que ele. Naquele tempo, quando a caçada era de pacas, os donos de matilhas levavam seus cachorros atrelados. Apenas o Tiozinho ia solto. Então, o mano Adalho margeava o rio com ele andando atrás. Se houvesse rastos de paca, ele parava e farejava. Se olhasse para o mano e desse um latido característico, não havia dúvida de que a paca havia passado por ali durante a noite.
Então, a matilha era solta e em pouco tempo a gritaria e o tiroteio eram ouvidos no riacho. Ele não caçava outro tipo de bicho. Se encontrasse uma cutia, um tatu, uma anta ou veado, dava também um latido característico como se dissesse: encontrei um bicho, mas não é paca. Os outros, porém, rodavam os morros perseguindo tudo quanto encontrassem.
Mas, o tempo que tudo consome levou também a juventude do Tiozinho. Velho e cansado, começou a perder os dentes e a babar por dentro de casa. Minha cunhada começou a criar problemas. Como meu irmão era dentista, tentamos tratar os dentes do cachorro. Foram semanas de tentativas, todas improfícuas. O mano foi ficando cada vez mais em apuros. As discussões dentro de casa, por causa da sujeira causada pelo cachorro, tornaram-se insustentáveis. Para salvar o casamento, disse ao mano que era preciso sacrificar o Tiozinho. Era uma decisão dura, mas necessária.
E numa das mais tristes manhãs de minha vida, apanhei a espingarda. O Tiozinho estava cabisbaixo num canto da varanda, como sempre, babando, porque seus dentes doíam. Havia emagrecido bastante e seus olhos já não tinham qualquer brilho. Chamei-o, ele se ergueu com dificuldade, abanou o rabo e veio vagarosamente. Saí pela porta e ele veio atrás. Levamos mais de uma hora para desfazer apenas um quilômetro. Adentramos na mata que ele tanto conhecia. Cansado, ele se deitou a meus pés. Eu quis voltar, comecei a chorar quase convulsivamente, como o faço agora ao relatar o fato. Agachei-me, tomei-o nos braços, levei-o para um lugar bastante “aprazível” e o coloquei lá. Ele estava ofegante. Era preciso, era melhor para todos.
Quando tomei a arma, ele também ergueu os olhos embaçados. Não tive força para puxar o gatilho. Eu chorava muito e as lágrimas não me deixavam nem sequer ver a mira. De repente, ele baixou os olhos e quietou como se estivesse a dormir. Virei-me e saí correndo, porque mil fantasmas me perseguiam como se fossem matilhas esganiçadas. Ainda hoje essas matilhas me perseguem. Era um animal, precisava ser abatido, mas, aos meus ouvidos apenas soa o que Jesus disse a seu Pai, referindo-se aos que o crucificavam: “Perdoai-os, porque não sabem o que fazem”. O Tiozinho não era um simples animal, um cachorro qualquer. Não merecia o fim que teve. É isso que me dói ainda hoje.
Não tive coragem de atirar e nunca soube como ele morreu. Só sei que hoje, quando me lembro do Tiozinho, apenas um poema que me foi passado pelo saudoso confrade Waldemar Pereira – dedicado ao “maior amigo do homem” – soa aos meus ouvidos:
Chamavam-no Fiel, soberbo cão de raça
Que um caçador famoso, um doido pela caça
Mandara vir de fora, a peso de dinheiro.
Era ídolo tão doce!
E aos regalos gentis, o cão acostumou-se
A consagrar também a vida ao companheiro.
Na época das melhores caçadas
Os dois partiam sozinhos, à luz das alvoradas
Buscando o coração misterioso das matas
E voltavam depois, alegres e contentes
Despertando, ao redor, os íncolas dormentes
Ao compassar do som de estranhas serenatas.
Quantas vezes nas caçadas, os dentes das panteras
O bramido soturno e tétrico das feras
Ameaçavam, do cão, o derradeiro instante.
Que perigo passou, quanto arriscada empresa,
Não sofrera, fiel, para apanhar a presa,
Que ao dono provocasse. Um bravo delirante! …
A fortuna também girou rapidamente
E aquele caçador, tão rico, de repente,
Sentiu faltar-lhe o pão
Sentiu minguar-lhe o ouro
A morte lhe roubara a esposa muito amada.
Ele viu sua casa escura e abandonada,
Tendo um filhinho só, por único tesouro.
Um dia, para disfarçar o peso da desgraça
Que lhe magoara o triste coração
Ele partiu cantando as emoções da caça
Mas, querendo partir sozinho, acorrentara o cão.
Do mísero cativo, a pérola do pranto descera
Mas ao ver o caçador contente
O pobre cão lá foi, resignado, a um canto deitar-se
Carregando o peso da corrente.
E a noite envolveu a casa…
De repente, ouvem-se estranhos passos
E logo, frente a frente, sinistro, ameaçador
Enfurecido, farejando a amplidão,
Faminto, o lobo avança.
E, no berço, a criancinha dorme
Como dorme no berço, uma criança.
Nesse momento
No turvo olhar do cão
Lucila um pensamento:
Escancarada a porta, encontrava-se, então.
E num esforço supremo, ganindo e uivando,
O cão forceja, torce e corta num ímpeto de amor
Os elos da corrente.
Trava-se, então, uma horrorosa luta
No silêncio da noite, indiferente e bonita.
Ossos a estralejarem, surdo ranger de dentes
E em baques pelo chão, tudo acordava em torno
A quieta solidão.
E o sangue borbotando, e o fogo do cansaço
E a relva machucada, espalha pelo espaço,
Um acre odor de guerra.
Enfim, um abafado e último gemido
Um preito ao vencedor, por parte do vencido.
Em seguida, o arrastar de um corpo pela terra.
Depois… mais nada!
Era tragédia finda, e a noite sossegada.
Mais tarde, ao despertar da fresca madrugada
O caçador voltara e vendo a porta aberta
E a casa palmilhada com o sangue do cão
Corre para o filhinho, anseia, recua e para
Ao ver ensanguentado, o berço vazio da criança
Aperta-lhe o coração.
Louco de amor paterno
Louco de vingança
Afaga junto ao peito, o cabo de um punhal
E vendo-lhe aos pés, a festejar-lhe o cão,
Atira-lhe um golpe rijo, no peito arfante, machucado
Que resvala sua última dor.
Mas nisto, ouve uma voz que o chama:
– Papai, papai! …
Alucinada e incerta, era a voz do filhinho
E o filhinho, está perto.
Correu espavorido e atônito
E foi encontrar-se com o filho,
Contente e sossegado,
Junto à casa do cão.
E ali, bem perto, ao lado
Um lobo enorme, morto e ensanguentado,
Jazia inerte no chão.

O CAÇADOR DE URUBUS
Padre Aristides
O Seminário Nossa Senhora da Penha encimava uma pedra de cujo cimo a gente divisava três praias: Suá, Santa Helena e do Canto. A segunda era um pequeno pedaço de areia exclusivo aos seminaristas e padres seculares. Na praia do Suá morava grande parte dos pescadores de Vitória e, por isso, havia muitos urubus que disputavam os peixes deteriorados ou desprezados pelos compradores. Como a praia do Suá fosse contígua à praia Santa Helena, muitos urubus passeavam por ali, principalmente porque nossa praia passava a maior parte do dia deserta. Somente à tarde podíamos descer para o banho.
Para uma criança da roça que ainda não encontrara nos estudos qualquer motivo para ser feliz, o lugar era mesmo o mais perfeito cenário para se cultivar angústias, saudades e sofrimento. O chuá das ondas, o sol se afogando no horizonte, os acenos de velas brancas aparecendo e sumindo na imensidão do Atlântico e os apupos dos ventos que farfalhavam os ramos dos sapotis faziam de meu coração de adolescente, um pelourinho de perversas cenas de tortura psicológica. Para piorar, a lavadeira do seminário possuía um cachorro que, quis o destino, latia como o Chapocão, fazendo com que meu espírito abandonasse o corpo pendurado no alambrado e retornasse às matas dos Lorenzonis, nas quais, juntamente com meu velho pai, eu delirava perseguindo o pacuçu mais esperto do mundo. Nunca o pegamos. Deve ter morrido de velho como seu inocente perseguidor Tiozinho, sob alguma densa moita que minhas lembranças avivam todo dia.
Como todas as tardes eu me postasse nos mesmos lugares – pendurado no mesmo cano, ou sentado na mesma pedra da praia – era comum ver o padre Aristides achegar-se com sua flobé automática e passar o tempo alvejando os urubus que passeavam pela areia. Com certeza, naquele tempo, eu achava aquilo normal. Ainda não tinha a menor ideia dos princípios ecológicos que hoje falam tanto à minha sensibilidade. Não que “ecologia” fosse termo desconhecido, mas porque ainda os governos não haviam tomado a decisão de levar a sério a conservação do Ambiente. Caçar, matar animais, praticar atos que ferissem as leis específicas, eram contravenções que, no máximo, redundavam em apreensão das armas e leves multas. No entanto, ainda hoje fico pensando no que se passava na cabeça do padre Aristides, nosso professor de muitas matérias, homem tido como um dos mais sábios da plêiade de professores do seminário, ao nos passar tal exemplo.
Ele, ao menos ele, não devia fazer aquilo, mormente na presença dos alunos.

MEU PRIMEIRO MACUCO
Não sendo caçador, não tente entender
Para frustração de muitos católicos de Marilândia, acabei saindo do seminário. Formei-me em Contabilidade e Análises Clínicas de Laboratório; tornei-me um homem, senhor de meu nariz. Estudava à noite, cumpria o serviço militar no Tiro de Guerra 108, trabalhava de dia na Odontótica Capixaba, estudava à noite, jogava no melhor time de Colatina (ES), enfim, parecia não ter mais tempo para lembrar os entreveros de minha infância. Mas, apesar das tantas ocupações, tornar-me um bom caçador de macucos não me saía dos planos.
Enquanto o mano Adalho era campeão de todas as caçadas realizadas pelo Brasil adentro, eu estava apenas amadurecendo. Tornei-me seu egoísta parceiro, não permitindo que ninguém mais dividisse esse privilégio comigo. Estudava todos os seus gestos, sua maneira de atrair os pássaros, de fazer as choças… na verdade, eu observava tudo o que ele fazia, na certeza de que poderia ser, mais tarde, ainda melhor.
A primeira vez em que ele me levou para acampar na mata por um mês, foi no mês de julho de 1955, mês de férias. Nesse tempo eu já tinha meu equipamento completo: pios, espingarda, farda, choça… O que ele tinha, eu consegui adquirir também. No entanto, a maneira dele piar eu não podia comprar. Era difícil diferençar seus piados daqueles emitidos pelos próprios inhambus. Sabia a hora exata de emitir o piado e também se devia fazê-lo alto ou baixo, grave ou agudo, longo ou curto. Eram tantos os detalhes que cheguei a imaginar que jamais assimilaria todos eles. Macucos “desenganados”, aqueles piados por dezenas de caçadores que nunca lograram êxito, era abatido por ele na primeira tentativa. Um dia cheguei a brincar com ele:
– Mano, tem certeza de que não é um macuco em forma humana?
Arranchamos no rio da Égua, no Rancho Alto, a 50 quilômetros da cidade de Linhares (ES), indo para São Mateus. O rio tinha esse nome porque lá vivia um caboclo conhecido por Antônio Manqueta. Perneta, com apenas os dois caninos, ele morava sozinho dentro da mata, tomando conta de uma grande área de um tal Dr. Alberico, um médico da capital, Vitória. Da última abertura até seu barraco de palha, levava-se quatro horas de passos largos por picadas cheias de sarapilheiras. Ele possuía uma pobre égua que, doente e sem pasto, um dia caiu dentro do riacho e nunca mais se levantou. Em homenagem à pobre égua, o riacho ficou, não com o seu nome, mas, pelo menos, com o nome da espécie.
O mano já conhecia o caminho, porque todos os anos ele passava algumas semanas por lá. Para surpresa nossa, encontramos o Manqueta acompanhado de uma garota de 12 anos, magrinha, pálida, com todo o jeito de criança triste, desnutrida e abandonada. Maior surpresa foi quando soubemos que ele a havia tomado por mulher. Tinham nos dedos, como alianças, moedas de cobre perfuradas. O pai da menina era conhecido como Tião Caititu: um sarará alto, analfabeto, desempregado…. Um pai que via os filhos definharem de fome. Por isso concordou em dar sua filha ao velho Manqueta.
Mal nos acomodamos, retiramos os presentes que havíamos levado: muito biscoito, doces e – como seríamos expulsos se tivéssemos esquecido – cinco litros de pinga. A noite estava chegando e o mano disse que gostaria de jantar uma paca. O caboclo tomou uma dose, apanhou sua “por-fora” e em menos de três horas já estávamos jantando o couro gelatinoso de um dos mais saborosos roedores de nossa fauna. Achando que os litros de pinga ainda valiam mais, ele foi a um canto do barraco, apanhou vários couros de onça, jaguatiricas e gatos do mato, e mandou que escolhêssemos um. Como o mano não demonstrasse interesse, para não o desagradar, escolhi um de jaguatirica, com o qual encapei “meu primeiro livro manuscrito” relatando minhas caçadas.
Seria mentiroso se dissesse que dormi naquela nossa primeira noite! Nem tanto pelas muriçocas, falta de costume de dormir em redes ou pelos primeiros carrapatos, mas, unicamente, pelos piados esparsos dos macucos que viviam em volta do barraco do Antônio Manqueta. Chorões e urus também não resistiam à noite enluarada e aquilo me dava a certeza de que o céu existia.
Às quatro horas cutuquei o mano, que embora soubesse que aquilo não era preciso, respeitou minha sofreguidão e calmamente se levantou para fazer o café. Um pouco mais e todos estavam de pé, arrumando a capanga, enchendo as marmitas, conferindo os pios e os cartuchos. Ainda estava turvo quando deixamos o barraco e adentramos na mata escura.
Nesse dia, apenas eu fui com o mano Adalho porque, para todos os demais irmãos ele já havia facilitado o abate do soberbo galináceo. Todos cobiçavam sua companhia, tanto por ser o maior de todos os caçadores conhecidos, como pelo desprendimento em deixar sempre que os acompanhantes abatessem as caças que ele atraía.
Passos lentos, cabisbaixo, perscrutador, quebrando a ponta de um arbusto aqui, outro acolá, ele ia à frente, examinando o solo, o terreno, as árvores…. De repente, ele parou, fez um exame mais acurado do local e disse:
– Pode até não vir ou piar, mas aqui tem macuco.
Escolheu um murundu (há muitos nas florestas de Linhares), enfiou três pequenas folhas às minhas costas e me disse para ficar bem quieto e muito atento, olhando somente para frente, pois, por sua experiência, ali havia macucos e viriam exatamente daquela direção. Afastou-se uns 15 metros e subiu num poleiro, aproveitando um emaranhado de grossos cipós que se enroscaram numa sapucaia, não sem antes examinar se esta mesma não estava com frutos.
Como de costume, ele aguardou uns cinco minutos em silêncio e depois deu o primeiro piado de fêmea, mais ou menos baixo. Naturalmente, aquilo significava que a macuca tinha ouvido barulho estranho, mas que nada havia acontecido a ela. Sem pressa, depois de mais uns cinco minutos, ele emitiu mais um piado, desta feita, um pouco mais alto. E assim, mantendo os espaços e aumentando a altura, ele foi até o décimo ou décimo-segundo piado, quando começou a inverter o processo, ou seja, começou a piar cada vez mais baixo e a diminuir os espaços. Chegou ao ponto de seus piados quase serem inaudíveis para mim que estava a poucos metros. Então, ele começou a chororocar com o “tio-loló” – apelido que o mano Jayr e eu havíamos dado à sua infalível chororocadeira, a única que emitia um trinado baixíssimo. Deu, no máximo, 10 chororocadas e parou.
A mata continuava em silêncio quase tumular, já que aquele era o horário da primeira refeição das aves, tanto dos macucos (Tínamus) que descem dos poleiros, como dos demais inhambus (Crypturellus), que deixam seus ninhos de pernoite e saem à procura de alimentos.
Já estava desanimando quando ouvi um piado baixinho e agudo, como se o emissor estivesse junto comigo. Bem podia ser o próprio mano, pois nunca se sabia quando era ele e quando era o macuco. O mano era, simplesmente, perfeito.
Eu, que até então ainda me dava o conforto de esticar os beiços e espantar os mosquitos com um leve assopro, até isto suprimi. Via as muriçocas pousarem na ponta do meu nariz, via suas bundinhas incharem de vermelho e me aliviava quando, pesadas, retiravam-se para alguma folha a meu lado, como se fosse um helicóptero com capacidade para 500 quilos, carregando uma tonelada. Só meus olhos mexiam nas órbitas.
Antes de me deixar no murundu, o mano havia recomendado que eu não atirasse em pássaros menores que por acaso passassem por mim. Apenas veados, mutuns ou felinos estavam liberados. Por isso, quando uma chororona emitiu um dos piados mais lindos da floresta e a vi passar, quase o coração me saiu pela boca. Acho que foi mesmo Deus quem mandou aquela chororona preparar o caminho, pois, se primeiro fosse o macuco, certamente eu teria tido “um troço”, como dizia o Manqueta.
Ainda me questionava se não devia ter aproveitado aquela primeira oportunidade, quando vi esgueirar-se, sob um emaranhado de cipós, a imagem mais linda e emocionante para um “marinheiro de primeira viagem”. Afobado, esqueci as recomendações do mano. Ergui a espingarda e apontei. Ante meu movimento brusco, o macuco parou, erguendo-se ainda mais para vislumbrar melhor o que havia em cima do murundu. Apontei no meio do peito dele e disparei.
Estava a menos de 10 metros de mim e o disparo atingiu-lhe em cheio. Ele desmoronou sobre si, mas manteve a cabeça erguida. Levantei-me, desci em disparada, aproximei-me a um metro e fiz outro disparo. Por sorte, a tremedeira causada pela emoção – a maior em meus anos de vida até aquele momento – fez com que eu errasse o meio e só fizesse desaparecer, do galináceo, a cabeça, o pescoço e uma das asas. No mesmo instante, apanhei-o e saí correndo para o lado em que o mano estava empoleirado:
– Matei, matei! – Exclamava eu sem cessar.
Não adiantaram os assovios e os apelos do mano para que me acalmasse e voltasse à improvisada choça, pois eu nem ouvia, nem o via no poleiro. Desanimado, ele falou alto e balançou o poleiro:
– Acalme-se! Não vai “ter um troço aí” e me dar problemas. Aqui ainda tem muita coisa, mas com a algazarra que fez, acho melhor mudarmos de lugar.
O mano era a criatura mais dócil e compreensiva criada por Deus. Nunca vi alguém se sentir mais feliz por fazer os outros felizes.
Segundo ele, eu estava pálido, trêmulo e desconcertado. Não parava de olhar a ave, de passar as mãos sobre as penas que sobraram e de enfatizar: “Matei, eu matei.”
Era eu o último dos irmãos a abater um macuco piado por ele. Todos os demais o fizeram pelo mesmo caminho, mas segundo ele, nenhum demonstrou tanta emoção.
A noite foi de sonhos sobre sonhos. Segundo os companheiros, passei-a repetindo: “Matei, matei o macuco”.

VALEI-ME, NOSSA SENHORA!
Todos queriam ir com o Adalho
Em julho de 1959, fiz parte da excursão que todos os anos o mano Adalho organizava. Julho não é o mês indicado para se caçar nas matas do Espírito Santo, mas era o único mês que favorecia aqueles que estudavam. O mano Jayr, nesse tempo, já cursava Medicina no Rio de Janeiro e eu, o Clássico, no Seminário Menor Nossa Senhora da Penha, em Vitória, no Espírito Santo. E o mano Adalho, por ter tido sempre um grande carinho para com a gente, não se importava em antecipar suas excursões.
O tempo de reprodução dos inhambus, em Linhares (ES), atinge os meses de agosto e setembro. Há sempre alguns que começam mais cedo e eram esses afoitos que seriam disputados por nós.
Nossa excursão contava, entre cozinheiros, caçadores e principiantes, 14 componentes: Ildebrando, Jayr, Adalho, Livaldo e Dolmino Fregona; Joaquim Bona, Hido Canal, Egídio Mariani, Albertino Cordeiro, João Carapina, Izaldino Scarpat, Dr. Joel Coelho, Orlando Scarpat e Arlindo Falqueto.
Iniciantes ou sem lá muita experiência, apenas os manos Ildebrando, Jayr e o Orlando, filho do Izaldino Scarpat. Por isso, vivíamos a tiracolo do mano Adalho. Ele nos levava, escolhia um bom lugar, construía sua choça e depois nos colocava em volta, a uma distância de, no máximo, 20 metros. Todos eram orientados a ter muito cuidado se tivessem de disparar, pois havia gente por todos os lados. Para trás ou muito à direita ou à esquerda, só se o tiro fosse disparado praticamente para o chão, ou seja, numa distância máxima de cinco metros.
Nós ficávamos quietos, enquanto ele ia atraindo a bicharada. Qualquer pássaro que atendesse o piado, certamente seria interceptado por um de nós. Por isso, quando menos se esperava, éramos sobressaltados por um disparo. E aí ficava a curiosidade. Quem foi? O que abateu? Será que errou?
Eu não via a hora de sair de meu posto para saber o que havia acontecido. Porém, antes de duas horas de tentativas, dificilmente ouviríamos o chororocado dos urus: um sinal característico que o mano emitia para dizer que a tentativa, ali, estava encerrada.
E, assim, depois das duas horas estabelecidas, nos reunimos. O mano Ildebrando logo foi desabafando:
– Eu vi a onça! Passou sorrateira, quase rastreando lá onde eu me encontrava. Não me deu tempo de atirar.
– Tem certeza? – Perguntou o mano Adalho.
– Absoluta. Era uma lombo-preto.
– Então, vamos mudar de lugar. Essa espécie de onça é muito atrevida. Certamente ela veio atraída pelos piados. É possível que volte.
Entre medo e emoção, posicionei-me no tronco de uma árvore de largas catanas, por nós conhecida por jendiba. Coloquei no cano esquerdo um cartucho com esfera e, no outro, um 3T carregado de fábrica. Só piscava quando o organismo não resistia à sensação de olhos secos.
E vejam o que é o destino ou a vida! Todo caçador sabe que tornar a ver a onça por ali era o mesmo que acertar na loteria… e eu acertei. Não se passaram vinte minutos e eis que percebi um vulto que, qual sombra, ia andando transversalmente, bem perto de mim. Numa afobação indescritível, elevei a arma e puxei o gatilho. Estonteada, sem imaginar de que lado vinha a agressão, a onça achou de fugir exatamente pelo lugar em que eu me encontrava. Aturdido, com medo, disparei o segundo tiro para o alto e abri a boca no mundo:
– A onça! A onça! Socorro! …
Diante de um caçador cagão como eu era, a própria onça ficou sem saber o que estava acontecendo. Eu me encontrava, nessa altura, quase incrustado à jendiba. Mantinha a espingarda atravessada como defesa e a garganta afiada para não ser devorado sem protestos.
– Valei-me, Nossa Senhora! Me acudam! A onça, a onça! …
Nunca havia vivido segundos mais longos em minha vida! Pareceu-me que o felino se deleitava com o meu apavoramento, tanto que só bateu em retirada quando o mano Jayr apareceu como se fosse uma anta embaraçada no meio de taquaruçus.
Ele ainda testemunhou a retirada do bicho, ou melhor, viu um vulto que se retirava lepidamente, balançando o mato baixo. Em menos de segundos, estávamos todos reunidos. Passamos ali um bom quarto de hora comentando o fato, até que, para arrefecer as tensões, o mano Jayr pilheriou:
– Acho que devemos procurar um córrego.

A PERDIDA HISTÓRICA
A canelada do Quincas Picão
Nesse dia, como “ninguém” escutasse nada, retornamos ao picadão da Vale do Rio Doce. Na revisão, notamos que o mano Ildebrando, o Piassarol, não se encontrava. Assoviamos, depois gritamos a todos os pulmões, mas apenas agourentas corujas protestavam. Ficamos ali quase uma hora e, depois de vasculhar toda a área, aturdidos, entre orações e desespero, resolvemos voltar ao barraco. Certamente, o mano teria sofrido um acidente fatal e só seria encontrado na manhã seguinte. A distância era de uns dois quilômetros e quando a desfizemos, os urutaus já felicitavam a lua, espalhados pelo aceiro de tocos desnudos da pequena derrubada.
Mas, como se Deus tivesse ouvido nossas preces, quando adentramos no barraco, a primeira cara que vimos foi a do “mano perdido”. Imediatamente, dezenas de dedos se voltaram para o nariz de pimentão-maduro do mano:
– Seu irresponsável! Como fez tamanha merda? Quase nos deixou loucos. Durante uma hora gritamos e o procuramos como malucos. Isso é o que dá trazer caçador marca-cu para a mata!
Ainda que os atacantes fossem em maior número, diante de tanta acusação, o mano revidou:
– Eu é quem devia xingá-los, turma de veados! Assoviei, chamei e ninguém me respondeu. Imaginando que tivessem me deixado lá sozinho, dei no pé. Tanto é verdade que achei o macuco. Se quiserem, posso levar vocês lá, embaixo dele.
Bem, aquele desafio arrefecia os ânimos e, como a maioria sonhava em abater um macuco, logo foi iniciada uma porrinha para saber quem iria dar o tiro. O Quincas Picão ganhou.
Jantamos rápido e voltamos ao local. O mano havia deixado a marca da direção e logo encontramos o lugar. O macuco, que acordara com o barulho, agora esticava o pescoço e ameaçava bater em retirada. Nem ele estava mais certo sobre a melhor opção: se dar nas asas e enfrentar a escuridão, ou ficar ali esperando o que aquela turma desvairada estava aprontando. Enquanto ele não decidia, postamos o Quincas na melhor posição para o disparo. Ele escorou-se num araçá e, auxiliado por dezenas de lanternas que transformaram o dossel da floresta num belo amanhecer, disparou.
O poleiro que o macuco escolhera para passar a noite era grosso, acima do normal preferido pela espécie. Por isso, vimos as cascas esvoaçarem a dois palmos do macuco e este se atirar na escuridão que, naquele momento, era-lhe menos arriscado do que permanecer ali.
Depois da falha do atirador, um silêncio tumular reinou no local. Foram problemas demais para nada. Mesmo diante dos olhares acusatórios, o Quincas se negava a qualquer comentário. Repôs o cartucho detonado e nós, numa fila iluminada que bem lembrava a hégira do povo hebreu rumo ao mar Vermelho, fomos desfazendo o caminho. Acontece que logo alguns apagaram suas lanternas a fim de economizar as pilhas, caminhando à luz dos que ainda mantinham as suas acesas. Sem uma palavra, o Quincas vinha lá atrás. Era o último.
Lá pelas tantas, o som de um baque surdo se ouviu na retaguarda. Ato contínuo, as lanternas se posicionaram em direção ao estranho ruído. Era o Quincas! Num curto espaço em que apagou a lanterna, bateu com a canela num cerne de orelha-d’onça que estava atravessado no picadão. Caiu de cara no chão. Da canela notavam-se embiras de peles escarlates que iam do joelho até perto do tornozelo. Erguemos o companheiro e o sentamos no próprio cerne que ocasionara o acidente. Ele apenas bufafa de dor, mas continuava calado. Foi então que alguém observou:
– Picão, essas coisas acontecem! Só admiro você não ter xingado, desabafado com aqueles palavrões criados para essas ocasiões especiais.
E ele, erguendo mais os olhos que a cabeça, explicou entre as interjeições de dor:
– Xingar como, se enchi a boca de terra e folhas?
A parte final da caminhada foi mais vagarosa, pois o Quincas claudicava pelo picadão e gemia mais que mutum apaixonado ao amanhecer. Mas, enfim, chegamos ao barraco.
Os mais destemidos arriscaram um rápido banho, já que a água do riacho parecia recém-chegada dos polos. Embora os dias fossem quentes, as noites descontavam. Fazia tanto frio que a gente se enrolava em jornais, usava duas ou três calças, camisas e meiões e, mesmo assim, era uma reclamação até o raiar do dia. Por isso, poucos se arriscavam a pular no riacho depois do pôr do sol.
O mano Ildebrando (Tudo Eu) e o cunhado Arlindo (Tu Quoque Grapii) ficaram por lá 30 dias sem nem sequer lavar os rostos ou escovar os dentes. Diziam haver uma disputa entre eles sobre quem conseguiria viver na sujeira por mais tempo, mas nunca nos convenceram.

QUE DEUS NOS PERDOE
268 PEÇAS
Em julho de 1959, o mano Adalho formou uma equipe com 14 componentes: Ildebrando, Jayr, Livaldo e Dolmino Fregona; Joaquim Bona, Hido Canal, Egídio Mariani, Albertino Cordeiro, João Carapina, Izaldino Scarpat, Dr. Joel Coelho, Orlando Scarpat e Arlindo Falqueto.
Fomos em duas camionetas: uma pertencente ao senhor Vitório Bona e outra ao Izaldino Scarpat. O local foi o mesmo que há muitos anos o mano visitava: matas contíguas àquelas pertencentes à Companhia Vale do Rio Doce e à Sooretama (reserva ao norte do município de Linhares, com 75% ainda em matas).
A gente arranchou numa abertura defendida por um senhor que, coincidentemente, também era conhecido por Domiciano Scarpat, embora não tivesse qualquer ligação com os Scarpates caçadores de nossa região. Ficava não muito distante do rio Barra Seca, que limita parte de uma das reservas biológicas do Espírito Santo.
O pobre vigia morava lá sozinho havia 30 anos. Nesse tempo devia contar com uns 68 anos de idade. Mostrava-se pálido, abatido pela alimentação deficiente, por inúmeras malárias sem tratamento e pela falta de sol. Vestia-se com andrajos e passava anos sem visitar outros lugares. Foram muitas as vezes em que ficou lá doente, sozinho, entre a vida e a morte, sem ninguém para socorrê-lo. O latifundiário morava na capital e lhe pagava meio salário-mínimo pelos serviços. Acho que não será preciso fazer qualquer comentário sobre esse crime social, combatido hoje em dia como “trabalho escravo”.
Com certeza, nada melhor podia acontecer-lhe do que a chegada de caçadores, que sempre levavam pinga, doces e chocolates e que, ao sair, deixavam para trás as sobras e os velhos trastes, recolhidos por ele como preciosidades. Garrafas vazias, pedaços de plástico, pilhas usadas, sapatões rotos, tudo ele recolhia com carinho.
Devo dizer que o doutor Joel Coelho, de grande coração, tratou-o da malária, da verminose e, quando saímos, já eram visíveis os sinais benéficos do tratamento. Aliás, alguns médicos acompanhavam-nos nas caçadas e, todos, sem exceção, praticavam a caridade à exaustão. Dr. Jayr, por exemplo, ganhava metade de seus dias de divertimento, visitando infelizes que padeciam à míngua naqueles rincões.
Alojamo-nos num velho paiol abandonado, cheio de velhas espigas de milho colhidas no ano anterior: morada de algumas centenas de ratos que nos proporcionaram uma verdadeira “festa de recepção” naquela primeira noite. Ninguém dormiu um minuto.
Para apimentar o drama, o mano havia levado uma trela com dois cachorros para caçar pacas nas capoeiras contíguas. Aqueles cachorros motivaram transtornos durante os 30 dias de caçada. Eles, diante de tantas cotias, raposas, porcos, antas e veados, só saíam das matas ao anoitecer, quando apareciam abatidos e famintos. Foram vãs as tentativas de amarrá-los ou prendê-los ao amanhecer.
Um dia, eu estava já com um macuco na mira, quando os desgraçados passaram tocando uma cotia e acabaram com a minha festa. Naquele dia formei um bloco de dissidentes que fez com que jamais o mano levasse cães para caçadas de inhambus.
Não bastasse, um dos cachorros, o Navegante, já velho e cansado, latia grosso e roncava a noite toda: um ronco cadenciado como o de uma jiboia depois de refestelar-se por um dia inteiro no meio de farta alimentação. Isso, somado aos milhares de muriçocas, aos carrapatos, ao frio e, principalmente, à vontade de caçar, fazia com que todos suspirassem pela brevidade do horário de descanso.
O Navegante aninhava-se entre as espigas de milho roídas, bem debaixo de nossas redes e roncava, roncava e empestava o ar com puns insuportáveis. Se gritássemos ou lhe metêssemos o pé no traseiro, ele reagia assustado, emitindo um latido gutural e grosso: au, au, auauauauau, au!, o que nosso cozinheiro traduziu jocosamente: “Vem, vem, vem-ver-meus dois-ovões, vem!”
Na verdade, boa parte dos integrantes não sabia caçar, mas era tanta a caça que, no fim dos 30 dias, ao fazer a soma das peças abatidas, constatei que havíamos dizimado a fauna em 268 espécies: veados, cutias, pacas, porcos, quatis, macucos, chorões, urus, tururins, jacus, mutuns, jacutingas e até tucanos.
Com certeza, a Natureza – como mãe que é – deve ter pedido também a Deus-Pai, como Jesus o fez ao ser crucificado: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
E, sinceramente, não sabíamos mesmo!

ENCRENCA NA NOITE
Uma loção estragada
Na verdade, o que mais fica das caçadas são as travessuras, os imprevistos, os sofrimentos e os micos. Excluindo-se o que hoje representa um verdadeiro crime ecológico (matar pássaros e animais silvestres), nossas incursões aconteciam sempre num clima de euforia, de verdadeira terapia para aqueles que viviam grandes problemas.
Fez parte de nosso grupo, certa feita, um homem encrenqueiro com o nome de Eurides Canal. Era um baixinho complexado, que buscava sua catarse em demonstrações de força, valentia e bravura. Certa vez, um homenzarrão com o nome de Hilário Bérgami construiu um salão de cinema. O Bérgami, italiano sem instrução, era o que hoje os comentaristas costumam classificar de “figuraço”.
Em frente ao seu “cinema”, ele colocou, num poste, um grande alto-falante e todos os dias, cinco minutos antes da sessão, ele esgoelava:
– Atenção, muita atenção! Readquira seus ingresso que dentro de cinco minuto nóis vai sentá o pau.
Pois bem, num belo dia, com a vila de Marilândia em festa, o Eurides resolveu encrencar com o Bérgami. Este, diante da disparidade física, demonstrava-se constrangido em aceitar os desafios do baixinho que, ante a aparente covardia do grandalhão, pulava de um lado para outro, dizendo que era homem, que tamanho não era documento e coisas afins. Lá pelas tantas, perdendo a paciência, o Bérgami agarrou-lhe pelos braços, ergueu-o a um metro de altura, sacudiu-o algumas vezes e berrou o que dava os pulmões:
– Olha aqui, Canal, homem como você eu enfio três no cu e ainda peido forgado.
Em seguida, soltou o baixinho no chão e adentrou para “sentar o pau”, pois a sessão já estava atrasada.
Pois bem, estava em nossa caçada o Eurides. Sempre vermelho como um camarão, vivia aprontando, mas não aceitava revide.
Logo na primeira noite de caçada, ele apanhou uma raiz e colocou debaixo do colchão do mano Jayr que, ao se deitar, logo reclamou:
– Droga! Fui “fazer” minha cama logo em cima de uma raiz desgraçada!
E assim a noite passou sem que o mano desconfiasse da peça que lhe fora pregada. Quando amanheceu, o Baixinho levantou o colchão, retirou a raiz e, entre gargalhadas, passou a gozar o mano.
Uma semana depois – semana de chuvas intermitentes – quando o Eurides já parecia ter esquecido a raiz – o mano recolheu algumas meias velhas, endurecidas de chulé e, cuidadosamente, ajeitou-as dentro da fronha do travesseiro do Eurides. Naquela noite ninguém dormiu. O Joaquim Bona (Picão, Quincas), porque dormia ao lado dele, teve de ouvir toda ladainha:
– Ô Joaquim, pelo amor de Deus! Que creme você usa na cabeça? Nem polpa de urubu com gambá do deserto fede tanto!
E o Quincas se defendia:
– Mas eu não uso nada nos cabelos. Além do mais, ontem lavei a cabeça com sabão de coco e garanto que não está fedendo assim.
– Não – insistia ele – é você! Vem daí.
E entre protestos, acusações e reclamações, também aquela noite passou. Pela manhã, a desforra. O mano caiu no mesmo erro do Eurides… e contou, só parando de rir quando o Baixinho se retirou furibundo dizendo que iria buscar a espingarda.
O chefe da caçada interveio, acalmou os ânimos, e até o fim da temporada, as palavras ‘meia’ e ‘raiz’ não puderam mais ser mencionadas.

RINITE DOS INFERNOS
O tombo da pinguela
A região de matas de Linhares costuma ser quente durante o dia e extremamente fria à noite. Em algumas delas, o frio atinge níveis quase insuportáveis, fazendo com que o poder criativo de alguns caçadores extrapole.
Lembro-me, agora, da participação de um médico piauiense, mais exatamente de Picos (PI), doutor Joel Coelho, hoje falecido. Era um homem extraordinário, um médico por vocação, cujo bem feito à nossa região talvez pudesse ser comparado aos maiores benfeitores da humanidade. Desprendido, humilde, realista, sábio…, havia angariado uma tal prática em medicina que talvez não apareça outro igual no Brasil. Normalmente ele fazia algumas perguntas, olhava bem para o paciente e já dizia o que estava acontecendo.
Lembro-me de quando um médico de Colatina segredou ao mano Adalho, que me levara à consulta, que eu, infelizmente, estava com leucemia. Ficava, a partir daquele momento, proibido de jogar futebol, de caçar, de pescar… de viver.
Angustiado por tantas proibições que representavam minha razão de viver, entrei em depressão. Havia apenas saído do seminário do Calafate, em Belo Horizonte, e diziam que eu jogava futebol muito bem. Acho até que me saía bem mesmo, porque, quando na capital mineira, fui procurado por dirigentes do Atlético Mineiro para treinar no time.
Bem, como eu havia sido eleito presidente do Marilândia F. C., time que havia acertado um jogo em Linhares contra o Industrial E. C., viajei com a delegação para cumprir o compromisso. Nesse tempo, o doutor Joel já morava lá havia dois anos. Devido à grande amizade de minha família com a dele, mal desembarcamos, fomos visitá-lo.
Quando soube de minha desdita, mesmo sentado à mesa na qual servia-nos um café, fez-me algumas perguntas e ali mesmo examinou-me, na presença de todos os companheiros. Em cinco minutos, devolveu-me a vida:
– Trouxe as chuteiras?
– Não – respondi aturdido.
– Pois arranje uma e entre em campo. Você tem apenas uma infecção interna. Logo que puder, compre os remédios que vou prescrever e volte à luta. Ele estava certo, certíssimo.
Pois bem, nessa caçada o doutor Joel estava conosco. Era sua primeira vez, já que no Piauí, se tencionasse dar um tiro, teria de fazê-lo em cachorros que viviam na rua de sua casa ou em cabritos nos cerrados. Numa das noites, quando roupas, jornais e coberta não davam conta do frio, ele se levantou, fez uma fogueira, cavou um buraco a menos de dois metros das labaredas e se meteu dentro. Ao lado, um copo e uma garrafa de pinga. Era mesmo um autêntico “cabra-da-peste”.
Nessa noite, o mano Adalho, primogênito e pioneiro de nossa rinite alérgica, ao procurar seu “Noselit” para desentupir as narinas, percebeu que havia esquecido o remédio na casa do Perneta, que morava do outro lado do riacho. A travessia era feita por uma pinguela fina e torta: um verdadeiro desafio para qualquer Blondin da vida. Viciado, dependente do remédio como todos nós hoje somos, lá foi o mano, tremelicando de frio, auxiliado por uma lanterna agonizante. De repente, o barulho de uma capivara espavorida se atirando nas águas e um grito de socorro. Acorremos e quase tivemos de transportá-lo até a fogueira do doutor Joel, que logo ventilou a possibilidade de um choque térmico.
Acredito mesmo que, se não houvesse o calor das chamas da fogueira, o Velhão teria morrido de frio. O susto foi tão grande que até ao amanhecer o mano não precisou mais do Noselit: suas narinas permaneceram mais abertas do que as do negro Ambrósio.

MEU QUERIDO VELHO
Suas histórias
Apesar de os meus avós terem vindo da Itália, meu pai nasceu aqui, na região montanhosa e fria de Ribeirão do Cristo, perto de Vitória, capital do Espírito Santo. Herdamos dele o passatempo de caçar, a religião, os hábitos, o sotaque, enfim, a cultura dele de um modo geral. Meu pai contava muitas histórias de caçadas! A gente ficava horas a fio, boquiabertos, ouvindo seus relatos.
Seu avô – contava-nos meu pai – não permitia que a gente apanhasse a espingarda dele para caçar. Gostava muito de beber vinho e normalmente o fazia nos fins de semana. Sempre quando bebia ficava valente e não foram poucas as vezes em que chegou em casa com a cabeça quebrada por bons golpes de “gramarim” (espécie de cajado), desferidos pelos seus adversários. As consequências dessa sua fraqueza davam-me a oportunidade de pegar-lhe a espingarda.
E foi assim que, num domingo de manhã, tão logo meu pai saiu para mais uma aventura, eu subi a montanha para piar a macuca que estava chororocando na grimpa do morro, à esquerda de nossa casa. Naquele tempo, a gente não tinha roupa própria para caçar: usava as mais velhas, apertadas ou consideradas inúteis. E foi assim que meti os sapatões, uma calça de mescla, uma camisa de mangas compridas e um paletó de casimira que seu avô trouxera da Itália. Há mais de 30 anos, aquele paletó o acompanhava. Chovia fino e mesmo assim eu subi o morro, indo empoleirar-me num galho morgado, seguro por grossos cipós.
Ajeitei-me lá em cima e dei o primeiro piado. Depois de alguns minutos, comecei a perceber que um cipó, que curvava a alguns centímetros do meu rosto, começou a balançar misteriosamente, tocando-me a orelha. Afastei o rosto um pouco e continuei piando, pois, o macuco havia parado de chororocar e isso era um bom sinal. Mas o cipó balançava cada vez mais e resolvi olhar para saber o que o estava impulsionando. Foi aí que dei de cara com uma suçuarana. Ela já estava empoleirada quando subi e, como eu estivesse focado no macuco, não a vi. Ficou quieta por bom tempo, mas como eu demorasse demais em sair, ela resolveu abrir caminho. E o único que havia, eu estava interceptando. Ao percebê-la, assustado, desequilibrei-me, caindo lá de cima. Um pouco abaixo havia uma vara quebrada, mais ou menos com três metros de altura. Ela entrou entre minhas costas e o paletó de casimira, que resistiu bravamente, deixando-me dependurado. A onça e o macuco, não sei que fim levaram. A única coisa de que me lembro é que tive que lutar muito para sair daquela posição ridícula e vexatória.
Meu pai tinha o costume de contar suas histórias sempre depois do jantar, quando se distraía manipulando pequenas bolotas de polenta ou arroz entre o polegar e o indicador. Quando as arremessava fora, era sinal de que já não estava para histórias e a gente fazia de tudo para que isso não acontecesse. Por isso, não lhe dávamos trégua:
– Conta outra, pai!
– Ahhhhhhhhh! Vocês não enjoam, não?
– Não, pai! Conta mais.
Bem, vou contar uma de meus tempos de meninote. Naquele tempo, criança era criança mesmo. Para fazer as coisas dos adultos, tinha de crescer. A gente ouvia histórias de onça e morria de medo só em imaginá-las. No entanto, nunca tínhamos visto uma. Nossa mente de menino criava-as aleatoriamente.
Ribeirão do Cristo era um valão frio coberto de matas. Havia poucas aberturas, mais ou menos uma a cada 500 metros. Eram as posses dos imigrantes italianos. Meus pais trouxeram de lá o costume de sempre enviar um naco de carne aos vizinhos mais próximos, todas as vezes em que matavam um capado ou algum bicho do mato. E sempre que o faziam, a criançada era quem levava o ofertado.
Foi assim que um dia, eu e o João, meu irmão, fomos encarregados de levar umas linguiças para o vizinho. Para chegar lá, tínhamos de atravessar um capão de matas que, “devia estar cheio de onças”. Dizer que não íamos só iria nos acrescer uma boa surra. Por isso, apanhamos as linguiças e, qual dois namorados furtivos e apaixonados, saímos agarrados para atravessar o pedaço de mata. Lá pelas tantas, sempre perscrutando tudo, o João viu uma preguiça sobre uma embaubeira, bem à margem da picada.
– A onça – gritou ele – e saiu em disparada, espalhando linguiça por tudo quanto era lado.
Eu não havia visto nada, mas lhe fiz coro, dando no pé e gritando o que me permitiam os pulmões. Ouvindo nossos gritos e, como de fato havia muita onça por lá, meu pai apanhou a espingarda e veio ao nosso encontro. Ofegante, confirmamos:
– É uma onça enorme. Está empoleirada bem por cima da picada.
Um tanto desconfiado, nosso pai nos acompanhou. Ele ia à frente e nós, agarradinhos, pisando-lhe os calcanhares. Chegando ao lugar, o João estacou de chofre e apontou tremelicando:
– Olha ela lá!
Numa demonstração de raciocínio rápido, nosso pai demonstrou preocupação. Afastou-nos um pouco mais até a curva da picada e disse:
– É um animal muito perigoso, filhos. Fiquem aí que irei lá matá-la.
Nosso pai se retirou, cortou uma varinha bem fina e resistente e, ao retornar, não tivemos mais qualquer dúvida de que onça não vive trepada em embaúbas, comendo-lhes as folhas.
– Outra, outra, pai! Só mais uma.
– Tá bem, tá bem! Só mais uma.
Essa aconteceu quando eu já era rapaz. Andava com a espingarda a tiracolo e, por não conhecer, já nem tanto temia as onças. Certa feita, ao atravessar um dos tantos capões de mata que sempre se interpunham entre os poucos moradores, vi um bicho se esgueirando entre os caetés da beira da estrada. Como eu atirasse em quase tudo o que se mexesse no mato, também o que estava nos caetés não se livrou dos meus chumbos. Mas o bicho era grande, assimilou os chumbos ciganos, debateu-se um pouco e saiu rolando por um declive do grotão. Eu gostava de caçar, mas era o homem mais medroso do mundo. Por isso, ir atrás do animal baleado, nem pensar.
Foi quando despontou na picada em que me encontrava, o velho Simão, nosso vizinho mais próximo. Falei-lhe do acontecido e pedi-lhe para ajudar-me na procura. Ele concordou e saí em seus calcanhares. Lá em baixo, onde o grotão terminava, o velho Simão estacou de chofre e muito assustado arrematou:
– Nossa Senhora! Você matou uma onça. A maior que vi até hoje.
A espingarda me caiu das mãos. Era uma pintada que não tinha mais como crescer; bem diferente “daquela” que o João viu comendo folhas de embaúba.

A HISTÓRIA DE UM PIO MILAGROSO
Como sempre, nossas caçadas em Linhares (ES), aconteciam no mês de julho. Repito: não porque julho fosse a melhor época, mas sim porque coincidiam com nossas férias. E o mano Adalho, nosso maior incentivador nos estudos, não se importava em perder a melhor época, indo apenas para nos agradar.
Numa delas, já não chovia no norte do Espírito Santo havia cinco meses. O Leste brasileiro não é como o Norte, que pode passar seis e até oito meses sem que se perceba tanto a falta de chuvas. Lá, a umidade do ar é menor e alguns meses de sol já implicam em grande sofrimento para os animais e as plantas.
O local a que fomos era praticamente o mesmo de todos os anos, diferençando apenas de alguns quilômetros. Os riachos estavam secos, a mata ressentida, os animais sedentos. Era comum ver símios arriscando-se nas copas dos arizeiros, arrancando folhas espinhosas para sugarem um pouco de líquido do interior das cabeças do palmito. Era um quadro triste, dantesco e desolador.
Para encontrar água, tivemos de escavar um buraco de dois metros de profundidade no leito de um riacho. Isso nos causou um grande dissabor por um fato inusitado. É que, no outro dia pela manhã, o mano Jayr, ao trazer um canecão de água para o café, trouxe junto um morobá ou tomba-morro, um peixe que costuma sobrevier também no seco ou, pelo menos, em lugares úmidos, por muitos meses. Mais tarde, ao contar o acontecido, percebemos que nunca se deve relatar fatos estranhos a determinadas pessoas. O desgraçado do Bragatto, coletor federal da cidade de Linhares, durante todo o tempo em que moramos lá, não podia ver um dos integrantes daquela caçada, sem tirar um sarro. Nem uma hiena farta demonstrava mais incredulidade e “ria” mais do que ele, relembrando sempre o fato.
Aquela caçada, julgada por mim, hoje, dá-me a certeza de que, de fato, deve haver muitos diabos nos céus e muitos santos no inferno. É que muitas coisas que acontecem no mundo não têm a conotação que lhes damos. Há fatos que são normais para uns e criminosos para outros. A implicação de culpa está no conhecimento, no discernimento e na cultura de cada ser humano.
Hoje, se alguém repetisse o que fizemos naquela caçada, certamente eu o olharia com pesar, vendo nele uma pessoa desalmada e cruel. Naquele tempo, porém, nada fora mais normal.
A seca era terrível e os animais – pelo instinto natural – praticamente não se locomoviam, certamente para não despender energia. Os pássaros não piavam: passavam o dia na sombra, quietos, aguardando que a chuva viesse a qualquer momento.
Aproveitando os picadões da Cia. Vale do Rio Doce, o Arlindo (Quoque) descobriu que, caminhando por ele e ficando bem atento, podia-se perceber os leves movimentos deles nas folhas secas. Então, ele entrava e os abatia com facilidade, pois, diferentemente dos pássaros da Amazônia, os de Leste dificilmente voam.
Bem, como nossas caçadas sempre tinham a finalidade de apontar um campeão, começamos a ficar preocupados com a frente do Quoque, que abatia de cinco a 10 chororões por dia, enquanto os demais passavam a maior parte do tempo fazendo choças inúteis.
À noite, todos queriam experimentar o pio que ele estava usando, já que apenas ele fazia sucesso na caçada. De olho grande, logo propus comprar-lhe o pio por um preço exorbitante, o que ele aceitou, mas não sem antes estabelecer a entrega para o fim da caçada. Fechamos o negócio.
Durante duas semanas ele continuou disparado na frente, chegando todas as tardes com muitas aves abatidas. O carro-chefe era os chorões. Eles existem em profusão e são fáceis de serem abatidos no “esbarro”. Quanto a mim, só imaginava o sucesso da próxima caçada, já que o pio demonstrava possuir um som singular, só perceptível aos chorões. Parecia um pio comum e mais, pior do que o meu. Não bastasse, o Quoque piava horrivelmente. Qual seria a razão de tanto sucesso? A Natureza explicou.
Na última quinzena, para felicidade dos alígeros, choveu e choveu forte. Os riachos escorreram, as poças encheram, as aves voltaram a piar. Toda a Natureza engalanou-se. Tinha-se a impressão de que havíamos sido transportados para outro lugar distante e cheio de vida e alegria.
A mata ficou molhada, as folhas secas do chão, intumescidas. Já não se podia ouvir nem uma anta caminhando. Imagine nossa surpresa quando, ao cair da noite, notamos que o Quoque não havia abatido nada. Só então descobrimos que ele nunca tinha usado o desgraçado do pio que me custara uma fortuna.
Ele usava os ouvidos e se tornara um especialista em “caçar de esbarro”. Caminhava pé ante pé pelos picadões e, ao ouvir um pequeno estalido nas folhas secas, adentrava e, aproveitando-se da mata limpa, lobrigava e abatia o pássaro.
Naquela caçada, só chororões foram abatidos mais de 200. À noite, todos se reuniam para ajudar o cozinheiro, porque, sozinho, até a chegada das chuvas, com certeza ele não daria conta.

PESSOAS NORMAIS FARIAM ISSO?
Nesse ano, escolhemos a Bahia. Arranchamos numa mata próxima a Porto Seguro. Eu, particularmente, nunca consegui passar uma semana na Bahia sem levar chuva nas costas. Nessa caçada, a coisa me pareceu pior. Ainda antes da divisa, o céu mudou e, mais alguns quilômetros à frente, o limpador do para-brisa não dava conta. Paramos ao lado da estrada, mas somente coisas gravíssimas seriam capazes de modificar nossos planos. Não acredito que irá nascer alguém mais determinado e disposto a enfrentar adversidades do que nós para caçar.
Empurrando carro, desatolando, embrenhando por veredas aparentemente impossíveis de serem transpostas, chegamos ao lugar indicado pelo Osvaldo Guimarães: amigo que havia descoberto o local. A chuva continuava e tivemos de esperar algumas horas para descermos do carro.
Como a maioria fosse a favor de que arranchássemos dentro da mata, fomos procurar um lugar em que houvesse água. Foi fácil, facílimo! Havia brejos para todo lado. Dependendo do lugar em que se pisasse, os sapatões entravam na lama aos tornozelos. Fizemos nosso barraco a duras penas. Tudo ficara úmido, molhado, nojento…. Mesmo assim enfrentamos sem reclamação. Afinal, a causa compensava.
Eu usava um grande saco de lona para dormir. Enfiava dois varões nele e os amarrava bem esticados, fazendo do saco, uma rede. Como meu sobrinho Nini não tivesse lugar para dormir, resolveu cortar um monte de folhas de palmeira e alojar-se sob minha cama. Mesmo com a espessura de um palmo, se as folhas fossem pressionadas com o pé, a água do brejo brotava. Por isso, ele espalhou tudo o que era plástico sobre as folhas, pôs o colchão em cima e se deu por satisfeito. Éramos todos loucos!
Tudo foi bem até a noite chegar, quando o desgraçado do meu sobrinho, não conseguindo dormir, começou a me chutar a bunda. As “camas” dos que dormiam no alto eram ligadas pelas laterais e eu não podia me defender de meu sobrinho. Foram algumas noites que passei em dificuldade, maquinando um jeito de me livrar daquela situação. Até que um dia a ideia veio.
Ao me deitar, apanhei minha espingarda e a coloquei com os cães bem no lugar em que ficaria minha bunda, já roxa de tantos bicudos. Meu sobrinho ainda estava de pé, arrumando alguma coisa em sua mochila. Um pouco mais veio ele. Ainda antes de se agachar para entrar na cama, pilheriou:
– Hoje, como não matei nada e andei pouco, só me resta desabafar e fazer alongamentos nas pernas. Para isso tenho, prazerosamente, um bom sparing: a bunda do titio.
Entrou por baixo, arrumou-se todo e, como oração da noite, desfechou-me violento pontapé na suposta bunda: passou três dias no barraco mancando e protestando contra minha desleal armadilha.
O Quoque, aquele mesmo do pio de chororão, também estava nessa caçada, juntamente com o Vicente, seu irmão. Era a primeira caçada do também cunhado Vicente. Inexperiente, vivia inventando coisas e contando histórias.
Deixa que, pelo meio da mata passava uma velha linha de transmissão de energia que fora desativada. Servia-nos de picada e o Vicente fizera da trilha seu lugar preferido. No segundo dia, voltou contando maravilhas, dizendo que fizera cinco choças e que em todas as cinco piara macuco. Mesmo desconfiado, perguntei a ele se eu podia ir lá verificar. Ele disse que sim. Eu fui.
Entrei na primeira choça que ele fez e abati um macuco. Acreditando, fui em frente. Na segunda, quase nem entrei, pois ficava a menos de 50 metros da primeira. Mesmo assim, como já estava feita, entrei com a intenção de ficar apenas 20 minutos. Abati outro macuco. A terceira e a quarta ficavam praticamente na mesma distância da primeira com a segunda e, em ambas, também abati macucos. Na quinta, errei o alvo, mas ele estava lá. Quando cheguei e joguei os macucos na barraca, meu cunhado entrou em desespero. Acho até que havia mentido, embora nunca confirmasse isso.
Pois bem, um dia, andando pela linha abandonada, ele encontrou um fio de energia grosso, desses que levam a “alta tensão” para lugares distantes. O fio era comprido demais para ser levado e o meu cunhado queria apenas um pedaço para improvisar um varal. Perto, um toco de sucupira com o cerne exposto, próprio para ele cortar um pedaço do fio que parecia de alumínio. O que ele não sabia é que, por dentro, havia outro fio, de aço. Ele ajeitou o fio em cima do toco e desfechou um golpe com seu Corneta. O fio dobrou um pouco, mas o corte de seu facão ficou com um dente respeitável. Sem perder a esportiva, ele apanhou o fio, recolocou em cima do toco e retornou ao barraco. Mal me viu, comentou o acontecido e arrematou:
– Não fale nada para o Arlindo não, que irei pegá-lo.
É que o Quoque sempre teve a mania de experimentar tudo, de cortar tudo para ver ou mesmo para passar o tempo. Segundo o Vicente, ele não passaria pelo fio em cima do toco sem meter o facão para ver.
Logo depois, seu mano Arlindo, o Quoque, chegou. O Vicente contou maravilhas do lugar a que fora e pediu ao irmão que, com sua experiência, fosse aproveitá-lo. O Quoque, que não estava sendo muito feliz em suas investidas, morto de inveja pela minha façanha de abater quatro galináceos seguindo a informação do Vicente, aceitou prontamente. Mal amanheceu, ele partiu para o local indicado pelo irmão. Afinal – deve ter imaginado – pode ser outro lugar daqueles que descobriu e entregou de mãos beijadas ao Livaldo.
À noite, estávamos reunidos no barraco, cada um com o prato na mão, quando o foco de uma lanterna despontou na mata: era o Quoque. A gente já nem se lembrava do que o Vicente havia tramado.
E lá de longe mesmo, o Quoque lastimou-se:
– Alguém trouxe lima? Acabei com meu facão num desgraçado de um fio de energia, lá no picadão abandonado.

De fato, HÁ TEMPO PRA TUDO
A outra canelada
Com o passar do tempo, como é normal, meu pai foi passando o bastão da corrida da vida a seus filhos. Há muito já não caçava, mas, por insistência nossa, já com seus 72 anos de idade, resolveu abrir um precedente, mais para nos agradar do que propriamente pelo interesse de perseguir os alígeros.
Ele carregava na canela uma rodela avermelhada, demarcada por uma camada finíssima de pele que se desintegrava ao menor impacto. A ferida, agora sarada, fora grande, causada por uma leishmaniose quando ainda era rapaz. Como naquele tempo (ao menos no fim de mundo em que morava) não houvesse tratamento, o protozoário abriu uma enorme clareira na canela do meu velho. Mais tarde, com a chegada da Fuadina, ele debelou o problema em parte, passando o resto da vida preocupado para que nada tocasse ali. O pior é que, qualquer arranhão naquele local, por menor que fosse, levava meses para cicatrizar.
Pois bem, nessa caçada realizada na região conhecida como Barra Grande, no município de Linhares (ES), levamos nosso velho pai. Tudo foi bem até o décimo-segundo dia de caçadas, quando alguém deu a ideia de que devíamos localizar um macuco no poleiro para que meu pai “não voltasse com o dedo atolado”, como dizíamos daqueles que não conseguiam abater um macuco.
Meu cunhado Arlindo, o Quoque Grapii, exímio localizador de macucos no poleiro, foi encarregado da tarefa. Outra exigência era de que o macuco não estivesse longe do barraco, por causa da idade de meu pai e também do horário. E, se existisse tarefa fácil para meu cunhado, encontrar um macuco no poleiro, era uma. E foi assim que nesse dia, mal a noite chegou, ele adentrou no barraco com a notícia:
– Seu Antônio, o macuco está amarrado.
Sempre incrédulo, desconfiado e também mal-agradecido, meu pai revidou:
– Aposto que deve estar a 20 metros de altura e lá perto do Barra Seca, senão não deixaria para mim.
– Não! – Retrucou meu cunhado, está a menos de 10 metros de altura e aqui na porta do barraco. Está ali – reforçou ele apontando com o dedo para o aceiro do roçado, às margens do riacho.
Com toda a torcida a seu favor, meu velho resolveu apanhar a espingarda e seguir os quatro ou cinco que se dispuseram a acompanhá-lo. A fila de focos de lanternas que seguia lembrava nossas velhas procissões de maio na querida Marilândia. Do barraco fomos notando as luzes diminuindo, até que, em seus lugares, apenas a negritude da noite era notada. Eles adentraram na mata e começaram as buscas, sempre guiados pelo Quoque que ouvira o bater das asas do macuco para alcançar o poleiro.
O córrego estava quase seco. A margem esquerda era baixa e embrejada. O lado direito, no entanto, era íngreme por uns 20 metros, quando também se aplainava num interminável chapadão. Meu cunhado parou na margem e deu as ordens:
– Seu Antônio, o senhor aguarde aqui. Vou subir para achá-lo e, tendo-o encontrado, darei o sinal para o senhor subir.
– Ahhhccc! … Bufou meu velho, usando sua eterna descrença em facilidades excessivas – ainda vai procurá-lo?
– É fácil, meu sogro. O senhor vai ver. Eu estava aqui e marquei direitinho. Pode esperar que em menos de 15 minutos eu o acharei.
Meu pai sentou-se numa curva de um grosso cipó e apagou a lanterna, enquanto meu cunhado e mais alguns companheiros subiram o pequeno morro. Ainda se podia ouvi-los caminhar pela mata quando o assovio combinado se fez. Meu pai, bem devagarzinho, foi subindo. Olhando bem, agarrando-se a cipós e a pequenos troncos, ele desfez, sem problemas, a distância que o separava do macuco empoleirado. Lá chegando, descansou um pouco, escolheu uma posição adequada, fez demorada pontaria, mas não disparou:
– Vou errar! Podem atirar vocês.
– De jeito algum – protestou meu cunhado – viemos aqui para o senhor “tirar o dedo” e irá tirá-lo. Descanse mais e depois atire. O macuco irá esperar o tempo que for necessário. Ainda nem desconfiou que o descobrimos.
Na verdade, a negaceada de meu velho era uma eterna estratégia que sempre usava para diminuir a responsabilidade. Se errasse, diria que havia avisado que não queria atirar etc. Contudo, convencido de que não seria recriminado por nada e que todos ali presentes estavam conscientes de que não queria atirar, ele tomou posição novamente.
E, de fato, o tiro descascou a parte esquerda do poleiro e o macuco deu no pé, melhor dizendo, nas asas. Ouviu-se apenas o barulho de sua fuga rasgando as folhas que lhe obstavam a passagem. Em seguida, breve silêncio tumular, cortado, em seguida, pelo esbravejar irado de meu velho. Errar um macuco era mais humilhante do que “voltar com o dedo atolado” e por isso, meu pai perdeu o controle, bem notado no velho idioma peninsular adormecido:
– Maledeto! Lo esbaliat, mi la dita que nom guoia coparlo. (Desgraçado! Eu o errei, mas havia dito que não queria matá-lo).
Na verdade, as lembranças do dialeto de Vêneto já estavam mascaradas e esquecidas em parte, mas, nas horas de nervosismo, meu pai misturava ainda mais. Nessas horas, sabíamos que qualquer observação seria perigosa. Por isso, meu cunhado o acalmou, dizendo que “ele havia avisado, sim”, que errar um tiro era normal, principalmente à noite, e que outros macucos iriam aparecer até o final da caçada. Passado o momento crítico, começaram a voltar.
Havíamos ouvido o tiro e já nos preparávamos para felicitar o velho e aposentado caçador. Mas, a surpresa foi grande quando vimos que as lanternas, pela confusão de focos imprecisos e embaralhados, vinham chegando. Algo estranho havia acontecido. Fomos ao encontro do grupo e percebemos que os quatro que acompanharam meu pai amparavam-no com todo cuidado.
Ao descer o morro, meu velho pai escorregou. Ele era pesado e o morro, apesar de curto, muito íngreme. Acreditem se quiser, mas meu velho só foi parar quando sua canela encontrou uma vara de aricanga atravessada. Nem sei por que teve de ser uma aricanga, já que qualquer embaúba seca faria o serviço sem qualquer problema.
Ainda hoje pareço ver sua boca em forma de bico, chupando o ar numa interjeição singular de dor, entrecortada por “sacramentos” intempestivos. O sangue escorria e, apenas para suspender as calças, ele gritava.
O resto da caçada ele permaneceu no barraco, abanando a canela sempre banhada de mercúrio cromo: um dos raros medicamentos que tínhamos, além do soro antiofídico e dos Noselits do mano Adalho.

O “KID” MAIS RÁPIDO DA COMUNA
Lei de talião mal aplicada
Numa de nossas temporadas, levamos conosco o Eleutério Lorenzoni, tabelião de Marilândia, cidade ao norte do Espírito Santo. Como marinheiro de primeira viagem que desconhece os perigos do mar, também ele não tinha qualquer noção dos perigos da selva. Aliás, em quase todas as nossas caçadas, a maioria era formada por caçadores de “meia-tigela”, ou “marca-cu”, como eram classificados aqueles que atiravam em jabutis, tucanos, pararis…
Normalmente, depois de devidamente instalados no meio da mata, os tantos caçadores participantes eram divididos em quatro grupos, cada um partindo para direção diferente, em geral, norte, sul, leste e oeste. Depois de alguns quilômetros de caminhada, fazia-se nova divisão. A intenção era evitar que um caçador atrapalhasse o outro. No começo havia muita reclamação a respeito de estar na choça e passar alguém piando ou fazendo picada, espantando o que já havia sido atraído depois de horas de insistência.
E foi assim que – um dia, já ao cair da tarde, quando os grupos se reuniam no ponto combinado e retornavam ao barraco – o Eleutério, que havia vindo na frente de nosso grupo, resolveu nos pregar uma peça. Imagine o que foi assustar cinco caçadores armados, tendo, entre eles, eu, filho legítimo de Antônio, que numa fração de segundos disparava contra tudo o que se mexesse no mato. Como já me classificara o mano Adalho: um autêntico e perigoso Pim Scarpat.
Para que tenha ideia de como me comportava quando iniciei nas caçadas, veja o fato a seguir:
Um dia, quando seguíamos para o lugar da caçada, esbarramos com algo que fugiu em disparada. Na frente ia o Tuim Gaburro. Eu era o último e, à minha frente, sempre emitindo piados de localização, o fleumático mano Adalho. Quando o Tuim parou de chofre e ensaiou tirar a espingarda do tiracolo, já o meu tiro havia ecoado. Acontece que, pela distância e disposição indiana da fila, a ponta do cano de minha espingarda devia estar a meio metro do ouvido do mano Adalho. Nesse tempo, caçávamos com pólvora comum (pó ronca). Os cartuchos carregados de fábrica só eram usados para caças importantes ou de grande porte, como veados, jaguatiricas, mutuns, onça…. Bem, atirei e logo gritei:
– O tiro foi em cima. Pode ir lá que o chororão deve estar morto.
A essa altura, o mano Adalho já estava sentado nas folhas, com a mão no ouvido, e o Tuim, que ia à frente, observou entre risos:
– Que chororão?
– Este com que você esbarrou aí na frente, ora.
– O bicho que correu era um mateiro sem tamanho – disse ele, quase rolando nas folhas de tanto rir.
Pois é, foi tendo um caçador como eu no grupo que o nosso tabelião resolveu assustar. Perto do local em que passaríamos havia um toco de peroba que resistira os 50 anos de intempéries. É que, nesse tempo, as terras eram devolutas e os madeireiros clandestinos, munidos de juntas de boi, roubavam as madeiras de valor (peroba, louro, jacarandá) e as arrastavam até ao rio Barra Seca. Nas cheias, eram transportadas através dos rios – como se transporta hoje as madeiras da Amazônia, nos lugares em que ainda não há estradas. A gente encontrava muitos desses tocos, embora já a mata não apresentasse qualquer outro vestígio da ação humana.
Pois bem, com o grupo reunido e retornando, os comentários eram muitos, cada um relatando o que lhe acontecera durante o dia. Quando nos aproximamos do lugar em que o Eleutério escolheu para nos dar o tal susto, ele pulou de cima do toco e saiu rosnando, bufando de quatro pela mata afora. Em segundos, cinco espingardas estavam apontadas para ele, mas por milagre, nenhum tiro foi disparado. Meu tio Luís, o tio Gin, foi quem primeiro percebeu a brincadeira suicida e gritou a todo pulmão:
– Não atirem, não atirem, pelo amor de Deus!
Para não desmerecer muito a fama, minha espingarda foi a única que estava com os dois cães engatilhados. O que o Eleutério ouviu do tio Gin, dali até ao barraco, eu não desejo a ninguém.
“Pim Scarpat era tido como o mais rápido e maluco atirador da “comuna”. E, se alguém atirasse junto com ele num bicho, e o bicho morresse, nem precisava dizer de que fora da espingarda dele que saíra o chumbo mortal. Mas, se o bicho escapasse, nem o cartucho deflagrado era prova de que havia atirado também. ”

O INESQUECÍVEL “NÓ NA CAUDA”
Erra-se muito até aprender
Minhas caçadas iniciaram, de fato, no tempo de minha ida para o Seminário Nossa Senhora da Penha, em Vitória, no Espírito Santo. Nesse tempo eu já gostava de escrever – do meu jeito – o que acontecia a mim, a meus companheiros e às caças. São dezenas de cadernos escritos por um estudante que sonhava ser escritor. Vou transcrever abaixo, ipsis litteris, como o fazia:
“…jantamos às 16h, pusemos as roupas apropriadas e partimos para espreitar macucos nos poleiros. Chegando ao lugar que entendemos bom, nos amoitamos num tugúrio de dias pretéritos e começamos a piar. O macuco respondia a cada piado nosso, mas ao invés de se aproximar, ia sempre mais se distanciando. Então resolvemos acompanhá-lo o mais possível, a fim de que pudéssemos ouvir o seu bater de asas ao subir para o poleiro. Tínhamos como certo que ele iria empoleirar perto do picadão e para lá fomos. Decidimos que eu ficaria na picada e o mano o perseguiria com piados e chororocados.
Alojei-me na catana de um madeiro que soerguia sobre o cimo de uma elevação e dali fiquei a perscrutar os derredores. O cume da pequena elevação sobressaía, dando uma visão ampla naquela mata limpa e plana. Dali, enquanto aguardava pensativo, eu via um emaranhado singular de cipós e galhos curvos que se projetavam em estilo mágico até a beira do picadão. Eu, quieto, com o macuco piando longe e com o cansaço da manhã, fiquei sonolento. Na verdade, acho até que já estava dormindo quando fui sobressaltado por um piado a menos de 10 metros de mim.
Segundo minha dedução, o macuco não tinha outra alternativa senão passar num lugar limpo que havia em minha frente, já que, atrás, estava o mano que o seguia cautelosamente. Mas, a noite, indiferente à nossa expectativa, foi baixando seu negro véu sobre a floresta, dificultando minha visão. Um glauco indesejável desvanecia estranhos espetros, criados pela visão ante o fraco reconhecimento das imagens que iam se transformando com o cair da noite. O macuco emudeceu e mais uma vez imaginei que ele tivesse me visto e dado no pé. Contudo, ele estava ali, apenas procurando um poleiro adequado para que pudesse passar a noite. E assim o fez, bem na minha frente, no máximo a 15 metros. Alcançou o poleiro, agachou-se, não gostou da posição, ergueu-se e começou a andar pela extensão do galho, desfilando garbosamente por ele.
Como não conhecesse essa particularidade dos galináceos, achei que ele tivesse me visto e que estivesse se preparando para voar. Virei rapidamente a espingarda e, num gesto lépido, atirei. Como era de se esperar, errei.
Olhei para as estrelas na solidão paradisíaca que Deus as colocou e vi desaparecer, entre elas, um meteoro alado, de cor lourejante. Eu chorava, no meu interior, o descalabro de minha incompetência, do meu nervosismo e do meu impulso incontrolado.
Ouvindo o ecoar de meu tiro, o mano, rindo de alegria, desvencilhando-se de uma cipoada, veio se aproximando. Eu me encontrava extático diante de sua radiante fisionomia e mal consegui articular algumas palavras gaguejadas que bem demonstravam o contraste de ânimos. Ao ouvir meu relato, em sua eterna compreensão, animou-me:
– É assim mesmo. No começo perdi muitos também por causa do nervosismo. Amanhã acharemos outro.
Não acredito que nasça no mundo um irmão mais compreensivo do que o meu Velhão!
No barraco, todos queriam saber como se tinha dado o fato, o que aumentava minha humilhação. Fiquei a noite toda discutindo amargamente com o travesseiro. Como o mano Brando também tivesse criado uma desavença com sua cama, ficamos, os dois, por longas horas, a contar histórias e a fazer planos para o dia seguinte. Ele me disse que, juntamente com o Jayr, estava…”
Bem, a história é apenas uma entre as centenas que anotei em muitos cadernos manuscritos. Se por um lado, o estilo estudantil é evidente, por outro tem, em si, o grande valor de reavivar minhas lembranças. É graças a esses manuscritos que hoje posso retroceder no tempo e contar melhor algumas histórias.

GABRIEL, O PESCADOR
Acredite se quiser
Ainda vive e mora nas terras da Madeireira São Marcos, no quilômetro 140 da rodovia Transamazônica, na cidade de Uruará, no Pará, um pescador que caça apenas para variar o cardápio, já que o rio que passa a 20 metros de seu barraco oferece variado cardápio em espécies de peixes. Na verdade, peixes e caças lá existem, ainda hoje, aos montões, mas, há alguns anos, podia-se até escolher o peixe maior ou o bicho mais gordo, tal a facilidade com que podiam ser encontrados.
A maior parte das matas amazônicas está ocupada por pessoas destemidas que adentram e demarcam uma área qualquer, derrubam alguns hectares, constroem um barraco de palha próximo a um rio ou igarapé e ficam por lá, esperando que algum madeireiro chegue e lhe arremate a ocupação.
O preço, normalmente, a 100 quilômetros da Transamazônica, é irrisório, com longo prazo para pagamento. Parece barato, mas para quem está vendendo algo que não lhe pertence, até que o preço é razoável. As áreas que demarcam são grandes e existem outras a ser demarcadas logo na frente.
Na verdade, quem sobrevoa, ou mesmo constata por terra a extensão da floresta amazônica, sai convencido de que ela é indestrutível. Por isso, o caboclo vende uma e abre outra clareira mais adiante e vai vivendo da Natureza pródiga. O tempo vai passando, ele amasia-se, vêm os filhos e ele os cria sem muitos problemas. Apenas alguns imprevistos mais sérios, como picadas de cobra venenosa, surtos de malária… podem causar baixas à família.
Pois bem, o caboclo Gabriel estava lá em sua posse, às margens do rio Uruará, quando sua mulher – uma amazônida retaca, de aparência nipônica, típica das primeiras tribos indígenas da região – pediu que ele abatesse uma caça para variar o cardápio. Cansado de sua rede, Gabriel conta que apanhou a espingarda “por-fora” (arma de fabricação caseira que é carregada pela boca do cano) e foi a uma uxirana que estava florindo no aceiro de seu roçado. Entre ir atirar e voltar, não demorou mais de 30 minutos. Mas, veio de mãos limpas, dizendo que havia alvejado a cara de um porcão, mas este não ficara no tiro. Chateado – porque dizia nunca ter falhado na pontaria – voltou para casa, apanhou uma pirapitinga salgada, também conhecida por eles como caranha, e a colocou no braseiro.
O tempo passou e passou. Aproximadamente dois anos depois, a uxirana floriu outra vez e, novamente, ele voltou lá para abater uma paca para o jantar. O sol havia apenas se posto quando ele chegou à fruteira. Em poucos minutos ouviu a zoeira dos porcões que se aproximavam. Ele nem mais se lembrava do acontecido ali.
Os porcos vieram chegando e um deles, como se estivesse cego ou fosse criado em casa, aproximou-se a menos de dois metros de seus pés. Era um porco bonito, grande e recomendava por não estar muito gordo. Por isso Gabriel caprichou na pontaria e o abateu com um tiro no pescoço. Colocou-o nas costas e ainda era dia quando o lançou no terreiro.
Sua mulher, ao se aproximar, observou curiosa e surpresa:
– Gabriel, vem ver, você matou um porco cego.
Gabriel veio, olhou, examinou e depois de pelá-lo, constatou que o porco era o mesmo no qual atirara, na cara, havia uns dois anos. O chumbo encontrado, por ter sido feito por ele, mais uma pequena esfera que pusera no carrego, não deixou qualquer dúvida.
Mesmo cego, o porco, utilizando o barulho dos companheiros e o apurado faro para encontrar os alimentos no chão, sobreviveu durante dois anos e, com certeza, não fosse o Gabriel, ainda que de bengala, ele estaria por lá.

UMA VÃ TENTATIVA
As aparências enganam
Com o tempo, além de absorver todas as técnicas do mano-professor Adalho – o maior caçador de pio do Brasil –, ainda descobri algumas outras por minhas próprias observações, o que me favoreceu ser campeão de caçadas, até o dia em que acordei para o crime que estava cometendo contra a Natureza.
Por causa de minha fama de campeão, era comum meus companheiros tentarem superar-me, ainda que fosse numa única caçada. Não bastasse a técnica que eu acumulara, a sorte, para azar de meus adversários, protegia-me.
E foi assim que, um dia, meu cunhado Vicente convidou-me para mais uma arriscada incursão na Reserva Federal, entrando, sorrateiramente, pelas terras dos Serafins: primos meus que moravam contíguos à Reserva. Era intenção dele transformar nossa caçada numa verdadeira disputa. Sem que eu soubesse, ele passou uma semana se preparando para a tentativa de me superar. Até um croqui de sua picada ele rascunhou durante a semana, com todo o cuidado. Deveria caminhar durante duas horas, deixando para trás os dois primeiros córregos já visitados por nós em caçadas anteriores. Queria alcançar um terceiro riacho, onde as caças seriam mais profusas e mansas.
Às quatro horas acordamos meu primo Serafim, já no local da entrada. Acostumado a ser incomodado por nós, não reclamou. Cordialmente acendeu a lamparina, ofereceu-nos um café e nos deixou na margem do riacho Quirino, desejando-nos boa sorte. Tiramos os sapatões e com o auxílio de varas, atravessamos o brejo e depois a estrada que margeia a Reserva. A travessia dessa estrada era perigosa, porque a fiscalização sabia que alguns caçadores não respeitavam a proibição. Qualquer vestígio podia ser observado pelos agentes florestais e, se assim acontecesse, eles vigiariam a passagem e, certamente, ao retornar, os intrusos seriam flagrados.
Pé ante pé atravessamos, verificamos com o foco das lanternas se não havíamos deixado alguma pegada no chão que denunciasse a nossa passagem, escalamos o morro e descemos para o primeiro córrego.
Sem atentar para a intenção de meu cunhado, ao parar no primeiro riacho, perguntei-lhe se queria caçar comigo, ao que ele, sem tirar o picuá das costas, respondeu:
– Não. Você pode caçar por aqui mesmo que irei subir em direção ao segundo riacho. Lá farei uma choça e depois retornarei.
Eu concordei e assim foi feito. Demonstrando muita pressa, ele, cortando um raminho aqui, outro acolá, subiu a encosta, bufando de cansaço. Eu continuei sentado em cima de um fino cerne de sucupira, enxugando a testa suada com o próprio boné, como sempre fazia. Depois pulverizei Neocid na roupa e passei repelente nas mãos e no rosto. O que havia, e com certeza ainda há, de carrapatos e muriçocas em todas as matas de Linhares é qualquer coisa que transcende o vício de caçar de um ser normal. Mas, em matéria de caçada, devo admitir, não éramos normais.
Não bastassem esses infortúnios, no tempo em que se deu essa passagem, já havia agentes florestais protegendo as florestas. Passar com espingardas na rua, como antigamente, nem pensar!
Logo que o barulho emitido por meu cunhado subindo o morro cessou e esfriei o corpo, tomei meu alforje, escolhi uma rota a montante do riacho Quirino e comecei a caminhar, buscando um lugar propício para fazer a primeira choça. Foi quando esbarrei com um bando de jacus que fazia o desjejum nos frutos maduros de um açaizeiro. Como minha arma era uma belga automática de 16 tiros simples ou oito duplos, e como, normalmente, para diminuir o barulho dos tiros, eu sempre caçava com balas simples, comecei o tiroteio. Havia uns cinco jacus, certamente já bastante assustados com outros desagradáveis encontros com caçadores. Isso dificultou minha pontaria, porque não paravam um segundo, sempre voando de galho em galho, buscando qualquer cipoada mais densa para se protegerem. O certo é que usei dois carregos completos e abati apenas um jacu. Havia ferido outro e, se havia uma coisa com que nunca me conformava, era deixar um animal ferido na mata. Houve dias em que perdi mais de cinco horas procurando por um deles.
Recolhi o jacu abatido, deixei-o perto da capanga e comecei a procurar por aquele que havia caído ferido. Apesar de saber que jacus, jacutingas e mutuns, quando caem apenas feridos, dificilmente são encontrados, nunca dispensava uma acurada busca para certificar-me de que não haviam morrido. Com isso, passei mais de uma hora por ali, e imagine o susto quando ouvi um barulho estranho que se aproximava de mim. Pensando serem os guardas, escondi-me no interior de uma densa moita de açaí e fiquei a observar, com o coração quase saindo pela boca. Era meu cunhado Vicente.
Suspirando aliviado, dei o sinal e fui saindo do meu esconderijo.
– Que houve? – Perguntei com certa aflição.
– Cadê a porcada que você matou? – Foi logo perguntando com ares de inveja.
– Que porcada? – Devolvi a pergunta, mais surpreso ainda.
– Vai dizer que não encontrou a porcada?!…
– Claro que não! Esbarrei com os jacus e, por sinal, derrubei apenas um.
– Está brincando!
– Claro que não. Olhe aí – disse apontando para a ave morta ao lado do picuá.
– Eta porra! – Vociferou ele. Vim para derrotá-lo hoje, mas imaginei que seria mais um dia de luta em vão, depois que ouvi um milhão de tiros e imaginei que tivesse abatido uns 20 porcos.
Rimos a valer. Depois, eu subi o rio e ele desceu, combinando o reencontro para as 18h. Naquele dia, abati apenas o jacu e ele, que ficou no lugar mais caçado da Reserva, não abateu nada. Até hoje ele se lamenta de ter perdido a oportunidade de ter-me superado.

SAUDADE DAS ENXAQUECAS
A vida ensinando
Neném Caldara é um amigo bem sucedido financeiramente, que hoje ainda mora na cidade de Linhares (ES). Amava caçar, mas se confessava medroso ante os perigos da floresta. Por isso, detestava sair sozinho. Quando ia comigo, já sabendo que eu pensava exatamente o contrário, logo procurava alguém para acompanhá-lo. Nesse dia ele levou, como companhia, o gerente de uma de suas fazendas.
Pela madrugada, quando buzinou em frente à minha casa, acordei e percebi que estava com enxaqueca: meu eterno algoz. A inicial e leve dor de cabeça, com metade da cara dos outros sumida, era-me prenúncio inconfundível. Mas, aquela inconveniência conhecida não era motivo para frustrar meu companheiro que havia sonhado com aquele domingo. Por isso, tomei um comprimido da coleção de remédios que tinha comigo para combater esse meu renitente mal e entrei no Fusquinha.
Quando alcançamos a Reserva, começou a segunda parte da enxaqueca: a vontade de vomitar, a metade da cara dos outros reaparecendo e a sensação de ter dentro da cabeça uma bolota de geleia dolorida. No intuito de forçar a visão nos focos das lanternas pela escura mata, comecei a me sentir realmente mal. Por isso, tão logo deduzi que meus tiros não seriam ouvidos por quem passasse na estrada, parei. Disse ao Neném o que estava sentindo, que não se preocupasse que aquilo me era comum e que ficaria por ali até passar. Passando, eu seguiria pela picada deles até encontrá-los.
Eles seguiram em frente e eu, calmamente, logo que o dia clareou, escolhi um murundu e armei minha choça sobre ele. Quando me assentei no chão, mil estrelinhas já chuviscavam em meus olhos e o vômito veio. Meia-hora depois, apenas a bolota de geleia dolorida incomodava-me.
Ali, quietinho, prevendo um dia de sofrimento, comecei a piar sem qualquer pretensão. Uma hora depois eu já estava dormindo profundamente. Nada respondia e o cansaço, juntando-se à falta de esperança, fez com que eu, de fato, dormisse.
Quando os macacos me acordaram, percebi que havia feito a choça em baixo de uma sapucaia repleta de flores. Examinei para ver se não havia nela frutos ou galhos secos e, como não houvesse, acalmei-me. Já me sentia melhor e resolvi olhar pelos buracos da choça para saber o que havia acontecido naquela minha “modorra” de quase uma hora. Quase não acreditei quando percebi que um veado estava a cinco metros de mim, mastigando uma flor. Estava tão próximo e, eu, a essa altura, tão descansado e calmo que pude alvejar a cabeça dele sem qualquer problema.
E para encurtar a história, passei o dia ali em cima do murundu. Quando o Neném e seu gerente chegaram, pedi que me ajudassem a recolher a “safra”: um veado, três macucos, duas cotias, um mutum, dois chororões, um tururim e uma uruba. Foi feito um verdadeiro “monte” ao lado da choça. Meu companheiro examinou, olhou, olhou e, finalmente, desabafou:
– É…., com você não tem jeito mesmo! E se estivesse bom, como seria?
– Com certeza – respondi – não teria matado nem um terço, pois, como vocês fizeram, teria gastado o tempo andando pela mata.
Na verdade, todas as vezes em que por algum motivo eu permaneci o dia todo num mesmo lugar, a caçada foi, infelizmente, deslumbrante. É que os animais, em sua maioria, têm territórios delimitados e sabem, instintivamente, que todo o trabalho de seu dia se resumirá em encontrar alimentos. Também pelo instinto, aprenderam que onde algum da espécie permanece por muito tempo, é porque há o que comer. Como não têm pressa, vão seguindo lentamente para o lugar em que são atraídos.
A não ser em época de reprodução, em que, por ciúme, acorrem rapidamente para expulsar o invasor de seu território, os inhambus não têm pressa. Levam horas, muitas horas, às vezes o dia todo, para chegar ao local em que são chamados. Não é fácil ficar quatro ou cinco horas sem ver nem ouvir nada num mesmo lugar, mas quando as coisas me obrigaram a isso, sempre me dei bem.
Há de se observar que, em época de reprodução – não sendo em áreas de muitos depredadores, principalmente gaviões –, deve-se piar bastante, enquanto nos outros meses, ou em áreas de gaviões, bem pouco: quanto menos, melhor. Nas matas de Uruará e Tomé Açu (PA), em que agora faço minhas pesquisas, se alguém piar seguidamente, principalmente urus, em menos de 15 minutos um gavião pousará por cima da choça. E aí é mais viável você arrumar a “trouxa” e se mudar para bem longe.
Não foram raras as vezes em que gaviões pegaram inhambus ao lado de minha choça. Tendo visto a presa, ela não tem mais qualquer chance. A descida é rasante e o bote, certeiro. Um pequeno gavião, mais ou menos do tamanho de uma rolinha, consegue vitimar uma azulona do tamanho de uma galinha de três quilos. A diferença é tão acentuada que o predador come apenas a cabeça da vítima, deixando todo o corpo para os agradecidos gambás.

AINDA O NENÉM
Um menino grande
Ser amigo, companheiro, amante de todo tipo de esporte… eram tendências que sempre superavam o temor de enfrentar as selvas e seus perigos. Era maluco por caçadas, mas não escondia o receio de cobras e onças. Como eu preferisse caçar sozinho – já disse isso – ele sempre aparecia com alguém para fazer-lhe companhia.
Certa feita, ao ir, de madrugada, apanhar o companheiro, este inventou uma desculpa e o deixou na mão. Sem saída, ele foi comigo, sabendo que teria de ficar sozinho. Por isso, enquanto eu fazia a picada, ele examinava os cipós grossos e algumas árvores que lhe pudessem servir de poleiro. Qualquer gancho serviria. O certo é que no chão ele não ficaria. De repente, avistou algo que, na ausência de coisa melhor, estava de bom tamanho:
– Vou ficar por aqui mesmo. Espere-me um pouquinho, até que eu suba e você me passe as coisas.
Olhei para cima e observei:
– Você vai ficar em cima disso aí?
– Vou! – Respondeu-me laconicamente.
– Mas, nem um macaco ficaria ali por mais de uma hora! …
– Estou acostumado. Se não piar nada, eu desço.
– Neném, sei que não gosta de ficar sozinho na mata. Sabe também que, ao contrário, gosto de caçar sozinho. Hoje, porém, abramos uma exceção: cacemos juntos.
– Não. De jeito algum. Vou subir aí e você segue.

Ao cair da noite, quando retornei, ele ainda estava lá em cima. É que, por baixo, logo que subiu, passou uma enorme surucucu, e ele não estava certo do paradeiro do bicho. Bem podia estar ali por perto, amoitada, aguardando a descida dele. E nem adiantou eu tentar convencer-lhe de que cobra não ataca, apenas se defende.
Ao descer, ele se apresentava abatido, arrasado, mal conseguia manter-se de pé. Até então, passar um dia inteiro pendurado num galho transversal, sem encosto, sem lugar para apoiar os pés, só mesmo para faquires altamente remunerados, ou morcegos. Quando chegamos ao Fusca, ele jogou a capanga na poltrona de trás e deu uma bufada que qualquer rinoceronte assinaria em baixo:
– Estou mais moído que cuim de terceira!
Com certeza ele não via a hora de chegar em casa e pular na cama. Logo ligou o Fusca, arrancou e não falava outra coisa senão na cobra que passara por baixo de seu poleiro.
– Se a gente pensasse nos tantos perigos que existem no mato, certamente não entraria nele. Uma cobra daquela se picar, a gente não anda 20 metros – comentava ele.
E foi assim que o imprevisto aconteceu. Dizem que, se Deus é grande, o diabo não é pequeno. Enquanto o carro deslizava célere pela estreita estrada da mata, algo pulou no pescoço do Neném, que já vinha com a cabeça cheia de cobras. Nem precisava tanto para ele agir da maneira com que o fez: simplesmente abriu a porta, pulou do carro, deixando-o à deriva, comigo dentro. Para trás, apenas o eco sumido:
– Nossa Senhora, uma cobra me pegou no pescoço!
O carro entrou pela mata e foi batendo, por sorte, em varões finos, até parar. Ele ainda quebrava alguns galhos quando também dei no pé, saltando e tentando salvar minha pele. Fora do lugar perigoso, no lusco-fusco da pouca luz dos faróis ainda acesos, mas cobertos pela vegetação, não notei nada no pescoço de meu companheiro.
– Tem certeza que uma cobra picou você aí no pescoço?
– Absoluta. Já estou até me sentindo mal.
– Droga! O soro está dentro do carro. Temos de tirá-lo de lá.
Na verdade, estávamos ali na estrada, sem sequer um canivete. Tudo estava no Fusca. Resolvemos quebrar uma vara fina com um gancho frágil na ponta. Com ela fomos arrastando o picuá para fora e, mesmo com medo de que a cobra estivesse nele, retirei a lanterna. De posse da lanterna, antes de apanhar o soro, examinei melhor o pescoço do meu companheiro: não havia sinal de picada alguma. Apenas uma espécie de goma viscosa havia na parte vermelha que o tapão dado formara.
– Acho que a “surucucu” não conseguiu picar, não! – Comentei aliviado. Antes de lhe aplicar o soro, vamos examinar o interior do carro.
Com muita cautela nos aproximamos do Fusca. Na primeira clareada, vislumbrei uma espécie de decalque no vidro lateral: era uma perereca enorme e nojenta. Parecia feliz da vida por ter sido a causa da balbúrdia. Afinal, não era ela uma perereca qualquer.
É…. com certeza, se fosse na BR, ninguém ficaria vivo! Nem a perereca.
– – –
Doutra feita, fomos arranchar no “Areão”. A mata era de propriedade da Cia. Vale do Rio Doce e ficava no fim de seus limites do lado leste. Para se chegar lá, era preciso vencer 20 quilômetros de areia, o que só era possível com Jeep em bom estado de conservação. Por isso, a mata era cobiçada pelos caçadores, já que os animais dificilmente eram perseguidos por lá.
Fomos em dois carros: uma F-1000 e um Jeep. A F-1000 levou os caçadores e as cargas até a entrada do areão e o Jeep ficou com a responsabilidade de dar algumas viagens até que tudo fosse levado ao local programado. O motorista e proprietário do Jeep chamava-se Tota, que não cansava de nos lembrar:
– Areia? Deixa com o Tota!
O transporte começou às 9h e terminou às 19h. Gente e Jeep estavam em frangalhos. Ninguém tinha mais força pra nada. Houve quem nem tirasse a bagagem do Jeep, preferindo se jogar no chão e dormir.
Mas, para o Neném não havia cansaço que o fizesse correr o risco de se deitar desprotegido, ficando à mercê de cobras e onças. Por isso, escolheu dois varões e foi amarrar a rede a cinco metros de altura. Em baixo, ficamos nós, todos estirados pelas folhas. O desconforto era tanto que nem o cansaço conseguiu fazer com que dormíssemos muito tempo.
Aliás, nem precisou, porque às 22h já estávamos de volta, empurrando o Jeep no areão: a corda da rede do Neném soltou e ele caiu lá de cima, batendo com as costas no chão. Gemia o tempo todo e só Deus sabe onde buscamos força para tirá-lo de lá. O resto da bagagem só foi chegar a Linhares uma semana depois.
Apesar de suas peculiaridades comportamentais, ele era um grande companheiro. Não fazia questão de nada e nunca saíamos sem convidá-lo. Havia outro detalhe, sempre muito importante em excursões: ele era brincalhão, perdia um dia inteiro só para aprontar algumas e depois rir de rolar pelo chão. Excursão sem alegria, sem micos, sem gozações, torna-se enfadonha e sem história.
Certa vez, numa caçada de pacas, ele combinou com os demais companheiros para, juntos, pregarem uma peça no mano Adalho. O mano, apesar de ser o maior caçador que conheci, era também de uma ingenuidade a toda prova. Jamais esperava que lhe aprontassem alguma coisa e, por isso, era presa fácil para os gozadores. Tanto que numa caçada no Maranhão, na Fazenda Amazônia, durante três dias, na hora do banho, eu sujei as lentes dos óculos dele, primeiramente com sabão e, no último dia, com graxa extraída do feixe de molas da camioneta.
Nos primeiros dias ele reclamou que não estava enxergando bem, e apenas no dia da graxa é que ele foi enfático:
– É, agora não tem jeito mesmo! Vou ter que procurar meu oftalmologista e trocar meus óculos. Se continuar assim, daqui uns dias não enxergo nem uma anta a cinco metros de distância.

Diante de tanta ingenuidade, não foi difícil para o Neném pregar uma boa ao mano. Caçando pacas, depois de soltar os cachorros inutilmente em vários lugares, resolveram retornar. Deixa que o Neném, enquanto os demais caçavam, tomou o carro, veio a um córrego por que teriam de passar, foi às margens arenosas de um remanso, marcou a areia com os pés que guardara de uma paca da última caçada, adentrou n’água e, numa moita típica, colocou a cabeça que também guardara na geladeira para esse fim, retornando, em seguida, para junto dos companheiros.
Na volta, quando todos estavam no carro, ele começou a lastimar, dizendo que não gostava de ir para o mato sem “correr uma paca”. Preparado o clima, quando chegaram ao riacho em que ele havia armado o esquema, disse que gostaria de soltar os cachorros ali como última tentativa. Todos os coniventes – já avisados – concordaram, e o mano não teve qualquer chance de contrapor-se. Com o palco preparado, acabaram por fazer o mano descer para olhar se havia rastros. O mano desceu e notou que uma “paca” havia passado por ali e que o fizera havia poucas horas. Demonstrando entusiasmo, todos se aproximaram do barranco e o Tuim, conivente com a trapaça, desceu até o lugar em que se encontrava o mano, agachou-se, olhou os rastros e observou:
– Nossa Senhora! Ela passou agora, Neném. Pode soltar os cachorros que esta a gente leva.
Concomitantemente, foi até o lugar em que os rastros acabavam e reforçou:
– Veja, Adalho, ela caiu n’água aqui!
Em seguida, erguendo os olhos, apontou com o dedo e falou sibilante:
– Olha! Aquilo lá na moita, não é a paca?
O mano olhou e não duvidou um segundo: apontou e disparou, uma, duas vezes. A cabeça estraçalhada desapareceu. Então, ele atirou-se na água e foi buscar. Só quando levantou a cabeça do roedor é que foi se dar conta do que lhe haviam pregado.
Lá em cima, no barranco da estrada, apenas dentes, muitos dentes.

SETEMBRO DE 1968
Derrotado nos acréscimos
Caçadores são como dependentes de drogas: não conseguem passar muito tempo sem formar comitivas com a finalidade de viver aventuras. E mal chegam de uma, já começam os preparativos para outra.
Um dia, recebemos, em Linhares, a visita do Sasso, companheiro do Velhão (mano Adalho). Ele almoçou com a gente antes de partir para ver um lote de jacarandás na Bahia. Parou apenas para um alô, mas acabou saindo no dia seguinte, não sem antes programar uma caçada para o Mato Grosso. À noite, nos reunimos com os irmãos Elpídio e Guido Caliman, seus fornecedores da madeira da época (jacarandá), e ficou decidido que, no final do mês, viajaríamos para Nortelândia, no Mato Grosso.
Como decisão de caçador não retrocede, em 31 de agosto de 1968, às 3h30min, num bonito sábado, saímos de Linhares, no Espírito Santo. Fomos numa Rural de propriedade do Guido Caliman, novinha em folha. Para se ter ideia da caminhada, vejam os lugares por que passamos para chegar ao destino:
João Neiva, Ibiraçu, Fundão, Serra, Vitória, Iconha, Safra, São José das Torres, rio Itabapoama, Bom Jesus de Itabapoama, Itabapoama, Itaperuna e Muriaé. Aí deixamos o Espírito Santo, entramos no estado do Rio de Janeiro e logo, no de Minas Gerais. Às 12h30min, passamos por Realeza e fomos em frente: Santo Amaro, Rio Casca, Ponte Nova, Mariana, Ouro Preto, Cachoeira do Campo, Itabirito e, finalmente, Belo Horizonte, onde pernoitamos.
Às 5h50min, recomeçamos a caminhada: Matozinhos, Presidente de Morais, Sete Lagoas, Belvedere e Aliança, local em que vimos o primeiro veado cruzando a estrada. Seguindo, passamos pelo rio São Francisco, João Pinheiro, rio Paracatu e Paracatu. Logo em frente, deixamos o estado de Minas Gerais e entramos no de Goiás. Passamos por Cristalina e Brasília, onde pernoitamos. Bem cedo deixamos o Distrito Federal, passamos por Anápolis e Alexandrina e seguimos em frente: Vera Cruz, Rio Verde e Jataí (muitas emas, seriemas, tamanduás e veados ainda podiam ser vistos em toda a extensão da orla da estrada). Portolândia, Santa Rita do Araguaia, rio Araguaia, na parte que divide Goiás do Mato Grosso. Em Alto Araguaia, primeira cidade do estado do Mato Grosso, jantamos e rumamos para Alto Garças, lá chegando às 21h40min. pernoitamos ali.
No outro dia: Rondonópolis e, a seguir, Teresópolis. Nesse município, em qualquer parte em que se parasse o carro, ouvia-se centenas de jaós do campo piando. Fátima, Jaciara e, às 10h30min, Cuiabá. Continuando, passamos por Jangada, Barra dos Bugres, Nova Olímpia e, finalmente, às 18h30min, alcançamos a fazenda do Piovezan. Dormimos e, no dia seguinte, fomos acampar às margens do rio Septubinha. Consultamos o velocímetro: 3.290 quilômetros de caminhada. Assim, numa quarta-feira de grande calor, ainda antes de o sol se pôr, estávamos arranchados num lugar paradisíaco, às margens do rio Septubinha.
A boca toda rachada pelo sol e pela poeira da viagem, o corpo dolorido por causa da má acomodação no veículo, os olhos vermelhos e mais uma dezena de incômodos não impediram a euforia de estar no lugar tão sonhado. O mano Adalho, eleito chefe da caçada, enquanto alguns preparavam a cozinha, mandou que eu tentasse alguma coisa para o jantar, ali mesmo pelos derredores.
Afastei-me uns 50 metros do barraco, subi num grosso cipó que se enroscava num mogno e, em menos de 40 minutos, já estava de volta com duas azulonas na mão. Foi uma festa, pois abater duas azulonas em menos de uma hora prenunciava uma caçada sem precedentes. À noite, apesar da longa caminhada, só paramos de conversar pela madrugada. Ouviam-se azulonas piando por todos os lados e aquilo era mais que suficiente para roubar nosso sono.
A bem da verdade, o motivo que mais sacrificou a Natureza foi a infeliz ideia de campeonato, estabelecida por não sei quem, com a finalidade de motivar os caçadores: como se isso fosse preciso para uma classe de dependentes. Estávamos ali entre três possíveis campeões: Adalho, Sasso e eu, já que o Guido e o Elpídio não eram propriamente caçadores. Estavam lá mais para conhecer a região.
Como as azulonas valessem 150 pontos, era-se de esperar que elas fossem as mais procuradas. Acima delas, apenas a onça, com 200 pontos e a jaguatirica que as igualava: 150. Um veado valia 50 pontos. E assim, cada pássaro ou bicho tinha sua pontuação. A contagem seria feita no último dia, após o jantar, já com a caçada definitivamente encerrada.
Lá permanecemos três semanas e a luta foi ferrenha. Numa tarde, por exemplo, o Sasso chegou, jogou a espingarda num canto e desabafou:
– Porra! Estou exausto. Cinco horas de facão e não vi nada. Parece mentira como consegui fazer uma picada em lugar tão inóspito para os bichos.
Pior ainda foi quando ele soube que eu, num único poleiro, havia abatido cinco azulonas e errado uma. Não bastasse, no dia seguinte, fui caçar na mesma picada que ele fez e abati três azulonas. O Sasso entrou em desespero. Afinal, ele e o Velhão eram considerados os dois mais experientes caçadores de macucos do País. Sem contar que havia passado três dias sem abater um galináceo, enquanto, todos os dias, Adalho e eu chegávamos com os picuás cheios.
Mas caçada é como jogo de futebol: somente os aficionados conhecem suas surpresas. Na segunda semana, a coisa normalizou-se. Um dia um, um dia o outro… O certo é que Sasso, Adalho e eu íamos matando como era de se esperar.
Como eu estivesse na frente, resolvi dar o golpe de misericórdia, tirando um dia para ir ao rio Septubão, longe de nosso acampamento quatro horas de caminhada. Segundo a fama, lá os bichos ainda nem conheciam o ser humano. E assim fiz.
Minha primeira choça foi feita próxima à sua margem, às 9h. Perto havia uma cachoeira (notava-se pelo chuá das águas que chegava aos meus ouvidos). Depois de duas horas piando, percebi que um bicho se aproximava. Vinha entre as folhas de caetés densas e só fui perceber que se tratava de um veado quando ele ergueu a cabeça bem perto da choça. Eu não havia matado nada ainda e ali se apresentavam 50 pontos à minha disposição. Mas os pontos só valiam ante a apresentação da caça abatida, no barraco, e eu estava a quatro horas de distância. E o pior: era um veado grande que devia pesar uns trinta quilos. Pensei no sacrifício, mas a vontade de vencer os dois papas da caçada fez com que eu apertasse o gatilho. Aí, foi lançá-lo às costas e retornar devagarinho.
De 20 em 20 minutos eu o jogava no chão e piava azulona, na esperança de que alguma respondesse perto e me desse a chance de aumentar a pontuação. Mas, nada aconteceu: cheguei morto de cansado e com apenas 50 pontos nas costas.
Ao cair da tarde, o Sasso chegou recurvado sob o peso de mutuns, jacus, sururinas e dois macucos. Apesar de ter subido na pontuação, devido a seus fracassos iniciais, ainda estava aquém de mim, mas já ameaçava. A situação piorou quando ele me deu o troco.
No dia seguinte, indo pela minha picada, abateu cinco galináceos, recheados com outras peças. Aí ele encostou de vez, mas fui mantendo a diferença até o último dia. O Velhão também estava sempre por perto, às vezes até ultrapassando nossa contagem. Mas o mano era mano e não me preocupava muito. O adversário, de fato, era o Sasso, exímio caçador que nunca perdera uma competição nas excursões que fazia com seus companheiros da capital capixaba.
O fato é que a decisão ficou mesmo para o último dia de caçada. Agora seria como uma disputa por pênaltis: qualquer um poderia ser o campeão. Como havíamos combinado, às 15 horas chegamos ao barraco. Almoçamos, tomamos banho e fomos fazer a contagem dos pontos. Eu estava na frente por sete pontos, mas o dia ainda não havia findado e, por isso, somente à noite eu seria reconhecido campeão.
E veja o que é caçada! Às 18h, dizendo que ia aliviar uma dor de barriga, o Sasso saiu de sandálias e bermuda e foi procurar um lugar aprazível para suas necessidades. Como todos faziam, ele também levou a espingarda… e voltou com uma enorme jaguatirica às costas. Estava decretada sua vitória. Ainda pensei em correr atrás do prejuízo, mas devo confessar que fazer aquilo, naquele momento, seria mesmo antiético. Por isso, reconheci sua vitória e, após o jantar, foi-lhe entregue a taça e disparados os 10 tiros de reconhecimento.

FONTANA E GUOI DIO
Dois gozadores inveterados
Fontana era homem franzino, comerciante de armarinhos na cidade de Colatina (ES) e também maluco por caçadas. Imitava a maioria dos inhambus com a própria boca e o fazia de maneira versátil. Ao ouvi-lo piando um tururim à distância, era impossível estabelecer quem era quem. Também macucos ele imitava de modo invejável. No entanto, não matava nada, mesmo porque não ia para as excursões para matar os bichinhos, e sim, para atirar nos paus, aprontar com os companheiros ou passar o dia comendo passarinhos fritos, com cerveja nos primeiros dias e cachaça no final. Ele sempre levava um pequeno isopor com algumas latas de cerveja que não duravam três dias. Depois ia na pinga mesmo.
No mato, com apenas homens… tudo é natural. A rapaziada tira e recoloca a roupa sem qualquer parcimônia, ainda que tenha sempre de fazer isso às pressas, para não deixar a bunda à mercê dos famintos e insaciáveis pernilongos.
Acontece que o Sasso dormia numa rede ao lado do Fontana e todas as tardes, depois do banho, o Sasso trocava de roupa ali, ao lado da rede do Fontana. Este sempre estava dentro dela, pois só levantava para uma pinga com coxinhas fritas de chororão. Em sua despreocupação, o Sasso quase esfregava a bunda na cara do Fontana, que se virava para que isso não acontecesse.
Numa tarde, porém, quando todos haviam chegado e se preparavam para jantar, eis que o Sasso repetiu seu costumeiro ritual. E foi aí que o Fontana, limpando a garganta e afinando quanto possível a voz, lembrou Ângela Maria, em uma de suas mais belas canções:
– Você vive ao meu lado… e eu não tenho você!
Não precisou mais que isso para que o Sasso mudasse aquele hábito, já que em qualquer oportunidade, alguém lhe fitava o traseiro e repetia, com ares libidinosos, a paródia do Fontana.
Outro que passava um ano economizando dinheiro para pagar a excursão – apenas para “encher o saco de Deus e do mundo” – era o Guerino Bravim, vulgo Guoi Dio. Este era pior ainda que o Fontana. Passava o dia pensando numa maneira de perturbar alguém. Às vezes, passava 30 dias no mato e, quando íamos para a contagem dos pontos, estava lá o Guói Dio: uma maitaca, duas pararis e uma pomba-trocal, normalmente abatidas de dentro do barraco.
Hoje, as matas de Linhares passam meses sem chuva, mas naquele tempo, nunca nos foi possível passar uma semana sem ela. E vinha sempre acompanhada de fortes trovões e avassaladores ventos. As coisas ficavam umedecidas e o bolor tomava conta de tudo. Os pios “engasgavam” e tínhamos de andar com os bolsos cheios de penas para desobstruí-los. Era um piado e uma enfiada de pena pelo pio adentro para retirar as gotículas de saliva condensadas. Os mosquitos aumentavam e, se caçada não fosse “um trabalho rentável”, certamente ninguém o faria, como dizia nosso companheiro Sasso.
No segundo dia dessa caçada, o Guerino adentrou alguns metros para piar um bando de urubas que todas as tardes empoleiravam no aceiro: caiu do poleiro e chegou ao barraco claudicando. No outro dia, foi até à casa do Manqueta (zelador da gleba), pediu um velho arreio emprestado e, quando menos esperávamos, lá estava ele fingindo que ia para a mata levando o arreio nos ombros. Como o conhecíamos bem, logo fizemos nossa parte:
– Que diabo é isso, Guoi?
– É que vou voltar lá nas urubas e pretendo colocar o areio naquele cipó negaceador.
Feito isso, ele voltou para devolver o arreio da égua ao Manqueta.
Doutra feita, vimos que ele ia saindo pelado, com uma nuvem de mosquitos acompanhando-o. Antes que adentrasse na mata fizemos a pergunta que ele sempre esperava que fizéssemos. A gente sempre cooperava.
– Ué, Guoi, caçar pelado?
– Já vi que pra matar alguma coisa aqui tem de ser como índio. De roupa os bichos reconhecem e fogem.
Pronto, voltava, punha a farda e ficava esmurrando os mosquitos que ameaçavam devorá-lo.
Certa feita, o mano Adalho – com sua maldita mania de levar cachorros a caçadas de passarinho – levou também o Trovão, um cachorro velho, caçador de tatus, com manias idênticas às do Navegante.
Era um cachorro enorme, sempre cansado, latia grosso e roncava como uma surucucu em pé de cerca depois de saborear vários ratos. Durante o dia ele não incomodava ninguém, porque, em geral, estávamos na mata e ele preferia acuar as dezenas de tatus que viviam no pequeno plantio de mandioca do Manqueta. À noite, porém, quando todos se recolhiam e o silêncio tumular reinava, o roncado do Trovão se tornava insuportável. E o pior é que ele era também meio surdo e totalmente avesso a repreensão: demorava a acordar, mas, se acordasse, sem saber direito do que se tratava, iniciava latidos graves e guturais: Au, au, au, au, au, au…au! Se o deixássemos quieto, ele voltava a roncar depois de alguns protestos. Expulsá-lo do barraco, nem pensar. Até suas necessidades eram feitas ali, debaixo de nossas redes. E o Guoi, só para “ver o circo pegar fogo”, vivia enxotando o diabo do Trovão e soltando puns em nome dele.
O Guoi ainda vive em Vitória, no Espírito Santo. Dizem que, apesar dos anos, ainda brinca como se fosse uma criança. Sempre viveu alegremente e um dia, quando morava em São Mateus, chegamos à sua casa, de surpresa, e o convidamos para uma caçada de marrecos. Era dentista, estava com um cliente na cadeira e outros na sala de espera. Incontinenti, ele saiu do consultório e disse:
– Voltem amanhã! Apareceu um trabalho muito mais importante para eu fazer hoje.
Constrangidos, tentamos desfazer o convite, mas ele explicou:
– Meus caros, há muito eu entendi a vida. Não se preocupem: vamos caçar.

DR. PEDRO E O PORTUÁRIO CÍCERO
Duas figuras excêntricas
O doutor Pedro Boninsenha é um dos médicos mais cultos que conheci. Não há um assunto de que ele não tenha vasto conhecimento. Sua cultura, porém, somada ao desprendimento financeiro, fizera dele um médico modesto, satisfeito em receber parcos salários do INSS ou de alguns outros plantões hospitalares.
Comprometido apenas com os empregos, ele sabia com antecedência de suas folgas e sempre as ocupava com caçadas. Por causa dessa particularidade, logo começamos uma amizade que perdura até hoje. Passamos, naquele tempo, por algumas incríveis aventuras, algumas delas caras até para nossa reputação.
É que o Dr. Pedro, como todo caçador iniciante, era desprovido de malícia a quem se propõe caçar em lugar proibido e vigiado. Era daqueles que não parava de piar e o fazia em lugares impróprios, como margens de estradas em que era costume os agentes florestais passarem. Foi assim que, depois de um dia de chuva dentro da Reserva Florestal, desanimado, resolveu voltar até perto da estrada. Ali ele armou uma barraquinha com a folha plástica que tinha consigo, usou a capanga como travesseiro, deitou e se pôs a piar jaó. Além de piar mal, ele ainda o fez num lugar em que não havia jaós, o que chamou a atenção dos agentes em sua costumeira ronda.
Bem, eu estava a uns 300 metros dele, mas podia ouvir, embora sumidamente, seus constantes e horríveis piados. Sinceramente, cheguei a pensar que poderia acontecer o que, de fato, aconteceu.
Percebendo tratar-se de gente, os guardas se armaram e, em sete, aproveitando o barulho da chuva, foram entrando devagarzinho até flagrarem o meu amigo, quase dormindo, debaixo da folha plástica. Assustado, ele emitiu gritos de pavor, sobressaltando-me sobremaneira.
Nesse tempo eu já não caçava, mas capturava pássaros, tirando-os de lugares em que existiam em profusão e soltando-os onde haviam sido extintos. A ideia era boa, porém, não permitida pela lei.
Com os gritos, saí da choça, recolhi rapidamente as armadilhas, tomei os dois macucos que havia capturado e parti célere para socorrer o amigo. Quando me aproximei a uns 50 metros, ouvi conversa e não tive mais qualquer dúvida de que meu companheiro havia sido pego pelos agentes florestais. Tirei minhas coisas, coloquei-as atrás de um murundu, respirei fundo e falei em voz alta:
– Não atirem. Estou me entregando.
Fez-se silêncio e quando me aproximei, sete revólveres saíram de todos os coldres, apontando para mim. Disse-lhes que aquilo era um verdadeiro absurdo, pois, se estivesse ali para reagir, não teria avisado. Então eles foram baixando as armas e logo nos sentamos para tentar resolver o impasse, é claro, do “jeitinho brasileiro”.
Entre os sete agentes havia um gordo – chefe dos outros seis no trabalho de campo – cujo nome se não me engano, era Elias. Passado o primeiro e maior susto, acomodamo-nos no chão e começamos “a negociata”. Eu, confesso envergonhado, sempre carregava dinheiro para subornar os guardas, caso fosse surpreendido por eles. O dinheiro que eu levava equivaleria, hoje, a dois mil reais. Então, fui logo abrindo o jogo:
– Caros, sei que lutam com dificuldade, que têm mulher e filhos e acho que podemos nos ajudar mutuamente. Meu colega é médico e eu, um malandro bem-sucedido. Tenho aqui comigo este dinheiro (e apresentei a eles o pacote) e meu colega, como médico, pode atender vocês e suas famílias, gratuitamente, por um bom tempo, se vocês fizerem de conta que nós escapamos. A gente deixa todo o equipamento para vocês. Queremos apenas evitar o vexame de enfrentar uma delegacia numa cidade pequena em que todos se conhecem.
Eles pensaram um pouco, entreolharam-se e seis concordaram. O mais gordo, porém, disse que era muito arriscado, pois podíamos dar com a língua nos dentes e deixá-lo em apuros.
Respondi que tínhamos culpa no cartório e que não éramos tão idiotas a ponto de nos comprometer. Mesmo assim ele permanecia irredutível, e tanto permaneceu que, depois de mais de uma hora de “negociações”, perdi a paciência e disse:
– Então, vamos embora. Minhas coisas estão logo ali. Estou avisando porque há dois macucos aprisionados e não quero que morram em suas camisinhas de força.
Eles foram ao local indicado, apanharam minhas coisas e fomos saindo do mato, diretamente para a sede regional do IBAMA. Os seis que aceitavam a proposta ficaram decepcionados. Fui dormir na casa de um deles. Este tinha seis filhos, uma mulher doente e muita necessidade dentro de casa. Por isso, uma oportunidade como aquela oferecida por nós, ele dificilmente teria outra vez. Disse-me que o dinheiro não lhe importava, mas as consultas médicas e os remédios seriam a solução para os tantos problemas que vinha vivendo. Disse também que o “Gordo” (Elias?) era acostumado a receber propinas e não entendia a razão de, dessa feita, não ter aceitado.
Posteriormente, o Dr. Pedro assegurou-lhe que, mesmo tendo sido preso, faria as consultas a ele e a toda família, gratuitamente, por todo o tempo que fosse necessário. Os olhos dele umedeceram: dava para perceber.
Na sede, ainda antes de nos recolhermos, fomos merecidamente humilhados pelo chefe geral, Ezequias. Ele discursou, cantou vitória com todos os requintes do poder que exercia ali, enfim, usou sua autoridade até o último cêntimo. Quando em vez, o Dr. Pedro e eu trocávamos olhares odientos, não por ele estar fazendo cumprir a lei, mas unicamente pela maneira com que o fazia.
O motorista que nos foi buscar, não nos encontrando e sabendo do acontecido, logo levou a notícia para Linhares. No outro dia pela manhã, quando chegamos, havia uma verdadeira plêiade de médicos, professores e amigos na porta da delegacia. Até o juiz da cidade, que fora meu professor de História, Dr. Galeno, estava lá. Conclusão, nem adentramos. Contudo, o chefe dos agentes florestais não se privou da solitária carreata, passando com a gente pelas principais ruas de Linhares.
Apesar de todo apoio, fomos processados e durante cinco anos tivemos de comparecer diante do juiz para atender as intimações. Depois, arquivaram o processo. Dr. Pedro continuou visitando a Reserva e eu me mudei para Imperatriz, deixando os agentes florestais em paz. Um deles, exatamente o chefe, senhor Ezequias, acabou casando com uma de minhas primas, aposentou-se e hoje ainda me goza pelo aperto que me fez passar. Ele estava certo e ninguém mais que eu merecia a lição. Se me imputassem um dia de cadeia pelas vezes que entrei na Reserva, com certeza ainda estaria lá atrás das grades.
Um fato interessante, cheio de coincidências, não deve ser esquecido desse tempo de minhas capturas. É que havia, em Vitória (ES), um homem obcecado por criar inhambus. Chamava-se Cícero. Tinha esposa e três filhos e trabalhava no Porto de Vitória. Era “espírita de despachos” e dizia que aquele que o incomodasse, ou a um de seus protegidos especiais, não escaparia de sua vingança.
Ele, apesar de não viver do comércio ilegal, quando precisava de eletrodomésticos para sua casa ou para seus amigos, adquiria-os de contrabando nos navios que aportavam em Vitória, capital do Espírito Santo. Foi a obsessão por inhambus que nos aproximou. Sabendo que eu os criava, um dia ele esteve em minha casa para comprar-me um casal de macucos. Disse-lhe que não vendia pássaros, que gostava apenas de capturá-los em lugar em que havia muitos para soltá-los onde já não existiam e que, por isso, iria dar-lhe um casal.
No domingo seguinte ele retribuiu a cordialidade, dando-me um gravador National de presente, segundo ele, adquirido de um navio japonês. O gravador continua comigo. Há mais de 40 anos eu o carrego em minhas incursões para gravar piados de inhambus. Ainda hoje funciona razoavelmente. Para ser sincero, há 40 anos procuro algo melhor, como gravador de fitas K7, e ainda não consegui.
Daí para a frente nos tornamos grandes amigos. Eu não ia a Vitória sem visitar sua família, e ele, mensalmente, aparecia lá em casa para falarmos de inhambus. Um dia ele me disse:
– De hoje em diante você passa a ser um “amigo especial” para mim. Todo aquele que tentar prejudicá-lo, será castigado duramente.
Por não acreditar, esqueci temporariamente o assunto. Mas, depois disso, acontecimentos estranhos me obrigaram a lembrar aquelas macabras palavras do estranho amigo Cícero.
Certa vez fui sequestrado. Levaram-me em meu próprio carro, atiraram em mim e me abandonaram numa mata, certos, talvez, de que eu estivesse morto. Eram três assaltantes. Em menos de um ano, um foi morto pelo próprio amigo enquanto se drogavam no fundo de um quintal; outro recebeu 75 facadas e mais de 50 tiros. Foi difícil até seu reconhecimento pelos familiares e, do terceiro, nunca mais ninguém teve notícia.
Também, em menos de um ano, o agente florestal que não aceitou minha “proposta” e me submeteu ao mais justo vexame, teve sua cabeça esfacelada por um tiro de espingarda, dentro da própria Reserva. Ele perseguia um caçador de poleiro, desses que armam a rede embaixo de uma fruteira para abater os bichos que vêm em busca de alimento. Estava acompanhado de seis agentes e, como era noite, foram seguindo a picada do caçador, utilizando lanternas. Quando chegaram embaixo da rede e perceberam que o caçador estava por ali, começaram a clarear para todos os lados. Foi quando viram a rede. Nesse momento, o caboclo disparou a menos de sete metros e o carrego que havia sido posto para abater antas ou onças, levou a cabeça por inteiro do agente. Ato contínuo, foi metralhado pelos demais agentes. Os jornais da época noticiaram o fato fartamente.
Antes de me mudar para Imperatriz, recebi a visita de um senhor que possuía milhares de alqueires de terras na cidade hoje conhecida por Ulianópolis. O homem me prometia “mundos e fundos”: um negócio irrecusável, principalmente para quem já estava possuído pela ideia fixa de morar por essas bandas. Quando cheguei a Ulianópolis, o homem estava viajando. Durante a noite, meu cunhado Arlindo que me acompanhava, disse que precisaríamos ter cuidado para não sermos enrolados, pondo nossos familiares em dificuldades. Respondi-lhe brincando:
– Não se preocupe: o Cícero proverá.
Pois bem, lá pela madrugada fomos acordados com a notícia de que a pessoa que esperávamos havia chegado… morta. Sem condições de realizar qualquer tipo de negócio, retornamos. Depois, ficamos sabendo que o homem era valente, cruel e que, certamente, estaríamos encrencados se houvéssemos efetuado qualquer negócio com ele.
Há ainda dois outros casos que, coincidentemente, deixam-me confuso, mas que evitarei relacionar, porque os familiares são meus amigos. Não bastasse, acredito apenas numa grande coincidência e jamais em qualquer força vingativa controlada pelo meu velho e estranho amigo Cícero.
“Hoje, o Dr. Pedro, meu velho amigo e companheiro de caçadas, está vencido pela dependência do cigarro e da bebida. Não caça mais, continua acendendo um cigarro com a guimba do anterior e tem sempre, à cabeceira da cama, um copo e um litro de whisky. Sua lucidez continua imune ao álcool e à nicotina. Interpelado por mim sobre reconhecer o mal que estava se fazendo, respondeu-me: “Parar pra quê, se é isto que me motiva a viver mais um pouco?”

AINDA O DR.PEDRO
Não o matei por um triz!
Apesar de todos os perigos da floresta, das represálias de meu saudoso pai e das constantes ameaças dos agentes florestais, bastava surgir um feriado para que eu esquecesse tudo e me embrenhasse nas matas mais uma vez. Meu pai costumava dizer que, se ao invés de eu convergir para as caçadas, tivesse escolhido as drogas, Pablo Escobar não seria digno de descalçar minhas botas.
Como todo principiante, logo que o Dr. Pedro (clínico geral) começou a fazer parte do grupo dos dependentes, a sede veio-lhe insaciável. Até em seus meios-dias de folga ele vinha à minha casa “pressionar-me” a lhe fazer companhia. Eu só não aceitava se já tivesse assumido compromisso com o futebol: minha outra grande paixão.
Dessa vez, iríamos para um canto das matas da Cia. Vale do Rio Doce. O diabo é que, para chegar lá, tínhamos de passar pela sede dos Calimans. Apesar de amigos, eu já não tinha mais cara para, todas as semanas, estar avisando a eles que iria caçar por lá. O Dr. Pedro, para evitar tal constrangimento, teve uma ideia.
Eu trabalhava, nesse tempo, com análises clínicas de laboratório, numa sala contígua ao escritório dos meus grandes amigos Guido, Ermando, Antério e Elpídio Calimam. E o Dr. Pedro, passando pelo laboratório, viu na parede, uma foto aérea ampliada das matas que formavam o bloco Calimam, Vale do Rio Doce e Reserva Sooretama. O outdoor era tão nítido que até os picadões que dividiam os talhões podiam ser percebidos. Conversa vai, conversa vem, fotografamos o quadro e passamos a fazer cálculos em cima dele. O plano era entrar antes da fazenda dos Calimans (assim não precisaríamos lhes pedir nada) e, por meio de uma bússola, abrir uma picada que passasse por fora da sede e fosse dar na divisa das terras da Vale com a Sooretama. Para tanto, tínhamos de partir de um ponto em que o carro ficasse bem escondido, não só dos agentes florestais, mas também dos Calimans. Depois de muitos estudos e cálculos, resolvemos pôr em prática o nosso “projeto”.
Escolhemos uma estradinha abandonada e escondemos o carro um pouco antes das terras dos Calimans. Andamos uns 800 metros para atingir o ponto que imaginávamos ideal. O doutor Pedro retirou o mapa do bolso, posicionou a bússola e eu comecei a picada. O trabalho do Pedro era o de um agrimensor e o meu, de um modesto abridor de picadas. É bom lembrar que, nesse tempo, nem se falava em GPS. Nosso objetivo era chegar a um dos cruzamentos dos picadões da Vale, conforme o traçado de nosso mapa. Se nosso plano desse certo, teríamos toda a floresta da Vale e também a Federal à nossa disposição, sem depender de ninguém.
Não imagina, amigo, nossa satisfação, nosso orgulho, nossa agradável surpresa quando, depois de três horas de Corneta amoladíssimo, encontramos um picadão. A encruzilhada almejada não estava nem a 20 metros do local pretendido.
O doutor Pedro, sempre com presença de espírito aguçada, eximiu-se da diferença:
– Esses 20 metros são devidos à sua teimosia em não obedecer às minhas coordenadas.
Abraçamo-nos, comemoramos e logo descemos para o valão à direita, onde armamos um barraco precário para passar três dias. As redes seriam armadas ao cair da tarde, quando voltássemos. Não podíamos perder tempo. Afastamo-nos um pouco, armamos nossas choças e começamos a piar. Abatemos um macuco e dois chorões. Às 18h retornamos ao local em que havíamos deixado as coisas. Famintos como sempre, antes de qualquer outra coisa, reviramos os picuás e comemos pão com salame. É que, nesse tempo, qualquer traça me invejaria. Acho que puxei muito a meu velho pai: até para uma viagem programada de apenas algumas horas, ele não abria mão de um bom naco de polenta com linguiça e queijo.
Depois do pão com salame, resolvemos ajeitar as redes. Nisso, uma dorzinha de barriga fez com que eu fosse, antes, procurar um lugar para me aliviar. Por fatalidade, no exato tempo em eu me encontrava agachado a uns 30 metros do improvisado barraco, o Dr. Pedro resolveu procurar uma varinha adequada para sustentar o plástico sobre sua rede, já que Linhares sempre foi imprevisível em termos meteorológicos. A essa altura, a noite já caíra plenamente.
Eu estava lá no meio da mata, agarrado a um varão, fazendo força para me livrar de mais uma ressequida bolota: calvário, por sinal, de toda família. Se por um lado fazemos um “parto” diário, por outro, nunca gastamos um centavo com papel higiênico. Nesse mundo é sempre assim mesmo: não há mal que não traga um bem. Lei simples e universal das compensações.
Na mão, uma latinha de repelente em aerossol para afastar as insaciáveis muriçocas. E não é que o Dr. Pedro resolveu vir, com uma vela acesa na mão, procurar, exatamente ali na moita em que eu me encontrava, a desgraçada da “varinha ideal”? Sem sequer imaginar as consequências, quando ele se aproximou de mim olhando para cima, pressionei o spray na chama da vela. Uma baforada que qualquer dragão assinaria embaixo foi para cima dele, que caiu desmaiado entre as folhas, com estranhos espasmos. Vendo a “merda” que eu havia feito, ergui as calças e fui socorrê-lo. Ele respirava com dificuldades e logo começou a ter ânsia de vômito. Um pouco mais e lhe sobreveio uma diarreia infernal.
Como aconteceu com o Neném, no Areão, às 2h eu estava deixando o Dr. Pedro no Hospital Menino Jesus, em Linhares. O mano Jayr, que também era médico, diagnosticou com prazer nossa desdita:
– Apenas uma pequena “cagada” em relação àquela que fariam se continuassem lá.
Todas as nossas coisas ficaram espalhadas pela mata, pois nem as redes recolhemos. Com certeza, não o matei por pouco.
Naquela noite pedi a Deus, antes de dormir, que me livrasse das molecagens. Por falta de fé, ou porque até Deus achou que o desafio seria comprometedor, ainda hoje, já pertinho dos 70, continuo mais moleque que antes. Ô sina! …
Ainda no hospital, porém já refeito, o Dr. Pedro observou:
– Juro, eu estava pensando no diabo quando você teve a “brilhante” ideia de me lançar aquele fogo na cara! Feliz ou infelizmente, ainda somos o resultado do que pensamos: era o diabo.

O MUTUM QUE CHUPAVA LARANJAS
E, mais uma vez, o Dr. Pedro
Um feriado que surge, uma conversinha à noite, uma saída pela madrugada e lá estávamos nós, o doutor Pedro, meu sobrinho Neivaldo e eu, numa encruzilhada de picadões da Cia. Vale do Rio Doce.
A Cia. Vale do Rio Doce possui, entre o município de Linhares e o de São Mateus, no Espírito Santo, aproximadamente, 20 mil alqueires de matas virgens. É a maior área de Mata Atlântica em bloco compacto, por lá, e, suponho, no Brasil. Quando em vez a Vale desmatava pequenas áreas para algum projeto, normalmente, plantio de eucalipto, o que não condizia com a badalada pregação que ela fazia de proteção ao Ambiente.
Com o passar do tempo, o tiro saiu-lhe pela culatra, pois já não vejo qualquer possibilidade de retirada da mata original para plantio de eucalipto, segundo a comoção mundial de obrigar o Brasil a suprir-lhes a irresponsabilidade que cometeram no passado.
Embora pequenas em relação à Amazônia, as áreas remanescentes de Mata Atlântica pertencentes à Vale e ao Governo Federal, localizadas no município de Linhares – ES, são de valor inestimável. Somente os jacarandás, louros, perobas do campo, moçutaíbas e jequitibás, ali ainda existentes, dariam para sanar a dívida do Estado.
A fauna, embora não seja tão rica em espécies, apresenta quantidade somente vista no estado do Mato Grosso. Macucos, chororões, jaós, tururins, urubas, mutuns, jacupembas, jacutingas, antas, veados, tatus, quatis, ouriços-cacheiros, gambás, cobras, porcos do mato, caititus, onças, jaguatiricas, gatos do mato, harpias, macacos de várias espécies, lagartos, sapos…, tudo ali existia em profusão. Os barbados, antes em grande quantidade, já não são encontrados por lá. De carne apreciada pelos autóctones, e de fácil localização, foram um dos primeiros a desaparecerem.
Com o senso ecológico ainda capengando e com os poucos agentes florestais ali destacados e razoavelmente corrompíveis, a gente, sem o mínimo de escrúpulo, “deitava e rolava”. Não demorou para que levássemos macucos fresquinhos para alguns agentes saborearem. Como percebem, a coisa vem de longe! Hoje, a corrupção entristece-me, enoja-me, mas nada havia mais satisfatório naquele tempo do que corromper os agentes para satisfazer a minha mais séria dependência: caçar.
Chegando à encruzilhada, que era nosso destino, decidimos que o Dr. Pedro iria para a direita e que meu sobrinho, para variar, sempre chamado de Arcidi Gripa, acompanhar-me-ia pelo lado oposto, pois aquela era uma de suas primeiras visitas à floresta e precisava ser vigiado de perto.
Caminhando vagarosamente pelo picadão, eu ia piando e quando algum inhambu respondia, eu deixava meu sobrinho na frente e piava para que ele atirasse. Assim passamos quase todo o dia. Às 15 horas, resolvemos voltar, já que o encontro na encruzilhada havia sido estabelecido para as 18h.
Lá pelas tantas, meu sobrinho, que ia à frente, parou de chofre, apontou para alguma coisa do lado direito, depois, muito nervoso, fez sinal para que eu me aproximasse.
– É um mutum! Olhe lá, em cima de um pau caído.
Com o clima criado, o bicho que se mexia lá por detrás de uma densa moita, parecia-me mesmo um belo cracídeo de barbela alaranjada.
– Atire o senhor que tem mais prática – disse-me ele… protegido pela graça de Deus.
Então, procurando melhor visibilidade, continuei perscrutando, pois me parecia ver apenas o bico. Tinha-se a impressão de que o mutum estava se coçando ou beliscando alguma coisa. Agachando-me um pouco, movimentando a cabeça de um lado para o outro, acabei descobrindo que não era um mutum, e sim, o Dr. Pedro que, distraidamente, chupava uma laranja.
Quando percebi isso, sobreveio-me um calafrio na espinha. Meu sangue escondeu-se no baço ou em um canto qualquer do corpo. O susto foi tão grande que meu sobrinho, preocupado, observou:
– Tio, o senhor está passando mal? Está branco como uma vela.
– Nada, não! O mutum que está lá dá pra gente apanhar com as mãos mesmo. Nem é preciso gastar uma bala. É mansinho. É só dar um assovio e ele virá aqui aos nossos pés.
Meu sobrinho avançou mais e, ao ver o Dr. Pedro inteiramente, ficou mais branco que eu. Por um triz não liquidamos o inconsequente companheiro.
Reunidos, cobramos-lhe agressivamente a displicência, pois se vir atrás da gente já fora um erro, muito pior foi entrar sem deixar sinal e ainda ficar quietinho, na pior distância possível, chupando laranjas.
Com certeza ele deu muita sorte, porque naquele tempo nada se mexia sem receber uma varrida de chumbo de minha espingarda.
Na verdade, caçar é um esporte que oferece muitos riscos. O maior deles são os próprios caçadores. Um principiante ou um veterano inconsequente serão sempre uma ameaça, tanto para si como para quem estiver com ele.
Certa vez, em Rondônia, meu cunhado Arlindo, o Quoque, e eu saímos para empoleirar uma azulona. A noite chegava e havia uma piando fogosamente, bem à nossa frente. Enquanto eu permanecia piando para mantê-la excitada, meu cunhado ia andando com cuidado para o lado da ave, a fim de que pudesse flagrá-la alçando ao poleiro. O galináceo respondia a todos os meus piados. Quando já estava muito próximo – tanto que meu cunhado imaginou abatê-lo no chão – eis que por detrás de uma catana, um grosso cano começou a se virar em sua direção: era outro caçador que, ao ouvir os pisados de meu cunhado, imaginou ser a ave que se aproximava, ou então um outro bicho qualquer. Ao perceber o perigo, meu cunhado gritou a todo pulmão:
– Êpa! Não atire! Não atire! É gente.
O homem saiu do esconderijo e retornou conosco ao barraco. Era um índio aculturado que esperava abater qualquer coisa para o jantar. Disse que cuidava de roça e que aquela era a primeira vez que tentava caçar uma tona, porque bicho de pelo já estava escasso. Ele jantou com a gente. Meu cunhado logo se deitou: nem um cafezinho bebeu. O susto tirou-lhe a fome.
Depois que o índio foi embora, cheio de insônia, meu cunhado, que nunca dera qualquer demonstração de raciocínio lógico, observou:
– Estou pensando na covardia que fazemos aos bichos. Coitados, eles vêm distraídos, certos de encontrar o companheiro, e são recebidos, traiçoeiramente, a chumbo.
Para variar, pilheriei:
– Aleluia, pessoal! O Quoque pensa também.
É que nunca, nos tantos anos em que caçamos e convivemos, meu cunhado dera qualquer sinal de preocupação, principalmente com a Natureza. Vivia como nossos amigos que não pensam: indo e vindo pela intuição. Atirava pelo prazer de matar, pisava flores, derrubava açaizeiros para comer a cabeça, enfim, parecia um caititu em busca, apenas, da sobrevivência. Não tinha medo de nada. De NADA mesmo, sem qualquer restrição. Vivi momentos com ele cuja simples lembrança ainda me causa arrepios.
Depois de caçar na Reserva, já na orla da BR, enquanto aguardávamos a condução que viria nos buscar às 20h, ele se atirava no meio do capim entre o acostamento e a mata, e roncava como se estivesse em sua própria cama num domingo após o almoço. Os guardas que faziam a ronda passavam de carro pra lá e pra cá pela estrada, a menos de 10 metros da gente. Agachado atrás de uma moita bem densa, eu sentia meu coração sair pela boca, enquanto ele dormia o sono dos justos. Caçou por mais de 20 anos na Reserva Federal e nas matas da Vale e, mesmo assim, nunca foi pego. Com certeza, o medo e o sentimento de culpa não são bons atributos a quem se dispõe a burlar ou passar por cima da Lei. Enquanto eu, ainda hoje, sonho com aqueles guardas me perseguindo, meu cunhado confessou-me que jamais sonhou com eles atrapalhando suas caçadas.

CAÇADA NO RIO PIMENTA BUENO
Frustração e loucura
Depois de mais de três mil quilômetros percorridos numa Kombi caindo os pedaços, esbarramos, em Rondônia, numa centena de caminhões parados. Encostamos atrás e fomos nos informar sobre o motivo:
– Há, na frente, 20 quilômetros de areão. Muitos caminhões estão fincados nele e o exército está tentando resolver o problema.
– Desde quando você está aqui?
– Cheguei há pouco, mas aquele lá da frente já espera há três dias.
– Três dias?
– E dizem que não há previsão para quem está chegando.
Olhei o relógio: 13h. O calor e o sol estavam insuportáveis e não tínhamos água. Éramos nove malucos e tomamos uma decisão: passar pela lateral onde fosse possível e, pelo mato, nos lugares em que a estrada estivesse totalmente tomada. Da lataria da Kombi não havia qualquer ciúme, pois não podia ficar pior. Tendo a maioria concordado, iniciamos a via crucis. Elegeram-me para o volante. Os outros oito seguiram a pé empurrando a lata velha nos lugares mais críticos. Sinceramente, se cada um tivesse oferecido o sacrifício em reparação a seus pecados, ainda sobraria saldo para 20 anos de vida desregrada. Fomos alcançar terra firme, do outro lado, às 8h do dia seguinte.
Acredito ser desnecessário descrever o estado de cada um, mesmo porque, nem um especialista em adjetivos dramáticos se aproximaria do estado em que nos encontrávamos. Eu mesmo, que passara toda aquela tensão ao volante, sempre em primeira e de “pé em baixo”, não entendia como a Volkswagen conseguira fabricar um motor tão resistente. O marcador de gasolina estava em baixo há algum tempo, mas ainda o motor funcionava sem ratear. Acho que quando alcançamos o posto, logo na frente, não havia meio litro de combustível no tanque.
Depois de abastecer, fomos atrás de água, e de um cafezinho na lanchonete do posto. Teve gente que dormiu na cadeira, sem tomar o café que estava na xícara. Por isso, resolvemos só sair dali depois do almoço. Paramos embaixo de uma árvore e em poucos minutos qualquer um podia levar a Kombi e até os passageiros. Somente ao meio dia um ou outro começou a despertar. Tomamos banho, almoçamos e, mais animados, partimos para Vilhena.
Era um lugar pequeno, desses que se formam a esmo no meio da floresta, nessa estúpida busca de terras e de enriquecimento ao custo, para muitos, da própria vida.
No posto de combustível da cidade, perguntamos onde encontrar um bom lugar para caçar azulonas, porque eram elas a justificativa de toda aquela loucura. Informaram-nos o rio Pimenta Bueno e também o endereço de alguém que podia nos levar até lá. Fomos à casa do homem, nas cercanias do vilarejo. Atendia pela alcunha de Carretel, mas só mais tarde fomos descobrir a origem do apelido: era o homem mais enrolado da região. E foi com esse cicerone que resolvemos chegar ao rio Pimenta Bueno, através de uma estrada há muito abandonada. Tanque cheio, entusiasmo no limite, lá fomos nós.
A estrada (se assim se pode chamar uma vereda estreita que arranharia as laterais até de um fusquinha) fora feita a machado e facão por madeireiros, e estava abandonada havia não sei quantos anos.
Novamente, sempre em primeira, palmo a palmo, lá fomos nós. Era difícil percorrer um quilômetro sem que o pessoal descesse para retirar empucas. Em todo valão, um novo desafio: não havia ponte. Tínhamos de construí-la. Cortávamos e arrastávamos varões, firmávamos tudo com cipós e forquilhas e arriscávamos. Um chamador na frente, e os demais companheiros divididos pelas laterais firmando a Kombi com as mãos. Às 15h, sem saber a quantos quilômetros estávamos do rio Pimenta Bueno, a gasolina acabou.
Carretel nos acalmou, dizendo que estávamos a menos de cinco quilômetros do rio e que ele tinha gasolina lá e iria buscá-la. No fim daquela picada abandonada, o Carretel mantinha um ponto de apoio a quem alugasse seu barco. Enquanto aguardávamos, ficamos cozinhando um arroz para matar a fome. De fato, em menos de duas horas ele retornou com 10 litros de gasolina misturados com óleo para motores de barco. Colocamos no tanque assim mesmo e, rateando, conseguimos chegar. Novo cansaço, novo descanso.
O rio era lindo, as matas maravilhosas. Os peixes vinham à tona e eram grandes. Mutuns, jacutingas e jacus podiam ser vistos nas margens. Para um caçador, não há cansaço que resista a um tônico desses. Foi preciso uma ordem do “chefe” para que algumas espingardas não fossem logo montadas.
Muito esperto, o Carretel disse que, “bom mesmo para caçar” era no Taquaruçu, um lugar que ficava mais abaixo, a um dia de canoa a motor. Depois de tanta aventura, não iríamos deixar o “melhor lugar do mundo” para outros aventureiros. No outro dia cedo partimos para lá. Às 16 horas, ele parou na margem esquerda do rio e disse:
– É aqui.
Pela quantidade de mutuns vistos pelas margens, não duvidamos. Confiamos ainda mais quando ele parou numa das margens e nos levou para ver o “barreiro”, um buraco com aproximadamente 100 metros quadrados, com um metro de profundidade, todo ele feito por antas, porcos, veados, pacas, jacus, papagaios, araras, mutuns e outras aves que ali haviam encontrado um grau de salinidade elevado.
Naquele tempo eu não levava comigo senão a espingarda e a vontade de matar. Nem uma foto foi tirada, mas aquela lembrança ser-me-á sempre o mais cruel castigo de não possuir uma filmadora para mostrar quão surpreendente é a Natureza. Eram centenas de pássaros e dezenas de animais que ali se refestelavam, tanto que, ao esvoaçarem ou correrem por causa de nossa presença, deixaram-nos assustados. Para eles, no entanto, devia ser normal, porque viviam fugindo do ataque de predadores naturais e retornando, teimosamente, para degustarem a terra salgada do lugar.
Mas, aquilo nos servia apenas como bom augúrio, pois havíamos enfrentado todo o desgaste até aqui descrito, unicamente para caçar azulonas. Se elas não existissem ali, todo nosso sacrifício seria em vão.
O Carretel garantia que havia muitas, embora nunca tivesse se interessado em caçá-las. De fato, para quem abate apenas para se alimentar, seria estupidez passar horas numa choça para conseguir dois quilos de carne, quando, em segundos, podia abater caças que dariam para abastecer sua cozinha por uma semana.
Logo que descarregamos as coisas na orla do rio, o Carretel retornou, deixando-nos sem qualquer comunicação com o mundo. Se acontecesse qualquer acidente grave, estaríamos à mercê da sorte. Agora era torcer para que, nos próximos 20 dias, nada de ruim acontecesse a um de nós.
Em poucas horas o barraco estava pronto. Ficara bonito. Varremos todas as folhas secas, preparamos a cozinha, estendemos as redes e armamos as barraquinhas. O lugar do banho era paradisíaco: a copa de uma imensa jarana recurvada beijava um saguão de pedras que se estendia a mais de 10 metros rio adentro. A gente descia, pendurava as roupas nos ramos da jarana e se banhava com toda segurança nas pequenas piscinas que se formavam entre as pedras.
Infelizmente, não podíamos arrefecer os corpos desnudos, porque milhões de mutucas infestavam a região. E eram tabanídeos de muitas espécies, tendo como carro-chefe um que parecia um besouro de garrocha. Quando uma conseguia ferrar, a 30 metros a gente sabia, porque o grito, acompanhado das mais inventivas imprecações, era ouvido nitidamente. Estando acordado, era mais fácil a gente se livrar delas, porque eram grandes, pesadas e estabanadas. O pior era quando estávamos com as fardas. Elas pousavam, ajeitavam-se e, quando enfiavam a “garrocha”, era um salto que João do Pulo não se negaria assinar. Como sobremesa, os terríveis borrachudos. Imperceptíveis, sorrateiros… A gente só sabia de sua existência pela alergia que causavam e pelos carimbos que deixavam na pele.
A primeira noite passada ali foi animadora. Não havia pernilongos e os borrachudos e as mutucas se recolhiam. Mesmo assim, não pudemos dormir. É que fizemos nosso barraco exatamente numa passagem de animais silvestres. Para completar a barulheira de pacas e tatus, duas antas se desentenderam perto e, sem saber de nossa intromissão, passaram por dentro do barraco. Foram gritos, risadas e comentários até o amanhecer. É que uma esbarrou na rede do Osvaldo Guimarães e entre o trompaço e o susto, ele saiu gritando por socorro, dizendo que estava sendo atacado por uma onça.
Quando amanheceu, mais armados que o bando de Lampião à espera da guarnição policial, saímos para o primeiro dia de aventura. A ordem era abater apenas azulonas. Antas e outros bichos, nem pensar. No segundo dia, conforme o resultado, alguns precedentes seriam abertos, devidamente especificados.
Era a primeira vez que visitávamos Rondônia e por isso não conhecíamos o pé-de-serra (Tinamus Guttatus), nem o macuco de topete ou macucau (Tinamus Major olivascens) que viviam por lá. Nunca tínhamos ouvido seus piados e ninguém sabia imitá-los. Além disso, somente no final da caçada nos demos conta de sua existência. Um macuco de topete achou de empoleirar pertinho do barraco e o Osvaldo o abateu. Mais tarde, eu, imitando aquele piado esquisito, próprio do pé-de-serra, acabei abatendo um Guttatus.
Enfim, o primeiro dia. Antes mesmo de escurecer, todos os caçadores chegaram. Cada um se apresentava mais curioso do que o outro, querendo saber como tinha sido o dia dos companheiros.
Ninguém matou nem ouviu uma única azulona piar. Devia ser coincidência… ou azar. No dia seguinte ficaríamos sabendo.
Mesmo assim, foi liberada a caça aos mutuns, jacus e jacutingas.
E, novamente, no segundo dia, nada de azulonas. Até os mutuns, jacutingas e jacus, tão comuns pelas margens do rio, não eram vistos mais. Talvez estivessem todos no barreiro que ficava a uns cinco quilômetros do lugar em que nos encontrávamos.
Com dois dias de fracasso total, o chefe da caçada liberou geral, porque nem carne tínhamos mais para misturar ao arroz. Combinei com meu velho e inseparável companheiro, o Quoque, uma entrada daquelas de Antônio Raposo Tavares, com probabilidade de atravessar a Chapada dos Parecis e atingir a divisa com a Bolívia. Não iríamos trocar, tanto sofrimento da inesquecível viagem, por nada. Venderíamos caro nosso sacrifício. E os bichos que se cuidassem, pois estávamos irritados, frustrados e com os nervos à flor da pele. O diabo é que nem procurar outro lugar podíamos mais, pois o Carretel só voltaria no final da caçada.
Quoque e eu partimos. Arroz na mochila, bússola na mão, picada reta rumo ao chapadão. Quando um cansava, o outro sacava o facão e continuava. Depois de duas horas, encontramos uma cova de pedras. Alguém teria morrido ali havia uns 10 ou 20 anos. Seria caçador picado por cobra? Um índio? Resolvemos desenterrar. Durante uma hora retiramos pedras que não sabíamos onde o sepultador havia encontrado. Depois esbarramos numa terra dura. As cavadeiras de pau improvisadas não resistiam à escavação e a tentativa final com os facões, também foi infrutífera. Desistimos, com a opção de voltar ali levando um enxadão. Se os macucos piassem, certamente retornaríamos.
Desistido da exumação, metemos o facão outra vez, sempre em linha reta, buscando um lugar em que seríamos os primeiros. De repente, alcançamos um baixadão repleto de palmeiras entre as perobas-rosa que havia em profusão. Mais um pouco, uma nascente de águas cristalinas e geladas. Ali sentamos, comemos o arroz que levávamos, tomamos um banho reparador, sempre emitindo piados localizadores de azulona. Foi então que, como um canto de querubim, aquele som que para muitos não poderia ser mais sem graça, aconteceu.
Entreolhamo-nos cheios de esperanças. O Quoque sugeriu que eu ficasse ali enquanto ele seguiria um pouco mais à frente e faria sua choça por lá. Assim foi feito.
Feita a choça, comecei a piar, usando de tudo quanto aprendera com o mano Adalho. Pelo piado, tratava-se de um macho e comecei respondendo fêmea, sempre depois de duas piadas dele. Isso significava que a fêmea estaria se fazendo de rogada, o que excitaria ainda mais aquele macho “afoito”.
Mas, não funcionou, porque ele não estava afoito. Então piei macho e ele também não demonstrou ser nem agressivo nem gay. Piei casal e ele não manifestou qualquer mudança de comportamento. Enfim, não ficou um só “macete” que não fosse improficuamente utilizado por mim. Senti saudades da companhia do Velhão, que sempre encontrava um jeito de ludibriar os mais espertos galináceos.
Desisti e fui pela picada do Quoque. Encontrei-o desolado, sentado no chão, dizendo que nem tururim havia respondido. Queria voltar, dizendo que passaria o resto da caçada na rede. Estimulei-o dizendo que aquilo me soava como covardia, já que matar macucos no Mato Grosso ou em Linhares era muito fácil. Qualquer iniciante fazia. Queria ver ali.
Ferido em seu brio, ele resolveu ir mais em frente. Calculamos já estar a mais de três horas do barraco. Resolvemos, então, meter o facão por mais meia hora. Nesse intervalo, ele que administrava uma diarreia infernal, parou para aliviar-se. Afastei-me um pouco, porque “as cagadas” dele infestavam hectares de mata.
Logo à frente encontrei um toco de fácil acesso e resolvi subir nele e esperar pelo Quoque. E não é que meu cunhado foi encontrar o lugar ideal para suas necessidades exatamente numa moita em que dormia uma anta-sapateira? Assustada, ela disparou em minha direção, vindo parar a dois metros do cano de minha espingarda. Como a ordem era levar carne, não pensei duas vezes e mirei bem na testa. Ela caiu, ergueu-se e, aos tombos, foi parar entre as raízes de uma enorme embaubeira, muito comum por lá. Ali ela se imprensou e se debateu até morrer. Eu ainda estava a olhar a “merda” que havia feito quando o Quoque chegou:
– Desconfiei que tivesse feito isso – repreendeu-me ele. Agora pode se virar, pois nem vou meter a mão nisso, nem ajudar a carregar a carne para o barraco.
Depois de alguns minutos de boa conversa, meu cunhado resolveu ajudar-me. Nem a arrastar para um lugar melhor conseguimos, tal o tamanho. Para encurtar a conversa, só do filé e das carnes maciças dos quartos traseiros, conseguimos carne para arranjar problemas para nossas colunas até o dia de hoje. Passamos dois dias acamados, melhor dizendo, enredados, mas carne não faltou mais. Fizemos carne de sol e todos apreciaram.
Enquanto isso, peixes de até 50 quilos eram vistos mariscando no remanso, mas ninguém se lembrou de levar um anzol. O barulho que se ouvia na água durante a noite assustava. Era tanto peixe que conseguimos pegar um surubim usando pedaços de linhas de nylon emendados com um engasgo feito do cerne de roxinho. Ele engoliu e nós o tiramos do rio. Foi uma festa e uma realização pela criatividade herdada dos “sapiens”.
Na segunda semana, ninguém falava mais em azulona. A caçada fora um fracasso e teríamos de aguardar, ali, a chegada do Carretel. Se acontecesse alguma coisa a ele, nem sei o que seria de nós.
Passávamos o dia jogando damas, canastra, dominó e abatendo algum mutum, jacutinga ou jacu que passasse por ali. Um dia, de papo pro ar em sua rede, o Osvaldo atirou numa jacutinga e ela caiu em cima do fogão, revirando a panela de feijão apenas temperado. O que nos roubava o sono já não era o fracasso, mas, sim, o sofrimento por antecipação, imaginando a volta, com a saída da mata e o areão infernal que teríamos de desfazer.
Três dias antes do fim da caçada, resolvi voltar ao único macuco que foi descoberto naquela região. Ele respondeu e, cinco horas depois, chegou à choça. Parecia manso, distraído. Acho que ele era “o último dos moicanos” ainda ali existente. Por certo nem sabia mais o que era companheirismo, encontro, sexo… Pode ser até que estivesse apenas passando por ali, e não vindo para atender ao chamado do amigo… “urso”.
O retorno não foi tão ruim. Saímos da mata mais cedo do que imaginávamos, pois não havia mais entulhos na “estrada” e as “pontes” estavam feitas. Também o areão daquele tristemente memorável trecho de estrada fora piçarrado pelo exército e passamos normalmente. Ufa! …
Mas, falar em caçar azulonas em Rondônia, nem para passar o tempo quisemos mais. Ainda hoje me questiono: elas são raras por lá ou as caçamos no pior período possível?
É…., porque quando um inhambu está fora do período de reprodução, normalmente não responde e muito menos atende aos piados de chamamento.
Juro, porém, que o desafio de desvendar tal mistério nem me passa pela cabeça.

UM AZAR NA PIOR HORA
Agora, só brigando mesmo!
Grapuá, Quoque…, eram apelidos de meu cunhado e companheiro de fé, Arlindo. Não tinha medo de nada e, como eu, se utilizasse seus sacrifícios em perseguir os alígeros em prol dos necessitados, certamente faria inveja a Lutter King, Mahatma Gandhi, Irmã Dulce e até à Madre Teresa de Calcutá. O mano Ildebrando (sincopado para Brando) só participava de caçadas se fosse obrigado: não aceitava qualquer sacrifício para se divertir. Para sofrer, dizia ele, bastava o trabalho da roça.
Um dia, numa caçada no estado do Mato Grosso, mais especificamente no rio Sepetuba, resolvemos investigar uma área famosa em que, segundo os caboclos, havia mais azulonas que pardais em cidades. Mas, levavam-se quatro horas a pé para se chegar lá: coisa pouca para o Quoque e para mim, e verdadeira tortura para o Brando. Depois de muita insistência, ele concordou em nos acompanhar.
Saímos às três horas e quando o dia clareou já havíamos desfeito meio-caminho. Muitas vezes tivemos de usar de todos os argumentos possíveis para demover o mano da ideia de parar nos macucos que piavam ao longo da picada. Quando chegamos ao “famoso lugar”, o sol já bem visível. As árvores eram altas e as copas com folhagens densas e muitos cipós transformavam o dossel num telhado hermético, em que apenas poucos feixes de luz conseguiam chegar ao solo. Por isso, a mata era escura, úmida e muito limpa. O silêncio era tumular e os piados que emitíamos pareciam vibrar como se batessem em alguma concha acústica e retornassem. A bem da verdade, nem sei bem se a visão era linda ou fantasmagórica. Tinha-se a impressão que jiboias, sucuris, onças ou jacarés estavam a nos vigiar, esperando o momento oportuno para o bote. Confesso que senti um arrepio na espinha e não saberia precisar se foi de emoção ou de medo.
Paramos um pouco para comer alguma coisa, descansar e programar a caçada que iria, então, começar. Enquanto degustávamos coxinhas de chorões e sururinas fritas, emitíamos piados de macuco. Logo uma azulona respondeu próximo e o mano decretou:
– Eu fico nesta.
Terminamos de comer e combinamos: Brando ficaria ali, e depois seguiria em frente; Quoque iria para a direita e eu para a esquerda. Às 14 horas nos reuniríamos, ali mesmo, para retornar.
O primeiro que chegasse cortaria um ramo verde, jogaria no lugar marcado e seguiria na frente, caçando pela picada. O segundo, encontrando o ramo verde cortado, esperaria pelo terceiro, para que este não ficasse sozinho para trás. Combinado e jurado observância, tomamos rumo.
Tudo parecia perfeito. Matamos macucos e outros pássaros. O lugar, de fato, era maravilhoso. Pena que se gastasse quase meio-dia só para chegar a ele.
Como era de se esperar, o Brando não passou do lugar em que o deixamos, ainda que tivesse ficado com a opção de seguir em frente. Logo que abateu o macuco que piava, começou a caçada voltando pela picada. No lugar combinado, ao tirar o facão da cintura, viu que tinha um galho verde caído bem perto. O galho lhe pareceu ideal. Repôs o facão à bainha, apanhou o galho e o colocou no lugar que havíamos combinado.
Lá pelo meio-dia, imbuído da mesma intenção do mano, retornei. Achava que a melhor opção era voltar caçando pela picada, já que a distância era considerável e tínhamos ouvido dezenas de macucos piando à margem dela. Seria interessante porque, parando quando em vez para piar algum pássaro, o retorno seria mais suave ou, quando nada, menos cansativo. Ao perceber o galho, notei que não havia sido cortado a facão. Examinei-o: uma fêmea do besouro serrador é quem havia feito o serviço. Logo, ninguém havia passado por ali ainda. Então, joguei aquele galho para longe, cortei um bem típico, coloquei-o no lugar e fui voltando.
Em menos de meia-hora, chegou o Quoque. Também ele havia pensado como o mano e eu, mas chegara atrasado. Viu o galho, constatou que um já tinha ido e não teve outra alternativa senão ficar por ali esperando pelo retardatário.
As horas foram passando e quando ele percebeu que aquilo não era mais normal, começou a gritar e a atirar, chamando pelo retardatário. Com o sol declinando, cansado e angustiado de atirar e gritar, resolveu voltar para o barraco a fim de buscar socorro. Mais correndo que andando, depois de certo tempo ele deixou a maior parte do que carregava na picada e, apenas com o facão, a espingarda e a lanterna, foi desfazendo o percurso.
No barraco, às 8h30min, eu, o mano e mais dois companheiros já estávamos prontos para procurar o Quoque, quando percebemos um pequeno foco de luz que se aproximava. Era ele.
Quando viu que o mano e eu estávamos no barraco, perdeu a fala por alguns minutos. Depois, irrompeu em impropérios e palavrões, em acintes e desafios como jamais tínhamos ouvido. E se tentássemos explicar, ele mandava calar a boca, atacava de “veados” e “irresponsáveis”… ou até de coisas piores.
Diante de tanta revolta e por causa do desgraçado do físico avantajado dele (um metro e noventa, 102 quilos), eu e o mano preferimos acatar os ensinamentos de Cristo. Não era o que estávamos sentindo, mas com certeza, o mais sensato para aquele momento. Enfim, depois de uma ladainha que durou mais de meia hora, ele quietou. O silêncio tornou-se constrangedor. Ninguém ousava qualquer comentário. Como não dormi, percebi que o mano e ele também não o fizeram. Remexeram-se o resto da noite.
Pela manhã, éramos três burros empacados: Quoque, Brando e eu. Nenhum dos três dizia uma só palavra e as caras pareciam fazendas em completo abandono. Eu tomei a espingarda, apanhei alguns cartuchos e os pios e saí para fugir daquela situação constrangedora. Brando fez o mesmo e o Quoque não arredou pé do barraco. Dormiu o dia todo, emendando-o com a noite. Nem buscar as coisas que havia deixado para trás, ele foi.
A cama dele ficava bem no meio do barraco. Ele dormia no chão, encostado ao varão que sustentava o centro do barraco. O diabo, sempre muito criativo, sugeriu a alguém enfiar um prego no varão para que as espingardas fossem penduradas.
Quando retornei, o pessoal já estava jantando e o Quoque continuava deitado, amuado, com uma cara que dava medo, bem encostada no varão que já tinha, por cima, uma porção de espingardas penduradas no prego. Eu cheguei e fui logo colocar minha espingarda no lugar em que estavam as demais. Acho até que nem precisaria terminar a história, mas o certo é que o prego não resistiu e as coronhas despencaram diretas para o nariz do amuado Quoque. O estrago foi grande. O sangue escorreu aos borbotões. Entre a pancada e o susto, ele pulou de pé e eu afastei-me dois passos, postando-me em posição de defesa. Não estava certo de que ele fosse esperar explicações.
A coisa foi tão drástica e acidental, que ele mesmo ficou sem ação. Começou a estancar o sangue do nariz com a mão direita enquanto eu me aproximei e falei com seriedade:
– Quoque, acho que nem preciso dizer que foi acidental.
– Espero que tenha sido mesmo – respondeu ele ameaçador.
Fizemos o curativo e, no outro dia de manhã, mesmo com o nariz parecendo um pimentão maduro cheio de bolor, lá fomos nós, amigos inseparáveis, buscar a bagagem que ele deixara na picada. Antes de sair, pilheriei:
– Porra, Quoque, você acreditou mesmo que eu fosse capaz de abandoná-lo lá sozinho naquele ermo e naquela distância?
O desgraçado, passando a mão no narigão inchado e dolorido, vingou-se laconicamente:
– Acreditei!

RECAÍDA
Por uma velha amizade
Nem lembro mais o dia em que – depois do reconhecimento do crime que cometia caçando os inhambus – eu tomei uma espingarda nas mãos. Nem mesmo em minhas pesquisas pela Amazônia, em ambiente hostil e prenhe de perigos, eu costumo levar armas de fogo. Apenas meu facão Corneta e um terço trazido pelo meu sobrinho Pank, de Fátima, Portugal, e abençoado pelo meu santo amigo frei Elias Baldelli, fazem-me companhia.
O único medo que agora sinto é de algum imprevisto ruim causado pela idade, pela visão deficiente, pela falta de reflexo e pela insensatez de achar que certas coisas não irão acontecer comigo. Com certeza, sinto-me mais seguro andando sozinho pelas eternas florestas amazônicas do que caminhando aqui pelas ruas de minha pequena Imperatriz.
Mas há momentos em que achamos válido até uma justificada recaída. É que meu velho cunhado e companheiro de caçadas, o Quoque Grapii – já cansado, mais velho e doente do que eu –, pediu-me que abatesse alguma caça para ele levar para sua casa em Altamira. Não havia como negar. Logo argumentei à minha consciência, que falta alguma fariam possíveis inhambus predestinados a morrerem naquele dia. Centenas de outros estariam sendo devorados, naquele momento, pelos depredadores naturais. É…., não fariam diferença! Tomei uma espingarda emprestada e parti para a empreitada.
Parei o barco em determinado remanso, amarrei-o, alcei o picuá às costas, tomei a espingarda e, vagarosamente, subi a rampa. As margens do rio Uruará, em determinados pontos, são curtas, mas muito íngremes. Quando cheguei ao início da chapada, logo arriei o alforje, retirei a cadeirinha, sentei-me confortavelmente e comecei a enxugar o suor que me embaçava os óculos. Enquanto descansava, fui emitindo piados esparsos de azulona, macuco-de-topete e pé-de-serra.
Os inhambus das florestas amazônicas piam bem menos que os da Mata Atlântica. Pode até ser que, também os do Leste, no tempo em que o equilíbrio era feito naturalmente, agissem do mesmo modo. O certo é que, agora, no restante da Mata Atlântica, os inhambus piam muito, mas muito mais mesmo do que os da Amazônia. O motivo talvez seja a menor presença de predadores, principalmente gatos e gaviões. Contrariamente, na Amazônia, se quiser atrair um gavião, é só piar além do normal que logo um pousará por cima da choça. E isso acontecendo, pode ir mudando de lugar, porque nem pararis arriscam mariscar mais nas imediações.
Já descansado, retirei a bússola, estabeleci a direção e parti, quebrando ramos aqui e acolá para garantir-me a volta. Ainda não estava a 50 metros quando, exatamente do lugar em que eu partira, uma azulona respondeu. Esperei um pouco até que piasse outra vez e a localizei plenamente. Voltei. Ainda procurava um lugar adequado para a choça quando ela piou muito perto de mim.
Aquele som mavioso encheu-me de ternura. Fosse em outros tempos, eu tremeria mais que um caniço ao vento. Agora, porém, eu não sentia desejo de abater qualquer animal, embora aceitasse a incumbência de satisfazer meu velho e cansado amigo de pretéritas aventuras.
Pensando em dar uma chance à fêmea ciumenta, apenas retirei a cadeira do picuá e me sentei, ali mesmo, no meio da floresta. A mata era limpa e eu via à considerável distância. Por se tratar de uma fêmea ciumenta e, com certeza, em reprodução, comecei a chororocar. Em menos de dois minutos, vi-a quase correndo em minha direção. Totalmente diferente dos meus tempos de implacável caçador, senti-me calmo, tranquilo, mais admirando do que apreensivo. Mesmo assim, ergui a arma e fiquei aguardando que se aproximasse ainda mais e me desse bom perfil para o disparo na cabeça. Meu velho companheiro ficaria decepcionado se eu a levasse com a cabeça pendurada no pescoço. Atirar na cabeça fazia parte na hora de classificar o caçador. Era preferível errar ou jogar a ave fora do que levá-la ao barraco aos pedaços.
Ela veio, veio…. Chegou a cinco metros de mim. Ali, ainda antes de notar que em frente havia um bicho esquisito, ela estufou o peito e piou desafiante. E eu ali, pontaria na cabeça, firme, sem tremer, calmo. Então, ela notou-me. Ao invés de correr, ficou a bater os pés nas folhas. Para sorte dela, comecei a pensar, a olhá-la: era linda, azulada, imponente… Como a Natureza a fizera linda!
A mira continuava firme em sua cabeça inocente. E ela ali, sem saber o perigo que corria, fitava-me curiosa. Emiti, com a boca, um piadinho de macho. Ela ficou imóvel. Apenas os olhos piscavam. Ao invés de correr, perscrutava, mesmo com “aquele bicho esquisito” em sua frente.
Foi o bastante: o coração e a alma falaram mais alto do que a amizade que nutro pelo meu velho amigo. Fui baixando a espingarda até recolocá-la sobre minhas coxas. E a azulona ingênua continuou onde se encontrava, esperando que a invasora se denunciasse para o devido acerto de contas. Afinal, aquele território era dela. Dela e de seu digníssimo parceiro.
Não sei o tempo que ela levou ali, parada. O certo é que, depois desse tempo, apenas desviando de mim, ela passou ao lado e foi piando intermitentemente.
Repus a cadeira na mochila e desci a rampa, tomando a canoa. Já não sabia o que fazer. Pra quê entrar na mata outra vez, fazer choça, piar, se não iria atirar? Se retornasse à casa da sede, não saberia o que dizer ao velho companheiro. Ele sabia que eu ainda estava em boa forma e não deixaria de levar-lhe alguns petiscos. E, nesse dilema, novamente liguei o motor do barco, subi uns 500 metros e entrei na mata novamente. Desta feita, nem localizei nada. Escolhi uma sapopemba, limpei-a bem, circundei-a com a choça feita com tecido para paraquedas, camuflei-a com folhas de açaí (encontrava-me próximo a um brejo), postei a cadeira e sentei-me.
Uma hora depois eu já havia ouvido tona, macuco de topete, pixunas, pés-de-serra e até um jaó piar. O lugar, para qualquer caçador de longa vivência, era mais que promissor.
De repente, vejo um grande vulto avermelhado passar entre as folhagens, caminhando transversalmente à minha choça. Assustei-me, porque o vulto era de um grande animal. Tomei a espingarda, então, como meio de defesa. De fato, o animal era grande: uma suçuarana. Esqueci meus bons princípios e tentei buscar a mira. Mas ela não parou um segundo sequer. Do jeito que aparecera, passou por mim e foi embora na direção do rio. Certamente estava sedenta. Como não quis atirar apenas para machucar, ela seguiu caminho e desapareceu. Meu coração bateu forte e a pequena sonolência que me rondava desapareceu completamente.
Uma hora depois, sem que os inhambus que respondiam pelos derredores chegassem, tornei a notar algo estranho entre as folhagens. Desta feita era um fornido “veado-cambacica” que, como uma sombra, farejava alguma fruteira por ali. Seria naquela hora ou nunca mais. Levaria o bicho para o meu velho amigo de fé. Não iria decepcioná-lo.
Enfiei o cano da espingarda pelo buraco da choça. No pequeno movimento, o bicho percebeu ou ouviu algo anormal, erguendo a cabeça e ficando em estado de alerta. Fiz pontaria e puxei o gatilho, rapidamente, para não fraquejar outra vez. Vi apenas um risco avermelhado desaparecer pela mata, em saltos que qualquer gazela do Serengeti, sendo perseguida por uma leoa faminta e determinada, assinaria embaixo.
Frustrado comigo mesmo, comecei a averiguar o que acontecera. Não era possível que aquela invejável pontaria de outros tempos tivesse chegado a tão vexatório estágio. Meti a mão nas palhas, afastei-as para observar melhor.
A menos de meio-metro da choça havia um varão. Seria ainda um varão, não tivesse eu retirado a parte de cima, transformando-o num toco de ponta esfarrapada.
Imagino que a simulação de uma enxaqueca tenha convencido meu companheiro a comer uma picanha fresquinha, retirada de uma vaca nelore sem futuro, abatida para alimento de meus sobrinhos e de seus empregados. Meus sobrinhos matavam duas por semana, porque, nesse tempo, a firma contava com mais de 100 funcionários e mais de quatro mil cabeças de gado.

MINHA ÚLTIMA CAÇADA
Por Nossa Senhora!
O Quoque foi, durante muitos anos, meu inseparável companheiro de caçadas. Por isso, dificilmente ele não consta de minhas narrações. Houve uma parte em nossas vidas que caçávamos todas as quartas, sábados, domingos e feriados que aparecessem. Alguns “santos” a gente até homenageava à revelia do Vaticano, por conta própria, somente para justificar a assumida compulsão por caçadas. Nosso lugar preferido era a Sooretama, Reserva Federal que margeia o rio Barra Seca, ou as matas da Cia. Vale do Rio Doce. Quanto mais vigiado e perigoso, melhor para nós, únicos loucos que desafiavam as autoridades florestais em busca de animais menos ariscos e em maior quantidade.
Depois de 20 anos nessa vida, formado na escola do mano Adalho, aprendi quase tudo sobre os inhambus. Cheguei ao ponto de reconhecer o sexo de um macuco que chegava, apenas pelo pisado característico nas folhas secas. Também gozava da fama de adiantar a espécie de pássaro que estava chegando sem piar. É que, além de caçá-los, eu os observava sempre, anotava suas reações e os estudava. Sabia, por antecedência – com um acerto de 80% – o macuco que não atenderia ao chamado, depois de ouvi-lo dar algumas piadas em seu habitat.
Meu cunhado não se prestava a isso, mas se aperfeiçoara em encontrar macucos no poleiro. Juntos, éramos um verdadeiro desastre ecológico. A nosso favor, apenas a atenuante de, literalmente, não ter consciência da extensão do mal que praticávamos. Meu cunhado, como diria Tolstóy, em outras palavras: nada mais via na mata senão bichos a serem caçados. Flores, árvores frondosas, cantos de passarinhos…, ele nunca, sequer, notava a presença.
No auge de nossa dependência por caçadas, resolvemos passar mais um sábado e um domingo dentro da Reserva Federal. Para maior desafio, resolvemos entrar a menos de 100 metros da guarita de fiscalização do IBAMA. Eram duas horas e os guardas de serviço estavam dormindo. Passamos pela guarita, confirmamos a facilidade, fomos um quilômetro adiante e viramos o carro. Ao retornar, garantimo-nos de que estavam mesmo dormindo, saltamos e entramos na mata. O carro seguiu para Linhares donde só voltaria às 20h, quando deveria parar no lugar em que encontrasse uma latinha de cerveja vazia e amassada. Em cada incursão a gente mudava a marca com o fito de despistar os agentes. Depois de alguns anos, havia tanta “sujeira” no acostamento que uma boa faxina se fazia necessária.
Até amanhecer, a caçada era de poleiro e ficava por conta de meu cunhado. Ele conseguia ouvir o piado, marcar a direção e ir parar a poucos metros da ave. Aí, a gente apagava as lanternas, emitia um piado e esperava que ele respondesse mais uma vez. Não era preciso mais que isso para que meu cunhado o achasse.
Normalmente, eu ia à frente fazendo a picada, e ele, sempre de orelha em pé, ouvindo e perscrutando o que se passava ao redor.
Como o caminho mais curto é o reto, resolvi furar uma empuca que havia em nossa frente. Estávamos dentro de um valão que nasce bem perto da guarita, onde há uma casinha com bomba Anauger para fornecer água aos guardas em serviço, lá no alto, no posto de fiscalização. Ao passar por ela, meu cunhado teve uma “brilhante” ideia: trazer uns 10 vidros de laxante e jogar dentro da caixa. Sacanagem era com ele mesmo… mas diziam que eu era ainda pior. Para sorte dos guardas, nunca mais voltamos lá e, mais à frente, saberão o porquê.
Pois bem, examinei a moita e vi que, de quatro, dava para passar por baixo da cipoada sem muita dificuldade. Então, enfiei a cara e fui rompendo. Foi quando ouvi um “Nossa Senhora!”, e senti um forte puxão nos fundilhos. Era meu cunhado que vira uma enorme surucucu-pico-de-jaca, já a um metro de altura, furibunda com a invasão de seu território. Eu tinha na mão direita o facão e na esquerda, a arma, uma 22 (flobé sueca) automática de 16 tiros simples ou oito duplos. Ao ser puxado para trás, para não cair, levei a mão esquerda para agarrar alguma coisa, mas apenas a coronha de minha arma encontrou um lugar para se firmar: a testa de meu cunhado que me socorria. Eu me equilibrei e ele caiu grogue, quase desmaiado, proferindo impropérios e jurando que da próxima vez deixaria a cobra me picar. Eu nem sabia direito o que estava acontecendo. Antes de verificar a cobra, fui examinar o grande galo que estava nascendo na testa de meu cunhado. Ele bufafa como um burro atascado, enquanto eu me desmanchava em pedidos de desculpas, nos quais ele jamais aceitou. Aliás, ele nunca acreditou que eu fizesse alguma coisa por acaso.
A surucucu estava lá, com a cabeça a um metro de altura, aguardando nossa decisão. Pelo jeito, ali ela não permitiria mesmo que passássemos. Mais calmos, resolvemos abater a cobra. Eu tremia tanto que precisei dar cinco tiros para convencê-la a nos ceder passagem. Com ela agonizando, seguimos viagem. A cada metro meu cunhado passava a mão na testa e me ameaçava dizendo que, nem que fosse no leito de morte, ele iria desforrar aquela. E não adiantava eu jurar que fora sem intenção. É que não seria “uma casual” que iria justificar as centenas que eu já lhe fizera, intencionalmente.
De qualquer forma, antes de clarear, já tínhamos no picuá, três macucos. Durante o dia, eu matei mais quatro e meu cunhado, mais três. Ao todo, até a noite chegar, 10 macucos. Junto com eles, dezenas de chororões, urubas, cotias e até uma veada. Mas a caçada ainda não havia terminado.
A casinha que continha a bomba d’água ficava a apenas 30 metros da estrada. Dela ouvia-se os guardas conversarem e até a batida dos carimbos nas notas fiscais dos caminhoneiros. Foi em cima de uma mureta dessa casinha que eu e meu cunhado nos assentamos para esperar o horário de sair da mata. A noite vinha chegando. O pica-pau avinhado avisou que era hora dos diurnos se recolherem e dos notívagos acordarem.
– Vamos afinar os ouvidos – sussurrou-me o Quoque –, é hora de os macucos empoleirarem. Quem sabe a sobremesa ainda será servida?
E foi. Eu não ouvi nada, mas os ouvidos sensíveis de meu cunhado constataram a batida das asas de um macuco, bem no topo do morro, na orla da BR. E ele nunca supunha: tinha sempre certeza. Então subimos e fomos verificar: lá estava o soberbo galináceo, sobre um grosso cipó, quase por cima da estrada, confiante nos protetores florestais. O problema, agora, seria disparar sem que os agentes ouvissem. Como houvesse tempo, combinamos que só o faríamos quando o primeiro caminhão velho, com escapamento danificado parasse na guarita e depois acelerasse para sair. Seria nossa chance de os guardas não ouvirem os estampidos.
Nesse tempo havia muitos velhos caminhões madeireiros que transitavam por ali. Era o auge da destruição da Mata Atlântica. E, de fato, um FNM sem descarga não demorou a chegar. A bem da verdade, se detonássemos ao mesmo tempo da aceleragem daquela geringonça, podíamos fazê-lo com um canhão. Nem radares sensíveis isolariam os sons. Contamos um, dois e três e apertamos os gatilhos. Como sempre, o macuco caiu. É bom que se diga que nunca, mas nunca mesmo, erramos um macuco no poleiro, quando atiramos os dois ao mesmo tempo. A gente contava: um, dois e tiro. Às vezes, ele ficava ferido por uma única bala, mas nunca nos preocupamos em saber quem teria errado.
Apanhamos mais aquele; agora, eram onze macucos. Nunca tínhamos conseguido tão desastroso feito. Nossos picuás não cabiam mais nada. Atravessamos a cerca e agachamos atrás de uma moita de arranha-gatos, ficando à espera do resgate. Às 19h50min, jogamos a lata no acostamento da estrada. Logo em seguida nosso carro passou, deu um toque na buzina para avisar que tinha visto o sinal. Foi além da guarita alguns quilômetros, virou e voltou, parando em cima da lata amassada. O motorista, meu sobrinho Cirão, saltou, abriu o porta-malas e a porta lateral e fez de conta que estava examinando algum problema. Saímos apressados, jogamos tudo dentro e desaparecemos na BR.
Não sei explicar, mas eu não estava feliz por aquele feito. Tínhamos chegado ao extremo. Até meu cunhado, com seu imenso galo na testa, observou várias vezes: desta vez exageramos! Foi demais.
De qualquer jeito, estava feito e restava, agora, tirar um sarro no meu velho pai, que nunca conseguira tal feito, apesar de ser um dos desbravadores da região. Então, sorrateiramente, entramos, e estendemos na cerâmica da cozinha tudo o que havíamos abatido. O espaço era grande, mas não havia um palmo sem um bicho morto. Chamei meu pai e disse-lhe soberbamente:
– Olhe aí, meu velho! Isso que é caçar. Quando o senhor desbravou estas matas havia muito mais e nunca conseguiu matar tanto.
Encostado no portal, estarrecido com o que via, meu pai permaneceu alguns minutos em silêncio e depois, como quem não duvidava do que estava dizendo, jurou:
– Por Nossa Senhora, se vocês fizerem isso outra vez, eu os denuncio ao IBAMA e à Polícia Federal.
Virou as costas e voltou desolado para sua poltrona, sem interromper a manipulação de uma bolotinha de arroz entre os dedos. Eu e meu cunhado ficamos sem saber o que argumentar, o que dizer, o que fazer. E aí, juntando as aves, comecei a passar as mãos em suas plumagens, a acariciar aqueles olhos lânguidos e a tomar consciência do crime que vinha cometendo contra a Natureza. Senti os olhos umedecerem. Meu cunhado, que sempre fora um gozador, ficou calado e cabisbaixo. Havíamos chegado ao fundo do poço.
Sinceramente, eu daria tudo na vida para me livrar daquele momento constrangedor. Então, lá no meu interior, com a dor do arrependimento apertando-me o coração, jurei que jamais os caçaria outra vez e que passaria o resto de minha vida estudando-os, criando-os para reparar o grande mal que cometera até então. Haveria de conscientizar os aficionados a procurarem um outro esporte que não fosse o de destruir uma das mais belas inspirações do Criador.

SANANDO A DÍVIDA
Com juros e correção
Em vista da “ameaça”, ou “conselho contundente” de meu pai, depois daquela autêntica demonstração de insanidade mental contra os animais, relatada no capítulo “Minha última caçada”, resolvi “pendurar as chuteiras”, ou, melhor dizendo, a espingarda. Tendo abandonado as caçadas, comecei a pensar numa maneira de capturar os inhambus e criá-los em cativeiro para repovoar áreas em que foram exterminados. Apanhá-los mortos já não me era segredo, mas vivos, aí a coisa se complicava. A maioria dos inhambus é arisca, enxerga maravilhosamente, nota qualquer alteração no ambiente e dificilmente entra em local recém-mexido.
Comecei minha tentativa com um sistema mais primitivo do que o rachar lenha com machado de pedra. Fui a uma serralheria, encomendei 10 quadrados de ferro 60×50 cm, cobri-os com um pano camuflado e os transformei em arapucas. Depois, comprei uma peça inteira de um pano verde, transformei toda ela em uma única tira com 20 centímetros de altura (isso resultou nuns 100 metros de comprimento) e fiz um grande círculo dentro da mata. De espaço em espaço do pano, eu deixava uma passagem e armava uma arapuca nele. A seguir, punha-me no centro e piava.
Até que funcionava para chororões, tururins, urubas e jaós, mas os macucos, quando entravam, arremessavam as arapucas aos ares e fugiam. Não bastasse, só mesmo meu sobrinho Nini para carregar, de um lado para o outro da mata, um saco de lona que pesava mais de 30 quilos. Redimia-me do pecado de matar os inhambus, mas incorria noutro pior: o de “trabalho escravo”, torturando meu sobrinho. Por sorte, ele estava no auge de sua energia. Era saudável, destemido, forte, músculo puro. Nunca conheci alguém com mais energia e disposição do que ele. Não bastasse, era inteligente e criativo em tudo sobre o que opinava. Observava e sempre apresentava uma opção coerente para resolver os problemas que iam aparecendo.
Bem, na terceira tentativa, deixamos na mata toda aquela geringonça. Desistia daquele sistema, mas não de bolar novas estratégias. Duas semanas depois estávamos lá de volta, agora com uma tarrafa enorme, feita especialmente para capturar pássaros. Estendíamos aquilo no chão, camuflávamos por cima com folhas secas e cercávamos as laterais com redes de pesca medindo 50 cm de altura. A armadilha ficava sempre entre o pássaro e o piador. Para chegar a nós, ele teria de passar por cima da tarrafa estendida. A orla da tarrafa era amarrada a um varão tensamente emborcado e preso por linha de pescar no lugar em que nos encontrássemos. Parte da estratégia deu certo, pois os pássaros vinham e, de fato, passavam por cima da tarrafa estendida. Mas, quando eu cortava a linha que prendia o varão, o bicho era arremessado a dez metros de altura. Meu sobrinho não perdeu – como nunca perdia – a oportunidade:
– Como catapulta, fomos além de Arquimedes.
E fomos mesmo, pois os pássaros eram lançados a 10 metros de altura e de lá mesmo aproveitavam para ir baixar em outro centro. Então, mudei o desarme, fazendo a tarrafa vir de cima. Não deu certo também. Gastava-se muito tempo para erguer, camuflar e espalhá-la e, quando a soltava, o pássaro escapava. Depois de um ou dois meses de inúteis tentativas, apanhei a tarrafa e dei de presente a um pescador.
A tarrafa não funcionou, mas me serviu para outra ideia. Percebi que a “coisa” teria de vir de cima para baixo mesmo, mas com algo mais funcional. Então, aprendi a tecer redes de nylon e parti para novas experiências. Fiz uma de três metros de comprimento por dois de largura. Enfiei pelas laterais um grosso elástico, cujas extremidades excediam-se por mais dois metros em cada ponta. Essas pontas eram fixadas no solo, bem esticadas. A seguir, bolei uma vara de alumínio oca, tendo na ponta uma haste móvel, semelhante aos velhos pinos de vitrolas para discos de vinil. A haste era sustentada por uma linha de pescar que descia por dentro do tubo de alumínio, saía por baixo e era amarrada dentro da choça em que eu piava. Eu erguia a rede elástica com uma varinha colocada sob ela e a firmava num dos lados da tal haste, segura, do outro lado, pela linha de pescar. Armava, sempre, uma em cada lado da choça, sendo uma a cinco e outra a 15 metros de distância, a fim de “atender” os mansos e os ariscos.
Para obrigar os pássaros a passarem por baixo, teci, com linha de pescar 0,20, quatro pedaços de rede com comprimentos variados, tendo, de altura, 20 cm. Essas redes eram posicionadas a partir da armadilha, uma para o lado da choça, outra, da armadilha para adiante. Assim, o pássaro que não viesse na direção certa, teria de corrigi-la, forçosamente. Tudo pronto, testei no quintal e, no primeiro fim de semana, parti para o mato.
Depois de uma hora de trabalho, com a roupa encharcada de suor, tudo estava pronto. Dez minutos de silêncio e, depois, os piados. Nesse primeiro dia o resultado foi esplêndido. Capturei um bando de urus, dois chorões e um jaó. Tudo o que veio e tentou passar pela abertura que continha a rede por cima foi aprisionado. Voltei cheio de mim, achando que havia “descoberto a pólvora”.
Logo na semana seguinte, retornei. Depois de encontrar um bom lugar e me arrebentar todo armando a geringonça, comecei a piar. E logo um macuco veio e, ao se deparar com tanta coisa esquisita, começou a bater os pés no chão e, por fim, afastou-se. Continuei insistindo e outro veio. Esse não estranhou tanto a “derrubada” que eu havia feito e entrou na armadilha. Cortei a linha, mas antes que eu chegasse, debatendo-se, ele rolou por baixo e escapou.
Desarmei tudo e voltei pensativo. Ainda não era aquilo que eu queria. Tinha de ser algo quase perfeito. Lembrei-me, então, que os pássaros menores não fugiam, porque as asas malhavam-se como se fossem peixes. Descobri que os buracos eram pequenos e não malhavam os pássaros com asas grandes. Por isso teci uma rede com malhas maiores e voltei para experimentar. O macuco prendeu-se, mas os pássaros menores fugiram pelos buracos. Bem, aí ficou fácil de raciocinar.
Voltei e coloquei duas redes, deixando a de malhas grandes por baixo. Para não chamar muito a atenção, escorei folhas de palmeira sobre a rede, enfiando os pés no chão para que parecessem naturais, nascidas ali. Voltei e, depois de duas incursões com sucesso, achei que estava bom, mas que devia pensar numa maneira menos cansativa e, também, menos agressiva ao ambiente. Com o tempo, fui notando que alguns pássaros se aproximavam e paravam a certa distância e que não adiantava continuar piando da choça, pois já tinham localizado o invasor e esperavam que este se apresentasse. Percebi que, se outro pássaro da espécie piasse pelos derredores, ele partia pra lá, celeremente.
Muitas vezes eles paravam a meio metro da rede e empacavam. Então, pensei: se tivesse alguém do outro lado e mais distante para piar, ele passaria. E foi assim que vieram as fitas, os alto-falantes, os gravadores, enfim, uma nova parafernália.
Procurei um técnico e logo mandei preparar o equipamento que imaginava. Bem, minha bagagem já pesava 30 quilos e isso não é fácil de aguentar, principalmente se o lugar for acidentado. Mas minha obsessão era grande e resistia a ponto de o mano Ildebrando observar:
– Sinceramente, se “caçar” fosse trabalho lucrativo, não existia ninguém no mundo mais trabalhador e rico que você!
E era verdade. Aliás, meu pai sempre repetia que se minhas teimosias se virassem para o mal, o mundo teria problemas. De fato, até hoje não mudei duas de minhas características genéticas: uma é a de só desistir quando a persistência for se transformando em burrice; a outra é nunca mais retornar depois de ter desistido.
Nesse tempo, minha ânsia era aperfeiçoar a captura de inhambus. Ainda hoje tenho verdadeiros amontoados de armadilhas, alto-falantes, fios, baterias, amplificadores, gravadores, linhas, redes… dentro de grandes caixotes abandonados ou esquecidos.
Bem, depois de anos e anos de experiências, cheguei, imagino, ao que há de mais prático e leve: o lacinho. Passei a carregar – não para aprisionar, mas para examinar e completar meus estudos sobre os Tinamídeos Brasileiros – um MD, um alto-falante, uma cadeirinha, três lacinhos, uma choça e os pios. Tudo não pesa três quilos. Levo no máximo 10 minutos para armar e a eficiência é de 90%. Nada de suadouros nem interferência no ambiente. Tudo é simples, funcional e eficiente. O pássaro não fica estressado, pouco se bate, não perde penas…
Com o lacinho, dei por terminadas minhas experiências, imaginando ter atingido o ápice em captura de inhambus, mas só Deus, eu e minha família sabemos o quanto essas experiências nos custaram.
À época, em menos de 30 incursões nos mais diferentes estados brasileiros, eu já havia conseguido quase toda a coleção dos inhambus brasileiros. Depois de um ano, começaram a reproduzir e já no terceiro ano eu levava filhotes adaptados para serem soltos nas matas. Começava aí o ressarcimento de minha dívida para com a Natureza. Mas, o tempo foi passando, a Lei endurecendo e, atualmente, apenas gravo piados, filmo e até capturo para fotos e pesagem, devolvendo a ave, em seguida, a seu habitat.

UMA SURUCUCU ATREVIDA
A desforra do Quoque
Meu cunhado Arlindo, esse que eu lhe arranjara um caminhão de cognomes: “Esguatcherão, Quoque, Tu Quoque Grapii, Esbirlo, Grapuá…”, era um adulto que não envelhecera. Mesmo agora, com mais de 80 anos, continua criança. Não se zanga com brincadeiras e nunca “come cru”, como diziam os italianos lá de minha Marilândia. Se eu lhe aprontasse alguma, não tinha pressa: esperava, ainda que anos, para descontar no momento certo.
Preparar um laço de cipó para travar-lhe o pé numa descida íngreme; apressar-lhe a passagem por baixo de um pau caído com um belo pontapé no traseiro; soltar a vara que lhe permitia o equilíbrio na travessia de uma pinguela; oferecer-lhe seis comprimidos de Purgoleite para debelar uma tremenda diarreia; esfregar pimenta malagueta nos bicos dos pios dele; perder meio dia piando macuco perto da choça dele para mantê-lo lá sem macuco algum por perto, foram algumas das tantas que aprontei a ele.
Ele nunca levou a mal, nunca reagiu no momento, nunca perdeu a esportiva. Mas, quando surgiam as oportunidades, ele ia descontando. E como descontava!
Depois que abandonei as caçadas, passei a capturar pássaros. O prazer de agarrar vivo um inhambu passou a ser uma emoção mais forte do que aquela de tê-lo nas mãos, sem vida. Assim, minhas incursões continuaram no mesmo ritmo das caçadas. Meu cunhado caçava-os e eu tentava conseguir as espécies que faltavam para completar a coleção dos inhambus brasileiros. Para os leigos, é bom esclarecer que algumas espécies não dominantes de inhambus oferecem sérios problemas para a captura. É que as fêmeas dos jaós e das choronas, o macho do inhambu poca-taquara, apenas para citar três exemplos, quase não piam e raramente atendem ao chamado dos parceiros. Por isso, capturar uma fêmea de chorona (Crypturellus Strigulosus), de jaó (C. Noctivagus noctivagus), guaçu amazônico (C. Obsoletus griseiventris) é algo que exige paciência e muito tempo. Já passei 30 dias na Amazônia tentando capturar (piando) uma fêmea de chorona. Voltei de mãos abanando. A única que veio até à choça não pisou onde precisava. Para apanhar na armadilha as espécies supracitadas, faz-se necessário a paciência do bíblico Jó. Para ter uma chance razoável é preciso passar o dia todo, do amanhecer ao anoitecer, piando pouco, dando intervalos e rezando bastante.
Certa vez, meus sobrinhos adquiriram uma mata perto de Açailândia (MA). Colocaram lá os tratores, abriram as estradas principais e armaram o barraco dos trabalhadores bem no centro da mata. Estradas novas, matas bonitas…. Lá fui eu tentar gravar o inhambu-poca-taquara para, depois, capturar a espécie. Meus sobrinhos haviam me dito que os tinha ouvido piar por lá, principalmente ao anoitecer. Como não há pios para esse tipo de inhambu e como seus piados são muito difíceis de ser reproduzidos com a boca, eu precisava gravar o piado de um deles. Primeiro, anoiteci alguns dias na mata, até localizar um. Por sorte, as fêmeas, quando piam, o fazem por muitos minutos. Se tiver estrada, a gente tem tempo de se aproximar bem. E foi assim que consegui gravar alguns piados sofríveis, mas que serviram para atrair o inhambu para mais perto. Em menos de uma semana eu já tinha, na fita, um lindo piado de fêmea.
De posse do piado, fiz uma choça caprichada na sapopemba de um grosso angelim-vermelho, bem na orla da estrada recém-construída. O inhambu estava a uns 40 metros. Posicionei alto-falante e microfone numa sugestiva moita, ajeitei-me todo na catana, coloquei a fita e comecei a reproduzir os piados que gravara. Olhei o relógio e eram, exatamente, 17h30min. Alguns raios de sol ainda perfuravam o dossel da floresta.
Nesse tempo, a lugares possíveis, eu levava comigo uma escopeta, apenas como garantia para momentos imprevisíveis. É que já ficara com uma onça pintada parada a um metro da choça, coisa que até então nunca acreditara que pudesse acontecer. Coloquei-a escorada na catana e fiquei ali, enxugando o suor da testa com o boné e emitindo alguns piados de quando em vez. Em menos de 15 minutos, ouvi o chororocado de guerra do inhambu, bem próximo do microfone. Era aquela a primeira vez que eu teria contato com o Griseiventris e, por isso, o coração parecia sair-me pela boca. Como seria ele? Que tamanho teria? Eram algumas das tantas indagações que me fazia enquanto firmava o olhar para lobrigá-lo entre os taquaruçus de brotos perfurantes.
De repente, percebi que alguma coisa tocou no pano da choça (oito metros de um velho paraquedas que me foi dado pelo cunhado Dr. Fernando, no tempo em que ele era paraquedista da aeronáutica no Rio de Janeiro), na parte lateral esquerda. Virei-me, prestei atenção e como nada mais se mexesse, desconsiderei o barulho. Certamente fora uma lagartixa, um rato ou coisa parecida.
Voltei a vigiar o inhambu, já com o microfone ligado e a fita correndo. Com certeza ele iria piar e eu faria outra gravação, mais nítida e perfeita. Nisso, o pano voltou a se mexer, demonstrando que alguma coisa estava pretendendo partilhar o esconderijo comigo. Afastei-me um pouco, firmei a visão, porque dentro da choça estava muito escuro. É que, além do dia que findava e do pano, eu ainda havia encostado algumas folhas de pindoba para camuflar. Ainda não sabia que estava tentando capturar o inhambu mais manso da Amazônia.
O pano continuava pressionado, dando-me a certeza de que o bicho estava ali, arquitetando um plano para adentrar. A seguir notei que o pano afrouxou um pouco, como se a “coisa” estivesse desistindo. O mais provável seria uma cobra. A sombra, embora sem presteza, delineava-me algo comprido e torto. Por vias das dúvidas, apanhei a espingarda e me preveni contra um possível ataque. Já estava tenso e distraído do inhambu.
Imaginei a possibilidade de ser uma surucucu reclamando o lugar que eu ocupara, enquanto ela dera uma saidinha. E a “coisa” estava lá, a menos de meio metro de mim: eu via a sombra. Droga!, desabafei: não teria esta pico-de-jaca outro lugar para passar a noite? Nessas alturas, eu já não tinha mais dúvida: era uma surucucu. E foi aí que o imprevisível aconteceu.
O bicho foi metendo a cabeça por debaixo do pano e entrando devagarinho. Vi-lhe a cabeçorra, os olhos fatídicos, a língua bifurcada por entre suas enormes presas… Era uma surucucu que não tinha mais para onde crescer. Dei um passo para trás, armei a espingarda e, quando fui fazer pontaria, ela avançou decidida para cima de mim. Diante do sufoco, arremessei-me para fora da choça, carregando, no peito, o pano, as palhas, os fios com o gravador e tudo…. Fui parar a uns cinco metros de distância, arrepiado, pálido e tremelicante. O guaçu voou espavorido e eu, agora, nervoso, fui retornando à choça, disposto a arrancar a cabeça da surucucu. As mãos tremiam, mas eu estava certo de que, pelo calibre da espingarda, a cobra não teria a mínima chance.
Pé ante pé, espingarda engatilhada em riste, fui voltando à choça, então, toda desarrumada. Olhei, olhei e nada vi. Apenas comecei a ouvir um barulho esquisito, muito estranho, assim como de quem tenta suprimir uma gostosa gargalhada. Era meu cunhado Grapuá que descontava uma das tantas que eu lhe aprontara.
Ele viera pela estrada de terra solta e úmida, há pouco feita pelos tratores. Como não houvesse folhas, não fez qualquer ruído. Não bastasse, eu estava com todas as atenções voltadas para o inhambu. Então, o diabo ofereceu-lhe uma raiz arrancada pelo trator. Acho que nem Michelangelo esculpiria um Moisés tão perfeito, como o Quoque, aquela cobra. Juro: eu vi os olhos penetrantes, a língua bifurcada, a cabeça triangular… Era uma surucucu!
Quando dei por fé que era meu cunhado, juro, pensei mesmo em matá-lo, como dizem os do ramo, como queima de arquivo. Teria o álibi da casualidade, diante da irresponsabilidade dele em fazer o que fez. Poderia provar que fora um crime sem intenção de matar.
Nem sei se estou feliz por ter perdido a oportunidade, pois até hoje o desgraçado não se cansa de me lembrar aquela tarde.

O SUFOCO
Nariz com focinho
Depois que aperfeiçoei bem minha armadilha, tornei-me um obcecado por capturar inhambus. Em qualquer oportunidade, estava eu lá na mata com meu picuá às costas. Cheguei a tal obsessão, que muitas vezes os capturava, mostrava aos outros e depois os soltava novamente. Achava excitante atrair o pássaro e quase obrigá-lo a pisar no laço.
Nesse tempo, eu vivia em função de uma pequena reserva biológica particular, mantida no Pará, a 120 quilômetros de Dom Eliseu. No momento, eu estava atrás de mais alguns urus (apesar de não serem da família Tinamidae), já que, ao cercar os 10 alqueires de mata, não me pareceu existir, dentro, mais que um casal deles.
Um fazendeiro de nome Deolindo, pretendendo derrubar alguns alqueires de sua mata para a formação de capim, vendeu-nos a madeira da área. Na primeira vez em que estive lá, ouvi um bando de urus piando ao entardecer e, para variar, logo marquei o lugar com a intenção de capturar alguns exemplares para minha reserva experimental.
Na primeira oportunidade, apanhei meu quite de captura e fui para lá, abarracando-me com os funcionários que faziam a extração da madeira. Pela manhã, tomei o rumo em que as ouvira piar, subi por uma pequena encosta até encontrar vestígios de folhas revolvidas bem recentes, sinal característico da presença delas. Nem piei para localizar. Fiz numa catana meu esconderijo, passando o pano de paraquedas e camuflando-o com algumas folhas de pindoba. Na frente, armei cinco laços, todos bem próximos. Minha intenção era que, na confusão da chegada, algumas delas pisassem ao mesmo tempo onde não deviam.
Ao primeiro piado, elas responderam e, de fato, estavam bem próximas. Como o lugar em que eu me encontrava fosse bastante apertado, não tive outra opção senão colocar a espingarda atrás de minhas costas, o que até me serviu de apoio e me deu certo conforto. Meu rosto ficou colado ao pano, na única abertura que fiz para olhar em frente, no lugar em que estavam dispostos os laços.
E uruba – todo mundo sabe – quando tem de vir, vem logo. Não é um pássaro como o macuco, por exemplo, que, às vezes, leva o dia todo para desfazer 50 metros. Certa feita, no Mato Grosso, eu gravara um bando de urus que piava colado à choça e a fita havia ficado ótima. Quando reproduzida em alto-falante, era como se as próprias estivessem ali piando. Às vezes me confundia tanto que precisava baixar o volume para saber quem era quem. Não bastasse, o bando que ali vivia, certamente remanescente dos bons tempos em que tudo era mata virgem, conhecia até os grilos mais espertos do capão que sobrara. Por isso, quando sentiu o território invadido, reagiu agressivamente, aproximando-se a metros dos laços numa única avançada. Ato contínuo, esvoaçaram espavoridas, empoleiraram e ficaram a dar aqueles tiques nervosos, próprios da espécie.
Por experiência, eu sabia que algum predador as ameaçara. Pelo tamanho da mata, quase um juquirão abandonado, minha suposição, se exagerada, chegava, no máximo, a uma jaguatirica. O que eu não sabia é que na região comentava-se a existência de uma enorme canguçu que, faminta, vivia à custa de bezerros, porcos e, nas dificuldades maiores, até de perus e galinhas.
Sem imaginar o que estava por ali, meti o nariz no buraco da choça para alargar o pequeno espaço de minha visão. Nem imaginava que, a menos de dois metros, estivesse o diabo da enorme onça faminta. E ali, nariz com focinho, fiquei como que petrificado, sem saber se tentava apanhar a espingarda ou se usava o caminho mais comum: abrir a boca no mundo.
A onça, ao atacar os urus, veio distraída, mas logo percebeu algo estranho e parou de chofre. Boca aberta, muito magra, pata direita dianteira no ar, toda ouvidos e faro. Ela estava pressentindo um odor esquisito… e nem era para menos, pois só eu resistia a minha farda suada. É que todas as vezes que jogava o picuá às costas, o suor descia aos borbotões. Normalmente, a roupa secava no corpo ou no barraco, sem sol, e nem é preciso dizer como ficava.
Depois de transformar aqueles segundos em horas angustiantes, tomei a decisão de apanhar a espingarda. O espaço era tão pequeno, que parecia impossível qualquer movimento sem que o felino notasse. Mesmo assim, comecei levando a mão para trás, cuidadosamente, sem tirar o olho da fera. O suor escorria, as pernas começaram a tremer. O tempo que levei para retirar a espingarda de trás, não saberia precisar agora, mas o certo é que coloquei a arma na frente, sem que a onça se mexesse um só centímetro. Enfiar o cano pelo buraco do pano era simplesmente impossível, pois a distância do tronco ao pano, não passava de meio metro. Resolvi, então, colocar o cano por cima do pano e ir forçando-o para baixo até atingir a mira desejada.
Engatilhei a arma, pois, caso ela me confundisse com algum petisco, ao menos eu a assustaria com um tiro para cima. Nessa condição, senti-me mais calmo e seguro.
Fui forçando o pano e, é claro, acusando minha presença cada vez mais. Sempre imóvel e atenta, a onça fingia que não estava percebendo nada. Como a choça de paraquedas estivesse com as pontas seguras nas catanas, chegou a um ponto que não mais cedia. Mas, ainda precisava descer uns 15 centímetros para a mira chegar à cabeça do felino. Não tive outra opção senão forçar mais e mais e ir me esticando para cima para ajudar. A pontaria já estava nas costas, mas eu queria chegar à cabeça, pois ela estava de frente, a menos de cinco metros de mim. Feri-la nas costas seria um grande risco. No disparo, pelo impulso, normalmente ela pularia dentro de meu abrigo. E foi aí que o imprevisto aconteceu: o pano, que estava sendo forçado demais, soltou da catana, arriando de vez. As folhas que camuflavam, sustentadas pelo pano, caíram por cima da espingarda, cobrindo totalmente minha visão. Por mais que eu estivesse atento, não percebi como o animal evadiu-se. Simplesmente desapareceu.
Os urus que estavam protestando e talvez felizes pelo desentendimento de seus dois predadores, não se deram por seguros nem em cima dos galhos em que se encontravam. Esvoaçaram para longe e, em seguida, tudo se transformou em silêncio sepulcral… e em grande frustração. Ergui-me, desarmei a espingarda, relaxei a musculatura, respirei fundo, recolhi meus laços e retornei.
É, amigos caçadores, Jesus tinha razão de sobra quando dizia, com outras palavras e outra intenção: “Vigiai e orai, porque não sabeis o dia nem a hora.” E nem o lugar.
Ali, naquele capoeirão rodeado de pastarias, roças, com tanto barulho de tratores e caminhões, quem acreditaria numa enorme canguçu?
Bem, qual o caçador que não tem história semelhante a contar? Quantas vezes chegamos a um ponto da mata, deixamos a espingarda de lado, vamos fazer alguma coisa e, num segundo, uma onça, um veado, um mutum… aparece de chofre. Nessa hora, juramos que nunca mais seremos relapsos.
Eu já havia feito este juramento… e nem fazia tanto tempo!

UMA VELHA C-10 VERMELHA
José Engelhardt
Conheci o Zé Engelhardt dentro de uma velha C-10 vermelha, velha e conservada como ele. Fiz amizade, convivi com ele durante 20 anos e, quando me mudei para Imperatriz, ele ainda estava com aquela mesma C-10 vermelha, com a qual, todos os anos, viajava para Nortelândia (MT). O motivo de longas e penosas viagens era sempre o mesmo: caçar azulonas. Nada mais óbvio, nessas circunstâncias, do que surgir uma forte amizade entre nós. E não demorou muito para que o mano Adalho, o Iran e eu o acompanhássemos em sua “catarse”.
Com o Iran gordo; o Engelhardt, que só perdia em espaço pelo Iran, na vertical; com o mano Adalho que, apesar de normal, tinha o péssimo hábito de viajar como se fosse uma inescrupulosa meretriz em momento de parto (sempre com as pernas abertas a 360%), e comigo, nunca dominando a eterna mania de protestar e criticar, o leitor deve imaginar como foi a viagem com quatro homens do perfil mencionado, dentro de uma boleia pequena.
Foram oito dias e grande parte de suas noites pelas estradas, enfrentando buracos inesperados, fome, sede, cansaço e multas constantes. O Iran, que já era meio gago de nascença, quando ficava nervoso, atropelava até palavras monossilábicas. Seu desequilíbrio emocional logo irritava os guardas rodoviários, que nunca nos permitiam seguir viagem sem um rosário de humilhações, de multas e até de ameaça de prisão por desrespeito à autoridade deles. (Apesar de não ser o dono da camioneta, ele dirigia a maior parte do tempo.)
Mesmo assim, entre trancos e barrancos, exatamente às 23h45min, adentramos na sede das terras do parente do Zé Engelhardt. O lugar de caçar seria ali. Nessa época eu já não matava os passarinhos, mas criara uma terrível mania ainda pior: a de capturá-los. Dessa feita, não ia apenas atrás dos inhambus, mas também de passarinhos ornamentais e colibris.
Quando chegamos, nossos beiços estavam todos ressequidos e rachados; os olhos faziam inveja a qualquer dependente de cocaína em plena overdose; a garganta não devia estar diferente de alguém que resolve engolir um rolo de arame farpado; os ossos… qualquer locomotiva assumiria o atropelamento.
Mas o pior ainda estava por vir: o banho. No Mato Grosso, a temperatura, nessa época do ano, cozinhava ao meio-dia e congelava à meia-noite. Como quatro previdentes suricatos, postamo-nos na margem do igarapé, eretos e imóveis como quatro postes de ferro. Eu já conhecera aquele sofrimento numa outra caçada. E foi molhando o indicador um milhão de vezes e esfregando-o pelo corpo, que cumprimos as normas elementares da higiene. Como nossas roupas estivessem todas empoeiradas, nosso estado corporal não fez muita diferença. Deitamos num canto da sala e esperamos amanhecer. Aliás, eu esperei, porque os desgraçados, sem se importar com a sujeira, com o frio e até mesmo com a fome, começaram a roncar 30 segundos depois. E como roncavam! …
Como eu não contasse mesmo com aquela noite, tirei proveito para escolher, na seguinte, o paiol mais distante da sede. Eu jamais durmo com alguém roncando ou bufando. Nem o “pingo d’água” do Velhão eu aceitava! Pingo d’água era o apelido que dei às bufadas do mano Adalho. Mal fechava os olhos, ele começava com um “tac”, som de alguma saliva que se acumulava na entrava da garganta. Era horrível para um cricri como eu!
Estávamos arrebentados. Só fomos para a mata depois do almoço. O Velhão fora para ser meu companheiro nas capturas. Apesar de ter sido o maior caçador de inhambus do mundo, jamais teve ganância para abatê-los. Era como se fosse um leão que passeasse entre gazelas, certo de que, tê-las era apenas uma questão de querer.
Nesse dia, porém, o Zé Engelhardt quis ir comigo, pois estava curioso para saber como eu fazia para capturar um pássaro que, até mesmo de espingarda, era dificultoso abater. E lá fomos nós, abrindo picada entre liames de cipós, altas folhas de caetés, atravessando igarapés, subindo encostas… até encontrarmos um lugar que, embora desconhecendo as preferências dos inhambus da região, imaginei ser o ideal. Fizemos uma boa choça, armei as redes (nesse tempo ainda usava o sistema de redes elásticas que caíam em cima do pássaro), mantivemo-nos em silêncio por alguns minutos e começamos a piar.
Uma chorona (Strigulosus) foi a primeira a responder e a se aproximar. Só que, estranhando a presença repentina do que ali nunca existira, não quis passar por baixo da rede. Ela se aproximava, examinava, ficava por ali e acabava afastando-se alguns metros. Mostrava-se bastante assustada com aquela mudança do ambiente que tanto conhecia.
Mas, com o tempo, ela foi perdendo o medo e acabou dando dois passos a mais. Pelos meus cálculos e pelo tempo em que eu já lutava para ludibriá-la, não hesitei, cortando a linha e desarmando o equipamento. Percebendo que se debatia, arranquei da choça como um bólido, evitando que ela se desvencilhasse da pouca rede em que se prendera. Abafei-a entre as mãos e assoviei para que o Zé saísse da choça e viesse ajudar-me. Mas, nada do Zé. Que diabos teria acontecido ao meu companheiro?
Com as mãos abafando a chorona, parei a respiração ofegante e comecei a ouvir um som trepidante, tipo um trinado de guaçu bem baixinho. Afinei a audição. Aquilo me pareceu estranho, muito estranho. Meio sem jeito, retirei o pássaro e fui até à choça verificar: encontrei o Zé deitado no chão, perdendo o fôlego de tanto rir.
– Que aconteceu? – Perguntei já bastante sem graça, pois não precisaria ser muito inteligente para deduzir o que iria me responder.
– Só queria saber pra quê você usa rede – disse ele entre quase soluços de risos incontidos.
De fato, minha arrancada para não perder a primeira presa fora algo que qualquer anta assustada assumiria.
Bem, ficamos por lá quase um mês. Durante esse tempo, já havia conseguido uns trinta pássaros, incluindo colibris. Na volta, a confusão fora maior, já que minha preocupação não só se resumia ao mau-cheiro dos barrigudos, e às pernas abertas do mano Adalho. Agora, a pressa que eles demonstravam em desfazer o caminho, somada ao pouco caso com o meu “prato de beija-flores” aumentavam nossas discussões.
Em “camisinhas-de-força” eu dispusera mais de vinte colibris dentro de um pratarraz, um ao lado do outro. De duas em duas horas, passava-lhes uma flor artificial para que pudessem sugar o mel com água que eu havia preparado. Mas eles não me davam tempo para tratar adequadamente os meus pássaros e ainda viajavam a noite toda, acelerando fundo por estradas perigosas, em nível bem abaixo da sensatez. Ultrapassar carros sob densa poeira, em curvas fechadas, em lugares em que havia muitas pontes em estado precário e sem qualquer aviso…, acabou tirando-me do sério. Então, numa dura discussão em que eu afirmava que aquilo era loucura, saí da poltrona, deitei-me no assoalho da boleia, entre os pés dos companheiros, e falei sem pensar:
– Agora corram quanto desejar. Daqui de baixo estarei torcendo para descansarmos dentro de um desses rios sem ponte.
Bem, ainda hoje, a fama de “língua maldita” me acompanha e talvez não seja tanto por vingança e sim por simples e lógica dedução: cinco quilômetros à frente, logo após uma curva fechada, havia um desvio, porque a ponte caíra. Sem condições de fazer a curva, em vista da velocidade que desenvolvia, o Iran, nosso motorista do momento, freou. Derrapando, a camioneta começou a descer a perambeira, parando num limite tal que qualquer movimento nosso ameaçava levá-la ao despenhadeiro. A gritaria deles foi geral, mas eu continuava ali, alimentado pela raiva, deitado como se nada tivesse acontecendo. Pisaram-me, saíram afobados e eu ali, amuado. A bem da verdade, não me importava mesmo se o carro acabasse despencando.
Amarraram o para-choque traseiro numa árvore, discutiram, pensaram… e eu lá, empacado como burro de primeira cela. Então, passou um ônibus e, por sorte, nele havia muitos homens que ajudaram afastar a camioneta, colocando-a no meio da estrada. E eu, ali, deitado no fundo.
Desfeito o perigo, um gaiato resolveu perguntar, exatamente ao mano, o que significava aquele homem ali, diante de tanto perigo, deitado no fundo da boleia:
– É um “veado” que, infelizmente, saiu do mesmo buraco que eu – limitou-se a desabafar o mano.
Mas, valeu! Daí para a frente, a viagem seguiu lenta e responsável. No primeiro restaurante paramos, tomamos banho, jantamos e dormimos o resto da noite. E, para descontar a observação do mano, em qualquer acelerada a mais eu ameaçava:
– “Manera” aí, porque da próxima vez minha praga será maior!
——————–
Soube por um amigo que, ainda hoje, o Engelhardt continua com a C-10 vermelha. O carro deve estar com uns 30 anos, mas, segundo o amigo, do mesmo jeitinho que o conheci. O Zé envelheceu, desistiu de caçar azulonas no Mato Grosso, mas nunca de sua velha C-10.
Uma outra característica de meu velho amigo Engelhardt era caçar onças preguiçosas que, ao invés de perseguir porcões, veados, pacas, preferiam saborear os bezerros dos fazendeiros.
O Engelhardt ia às fazendas atacadas, ouvia a história, buscava informações, visitava os locais dos ataques, combinava o preço e, em três dias, no máximo, recebia o salário. E tem mais: caçava sozinho e com apenas um facão e um revólver Taurus 38 na cintura.
Abaixo, foto de uma das onças mortas na fazenda do senhor Formiga, pertinho de Açailândia – MA. Na época, 10% dos bezerros da fazenda tinham destino certo: a barriga das onças. Hoje, a área – mais um malsucedido projeto da SUDAN – está dividida entre o Exército Brasileiro (50º BIS) e um assentamento de sem-terra.

JARARACA NO SAPATÃO
Vai ter cobra assim no inferno!
Meu cunhado Sguatcheron, nos tempos livres das caçadas, foi meu inseparável companheiro. Um dia, enquanto olhávamos uma mata para comprar as madeiras (sempre com as espingardas a tiracolo e os pios nos bolsos), ouvimos um macuco piar. O piado fora típico de inhambu velhaco, assustado, caçado sei lá quantas vezes…, desses que logo deduzem o barulho de alguém que vem importuná-lo: um piado baixinho quase de hora em hora, sem qualquer entusiasmo.
Mesmo assim resolvemos nos meter numa catana cheia de folhas, sem qualquer precaução contra o que estivesse ali, ainda que peçonhento. Meu cunhado, mais insensato que eu, foi logo se esparramando no meio das folhas secas. Nesse tempo não usávamos qualquer conforto desses que os “caçadores modernos”, usam: cadeirinhas, por exemplo. Como havia muitas folhas secas, suas pernas ficaram totalmente encobertas por elas. Ajeitei-me também, vigiando o lado oposto.
Meu companheiro usava velhos sapatões sem cadarços, presos aos pés por uma faixa elástica lateral. O elástico já havia relaxado há muito tempo, transformando a boca da botina num verdadeiro jequi aberto, escanchado. E foi ali que a cobra dorminhoca acabou caindo, indo ajeitar-se na altura do tornozelo do Sguatcheron. No meio de tanto graveto cutucando cada centímetro do corpo, ele nem se deu conta de que havia uma jararaca dentro da bota.
Só depois de uns cinco minutos, ele percebeu que alguma coisa mais fria que o normal estava dentro de seu calçado. Firmou os olhos e percebeu que se tratava de uma preguiçosa peçonhenta. Então, cutucou-me, apontou e disse:
– Espia que desgraça está aqui dentro de meu sapatão!
Aproximei-me mais e vi: era uma jararaca, quase da cor das folhas, enrolada, ainda dormindo ou, pelo menos, muito sonolenta. Por certo, a noite lhe fora dura na busca de alimento.
– Quoque – observei –, é uma cobra venenosa. Está dormindo, mas se acordar, poderá picá-lo. Você fica de olho que tentarei tirar-lhe o sapatão e o resto será com você.
Acontece que, quando olhei para meu cunhado, ele já estava suando e não parecia disposto a esperar pelos acontecimentos. Nisso, o macuco pia bem pertinho e tive a infeliz ideia de propor-lhe um pouco mais de paciência.
– Você é mesmo um bom “filhodaputa” – desabafou –, eu aqui com uma jararaca colada na pele e você querendo matar o macuco!
– Foi brincadeira – tentei justificar-me –, mais vermelho que um tomate maduro. Vamos tomar uma providência antes que este bicho acorde – arrefeci. Dizem que as cobras se orientam por ondas de calor e nem sei como esta aí ainda dorme. Acho até que deve estar morta, pois suportar seu chulé, só urubu acostumado a desjejum de gambá.
Quando me postei em sua frente, colocando uma das mãos no bico do sapatão e a outra no calcanhar, com a intenção de descalçá-lo num safanão, a cobra começou a acordar. Meu cunhado entrou em pânico. Inesperadamente, “plantou uma bananeira”, escoiceou o ar com a velocidade de um peado pangaré selvagem fustigado e, mesmo depois de a cobra desaparecer, ainda se assegurou com mais uns dez pinotes desnecessários. Da cobra, nem sinal. O perigo, agora, era pisar em cima dela, pois devia estar aturdida e muito mal-humorada por termos interrompido sua sesta. Com todo cuidado, olhando quanto podíamos, apanhamos as coisas e fomos procurar outra catana. Nela ficamos por mais duas horas e, do macuco, nem aquele piadinho safado de quem sabia até o calibre das espingardas que levávamos às costas.
O retorno, naquele dia, chegou a ser engraçado. Qualquer cipó ou graveto que pressionasse os sapatões do Sguatcheron, ele dava um pulo de lado e observava:
– “Putaquepariu”! Vai ter cobra assim nos quintos dos infernos.

A ONÇA DO BALIM
O Velhão, mano Adalho, primogênito, fazia parte de um grupo de caçadores de velhos amigos, dentro de sua faixa etária: Emílio Croscop, Anacleto Sasso, José Vieira, Antônio Marquiolli, Angelim Orlandi, Argeu Fregona, Agenor Gava… E, quando em vez participava de outros grupos, como o do Balim, um rico tabelião que todos os anos juntava um bando de maníacos e seguia para algum lugar do País para caçar macucos.
Essa aconteceu entre 1950 e 1960, num lugar chamado Santo Antônio, no estado da Bahia. Naquele tempo, já foi dito, ninguém se importava com caçadores, a não ser algum fazendeiro avesso a este tipo de esporte. Na verdade, entre os 15 ou 20 que sempre compunham as comitivas, 80% eram iniciantes, gente que ia pela primeira vez ou que pretendia participar das tantas histórias espetaculosas que eram contadas.
Segundo o mano, o Balim era de uma organização militar. Horários de saída e chegada, alimentação, descanso…. Tudo devia ser religiosamente observado. Os primeiros caçadores só deixavam o barraco depois que tudo estivesse bem arrumado e esclarecido. Nessa caçada, os preparativos para o início demoraram dois dias, o que deixou os mais afoitos extremamente impacientes. É que, até a data do nascimento e os remédios que cada um tomava, o Balim fazia questão de anotar em sua agenda.
Outra coisa de que ele não abria mão era saber do plano de cada caçador antes de deixar o acampamento. Todos tinham de dizer para aonde iam e por quanto tempo pretendiam ficar por lá. A tolerância nunca ia além de duas horas. Atraso superior significava extravio ou acidente e a busca ao retardatário era imediata. Ninguém reclamava, pois, suas excursões eram sempre pagas por ele com tudo do bom e do melhor disponível.
Depois de todos passarem ao cozinheiro a programação do dia (além da cozinha, ele era responsável por isso também), cada um foi tomando seu rumo e desaparecendo na mata. O Balim, como primeiro a escolher a direção, apontou para uma bacia que se formara à direita do barraco. O lugar era aprazível, convidativo: mata alta, escura e, para condimentar ainda mais a esperança, uma nascente descia da serra e dividia o baixão.
O mano se propôs a acompanhá-lo até o lugar em que ele ficaria. Dali, o mano subiria a serra para ver como era do outro lado. Combinado, os dois partiram. Na grota, o mano ainda ajudou o Balim a preparar a choça e, depois, como era seu costume, calmamente foi pinicando o mato e subindo o morro. Quando já estava mais ou menos no meio da subida, esbarrou com três mutuns que esvoaçaram, indo pousar nos galhos mais altos de um bacumuxá. A árvore ainda não era tão alta, talvez tivesse uns 15 metros de altura. O mano escolheu o que oferecia melhor posição e atirou. Os três voaram mata abaixo, entre o dossel da floresta. Chateado, o mano seguiu caminho, não entendendo como pudera ter falhado na pontaria diante de um alvo tão grande.
Sempre que algo assim acontece, costumo repetir o que alguém um dia me disse: “Seu moço, não duvide: se Deus é grande, o diabo não é pequeno”. Na verdade, o mano não havia errado, apenas não atingira a ave em lugar mortal. Ferido, o mutum voou quanto pôde e, depois, perdendo os sentidos, caiu… e adivinhe em que lugar? Nas costas do Balim, dentro da choça, lá em baixo no grotão. E ainda há os que acham que ganhar na Mega-sena é impossível!
O Balim só vivia contando histórias de onças, o que denotava sua grande preocupação para com tal tipo de perigo. Quando algo invadiu seu esconderijo, arranhando o pescoço dele com unhas afiadas, ele abriu a boca no mundo e saiu em disparada pela mata.
Ao ouvir os gritos, o mano desceu célere para socorrê-lo. Ao passar pela choça desarrumada, vendo as coisas do Balim esparramadas pelas folhas, não teve dúvida de que algo muito estranho havia acontecido.
Ofegante, continuou correndo pela picada que levava ao acampamento. Ainda a 30 metros do barraco, o mano percebeu o alvoroço ocasionado pelo cozinheiro e por alguns que mais iam para beber cachaça com charque no espeto do que propriamente caçar. Mal adentrou, quase sem respiração, perguntou:
– Que aconteceu, gente? Ouvi os gritos e tentei socorrer, mas quando passei pela choça do Balim, não havia mais ninguém lá. Foi cobra?
– Onça! – Respondeu o cozinheiro, mais pálido que Lázaro ao sair do sepulcro. Veja as garras da gata no pescoço dele.
Com uma vida de experiência em caçadas, o mano se aproximou, examinou, olhou bem e não lhe foi difícil deduzir que, poderia ser tudo, menos onça. Talvez um gato ou um gavião inexperiente que imaginou tratar-se de uma macuca chororocando. Contudo, para não frustrar o Balim, depois do mercúrio cromo, acompanhados de mais três que se encontravam no barraco, o mano e o Balim retornaram para buscar as coisas e tentar desvendar o mistério.
Pela estrada – como é costume daquele que não sabe esperar a hora exata de dizer as coisas –, o Balim foi relatando o tamanho da onça, o rosnado antes de atacar e coisas parecidas, inerentes a um ataque inesperado de faminta canguçu.
De espingardas em riste, com exceção do mano Adalho, todos seguiam examinando, com olhares atentos e perscrutadores, cada moita ou pau grosso que houvesse perto da picada. Enfim, chegaram. Lá estava a choça esparramada, a espingarda a uns cinco metros e a sacolinha de pios mais adiante. Sem qualquer receio, o mano foi logo à choça e, em menos de cinco segundos, desvendou o mistério, erguendo o mutum que havia baleado, lá na metade do morro, e que, por ordem não sei de quem, teve de cair exatamente ali, nas costas do Balim.
Depois desse vexame, o Balim abandonou as caçadas. Não conseguia livrar-se da descrição que dera da onça que o atacara. O pior é que, na luta para se desvencilhar do felino, ele percebeu, até, a ausência de um canino na fera. Fora uma mentira muito rica em detalhes para que ele se perdoasse durante o resto de vida que lhe restava.

CAÇADORES DE PACAS… E DE GAZELAS
Os estados da Bahia e do Espírito Santo somam-se àqueles em que ainda se encontram remanescentes capões da Mata Atlântica. Ela possivelmente foi (em tempos áureos não tão distantes) uma das florestas brasileiras mais ricas em animais silvestres. Isso ocasionou o aparecimento de milhares de caçadores, mormente nos tempos em que se podia desfilar pelas cidades com uma Pipper a tiracolo, uma respeitável matilha esganiçada e muitas pacas abatidas e dependuradas em fila num reforçado varão. Como lembrança dessa época, ainda hoje guardo muitas fotos de amigos, tios e familiares.
Fauna rica, liberdade total, ausência de toda e qualquer fiscalização: ingredientes perfeitos para o aparecimento de centenas de caçadores, principalmente nas pequenas cidades interioranas. Itamaraju, Teixeira de Freitas e Eunápolis, na Bahia; Colatina, Marilândia, Linhares e São Mateus, no Espírito Santo, eram as detentoras do maior contingente.
Quando mudei de Marilândia para Linhares, fiquei conhecendo uns 12 caçadores de paca. Havia, entre nós, certa afinidade, pois era eu, à época, o mais afoito devastador de macucos da própria Reserva Biológica Sooretama do Barra Seca, a 40 quilômetros da cidade de Linhares. Mais tarde, os tempos mudaram: em 1970, o “IBDF” intensificou a vigilância. Ainda que em nome da solidariedade ao amigo doutor Pedro, fui preso e processado. O mais humilhante foi – em pleno tempo em que subornar era arte – tendo no bolso, dinheiro para 10 salários e, ao lado, um médico se dispondo a atender, gratuitamente, os agentes e seus familiares, reconhecer que não tive argumentos para convencer o chefe.
Os caçadores de paca de Linhares, diante da fiscalização mais ostensiva, começaram a organizar expedições à Bahia. A fiscalização da parte leste da Bahia era muito parecida com a do estado do Pará, hoje: os órgãos governamentais não se preocupavam muito com o Ambiente, principalmente com a fauna silvestre.
Como permaneciam sempre mais de 30 dias por lá, logo a saudade da família encarregou-se de lembrá-los que não haviam feito nenhum voto de castidade. Já na segunda excursão, passaram no “puteiro da cidade” (era assim que lá denominavam a casa das meretrizes) e cada um escolheu uma parceira, rumando, sorrateiramente, para a Bahia. Logo que chegaram à fazenda em que já haviam estado no ano anterior, apressaram-se em avisar o capataz que as mulheres que os acompanhavam eram de programa.
A coisa funcionou melhor do que esperavam. Caçavam pela manhã e depois passavam a tarde numa praia deserta, em bacanais. À noite, bebiam e curtiam as “esposas”, na mais completa orgia. A experiência foi tão boa que, ao invés de uma excursão, passaram a fazer duas por ano. O capataz que era o mais normal dos mortais, do retraimento inicial, passou ao excesso de intimidade: cedia a fazenda em troca de namorada exclusiva. Não fizeram objeção: sempre levavam uma de sobressalente.
O estímulo e a euforia dos cinquentões acabaram por despertar a desconfiança das pacatas esposas que ficavam solitárias por um mês inteiro, cuidando do lar. Afinal, não havia explicação convincente para que, de uma hora para outra, seus maridos se tornassem tão apaixonados por caçadas de paca. No comadre aqui, comadre ali, elas decidiram, unanimemente, que três dias antes da próxima excursão, iriam fazer-lhes uma memorável surpresa: oferecerem-se para acompanhá-los na estafante tarefa de perseguir os roedores das matas baianas.
Os caçadores (agora já mais de quinze), depois do conluio de uma breve assembleia, decidiram a saída para o semestre seguinte. Exatamente quando tudo estava pronto, cada mulher achegou-se a seu marido e disse da pretensão. “Afinal, não é justo vocês ficarem em jejum por quase um mês! Além do mais, iremos cuidar da cozinha e das roupas sujas.”
Embora cada um argumentasse e relutasse, as esposas foram peremptórias e acabaram por convencê-los – por livre e espontânea pressão – a anuírem. Muito desconcertados, os intrépidos caçadores rumaram para a Bahia. As mulheres, que já andavam desconfiadas, aumentaram suas suspeitas quando começaram a perceber os olhares furtivos e os resmungos ininteligíveis dos maridos em dificuldades. Diante do quadro irreversível, resolveram, depois de algum tempo, demonstrar calma e aguardar os acontecimentos. Fosse lá o que Deus estivesse estabelecido, ou aprontado.
Quando chegaram à fazenda, já o gerente acorreu solidário, abrindo a cancela. Trajava uma calça jeans apertada, uma camisa de tergal listrada, botas e chapéu country: um verdadeiro caubói. As mulheres se entreolharam desconfiadas: ele em nada se parecia com o caboclo ingênuo e simplório desenhado pelos maridos; e o local nada tinha de sertão abandonado em que as onças esturravam pelos derredores em toda noite de luar.
Eufórico e ridiculamente extrovertido, o capataz, depois de fechar novamente a porteira, passou um olhar perscrutador pelas mulheres e, exatamente quando todos ainda espanejavam a roupa empoeirada, foi lacônico, enfático e singularmente infeliz:
– Desgraceira, patrões, dessa veis oceis avacaiaro mermo: trouxero uma putada runha demais, sô!
No dia seguinte estavam todos de volta e, pelo menos enquanto morei por lá, nunca tive notícia de que os viciados caçadores de paca tivessem voltado à Bahia. Alguns, embora esporadicamente, tentaram se adaptar às caçadas de perdizes; outros penduraram logo as espingardas no fumeiro. Àquela altura do campeonato, caçar qualquer coisa com a esposa a tiracolo, incansável no refrão “Vamos lá, velho safado!”, realmente não dava mais.
É!…, como diz o velho provérbio: “Tudo o que é bom, dura pouco!”

A DU MOULIN MOCHA: BELA MERDA!
Logo que surgiram no mercado capixaba as espingardas mochas, o mano Adalho adquiriu uma, calibre 32, Du Moulin. Aquilo, além de inovação, era, também, uma novidade não muito aceita, principalmente por aqueles imigrantes italianos acostumados com os velhos trabucos de cão.
A notícia logo se espalhou pelo vilarejo de Marilândia e, quando em vez, batia na porta um curioso qualquer querendo ver e confirmar –com as mãos – a estranha arma. Meu pai, no começo, não renegou a origem, desdenhando os franceses e achando “aquela coisa” sem qualquer versatilidade para as caçadas de pacas. Com o tempo, porém, foi adaptando-se e, um pouco mais, já não falava nem queria outra arma.
Levava-a aonde ia, sem perdoar, jamais, o velho Toni Scarpatt que dissera, certa vez, que ele possuía um calo seco no ombro de tanto carregá-la. Mas, apesar de as palavras do Scarpatt terem atingido em cheio o brio de meu velho, tínhamos de admitir: era a mais pura verdade. O calo, talvez não, mas que os ombros serviam de cabide, ah, isto era verdade.
Depois dos 60 anos, devido as constantes crises asmáticas, meu pai parou definitivamente de trabalhar. Para não definhar de tédio, passou a perseguir os chororões do morro do Canal, os tururins da chapada do Catelan e as pacas de um capão de mata dos Lorenzonis. Esse último era o lugar preferido, já que as pacas, desfrutando da vantagem das águas do córrego São Pedro e da morosidade de meu velho pai, procriavam lá à vontade. E os anos começavam e terminavam sem que o Chapocão (cão retaco, branco, cotó e de narigão achatado) se visse compensado de suas andanças por aqueles extensos chapadões. Refestelar-se com as cabeças daqueles espertos roedores foi um sonho que, para o pobre Chapocão, nunca se realizou. Aliás, o Chapocão já conhecia todas as tocas e levava, acredito, tudo na mais sã esportividade. Contentava-se em tirá-los dos buracos e jogá-los no riacho gelado, o que sempre lhe garantia, ao retornar, um pedaço suculento de polenta passado na banha de porco.
A fazenda dos Lorenzonis ficava a um quilômetro da vila, na estrada que liga Marilândia ao distrito de São Pedro. Nela havia uma serraria em que trabalhava o clã Lorenzoni. Todos eles já estavam acostumados a ver meu pai, com seu boné à inglesa, calça de cáqui, facão Policarpo Pupim, camisa de mescla, cachorro branco cotó, espingarda no ombro, passar por ali a passos quase trôpegos, em direção ao capão de mata. Como sempre ia e vinha de mãos abanando, jamais os Lorenzonis se preocuparam em demonstrar ciúmes pelas pacas de suas propriedades.
Contudo, o boato da Du Moulin mocha havia corrido bastante e não se furtou a ferir os tímpanos dos Lorenzonis que, nessa manhã, estavam a postos, aguardando aquela hora infalível da passagem de meu velho. Estavam sentados sobre os toros do tombadouro, quando meu pai chegou e os cumprimentou. Falaram por algum tempo de outros assuntos, chegando, por fim, ao ponto desejado:
– Soubemos que comprou uma espingarda sem cão.
– Foi o Adalho, meu filho.
Foi dizendo isso e passando a arma para o magote de curiosos que, avidamente, correu mãos e olhos da coronha à mira.
– Isto deve ser uma porcaria – comentou o velho Henrique, alisando com a mão o lugar em que deveriam estar posicionados os cães.
– Muito perigosa – acrescentou o João, irmão um pouco mais novo do que o Henrique.
– Qual nada – retrucou meu pai, tomando a arma com propósito elucidativo.
Os Lorenzonis acercaram-se como meninas que brincam de roda, enquanto meu velho, entusiasmado, enumerava as vantagens.
– Esta arma não oferece qualquer perigo. É extremamente versátil, pois num único escorregar do polegar a gente tem os dois cães engatilhados, prontos para um disparo duplo, se for necessário.
E em cada argumento e explicação, mais os Lorenzonis se agrupavam, formando um bloco compacto. No meio, meu pai falava animado, sem se importar com a impaciência do Chapocão que latia afoito e desassossegado de cima do barranco da estrada. E era tal a aglutinação de pessoas, que a espingarda teve de ficar sendo examinada na vertical, pois era impossível dar a ela outra posição.
E quando todo aquele palavreado já parecia surtir o efeito desejado, com alguns Lorenzonis já até admitindo os argumentos apresentados, eis que um estrondo ensurdecedor se fez ouvir, cobrindo a todos com uma nuvem de fumaça embaçadora. Quando essa se desfez, o que havia de Lorenzonis arrepiados e boquiabertos não era fácil. No meio, qual boneco de cera branca, meu pai se mantinha ereto, lívido e imóvel.
Realmente, ainda dessa feita, os franceses não convenceriam os velhos italianos: era mesmo uma porcaria perigosa, aquela coisa: uma bela merda.
Em casa, calmo e inconformado, meu pai procurava, sem encontrar, a razão daquela detonação misteriosa. Tinha sido um vexame, um grande vexame, capaz, inclusive, de fazer com que meu pai abandonasse, por completo, aquelas caçadas de pacas lá nos Lorenzonis.
Os roedores devem ter mandado “celebrar missas em ação de graça pelo acontecido”, pois nunca mais precisaram acordar cedo, correr na frente de um cachorro idiota e mergulhar nas águas frias do córrego São Pedro.

MEXEU NAS FOLHAS, TÁ NO PICUÁ
De jabuti a lagarto, nada escapou!
Meus sobrinhos não eram muito de trocar as paqueras de um domingo por qualquer esporte. Mas, de tanto ouvirem comentários sobre as emoções das caçadas, um dia resolveram, dois deles, participar. Cláudio, o Meneghin, e Jadilson, o Zeca, ambos filhos do mano Adalho. Hoje, meus dois sobrinhos já estão casados, pais de muitos filhos. O Meneghin mora em São Mateus e o Zeca, em Linhares, ambas cidades do Espírito Santo.
Nesse dia, saímos pela madrugada, pois pretendíamos amanhecer no local. A caçada seria num pedaço de mata em que as derrubadas insularam remanescentes de jaós da mata. Ficava perto da margem da estrada que liga Linhares a Bananal.
Na época não se pensava, nem sequer em ciência, quanto mais no valor ambiental dos alígeros no equilíbrio dos ecossistemas. Por isso, o pensamento era abatê-los sem qualquer escrúpulo e, quanto mais, melhor.
A estrada era de chão batido e sem conservação. Mesmo com o sereno da noite, a poeira estava infernal. Aderia ao para-brisas, formando uma pegajosa laminha que dificultava a visão. Olhando a estrada pelas gretas da lama, conseguimos chegar ao local ainda antes que o sol retirasse o escuro da falta de luz. Com certeza, não estaria eu aqui relatando esse fato se, ao examinar minha bagagem, não percebesse que havia esquecido os cartuchos em casa.
Meus sobrinhos fitaram-me num misto de indignação e pena, não deixando de me taxar de “velho caduco” e “caçador de meia tigela”. O pior é que o calibre da minha espingarda não coincidia com o da deles, o que me deixava mesmo “no mato sem cachorros”.
Bem, o jeito era ficar sem caçar ou retornar para apanhar os cartuchos. Hoje não, mas naquele tempo seria inadmissível eu ficar na mata sem participar. Todo cuidado e cautela da ida foram subtraídos na volta. Cantando pneus nas curvas e de “pé em baixo”, desfiz o trajeto com a metade do tempo que gastara na ida, ficando como sequela apenas a perda do escapamento no primeiro mata-burros. Enfim, retornamos ao mesmo lugar.
Os jaós já estavam piando para todos os lados, o que nos deixou ainda mais tensos e nervosos. Entramos na mata e escolhemos um lugar propício aos nossos planos. Zeca empoleirou-se à direita e o Nanico ou Meneghin, à esquerda. Postei-me no meio, não sem antes recomendar mil vezes que não atirassem na direção em que eu me encontrava. Iniciei o chamamento.
O macho que se encontrava mais próximo de nós, já no meu primeiro piado, calou, o que era um ótimo sinal. Esse comportamento indica que a ave desafiada não aceita intruso e logo vem tirar satisfações.
Como de minha posição eu visse meus sobrinhos empoleirados, percebi que o Zeca começou a erguer a espingarda, fazendo pontaria e disparando um tiro… logo em seguida outro. Repôs os cartuchos… deu mais um tiro… mais outro, para, em seguida, gritar:
– Corre tio, que o desgraçado está indo embora!
A balbúrdia estava feita e então acorri ao local. Nos quatro disparos, que pelo carrego ameaçaria um robusto rinoceronte, apenas uma das asas da ave havia sido atingida. Depois do pega aqui, cerca ali, pula acolá, agarramos o pobre fugitivo.
Olhos acesos, o Zeca apalpava as penas, assoprava-as para constatar a chumbada e por fim o pior: “Está vendo só o que é um caçador, papudo?” A pobre ave não respondeu à subjeção, mas, se lhe fosse possível, bem daria boa gargalhada.
– Às posições –, ordenei.
Jaó no alforje, posições tomadas e um intervalo de 15 minutos de pleno silêncio para que o pequeno trecho de mata recobrasse a serenidade perdida.
Mais um pouco e, agora, o Nanico era quem tomava posição de alerta. Como havia milhares de pernilongos, seu rosto foi ficando preto deles e nada de movimento para espantá-los. Pensei: que diabo estará o Nanico vendo?
Mais um pouco, o braço direito dele, com a velocidade de um ponteiro de marcar as horas de um relógio, foi deslizando para o cão da espingarda. Concomitantemente, todo o seu corpo se contorcia para a direção do que estava vendo. Verifiquei, também, que a arma se elevava sinistramente. Pontaria demorada, um tremendo disparo e um grito vulcânico:
– Corre! Corre tio! Feri um macuco!
Bem, esta era demais até para mim. Arranquei até as folhas da choça e corri para o local do disparo. O Zeca também pulou e veio solidário à proeza do Nanico. O transtorno foi geral. De cima do poleiro, ele comandava as ações:
– Devagar, tio, devagar. Pode ser que esteja machucado e poderá voar.
– Onde foi mesmo?
– Devagar, devagar… Um pouco mais à sua frente, numa depressão do terreno.
Firmei os olhos e vislumbrei algo marrom-acinzentado. Confesso que um calafrio me vadeou pela espinha. Teria mesmo um macuco ali naquele capão de mata? Depois, agucei os ouvidos e não tive dúvidas de que o som de ranger de dentes vinha do lugar indicado.
– Diabos – pensei –, que espécie de macuco é esta que parece possuir dentes? Estaria eu diante de uma nova espécie de Tinamídeo, com sua origem reptiliana ainda marcante?
Pé ante pé, fui-me aproximando. Dedo no gatilho, pontaria firme. Pelos flancos, mais duas espingardas apontavam ameaçadoras. Era difícil, quase impossível, para qualquer ser vivo escapar daquele cerco mortal. Umas folhas dependuradas dificultavam minha visão, mas não o bastante para, depois de alguns passos, reconhecer, no galináceo do Meneghin, o mais pacato, indefeso, abestalhado, lento e imprestável jabuti.
As reações alérgicas no rosto do Menheghin, por causa das picadas dos mosquitos, atestavam o alto preço do imperdoável equívoco: parecia acometido por catapora galopante.
Risos, chacotas e, novamente, às posições. Com aquele novo transtorno, até a mais idiota ameba ficaria assustada. Por isso, passamos mais de hora em silêncio absoluto, fim da qual quase engoli o pio de tururim com um disparo inesperado feito com pólvora comum. Para variar, os gritos de praxe e o pulo do poleiro. O Nanico e eu nos mantivemos em nossas posições, pois ainda não havíamos sido requisitados.
E, disparo após disparo, o Zeca foi se distanciando pela mata. O eco, a cada minuto ia diminuindo, até o ponto de percebermos que já estava a mais de 200 metros de nós. Atentando para o perigo de ele se perder, ergui-me e falei com o Mênego Canarim – era mais um apelido de meu mais encrenqueiro sobrinho, Cláudio.
– Aqui, durante um mês, nem uma anta surda passará mais. Vamos prestar atenção na direção do Zeca, pois estou certo de que não saberá voltar. A direção foi bem marcada, mas ficamos preocupados com o silêncio que se fez em seguida. Só o Mênego, jovem de audição afinada, disse ter ouvido um grito de chamamento.
– Que diabo passou debaixo do poleiro do Zeca? – perguntou-me o Nanico.
– Se fosse na África, eu optaria por uma manada de elefantes – pilheriei um tanto sem graça.
Depois de uns 100 metros de caminhada, começamos a ouvir nitidamente:
– Tio! Ô tio! …
– Que foi? – Respondi aflito.
– Tragam munição. Depressa.
– Fique aqui e não saia – recomendei ao Nanico. Irei sem picada mesmo, para não atrasar. O Zeca deve ter ferido um leão fugido de algum caminhão de circo.
Quando cheguei, percebi o Zeca totalmente molhado de suor, olhos fixos numa moita, mão direita ordenando-me cautela. Aproximei-me o mais devagar possível e vi, no meio da moita, baleado, semimorto e ofegante, um mísero lagarto. Sua cabeça agonizante estava entre paus podres, a cauda quase esfarrapada de tantos tiros, imóvel. Desengatilhei a arma e o apanhei. Era perceptível a diferença de peso entre a traseira e a dianteira, pois só o rabo retinha quase meio quilo de chumbo.
E meu sobrinho, mais realizado que nunca, ainda teve fôlego para gargantear:
– Tá vendo aí, tio? Comigo é assim: não escapa nada. Mexeu nas folhas, tá no picuá.

MISTURADO AINDA É PIOR
O estranho desabafo
Em 1973, quando abandonei as caçadas por reconhecer o respeito que a Natureza merece, podia afirmar que era alguém que conhecia profundamente a vida de boa parte dos inhambus brasileiros.
As caçadas foram abandonadas, mas não minha constante paixão por essas aves. Construí um viveiro que funcionou durante três anos como entretenimento, contendo mais de 200 inhambus, quase todos capturados por mim.
Todos os anos eu partia para algum estado brasileiro à cata de novas espécies. Minha intenção era ter, pelo menos, um casal de cada espécie brasileira; fazer com que os casais reproduzissem para depois soltar os excedentes nas matas em que foram extintos. A luta era grande, mas a teimosia, maior. E no exato momento em que eu abandonava as caçadas, o Velhão o fazia também.
Bolei uma sofisticada rede de apanha, cognominada pelo saudoso naturalista Werner C. A. Bokerman, da seção de aves do Parque Zoológico de São Paulo, de EQUIPO FREGONA, que, depois de centenas de modificações alcançou o que considerei, não a perfeição, mas algo bem próximo dela: o lacinho.
Deixei de lado a parte esportiva e passei a me preocupar com o cunho científico e ecológico. E o mano, sempre por perto, dando apoio e me ensinando algumas lições que eu ainda não havia aprendido. Jamais alguém alcançará o estágio do mano na técnica de atrair inhambus! Ele sabia tudo! Acho que era um tipo de inhambu, personificado.
Bem…. Um dia, preocupado em obter uma fêmea de jaó do litoral, o mano e eu fomos a uma faixa de matas próxima à Reserva Biológica Sooretama – um dos poucos lugares em que existia a ave. O local era perigoso, pois devido a proximidade da Reserva, os agentes florestais viviam fazendo continuadas rondas por lá.
Saímos de Linhares às duas horas e, quando desligamos o carro, ainda era noite escura. Distanciei-me alguns metros do mano, porque a extravagância que fizera no dia anterior, tomando vitaminas de abacate com mamão, deixara-me “insociável”.
Ali esperamos o dia amanhecer, emitindo piados de jaó e já obtendo resposta ao longe, de um macho afoito. Retomamos nosso alforje e, com o auxílio de lanternas, fomos progredindo selva adentro, pondo-nos a menos de trinta metros da ave. Escolhemos um lugar adequado e iniciamos as armadilhas, na esperança de que o macho estivesse devidamente acompanhado dos costumeiros haréns. (As fêmeas em reprodução procuram mais o macho ao amanhecer ou ao escurecer. Daí nosso madrugar.)
Uma hora depois, estava tudo como manda o figurino: choça espaçosa e quase que hermeticamente fechada, alto-falantes posicionados lateralmente, redes de apanha bem camufladas: tudo em ordem. Entramos na choça, ajeitamo-nos e iniciamos o desafio de atrair a ave.
Minha barriga, no entanto, não resistiu ao ataque do abacate com mamão. Roncando, criando gases horríveis, totalmente desequilibrada. Enquanto estava fora da choça, aliviei-me sem grandes problemas, sempre buscando uma distância considerável para não afetar as narinas sensíveis do mano que, diga-se de passagem, detestava “traques”. Agora, porém, dentro de uma choça, seria impossível ele não sentir “a mudança do clima”.
Enquanto pude, fui resistindo, prendendo, contorcendo-me, evitando que o mano ficasse decepcionado comigo. Depois de algumas horas, eu já estava com a barriga mais tensa que um baiacu zangado, e o diabo do jaó não aparecia.
Um suor frio começou a brotar-me da fronte e então, no desespero, tive uma ideia que me pareceu, em princípio, digna de um gênio. Lembrei-me do repelente spray da Raid, de odor horrível, que eu tinha na sacola. Embora ali não houvesse tantos mosquitos, bem justificaria minha proverbial fama de desperdiçador. Retirei a latinha em aerossol do picuá, reclamei da voracidade dos pernilongos, pulverizei o ambiente e, ao mesmo tempo, desafoguei, ficando atento às reações do mano que, tranquilo e atento, vigiava o lado contrário.
Ele não esboçou qualquer reação. Permanecia imóvel, com seu pio na mão esquerda, os olhos pela abertura da choça, pernas cruzadas. O ar ficou impregnado de um mau-cheiro jamais sentido. Foram muitos minutos necessários para que a poluição aeróbia se desfizesse. Quietei-me mais tranquilo e não tive o mínimo escrúpulo em repetir a dose, na primeira reviravolta do intestino. Mais uma vez, o mano permaneceu imóvel, talvez apenas recriminando, intimamente, meu velho costume de desperdiçar veneno sem necessidade. E, novamente, o ar ficou irrespirável e eu totalmente senhor da situação. Achei-me um “gênio”, pois se não tivesse tido aquela ideia, talvez a barriga explodisse antes de o jaó chegar.
Na investida seguinte, porém, veio o imprevisível. Movendo-se para a frente, o mano enfiou o nariz pela abertura da choça e, sem olhar, colocou o pio sobre o picuá, deu seu sinal característico “hummmm!” e observou terrivelmente:
– Nunca suportei “traques”, mas misturado ainda é pior!
A choça era bastante escura, mas não o bastante para não se perceber o enrubescimento que se espalhou por todo o meu rosto.
Sugeri que ele fosse localizar outro jaó enquanto eu permanecia ali lutando para capturar o que estava piando. Ele foi logo saindo da choça, tirando o facão da cintura e abrindo picada pra bem longe. Nunca fui tão persuasivo!

ENTRE A VIDA E A MORTE: UMA PATIOBA TEMPERAMENTAL
Quando a fiscalização apertou um pouco mais lá no Espírito Santo, já eram visíveis os estragos causados à Mata Atlântica. Como muitos de meus parentes não soubessem trabalhar em outra coisa a não ser madeira, e como nesse tempo parecia não haver nada contrário – principalmente nos estados do norte e nordeste –, resolvemos nos mudar para o Maranhão. Nesse tempo, eu já não caçava mais os inhambus, mas, como já disse algumas vezes, tornei-me tanto quanto dependente da captura e da criação dos mesmos. Durante os dias úteis, fazíamos parte dos comboios que, quais formigas-correição, traziam as madeiras das matas do Pindaré para as indústrias de Imperatriz.
Devido ao trabalho, eu vivia mais nas matas do que na cidade. Aos domingos e feriados, eu esquecia os caminhões, mas tomava a camioneta, convidava um de meus funcionários ou sobrinho e ia capturar algum inhambu localizado durante a semana.
E foi assim que saí com o Zé Bigode, um funcionário especializado em organizar extração de madeiras. Minha intenção era capturar um inhambu que os caboclos denominavam de “poca-taquara” e que, cientificamente, é conhecido como Crypturellus Obsoletus griseiventris.
Pelo som estridente do piado, os caboclos logo acharam uma denominação atinente: inhambu poca-taquara. É que, em tempo de coivaras, os taquaruçus espocam como fogos nos réveillons. Foi o que de mais parecido os caboclos encontraram para definir o piado desse inhambu.
Quando ouvi aquele som pela primeira vez, fiquei curiosíssimo, pois, pela experiência sabia tratar-se de algum tipo de inhambu que eu ainda não conhecia.
Eu já havia gravado, embora sofrivelmente, o piado de um deles, o que me custou semanas de tentativas e muitos carregos de pilhas para meu gravador. O piado desse inhambu é quase impossível de ser reproduzido com a boca, e pios para eles ainda não existiam. O máximo que eu podia fazer era, nos horários mais propícios (cair da tarde), excitá-los imitando outros inhambus próprios da região: chorões, pés-de-serra, tururins, sururinas…
Os pássaros, assim como os humanos, num ambiente de festa e alegria, também entram no clima, ficam excitados e piam. Foi usando essa estratégia que consegui gravar o primeiro piado. Depois disso, tudo ficou muito fácil, principalmente quando descobri que, entre os inhambus, o “poca-taquara” é o mais manso do gênero Crypturellus.
Da estrada, emiti alguns piados e a resposta não demorou. Zé Bigode e eu adentramos, escolhemos uma catana aprazível, praticamente já camuflada por um arbusto de um a dois metros de altura, e com uma copa bem maior do que se vê em plantas com aquele tamanho. Por isso, o trabalho de camuflar a choça foi bastante amenizado, já que o arbusto cobria toda a frente da catana.
E entre limpar o local, estender a choça feita com um tecido verde-cana extraído de parte de um velho paraquedas, – que me foi presenteado pelo Dr. Fernando Silva, meu cunhado, nesse tempo, paraquedista da aeronáutica – armar os laços e dar os arremates, passamos ali sob o tal arbusto pelo menos umas 15 vezes.
O que jamais iríamos imaginar é que, sobre ele, enrolada em cima de um fino galho em gancho, dormia uma surucucu-bico-de-papagaio, conhecida também por patioba. Acordada por nossos constantes vaivéns, a cobra estava nervosa, pronta para reagir a tamanho desrespeito à sua privacidade.
Sem suspeitar de sua presença ali, depois de tudo prontinho, entramos na choça e começamos a nos ajeitar. E já ia iniciar o chamamento, quando percebi uma folha de caeté impedindo-me a visão de um dos laços. Pedi, então, ao Zé que saísse novamente e fosse baixar a folha, ao que ele prontamente atendeu. Ao passar debaixo do arbusto, recebeu o troco do atrevimento: foi picado no pescoço. Ele deu um passo largo (que imaginei um tropeção) e falou em voz alta:
– Seu Livaldo, uma cobra me picou!
Como não tivesse ouvido direito, arreliei:
– Não converse alto, não! O inhambu deve estar por perto.
– Você não entendeu. Fui picado por uma surucucu-papagaio.
– O quê?
– É isso mesmo que você ouviu. Saia pela lateral porque ela está em cima dessa arvorezinha aí na frente.
Muito nervoso, esgueirei-me pela lateral e fui verificar. Estavam lá, no pescoço do Zé, quatro gotas de sangue, indicando os furos das presas. Sem examinar que tipo de cobra era, logo puxei o picuá e apanhei as seis ampolas de soro antiofídico, a seringa e a agulha (havia vinte anos eu carregara esse tipo de medicamento comigo sem nunca haver precisado) e, tremendo como caniço ao vento, preparei a primeira ampola.
Quando olhei o companheiro, quase desmaiei: estava já caído, todo molhado de suor, lívido como um defunto. Meu Deus, pensei, ele já está morto!
Chamei-o e ele respondeu, sumidamente, dizendo que nem precisava desperdiçar a injeção. Sem pensar, apanhei o cantil com água e comecei a lavar a picada e a sugar, com a boca, o sangue que ia saindo. Eu puxava, cuspia, lavava com água e repetia a operação. Fiz isso umas dez vezes. Depois, rasguei-lhe a camisa e tentei aplicar-lhe o soro nas costas: a agulha quebrou. Mas eu sempre levava duas. Então, tomei a outra, acalmei-me o quanto pude, firmei bem a mão e injetei a primeira ampola. E assim, uma a uma, injetei as seis que carregava comigo. Eu fui fazendo isso sem conversar e sem olhar para o amigo que continuava de bruços, estirado nas folhas. Quando terminei, puxei-o pelo ombro e ele me pareceu mais corado. Disse-me que já estava melhorando. A crise inicial havia passado e, com a ajuda de Deus, e do soro, logo estaria de pé.
Meia hora depois ele me pareceu totalmente normal. Até ria do acontecido, pilheriando:
– Da cobra vou esquecer, mas da chupadinha no pescoço, vai ser difícil!
Rimos bastante, felizes pela minha persistência de carregar, durante 20 anos, soro antiofídico no picuá.
Resolvemos, então, verificar que cobra o havia picado. Era uma patioba bem adulta, com quase meio-metro de comprimento, bastante magra e nervosa. Cortei uma vara, joguei-a no chão e a matei.
– É – disse eu –, acho que hoje já fizemos nossa caçada. Vamos embora?
Ele concordou, mas quando comecei a desatar a choça, o inhambu piou a menos de 15 metros da gente. Então perguntei:
– Teria problema ficarmos aqui mais alguns minutos? É que nem em New York lhe dariam tratamento diferente do soro que apliquei.
– Nenhum – disse-me ele –, estou ótimo. Do veneno da cobra sei que estou livre. Resta-me agora escapar das furadas que você me deu. Estão doendo pra c….
Isso não me era novidade, pois certa vez troquei a maior crise reumática de meu velho pai, que gemia pela noite, por uma simples furadinha na bunda para aplicar-lhe Irgapirin.
Foi aí que notei serem os guaçus do Norte/Nordeste, os inhambus mais mansos de todo o gênero. Como se nada houvesse acontecido ali, ele veio, chegou a ver a gente na choça e acabou indo lá e pisando no laço. Foi como se quisesse nos premiar pela persistência.
Coloquei-o na camisinha de força, tomamos o carro e retornamos para Imperatriz (MA). Eu não via a hora de chegar, não só para estar com meu companheiro em “lugar seguro” como para admirar o pássaro que estava vendo pela primeira vez.
Meu cunhado Vicente veio receber-me. Admirou o pássaro e perguntou o motivo de nossa volta tão cedo. Narrei a ele o acontecido e aí veio o pior:
– Acho que devemos levá-lo ao médico para descartarmos as possibilidades de ser acusados de negligência ao funcionário.
Ainda tentei argumentar que, em se tratando de picadas de cobras venenosas, o tratamento é soro e nada mais. Não adiantou: meu cunhado apanhou o Zé e o levou para um hospital. Lá – acredite se quiser –, fizeram uma incisão no lugar da picada.
Durante 15 dias, ele viveu numa poça de sangue, pois toda transfusão saía pela incisão. Com isso, contraiu malária, icterícia e outras doenças, e só não morreu mesmo porque não era seu tempo. Cem dias depois, ainda meio capenga, voltou ao serviço.

SILVÃO: uma triste história de amor
Depois que abandonei as caçadas e comecei a criar pássaros em cativeiro, foi que me dei conta das maldades que praticara contra essas criaturas lindas deixadas por Deus. Nesse tempo, eu já me encontrava em Imperatriz havia alguns anos e resolvi retornar a Linhares (ES), a fim de visitar amigos e, principalmente, familiares que preferiram ficar por lá.
Linhares! Sempre limpa, ruas largas, pouco movimento – aparentemente, um lugar calmo para se viver. Da janela do terceiro andar do prédio do mano Adalho, pude ver, no andar de baixo, uma gaiola com um pássaro bizarro dentro. Ele estava engurujado, quieto num canto da gaiola, morrendo aos poucos, quiçá, de inanição ou tédio. O certo é que, devido aos meus olhos cansados, eu só lobrigava um pequeno monte de penas carijó-acinzentado, bem no cantinho da minúscula e desconfortável prisão.
Apanhei os óculos, encavalei-o sobre o nariz ainda ardendo da viagem pelo Nordeste e fixei os olhos minuciosamente. Droga, aquilo seria uma coruja?
Enquanto maquinava suposições, eis que meu sobrinho chega à janela, enfia um pires com carne moída congelada dentro e diz:
– Acorda, Silvão, o dia já vai alto.
A coruja sobressaltou-se, arregalou dois grandes e tristes olhos e, debilmente, apanhou um pouco da carne, ficando longo tempo com ela no bico e, depois, a contragosto, engoliu como criança tomando remédio.
Silvão! …. Por que, Silvão?
Desci pela escada, abri a porta da casa de meu sobrinho que morava no andar de baixo e fui ver de perto. Ele vinha saindo do banheiro e, vendo-me curioso, explicou:
– É o Silvão! Não se parece com ele?
Forcei a mente e a semelhança que me ocorreu, depois de consultada, era verdadeira. Não sei o porquê de os apelidos sempre se encaixarem tão bem. Silvão era um bancário amigo nosso, dos tempos em que eu morava em Linhares. Meu sobrinho continuou:
– Matei a mãe dessa corujinha por engano, numa caçada de perdiz, e, para amenizar minha falta, trouxe-a para criar. Eram duas, mas uma eu sacrifiquei, pois nascera aleijada. Acho que esta aí também não sobreviverá.
Disse isso e desceu a escada apressado. Era cirurgião-dentista e uma cara esfacelada num acidente automobilístico aguardava-o no hospital. Acheguei-me:
– Silvão?!…
Ele cravou em mim seus melancólicos grandes olhos. Não sei a razão, mas a verdade é que aquele olhar nunca mais me deixou. À noite, tornei a descer. Expliquei a meu sobrinho que o Silvão era ave notívaga e que não podia ser tratada com carne congelada moída, servida durante o dia. Pedi permissão para variar o cardápio e soltá-lo à noite, fechando as janelas para que ele não saísse e se perdesse.
No dia seguinte a casa estava em pandarecos: cagadas, vidros quebrados pelo chão, abajures decorados com riscos fedorentos…. Um pandemônio. Tentando planar desengonçadamente, o Silvão pareceu-se mais com um pequeno tufão solto pela casa.
Sem perder a calma, Miriam, esposa de meu sobrinho, limpou tudo sem reclamar. Fiquei bastante desconcertado, mas a singeleza da Miriam encorajou-me a repetir o estrago na noite seguinte. Na terceira, admiti: o Silvão não podia ficar solto em meio aos abajures, copos e vidrarias. Arrumei como pude a gaiola e comecei a tratá-lo mais dignamente.
Toda vez em que eu me debruçava na janela de cima e o chamava, ele acordava, batia as asas e cravava aqueles olhos dependentes em mim, como a pedir socorro e piedade. Era uma onomatopeia tácita, um olhar apaixonado, desses que falam mais do que mil palavras.
– Zeca (era assim que, carinhosamente, eu chamava meu sobrinho), se importaria se eu levasse o Silvão comigo para Imperatriz?
– Não diga que vai me quebrar este galho?
– Ótimo. Depois de amanhã ele conhecerá outras plagas.
Tomei-o nas mãos, empoleirei-o no dedo e conversei:
– Está pronto para partir, Silvão? São três mil quilômetros de distância. Você nunca mais verá estas paisagens, mas terá uma Amazônia inteira a seu dispor. Vou tratá-lo, deixá-lo forte, fazer de você o terror dos besouros, dos camundongos…
Ele me olhou – sempre me olhava de maneira triste e insegura. Também olhei dentro de seus grandes olhos e “conversamos tacitamente”. A louca reviravolta em sua vida doeu-me fundo. Perder a mãe, o irmão, deixar a terra natal para nunca mais voltar! …
Viajamos. Em cada pensão, restaurante ou lanchonete, ele era sempre o primeiro a comer. Carne, minhocas…. Até pão com leite ele arriscou algumas vezes. Chegamos a Imperatriz. Mangueiras, muitas outras árvores e muito espaço. Nada de prisão. Passou a viver solto noite e dia. Todas as manhãs eu abatia um entre os milhares de pardais que danificavam as alfaces de minha mãe e chamava:
– Silvão, o café!
Em voos rasantes, ele se aproximava. Fitava a vítima, concentrava-se, eriçara as penas, chirriava e, mais desengonçado que um camelo recém-nascido, dava seu bote certeiro. Cravava as unhas, metia o bico no pescoço e, qual um gato sádico, esperava uma reação que nunca vinha.
Um mês depois, o Silvão o era de fato: forte, imponente, atrevido e namorador. Arriscava-se a devaneios fortuitos e não era raro dispensar os pardais da manhã. Percebi que já caçava sozinho e que arranjara uma namorada. É incrível como isto acontece no mundo animal! Uma corujinha espírito-santense juntando-se a outra do Maranhão, a mais de três mil quilômetros, num bairro da cidade!
Sempre sonolento, passava o dia em cima dos armários ou no peitoril da janela. Todo mundo respeitava seu sono e gostava muito dele.
Em janeiro, as chuvas do nosso inverno começaram a apertar o cerco. Num dia pela manhã encontrei o Silvão do lado de fora do muro, todo molhado, incapacitado de voar e atravessar o obstáculo, porque suas penas estavam encharcadas. Tomei-o nas mãos e conversamos na surdina. Como sempre, ele apenas ouvia, e se respondia, era com os olhos.
– Silvão, aqui é diferente. Agora vai chover muito. Haverá violentos temporais e você não poderá se distanciar tanto. Tenha paciência, fortifique-se bem e no próximo verão, se quiser, poderei levá-lo a uma grande floresta. Sei que vou sentir muito sua falta, mas se isto o fizer feliz, eu farei.
Ia conversando com ele enquanto o comprimia carinhosamente numa fralda felpuda que lhe absorvia a umidade. Como sempre, ele me olhava com aqueles olhos dependentes, cheios de mistério e de agradecimentos. Pareciam refletir a saudade dos antigos escravos quando aqui desembarcaram para nunca mais voltar.
Coloquei-o em cima da pia e fui abater um pardal. Ele o devorou com sofreguidão e depois foi dormir. Assim, os dias foram passando. Sempre que ouvia minha voz, ele chirriava e vinha. Um dia, porém, não respondeu, e não veio.
Ao meio-dia, intensifiquei as buscas. Conclamei meus funcionários e sobrinhos, mas nada encontramos. Vasculhei a juquira contígua. Nada. Havia chovido muito durante a noite, mas amanhecera ensolarado e quente. Chamei-o a cada minuto. Eu sabia que ele estava em apuros, em algum lugar, em grande apuro.
A noite veio. Meu cunhado chegou do serviço. Estranhou minha preocupação:
– Que aconteceu?
– O Silvão, aquele ingrato, foi embora sem se despedir.
– Vi-o hoje pela manhã. Estava dormindo em cima do pneu do N12, todo molhado. Pensei que isso fosse normal.
A noite havia chegado e não pude mais continuar as buscas. Os trovões ribombavam, os relâmpagos riscavam o firmamento, densas nuvens acotovelavam-se no horizonte. Em última instância, gritei por ele, mas só o eco dos trovões respondia bem distante.
Na manhã seguinte, bem cedo, fui vasculhar o lugar em que ele havia sido visto pela última vez. Não muito longe dali, ferido por uma pelotada, ele estava morto. Arrastou-se até rente ao muro e ali, certamente, o sol do dia e a chuva da noite terminaram a maldade daquela infeliz pelotada. Estava morto, mas os seus olhos grandes ainda me diziam muitas coisas, coisas que só eu entendia. Tomei-o comovido e, como menino sentimental, escondido por detrás de um arbusto, apertei-o contra o rosto e lamentei:
– Oh, meu Silvão! Por que não me escutou? Tinha de sair com um tempo daquele?
Minha filha, que também procurava, ao me encontrar com ele morto nas mãos, saiu correndo e chorando. Sem saber o que dizer, apenas sentindo o que palavra alguma exprimiria, depositei-o embaixo de uma moita e saí. Ali era seu mundo e, tenho certeza, outras corujas ali farão suas melopeias e bradarão à lua cantilenas de amor e de saudades.
Durante a noite, não consegui dormir direito. Aqueles grandes e tristes olhos feriam a escuridão do quarto e me olhavam, olhavam. Lá fora, a companheira aflita chamava, mas fora ela, tudo era silêncio tumular.
Nuvens negras passeavam no céu e pelos desvãos delas, raios límpidos do luar vinham aos vitrais da janela. Formavam estranhos desenhos e eu olhava cheio de angústia para aquelas almas sem vida que me falavam de um passarinho muito triste. Então, divaguei em pensamento:
– Silvão, não fique triste. Sua companheira o chama em vão, sem saber que é parte da essência, é ramo, é pedaço, é continuação da primeira coruja que Deus criou. Ela está “grávida”, esperando ovinhos seus. Você continuará existindo, Silvão, porque de você sairão outras corujinhas que voarão por aí, e o visitarão em seu jazigo.
É a vida!
Tudo vem e um dia vai embora, tudo se renova, porque, se é triste a morte, pior será viver eternamente por aqui.

OBRIGADO, PAI! …
Conversão e saudade
Ouço, ao longe, o apito das sirenes das fábricas. Elas são sempre acionadas um pouco antes do amanhecer. Através delas estou condicionado a despertar. Concomitantemente, um galo, a algumas quadras, canta solitário. Em seguida, meus jaós do campo (baixinho no começo) começam a alvorada mais linda e excêntrica de um citadino. Em poucos minutos, piados de guaçus, tururins, zabelês, chororós, chintãs, codornas, perdizes, macucos, chorões, choronas, pés-de-serra, e tantos mais, afinam seus instrumentos, numa sinfonia silvícola, triste e pura, como são tristes e puros os lamentos de um sertanejo nato.
Estirado na cama, olhos fixos no telhado e ouvidos atentos, fico a me deleitar com tudo aquilo, como se em êxtase me visse transportado ao mais longínquo mundo em que nasci. Os saltatórios ainda cricrilam temerosos, pois reconhecem sua função de petiscos nesse ecossistema, para eles, hostil.
Cambaxirras, pardais, rolinhas, sanhaços, tiês, coleirinhas, tisis, bigodinhos… fazem o fundo sonoro, baixinho como violinos a acompanharem, magistralmente, ora os tenores das azulonas, ora os graves dos pés-de-serra.
Ah! Quantos não têm o privilégio de despertar ao som dessa orquestra!
Sento-me na cama. Minhas orações sobem aos céus, mescladas à maviosidade dos gorjeios. Se eu fosse Deus, pediria aos Querubins e Serafins que silenciassem suas harpas e trombetas, para ouvir por inteiro esta alvorada de saudades.
Depois do primeiro instante de excitação, dos bons-dias de agradecimento da Natureza que desperta, vem um silêncio profundo, apenas entrecortado pelos jaós e pixunas, cujos piados ainda continuarão por muitas horas.
Meus pensamentos caminham, retornam à infância. Fico a lembrar o dia em que o Adalho, meu mano mais velho, trouxe três ovos de macuco e os presenteou ao nosso velho pai. Sob uma galinha choca, depois de alguns dias, os bichinhos nasceram.
Enxada nas mãos, todas as manhãs, quase capengando, lá ia meu velho pai, acompanhado dos três bichinhos, quintal adentro. Tirava paus podres do lugar, cavoucava a terra úmida…. Qualquer coisa estranha ou pessoa que se aproximasse, as constantes recomendações:
– Cuidado! Olha os macuquinhos!
Depois, eles cresceram, acasalaram, tiveram filhotes e durante 13 anos foram a preocupação e a alegria do meu querido velho. Eles pereceram, seus filhotes ficaram. A esses, juntaram-se chorões, tururins…
Um dia, o inevitável: derrame após derrame cerebral, meu velho partiu para sempre. Não posso esquecer sua grande preocupação com os bichinhos. Estirado em seu leito de dor, entre lampejos de lucidez, recomendava:
– Meus bichos estão bem? Tratou-os hoje? Se eu não escapar dessa, cuide deles pra mim.
E de fato, meu pai não resistiu. Como é cruel a vida!
Por isso, estes piados ternos, quase lúgubres, fazem descer das alturas a presença de meu velho. Em cada longo piado de sururina, toda uma saudade aninha-se no meu coração. “Cuidado! Olha os macuquinhos!”
Os filhos dos filhos daqueles macuquinhos ainda estão aqui comigo. E se paro para pensar, pareço ouvir lá fora o ruído de passos trôpegos e o cavoucar da enxada de meu querido velho.
Que Deus o deixe, meu pai, no além, criar seus bichinhos, raspar sua enxada, ensinar o respeito por esses “répteis glorificados” que se ajustaram para voar e cantar, amainando nossas tristezas.
Em cada canto, numa onomatopeia de saudade, ouço o chamado dos meus bichinhos, piando, ouriçando o topete, fazendo circunvoluções nupciais. Abro a janela, olho o firmamento. Depois desço. No portão de entrada, os mais mansos me esperam. Jogo milho, arroz, grãos diversos, verduras picadas, gemas de ovos…. Eles disputam, brigam. Eu acho graça em tudo aquilo. Natureza maravilhosa, retoque infalível da sutileza do Criador.
Todos os dias, esta mesma rotina de privilégio e de saudades. Desperto feliz, encontro meus pássaros, revejo meu velho, vou vivendo.
Aqui é um recanto sossegado em que a rolinha pode passear com seus filhotinhos pelo quintal. As crianças já entenderam a singeleza de tudo isso, e gatos ainda não apareceram.
Enquanto eu viver, quero que Deus me faça ver, cada vez mais belos, os passarinhos;
que meu corpo não se habitue jamais ao costume de usar uma sombra sem percebê-la;
que meus pensamentos sejam sempre direcionados para a Natureza;
que minha ciência não siga os rumos tristes dos malfeitores;
que minhas pernas me carreguem pelos bosques, planícies e me sublevem aos píncaros, para de lá vislumbrar o esplendor dos rios, dos mares, do verde, do pôr-do-sol, do luar, dos animais e que, finalmente, meus ouvidos, todas as manhãs, continuem ouvindo, lá de dentro de minha saudade, o cavoucar da enxada, o ruído dos passos trôpegos e as eternas recomendações:
“Cuidado! Olha meus macuquinhos!”

PERSONAGENS E LUGARES
Adalho, Velhão: mano primogênito, aquele que aprendera tudo sobre caçadas de inhambus e de pacas. Faleceu vítima de infarto.
Agenor Gava: vizinho de meu pai e caçador de paca inveterado. Tinha o péssimo costume de conversar cutucando o interlocutor. Meu pai detestava esse cacoete.
Albertino Cordeiro – meeiro de meu pai. Brincalhão e ótimo cozinheiro. Ainda vive próximo à cidade do Rio de Janeiro.
Antônio Manqueta – vigia das terras do Dr. Alberico, médico de Vitória – ES.
Arlindo Falqueto – meu cunhado. Grandalhão e, este sim, maluco. Não tinha medo de nada. Contava histórias como ninguém. Condimentava os acontecimentos e fazia todo mundo rir. Embora doente, ainda vive em Altamira – PA. Sua coleção de apelidos é grande: Quoque, Tu Quoque Grapii, Grapuá, Esguatcheron, Esbirlo…
Balim: tabelião de uma cidade vizinha, que via na caçada, uma de suas razões de viver.
Bragatto – coletor federal da cidade de Linhares – ES. Caçador inveterado. Não sei se ainda vive.
Cachorro Navegante – cão de caça vira-latas, marrom ou bege escuro, comprido e de pernas curtas.
Carlos Franco: fazendeiro próximo a Marilândia.
Catelan: dono da única serraria da vila, falecido, primeiro morador à entrada da, hoje, cidade de Marilândia.
Chapada do Catelan – fazia divisa com o morro do Eurides Canal.
Chapocão – cão retaco, branco, cotó e de narigão achatado: mais um da coleção do mano Adalho.
Cícero, o portuário – kardecista, gostava de capturar e criar pássaros. Trabalhava no porto de Vitória – ES. Era excêntrico e, por vezes, parecia maluco, mas era normal: apenas suas ideias pareciam esquisitas.
Cláudio, o Mênego Canarim, o Meneghin – meu sobrinho ranheta. Devido seu temperamento, hoje vive sozinho num sítio próximo à cidade de São Mateus – ES. Era casado com a filha do Antério Caliman, irmão do Guido, do Elpídio e do Ermando. Tem três filhas formadas e um filho chegando lá.
Delcir, o Cirão – meu sobrinho, avesso a caçadas e a qualquer esporte que agrida a Natureza. Gosta muito de futebol. É empresário e, junto com mais três irmãos, é dono de um pequeno “império” em Uruará – PA.
Deolindo – um baiano, hoje falecido, fazendeiro e pecuarista. Suas terras ficavam logo acima de Açailândia – MA.
Dolmino Fregona – mano nove anos mais velho do que eu. Foi ferreiro, dentista, motorista de caminhão, mestre de obras, ourives… Ainda vive em Linhares – ES. Também é detentor de nominações extravagantes: Cranuto, Bismuto, Tetra Ultra, Brusafer, Pipinuca…
Domiciano Scarpat – tomador de conta das terras em Rancho Alto – ES, pertencentes, também, ao Dr. Alberico, médico de Vitória – ES.
Dr. Galeno – foi meu professor de História Geral na cidade de Colatina e, depois, juiz de Direito na cidade de Linhares – ES.
Dr. Joel Coelho – médico, clínico geral, natural de Picos – PI. Não tinha frescura pra nada. Operava amídalas no fundo do quintal, matava cachorros que latiam nas proximidades de sua casa, jogava futebol e praticava a caridade à exaustão. Nunca perguntava por pagamento. Atendia a todo mundo do mesmo jeito. Diziam-no maluco e, eu, santo. Faleceu há alguns anos. Sua, também santa mulher, ainda vive em Linhares – ES.
Dr. Pedro Boninsenha – clínico geral, dependente, não só de caçadas, mas, principalmente, da bebida e do cigarro. Era magruço como um pica-pau. Inteligente, porém, não sábio, pois da última vez que o vi estava prostrado numa cama, sem forças para livrar-se “das drogas”: cigarro, cerveja e wisky. Poucas pessoas conheci com tantos conhecimentos gerais.
Dr. Jayr Fregona – médico pediatra e mano três anos mais velho do que eu. Faleceu muito novo, vitimado por infarto, cruz genética de nossa família. Deixou mulher e quatro filhos formados: três médicos e um advogado.
Egídio Mariani – dentista. Raras vezes nos acompanhava nas caçadas. Era comedido, sensato…, mas, se espetado, reagia descontroladamente.
Eleutério Lorenzoni – tabelião de Marilândia. Caçador inveterado. Ainda vive na cidade de Marilândia. Fumou, durante 50 anos, quatro carteiras de cigarros por dia.
Elpídio e Guido Caliman – dois irmãos e grandes amigos. Bem-sucedidos financeiramente na vida. Hoje moram na Bahia.
José Vieira, Antônio Marquiolli, Angelim Orlandi – velhos italianos caçadores de paca do grupo do mano Adalho.
Emílio Kroscop: italiano caçador de paca dos tempos de meu pai e, subsequentemente, do mano mais velho.
Ermando e Antério – são irmãos do Elpídio e do Guido Caliman, mas detestavam caçar. Fazendeiros e produtores de frutas para exportação. Suas terras ficam logo acima da cidade de Linhares – ES. Ainda moram lá.
Eurides Canal – italiano baixinho, espinhado, pele vermelha, complexado pela estatura. Por isso, não perdia a oportunidade de enfrentar grandalhões que o interpelassem. Apanhava sempre, mas, enfrentava. Falecido.
Ezequias – chefe dos agentes florestais do IBAMA. Foi quando era chefe da guarda florestal que fui preso capturando pássaros na Reserva Federal. Depois se casou com uma de minhas primas. Está aposentado e morando na cidade de Linhares – ES.
Facão Policarpo Pupim – Policarpo é o nome de um de meus tios, falecido aos 100 anos de idade. Morava em Marechal Floriano, a poucos quilômetros da capital Vitória. Era ferreiro e seus facões criaram fama em toda região.
Fontana – um comerciante de armarinhos de Colatina – ES. Imitava com a boca todos os inhambus regionais. Um gozador de primeira linha.
Frei Elias Baldelli – frei capuchinho que ministrou a Unção dos Enfermos à minha mãe em seus últimos momentos de vida. Participou da segunda guerra mundial e sobre isso escreveu alguns livros. Reside em Belém – PA. Um santo homem.
Gabriel, o pescador – um caboclo amazonense, dono de uma posse às margens do rio Uruará – PA. Ainda vive lá.
Guerino Bravim, Guói Dio – outro gozador de mancheia. Desprendido, jamais sacrificava um divertimento por causa de dinheiro.
Henrique e João Lorenzoni – faziam parte do clã Lorenzoni. Muito religiosos. Viviam incentivando-me a ser padre secular.
Hido Canal – dentista, gozador. Muitas desgraças recaíram sobre sua família e ele acabou suicidando-se.
Hilário Bérgami – um verdadeiro Golias. Mais de dois metros de altura, fala grossa, 120 quilos, capaz de erguer a lateral de um carro pequeno, sozinho. Só utilizava sua vantagem física se fosse muito ofendido. Falecido.
Ildebrando, Piassarol, Tudo Eu: mano já falecido vítima de infarto fulminante. Não gostava de caçar, mas não via outro jeito diante de nossa insistência.
Iran Lima – um grande amigo. Trabalhava comercializando ferros velhos. Carregava uma trombose que tentava, apenas tentava impedi-lo de viver. Mesmo assim ele era goleiro nas peladas e, se convidado, enfrentava caçadas e pescarias. Viveu enquanto pode. A trombose o levou, mas não sem luta e protesto.
Izaldino Scarpat – motorista. Possuía uma camioneta e a alugava mais barato para participar da caçada, pois era maluco pelo esporte.
João Bona – Ruóc: meeiro de meu pai que, como todos, caçava sempre que podia.
João Carapina – filho de um meeiro de meu pai. Caboclo pequeno e retaco. Acompanhava-nos sempre nas caçadas como auxiliar de cozinheiro.
Joaquim Bona – filho de Marilândia, motorista de caminhão. Um homem que pouco falava e só tirava da boca um cigarro (picão) de palha com fumo de corda, para colocar outro. Ainda vive.
José Engelhardt – baixinho retaco e corajoso. Caçador de onça. Não digo mais, mas ao menos tanto quanto eu, dependente de caçadas. Todos os anos viajava em sua única C-10 vermelha para o Mato Grosso ou Rondônia, somente para caçar.
Macuco e azulonas: aves com denominação científica diferente, mas aqui tratadas uniformemente, conforme a linguagem corriqueira dos caçadores. As azulonas são próprias da Amazônia; os macucos, da Mata Atlântica.
Mata dos Lorenzonis – ligada à vila de Marilândia direção São Pedro.
Morro do Canal – Marilândia foi criada entre morros. Um deles pertencia ao Eurides Canal.
Negro Ambrósio: um crioulo com dois buracos no nariz que dava quase para ver a garganta.
Neivaldo – engenheiro, meu sobrinho, filho do mano Dolmino. Seu nome em nosso meio era Arcidi Gripa.
Neném Caldara – fazendeiro, comprador de madeira, um dos homens mais bem sucedidos, financeiramente, no município de Linhares – ES. Um amigo de verdade, sempre pronto a cooperar se para isto fosse convocado. Era maluco por caçadas de paca, mas demonstrava mais alegria em aprontar do que abater os roedores.
Nini – meu sobrinho Idelcides Falqueto. Destemido, trabalhador, honestamente ganancioso. Hoje está rico, mas se possuir metade do mundo, continuará querendo a outra parte. É, juntamente com mais três irmãos, dono de um verdadeiro império na cidade de Uruará – PA. Na família, é apenas o Simbim.
Orlando Scarpat – filho de Izaldino, hoje, jornalista em Vitória – ES.
Osvaldo Guimarães – estatura normal, moreno escuro, à época, muito rico. Não tinha ciúmes de nada material que fosse seu. Certa feita colocou cinco pessoas e as bagagens em seu Landau 0 km e foi caçar em Rondônia, quando tudo era péssima estrada de chão. Hoje mora em Belém – PA. Ah, o carro resistiu!
Padre Aristides: padre professor do Seminário N. S. da Penha, de Vitória – ES., nos tempos em que eu era seminarista.
Passamani: fazendeiro e comerciante de Marilândia.
Pássaros e aves: tratados aqui uniformemente, sem qualquer distinção.
Pim Scarpat – um dos antigos imigrantes italianos vindos de Vêneto – IT. Dizem que era totalmente maluco nas caçadas. Puxava o dedo até com a espingarda a tiracolo, caso lhe dessem um susto.
Rafael – meu sobrinho, hoje vivendo em Portugal. É filho de meu sobrinho Márcio. Devido seu cabelo arrepiado, logo lhe arrumamos um nome concernente: Pank.
Rancho Alto – município a 35 km da cidade de Linhares, direção Bahia.
Riacho Quirino – córrego que divisava as matas da União com fazendas de particulares.
Riacho São Pedro: córrego cuja nascente vem de São Pedro e deságua no córrego Liberdade, que banha Marilândia.
São Mateus – cidade situada a uns 70 km de Linhares, direção Bahia.
Sasso: exportador de jacarandás e grande caçador de macucos. Mora na capital espírito-santense.
Seminário Nossa Senhora da Penha: dos padres seculares e que encima a praia Santa Helena, em Vitória – ES.
Senhor Formiga – ex-proprietário de terras, pertinho de Açailândia – MA, onde desenvolvia um projeto financiado pela SUDAN. Depois de sucessivas inadimplências, suas terras foram tomadas. Hoje, parte delas serve a um projeto dos sem-terra e a outra é administrada pelo exército (50º BIS).
Serafins, meus primos – família de parentes que morava na divisa do Reserva Federal, separada apenas pelo rio Quirino que, por sua vez, tinha pouca água, mas formava um brejo lateral com mais de 100 metros de extensão.
Tião Caititu: um sarará alto, analfabeto, desempregado, pai da menor entregue ao vigia Antônio Manqueta.
Tio Loló – apelido que Jayr e eu demos à chororocadeira do mano Adalho, por causa da característica de som que emitia.
Tio Luís, tio Gin – hoje falecido. Era o caçula da família de meu pai. Estupim curtíssimo. Era receber uma ofensa e devolver com juros. Ficara proverbial em respostas rápidas e coerentes a quem o agredisse.
Tiozinho: um cachorro mestre de pacas adquirido de ciganos.
Tota do Jeep – um cabra maluco que vivia do frete de um velho Jeep da Willis.
Trovão – um cachorro velho, caçador de tatus.
Tuim Gaburro – fazendeiro, pecuarista, motorista de caminhão e caçador destemido. Enfrentava qualquer transtorno e parecia nunca se cansar.
Vicente Falqueto – meu cunhado. Nunca gostou de caçar, mas não perdia a oportunidade se fosse chamado. Foi dentista, empresário, comerciante e hoje vive em Uberlândia – MG. Entre nossos cognomes, o mais excêntrico de todos: Adalvirul Tramestrutcha Pimpinella Adalgualdramim.
Vitório Bona – pai do João Bona, o Ruóc. Era lavrador. Falecido.
Zé Bigode – funcionário exemplar no serviço e pouco recomendado fora dele. Nos fins de semana gastava, com mulheres e bebida, o salário de todo o mês. Hoje reside em Linhares – ES.

 

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