O CAMINHO
APRESENTAÇÃO:
Aqueles que de alguma forma acompanham minha trajetória literária sabem que, de 83 a 88, ano por ano, lancei um livro. Em 89, por motivos alheios à minha vontade, esta sequência foi interrompida. O livro foi escrito, mas não foi impresso. Faço-o agora.
Este atraso, dependendo do assunto, defasa as opiniões, pois tanto o mundo como as pessoas vivem em constantes transformações. Normalmente, quando se escreve procura-se retratar o pensamento do momento ou da época em que se está retratando. Este livro reflete, principalmente nos raros artigos políticos, a situação de 1989. Outro detalhe assaz interessante é a conjunção que liga os assuntos, inteiramente diversificante. Ora o leitor é convidado a meditar, criticar, dividir opiniões, discordar; ora a sorrir, descontrair, descansar; ora a estender a rede e ficar cismando com devaneios e ilusões: coisas bonitas e perfeitas que Deus deixou por aí, e que grande parte insensível de homens não percebe.
Esta maneira de misturar coisas profundas com devaneios, sempre acompanhou meus trabalhos e, diga-se de passagem, não acontece por distração ou acaso. Tem em si uma espécie de segredo, uma estratégia para atingir um fim. O caçador descansa a mola da arma ao guardá-la; o índio distende o arco após a guerra; os lutadores relaxam os músculos após os duros combates. Todos sabem que a mola, a brejaúva do arco e os músculos não podem ficar continuamente retesados para não perderem sua potência total com o enrijecimento contínuo. Assim também, o homem não deve passar a vida lidando apenas com coisas sérias. É necessário relaxar, virar criança, brincar, distrair-se. Estas coisas representam uma grande força acumulada, capaz de conceder ao nosso raciocínio, uma capacidade de ação muito mais eficaz. Sempre entendi que toda ação tem finalidade e que apenas ela (a ação) retrata fielmente aquilo que pensamos. A boca extravasa o que há sobejamente dentro de nós. Pelos dedos, nem sempre. É a nossa forma de viver, de agir, de conviver com o semelhante, o mais puro e cristalino retrato daquilo que se passa em nossa cabeça.
As palavras e os escritos podem ser um jogo astuto de interesse pela sobrevivência; os atos, não. Definem nossa personalidade. Este trabalho tem como objetivo atingir aqueles que “leem por ler”.
A mistura voluntária de assuntos diversos, além de justificar-se no arco retesado, ainda carrega no bojo um “segredinho de estado”. É como aquela propaganda festiva que isenta as mulheres do pagamento do ingresso, desde que venham acompanhadas de homens.
A humanidade inteira vive seu clímax de desrespeito à moral e às coisas sobrenaturais. O povo (refiro-me à maioria) quer passatempos pornográficos, algo que sufoque de uma vez por todas, o pouco de Deus e de responsabilidade que ainda perturbam seus momentos de solidão. O meu trabalho tem resquícios disto, mas apenas como engodo: “Mulheres não pagam, desde…” Vejo muitos homens como um pássaro planando no céu: usa do espaço sem saber o que ele significa, sem aperceber-se do grande perigo que a liberdade esconde. Tento mostrar ao mundo, nas entrelinhas, que não vale a pena nascer se tudo se acabar com a morte. Lembro que há 12 anos, meu pai, já velhinho, faleceu. Sei que daqui a 50 anos, nós, juntamente com mais de a metade da população deste planeta, estaremos sepultados. Tudo o que restará será a recordação da lápide de Ciro, o grande conquistador persa: “Oh homem, quem quer que sejas, e de onde quer que tenhas vindo, pois sei que virás, eu sou Ciro, aquele que conquistou para os persas este império: não invejes, portanto, este pouco de terra que cobre meu corpo.” Por isto não me entrego a verdades sem sustentação, a coisas que o tempo consome. Prefiro pregar o pouco de fé que me resta, ao acervo de dúvidas que me soterram.
Tomo meu partido antes que me obriguem a tomá-lo. Não me desviarei do caminho de minhas verdades, ainda que receba como prêmio, o anonimato. O objetivo desta obra é a fé, a esperança e a eterna e insaciável procura da verdade, como único meio eficaz de se obter a felicidade. Para tanto uso e abuso da excentricidade. O importante é chamar a atenção, é se fazer ouvir. Este artifício tantos já usaram na antiguidade. Quem não se lembra daquele discurso sacro, se não me falha a memória, do Pe. Vieira? “Maldito seja o Pai, maldito seja o Filho, maldito seja o Espírito Santo…”
A igreja sussurrante quietou, não se ouvia um único respirar diante de tão ignominiosa blasfêmia. Aí então ele continuou: “… é o que dizem por aí os infiéis, os ateus injustos e pecadores.” Para atraí-los às engrenagens de Deus, posso até usar dos artifícios do diabo. O importante é conseguir que alguém que anda distraído lembre que existe uma finalidade mais importante do que comer, trabalhar, dormir e se divertir. Certamente não foi somente para isto que nascemos.
O homem só se salva praticando o que acredita. A verdade não existe para ser comprada, nem assimilada de outros que a viveram; a verdade é própria; a verdade tem de ser o fim particular e supremo de cada um; a verdade não existe nas leis, nos livros, nem na tradição, embora, para alguns, possa ser encontrada aí; a verdade é aquilo que você acredita com o aval de sua consciência.
Que Deus não abandone meus dedos e carregue até meu coração, sempre, a esperança de dias melhores, a esperança de ser feliz. Eis minha grande ambição.
EXISTE INFERNO, OU NÃO?
Quantos já não perguntaram contritamente a Deus, o porquê de tanto mal no mundo? O porquê de Ele permitir que haja tanto sofrimento arraigado na maioria dos seres humanos.
Gandhi, Santo Agostinho na juventude, Schopenhauer e tantos outros pensadores, muitos santos e homens preocupados com a verdadeira justiça social, não raras vezes contestaram a bondade e perfeição de Deus em relação ao mal que permite infiltrar-se nos corações dos homens. Deus onisciente, poderoso, perfeito e criador de tudo estaria sujeito aos conluios de um outro reino, o do mal?
Tem-se a impressão que este reino perverso não O respeita e vivia atrapalhando Sua criação sem que Ele, o verdadeiro Deus de bondade, possa impedir.
Este pensamento falso que perdura desde os tempos dos maniqueístas, ainda hoje se mantém arraigado, e não há quem – nos momentos de profunda angústia ou crise existencial – que não se prostre diante de Deus para cobrar-Lhe esta situação embaraçosa, ininteligível ao nosso raciocínio limitado. De fato, se o mal existe, não temos outra saída senão admitir: que há um outro reino em confronto com Ele, ou que o nosso Deus não é perfeito, pois se torna inadmissível, um ser perfeito criar coisas imperfeitas. Qual seria, pois, a explicação?
É claro que Deus não criou nada de imperfeito. Assim pensando, só nos resta seguir a outra pista, ou seja, provar que o mal não foi criado por Ele, ou simplesmente, que o mal é apenas a ausência do bem. Quanto à Natureza e ao universo, excetuando-se o homem, qualquer pessoa pode perceber a harmonia e a perfeição das coisas.
Notemos os astros, as estrelas, a nossa terra girando no espaço com tamanha perfeição que, se assim não fosse, não haveria vida no planeta. Para que aqui estejamos, com árvores, pássaros, água…, é preciso que nossa órbita não seja outra, nem um pouco para lá, nem um pouco para cá. O universo inteiro, portanto, é perfeito.
A terra em que habitamos – separando-se o homem com sua perversão do bem – também é perfeita. Nunca houve necessidade de o homem interferir para equilibrar os seres e tudo quanto há, a não ser quando este mesmo homem desequilibra alguma coisa. O homem, porém, pratica absurdos, crimes, perseguições, injustiças e toda invirtude sórdida que assola e entristece a Deus e aos homens de boa vontade.
O homem, portanto, se nos assemelha ao mal, embora na essência, seja perfeito. O que ele faz não vem de encontro à sua constituição ou a sua criação. Apesar de tudo o que é perfeito não permitir mais retoque algum, poderíamos contradizer o enunciado, alegando que o homem faz coisas erradas, sendo por isto mesmo, imperfeito. Que o homem foi feito por Deus, que assim sendo, teria feito algo imperfeito. A solução é não confundir o ser com os seus atos. Temos então de provar que o mal não existe, seguindo a proposta agostiniana de que o mesmo é apenas “uma perversão da vontade desviada da substância suprema”, ou seja, de Deus.
É como se alguém ordenasse a seu empregado para abrir a válvula de pressão de uma caldeira e ele não o fizesse. Ela explodiria e pareceria imperfeita, embora a causa tenha sido tão somente a perversão da ordem dada. O homem é perfeito como a caldeira o seria; o homem faz coisas erradas, assim como a caldeira explode se não se seguir as orientações de seu inventor.
O raciocínio é mais ou menos simples. Partindo-se da premissa de que Deus é eterno, portanto imodificável nos tempos, e que por isso mesmo é perfeito, chegamos à conclusão de que as coisas eternas são perfeitas. Admitindo-se que tudo quanto existe, enquanto existe é eterno, chegamos também a mais uma conclusão de que tudo quanto existe é perfeito. As coisas quando deixam de existir, desaparecem, logo não são eternas, portanto, o que não existe não pode ser nem perfeito nem imperfeito. Por este ângulo o homem, apesar de fazer tantas coisas erradas, é perfeito. Diante disto, desafio a qualquer cientista renomado a introduzir o escuro numa sala iluminada, ou o mal em Deus. Daí a grande ilusão de afetar Deus com nossos impropérios. Tudo o que fazemos de errado é a nós que o fazemos. Tanto o escuro como o mal são a ausência da luz ou do bem. Eles por si só, não existem.
Diferentemente, a luz e o bem existem por si e podem expulsar a escuridão ou o mal tão logo penetrem no ambiente. Por isto Ele é único e não há outro Deus além dele. O mal nada mais é do que a rejeição humana às coisas de Deus. E por causa desta rejeição que o homem mata, persegue, destrói as coisas lindas da Natureza e deixa o mundo neste caos, nesta insegurança terrível que nos assola.
Ninguém consegue incutir mal algum em Deus, pelo simples fato de Ele ser bom e perfeito. O que é perfeito existe eternamente. Por isto Deus é eterno. O que não existe, não é perfeito. Isto atrai nosso raciocínio para outro ponto difícil, o da alma, ou do que seja, na realidade, a alma. Foi prometido por Deus que no juízo final, todo homem ressuscitará e que, nesse dia, todos serão julgados. Aos bons Ele dirá: “Vinde benditos de meu Pai para o reino que lhe foi criado.” Os maus terão sorte adversa. Se tudo o que é eterno é perfeito, logo nosso corpo que ressuscitará e viverá, conforme promessa, é perfeito, pois será eternamente. Daí duas conclusões podem ser obtidas: a primeira é de que nós (corpo e alma), na verdade somos uma só coisa, e a segunda que os maus padecerão “apenas” a grande dor de jamais conviverem com o Bem Supremo, ou simplesmente, deixarão de existir, já que o mal não existe nem é eterno. Dentro deste raciocínio lógico, algumas religiões deveriam repensar sobre a grande angústia que semeiam nos corações de seus fiéis ameaçando-os com as chamas do inferno. O inferno nada mais é do que a incapacidade que o mal cria no homem de conviver eternamente com Deus. Para se aproximar do que isto representa, o próprio Jesus fez a comparação com um lugar em chamas onde haverá choro e ranger de dentes. Qualquer um que se imagine dentro do fogo sabe precisar o grau de sofrimento. Maior será a dor vivida no momento da separação e da volta à inexistência, para aqueles que perverterem a ordem de Deus.
Assim como a escuridão é apenas a ausência da luz, as pessoas que morrerem sem luz, continuarão nas trevas e as trevas não existem. É, pois, a ausência de Deus, a Luz, o castigo impingido àqueles que se desviarem dos ensinamentos de seu Criador. Haverá um só reino e um só pastor. Tudo será luz. Não existirão mais as trevas, logo não haverá mais mal algum. Tudo será perfeito.
Desarticulando-se o mal, as coisas imperfeitas terminam, deixa de existir este inferno, representado pelas angústias que a própria perversão do bem cria em nossos corações. Semeamos o mal e somos obrigados a colher os frutos daquilo que plantamos, pois na verdade, somos felizes ou infelizes conforme nossa conduta. No juízo final todos verão o esplendor de Deus, a felicidade indizível e eterna de Sua convivência, mas somente os merecedores subsistirão. Os demais voltarão às trevas, ou seja, deixarão de existir. Há de se imaginar que para se ganhar a verdadeira felicidade seja necessário grande conhecimento de verdades profundas. No entanto, de uma criança ao mais egrégio sábio, todos têm em si o discernimento sobre o que se deve ou não fazer.
A luz que salva, que não permite a intromissão das trevas, é a cega obediência à consciência, esta vizinha impertinente que não se cansa de nos orientar. Não é por menos que não devemos julgar para não sermos julgados. Os dez mandamentos estabelecem o geral, mas não se pode dispensar “os artigos e incisos”. Eles fundamentam o particular, a exceção, o relacionamento Deus/homem. Por isto, o que para uns é crime, para outros não é. Somos um poço de mistérios em que só Deus penetra. Nossos julgamentos, em geral, são sempre falhos. Não se surpreenda, pois, se do outro lado não encontrar no céu a presença de tantos benfeitores da humanidade. Para se viver na luz, não é preciso buscar fundamentos filosóficos, mas apenas seguir a nossa intuição ao que se deve ou não fazer. Esta voz é própria de cada um, o que dispensa grandes estudos, grandes procuras. Ela é inata, vem com a gente na mais pura graça de Deus. Somos o Seu templo vivo, o que equivale dizer que Deus vive e se preocupa com a gente, está na gente, fala pela gente nas horas mais embaraçosas. Sua voz está sempre – por meio da consciência – ciciando em nossos ouvidos, segredos de salvação. Deus é luz, e somente um erro grave apaga esta luz que nos orienta e nos mostra o caminho do céu. Este erro nada mais é, como já foi explicado, a perversão da vontade divina.
Sendo nossa consciência a cicerone que nos guia e traduz a vontade do Criador, devemos obedecê-la, ainda que as pessoas fiquem escandalizadas. Para atingirmos o céu, temos de ser justos e perfeitos conforme nosso entendimento de justiça e perfeição. Para sermos perfeitos, não é extremamente necessário saber das leis, nem sequer dos mandamentos, mas apenas seguir nossa consciência. A maneira com que entendemos honestamente as coisas, é a verdade que salva. Daí sermos todos iguais perante Deus. Como explicar as diferentes ideias em conflito dentro das religiões, cada uma jurando a verdade?
A única verdade absoluta é Deus. Todas as demais são verdades de cada um, adquiridas e ratificadas por Deus conforme nossa boa intenção. O mais interessante é que, um mesmo ponto discutido, pode possuir duas verdades. Coloquemos, por exemplo, duas pessoas a um quilômetro de distância uma da outra. No meio, a quinhentos metros, portanto, onde a visão não oferece perfeita distinção, ponhamos um objeto com duas faces diferentes, cada uma das faces voltada respectivamente para um e outro observador. Se arguidos sobre o que veem, atestarão formas diferentes, embora o objeto seja um só. Todas as verdades são particulares, dependendo da maneira, da instrução, da atribuição, do ângulo e de mil outros fatores examinados.
Por isto é bom que se acredite que todas as religiões e ideologias são verdadeiras quando norteadas pela reta intenção de dizerem a verdade e praticarem o bem; e falsas quando não preencherem estes requisitos. Dirigido sempre pela boa intenção, fazendo sempre o que achar certo, dizendo sempre o que considerar oportuno…, todo homem – sem distinção de seita ou religião – chegará a Deus, ainda que o que fizer ou disser não for certo ou oportuno.
DESTINO E PREDESTINAÇÃO
“Eu terei misericórdia com quem me aprouver ter misericórdia e terei piedade com quem me aprouver ter piedade.” Logo, diz São Paulo: ”Ele tem misericórdia de quem quer e ao que quer, endurece.” E mais adiante: ”A salvação vem de Deus, não vem das nossas obras, para que ninguém se glorie.”
A questão da predestinação ou do destino é uma das mais sérias e intrincadas, não somente da religião católica. Até hoje, santos, filósofos, pensadores, profetas… uma infinidade de mentes prodigiosas tem dispensado grande parte de suas meditações na busca infrutífera e vã de tão estranhas afirmações da própria Bíblia.
Senão vejamos: Sófocles: ”O homem ri e chora conforme Deus dispõe.”
Tsen-Kuang: ”Nada pode ser determinado pelo homem, pois tudo é disposto pelo céu.”
Alcorão: ”Um dia compreenderás que não somos responsáveis por nossas más ações; Os desígnios do Altíssimo são impenetráveis.”
Schopenhauer: “A despeito de todas as resoluções e reflexões, não pode mudar sua conduta e, do início de sua vida até o fim, tem que desempenhar o papel que lhe foi confiado.”
Espinosa: ”Tudo o que é determinado a existir e a produzir algum efeito é determinado par Deus.”
Êxodo: ”Então disse o Senhor a Moisés: Entra a Faraó, porque eu endureci o seu coração e o dos seus servos, para fazer resplandecer na sua pessoa, os prodígios do meu poder.” E mais adiante: ”Eu lhe endurecerei o coração e ele irá em vosso alcance, e eu serei glorificado em Faraó, e em todo seu exército.”
Josué: ”Porque está fora a sentença do Senhor, que os seus corações se empedernissem… e que enfim perecessem, como o Senhor tinha ordenado a Moisés.”
Samuel: “O Senhor é o que tira a vida e a dá, leva à sepultura e tira dela.”
I Reis: “E o Senhor entregou Israel por causa dos pecados de Jeroboão.”
Tobias: “Porque tu castigas e tu salvas, tu levas à sepultura e tu ressuscitas e ninguém há que escape da tua mão.”
Job: “Tu lhe demarcaste os limites dos quais não pode passar.”
Salmos: “Ele é o que forma o coração de cada um. Não se salva o rei por seu exército; nem o gigante por sua força… senão pela vontade de Deus.”
Provérbios: “Tudo fez o Senhor por causa de si mesmo; até o ímpio para o dia do mal.”
Eclesiastes: “Todas as causas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada uma foi prescrito.”
Lao Tsé: “O céu arma com amor a todos aqueles a quem não quer que sejam destruídos.”
lsaías: “Eu sou o Senhor e não há outro. Eu o que torno a luz e crio as trevas, o que faço a paz e crio o mal.”
Jeremias: “… os que eu destinei para a morte, morrerão; e os que para o cativeiro, ao cativeiro; e os que para a espada, à espada.”
Lamentações: “Quem é o que disse que se fizesse uma causa, sem que o Senhor o mandasse?”
Lucas: “É impossível que deixe de haver escândalos, mas ai daqueles por quem eles vêm.”
João: “… Deus dá a vida àqueles que Ele quer.” E mais adiante, falando do cego de nascença: “Ele é cego, não pelos pecados que cometeu (disse Jesus aos apóstolos curiosos), nem pelos pecados dos pais, mas sim, para se manifestarem nele as obras de Deus.” E ainda: “Ele obcecou-lhe os olhos e obdurou-lhe o coração, para que não veja com os olhos e não entenda com o coração, e se converta e eu o sare.”
Jesus: “Tu não terias sobre mim poder algum se ele não te fora dado lá de cima.” “Vós não fostes o que me escolhestes a mim, mas eu fui o que vos escolhi a vós, eu o que vos constituí para que vades e deis frutos.”
Percebe-se, então, que a plêiade que defende o destino ou a predestinação é muito forte e prolixa. Santo Agostinho, um dos maiores santos, teólogo e filósofo da Igreja Católica, dispensa grande parte de seus estudos na defesa de certos casos de predestinação. Para ele, não há predestinação generalizada. No entanto, admite que alguns homens vêm a este mundo com missão específica dos céus. Para estes, queiram ou não, as coisas serão cumpridas, à revelia de sua vontade e do próprio mundo. É o caso de Moisés, Paulo de Tarso e tantos outros de que é farta e exuberante a literatura religiosa e filosófica.
Note-se que Jesus, ao se referir a Judas na ceia, como traidor, fê-lo com visível tristeza, quase lamentando que assim tivesse de ser, para que se cumprisse o que estava escrito nas Sagradas Escrituras. Estamos então, sujeitos, unicamente às deliberações do Criador? Claro que não, pois isto implicaria na supressão da liberdade: privilégio terrível do ser humano. Como poderíamos aceitar a definição de bom e justo, a um Deus que permite o nascimento de alguém só para condená-lo? O mal e a condenação afetam o homem por sua própria conduta: ”Acaso eles a mim é que me provocam a ira, ou antes a si mesmos que fazem mal?”
Eu acredito piamente em certos casos de predestinação, porém e sempre, dirigido para o bem e para a salvação do predestinado. Exceções como a de Judas talvez sirvam para que não esqueçamos de nossas limitações. Se houvesse destino ou predestinação generalizada, de que adiantaria nosso esforço em prol da salvação, se nossa sorte ou nossa desgraça já estivessem traçadas? É notório que Deus fez tudo perfeito, inclusive o homem, que visto por determinado ângulo parece-nos a criação mais imperfeita do universo. Acontece que nem toda perfeição é instantânea.
Caminhamos por uma longa estrada e levaremos algum tempo para chegar ao destino. Foi assim que o Criador pensou na perfeição do mundo: uma evolução lenta, adaptável às diversas épocas. Se nos desviamos do caminho, criamos o mal e, com ele, muitas coisas terríveis são atribuídas a Deus, como vingança ou coisa parecida. Por isto não entendemos uma criança que nasce aleijada; um miserável que morre de fome; um cego de nascença; enfim, toda desgraça que afeta os seres humanos e o mundo. Deus nada tem a haver com isto. Nós mesmos estamos fazendo o mundo e as coisas assim. Deus apenas, como onisciente, antevê nosso fim, depois do uso pleno da liberdade. Foi o que aconteceu, possivelmente, a Judas lscariotes. Se formos buscar as causas reais dos aleijões, das doenças e das desgraças, iremos sempre nos deparar com explicações convincentes, hasteadas na inconsequência da radioatividade, na destruição desregrada da Natureza, na promiscuidade, na falta de alimentos adequados… As milhares de causas das desgraças do mundo são criadas pela ganância e irresponsabilidade dos homens. Jamais acontecem pelo prazer sádico de Deus.
É claro que não podemos esquecer que, apesar de perfeita, a obra de Deus se ajusta lentamente ao tempo, por meio da evolução gradativa. Foi este, me parece, o caminho escolhido por Ele para juntar a perfeição à beleza. Por isto não somos todos iguais, não temos todos os mesmos pareceres, opiniões, gostos, inclinações, desejos… Somos um universo misterioso, ajustado aos planos de Deus. É esta evolução que, às vezes, intrinca muitos teólogos. A obra parece-nos inacabada, imperfeita, como assim se assemelha, um edifício em construção. Acontece que, mesmo inacabada, uma obra pode ser perfeita, levando-se em conta os estágios. Nós homens, somos parte integrante e indispensável neste enorme projeto, nesta enorme construção. Uns, o ouro do trono; outros, o vaso da latrina. No entanto, para ser perfeita e completa a construção, tem de ter as partes de honra e as partes, aparentemente, desprezíveis, mas inteiramente necessárias.
Talvez seja por isto que se diz que o mal é tão necessário quanto o bem, e que sem um, o outro não se afirma, não existe. Sem seu contrário, nada se define. Devido à mudança imposta pelo homem aos planos de Deus, o mundo jamais mudará seu rumo, sendo sempre assim: cheio de vicissitudes, de altos e baixos, de heróis e de sugadores, de pobres e de ricos.
A Bíblia relata o primeiro fratricídio na família de Adão e Eva, e Jesus censurou os apóstolos quando estes recriminavam a mulher que derramava uma redoma de alabastro nos pés dele, alegando que se poderia vender o perfume e reverter o dinheiro em benefício dos pobres. ”Deixe-a – disse Jesus – porque vós outros sempre tendes convosco os pobres, mas a mim nem sempre tereis.”
Coisas irreversíveis que desafiam a luta inglória do homem por um mundo perfeito e justo, antes que seja chegada a hora. Não terá sido por menos que o escritor e filósofo francês François Marie Arouet chegou à dura conclusão de que cada um que morrer deixará o mundo tão igualmente como recebeu ao ter nascido. Não é bem assim, mas o fato é que Deus escreve certo por linhas tortas, e utiliza todo mal do mundo em benefício da nossa própria salvação. Motivos e meios não faltam para quem quiser praticar o bem. Apesar de parecer paradoxo Deus sabe, de antemão, qual o nosso fim, ou melhor, qual o fim que escolheremos. Ele é onisciente, vê adiante e por isto alguns acham que somos predestinados. Deus apenas prevê, mas não obriga ninguém (salvo os casos raros de verdadeira missão). Diferentemente, ruiria por terra toda a obra de Jesus Cristo, que veio dos céus para insuflar-nos força e encher-nos de esperança: “Pedis e recebereis, batei e a porta abrir-se-vos-á. Ainda vos digo mais, que se dois de vós se unirem entre si sobre a terra, seja qual for a causa que eles pedirem, meu Pai que está nos céus, lha fará. Tudo é possível ao que crê. Por isso vos digo: todas as cousas que vós pedirdes, orando, crede que as haveis de haver, e que assim vos sucederá.”
E quem disse isto foi aquele que respondeu ao mensageiro de João Batista sobre quem ele era: ”Ide referir a João o que tendes ouvido e visto: que os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciado a Evangelho. E que é bem-aventurado todo aquele que não se escandalizar a meu respeito.” E isto assim será, pois: ”Passará o céu e a terra, mas minhas palavras não passarão.”
O mundo da época testemunhou tais fatos. Acho que podemos acreditar num HOMEM assim. Finalizando, pois, é de se crer que todo homem tem uma função sobre a terra e ela é única: ser bom e justo, assim como o é o Senhor. No entanto, nem todos recebem a mesma quantidade de dons e de graças, daí as desigualdades sociais e religiosas. Ninguém está obrigado a ser herói, santo ou profeta, mas todos nós temos – sob pena de condenação – a obrigação de aumentar as “dracmas ou os talentos” que nos foram confiados por graça ao nascer. Quem recebeu um centavo, terá que aumentá-lo, assim como quem recebeu um milhão. Por isto, talvez seja mais fácil a salvação aos simples: têm responsabilidades menores. Os afortunados pela graça e pelo conhecimento terão muito maior rigor no julgamento. Conforme nossas “aplicações e rendimentos”, nosso valor diante de Deus. Ai, porém, daquele que gastar até o que recebeu, ainda que um centavo: ”Porque àquele servo que soube a vontade de seu Senhor e não se apercebeu, e não obrou conforme a sua vontade, dar-se-lhe-ão muitos açoites; mas aquele que não a soube e fez coisas dignas de castigo, levará poucos açoites, porque a todo aquele a quem muito foi dado, muito lhe será pedido; e ao que muito confiaram, mais conta lhe tomarão.” Lucas: 12.47 a 49.
O CAMINHO DA DECADÊNCIA
Nossos políticos, desde os tempos de Cabral (salvo raríssimas exceções) são inclinados à corrupção. Ah!, que saudade do tempo em que os homens dos comandos buscavam a glória na honradez, no trabalho e no servir ao povo e à Pátri. Houve esse tempo? Saudade do tempo em que as contendas, as lutas pela supremacia e pelo poder usavam as armas da virtude! Hoje – como diria Salústio de Roma – nosso Brasil se transformou numa sentina, pois os maldosos e petulantes, os torpes que solapam o patrimônio público, que desonram e matam de fome a classe pobre, deixam como herança, aos filhos e ao país, o mais triste futuro. Os sindicatos manipulam as massas, convergindo-as para seus intuitos inconfessáveis: não há acordo sem poder. O dinheiro destrona as virtudes, traça destinos incertos, cria a angústia nos ricos honestos e definha os desafortunados.
A justiça é comprada por dinheiro e as paixões e a ganância norteiam os ideais políticos. Já não se dá valor à moralidade e, sem ela, os bons afrouxam e os maus proliferam. “As pessoas da justiça” traem o povo que lhes garante a sobrevivência e neles confia. São os políticos, a polícia e o judiciário que, em grande parte, são responsáveis pelos maiores crimes e injustiças sociais. Mas não se esqueçam: TUDO TEM SEU LIMITE E O LIMITE É O FIM… E O FIM O COMEÇO DE UMA NOVO TEMPO.
A classe política já não tem outro objetivo senão o poder – o Brasil que se dane! Longe de ideologias sinceras, longe do fim nobre de comandar cidadãos, os partidos se digladiam pelo poder e não pelo futuro da Pátria. Longe anda o verdadeiro valor do pensamento, ”o exercício do espírito que transmite à posteridade os feitos dignos da memória”. A torpeza invadiu a cabeça vazia de nossos políticos, expulsou a filosofia e a lei, e em seus lugares brotou o joio cruel do poder mesquinho.
Quando irão buscar a glória, ó políticos e governantes, nas sãs virtudes? Corram os olhos pela história e vejam a diferença dos déspotas, dos imperadores cruéis, de toda gama de castigos que açoitou o mundo, comparados aos Gandhis, Luther Kings e tantos outros exemplos que hoje dignificam a galeria dos verdadeiros homens. ”Formusura e riqueza são glória fugitiva e frágil”.
É o egoísmo que destrói as virtudes nos homens; é a opulência que cria a ganância e a crueldade. Primeiro o homem aspira as riquezas, depois o poder pela riqueza. E todo poder pela riqueza é indigno. Sem um ideal nobre, infiltram-se as paixões, e até ao covarde bem-sucedido em suas empreitadas esquivas é dado gloriar-se. Veja o que se disse da decadência de Roma: “Porquanto a avareza destruiu a boa-fé, a probidade, e todas as mais virtudes, deixando em seu lugar, a soberba, a crueldade, o desprezo dos deuses, a venalidade. A ambição desterrou a sinceridade, ensinou a ter uma coisa nos lábios, outra no coração, a estimar as amizades e inimizades, não pelo que em si são, mas pelo interesse, e a ter antes boa cara que boa alma. Quarenta e cinco riquezas entraram a ser tidas em honra e a atrair a si a glória, o mando, o poder. Tudo era roubar, consumir, estragar o seu, cobiçar o alheio, atropelar o pejo, a decência, e as leis humanas e divinas, usadas sem respeito nem moderação. Os corações ensoberbados, insaciáveis, nem com a abundância nem com a penúria se mitigam.”
Não sei a que ponto de comparação poderíamos chegar entre o aparentemente inexpugnável Império Romano e o nosso país, mas estou certo que as intenções daqueles que sublevaram as riquezas no comando daquele império, não muito divergem dos que agora se digladiam, simplesmente pelo poder e pelas riquezas ilícitas. Estou certo que não estão preocupados (salvo raríssimas exceções) senão com eles mesmos. Não se despem das paixões, da ira e das amizades quando envergam a toga do mandato, e com elas a justiça se torna impossível. Toda e qualquer virtude logo sucumbe à ambição. A política no Brasil ficou hereditária. Não se é fácil infiltrar no meio político. Os bons que alimentam lampejos de esperanças, logo se retraem ante as virtudes sãs não levadas em conta, e os maus impunes, encorajam-se a progredir -– e progridem, e se alastram como a AIDS. Os verdadeiros homens preferem a derrota digna do que a vitória indigna. Por isso se afastam, e aterrados pela inversão de valores, contemplam a devastação da decência e da moralidade. Os mandantes abusam do poder, e o povo, em vingança, da liberdade. Cada um, em legítima defesa, extorque, rouba e mata. Pobre país, grande e idolatrado nos versos, que estão fazendo de você! Tornamo-nos 200 milhões de ladrões, justificados pela legítima defesa. Se hoje me cobram cem vezes mais do real valor de um objeto, para poder adquiri-lo tenho de vender o meu pelos mesmos cálculos. E com este raciocínio, como numa bola de neve, vamo-nos envolvendo. Quem poderia coibir estes abusos não o faz, porque também, em termos financeiros, poderíamos dizer: ”A quem tem muito, mais lhe será somado, e a quem tem pouco, até o pouco lhe será subtraído.”
Nossos chefes não têm pulso de liderança – manipulam alianças para se manterem no poder. É o preço espúrio que pagam para lá estar com seu ineficiente gigantismo estatal, na ilusão estúpida de grandeza. Pouco há menor que um grande mesquinho e fraco. Um chefe, além do carisma de liderança, não pode dar valor à própria vida. Triste de um país que escolhe entre tantos milhões de seus filhos, um fraco para governá-lo. É a mais vil carência humana.
Um chefe tem que ser grande, forte…, tem que morrer, se preciso for, para salvaguardar a justiça entre seus comandados. Ninguém, nem a morte, deveria impedir o maior entre 200 milhões. O homem que chega ao poder comprometido, compromete as Pátria, pois é larga a faixa que separa o que é da que deveria ser. Quantos homens a história registra que enrouqueceram no apelo constante da clarividência de um caos. Junto-me modestamente a eles no grito sufocado de alerta para o grande mal que assola o Brasil. Se não se tomar (e bem depressa) consciência da imoralidade que grassa, em breve não haverá mais recuperação. Quando olho a imensidão de recursos naturais de nossa Pátria, entregue a uma minoria de vândalos (ministérios incompetentes), sinto os olhos torvos de Deus a impacientarem-se com nossa inépcia e covardia; quando vejo dentro desta imensidão rica de terras, um brasileiro abrir as mãos trêmulas no meio da rua, e desdobrar velhas e pequenas notas, e contá-las, e desistir da aquisição de um quilo de farinha, fico cismando os destinos de nós; quando entro numa palhoça, palafita, barraco ou tapera amazônica, fito as milhões de árvores de lei que revestem a Hileia, e não entendo o que se fez do nosso raciocínio e do nosso senso de trabalho, de educação e de justiça social. É como se víssemos uma pessoa morrendo de fome ao lado de uma farta mesa. Brasil, terra imensa, rica…, sinceramente, nós não o merecemos!
Perdão minha terra, minha mãe Pátria, que ante os açoites de seus filhos, ainda oferece madrugadas delirantes no lindo sol que acalenta o ganancioso; na praia espumante de águas tépidas e cristalinas que afaga o malandro; nos passarinhos que encantam até mesmo o mais insensível dos homens; nas flores que adornam e perfumam os descampados, onde antes a selva eterna aplanava.
Ser bom ou ruim é opção de vida, é hábito, costume. Quase todos nós somos produtos do meio em que vivemos, até o dia em que, personalizados, fazendo uso do raciocínio e da força de vontade, tomemos consciência do que devemos ou não ser ou fazer. Por isto o homem do interior gosta de música sertaneja; os jovens da cidade, de rock… Somos antes fabricados: depois é só desempenhar a função para a qual nos programaram.
Sabemos que o mal de tudo é a falta de virtudes, em suma, a falta de Deus. Sem obedecer ao que o Criador nos ensinou será impossível sentir no coração, a paz e a felicidade.
O maior mal que afeta a Natureza é, em última instância, o falso progresso que busca consumismo e riqueza. E em nome desse progresso que se criam as usinas atômicas, que se destroem as imensidões verdes, que se represam os rios, que se aterram as praias, que se emergem caídas e saltos, que se enche o mar de óleo e de toda gama de imundícies, que se substitui enfim, a opção de Deus, tomada um dia em função e benefício do homem. Não sei se há jeito de programar estas máquinas velhas que representamos, já emperradas pelos maus costumes, viciadas na corrupção, inescrupulosas, mas sei que não é impossível deixar aos filhos a opção do bem. Que esta geração morra na constante angústia que a imoralidade, o desrespeito, as injustiças, o egoísmo e a ganância oferecem, mas que nossos filhos possam, mais adiante e sem grande esforço, procurar as virtudes, como agora procuramos ou nos inclinamos àquilo que não é certo.
Vício é costume, é necessidade e dependência criada pelo hábito, não importando se bom ou ruim. Há quem dorme cedo, almoça tarde, banha-se pela madrugada fria, gosta de cerveja, detesta cerveja… Há gente de todas as propensões, todas elas criadas por um hábito que se fez, até mesmo com muito esforço e insistência.
Viciemos nossos filhos no bem, na integridade, no respeito e na justiça. O resto virá por acréscimo. Que os professores enalteçam nos alunos, a honestidade, incutindo neles a luta pela glória por meio das virtudes. Quando isto acontecer, sem grande esforço teremos sempre na chefia da nação, um baluarte, um esteio firme, uma fonte da qual irradiará o progresso e a justiça social. Será difícil ter um fraco no poder, pois os virtuosos serão a maioria. Por enquanto a recíproca é verdadeira.
Este é o meio vagaroso de se resolver, a longo prazo, os problemas do Brasil. Se houver pressa, só desmanchando tudo, banindo de vez o vírus da corrupção que infectou a todos nós brasileiros.
Jamais haverá máquina sem seu inventor; clarão sem luz; chefe digno e forte sem dignidade e pulso; justiça entre os homens, sem DEUS.
AMANTE
Pretensiosa invasora de mim
Da alma, do coração, do meu mister
Graciosa, sensual, instinto forte
Carinhosa, insaciável: mulher.
Entre tropeços, lágrimas e problemas
Um almoço… um encontro casual
A gente se vê, se ama contra todos os sistemas
Risca os conceitos e preceitos da moral.
Hoje somos sensatos, honrados, temos medo
Raciocinamos: é loucura, não há razão
Massacramos a felicidade: somos arremedo
Frustrados amantes sem coração.
Ah!, saudades de cada minuto que se fez passado
Colégio, carros, estradas, acidentes…
Ciúmes, lágrimas, insegurança, desejo marcado
Passado que a saudade forte faz presente.
Sei que há noites, momentos, dias, talvez semanas
Que estamos tristes, que pensamos, relembramos
E em nossos corações a saudade se acende e se emana
E assim, querendo esquecer, ainda mais recordamos.
Felicidade é fragmento de instantes
Junta-a os espertos em cada momento
E destes pedacinhos e retalhos constantes
Faz o artífice das ilusões seu belo monumento.
Amei muito, por inteiro me entreguei
Ainda amo: não consigo evitar
É sentimento que transcende minhas forças
Só quem ama sabe o que é amar.
Por isto quedo-me vencido
Junto meus erros aos seus
Ambos temos merecido
Que tudo terminasse num adeus.
Preciso esquecê-la, foi um tempo
Foi um tempo, passou, pronto, passou
Para que tentar desenterrar este tempo
Foi um tempo, passou, pronto, tudo acabou.
Mas adeus, fim, acabou… por quê?
Afinal não estamos mortos, nem somos imortais
Estas coisas irreversíveis são para aqueles
Que já se foram: não existem mais.
ESTOU COM FOME
Eu ia passando de carro, vidros fechados, ar condicionado ligado, música a gosto, muito contente da vida, pois não havia, naquela hora, qualquer problema a angustiar-me. De repente torço o pescoço para olhar uma vitrina colorida, cheia de roupas e bijuterias recém-chegadas. Olhava-a sem frear o carro, quando percebi um vulto esmolambado logo abaixo, jogado na calçada. Aquilo me despertou a curiosidade e, mesmo pelo retrovisor, pude entender que ali no chão imundo da calçada estava uma criatura de Deus. Senti algo estranho, alguma coisa diferente daquilo que quase sempre sentimos quando olhamos um ser humano na mais irrestrita miséria. Na primeira rua à direita, entrei, fiz o contorno e voltei para olhar melhor aquele molambo que lá estava, bem abaixo de uma vitrina abarrotada luxuosamente. Parei o carro, baixei o vidro. Era uma velhinha pendurada num cajado, tendo ao lado um saco de estopa com alguns molambos dentro. Estava cabisbaixa, olhar perdido no cimento imundo e quente da calçada. Os cabelos grossos de sujeira, a roupa esgarçada, os pés todos rachados e casquentos, as mãos trêmulas. Chamei:
– Minha senhora! … ela ergueu os olhos. Eram duas bolas foscas, sem brilho, embutidas entre as dobras do tempo cruel.
– Minha senhora, repeti.
– Estou com fome – disse-me ela entre gaguejos roucos.
Os seus olhos apagados continuavam amortecidos em mim. O meu carro ali parado, tendo no interior um arzinho frio e perfumado, parecia formar uma barreira intransponível entre os dois mundos que se deparavam. Meu estômago cheio, a pele limpa do banho, meu pequeno mundo sem problemas… Olhos nos olhos. Ficamos assim por algum tempo. Um vendaval de pensamentos abateu-se sobre mim, destroçando os sonhos e o prazer daquele momento. Mundos aparelhados roçagavam-se em chispas de repulsão. Em êxtase vi soldados dos céus desembainharem as espadas e colocá-las em riste diante de meu coração. As hostes eram fortes e não pude senão erguer as mãos para entregar-me passivamente.
“Estou com fome, muita fome”! Eis o golpe mortal desferido por Deus diante das injustiças que nós homens criamos no mundo. Ali estava uma velhinha, uma senhora, alguém que bem podia ser minha mãe. Quantas vezes o próprio Santo Agostinho, nos seus tempos atribulados de infância e juventude não questionara a bondade e a justiça de Deus diante de quadros semelhantes? Veio-me também, à mente, o grito de Gandhi na incompreensão dos desígnios de Deus quanto a sua bondade e poder, ameaçados pelo mal das castas e das desigualdades. Tomei de quinhentos cruzados novos e rompendo a barreira dos dois mundos fiz chegar, paliativamente a ela, a solução para seu problema do momento. Era o dinheiro que me endurecia o coração e enchia meu estômago, o mesmo que deixava morrer à míngua aquela velhinha, mãe de alguém.
Parece simples a quem olha uma anciã na calçada, morrendo de fome, mas não é tão simples se esta velhinha for sua mãe. Imagine você, amigo, que ora corre os olhos em cima deste desabafo – imagine sua pobre mãe levada à tamanha desdita. Ela que o carregou nas entranhas, que o amamentou, que cuidou de você, que perdeu noites e noites e os próprios anos de vida na preocupação de evitar que o futuro lhe fosse tão cruel. Imagine esta velhinha que tanto fez por você, ali jogada na calçada, morrendo de fome. Se não for bastante, imagine-se ali jogado, enquanto carros luxuosos trafegam enchendo seus olhos de poeira imunda; enquanto homens barrigudos passam por você, desviando-se com desdém e nojo. Imagine também que Deus é nosso pai e que por isto mesmo somos todos irmãos. Que o Pai, sendo poderoso e podendo tudo, deixa que as coisas assim aconteçam, que irmãos deixem irmãos morrerem de fome na calçada.
O que não diria você a Ele, nesta hora ali em cima da calçada, com o estômago doendo, morrendo de fome? Certamente não teria reação diferente daquela de Agostinho e Gandhi. Mas o fato é que Deus nada tem a ver com isto, pois não ensinou o egoísmo, o apego às coisas terrenas e nem mal algum a nós. Se assim agimos é por pura desobediência. Por causa de nossa desobediência é que o mundo é tão injusto e desumano. Venci a barreira e entreguei aquelas notas sujas à pobre mulher:
– Aí está, minha senhora, um pouco de dinheiro para comprar alguma coisa para comer. Ela apanhou, viu que, para ela, era muito dinheiro. Prostrou-se de joelhos em cima da calçada, ergueu os olhos sem brilho para o céu e disse, quase clamando:
– Meu Jesus do céu, como o sinhô é bom! Obrigado meu Deus, meu Pai de bondade. Que Jesus do céu te pague, meu sinhô. Ele nunca vai deixá faltá nada pro sinhô. Oh, meu Jesus! … E a pobre velhinha ficou ali de joelhos, clamando aos céus a bondade de seu Criador. Meus olhos marejaram, não puderam resistir tamanha fé e conformidade. Quantas vezes fiquei triste e frustrado com meu Deus, porque Ele não tinha feito com que alguns dos meus planos acontecessem; quantas vezes saí zangado porque a comida não estava a meu gosto; quantas vezes fui o homem egoísta e comum que somos todos nós!
Ainda antes de curvar na primeira esquina, olhei pelo retrovisor e vi a velhinha de joelhos, mãos postas dirigidas ao céu. Senti mais uma lágrima despendurar-se dos meus olhos e, incontinenti, voltei para casa. Não havia mais em mim qualquer desejo senão o de tirar uma pequena dúvida que me inculcava. Queria procurar no livro inspirado, onde se encontrava tamanha esperança de alguém que morria de fome e descuido em cima de uma calçada quente e suja. Entrei no escritório e apanhei a Bíblia. Fui folheando até que vi estas coisas: Em Sofonias, 3.12, que o povo humilde e pobre busca sua esperança unicamente em Deus; Em Lucas, 6.20, que felizes eram os pobres, porque deles seria o reino dos céus; em Mateus, 11.25,26: Graças te dou a ti, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas cousas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Vi também em Lucas, 16.20 a 31, que terão um fim feliz aqueles que padecem neste mundo, e em João, 11.1 a 45, o relato da grande amizade de Deus feito homem, ao homem Lázaro, pobre e humilde como aquela velhinha. Finalmente em Cor.1.27: Vós escolhestes o fraco segundo o mundo, para confundirdes o forte; e escolhestes o vil deste mundo, o desprezível e o que não é nada, para destruirdes o que é.
E assim pude compreender um pouco onde aquela velhinha encontrava tanta força para estar conformada, mesmo naquela situação. Removendo os duros golpes de minhas fraquezas, fechei o livro e, sinceramente, senti inveja daquela mulher maltrapilha que, pelos maus tratos e pela idade avançada, logo estaria circulando nas ruas da Cidade Eterna, num carro bem mais confortável e duradouro que o meu. Pelo que senti na alma naquele instante, acreditei que ”o que não é nada, destrói o que é”. A Bíblia tinha razão.
QUEM NÃO TEM CACHORRO, CAÇA COM GATO
Trabalhava comigo um homem branco, magro, simples e sofrido. Fazia o serviço de jardinagem de uma área de oito mil metros quadrados. Trabalhava como ninguém é era muito difícil surpreendê-lo descansando. Por isto, quando o vi à sombra de uma das tantas mangueiras, tentando ler um papel qualquer, observei:
– Ué, Zé, carta da namorada?
Falei e fui passando ao largo, sem a sensibilidade elementar de examinar a feição tristonha e desolada dele. Com sua humildade peculiar, olhou-me submisso, o bastante para eu entender o quanto havia sido insensível e inconveniente:
– É uma carta… do meu irmão… ele… ele está avisando que a mulher dele morreu. Deixou seis filhos pequenos. O mais velho tem apenas nove anos.
– Estava doente há muito tempo? Condescendi.
– Nada, morreu na virada do vento, de repente.
Vi, então, que chorava e fiquei surpreso, pois imaginava que gente sofrida tinha mais resistência às desditas. Tentei desfazer-me da situação embaraçosa:
– A vida tem dessas coisas, Zé. Apesar de duro, este é um golpe do qual ninguém conseguirá escapar. Ontem ela; amanhã, nós.
Três dias depois ele me pedia para faltar, pois precisava visitar a mãe adoentada. Abatida com a morte da nora, oitenta e cinco anos, criada a arroz e sal, a velhinha sentiu o peso daquela morte. Dois dias após, o Zé reapareceu no serviço. Estava com as feições ainda mais ressentidas e tristes:
– E aí, Zé, sua mãe melhorou?
– Já está debaixo do chão. Mal cheguei, ela se acalmou.
– É a vida, Zé. Dia menos dia, todos nós estaremos no mesmo lugar. Falei isto e fui me retirando. Em lugar machucado, quanto menos se mexer, menos dói. Uma semana depois, ouço algumas batidas na porta do meu escritório. Abro:
– Que houve desta feita, Zé? Entre. Não veio me dizer que morreu outro parente?!…
– Minha mulher… começou a passar mal… sabe, ela está buchuda… de cinco meses… tá perdendo sangue, não se aguenta em pé. Queria que me dispensasse mais uma vez para eu levar ela no farmacêutico.
– Tudo bem. Vai cuidar dela. Não se preocupe com o serviço.
Dois dias depois, voltou arrasado. Embora com maior precaução, arrisquei:
– Não venha me dizer que…
– Não, ela não morreu, não. O farmacêutico não deu conta. Mandou levar no médico.
– E aí, que disse o médico?
– Não olhou ainda. Levei ela lá no Regional. Tem muita gente na frente e a minha vez ainda não chegou.
Nisto, minha cunhada que passava interessou-se. Apanhou o Zé e a mulher doente, foi ao Regional, esperou, pediu, implorou, pagou… enfim, usou de todo e qualquer método, justo ou não, até que conseguiu a bendita consulta.
– A criança está morta na barriga e se a mãe não for imediatamente operada, morrerá também – foi o diagnóstico.
Novas lamentações, humilhações, pedidos de descontos, enfim, a operação. No outro dia vi o Zé novamente catando folhas, assoviando, parecendo, ao menos, pouco infeliz.
– E então, como está a sua mulher, Zé? Perguntei já antevendo flores e uma sepultura à minha frente.
– Está melhor. Foi operada e passa bem. Acho que agora vai dar tudo certo, se Deus quiser.
– Deus sempre quer, é só a gente acreditar.
No terceiro dia após a operação, ao voltar para casa, minha cunhada avisou que a mulher dele havia falecido também, deixando mais quatro criancinhas sem mãe. Não o vi no serviço. Cuidava das exéquias e de outros pormenores que sempre aparecem nestas desagradáveis situações. Mas, três dias depois, ele voltou. Vi-o sentado sobre um topejo de tora, olhar fixo num ponto qualquer, riscando com o dedo a areia do chão. Também Jesus Cristo gostava de se distrair assim.
– Que está fazendo, Zé? Perguntei estupidamente.
Sem qualquer movimento, olhos pregados no chão, ele respondeu com profunda tristeza.
– Estou deixando o tempo passar.
Esperei ainda alguns instantes, mas ele não ergueu a cabeça, não falou mais. Retomei o passo e pensei na frase que ele disse: “Estou deixando o tempo passar”.
Certamente, depois de tantas provações, tantos golpes inesperados e cruéis, não havia outro remédio, senão, deixar o tempo passar. Mais quatro crianças sem mãe e sem avó, olhares desolados, sozinhas no mundo, porque não há ausência mais triste do que a da mãe.
Um homem que chega e vê quatro criancinhas, como pintinhos extraviados da choca, roupas pelos cantos, fogão apagado… Ah, Deus Criador, que bom nos ter dado o tempo! Não fosse ele, agora, o Zé estaria irremediavelmente no inferno. Até para Deus, certamente, seria difícil encontrar um remédio melhor do que o tempo para alguém que recebe tantos golpes em tempo próximo. Ali sentado, ele imaginava voltar para seu barraco, deparar-se com quatro crianças confusas, sujas, famintas, desorientadas. Depois, à noite, o castigo da insônia, a desolação de um lado da cama sem ninguém.
“Estou deixando o tempo passar”! É, não há nada melhor para solucionar os problemas cruciais da vida, do que deixar o tempo passar. Estava eu certo de que, mais alguns dias e o Zé estaria lá, catando folhas, sorrindo novamente, envolvido pela alquimia do tempo, que consegue transformar a dor e o sofrimento, em apenas, passado.
Pois é, Zé, assim é a vida! Fosse você um milionário “cheio de frescura”, certamente tomaria um jato e iria esquecer os reveses da vida nas Bahamas, nas cataratas do Niágara, na ilha de Capri… Contrariamente, Zé, você não tem sequer uma bicicleta para pedalar e vir ao serviço. Tem de caminhar a pé, todos os dias, dezesseis quilômetros. Mas, como tanto dorme e descansa o vira-lata ao relento, como o terrier escocês na mansão, você buscará seu esquecimento de um modo mais simples: sentando à sombra da mangueira, cabisbaixo, riscando a areia do chão e esperando, apenas, que o tempo passe… e as feridas cicatrizem.
A VERDADEIRA RELIGIÃO
A existência de um Deus criador de todas as coisas visíveis e invisíveis é a única verdade absoluta que, vez por outra, alguém ousa duvidar. Não me refiro aqui à criação do “FAÇA-SE”, como muitos acreditam ao pé da letra, mas sim à imposição lenta e progressiva da evolução, escolhida por Deus como o caminho mais viável para “atingir a perfeição”. Deus criou as sementes e as predispôs à germinação, crescimento e frutificação.
Um Ser Superior – misteriosamente surgido – criou tudo o que há, isto, para mim, deveria ser indiscutível. Muita gente, no entanto, prefere ver as coisas pelo lado do simples acaso, pois sua limitada razão não consegue admitir, cientificamente, o aparecimento de Deus. Esta posição agnóstica de só ver e acreditar no lógico é, quase sempre, demonstrativo do orgulho humano, pois não há nada mais contundente do que a nossa existência aqui neste mundo.
Há, dentro do homem, uma dependência tão forte de crer, de se resguardar sob a égide de um Protetor, que nos torna inteiramente vulnerável diante do infinito. Por isso adorou-se o sol, o bezerro de ouro… e milhares de outros objetos, astros e seres, sempre na esperança de que estas coisas pudessem servir de amparo na caminhada do além. Há quem afirme que esta saudade de Deus tem raízes eternas, ou seja, que o homem proveio de Deus e por isso não O esquece, esperando a Ele voltar. Isto faz sentido se atentarmos para o cunho filosófico da memória. Qualquer coisa que lembramos, certamente a conhecemos no passado. Até mesmo quando lembramos que esquecemos alguma coisa, fica claro que a coisa esquecida, um dia esteve em nossa memória. Logo, a necessidade que todo ser humano sente de crer, não deixa de ter raízes profundas e perdidas, que a qualquer custo queremos lembrar.
Recordamos assim, vagamente, de uma ligação com Deus e forçamos a memória para tornar claro este indício. Deus, entretanto, apesar de Chefe Supremo, parece sofrer uma oposição cósmica ferrenha, representada pelas forças revoltadas do mal que, inexplicavelmente, interferem na criação do mundo, sem que Ele, Deus Supremo, possa destruí-las. Este “acordo celestial firmado” transcende o entendimento humano, assim como as regras que regem a guerra fria entre o Bem e o mal. Que ela existe, que o Bem não pode vencê-la pela força, isto não me parece haver dúvidas. Estes dois reinos disputam-nos palmo a palmo como pedras num jogo de xadrez. Seremos o troféu do vencedor.
Aliás, há uma necessidade premente da existência do mal, para que se possa entender a existência do bem: lei dos contrários. O homem sente inconscientemente este clima no ar. Acredita. Precisa acreditar, embora se sinta avariado neste emaranhado de dúvidas. Foi assim que se criaram as religiões; é assim que, ainda hoje, novas seitas e crenças aparecem. Menos mal: ”O que não é contra mim, é comigo” – disse Jesus. Não importa que se seja católico, espírita, protestante, hinduísta, calvinista ou budista, desde de que esta posição tenha sido aprovada por um exame minucioso da consciência. Se com a melhor das intenções chegarmos à conclusão de que descobrimos o melhor caminho, a verdade mais afinada com os desejos do Criador, certamente Ele considerará, ainda que nossa escolha não tenha sido a melhor. O que salva é a intenção e a sinceridade e não propriamente as verdades que a tradição e o mundo ensinam. “Todo caminho do homem lhe parece a ele perfeito; mas O Senhor pesa os corações”. Provérbios: 21.2. Um carro que solta uma roda e se desgoverna, atropelando um transeunte, tirando-lhe a vida, não significa que o motorista cometeu pecado, embora tirar a vida de alguém o seja. Ele não teve a intenção de matar ninguém. Um homem que desfecha vários tiros contra alguém com o intuito de assassiná-lo, embora não conseguindo, é réu da justiça de Deus. A intenção é que conta e, segundo ela, não só Deus, mas também os homens, aplicam sua justiça. A única diferença é que Deus é justo e os homens, nem sempre. O grande mal não está na diversificação das crenças, mas na intenção escusa que as mantém. Quando vemos religiosos ou religiões se digladiarem, trocando insultos e perseguições, já podemos estar certos que ali não está havendo cristianismo. Quem, de fato, acredita em Deus, segue os seus ensinamentos. A lei de Deus não é de desforra, de brigas, de acusações, de intrigas e coisas que as valham. Portanto, é falso todo aquele religioso que se preocupa e persegue as outras religiões. É estúpido criticar o semelhante, ver nele os defeitos pequenos e não enxergar os nossos tão grandes. Depois de tudo, só a Deus compete julgar.
Não há religião que não tenha suas falhas humanas. E que sendo ela professada por seres frágeis, cheios de defeitos, não poderia ser de maneira diferente. Até os ecléticos, depois de filtrarem as diversas doutrinas, acabam por cometer as suas falhas. Os católicos carregam a mancha negra da Idade Média com seus Autos de Fé, Vendas de Indulgências (com o cisma de Lutero), Inquisição e a impertinência de se submeter aos escândalos que, vez por outra, o celibato impõe a seus sacerdotes.
Certamente que nada é impossível a Deus, mas para que saltar o rio se temos uma ponte ao lado? A repressão sexual, cientificamente, é um atentado contra a natureza e, quando forçada, pode afetar o equilíbrio emocional e psicológico das pessoas. Além do mais, Jesus Cristo nunca exigiu ou ensinou nada que viesse de encontro à natureza das coisas. Era até muito compreensivo com as meretrizes, como nos conta João no capítulo 8, versículos de 3 a 12. Ninguém melhor que Ele sabia compreender a força inexplicável dos seres na perpetuação da espécie. Os espíritas, budistas e de certa forma, os hinduístas, apregoam a reencarnação. Humanamente falando, Kardec criou um sistema muito cômodo ao ser humano, pois sua doutrina subtrai, sobremaneira, a grande angústia das ameaças terríveis do fogo eterno. Até que a reencarnação não seria tão absurda, mesmo sob os respaldos bíblicos: “Eu porém era um menino engenhoso e coube-me por sorte uma boa alma; ou por melhor dizer, como eu era bom, vim a um corpo incontaminado.” Sabedoria: 8.19,20.
Reencarnar. O homem morre e volta tantas vezes quantas se fizerem necessárias, até tornar sua alma dócil, pura e perfeita. Aí então, o espírito não mais voltará. Atingirá o Nirvana, como dizem os budistas, ou o céu, como dizemos nós, os católicos. O que dificulta aceitar tal afirmação é o fato de o mundo ter começado com apenas um casal, e hoje andar pela casa dos seis bilhões de habitantes. E preciso, pois, uma explicação ampla que satisfaça a curiosidade empírica, ou seja, a comprovação desta defasagem ou estocagem de espíritos. Hoje, diante deste impasse, tentam afirmar que há vida em outros planetas e que a “troca” é possível.
Os protestantes, batistas, crentes e seus segmentos, ramificam-se em centenas de interpretações bíblicas. Diante do emaranhado sibilino que a tradição nos legou, não chega ser alarmante. De fato, a Bíblia, por desejo de Deus, por extravios de textos ou por traduções interesseiras, não é totalmente coerente nos seus “73” livros inspirados. Há, de fato, muita coisa aparentemente contraditória, mas que, a meu ver, ainda mais prova sua autenticidade, pois subtrai a intenção forjada de se criar uma história perfeita para engabelar. Apesar de inspirada, ela foi escrita por homens; traduzida de língua para língua; passada por mãos, culturas e pensamentos diversos; adaptada aos tempos, sofrendo assim muitas distorções. Não bastasse, em cada tempo, em cada região ou cabeça, as palavras têm um significado, nem sempre igual. As dúvidas que hoje oprimem nosso senso lógico, não chegam a afetar os dogmas, pois não contestam a existência de um Ser Criador, mas unicamente Suas pretensões quanto ao gênero humano. Se a reencarnação se processa ou não, se Jesus Cristo é Deus como o Pai ou tão somente seu Filho, se seremos julgados apenas no fim dos tempos ou tão logo morrermos, são perguntas que mais desafiam nossa limitada razão do que afetam nossa salvação. A procura honesta em companhia da intenção sincera, resolve e satisfaz, embora a gente tente, em vão, fazer valer nossa opinião de humanos orgulhosos. Com sinceridade podemos satisfazer nosso senso lógico de deduções.
Há proposições que, sem afetarem nossa salvação, apresentam, satisfatoriamente, muita coerência. Reservo aqui um espaço de apoio àqueles que acreditam que haverá um único julgamento e que este só se dará no Juízo Final, nos fins dos tempos. Todo pensamento, palavra e ação do homem, tem repercussão indefinida em sua alma ou em relação aos outros, enquanto perdurarem os tempos. Assim, aquele que estende uma armadilha no mato, ainda que jamais vá verificá-la, ainda que a despreze e esqueça, ela continuará sendo uma armadilha e apanhará a primeira presa que ali passar. Nossos atos, palavras, escritos, ordens, insinuações, conselhos…, tudo o que fazemos, tende a estender seus tentáculos e efeitos através dos tempos. Há milênios a Bíblia vem transformando as almas; há milênios existem imposições ideológicas más que, quando em vez disseminam o veneno da insegurança, do erro e da mentira, intencionalmente. Escritos obscenos e pornográficos, incitando o sexo em adolescentes desavisados, visando tão somente a rentabilidade, são espalhados pelo mundo inteiro. É muito lógico que tais escritos, bons ou ruins, pela extensão de suas consequências, afetem o autor. Logo, até que os tempos não terminem, nossos atos receberão, de Deus, a devida avaliação. Com o fim dos tempos cessarão também os efeitos de nossos ensinamentos e de nossas obras. É hora, pois, do julgamento decisivo, dos louros e dos castigos. Isto implica na aparição de Moisés e de Elias a Jesus no Tabor. Não podemos esquecer, também, daquelas palavras que, segundo Marcos, Jesus disse ao bom ladrão na cruz: ”Hoje mesmo estarás comigo no paraíso.”
Mas, que será um hoje diante de uma eternidade? O tempo para Deus não existe. Bem, mexer nestes fundamentos implicaria na teimosia vã de Ezras e nos levaria, depois, a concluir com ele: ”Tais explicações, não têm explicação.”
Entendo que toda religião é verdadeira quando imbuída de pobreza de espírito, e falsa quando se diz dona da verdade, equiparando-se a Deus. Por isto, o homem tem sua verdade e por sua própria consciência será julgado. Cada homem deve respeitar a crença do outro, principalmente por respeito à sua. Jamais alguém deverá abdicar de sua verdade e muito menos não viver segundo ela. E falso aquele que não vive o que prega e defende.
Tal atitude era própria dos fariseus, daqueles que não tinham na alma aquilo que diziam professar. Fingidos – “sepulcros caiados”. Todo homem convicto de que encontrou a verdade deve viver segundo ela, ainda que em detrimento de sua própria felicidade terrena ou da própria vida. E Deus não perdoará o covarde, nem “o morno”. Isto vale para todos os segmentos da existência humana: religiosa, social ou política.
Quantos religiosos, líderes, políticos, chefes…, que nada mais representam do que facções oportunistas? Vivem na mentira, em cima do muro, longe de sua consciência. Neste ponto havemos de parabenizar Martinho Lutero pela coragem com que defendeu o que achava certo, mesmo sabendo que isto iria acarretar-lhe uma das maiores responsabilidades perante Deus e perante a Igreja Católica. Para fazer o que ele fez é necessário estar convicto de que vale a pena defender o que o certo, ainda que isto lhe custe a excomunhão da igreja mãe.
Todo homem tem sua verdade. Tendo-a encontrado, o homem não deve mais dela arredar pé, ainda que se defronte contra o sistema. O homem deve estar convicto e ser autêntico, ou pelo menos lutar até suas últimas forças para chegar a este ponto. O poder criou leis e verdades próprias, verdades e leis que são somente de poder. O homem é vulnerável, inconstante, instável e, acima de tudo, interesseiro e oportunista. Para não perder o poder e a hegemonia, o homem poderoso forjará verdades estúpidas, desde que estas lhe assegurem poder e prestígio.
As religiões desempenham um papel fundamental no comportamento dos fiéis. Graças à crença e à fidelidade, muitas coisas ruins deixam de acontecer no mundo. É por amor a Deus, ou por medo de Sua justiça, que muitos não roubam, não matam, passam fome, morrem na miséria…, resistem bravamente à vida fácil deste mundo, na esperança da felicidade eterna depois da morte.
Ser fiel é aceitar, cegamente, as normas e dogmas de uma cúpula que se apregoa dona da tradição e do saber. Se acredita, de coração, em tudo quanto sua religião ordena e exige, quanto melhor, pois estará isento da responsabilidade. Mas se é por medo e cega obediência, por covardia em assumir a função que Deus lhe determinou, provavelmente responderá por isto. A quem mais devemos obediência, senão à voz de Deus representado pela consciência? Sim, porque quando se refere a nós, ela é infalível. Jamais alguém se perderá se a seguir. Ela é uma luz de mil wats à nossa frente, mostrando o caminho a ser seguido. O homem só se salva com a verdade; a verdade não é única, ela existe dentro de cada um; ela é a consciência da gente. Se queremos nos salvar, é só a seguir.
Os ensinamentos bíblicos podem ter sofrido algumas alterações involuntárias através dos tempos; nossa consciência, não. Mas não é tão simples como parece, pois, às vezes, para segui-la a gente tem que dispor, até mesmo, da própria vida, quanto mais dos bens e dos entes queridos. A escolha é de cada um e não há ninguém que imponha coisa alguma. Liberdade terrível. Quando o Criador deliberou que Maria seria a mãe do Salvador, não enviou o anjo a Augusto, imperador de Roma; nem a José, seu noivo; nem ao sumo sacerdote; nem à moral vigente nem às normas tradicionais da cidade; nem consultou a dura lei mosaica que poderia levar Maria ao apedrejamento, pois quantos não a imaginaram mãe solteira diante daquele estado de gravidez? Está aí mais uma prova de que Deus é absoluto e não precisa dar satisfações a ninguém para realizar seus planos. A única pessoa consultada foi Maria, em detrimento de toda sua reputação como mulher justa, honesta e temente a Deus. Ela aceitou.
Os fuxicos foram grandes, ninguém duvide. O que José deve ter suportado, não foi fácil. Mas a única coisa que interessava era a consciência e Maria a seguiu fielmente. Hoje, protestantes e católicos ficam se preocupando com a virgindade ou não de Maria, metidos em fuxicos como os antigos filhos de Nazaré, sem se aterem que isto não vale nada, que o importante mesmo é que as escrituras se cumpriram e que o ”Filho de Deus se fez homem e habitou entre nós”, dando-nos toda chance do mundo de sermos autênticos e felizes. Maria possuía sua verdade e não havia poder no mundo que pudesse modificá-la. Foi mais uma prova de que a verdade existe em cada um e não nas leis que regem os grupos, os estados, os países, o mundo ou as religiões.
SONHO DE CRIANÇA
Um dia sonhei que estava caminhando abstraído em pensamentos obscuros, estranhos, duvidosos. Vi-me parado numa alta montanha, tendo abaixo as ondas que marulhavam nas pedras e corais: cantilena triste e desconcertante. Pareciam-me uma porção de gente querendo falar ao mesmo tempo, sem jamais se entenderem. Não sei a razão, mas percebi que estava sonhando. Ultimamente, sempre sei quando estou sonhando, e mesmo assim, tento buscar uma explicação lógica para tudo quanto vejo, ouço e faço, ainda antes de acordar.
Não foi difícil reconhecer que eu retornara aos meus tempos de criança, no internato, lá em Vitória – ES, no Seminário Nossa Senhora da Penha: um monturo que se explana para o mar, terminando na praia Santa Helena. Não que seminário seja coisa ruim, mas sim porque foi lá que destruíram o tempo mais feliz de minha vida, tirando-me da simplicidade do campo e me delineando um Deus duro, inflexível, exigente e ameaçador. Até então meu Pai do Céu era um velhinho compreensível, que me afagava os cabelos, que virava o rosto quando eu fazia malcriações ou fingia que não escutava meus sussurros de vingança a quem me irritava. Foi ali, ouvindo o barulho das ondas, que me mostraram a malícia, e que meu Deus tornou-se duro e austero. Lá no meu torrãozinho natal, Marilândia, eu vivia correndo pelos campos, mais feliz que um potro de seis meses, entendendo que tudo e todos existiam, simplesmente por causa de mim. À minha maneira eu acreditava em Deus. Conhecia-O até. Era um velhinho de cabelos e barbas brancos, sentado sobre as nuvens, com um cetro na mão direita, uma coroa de ouro na cabeça, sempre olhando para nós, seus bichinhos aqui da Terra.
Naquele tempo eu sabia como fazer artes sem que Ele me visse. Era só esconder-me debaixo de alguma coisa ou encerrar-me num quarto escuro. Fazia minhas artes, depois saía com as mãos nos bolsos, assoviando, chutando pedrinhas, latas, cascas…, qualquer coisa para disfarçar. Olhava para cima e nos desenhos das nuvens via meu Pai sorrindo docemente para mim. Aí eu me despia daquele disfarce ingênuo e voltava a correr, sempre montado no meu Alazão de pau, certo de ter ludibriado aquele Velhinho Amigo que morava lá em cima e tomava conta de mim.
Hoje me despiram de toda simplicidade, de toda ingenuidade e me tornaram um bicho triste e acuado, um homem que subiu de avião e viu, conforme disseram, que por cima das nuvens não existia Deus algum. Não O encontrei lá sentado quando voei, mas disseram-me também que Ele estava em algum lugar, ou o que é pior, em todo lugar, espreitando-me, anotando tudo quanto eu fazia de errado, para um dia cobrar-me até o último centavo de minha dívida.
E o tempo passou, passou. Coisas estranhas ocorreram dentro de mim. O Deus que vivia perto, afastou-se, desapareceu. Não consigo encontrá-Lo mais. Muitas coisas desaparecem da vida da gente, muitos sonhos os adultos conseguem apagar da pureza das crianças, mas a falta daquele Velhinho Bondoso, amigo e pai, hoje me dói muito. Sinto uma grande saudade Dele.
No mundo que me jogaram, tantas mãos vejo estendidas! Tantas mãos segurei! Tantas eram falsas! Tantas levaram-me à angústia e quase ao desespero! Tantas não eram aquelas que, quando criança, rompiam as nuvens para afagar os meus cabelos de criança travessa e dizer, carinhosamente, que eu era um menino bom.
Meu Deus, por que teve de ser assim? Por que temos de crescer? Por que temos que aprender as coisas dos adultos?
NATUREZA X PROGRESSO
Copiar dos jornais, repetir comentários, dizer com outras palavras o que tanto já se disse sobre Ecologia, Meio Ambiente, Natureza etc., seria até enfadonho. É tanta gente envolvida em sonhos, ou mesmo na dura realidade que o progresso impõe, que neste momento eu não saberia se teria coisa nova a dizer a este respeito. Direi então a minha opinião sincera que, tenho certeza, tantos acharão pessimista: enquanto a Natureza não mostrar sua força, toda sua pujante revolta diante da agressão que sofre, os homens continuarão agredindo-a sem piedade. Pacientemente ela não reclama, mas certamente se vingará.
Apesar de possuir raciocínio, o homem é um dos poucos animais que não o usa corretamente. Nossa inteligência deveria ser o principal motivo de respeito para com o mundo em que vivemos e com a casa em que moramos. Contrariamente nós a usamos para degenerar, destruir e sujar a Terra.
Mas, o que acontece quando uma família não limpa a casa em que mora? O mau cheiro, as infecções, a promiscuidade, a degradação da vida acontece. É o que aguardará o ser humano se continuar nesta caminhada infrene e suicida.
Inerente ao homem convivem, entre outras, duas grandes fraquezas: o sexo e a ganância. Em ambas o homem fica cego à realidade, desconhece o supremo fim e se consome em prazeres efêmeros. Quando um homem quer uma companheira e não é correspondido, nasce instantaneamente um perfeito idiota, um animal irascível, um estúpido asno velho. Perde a alegria de viver, o senso crítico, a vergonha…, esquece as obrigações, tornando-se um sério problema para a família e para a comunidade.
No amor, entretanto, isto não é generalizado. Quanto à ganância, porém, não sei se poderia estabelecer exceção. Este mal gera os desejos da carne, da supremacia, do egoísmo, do conforto, enfim, reclama e exige um progresso que o satisfaça. E não haverá jamais um contrário mais perfeito para o Meio Ambiente do que progresso desorientado.
Assim como não se pode combinar a beleza de um jardim com a criação de porcos e galinhas, assim também acontece quando se tenta conciliar Natureza e Progresso. Se se põe porcos num jardim, certamente as flores ruirão; se se permitir um progresso desenfreado, a Natureza sucumbirá. A flor precisa de ar puro – o progresso oferece fumaça; os peixes necessitam de água pura – o progresso a suja e polui; as aves precisam dos frutos das árvores, do silêncio e da sombra das florestas – o progresso precisa dos troncos para as serrarias, laminadoras e para o carvão; a vida precisa de espaço, de oxigênio – o progresso não se importa com a vida.
São as leis promulgadas por homens interesseiros, egoístas e inescrupulosos que ocasionam todo transtorno. Quem não percebe a aberração de uma lei que proíbe o uso de armas, mas permite a fabricação e comercialização das mesmas? A perniciosidade do fumo e do álcool, propagandeados e vendidos abertamente no afã de empregos e impostos? Hoje se crucifica os responsáveis pela destruição das florestas, mas os carrascos se esquecem que foram eles mesmos que criaram as leis da destruição, alegando ocupação da Amazônia, rentáveis e faraônicos investimentos estrangeiros, decretando, enfim, que quem quisesse possuir legalmente suas terras, teria de derrubar as matas, ou pelo menos, grande parte delas.
Nunca a Natureza foi tão violentada em nome da Lei, Lei esta feita por homens encerrados dentro de gabinetes com ar condicionado, gente que, possivelmente, nunca entrou ou passou uma semana dentro da floresta.
Alguns homens que comandam o mundo querem dinheiro, muito dinheiro; impostos, muitos impostos daqueles que não encontram jeito de escapulir. Sabem para quê? Para, além de atender sua famigerada sede de riquezas, ainda combater o mal que eles mesmos criaram por meio de leis estúpidas. O dinheiro é também usado para tentar desfazer o mal criado: reflorestamentos, combate à poluição, perseguição aos prevaricadores, em suma, para minimizar os estragos do progresso. O homem permite, por interesse, que o mal se faça e depois luta para remediá-lo. É incrível a gente pensar profundamente sobre o assunto. Como isto nos deixa aquém dos protozoários!
Agora, outro grande mal que nossa geração não verá, está para acontecer: a superpopulação do planeta. A Natureza já começou sua reação, ou melhor, não está inclinada a mudar seu temperamento de estrela de cinema, sempre imprevisível. Catástrofes e mais catástrofes se sucedem sem que o homem faz de conta que não percebe. Mais um pouco e onde cair um raio, aí estará a cabeça de um homem para recebê-lo; onde houver uma enxurrada, aí estará uma “casa” para ser levada com todos e com tudo; onde explodir uma usina atômica, aí estarão milhares ao redor para morrer como ratos numa dedetização; onde entrar em atividade um vulcão, abaixo uma cidade para ser soterrada pelas lavas… O motivo: gente demais.
A terra continua seu caminho, girando tranquila. Seus componentes não desaparecerão. Ainda antes que se descobrisse, aqui nada se perdia, apenas se transformava. Por isto a terra nunca deixou de voar serena pelos céus de Deus. E Deus que a fez deve estar tão transtornado como se tudo Lhe fosse surpresa. O homem mexe em tudo “como fazem os macacos” sem saber as reais consequências. Não é por menos que vírus estranhos hoje aparecem, certamente provindos de alguma experiência genética realizada por cientistas que não medem os meios para atingirem o fim: prestígio internacional. Também o prestígio vaidoso acarreta largos prejuízos à humanidade, mormente quando não provém de um sonhador ou idealista sincero. Bichinho danado o homem – Deus que o diga.
Excluir o progresso dos planos egoísticos do homem, parece-me impossível. A única solução clara e insofismável para o problema, não pode mais ser dada. Resta-nos, então, conviver com tais males e amenizá-los na medida do possível. Cada um tem um pouquinho para dar. No Brasil o problema seria nosso, embora o mundo inteiro não pense assim. Eles destruíram as florestas deles, criaram suas fábricas poluidoras, ficaram ricos, fizeram tudo para alcançarem o progresso, e agora exigem que subsidiemos suas ganâncias e seu minguado ar puro. Se fosse só por isto, seria ótimo que os deixássemos em dificuldades ou que cobrássemos deles pelo oxigênio amazônico, exatamente o que nos extorquiram através dos tempos. A realidade, porém, é que o problema é também nosso, muito nosso. A destruição das matas pode gerar desertos, juquiras improdutivas, poluição do ar, diminuição do oxigênio que respiramos, diversificação dos ecossistemas e, consequentemente, o aparecimento de vidas estranhas, incentivadas pela diminuição da filtragem de tantos agentes aeróbios nocivos… A fauna autóctone, adaptada hoje ao meio natural, levou milhares de anos para isto e uma mudança no equilíbrio poderá acarretar drásticas surpresas. Não é por menos que hoje existem tantas pragas e tantos venenos para combatê-las; e tantos alimentos envenenados para matar a fome de tanta gente. Ninguém ousaria aquilatar a quantidade de veneno que a humanidade ingere, atualmente, em cada refeição.
A derrubada das matas, acompanhada do verdadeiro agente destruidor da Natureza, o fogo, por incrível que pareça, na maior parte das vezes é feita segundo a lei: o posseiro é obrigado a destruí-la se desejar possuir o título definitivo. Onde está, então, a falha de tamanha grosseria? Sem sombra de dúvidas, na lei estúpida promulgada e ratificada por políticos que não sabem, sequer, quantos grãos de milho deve-se colocar numa cova aberta ou o que seja uma peroba do campo, uma gendiba, uma muiracatiara, uma bicuíba…. Nunca vi estupidez maior na minha vida do que um matuto tentar realizar um transplante de coração; um jogador de futebol guiar um arado; um padre gerenciar um motel; um gari manipular um computador; um político estabelecer leis para o Meio Ambiente. Todos nós temos uma vocação de berço, um dom de Deus para alguma coisa ou função. Diante das necessidades da vida, nem todos desempenham as profissões que gostam. De qualquer forma, em vista das matérias que estudamos e, principalmente, do lugar em que vivemos, a gente aprende a manipular e a conviver com aquelas coisas que vivem pertinho da gente.
Deixemos, pois, que os políticos tratem de corrupção, digo, de política; que o médico assista o doente; o lavrador are a terra… e os ecologistas de vocação e respeito, estabeleçam as leis que devem responder pelo equilíbrio da Natureza. O dia que um governo se despir dos interesses de poder e riqueza e pensar no país, pondo em cada ministério alguém honesto e capaz, que com ele se identifique, certamente a coisa funcionará melhor. Não quero falar, apontar erros apenas. Criticar é muito fácil. Apresentarei, então, segundo minha convivência com a Natureza, duas grandes e principais leis para o nosso Meio Ambiente:
1- Fica expressamente proibido a derrubada e queima de qualquer floresta do país a todo proprietário que possuir qualquer quantidade de terra em capoeiras, juquiras ou que esteja no abandono. Só se estudará novas derrubadas quando todo o terreno descoberto estiver preparado condignamente para o fim a que se destina, ou seja, produzindo.
2- Fica autorizada a extração de madeira em toros em todo território nacional, desde que se derrube apenas as árvores secas ou danificadas e as que tiverem atingido sua maturidade. Cada árvore madura tem sua média de espessura máxima. Esta média seria estabelecida e a partir daí autorizado seu aproveitamento. Com isto, além de não se prejudicar a fauna, de se aproveitar uma riqueza que em breve estaria perecendo, ainda damos chance às novas árvores de crescerem e substituírem as que estiverem sido extraídas. O aproveitamento destas essências deverá ser realizado manualmente.
Um trator possante na mão de um desavisado destrói mais a Natureza na abertura de estradas do que na extração das árvores maduras. Uma extração manual, além de dar muitos empregos, ainda impede a maior parte da destruição que se inflige à floresta. Ninguém seria idiota ao ponto de passar o dia inteiro derrubando uma árvore, só para ver o tombo. Certos tratoristas fazem isto.
Numa extração manual, apenas o estritamente necessário é sacrificado, e três anos depois, nem o sinal é mais percebido. Estas duas prerrogativas significariam para a nossa Natureza (floresta) o que significa para os cristãos, os dois grandes mandamentos: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Os casos especiais seriam resolvidos à parte, pois se torna impossível estabelecerem-se leis generalizadas diante de tantos ecossistemas diferenciados, diante de uma extensão territorial tão expressiva como é a de nosso país.
Enquanto formos dirigidos por motoristas inescrupulosos, estaremos sujeitos a todo tipo de acidente nas estradas. A Constituição Brasileira não podia jamais ser escrita por gente de uma única ala, por gente que só entende, e muito mal, de política. A maior preocupação de nossos partidos é o poder e jamais propiciar ao povo e ao país, paz, prosperidade e justiça social. Se isto for política, eles entendem a fundo.
Os médicos e do ramo deveriam estabelecer as leis da saúde; os ecologistas e afins, da Natureza e da vida; os economistas e similares, da Economia; os professores, da Educação…. Contrariamente estaremos entregando a um matuto o bisturi para o um transplante.
Por ter sido escrita por políticos inescrupulosos é que esta Constituição favorece a corrupção, a impunidade, a anarquia, o desrespeito, a sonegação e todos os demais males que fortificam a maior injustiça social do mundo moderno. Desta maneira, o paciente operado pelo matuto morre, não porque não tenha cura, mas simplesmente porque o operador é incompetente. A solução menos atinente ao Brasil e mais fortemente para todo o planeta seria, em princípio, que se evitasse também os nascimentos pelo prazo de vinte anos. Isto reduziria a população para alguns bilhões, permitindo ao raio, um lugar a esmo para cair, sem ceifar vidas. Não permitir que se destrua as florestas, a não ser em casos muito especiais. Só assim haverá prolongamento da vida na terra.
Sei que evitar nascimentos implica num desencadeamento de problemas, principalmente religiosos. Afirmo, porém, que a própria lei de Deus não tem nada contra o bom senso. Que se leve agora ao pé da letra o “crescei e multiplicai-vos” e tantos outros ensinamentos que estipulam castigos aos que evitam filhos, para a China, o Japão, a Índia… e impeçam-lhes a emigração. A situação ficaria insustentável.
Repito: Deus não tem nada contra o bom senso. Se não se diminuir a população por bem, ela será diminuída por mal, por meio de guerras e de catástrofes ocasionadas pela superpopulação. A ganância e o egoísmo dos homens apressam essas medidas. A Igreja deveria lutar para que o homem fizesse uso de seu raciocínio, de sua força de vontade, a fim de evitar ou controlar os desejos sexuais e não ameaçar com as chamas do inferno as que abortam. Não deveria esquecer também que é mais importante o relacionamento Deus-homem do que o homem-lei. Só Deus sabe os reais motivos que levam um homem a cometer seus desatinos. Não sendo assim, cai-se sempre na mesma aberração de se prender o bêbado e permitir que as fábricas de aguardente funcionem e que os botequins a revendam abertamente.
Para salvaguardar a Natureza tem de se tomar uma decisão séria e imediata. Nem é mais preciso lutar para salvar o um, ou o dez por cento das florestas de qualquer estado. Primeiro, o crescimento geométrico (Malthus) do ser humano exige espaço, e fatalmente passará por cima de qualquer lei, invadindo tais áreas; segundo, ainda que o homem respeitasse, o fogo não o faria. Quem o controlará numa área sem umidade, ressequida pelo desmatamento? Vejam os exemplos da mata Atlântica na Bahia e no Espírito Santo. Na Amazônia, até dez anos atrás, o grande problema dos pecuaristas e agricultores era queimar as derrubadas. Ninguém precisava acerar as matas, pois nem os paus cortados há quatro meses pegavam fogo. Hoje já se vê no Portal da Amazônia, matas inteiras sendo devoradas pelo fogo, sem que ninguém o contenha. Sem florestas, o ar se torna mais seco, as chuvas escasseiam, os ventos aumentam sua infiltração e excitam as labaredas: a destruição das matas é certa. Que fazer então e agora? Usar apenas o que temos já desmatado, formar pastarias no lugar das juquiras e, novas derrubadas, só depois de muita conversa. Ainda dá para salvar a Amazônia, pois ela é muito grande e somente o Pará, o Mato Grosso e o Maranhão estão em destruição acelerada. Os outros estados, perdoem-me, podem ser esquecidos quanto as essências naturais. Os capões que restam serão devorados e como disse Jesus de Jerusalém: Não ficará pedra sobre pedra. O responsável por um mundo sem florestas, por mares sujos de óleo, pelo ar poluído que respiramos, pelos rios secos ou sem vidas é, indubitavelmente, o progresso, representado aqui pela ganância dos homens em busca de poder e riqueza.
JESUS: DEUS OU HOMEM?
Desde que Jesus veio a este mundo esta pergunta vem suscitando dúvidas nos teólogos, ascetas, estudiosos e nas próprias igrejas cristãs. Muitos, certos de que se é impossível enganar a Deus, dizem honestamente sua opinião, enquanto outros, medrosos em assumir tão delicada posição, preferem salpicar o assunto com apenas perguntas e mais perguntas, numa inequívoca demonstração de covardia em dizer aquilo que honestamente pensam. Na verdade, a própria Bíblia, único registro aproximado da palavra de Deus (pois em vista das diversas traduções, das interpretações a gosto e mesmo dos interesses doutrinários, apresenta divergências e até mesmo certas incoerências e discrepâncias), não nos é clara nesta afirmativa. Na verdade, qualquer intento nesta direção esbarrará no mistério da Trindade e, tudo o que é mistério, transcende nosso entendimento, dispensando-nos de qualquer explicação razoável. Na Oração Sacerdotal de Jesus (João: 17), a gente vai encontrar este mistério ainda mais miscigenado de “Jesus, Deus/homem. “Há tanto tempo vivem comigo e ainda não me conhecem?” “Vai-te satanás, porque está escrito: ao Senhor teu Deus adorarás, e a Ele só servirás.” Mateus: 4.10. “Ide pois e ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo.” Mateus: 28.19.
Há ainda outras citações afirmando Jesus como o próprio Deus descido do céu, porém, mais sutis. Entretanto, as indicações bíblicas de Jesus como: o Predileto, o maior depois do Pai, o Filho bem-amado, o Salvador, o Cristo Redentor, o Messias, o Profeta, o Santo…, superam, e de muito, as primeiras. Senão vejamos: “Tu não terias sobre mim poder algum, se ele te não fora dado lá de cima.” João: 19.11. “Que temos nós contigo, Jesus, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo?” Mateus: 8. 29. “Porque aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus…” Mateus: 12.50. “Mas Jesus lhes dizia: Um profeta só deixa de ser honrado na sua pátria, e na sua casa, e entre os seus parentes. E não podia fazer ali milagre algum, senão foi que curou alguns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos.” Marcos: 6.4 e 5. “E Jesus lhe disse: Por que me chamas tu, bom? Ninguém é bom, senão só Deus.” Marcos: 10.18. “A respeito, porém, deste dia ou desta hora, ninguém sabe quando há de ser, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas só o Pai.” Marcos: 13.32. “E todo homem verá o Salvador, enviado por Deus.” Lucas: 3.6. “Tu és aquele meu Filho especialmente amado; em ti é que tenho posto toda minha complacência.” Lucas: 3.22. “Bendito o que vem em nome do Senhor.” Lucas: 19.35. “Eis aqui o Cordeiro de Deus, eis aqui o que tira o pecado do mundo.” João: 1 .29. “Porque assim amou Deus ao mundo, que lhe deu seu Filho Unigênito, para que todo o que crer nele não pereça, mas tenha a vida eterna. ”João: 3.16. “Eu saí do Pai, e vim ao mundo; outra vez deixo o mundo, e torno para o Pai. Disseram-lhe seus discípulos: Eis aí está tu agora é que nos falas abertamente, e não usas de parábola alguma; agora conhecemos nós que tu sabes tudo, e que a ti não é necessário fazer-te ninguém perguntas, nisto cremos que saíste de Deus.” João: 16.28 a 31. “Porque assim como o Pai ressuscita os mortos, e lhes dá a vida, assim também dá o Filho vida àqueles que ele quer. Porque o Pai a ninguém julga, mas todo juízo deu ao filho.” João: 3.21 a 23. “A obra de Deus é esta: que creiais naquele que ele enviou.” João: 6.29. “Por isso eu vos tenho dito que ninguém pode vir a mim, se por meu Pai não for isto concedido.” João: 6.66. “Hosana, bendito seja o Rei de Israel, que vem em nome do Senhor.” João: 12.13. “Porque o Pai é maior do que eu.” João: 14.28. “Mas foram escritos estes, a fim de que vós creiais que Jesus é o Cristo, Filho de Deus, e de que, crendo-o assim, tenhais a vida em seu nome.” João: 20.31.
E assim, se continuássemos pesquisando os apóstolos, todo Novo Testamento, e fragmentos proféticos do Antigo Testamento, as epístolas, os atos, os estudos honestos de tantos sábios que a isto se dedicaram, iríamos nos deparar com tantas afirmações prós e contras, quantas são as dúvidas que ora povoam o nosso entendimento. “A vida eterna, porém, consiste em que eles conheçam por um só verdadeiro Deus a ti, e a Jesus Cristo, que tu enviaste. Eu glorifiquei-te sobre a terra; eu acabei a obra que tu me encarregaste que fizesse; Tu, pois, agora, Pai, glorifica-me a mim em ti mesmo, com aquela glória que eu tive em ti, antes que tivesse mundo. E todas as minhas causas são tuas, e todas as tuas são minhas. Assim como me enviaste ao mundo, também eu os enviei (aos apóstolos) ao mundo; Trechos do cap. 17 de João.
Na antiguidade, dois sábios teólogos tentaram chegar a uma explicação plausível da Bíblia e das coisas de Deus. Chamavam-se Maimônides e Ezras: morreram certos de que aquilo era uma tarefa sobre-humana. Milhares de outros, sábios, bispos como Fotino de Sirmio, Apolinário de Laodicéia, sacerdotes e exegetas, puseram em dúvida a própria fé por causa disto, ou seja, tentando desarraigar a terrível dúvida que paira quando imaginamos se Jesus era Deus ou homem admirável de Deus. Houve duas fases na história de Jesus: a primeira como Deus Eterno, sem princípio nem fim, ao lado do Pai e do Espírito Santo — mistério da Trindade; A segunda, como Deus homem, em que Ele se despe da divindade e se reveste de nossa carne fraca. Como acontece a nós, todo seu poder esteve hasteado na fé. Daí a confusão que nos arrebata, o mistério que nos confunde diante de nossa limitada razão.
Quando Jesus “saiu dos céus” e se encarnou no seio de Maria, ficou sendo um simples homem, sujeito a todas as nossas fraquezas e vicissitudes. Carregava consigo a vocação divina, como todo homem carrega sua inclinação, sua aptidão e sua graça. Teve de estudar, aprender a lei, rezar, sofrer e merecer do Pai a inspiração ou a lembrança de que tivera vindo para a grande missão de remir a humanidade. Com profundo conhecimento dos profetas bíblicos, pelo tempo e pelos acontecimentos, Ele se conscientizou que era aquele que “Ele mesmo” havia prometido a Abraão e à sua posteridade. Com os seus sacrifícios e lutas, Deus Pai e o Espírito Santo foram cumulando-Lhe de graças, fazendo-O ciente de que, de fato, era o Filho de Deus descido do céu. Não foi fácil. Jesus sofreu, sofreu muito, estudou mais de vinte anos, rezou e fez penitência a vida toda. Depois de tudo isto já era grande seu espírito diante da realidade divina. Quando expirou na cruz não tinha mais dúvida alguma que o povo eleito havia crucificado seu próprio Rei.
Jesus, como homem não era Deus, embora fosse Ele o próprio Deus descido do céu. Quis que fosse assim para provar que se é possível fazer o que Ele fez, já que seria extremamente cômodo a um Deus fazer o que Ele fez. Não foi por menos que disse que poderíamos fazer maiores coisas do que Ele aqui na Terra, usando apenas a maior força existente no universo: a fé. Mesmo assim acredito que nunca houve e que jamais haverá neste mundo alguém maior e mais perfeito que Jesus Cristo. Hoje, Ele é novamente Deus, formando a trindade inexplicável à nossa limitada razão. Hoje Jesus sabe tudo o que o Pai sabe, mas enquanto homem aqui na terra, não era assim. Foi homem total.
Como Deus Ele poderia sofrer sem sofrer, poderia fazer também com que vivêssemos um sonho real fora da realidade. Tudo é possível a Deus. Veríamos sem ver. Mas não, Ele sofreu, sentiu desejos, foi homem por inteiro, usou apenas sua força de vontade e sua fé para suplantar todas as fraquezas. “Não, Deus, não; mas o Filho do Homem, encarando tudo o que o homem deve encarar, sabendo tudo o que o homem soube ou saberá”. Gibran. Fez da fé a força intrínseca de Deus.
Ter fé é acreditar que Deus pode tudo e que tudo faz para quem acredita Nele. Por isso, Jesus homem fez coisas que só um Deus pode fazer: ”Ide contar o que ouvistes e vistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos limpam-se, os surdos ouvem, os mortos ressurgem, aos pobres anuncia-se o Evangelho.” Mateus: 11 .4 a 6. “Passará o céu e a terra, mas não passarão as minhas palavras.” Mateus: 24.35. “Moço, eu te mando: levanta-te.” Lucas: 7.14. “Menina, levanta-te.” Lucas: 8.54. “Desfazei este templo, e eu o levantarei em três dias.” João 2.19. “Se algum tem sede, vem a mim e beba.” João: 7.37. “Lázaro, sai pra fora.” João: 11 .43. “Pois eu quero, fica limpo.” Mateus: 8.3. “Quem é este que os ventos e o mar lhe obedecem?” Mateus: 8.27.
Expulsando demônios, curando, ensinando, jamais errando, coerente, sábio, acalmando tempestades, ressuscitando mortos já em estado de putrefação, ressuscitando a si próprio, perdoando pecados, moldando a lei mosaica (o que lhe custou, em parte, a crucificação), Jesus Cristo provou ter vindo do céu, ser o Filho Amado de Deus, tão Deus quanto o Pai e o Espírito Santo. Quase tudo soube e pôde Jesus enquanto homem. Naquele estágio, por causa da fé, o Pai lhe concedia Seu próprio poder. “Nada é impossível a Deus”; “Tudo é possível àquele que crê.” E Jesus cria, Ele não tinha motivos para não crer. Tinha vindo do Pai, convivido com Ele, sendo sempre seu Filho Unigênito, obediente e fiel. Deus entregou-nos a Ele e Ele deu sua vida por nós, a fim de livrar-nos do triste retorno ao nada. A Bíblia é sua palavra, seu ensinamento a todos aqueles que romperão os séculos depois de nós. No entanto, apesar de inspirada, ela sofreu o toque humano, toque este que, apesar da honestidade dos transmissores, acabou tomando formas ambíguas, ainda mais discrepantes nas traduções. O problema dos dois ladrões crucificados com Jesus: Mateus e Marcos afirmam que ambos afrontavam com palavras, enquanto Lucas fala do arrependimento de um deles e João, apenas relata o fato. O caso do oficial do exército que veio pedir um favor a Jesus: ver Lucas, 7.2 e 3 e Mateus: 8.5 e 6. O problema da onisciência de Deus e o dilúvio, com Seu desagrado pelo inesperado de Sua obra. O homem criado em primeiro ou em último lugar? Gênesis: 1.1 e 2 e 2.4. O sogro de Moisés: Jetro em Êxodo: 3.1/4.18 e 18. 1 e 2; Raquel ainda em Êxodo: 2.18 e finalmente Hobab, em Juizes: 4.11.
Há, sem dúvida alguma, discrepâncias que, comparadas à coerência e às milhares de comprovações que se fazem dia a dia (ver Werner Keller em, e a Bíblia tinha razão…), nada representam. Depois de tudo, temos de levar em consideração a mão humana, os milhares de anos que estes papéis perambularam pelas grutas e esconderijos e, mesmo assim, depois destes transtornos todos, ainda chegaram a nós com o mínimo de falhas humanas. Nosso entendimento hoje em relação àquele tempo, também é um fator expressivo que não pode ser esquecido. A maneira de dizer as coisas e de compreendê-las é, sem sombra de dúvida, assaz importante. Sem esquecermos o que disse Simeão em Lucas: 2.34: “Eis aqui está posto este menino para ruína e salvação de muitos em Israel e para ser o alvo a que atire a contradição.” A contradição! Não podia e nem pode ser de outro jeito, quando, dentro de suas limitações, o ser humano alimenta a pretensão de explicar o Ser que o criou. ”Não é o discípulo mais que seu mestre, nem o servo mais que seu senhor.” Mateus: 10.24.
Jesus Cristo, sutilmente nos concita à humildade, avisando que dentro da simplicidade é mais fácil entender as coisas do Pai: ”Graças te dou a ti, Pai, Senhor do céu e da Terra, porque escondeste estas cousas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos pequeninos”. Mateus: 11.25. Diante de toda dúvida que envolve a humanidade, fica a certeza absoluta de que jamais, casualmente, formou-se o Universo, as galáxias, o infinito, o homem racional, os micro-organismos e tudo quanto há, embora a evolução seja o processo incontestável usado por Deus para o equilíbrio e adaptação dos seres vivos através do tempo.
Aos que acreditam na obra do acaso, deixo aqui um conselho: erijam o maior dos templos, mais suntuoso do que o de Salomão, incrustem em ouro e diamantes o altar, criem a imagem deste acaso, e todo mundo ficará prostrado diante deste poder eterno. Não importa que Deus seja também conhecido com mais este nome. Jesus Cristo veio: agora não há mais desculpas. “Se não viera, e não lhes tivera falado, não teriam eles pecado.” João:15.22. “O que crer e for batizado, será salvo; o que, porém, não crer, será condenado.” Marcos: 16.16. “A obra de Deus é esta: que creiais naquele que Ele enviou.” João: 6.29.
Jesus veio do céu a este mundo para nos salvar, para tornar-nos eternos na presença de Deus. A Bíblia é a sua palavra, a lembrança viva de seus ensinamentos. Não deixemos a vida passar sem lê-la muitas vezes e atentamente. Não importa que não se entenda muita coisa: ela, de fato, parece que foi escrita para que muita coisa não fosse entendida. Há mesmo aqueles que, parece, Deus não se importa que entendam. “A vós foi-nos concedido conhecer os mistérios da Reino de Deus, mas aos outros se lhes fala por parábolas, para que vendo não vejam e ouvindo não entendam.” Lucas: 8.10.
É preciso que as religiões cristãs esqueçam as divergências do sábado ou do domingo; do celibato; das proibições infundadas de certos divertimentos; das imagens, de toda esta falta de pobreza de espírito que cria a ideologia radical e fomenta, paradoxalmente, as lutas religiosas; e se unam num verdadeiro amplexo cristão, tal qual Jesus nos ensinou. “Mestre, nós vimos um que expelia os demônios em teu nome, e lho vedamos, porque não te segue conosco. E Jesus lhes disse: Não lho proibais, porque o que não é contra vós, é por vós.” Lucas: 9.49 a 51. “O que não é comigo, é contra mim; e o que não ajunta comigo, desperdiça.” Mateus: 12.30.
Amemo-nos uns aos outros, perdoemos, aceitemos as falhas, juntemo-nos num só rebanho, pois este é o grande desejo e o fim supremo que Deus quer para nós. Como haveremos de conciliar perdão e luta fria; mansidão e violência; bondade e perseguição; Evangelho e animosidades… como haveremos de nos tornar uma força, se estivermos dispersos?
Que ninguém tenha medo de ser honesto, de dizer aquilo que procurou e que com o coração puro encontrou, ainda que pareça heresia. Deus quer que a gente descubra a verdade. E ela existe dentro do coração e é particular a cada um de nós. Mentir a si próprio é duvidar da onisciência de Deus, é ser apócrifo, é viver na dúvida, é não ter personalidade, é tentar a Deus. Seremos julgados pela intenção e sinceridade e não pelas leis preestabelecidas. “Tudo é possível àquele que crê”, ainda que no Budismo, Espiritismo, Catolicismo, Protestantismo e até mesmo nos terreiros de Umbanda, mesmo porque Deus não nos julga pelas aparências, mas pelo nosso coração. Só Ele sabe até aonde vai a nossa culpa por não conhecer a Sua verdade.
CISMANDO
Estou olhando o céu escampo, daqui do sertão. No meio da mata, através de uma brecha da clareira, meus olhos se perdem no infinito. Miríades de estrelas pontilham-no; planetas e luas brilham firme no zênite; meteoros vadios riscam de fogo nossa atmosfera; satélites passeiam oscilantes…
Meu Deus! E a saber que tudo isto é um pouco apenas de nossa galáxia; que além desta, existem, não se sabe quantas, bilhões, talvez. E eu daqui da terra, que inexiste em relação à grandeza do universo total, fico apalermado diante da imensidão que me circunda. Bato o pé, perco noites, reclamo, quero compreender. Entender a distância de uma estrela cuja luz aqui ainda não chegou depois de bilhões de anos de caminhada, a trezentos mil quilômetros por segundo.
Vejo a harmonia de tudo isto, imperando no vácuo, sem se perder ou embaralhar. Quero entender estas coisas, mas não consigo. Rio-me daqueles que tentam explicar tudo por razões casuais; entristeço-me perante outros que afirmam ter sido Deus quem fez tudo isto. Deus, ser superior que não teve princípio e nem terá fim. Como poderá existir alguma coisa sem começo, sem origem? De onde veio Deus? Como apareceu? Será tudo quanto existe, em benefício do homem? Será a Terra o único planeta habitado? Assim parece, pois Ele nos enviou seu único filho, Jesus Cristo, para nos redimir.
Terá Deus Criador, engendrado tudo quanto se sabe, em função única do homem? É quase inconcebível, pelo menos diante de nossa limitada razão. Terá cada estrela o seu sistema planetário, seu universo, suas luas, seus viventes? E eu, que faço aqui? Deito-me, acordo, tomo café, vou ao serviço, almoço, volto ao serviço, janto, descanso um pouco, banho-me e deito-me novamente. Aos domingos e feriados, às vezes, a rotina muda um pouco.
Qual o sentido da vida? Dormir, comer, trabalhar, estudar e se divertir quando possível? Será só isto? Aqui estou, disto não posso duvidar. Vejo a luz, a noite, as estrelas, a imensidão. Aqui estou, comprovadamente existo. Alguém criou, tudo isto. Fui criança e tive ainda cedo de estudar. Eu não queria que me obrigassem a embrenhar-me neste emaranhado de estradas; que me fizessem concluir adiante, a certeza da ignorância absoluta. Cresci dentro dos colégios, em cima dos livros – o bastante, pelo menos, para perceber que somente os simples e as crianças são capazes de entender que Deus não teve princípio e que não há limite para tudo quanto há. Que Ele, sem precisar de nada nem de ninguém, enviou de sua morada seu próprio Filho, para ser aqui humilhado e morto, a fim de que possamos ser felizes depois da morte. Que…
E são tantos os atos de amor absoluto e extremo, que mistério maior não poderá existir. Um Deus que não teve princípio; galáxias e mais galáxias. E depois, que haverá? Onde estará o limite de tudo? Que haverá além do limite? Mistério! …. É, mistério. Que mais haveríamos nós de concluir ante o inexplicável? Como haverá um homem de transportar às costas, vinte toneladas? Como viverá por dez anos num deserto, um peixe? Como explicaremos nós, aquilo que transcende nosso entendimento e a nossa própria natureza?
Ah, Deus Criador, como é difícil a fé! Só ela alumia o caminho como a luz de um sol sempiterno. Só ela pode dizer que viu, sem ter visto; só ela diz que é bom, sem ter experimentado; só ela acredita sem poder provar. Clama, mesmo assim, o grito desesperado: urge o tempo, erga-se e ande. Não fique parado, a caminhada está posta. Estamos a marchar. A viagem redentora processa-se dentro de nossa alma.
Mas quem somos nós? Aonde levará o caminho? De onde ecoa o grito que nos conclama? “Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?” – brada o poeta. Nossa alma afina o refrão e mesmo assim temos de caminhar às apalpadelas, na escuridão dos porquês, na trilha invisível da fé. Ah, quanta necessidade de crer! Pouca coisa é mais Deus do que esta dependência de amparo divino, deste medo originado da insegurança e da dúvida. Queremos sobreviver para sempre, vencer o tempo e as idades, despojar-nos da ignorância e das limitações e buscar, enfim, as respostas que encurralam nosso espírito infrene.
Um Deus bom, justo e poderoso. Um Deus eterno que não teve princípio e que não terá fim. Um Deus perfeito, onipresente e onisciente, incapaz de fazer ou criar coisas imperfeitas. Um Deus que criou este infinito de grandeza, que é menos proeza do que o mundo invisível dos seres infinitesimais, que por sua vez é uma estrela de primeira grandeza em relação a menor partícula existente. Tento imaginar este Deus, preocupado comigo e não consigo encontrar justificativa plausível. Não sou nem represento nada diante da grandeza e do poder de Sua criação.
Por que se preocuparia Ele comigo? Ergo novamente os olhos. A luz tênue das estrelas, dos planetas e da lua, esparze-se pelo dossel verde da floresta, oferecendo uma tonalidade divina de cores. A vida pulula em cada centímetro do espaço, em cada milímetro de mim. Novamente me apalpo: estou aqui, existo. Olho para cima e dos lados: tudo existe, tudo está aí. Vejo as árvores, ouço o canto tristonho do urutau, percebo o roçagar sorrateiro das tocandiras. Vejo e ouço tantas coisas, mas não são estas coisas que meus olhos querem ver. Abro então minha alma para tentar perceber coisas mais profundas. Sei que bactérias vadiam pelo meu corpo, que bilhões de vírus tentam me devorar, que no espaço eterno, urna luz a trezentos mil quilômetros por segundo, caminha em direção a terra. Vasculho o universo, segundo a velocidade de meus pensamentos. Quanta coisa vejo, ouço e imagino! No sibilo veloz do pensamento, o murmúrio cortante de uma voz suprema: “Não poderá jamais ver-Me com os olhos da razão.” Respondo: – Mas foi o que me deu para vê-Lo. E a voz retruca: – Dei-lhe também um pouco de fé e não será preciso mais do que tem para enxergar-Me com mais clareza com que vê a luz do céu que agora banha seu rosto. Deixe de vasculhar a imensidão eterna e o mundo invisível. Esqueça a razão e entenda que assim é porque Eu quero – embora em seu entendimento limitado – não encontre justificativa. Não se apresse tanto se seu caminho está turvo e escabroso, e não se importe em demasia se não enxerga longe: o ar é puro e límpido, mas ás vezes, vocês mesmo o poluem e dificultam a visão. Muitos homens tornam-se uma janela de trem, que deixa ver tudo sem nada perceber, ou entender. Não seja como tantos que buscam sem querer encontrar e não desanime nas quedas, pois sem elas não aprenderia levantar-se. Não seja a interrogação de meu princípio, de minha bondade e do limite das coisas que deverá obstar sua fé combalida. Você chegou bem até aqui por meio da limitada razão que lhe dei. Deponha-a, pois, neste limite, e alce aos ombros o fardo da fé, e caminhe, caminhe, pois a viagem é curta e estou esperando.
O CANTINEIRO
Um conto para relaxar
Bem perto de Nova-Vida – MA, há uma estrada que leva à Fazenda Amazônia, comumente conhecida como “Terras da SAMBRA”. Há muitos anos tomava conta lá um português: pagamento tardio dos lusitanos que tanta escória nos enviaram no tempo da colonização. Era um homem correto, honesto e, sobretudo, homem mesmo, no mais estrito sentido da palavra.
Numa fazenda que se preza há muitas coisas indispensáveis: gado de raça, bons reprodutores, montarias adequadas, enfim, uma gama de necessidades indispensáveis. A SAMBRA possuía dez mil alqueires de mata que, por causa da ultrapassada e estúpida lei do país, estavam sendo destruídos para a formação de pastarias e para assegurar o direito de posse. Foi nesta época que a firma importou o Cantineiro, um reprodutor famoso que, talvez, nem os egípcios tenham conseguido outro igual. Os peões da fazenda, que sabiam da chegada do garanhão, ficaram extremamente frustrados ao ver descer da gaiola, um asno de aparência estúpida, cabisbaixo, raquítico e abatido pela viagem. E a saber que teria a incumbência de cobrir centenas de éguas fogosas que andavam saltitando pela recente pastaria!
– Este aí não aguenta nem a mula veia lá do Jacó das Antas – foi logo observando, cheio de malícia, um mulato sarará.
O jegue foi colocado num curral apropriado e tratado com certo desvelo. Depois de apenas duas semanas de adaptação e descanso foram-lhe levadas algumas éguas… depois, mais algumas… depois outras e todas foram cobertas com a mesma sofreguidão da primeira. A fama de IMPORTADO que a incredulidade dos caboclos da fazenda parecia querer derrubar, logo foi reconquistada.
Com o tempo as pastarias ficaram cheias de burrinhos que cresciam belos e fortes. O pai estava lá, sempre cabisbaixo e aparentemente apático. Nunca uma aparência enganou tanto! Quem olhava aquela figura esquálida, não acreditava no potencial que resumia. Um dia, porém, certamente indisposto ou doente, ele não ligou para uma égua vinda de fora: não precisou mais que isso para que o português chegasse à dura e, pela primeira vez, injusta conclusão de que o jegue era bananeira que já havia dado cacho.
Além de suprimir suas mordomias, ainda o relegou ao humilhante serviço de carregar marmitas para os derrubadores de mata. Daí veio-lhe a alcunha de Cantineiro. Caído em desgraça, ele foi levado para uma pequena e abandonada manga. Só saía de lá na hora do almoço, quando, sob o peso de duas enormes quiçambas cheias de marmitas e carotes d’água, desfazia 10 km de estrada.
Mais gordo, passos trôpegos, cabisbaixo em sinal de protesto… lá ia ele todos os dias para o trabalho rotineiro. Afinal, viera da África para “trabalhar” e não era justo que negasse fogo. Mas, deixa que o tempo é sempre o melhor veredicto de um fato com duas versões. E o Cantineiro, cabisbaixo, pastando o capim peco de uma estiagem danada, ia passando os dias aparentemente resignado.
Era lá umas dez horas mais ou menos – e ele sabia – por instinto, que o encarregado de o pegar para jogar-lhe o jugo de uma centena de marmitas às costas, estava para chegar. Por isso, quando ouviu o ranger da velha porteira, nem ergueu a cabeça para constatar o que parecia óbvio. Mas o tempo foi passando e o Cantineiro, em seu apurado instinto, “pensou” que o encarregado já devia estar com o cabresto sobre suas orelhas.
Foi aí que resolveu examinar levantando a cabeça para entender o motivo da demora. Viu então a porteira escancarada e, já dentro de sua área privada, um potro roliço. Depois de tanto tempo naquele celibato forçado, desacreditado e humilhado, o Cantineiro virou os olhos nas próprias órbitas e, como visionário que delira de sede no deserto, vê no poldro distraído, uma linda égua fogosa. Um frio esquisito perpassou-lhe a espinha. Ergueu-se, arrepiou-se, relinchou, “sacou da arma” e partiu em desenfreada carreira para suprir a defasagem.
O cavalo pastava calmamente. Não imaginava que aquele velho asno ainda se desse à devassidão de tal promiscuidade. O Cantineiro veio e, como veio saltou em cima, disposto a desfazer a injustiça impingida pelo português. Percebendo as intenções obscenas do anfitrião, o poldro procurou dar no pé, na certeza de que sua juventude o livraria facilmente daquele afoito, velho e tarado jumento. Como estava enganado!
Saltando cerca, quebrando tronqueiras, atropelando peões que tentavam obstar-lhe o caminho e a intenção, o Cantineiro foi perseguindo o jovem cavalo. Já ofegante e quase pronto a entregar-se à difamatória comprovação, o cavalinho tentou seu último recurso: saltou para dentro da sala de aula em que a professora, por acaso, falava da força incontrolável dos bichos por ocasião do cio. Explicava também que os irracionais eram mais sensatos, que só procuravam as fêmeas no tempo da reprodução; que o homem era o único ser criado por Deus que burlava as leis naturais…
Exatamente nesta hora e nesta aula, o Cantineiro injustiçado se atracou com o poldro, bem na frente do quadro negro, dos alunos e da professora. Um peão tentou evitar o estupro, mas não conseguiu. O português que já havia sido avisado em seu escritório chegou incontinenti. Verificou os estragos, as difamações e sem aceitar o irrefutável argumento de que o Cantineiro havia sido aposentado antes da hora, desabafou furioso:
– Agarrem este bicho e desapareçam com ele. Não quero mais ver esta praga por aqui.
E, na mesma hora, passos lentos, cabeça baixa, dócil e submisso ao cabresto de um velho caboclo, lá foi o Cantineiro para outra fazenda. Foi satisfeito. Afinal, não se fere a reputação de um jumento egípcio. O troco estava dado.
A DÚVIDA
Qual o homem que não hesitará, tantas vezes, na hora tomar uma decisão? Todo ser humano, ainda bem cedo escolhe para si (ou mesmo lhe são impostas), diretrizes e normas de vida, segundo as quais passa a nortear sua vida. É o que chamamos de escolha da própria sorte, pois nesta vida, logo ao nascer, já somos postos num eixo, num centro do qual partem milhares de caminhos. Querendo ou não, teremos de escolher um deles, ou traçar um novo.
Em qualquer das direções haverá tropeços, problemas, empecilhos, obstáculos, enfim, princípios e leis. O itinerante vê o lugar mais batido pelo seu grupo, o caminho mais usado por aqueles que o precederam e que acharam que, por tais atalhos, a caminhada seria mais fácil, vantajosa e rápida. O caminhante vê as veredas e se não tiver coragem nem espírito inteligente para determinar seu destino, irá seguindo as velhas pegadas. Estas velhas pegadas são o que chamo de princípio básico da moral vigente, ou crença tradicional de nossos antepassados. O homem sem coragem ou que não quer arriscar-se a um novo itinerário, certamente irá pelo velho caminho e, possivelmente, não deixará de atingir o objetivo.
Isto não quer dizer que não exista um outro meio mais fácil para se atingir o objetivo e que, também, não haja, em se tentando encurtar e facilitar o trajeto, a possibilidade de uma perdida, uma desnorteada que poderá atrasar e dificultar ainda mais a chegada. Essa maratona que sempre premia os que chegam em primeiro lugar não deixa, também, de reservar um voto de aplauso àqueles que chegam pelos velhos caminhos. Na verdade, o mais importante é chegar. A caminhada da vida é dura, muito dura, e muitos não se contentam com o trajeto preestabelecido. Querem, estas pessoas, amenizar, procurar um meio mais fácil. Para isto têm de ser ousados, correndo o risco de se atrasarem ou mesmo de perderem o caminho, ainda que temporariamente.
Daí concluo, em termos práticos de fé, que todo homem humilde, simples…, não tendo capacidade para traçar seu caminho, deve seguir o caminho daqueles que o antecederam e que foram mais inteligentes que ele. Aqueles que passaram uma vida inteira estudando, preocupando-se, observando e PEDINDO A DEUS A FÉ E A VERDADE, que não se abstenham do direito de escolher seu caminho. Quem faz o caminho conhece melhor seus tropeços. Há os que o fazem e aqueles que o usam. Em vista do grande interesse dos legisladores, as leis nem sempre são justas. No decorrer dos tempos, homens vis ou interesseiros canalizaram as leis para seus próprios interesses. Com isto, o princípio básico de Deus em relação à comunhão perfeita do homem com a Natureza, sofreu muitas mutilações.
Qualquer ser pensante, qualquer homem inteligente e sensato percebe estes deslizes e tenta firmar-se por suas próprias decisões, ainda que lhe custe sérios aborrecimentos. A verdade, a luz e o perfeito caminho, está em Deus e Ele no coração de cada homem, pois somos o templo principal de Sua morada. Este Deus delibera por meio da consciência, julga-nos por meio da obediência ou não desta voz clara que aponta as decisões corretas, até mesmo nas indecisões mais triviais.
Todo homem tem, assim, suas próprias verdades, ou seja, as orientações de Deus por meio de sua consciência, para que não se perca definitivamente em sua caminhada. Graças à consciência, a alegação de dúvida é uma grande mentira. Ninguém tem dúvida do melhor caminho, só não o seguindo porque, às vezes, ele vem de encontro a seus interesses e desejos pessoais do momento. A dúvida não existe, o que existe é a nossa não aceitação da verdade. Tudo que fazemos só apresenta consequências nefastas à paz se for praticado com a intenção de ferir e magoar. Se agirmos de boa-fé, jamais seremos recriminados por Deus. A boa-fé é a ordem da consciência; a consciência é a voz de Deus, e Deus, a verdade que não deixa dúvidas.
Quando se descobre o caminho a seguir (ditado pela nossa consciência), é-nos mostradas as consequências desta tomada de posição. A gente então antevê a caminhada, a aspereza e as agruras que nos acarretarão tal tomada de posição. Não que estamos em dúvida sobre se o que vamos fazer é certo ou errado, mas unicamente, porque estamos querendo nos esquivar de assumir, possivelmente, uma dolorosa decisão.
Todos os homens que abriram novos caminhos pagaram um preço bem alto perante a humanidade por tal iniciativa. Tentando enganar a Deus e a si próprio, o homem se diz perturbado, cheio de dúvidas. Procura então um conselheiro, alguém com quem possa arrefecer aquelas palavras duras e ásperas de nossa consciência que nos conclama à luta. Neste caso o homem não está em dúvida, mas sim, querendo fugir do sacrifício. Covardemente procura alguém para dividir a responsabilidade de sua fraqueza, nada mais. São tantos estes homens que quase se excluem as exceções. Não é por menos que se critica às seitas, as religiões, os princípios filosóficos, as ideologias… Quase todas representam um pensamento justificativo particular, e não uma tomada de posição sincera.
Ninguém desconhece a verdade que lhe é inerente, porque ela existe dentro de cada um, no coração e na mente das pessoas, ainda que humildes e iletradas. E, neste caso, o homem é seu próprio juiz.
Só há crime diante de Deus quando atentamos contra nossos próprios princípios e não quando ferimos a lei e a tradição. Talvez tenha sido por isto que se disse e asseverou que não deveríamos aplicar medida alguma de julgamento a ninguém, para que o mesmo não viesse acontecer também a nós. Quantos já praticaram atos quase desumanos sem afetar a consciência? Nem todos os desvios são igualmente criminosos. O importante sempre está na paz com a gente mesmo. Para que isto aconteça é preciso agir conforme a consciência, sem se importar com o que os outros achem ou digam.
Não é preciso conhecer os mandamentos para saber o que é certo. A dúvida não existe senão como meio eficaz de provar nossa covardia em tomar uma decisão que exigirá nosso sacrifício e talvez, o sacrifício de muita gente. Que não se confunda aqui a dúvida sobre investir financeiramente. Não se trata de investimentos materiais, mas unicamente de decisões espirituais.
Enquanto uma depende apenas de possuir tino comercial, a outra se resume em obedecer aos ditames da consciência. Enquanto uma, além do jogo, depende de certas contingências financeiras, a outra já vem com toda sabedoria inerente, porque assim Deus determinou e quer.
TEMPO DE AMAR
Um sorriso, olhar penetrante…. Eu vi, senti aquele olhar como se fosse uma lâmina afiada penetrando em mim. O sorriso contagiava: era bonito, expansivo, tinha qualquer coisa de ladra esperta que entra pelo telhado desguarnecido. Apanhei o embrulho: eram bananas. Bananas? Não, não posso afirmar que fossem bananas. Estava muito aturdido. Alguns passos e um esquecimento forjado:
– Não, você não esqueceu a chave aqui.
– É, devo tê-la deixado em outro lugar.
E a ladra deixou o telhado e veio, determinada, à porta da frente. Usava chapeuzinho de aeromoça. Apesar de vê-la ameaçar minha casa, não tive força para impedi-la. Mostrou-se amistosa, elegante, uma dama gentil, temperada na mais aristocrata faculdade inglesa. Não pude impedir que entrasse, embora sentisse que ela desejava levar o que havia de mais precioso em mim. O peito ardia. Vi-a tomar meu coração, acariciá-lo, roçagar-lhe carinhosamente com as mãos. Entreabri a boca para protestar, mas o tépido e puro hálito calou-me, como tantas vezes se cala a consciência, mesmo quando assediada pelo escrúpulo do prazer.
O tempo foi passando. Eu dormia. A ladra perambulava pelas ruas e recantos, carregando consigo o que de mim havia roubado. Eu sonhava, seguia-a, seguia-a. Podia reaver meu coração, mas eu mesmo não queria fazer isto. Apenas a seguia. Um dia aventurei seu quarto. Olhei a roupa descer, vi Da Vinci tamborilar o pincel sem encontrar mais retoque algum a impingir. A obra estava perfeita. Abracei a ilusão com força de apostasia, mergulhei no Lete de Alighieri e, sem passado, pude deliciar-me naquele mar de prazer e de delícias. Desacreditei então na frustração de Shopenhauer, que jamais entendera a vida, que jamais esquecera sua desilusão, que pouco ou nada sonhara. A felicidade existia para todos, bastava apenas encontrá-la, bastava apenas sonhar.
O tempo seguia em sua lenta, mas inflexível caminhada, criando e destruindo sonhos. Cartas, bilhetes, cartões, telefonemas, recados, encontros furtivos… cansaço gostoso de uma subida estafante ao clímax do prazer, aos píncaros floridos em que o passado não existe. Como Holofernes puxei sobre mim, a cortina da insensatez, na expectativa da mais linda hebreia. Sonhos e sonhos, promessas e juras. Cio dos seres. Corpo esguio, sorriso que convida, olhar de pecado. Pequenos corações de papel, carrinhos lotados deles…, coisinhas, armadilhas sutis a um pássaro escorraçado pelas agruras e desilusões da vida.
Mesmo em sonho, eu reagia: sou um homem sensato, não pisarei. Reconsiderava em seguida: não, não é uma armadilha, não é um sonho. Ela me ama. Atriz nenhuma do mundo desempenharia um papel com tanta perfeição. Raciocinei, consultei as estrelas, as cartas…, ela me amava e era feliz pela paixão que lhe retribuía. Olhos assustados, pé no laço. Destino traçado. Formamos um mundo irreal.
Na maré baixa, construí enorme castelo de areia. Entrei ali, na confortável tenda desse castelo. Era noite sem luar, estrelejado apenas: afável luz que tateava os horizontes escuros e incertos. Meu peito arfava de desejo e de esperança. No acampamento de minha consciência, os soldados cansados e bêbados, engrolavam cantilenas desafinadas. Tabus e preconceitos. Já não estava eu, então, nos píncaros floridos; já não dormia profundamente. Modorra. O sono profundo traz sonhos, mas não demora muito. Vai-se em segundos. O tempo, sim, o tempo, esta fórmula mágica de Deus de deteriorar tudo, de esclarecer tudo, de cobrar tudo!
Fui despertando, sentindo a realidade. Apenas a luz fria das estrelas cavalgava, agora, algumas nuvens que se aventuravam a transpor o deserto, amotinadas, medrosas, assustadas como o meu espírito que vinha a si.
Vagao baixou a cortina da tenda de Holofernes e saiu para descansar. A esperança ficou de fora. Sem ela eu dormi, dormi sem sonhos, e sem sonhos a gente morre. A cabeça rola nas mãos de Judith. Pesadelo terrível. O mesmo tempo que me fizera tão feliz, agora me tornava o mais infeliz dos homens. A ladra passou ao largo, não mais lhe interessava meu coração. Jogou-o aos cães. Tomei-o sangrando. O doce sorriso de dentes claros, agora se transformava em presas horríveis; o olhar penetrante, o de uma naja ameaçadora. Mulher.
Na vida da gente, tudo parece se resumir em sonhos. Uns são curtos e passeiam em nossa mente enquanto dormimos; logo são esquecidos. Outros nos acompanham durante muito tempo, quiçá, a vida inteira. São tão bons que relutamos acordar, dissipá-los. Sem eles é muito difícil ser um pouco feliz.
É no sonho que os pobres se assentam em tronos reais; que o monge escrupuloso burla a vigilância de Deus e entra afoito na alcova da meretriz; que o coxo inválido ergue a taça da maratona, debaixo de ovações de um estádio olímpico em regozijo; que um homem qualquer imagina a felicidade, ainda neste mundo, ao lado de uma mulher.
Acordo plenamente. “Vaidade, tudo é vaidade” – canta o mais sábio dos reis bíblicos, Salomão. Desiludido, volto à realidade. Vejo Judith pendurar minha cabeça nos muros de Jerusalém; vejo o mar encher-se e varrer os meus castelos de areia, minha tenda de sonhos; vejo Shopenhauer, o deprimido e frustrado filósofo, subir ao pódio e erguer o troféu da razão. Piso então o chão da realidade. Vou retirando os destroços de mais uma desilusão, arrumando um lugar para recostar de novo a cabeça. Sei que será difícil sonhar o mesmo sonho, pois a cicatriz aberta no peito, os gritos esganiçados da razão…, todos estes destroços pontiagudos e cortantes, impedem-me de acreditar, de dormir e de sonhar. Sei apenas que em algum lugar do mundo alguém dorme, e dormindo tem a oportunidade de sonhar, sonhar assim, como eu sonhei.
LUTA INÚTIL?!…
Quando Pilatos perguntou a Jesus, o que era a verdade, Ele se calou. Doutra feita, disse Ele: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.”
A verdade deve ser a coisa mais simples que Deus deixou nesta terra, motivo porque nenhum sábio consegue encontrá-la facilmente. Parece que os sábios procuram revirar Euclides, Pitágoras, Einstein… para descobrir por que dois mais dois somam quatro. Se não há mais dúvidas de que Deus existe, para que procurar o porquê?
Revirando os grandes da antiguidade, só encontramos opiniões diversas, verdades diferentes, ideologias contrárias. Concluímos assim que em nada nos podem ajudar quanto aos problemas que se inserem nas coisas do espírito, naquilo que irá nos acontecer depois que sairmos deste mundo.
Albert Brugh escreveu certa feita a Espinosa: – Vós julgais ter finalmente encontrado a verdadeira filosofia. Como sabeis ser a vossa filosofia a melhor de todas que já foram ensinadas, que estão sendo ou virão a ser ensinadas no futuro? Para não falarmos do futuro, já examinastes todas as filosofias, tanto antigas como modernas, que são ensinadas aqui, na Índia e em todo mundo? E mesmo supondo que as tenhais estudado devidamente, como sabeis haver escolhido a melhor? Como ousais colocar-vos acima de todos os patriarcas, profetas, apóstolos, mártires, doutores e confessores da Igreja? Miserável homem e verme sobre a terra que sois, cinza e alimento de vermes, como podeis confrontar a sabedoria eterna com vossa blasfêmia inominável? Que bases tendes para essa temerária, insana, deplorável e maldita doutrina? Que orgulho demoníaco vos leva a proferir julgamentos sobre mistérios que os próprios católicos declaram ser incompreensíveis.
Resposta de Espinosa: – Vós que julgais ter finalmente encontrado a melhor religião, ou antes os melhores mestres e que haveis fixado vossa credulidade neles, como sabeis que são eles os melhores entre aqueles que ensinaram religiões, ou agora as ensinam, ou as ensinarão de agora em diante? Haveis examinado todas aquelas religiões, antigas e modernas, que são ensinadas aqui, e na Índia e em todo mundo? E mesmo supondo que as tenhais estudado devidamente, como sabeis haver escolhido a melhor….
Parece sempre que os maiores angustiados da história, são mesmo os sábios; ora por estarem certos de haver encontrado a verdade e perceberem esta mesma verdade rejeitada; ora por acreditarem piamente que jamais a encontrarão.
Shopenhauer acreditava que quanto mais elevado o organismo, mais sábio o homem, maior os seus sentimentos de alegria e de tristeza, em suma, maior sua sensibilidade.
Aquele que aumenta seu saber, aumenta, consequentemente, seu sofrimento. Pareceu sempre decepcionado com sua sabedoria que apenas lhe legou duros aborrecimentos. Certos sábios não admitem a ignorância.
Voltaire preferia a sabedoria infeliz do brâmane à ignorância feliz da camponesa. Ingenuidade e ciência parecem não passar de caminhos paralelos. São como fios elétricos; andam próximos, para o mesmo lugar, mas não podem se tocar. Porque a memória do sábio, do mesmo modo que a do insensato, não será para sempre, e os tempos futuros tudo sepultarão igualmente no esquecimento.
Tanto morre o douto como o indouto. O certo mesmo é que a verdade é e vive dentro de cada pessoa, particularmente. Os homens, usando o grande recurso das palavras e dos falsos silogismos, conseguem transformar verdades em mentiras e vice-versa. Por isto existem hoje filosofias e teologias contrárias, pregadas como donas da verdade e cuja única importância é legar ao mundo, tantas dúvidas quantas forem necessárias para enlouquecer uma pessoa.
Cícero afirmou certa vez que nada havia de mais absurdo do que aquelas coisas encontradas nos livros dos filósofos. Não conseguia entender como os sábios, sendo sábios, pensavam de maneira diferente, discutiam verdades, criticavam as escolas contrárias etc. Afinal, estes homens inteligentes, com tantas ideias brilhantes, sabiam alguma coisa, ou apenas disseram coisas para se satisfazerem intimamente?
No Eclesiastes, lê-se: – E vim a entender que o homem não podia achar razão alguma de todas aquelas obras de Deus que se fazem debaixo do sol; pois quanto mais trabalhar para descobrir, tanto menos a achará.
Lendo-se Santo Agostinho, Leibniz, Espinosa, Nietzsche, Rousseau…, depara-se com um mundo de ideias contrárias, umas querendo provar o contrário do que outros afirmaram. Com quem fica a verdade, afinal?
A própria Bíblia Sagrada apresenta possíveis contradições, fatos obscuros e inexplicáveis, que os ascetas e teólogos parecem torcer para adequá-las a seus próprios pontos de vista. Fica realmente difícil para um homem nortear-se neste estado de ideias contraditórias. Afinal, quem está com a verdade?
Convencer um homem é uma questão de receptividade, porque isto dependerá sempre dele, e jamais da doutrina que se está ensinando. Quando um homem não quer uma coisa, até Deus desiste. E o pior de tudo é que quase sempre há uma finalidade escusa no querer de um homem. Esta é uma lei universal política, social e religiosa. Imaginemos as religiões pregando o amor, a fraternidade e todas as santas virtudes, e se digladiando entre si pela hegemonia de seus pontos de vista! A verdade é uma coisa simples e ninguém precisará buscá-la nos pensadores. Ela está dentro de cada indivíduo, tanto na mente simples de um aborígine, como no emaranhado de conhecimento de um filósofo.
Por isso Jesus calou-se diante da pergunta de Pilatos. Ele não era um filósofo, nem um pretensioso – trazia consigo a única verdade, a verdade divina. O problema era convencer, naquele momento, pessoas que não queriam ser convencidas. Por isso se calou.
Há gente que mata, rouba, extorque ou mesmo trabalha para ficar rico. Há também mentalidades contrárias, e assim a vida continua em seu reide interminável, sendo como sempre foi.
Não é preciso perder tempo buscando a verdade. Ela vive, gratuitamente, dentro da gente. Sempre quando há dois caminhos, logo aparece em nós, alguma coisa que diz qual devemos seguir, sem levar em conta se somos sábios ou não. Não é preciso que uma coisa seja certa para o mundo. Se a decisão for aprovada por nossa consciência, certamente terá o aval do Criador.
Deus, conforme dispõe, as coisas serão: “Quem é o que disse que se fizesse uma cousa, sem que o Senhor o mandasse? Todas as cousas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada uma foi prescrita. Há tempo de nascer, e tempo de morrer. Há tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Há tempo de matar, e tempo de sarar. Há tempo de destruir, e tempo de edificar. Há tempo de chorar e tempo de rir. Há tempo de se afligir, e tempo de saltar de gosto. Há tempo de espalhar pedras, e tempo de as ajuntar. Há tempo de dar abraços, e tempo de se pôr longe deles. Há tempo de adquirir, e tempo de perder. Há tempo de guardar, e tempo de lançar fora. Há tempo de rasgar, e tempo de coser. Há tempo de calar, e tempo de falar. Há tempo de amor, e tempo de ódio. Há tempo de guerra, e tempo de paz. Que tem mais o homem de todo o seu trabalho? Tudo fez o Senhor por causa de si mesmo; até o ímpio para o dia mau. Porque tu castigas e tu salvas, tu levas até à sepultura e tu ressuscitas, e ninguém há que escape da tua mão. Porque está fora a sentença do Senhor, que os seus corações se empedernissem, e que pelejassem contra Israel, e que fossem derrotados, e que não merecessem piedade alguma, e que enfim, perecessem, como o Senhor o tinha ordenado a Moisés. Porque eu sou o Senhor teu Deus, Deus Zeloso, que castigo a iniquidade dos pais sobre os filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem. E lhe endurecerei o coração, e ele irá em seu alcance. Então disse o Senhor a Moisés: Entra a Faraó, porque eu endureci o seu coração e o de seus servos, para fazer resplandecer na sua pessoa, os prodígios de meu poder…”
A Bíblia é repleta destas indicações e ninguém melhor que ela para falar-nos do Criador. Deus dispõe tudo, logo, não se é preciso ser muito inteligente para concluir que não somos lá tão culpados por sermos como somos. Não terá sido por menos que o próprio Jesus perdoou um dos ladrões e quietou-se quanto ao outro. É que depende apenas de nós melhorar a posição que nos foi dada no dia do nascimento. Uns nascem bons, outros maus; uns vêm para ser santos e outros para se transformarem em motivo de santificação dos outros. Cada um vem a este mundo com uma função, e tanto é precioso aos olhos de Deus o manso e o humilde, como o violento e o orgulhoso. Todos juntos formam o mundo, coisa que Deus criou para ser exatamente como é.
“Seja feita a tua vontade, assim na Terra como no Céu”. Quantos já lutaram para melhorar este mundo, torná-lo mais humano e habitável? Não obstante todas essas lutas, o mundo continua com esta minoria esforçada e uma grande maioria de anarquistas. Assim foi e assim sempre será, pois como disse Voltaire: “Deixaremos o mundo tão tolo e mau como o encontramos.”
Então, o homem é um ser programado pelos desígnios de Deus? Assim entende Shopenhauer: “A despeito de todas as resoluções e reflexões, o homem não poderá mudar sua conduta e, do início de sua vida até o fim, terá que desempenhar o papel que lhe foi confiado”.
Olhando por este prisma, tem-se a impressão que se é inútil lutar. No entanto, não é bem assim. O que tanto se referiu a respeito da conduta do homem, nada mais é do que a descrição fiel do comportamento humano através dos tempos. Mesmo com a vinda do Filho de Deus, a coisa mudou pouco aqui na Terra. Isto é verdade, mas não é verdade que a culpa seja de Deus. Ele não pode ser responsabilizado, se ensina e ordena uma coisa e nós fazemos outra. Fazendo as coisas erradas, caímos na desordem e no sofrimento. É certo que nem todos têm o mesmo compromisso neste mundo. Ao nascer já recebemos de Deus a nossa função (nosso talento) na construção de seu Reino. Uns enterram os talentos e os devolvem como receberam; outros os gastam e outros os aplicam bem e triplicam ou dobram o que receberam. É nestas três circunstâncias que estão implícitas a salvação ou a condenação da alma do homem. É esta também a razão clara da caducidade de nossa vida. Para testar nosso bom senso, obediência e dinamismo, não precisa Deus mais que 100 anos. Aliás, nesta fila decisiva de nossa sorte, nada é mais desagradável que viver muito. Quem invejaria Ahasverus, a quem foi dado como castigo, uma vida imortal?
Partindo-se da premissa de que Deus existe (porque eu estou aqui e não posso existir por mim mesmo), confirma-se, automaticamente, a existência da alma, criada para ser imortal e feliz, mas, por causa de nossas desordens, sujeita também a castigos. Se não tivermos grande fé para isto, não nos perturbemos, pois assim fomos feitos. Tomemos, pois, nossa pouca fé e tentemos aumentá-la; tomemos nossa índole perversa e tentemos diminuí-la; apanhemos a nós mesmos e melhoremos o quanto for possível: nisto está a salvação.
MATE ESTA PESTE!
O caminhão seguia ronceiramente pelos morros inopinados de Nova Alegria – Bahia. Delcir, o motorista, maquinalmente ia desfazendo as curvas e ganhando altitude. Depois de 15 minutos já se podia ver a vila lá embaixo, e contar, pelas pastarias contíguas, centenas de jegues que pastavam pachorrentamente.
Em 1534, desembarcaram em São Vicente, o decano da raça, avantajado emigrante africano que logo encontrou ambiente propício e proliferou sem reservas. Seu descaso pela vida, adstrito à potência sexual, logo fez do jegue um dos mais ajustados estrangeiros em nosso país, principalmente no Nordeste. Contudo, o asno, há mais de 6.000 anos não se preocupou em modificar seu fleumatismo. Infensos ao barulho e às ameaças, sempre se comportou como o mais estúpido dos animais, não dando mostras de qualquer excitação ou medo, mesmo diante de perigos iminentes. Isto irritava sobremaneira o meu sobrinho Delcir, que por fidelidade a uma antiga proposição, teimava em se dizer arredio a qualquer sentimento ecológico. Todas as vezes que encontrava um deles no caminho, buzinava, acelerava forte, ameaçava. O jumento parecia noutro mundo, não demonstrando o mínimo de preocupação em ceder estrada ao afoito sobrinho. Normalmente, depois de ameaçar todo gênero cavalar, meu sobrinho metia o para-choque no traseiro do bicho, empurrando-o para a orla da estrada.
Todos nós recriminávamos estas atitudes atrabiliárias de meu sobrinho, mas isto jamais serviu para demovê-lo de suas ideias. Numa sexta-feira, enquanto subíamos os morros que pareciam alcançar os céus e, diga-se de passagem – com toda pressa possível para carregarmos o caminhão e chegarmos mais cedo a Linhares – esbarramos num jegue jovem, talvez com a índole ainda mais forte de preguiça do que toda linha asinina de que se tem notícia. Meu sobrinho freou em cima, buzinou, gritou, desfiou seu rosário de impropérios, finalizando por dar seu veredicto:
– Este eu mato!
O mano lldebrando, que ia ao lado, com medo de que meu sobrinho estivesse dizendo a verdade, obtemperou:
– Não faça isto; é um jovem sem experiência de vida. Desça e toque-o para fora da estrada.
– Nem morto! Retrucou meu sobrinho, cada vez mais nervoso.
Em cada acelerada do caminhão, o mano pressentia o perigo. A discussão continuou por alguns minutos entre mato, calma, espanta, vai você, eu não… e todo tipo de curtas frases que sempre demonstram o pouco uso da razão. Por fim, o mano lldebrando condescendeu:
– Está bem, eu vou empurrá-lo para fora da estrada.
Desceu da cabina burlescamente, claudicando com sua perna mal-sarada de uma operação recente dos meniscos, e saiu mancando em direção ao jegue descansado.
– Onde já se viu, machucar um animalzinho inocente deste? O pobrezinho aí, tilintando de frio, com nenhum pensamento maldoso. Não sei como existe gente como você, que só pensa em judiar dos animais! Custa tanto tocá-lo e passar? Devia, no mínimo, lembrar-se que o jegue é um animal pacato e servidor, e também abençoado. Foi nele que Cristo entrou em Jerusalém; foi dele que Juan A. Jiménez e Robert L. Stevenson escreveram lindas páginas; é por ele que toda esta maioria empobrecida tem um meio de transporte inofensivo e eficaz. E você querendo passar por cima do bichinho! Francamente!
O pequeno jegue, novo, mas fornido, continuava imóvel, como se também tivesse, como a mulher de Jó, virado para trás a fim de assistir a derrocada de Sodoma. Como uma estátua de sal, permanecia quieto, vez por outra direcionando as orelhas moucas, como a captar alguma coisa em ondas curtas. O mano achegou-se sem cautela: não havia desconfiança para com aquele bichinho pacato e inofensivo. Postou-se bem atrás dele, espalmou a mão direita e bateu-lhe no traseiro, num ato maquinal e carinhoso:
– Vamos bichinho, saia do caminho que precisamos passar.
Foi aí que se deu a coisa! O filhotinho dorminhoco, aparentemente inofensivo, queixo caído de sono como se fosse um cansado prógnato, num repente eletrizante mais certeiro que um cruzado de Muhamed ali, arremessou os cascos, indo acertar, em cheio, o joelho emperrado do mano, que foi ao solo num grito de dor e revolta. Todo princípio ecológico implodiu-se ante a dor do momento:
– Mate, mate esta peste… passe-lhe os pneus no pescoço, não lhe dê a mínima chance, quebre ao meio esta praga egípcia…
– Não, não – apostrofou cinicamente o Delcir – o bichinho é manso. Cristo cavalgou nele ao entrar em Jerusalém. He, he, he!… – e arrematou a observação com sua insuportável risadinha de deboche.
– Cale-se, desgraçado e vem cá. Esta peste arrebentou-me o outro menisco também. Ai, ufa!
Depois de todo aquele ramerrão, o jeguinho, a passos lentos, arredou-se alguns metros e ficou de costas, quieto e defensivo: qualquer movimento suspeito, e ele, por certo, não hesitaria em acionar outra vez a sua catapulta.
E depois de muita lengalenga, meu sobrinho recolocou o mano na boleia, acionou o motor, passou rente ao jeguinho e foi subindo, não sem deixar transparecer no rosto, um contentamento sádico. O mano, com as rugas da testa (sinal de raiva e revolta que lhe era peculiar) a esconderem-se entre o cabelo desgrenhado, foi bufando morro acima, e seus lamentos afinavam-se com a rebeldia do Delcir: os jegues, realmente, não mereciam condescendência. Deviam morrer, todos.
SAUDADE E ESPERANÇA
Ah, doce voz que rompe as amarras do tempo, que reboa na balbúrdia das incertezas, chegando suave aos corações opressos! Doce voz da esperança que reboou nos desertos da Judeia, nos templos de Jerusalém, nas sinagogas de Cafarnaum, nos penhascos sobranceiros de Engada, nas margens do lago de Genesaré, no cimo desolado de Moab… Voz meiga que ecoa no meio da algaravia, da ganância, dos conluios, da ignorância, do poder…, e chega macia aos ouvidos dos injustiçados, falando de esperança e de justiça. Voz, som, canto de pássaro divino que pousava num ramo de oliveira no vale de Jezrael e cantava a alegria das verdades, todas as manhãs, nas ribas de Cafarnaum, nos maciços de Betsaida, nas montanhas de Cerazim, nas tempestades do Tiberíades…Voz, som, ribombo de trovão, que hostiliza e perturba a consciência daqueles que oprimem seus irmãos, escravizando as nações pobres e desvalidas. Voz que suaviza o desespero, amaina corações, que explica, ensina, promete e oferece esperança àqueles que vivem sob o jugo de uma elite austera e perversa. Voz de um Deus-homem; de chefe bom; de amigo sincero, de irmão e de pai. Doce voz que desce todos os dias na luz tênue da manhã; na luz a pino do meio-dia; na luz tépida do luar… que nos veio das margens mediterrâneas para os quatro cantos da terra: braço eternamente estendido aos que estão debilitados e sem esperanças. Voz que não se cansa, que não rouqueja na amplidão do tempo e do espaço. Ó voz errante, que qual meteoro passeia pelo cosmos: não esqueça este planetinha perdido na galáxia do sol, onde alguns corações contritos e machucados proclamam Sua glória e Sua justiça! Voz que desafiou o poder terreno de Herodes e de César, a arrogância dos fariseus e os escrúpulos dos escribas…, sem armas, sem exércitos, sem imposição que não fosse a da mansidão. Voz da contradição, da sabedoria, da verdade macia e ao mesmo tempo, dura, muito dura. Voz que disse e que diz: que veio maior e que jamais dará espaço para que um novo eco se faça som, pelo espaço dos séculos e da eternidade, no que concerne à coerência e as verdades imutáveis de um verdadeiro Deus. Voz que alivia o peso e torna suave, o jugo; que consola os que choram, subleva os pequeninos e os pobres de espírito. Voz que enfrentou a Cesaréia pagã de Antíoco, que deslizou mansamente pelos corações desesperados, que subiu aos céus através dos píncaros nevados de Hermon, que aliviou corpos mutilados e doentes, e mostrou às almas, não um caminho, mas o único caminho para a felicidade. Voz que se junta e se identifica com o grito de desespero dos injustiçados; que norteia os pobres de espírito na sibilina revolução dos tempos; que clama no deserto, nos covis, nas cidades e campos, nos mares e na solidão tétrica da noite. Voz, ó voz que gravemente soou há dois mil anos e ainda vive ecoando em nossa alma, com a amplificação clara do que é divino, perfeito e eterno: não esmoreça, não se vá! Continue martelando com a persistência da água que desgasta o granito e escorre límpida pelos despenhadeiros e vertentes. Faça com que desçamos do muro e tomemos um partido sincero, uma direção sem perdidas. Que aqueles que falam, acreditem no que estão dizendo, e ajam conforme apregoam. Separa-nos da hipocrisia situacionista, lembre esta humanidade decaída, mais uma vez, que o tempo é curto e que deste mundo nada se levará, a não ser o saldo de nossas ações, palavras e pensamentos bons. Ó voz amiga, não despreze os recantos longínquos de Seu reinado. Deixe o eco navegar os mares, reboar nas encostas de Garizin, e tinir nas zonas abissais dos corações gananciosos e incrédulos. Estenda seus limites acima de Betsaida e abaixo do Sinai, à direita de Guilead e à esquerda de Jope – invada esta terra inóspita, amoleça a dura cerviz deste povo egoísta. Voz, doce voz de Jesus, não rouqueje jamais, por favor, não rouqueje. Um dia, tenho certeza, estaremos ao pé do monte, ouvindo atentos o mais lindo e perfeito sermão que já se disse nesta terra:
– Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor à justiça, porque deles é o reino dos céus; Bem-aventurados os mansos, porque eles possuirão a terra; Bem-aventurados…
POR QUE DEUS EXISTE?
Se olho um jarro bem feito, sei que alguém o esculpiu; se vejo um carro passar, sei que algum engenheiro-mecânico o engendrou; se ouço um estrondo qualquer, sei que alguma causa produziu aquele efeito; se me deleito com os piados de um passarinho, sei que alguma ave os está emitindo. Como disse Descartes, se ”cogito, ergo sun” e, como todas as coisas, se estou aqui agora neste lugar, alguém me criou e pôs aqui. Deus é o princípio criador de tudo; é aquele “que fez o céu, as estrelas, o mar, mas que, apesar de tudo, o homem, criando asas, tenta impedi-Lo de entrar até mesmo em seu coração.” Muitos seres humanos criaram asas com a pretensão de refratar a verdade, como se Deus se importasse com o que pensam ou deixam de pensar Dele.
Bem disse Santo Agostinho: ”Se me perguntam quem é Deus, eu não sei; mas se não me perguntam, eu sei”. Deus é a vida e a alma de tudo, o espírito inexplicável que dá movimento, forma, sentido, beleza a todas as coisas, “é a ordenação moral do mundo.” Esta ideia mais alta, suprema, imperante sobre tudo, é a ideia do perfeito e do bem. É a alma do Universo, aquilo que dá vida, como nosso espírito faz viver o corpo.
E não é preciso ser sábio para discuti-Lo, pois o próprio Jesus agradecia ao Pai por ter tornado mais fácil aos pequeninos, simples e humildes, entendê-Lo. Deus, apesar de ser o fim supremo de todas as religiões – e as religiões o alicerce da fé – não precisa, necessariamente, dela (a fé), para ser comprovado: basta a razão. Se não existe causa sem efeito e vice-versa, assim também não pode existir criação sem um criador.
Se estamos aqui, pendurados num pequeno planeta que gira na imensidão do Universo, alguém propiciou isso. Se pensamos, existimos. Isto é mais arcaico – como diz o caboclo maranhense – que pé de serra. Deus existe e é inexplicável sob alguns aspectos, mormente quando se tenta explicá-Lo apenas por meio da ciência. Assim como um robô não pode saber tudo de seu construtor, assim também jamais saberemos tudo de nosso Criador.
Disse-nos Hume: ”A razão, na melhor das hipóteses, é apenas uma função negativa, revela-nos somente os limites de nosso conhecimento e de nossa experiência. Nunca poderá revelar-nos a profundidade. Não nego mais do que afirmo. Porque, o negar, assim como o afirmar, implica um senso de conhecimento. Moralmente, entretanto, conservo a minha crença. E pergunto, acaso, qual a causa dessa crença? Não me importa; não sei. Isso não me diz respeito, mas sei que existe Deus.”
Se Deus fosse inteligível, mesmo aos mais sábios, Aristóteles, Fichte, Sócrates, Malebranche, Platão, Vitor Hugo, Kant, Sybil F. Partridge, Einstein e tantos outros, não nos teriam deixado dúvidas nas suas vãs tentativas de explicá-Lo.
Depois da resposta convincente de uma criança que diz: ”Papai do céu está lá em cima e cuida de mim”, prefiro a definição de Descartes: “Acredito na existência de Deus. Em verdade, se Deus não existisse, seria preciso inventá-Lo. Meu Deus não é um rei exclusivo de uma simples ordem eclesiástica. E a suprema inteligência do mundo, obreiro infinitamente imparcial. Não tem povo predileto, nem país predileto, nem igreja predileta. Pois para o verdadeiro crente há, apenas, uma única fé, justiça igual e igual tolerância para toda a humanidade. O fato de eu pensar revela-me a existência de algo que pensa. E, que é esse algo? Sou eu. Penso, logo existo. A minha própria dúvida poderia existir. Mas, quem sou eu? Que sou eu? Sou aquilo que duvida, em outras palavras, sou uma coisa pensante, ou um espírito vivo. Haverá outros fatos estabelecidos – isto é, coisas que posso conceber clara e distintamente, como verdadeiras? Sei, há dois fatos tais: a presença do meu corpo e a existência de Deus.”
Sem dúvidas, a certeza intuitiva que alimentamos da presença de Deus não deixa de ser mais uma comprovação de que um relógio não pode existir sem seu relojoeiro. A busca do homem a Deus, remonta um profundo pensamento, uma profunda nostalgia, uma saudade irrefreável de algo que aconteceu em algum tempo. Certamente, em algum tempo, as mãos de Deus trabalharam nossa existência e Suas marcas alimentam a doce lembrança em nossa memória. Todo homem tem saudade de Deus e procura voltar a Ele como um passarinho que viveu longo tempo na gaiola.
QUEM PUDER ENTENDER, ENTENDA!
Conta-nos Heródoto – o místico e supersticioso Pai da História – que ali pelos anos 486? a.C., era rei dos persas, um usurpador mago de nome Esmérdis. Conseguira o poder por meio de mais uma artimanha entre as inumeráveis que aconteceram e ainda hoje acontecem no campo da política. Para destronar o intruso rei, sete persas – entre os quais se incluía Dario – armaram um plano mirabolante, que também acabou surtindo o efeito desejado, depois das palavras inverossímeis, mas convincentes de Dario aos seis companheiros do conluio: “Quando é necessário mentir – disse Dario – não devemos ter escrúpulos em fazê-lo. Os que mentem desejam a mesma coisa que os que dizem a verdade: mente-se com o propósito de tirar algum proveito disso; diz-se a verdade, também, tendo em vista alguma vantagem, e para conseguir impor confiança. Assim, embora não seguindo os mesmos caminhos, atingimos o mesmo fim. Se não houvesse nada a lucrar, seria indiferente àquele que diz a verdade, pregar antes uma mentira, ou ao que mente, dizer antes a verdade…”
Alcançado o objetivo, surgiu um novo impasse: qual deles seria proclamado rei? Otanes, vendo sua proposta rejeitada, retirou-se do plenário e da concorrência, dizendo que não pretendia, nem mandar nem obedecer. Ficaria pago pela participação se concordassem dispensá-lo da sujeição à ordem do que fosse rei, não só a ele, mas também todos os seus parentes e descendentes, até o fim dos tempos. A proposta foi aceita e ele se retirou. Outros quatro não emitiram opinião, já que não havia, na época, outra opção de governo. Já naquele tempo, tinha-se plena consciência das imperfeições ideológicas que acabam sempre espezinhando o povo. Otanes, que teve sua proposta rejeitada, assim havia se expressado: “Sou de parecer que não se deve, de agora em diante, confiar a administração do Estado a um único homem, pois o governo monárquico não é nem suave nem bom. Vistes o grau de insolência a que chegou Cambises, e acabastes de experimentar a autoridade do mago. Como, pois, poderá ser, a monarquia, uma boa forma de governo, se o monarca faz o que quer, sem prestar conta dos seus atos? O homem mais virtuoso, elevado a essa alta dignidade, perderá logo todos os seus bons predicados. A inveja é inata nos homens, e as regalias desfrutadas por um monarca, levam-no à insolência. Ora, quem possui esses dois vícios, logo adquire todos os outros e comete uma infinidade de crimes, ora por excesso de orgulho, ora por inveja. Um tirano devia ser um homem exemplar, já que goza de toda espécie de regalias; mas é o contrário que se verifica, e seus súditos sabem-no muito bem por experiência. O tirano odeia as pessoas honestas e parece deplorar que elas ainda existam. Somente com os maus se sente bem. Presta facilmente ouvido à calúnia e acolhe bem os delatores; e o que é mais engraçado: se o louvamos com moderação, ofende-se, se o louvamos com efusão, ofende-se do mesmo modo, atribuindo esse gesto a interesses mesquinhos. Finalmente, temos o mais terrível dos inconvenientes: infringe as leis da pátria, comete violências contra as mulheres e manda matar quem muito bem lhe pareça, sem processo ou qualquer outra formalidade. Não se dá o mesmo com o governo democrático, que chamamos isonomia, que soa como o mais belo de todos os nomes. Neste, não é permitido nenhum dos abusos inerentes ao estado monárquico. O magistrado é eleito por sorte, e torna-se responsável pelos seus atos administrativos, sendo todas as deliberações tomadas em comum. Sou, por conseguinte, pela abolição do governo monárquico e pela instauração do governo democrático, pois todo poder emana do povo.”
Tomando a palavra, Megabizo opinou pela oligarquia: “Penso, como Otanes, que é preciso acabar com a monarquia e aprovo tudo o que ele acaba de expor; mas quando ele nos exorta a colocarmos o poder supremo nas mãos do povo, afasta-se do bom caminho. Nada mais insensato e insolente do que uma multidão inconsequente. Procurando evitar-se a insolência de um tirano, cai-se sob a tirania do povo sem freios. Haverá coisa mais insuportável? Quando o soberano toma uma medida, sabe bem por que a toma; o povo, ao contrário, não usa a inteligência nem a razão. E de que outro modo poderia ser, se jamais recebeu instrução e não sabe o que é belo, nem o que é mais conveniente? Lança-se num negócio às cegas, sem julgá-lo, qual uma torrente que tudo arrasta. Possam os inimigos dos Persas adotar a democracia! Quanto a nós, escolhamos homens virtuosos e coloquemos o poder em suas mãos. Acho que podemos incluir-nos nesse número, e, de acordo com a lógica, os homens sensatos e esclarecidos só podem dar excelentes conselhos.”
Dano falou em seguida, formulando seu parecer nos seguintes termos: “A opinião de Megabizo sobre a democracia me parece justa e muito sensata, mas discordo quanto ao que ele afirmou em favor da oligarquia. Das três formas de governo que podemos propor – o democrático, o oligárquico e o monárquico – considerados no seu grau possível de perfeição, o monárquico me parece muito superior aos outros dois, pois é opinião geral não haver nada melhor do que o governo de um único homem, quando este é um homem de bem. Em tais condições, ele não poderá deixar de governar de uma maneira irrepreensível. Todas as deliberações serão secretas, e o inimigo não terá nenhum conhecimento delas. O mesmo não acontece com a oligarquia. Sendo o governo composto de vários indivíduos aplicados ao serviço do bem público, surgem frequentemente entre eles, inimizades particulares e violentas. Cada um quer ser o mais poderoso e fazer prevalecer sua opinião; daí os ódios recíprocos, as sedições; e destas ao morticínio, e, finalmente, à monarquia. Aí está por que o governo de um só é preferível ao de muitos. Por outro lado, quando o povo manda, é impossível não se implantar a desordem no Estado. A corrupção, uma vez estabelecida, não produz ódios entre os maus, ao contrário, une-os por laços de estreita amizade. Os que desmoralizam o Estado agem de combinação e se sustentam mutuamente; continuam a fazer mal até erguer-se um defensor do povo para reprimi-los. Este que a eles se opõe torna-se, então, admirado, e essa admiração faz dele um monarca – o que prova ainda que a monarquia é a melhor forma de governo. Em conclusão, de onde nos vem a liberdade? De quem a obtemos? Do povo, da oligarquia ou de um monarca? Pois se é verdade que por um único homem fomos libertados da escravidão, concluo ser necessário mantermos o governo monárquico. Aliás, nunca se deve infringir as leis da pátria quando elas são verdadeiramente sábias, pois isso seria perigoso.”
Amigo, você que leu a opinião de três persas há quase quinhentos anos a.C., qual delas lhe parece a mais coerente, e que por isto mesmo, foi a vencedora? Consulte a história, olhe para dentro de si e depois se certifique como é forte o laço que une os corruptos. Está mais do que comprovado que nunca existiu e jamais existirá qualquer sistema de governo que propicie a seu povo, a paz e a felicidade. Quando um país cai na graça de possuir no comando, um homem íntegro, de pulso forte, honesto e competente, aí sim, poderá vangloriar-se de usar uma forma de governo que lhe assegura a justiça, a paz e a prosperidade. Contrariamente, isto é impossível. O homem certo faz a forma certa de governo.
PARÁFRASE A CARLOS MESTERS
O padre chegou: dezenas de olhinhos esmaecidos espalhados pelos cantos da palafita fitaram o sacerdote num misto de respeito e de medo. A casa era pobre, de barro preto batido, coberta com pedaços de duros papelões e folhas de babaçu, tudo suportado por estacas aprumadas e seguras pelas mãos de Deus. Panelas corrugadas em cima de alguns tijolos, secas, vazias, incrustadas de rapas antigas, demonstravam a fome na mais cruel definição. Algumas redes sujas e esgarçadas, emboladas nas reentrâncias dos mourões, cobriam os buracos maiores por onde chispas de luz de uma lamparina sem presteza fustigavam a assustadora escuridão do charco. Anfíbios de toda espécie, desafinados e roucos, entoavam réquiens à vida que agonizava. Na semiescuridão de um quarto sem janelas, divisei o vulto da turminha toda de pé, ao redor de Raimunda, que estava sentada com a Maria do Socorro no colo. Maria estava morrendo. Vestia a veste do batismo. Um irmãozinho lhe segurava uma vela acesa na mão, vela do batismo, acesa no Círio Pascal: símbolo da vitória da vida sobre a morte. O padre perguntou:
– Morreu?
– Morreu não! Pouco tempo atrás ela ainda deu um soluço.
– Nasceu doente?
– Nasceu não! Nasceu até forte!
– Então, o que houve?
– Poucos dias atrás deu uma diarreia nela. Por isso está assim.
– O que estão dando para ela?
– A gente dá o que tem!
– E o que é que tiveram ultimamente?
– Um pouco de farinha.
– Deram farinha a este neném?
Raimunda baixou os olhos, envergonhada. Os olhos eram tristes como os de um peru amarrado e jogado numa calçada quente da cidade em véspera de Natal. Pouco depois ela mexeu nos olhos de Maria do Socorro e disse:
– Acho que ela morreu porque não mexe mais com os olhos! Morreu sim! Os irmãozinhos, quase em coro, repetiram:
– Morreu!
Estava assassinada mais uma criança, a sangue frio, pela sanha daqueles que só pensam no poder, na riqueza e no progresso econômico. Assassinada pela arma impune da fome, pela crueldade da inanição. Ao ver aquela criança de compleição perfeita, linda como um anjo de Deus, envolta em trapos como o menino Jesus na manjedoura, imaginei a vitória dos herodes de hoje, eliminando mais um possível usurpador do trono e do poder. Infelizes mandantes, políticos, homens ricos ou latifundiários! Até quando continuarão matando as marias do socorro? Até quando continuarão esbanjando as migalhas que dariam para fazer sobreviver tantas criancinhas? Herodes mudou o nome, mas continua matando as crianças. Matou Maria do Socorro. O Herodes de ontem podia ser acusado, porque o seu crime era bem conhecido. O Herodes de hoje passa livre e honrado, ninguém o acusa, porque o seu crime não aparece. Ele perdeu o nome, mas continua vivo, agindo no mundo inteiro, matando as crianças, esterilizando as mulheres pobres, privando o povo desgraçado dos recursos elementares em matéria de higiene e de saúde. Quem é o responsável pela morte de Maria do Socorro? Onde está o promotor que não acusa? O juiz que não condena? O advogado que defende? A lei que não ampara? A polícia que não prende estes assassinos de crianças?
Quem é o Herodes que mata? É a imposição “legal” de um salário de fome; é o boi que faz substituir as lavouras por pastarias; é as motosserras que desnudam a beleza secular das florestas, deixando no lugar espinhos e juquiras; é o empreendimento que só visa o lucro e não se interessa pelo homem que constrói o bem-estar com a força do seu trabalho; é a abundância dos ricos que falta aos pobres; é o sistema que marginaliza o povo ignorante, sem voz, sem vez; é tanta coisa, tanta, que somente os políticos, as multinacionais, os latifundiários e toda raça egoísta do mundo poderão enumerar. E o pior é que não levarão nada! E sem nada tornar-se-ão pobres de virtudes; e gente pobre de virtude não tem com que comprar a verdadeira felicidade, pois ela é vendida cara, a peso de fraternidade, de amor e de justiça.
Amigo, olhe para dentro de si, retorne, reconsidere – ainda há tempo. Olhe para este mundo de miséria que o cerca, para esta tanta gente que vive em extrema penúria, sem dinheiro, sem roupa, sem alimentos. Para estas crianças que morrem de fome, para este mundo cheio de defeitos que criamos. Você é o único que pode amenizar a fome, dando um pouco do que lhe sobra, lutando contra todo tipo de injustiça que assola este País.
Deus recrimina os ricos porque possuem riquezas desnecessárias, e este tipo de riqueza afasta os homens da justiça. Ela e o poder tornam as pessoas empedernidas e egoístas, fazendo-as esquecer de seus irmãos miseráveis. Ainda que não existisse Deus, que tudo terminasse com a morte, não valeria a pena querer tudo pra si, pois independe de qualquer crença, a angústia que envolve os corações das pessoas egoístas, na hora do silêncio e da solidão. Não é que os pobres não errem, que os pobres só por o serem, estão salvos. Não, não é nada disto. Não é querer dizer que só por ser rico, o homem está condenado. Também não é nada disto. Não é dizer que toda culpa é só dos políticos, pois isto seria ridículo. É repetir apenas o que tanto Jesus disse: ”Felizes de vocês, pobres…!”
A opção de Deus pelos pequeninos, estes que, aparentemente nada significam no contexto mundial, é simplesmente porque eles representam a principal causa das injustiças, da insensatez, do egoísmo e de toda perversão do bem. São eles que, como filhos desvalidos, clamam pelo Pai em suas dificuldades. Foi por causa deles que Deus um dia arrependeu-se de ter criado o homem. Onde estará em nós, a força inexplicável, esta capaz de querer tudo, sendo certo de que não se levará nada? Quando o homem vai tomar consciência disto? Quando iremos compreender que o mundo foi feito para todos e não somente para alguns?
A voz do fraco, do desvalido, sobe aos céus, e Deus a ouve e socorre, como nós mesmos acorremos se um dos nossos filhos grita por socorro. Por isto, a Natureza e Deus se vingam, na desarmonia e na miséria que nos tiram a paz nas horas de solidão. Ao invés de vermos a Maria do Socorro saltitar feliz pelas ruas, assistimos – com o nosso egoísmo – os soluços incontroláveis de uma sofrida mãe, por mais uma criancinha que se despede… ou que foi expulsa pelo nosso descaso.
O MONUMENTO
Ali está o engenheiro. Um lampejo de pensamento: “Farei, agora, uma grande e perfeita obra.”
Recolhe-se. Faz a maqueta, chama seus auxiliares. Dias depois, mestres de obra, pedreiros, marceneiros, ajudantes, toda gama de obreiros entra em ação. Começa a procura de materiais: encomendas, pedidos, compras e mais compras. As máquinas preparam o terreno. Chegam as pedras, todas desiguais: umas grandes, outras pequenas; umas redondas, outras chatas; umas marrons, outras pretas… enfim, pedras de todas as formas, cores e tamanhos. Assim acontece com os tijolos, com as telhas, com o madeirame. Embora parecidos, vindos do mesmo lugar, tendo as mesmas matrizes, todos são diferentes. Não há uma peça que seja exatamente igual a outra. Homens.
Mas é assim que o artífice precisa delas, para que cada uma represente seu papel, encaixe em seu espaço, ocupe sua posição, faça seu destaque de tamanho, resistência e cor. Tempo depois, com a persistência, o trabalho e a determinação, haverá ali uma construção maravilhosa, resistente, sem defeitos.
Durante o andamento dos trabalhos, esteve descascada, feia, informe. Assim é esta Terra em que habitamos; o Universo que nos rodeia; o ser humano; a função de cada alma, segundo os desígnios do Engenheiro, nosso Criador. Somos parte desta construção, pedaços indispensáveis na formação deste monumento que entendemos como planeta Terra. Todos são diferentes: uns nascem e se tornam ricos; outros nascem e caem na miséria; uns são fortes, destemidos; outros, fracos e covardes; uns enxergam longe, raciocinam; outros, limitam sua existência ao comer, vestir-se e dormir: tijolos pequenos, grandes, crus ou requeimados. Homens.
Representamos assim as pedras disformes, o madeirame desigual, os tijolos, as telhas… tudo, enfim, o que é necessário para uma grande e perfeita construção. Por isto não devemos jamais lamentar o que somos. Na verdade, sem a gente, Deus não conseguirá concluir sua experiência. Temos de ser o ouro da taça, a peça desigual da quina, o cavaco que servirá de cunha, o pedaço de tijolo partido da amarração, os destroços do aterro, a imundície que aduba o jardim. E não há entre os objetos usados pelo artífice, um que seja mais importante que o outro, porque sua construção terá de ser perfeita; terá de ter horta, latrinas, jardins, tronos…. Se faltar um só detalhe, a obra será imperfeita.
Assim é este mundo de Deus, amigo. Assim somos nós. Temos uma função específica, e ninguém é mais importante que o outro diante do Criador. Ele precisa de cada um de nós, indistintamente. É incrível, é ininteligível à nossa compreensão humana, mas até os assassinos, os ladrões, os marginais: toda escória moral que existe é necessária ao mundo.
Com certeza, alguém terá de ser ruim, mas não especificamente, você. Torna-se ruim, quem assim desejar. Todos os tijolos entram na fornalha para saírem requeimados e fortes. Nenhuma massa crua entra ali já com a determinação de ser quebrada e imperfeita. No final, entretanto, na hora de selecionar, acha-se de tudo, e nada é inútil. Os pedaços são importantes, pois sem eles, o artífice teria de quebrar um tijolo perfeito, na hora que precisasse de apenas uma parte.
Assim sendo, amigo, não se desespere por lhe faltar “um braço, um olho, ou as pernas”, por ser fisicamente imperfeito. Seja um forte, ocupe sua posição na construção, pois você, às vistas do Senhor, não será inferior a nenhuma outra peça. Não olhe isto em termos desta vida efêmera. Lembre-se sempre que jamais estaremos satisfeitos com a parte que nos foi reservada. Nem aqueles que invejamos, que ostentam e parecem felizes, estão satisfeitos. Ninguém está. Isto faz parte do ser humano, que ainda não aprendeu que não se deve buscar lenha no deserto; isto faz parte de um presente de grego que Deus nos deu: a liberdade plena. Cada um de nós acha que o outro está melhor, ou pelo menos, nunca se conforma com a função que lhe foi destinada na construção. Tudo isto é nada, é passageiro; tudo isto é tudo: pode assegurar a felicidade eterna. Lance um olhar retrospectivo para os tempos de Abraão, dos grandes sábios, dos profetas, dos renomados cientistas, dos imbatíveis generais da antiguidade…. Hoje são apenas história, lembranças vagas, citações. Histórias e lembranças que também os séculos levarão ao esquecimento, ou serão, simplesmente, relembradas como obsoletas e ultrapassadas. Como desabafou Salomão: ”Tudo é vaidade”. Isto nos permite concluir que o que vem de encontro à nossa liberdade natural é inútil e fere a dignidade humana. Nesta vida devemos andar de acordo com a Natureza, agir segundo ela, desempenhar nossa função de acordo com suas impecáveis leis, sem interromper o curso, sem prejudicar a harmonia, sem nos esquivarmos da função.
Somos, também, bichinhos que Deus colocou neste mundo. Não irrompa jamais contra o que é. Faça, simplesmente, sua parte. Erga-se pela manhã e vá, normalmente, à luta. Não perca noites no trabalho nem dias na ociosidade. Não ajunte coisas que não poderá carregar ou mesmo que lhe serão estorvo e peso na caminhada futura. Quase todos os seres vivos, nesta vida, seguem as regras naturais, menos os homens, menos alguns homens ou muitos homens. A Natureza é nossa cartilha; os animais outros, nossos professores. Eles não a burlam, não implicam em sua desarmonia. É só imitá-los.
Vá em frente, amigo! Desconheça os sofrimentos como castigo de Deus. Ele não castiga ninguém, nós é que nos imputamos suplícios e desassossego. O que fazemos, volta a nós. Veja-os antes como uma grande graça para alcançar a felicidade futura do espírito. Não se rebele contra as coisas contrárias a seus desejos; elas são necessárias a você mesmo, embora não entenda as razões. Não vacile em sorrir mesmo que as lágrimas lhe desçam arredias, porque de sua conformidade, resultará grandes benefícios à sua alma. Deus não quer nem precisa do sofrimento de ninguém, mas os aceita em troca das grandes maldades que praticamos. Não fale mal de ninguém. Falar dos outros é um vício, como fumar, beber, dormir tarde, falar alto…. Não se preocupe com aqueles que lhe parecem mais afortunados: possivelmente eles gostariam de estar no seu lugar, embora não saiba ou não acredite nisto. Se fosse possível realizar trocas neste sentido, bolsa alguma ganharia a concorrência. Não inveje ninguém. O invejado pode estar convivendo com problemas, sofrimentos, doenças e angústias piores que as suas. As aparências podem enganar, e muito.
A vida é mesmo assim: uma coisa inexplicável. Inexplicável, mas simples. Nós é que a complicamos cada vez mais. Ela é simples: é só seguirmos as leis da própria Natureza. Trabalhe durante o dia e durma durante a noite. Não coma além da fome, não beba além da sede; não use pano além do frio, nem calçados além dos que protegem dignamente seus pés. Não se preocupe com o amanhã nem junte para o futuro. “Olhai as aves do céu…”
Importe-se muito com os excessos: são eles as causas supremas dos desajustes, dos trabalhos desnecessários, do ajuntamento de cargas que muito lhe pesarão nos ombros em sua caminhada. Acredite nisto e faça as coisas de maneira simples: imite apenas os bichinhos que vivem perto de sua casa: uma formiga, um potro, um passarinho…, um bichinho qualquer. Sua vida será boa aqui neste mundo, e muito melhor no outro.
O MAIOR MENTIROSO DO MUNDO
Se Og Mandino tivesse conhecido meu personagem, certamente não me daria a oportunidade deste conto: tê-lo-ia contado primeiro. Um metro e sessenta de altura, magruço como um pica-pau, cabelos pretos e duros, naturalmente permanentes à escovinha, cor assim de azinhavre, olhos castanho-claros muito vivos, conversa sem quaisquer sinais de pontuação, barba esparsa como farripas de coco, sem nenhuma instrução escolar, mas de uma perspicácia de fazer inveja a certos homens fabricados a peso de ouro nas faculdades: destes tantos que ostentam alvacentos jalecos e andam disseminando heresias científicas por aí, assim era o Zé. O nome dele era José Antonino das Cruzes. Se neste Brasil preguiçoso, Adagoberto já é Zé, que dizer do José Antonino das Cruzes?
Morava numa casinha para colonos, numa ruela única de dez a vinte casebres, banhada pelo pachorrento riacho Santo Hilário, lá nos confins norte do Espírito Santo. Seus pais e irmãos viviam do que a terra produzia: eram lavradores. Lavradores! Falando assim, imaginamos logo uma família de esquálidos matutos, suarentos ao sol do dia e muito cansados à noite, sempre dedilhando uma viola tristonha à luz de lamparina. Esta a ideia que muitos desinformados – que nunca saíram de sua selva de pedras – têm e infundem do matuto. Na verdade, assim como há muitos abestalhados na cidade, há também muitos matutos perspicazes no interior. O Zé era um destes.
Veio de Minas Gerais: nunca se procurou saber de onde mas os “é uai’; os “sorta que eu pego”; a presença constante de queijos na despensa… excluíam qualquer dúvida. Pelo sotaque e postura poder-se-ia concluir que não viera de região limítrofe alguma, pois jamais escapulia um “treis” carioca, um “otcho” baiano ou outro acinte qualquer à sua fidelidade bairrista. Não se saberia precisar quem teria sido, antes do Zé, o maior mentiroso do mundo.
A única coisa que jamais se duvidou é que, com a sua chegada, toda chance de disputa pelo cetro, esgotara-se. O Zé era, na mentira, o que foi Pelé no futebol. Até Zé, nome tão fácil e sutil, estava se depreciando, prostituindo-se, perdendo terreno e virando “O Mentiroso”. A fama havia se alastrado tanto, que qualquer mentira que se prezasse, tinha que ter no bojo, a marca registrada deste personagem. Longe de perder as estribeiras, ele sempre apresentava uma evasiva à altura para safar-se da proverbial alcunha em que a força do hábito o havia prostrado. Mentiras, até mesmo de além-mar, traziam seu nome, tão logo invadissem nossas duzentas milhas territoriais.
Pois bem, vamos lá ao ano de 1946, quando ainda o Espírito Santo podia orgulhar-se de seus jacarandás e de seus jaós e macucos. Era ainda um mundo maravilhoso de florestas tropicais e pássaros autóctones; de regatos e rios cristalinos, e onduladas encostas verdejantes. Hoje, o estado é um rabo seco, um apêndice pouco expressivo, um mero ponto no mapa-múndi. O homem, de fato, desfaz a beleza natural com muita facilidade! Ele e o progresso ganancioso e interesseiro, representam para o mundo, o que uma vara de porcos, certamente, representa a um jardim bem cuidado.
Naquele tempo, os imigrantes faziam suas estradas a picaretas, enxadões, pás, enxadas, vacas (rodo largo de madeira, tipo lâmina de niveladora), couro de boi seco, com o qual arrastavam terra para os aterros… enfim, luta primitiva de nossos ancestrais em busca de algum conforto. Havia até mesmo lugares como São Rafael, que possuía caminhão sem ter estradas de ligação. O proprietário, João Cassiano, adquiriu-o na cidade mais próxima (Colatina – ES), distante quase trinta quilômetros. Desmontou-o peça por peça e, em lombo de homens e de burros, transportou-o até São Rafael. Lá montou-o novamente e pronto: a cidade viu e possuiu seu primeiro caminhão. Fato histórico e inusitado que, talvez, algum alfarrabista um dia me agradeça. Parece até história do Zé, mas quem duvidar é só vasculhar os anais da vilinha, ou seja, conversar com os anciões do lugar.
Vamos lá, a alguns quilômetros acima de Marilândia, esbarrar com um mutirão estrompado que abre caminho na floresta, a picaretas e enxadões. Eram uns 25 italianos, moradores ou não do núcleo colonizador da região. Para Santo Hilário, onde morava o Zé, já havia uma vereda com aproximadamente dois metros de largura, onde se trafegava em lombo de animais. Os italianos – extenuados pelo meio-dia de luta – encontravam-se sentados no chão, desamarrando sacolas e toalhas, donde retiravam polenta, queijo, puina, cudeguim, ovos…, e conversavam, exatamente, sobre o mentiroso Zé.
– Quelo lá não digue una parole que no senza una buzia. (Aquele lá não diz uma palavra que não seja uma mentira.)
– Le um bauco, poareto. (É um abestalhado, coitado.)
– Ah, si, vá lá! (Ah, sim, deixa pra lá!)
– A mi, lu no tchapa piú.. (A mim ele não passa a conversa.)
– No digue questa roba, Jijo. Lu son ei diaul a dir buzie. (Não diga isto, Luís, ele mente como o diabo.
– Mi lo cognosso, a mi lu no tchapa. (Eu o conheço bem, a mim ele não pega.)
– Verti ei otchi, Jijo. (Abra os olhos, Luís.)
E a conversa engrolada, de português miscigenado com o sofrível dialeto de Vêneto, abria um novo espaço linguístico como se fosse um afiado facão em plena selva de emaranhados e, em pouco tempo, com certeza, nem brasileiros nem italianos entenderiam mais a própria língua.
Foi então que se ouviu um repicar confuso de cascos de cavalo que vinha se aproximando. Mal um tal de Scarpatti avistou-o, apoiou as mãos no queixo suarento, comentando mordaz:
– No se pol nhanca parlar del diaul que lu le cá rente a noaltre. (Não se pode nem falar no diabo que ele logo aparece no meio da gente.)
– Le lu? Perguntou alguém. (É ele?)
– Si, si, urdelo, le lu própio. (Sem dúvidas, é ele mesmo.)
– Demo vede cossa que lu dir ancuoi. (Vejamos o que tem a dizer hoje.)
O cavalo vinha ofegante e mal diminuiu o galope para que o Zé dissesse um “olá turma”. Um dos trabalhadores observou maliciosamente:
– Bepi, que buzia no la conta ancuoi? (Zé, que mentira nos conta hoje?) Ainda sem parar, apenas deixando o cavalo seguir estertorosamente, ele observou pesaroso e preocupado:
– Hoje não dá. Estou com muita pressa. Fico devendo. Meu pai foi picado por uma jararaca… daquelas miudinhas com anéis pretos e vermelhos. Aquilo é veneno puro. Se eu não encontrar remédio logo, ele morre. Pobre pai!
E foi seguindo a galope, não esquecendo de esfregar a curva do cotovelo nos olhos aljofrados. Depois de tudo, era ainda um ator perfeito.
– Maria Vérgena! Exclamou um dos italianos.
– Noaltre quá a parlar monade e nostro compare lá quel mor. Andiamo acudir-lo. Demo tuti quanti ajutar-lo. (Nossa Senhora! Nós aqui a falar besteiras e nosso compadre lá fora morrendo. Ajudemo-lo. Vamos todos acudi-lo.
De onde se encontravam à casa do pai do Zé, eram mais de quatro quilômetros, o que não impediu que fossem desfeitos em menos de uma hora de pernas batidas. Deglutindo a polenta com queijo e cudeguim, a italianada foi aos pulos, pois imigrantes eram como se fossem os cristãos dos primeiros tempos: se houvesse um com qualquer problema, todos acorriam fraternos.
– Enfim, arrivamos – disse o Jijo – exatamente o que havia dito que a ele ninguém, nem o Zé, passaria a perna.
Como todo matuto que se preza, o pai do Zé estava deitado na varanda, sem camisa, o chapéu de palha pendurado num pé de mateiro seco que havia sido pregado no portal de cedro, pitando um cachimbo em baforadas de causar inveja ao mais inveterado matintaperera.
A italianada parou no terreiro e em ofegos, trocaram olhadelas duvidosas. Ao ouvir o barulho do “tropel” que chegara, o homem ergueu-se assustado:
– Aconteceu alguma coisa, senhores?
– To fiol, quel maladeto dum desgraciato, buzier de uma figa. (Seu filho, aquele desgraçado, mentiroso de uma figa.)
Era o Jijo, o mesmo que dissera que, a ele, o Zé não pegava. E entre raiva e gargalhadas, a italianada desfez, cansativamente, os quase cinco quilômetros.
Tão logo se distanciaram, o Zé puxou o cavalo de detrás da moita e chegou ao terreiro. A quem o visse, não acreditaria que tivesse apenas 32 dentes. Até os cacos brilhavam de felicidade.
COMO SURGEM AS ALMAS
Um grande mestre criou uma semente que germinava; colocou-a na terra e ela nasceu, e cresceu, e se tornou árvore frondosa, e deu frutos e outras sementes; e as sementes que ela deu caíram ao chão e também germinaram; e cada árvore nova que nasceu deu outras sementes que também caíram ao solo e muitas germinaram, e formaram milhões, bilhões de árvores, todas vindas de uma só semente, num ciclo rotativo eterno. As árvores foram se alastrando, invadindo a terra, espalhando sementes em lugares úmidos, secos, quentes, gelados, pedregosos, alagados, enfim, conforme os milhões de nichos existentes no mundo. Umas caíram em lugar de clima e terra bons, outras não deram tanta sorte e ficaram um tanto diferentes. Houve muitas adaptações para sobreviverem nos meios hostis e adversos. Com o tempo acabaram ficando diferentes, embora viessem, na essência, de uma mesma semente mãe. A essência da primeira gerou todas as outras e continuará gerando até o fim dos tempos, embora não sejam totalmente iguais, nem produzam os frutos com o mesmo tamanho e sabor. Eis como Deus fez tudo, inclusive as almas.
Também cada espírito que vive em cada corpo vem da essência primeira criada pelo grande mestre Deus. Assim, no acoplamento do espermatozoide com o óvulo, germina, da essência primeira, mais um espírito. Por isto, fisicamente, a maioria dos filhos se parecem com os pais, inclusive na maneira de pensar. Não é por menos que um galho de amoreira, ao ser transplantado, também produz amoras, mas nem todas têm o mesmo tamanho e sabor. Cada ser que nasce é uma semente espiritual que germina, caída da árvore primeira, simbolicamente, Adão e Eva. Assim como as árvores produzem milhões de frutos para que apenas algumas sementes prossigam na preservação da espécie, assim são os seres humanos.
Este simbolismo, certamente esclarece muita coisa a respeito das almas. O espírito que até hoje não encontrou em nenhum pensador, uma explicação convincente de sua origem, fica mais claro que um dia de sol. Como as sementes, os espíritos existem aos milhões, embutidos no fenômeno natural das cópulas. Sem o sexo, eles ficam latentes. Não é menos verdade que, exatamente na introdução do espermatozoide no óvulo, nasce um novo espírito. Por isto, o aborto mata um ser vivo, elimina uma semente que germinou e que daria mais uma árvore. Não discuto aqui o pouco caso dos que defendem o aborto, nem a relevância que os defensores lhe atribuem. Os pontos morais e de responsabilidade jamais alguém poderá definir, pois dependem exclusivamente de quem o cometeu, e não da lei universal. “Não amaldiçoarei mais a terra por causa dos homens, porque o sentido e o pensamento do coração do homem são inclinados para o mal desde a sua mocidade. Não tornarei, pois, a ferir vivente algum como fiz. Ver-se-ão sempre as sementes e as searas, o frio e o estio, o verão e o inverno, o dia e a noite, sucedendo um ao outro, o tempo que a terra durar.” Gênesis: 8.21 e 22.
A história nos relata sempre a inclinação do homem ao mal. Não é por menos que a maioria dos homens ainda hoje é assim. Somos plantas daquela semente e não temos culpa disto. Por isto sempre asseguro que não somos tão culpados de nossos erros, e nem tão merecedores de nossas virtudes.
DESABAFO DE UM BRASILEIRO
Fevereiro de 1989
Espicacei a terra, aferroei-a, meti-lhe a garrocha, nela cuspi e pisoteei, depois a escarneci, fiz tudo o que um homem violento e empedernido poderia fazer a alguma coisa indefesa. Afastei-me alguns passos e fiquei observando se o sangue escorria, se as lágrimas, ao menos as lágrimas, brotavam de alguma parte. Mas nada aconteceu. A terra continuava impassível, altiva, insensível. Depois tentei fazer o mesmo comigo, e logo no primeiro beliscão percebi que havia em mim algo diferente da terra. Eu era sensível, sentia dor.
Não foi preciso espicaçar-me ou ferir-me: eu tinha certeza de que o sangue iria escorrer e que as lágrimas iriam brotar. Percebi assim que eu era mais importante que a terra, que tinha vida e que era falsa a ideia de que a gente precisava sofrer, passar fome e trabalhar desumanamente para morar numa grande nação. O importante mesmo era eu que tinha um coração que se emocionava, um estômago que doía de fome e um lugar qualquer que se penalizava diante do sofrimento e das dores do semelhante.
Pois bem, amigos, é disto que quero falar agora. É desta frustração e dor que hoje tentarei dizer. Quantos apresentam causas e até as possíveis soluções para os problemas que afetam o País! Os políticos, mormente estes, não se cansam de apresentar causas e efeitos, não se cansam de acusar Deus e o mundo pelos transtornos deste país desorientado, inflacionado, devedor, perdido, avariado, à deriva por causa destes nossos timoneiros inescrupulosos. Apregoam, os políticos, que uma grande nação só se faz com o sacrifício de seu povo. Eles, certamente, não estão incluídos neste povo. Conseguem, assim, uma grande nação, ou melhor dizendo, uma nação grande em sofrimento, miséria, fome e desigualdade.
Querem alcançar a condição de primeiro mundo para que os outros países do continente a respeitem e falem dela maravilhas: com eles à frente. Deste prazer sádico e imerecido, não abdicam. O povo é a Pátria e não há grandeza num povo espezinhado, debilitado e faminto. Dane-se o nome desta terra diante dos outros, desde que haja felicidade e saúde em seu povo. Que durmamos numa rede, que se fotografe palhoças, mas que o resto do mundo venha ver a favela sorrindo na Marquês de Sapucaí, com alegria e decoro; o caboclo desdentado mostrar as gengivas nas arquibancadas do Maracanã, mas com o estômago cheio. O que eles lá fora pensam ou deixam de pensar, nunca aumentou em nada a mesa do homem simples.
O povo, pelo seu sofrimento, já amou demais esta Pátria; é hora dela (lê-se aqui, os responsáveis diretos pelo seu destino) também demonstrar seu amor pelo povo. A principal preocupação de um ser vivo sempre foi o alimento. Até os micro-organismos agrupam-se neste sentido. Onde há alimento, há vida – e em profusão.
Remontando a história, a gente já vê Abraão deixando a baixa Mesopotâmia para dirigir-se a Canaã. Sabe-se de todo aquele povo, sempre em êxodo em busca de uma terra em que jorrasse o leite e o mel. Pátria, para eles, era a terra que lhes desse de comer, e com fartura. Para que usinas atômicas, obras faraônicas, investimentos monumentais a longo prazo, destes que escravizam o povo e endividam a nação, irremediavelmente? Por que sermos eternos macacos a imitar? Onde anda o nosso orgulho de autonomia e autenticidade? Dane-se a terra que pisamos, porém jamais, o povo que a pisa. Nós somos a Pátria e é preciso que esta Pátria seja feliz, com equidade e isonomia. Quem não sabe que o problema deste país está na corrupção, empreguismo e incompetência dos que o governam?
Todo mundo sabe, eles, muito mais que nós. Mas jamais irão abdicar do poder, do conforto e das mordomias, do prestígio e da vida fácil. Para eles não há crises, não há dificuldades. A mesa sempre está cheia, os saldos bancários, sempre polpudos. Há ainda as garantias fora do país para possíveis eventualidades deste povo covarde abrir os olhos e reagir, e destruir, e fazer justiça, e desmanchar esta podridão para erigir uma coisa nova, firme e digna. O pior de toda esta situação vexatória é a consequência nefasta que a realidade impõe.
O povo brasileiro, a população do Brasil, protegida pelo álibi da legítima defesa, também tenta equiparar-se a esta minoria pútrida e desumana. Viramos assim, cento e cinquenta e quatro milhões de ladrões, cada um extorquindo o outro em legítima defesa da sobrevivência. Vou à casa de peças Mércule e cobram-me doze cruzados novos por uma tampa plástica de radiador. Puxa, é um escândalo, a peça não poderia valer mais que dois cruzados novos. Mas preciso do carro e para tê-lo funcionando, a tampa de plástico é necessária. Compro-a mesmo sabendo que é um assalto. Volto ao serviço e desconto a tampa plástica no sarrafo de cedro que o pobre lavrador precisa para fechar o galinheiro. O primeiro que precisar de uma galinha, certamente vai pagar a minha tampa de plástico. É a bola de neve que vai rolando, aumentando, expandindo e fazendo ladrões e mais ladrões.
E tudo isto tem solução? Claro que tem. O que falta é gente honesta e capacitada para encontrá-la, alguém jovem e ainda pouco afetado por esta praga terrível da desonestidade. Cada brasileiro é um economista, apresenta as falhas e também a solução. É que são tantas as opções, tantas as falhas que não se torna tão difícil apontar algumas. Mas o pior mesmo é a desonestidade dos políticos, ou daqueles que manipulam algum tipo de poder. De fato, os filhos das trevas são mais espertos que os filhos da luz!
Note, por exemplo, como são sagazes ao aumentar seus salários. O povo se prende à mixaria de dois ou dez mil cruzados novos que os políticos, em média, estão recebendo e se esquecem dos milhões que eles desviam em transações escusas. O povo grita, fala, perde a vergonha no ato contínuo de levar na gozação, coisas tão sérias. A imprensa, com seus programas humorísticos, torna-se conivente, propiciando ao povo que ria de sua própria desgraça. Mas a verdade é que os políticos sempre atingem o que desejam, pois enquanto o povo fica distraído com este tipo de corrupção, eles se ocupam de outras mil vezes piores e mais vultosas. Há políticos que nem vão receber seus salários, tal a importância que dão àqueles (para eles) míseros dois ou dez mil cruzados novos. O verdadeiro roubo não está ali, pois isto seria um centavo nos trilhões que os cofres públicos arrecadam. O roubo maior e prejudicial, aquele que empobrece a nação e mata de fome e necessidade os seus cidadãos, este não aparece. São os desvios, os contrabandos, os subornos, as concorrências ilícitas e clandestinas, as importações de coisas imprestáveis, obsoletas e deterioradas. Aí vai o sangue dos pobres trabalhadores, da gente humilde, sem que ninguém possa provar ou fazer coisa alguma.
Eles se amam e não se traem jamais. A união dos corruptos é a mais fiel do mundo. Mas, pensando bem, merecemos o que temos. Que mais pode exigir um povo covarde? Somos covardes, sim, somos um povo covarde. Não temos coragem de reagir, de pôr tudo abaixo, de desmanchar esta podridão, passar uma vassoura, esterilizar e erigir de novo. Assim fizeram o Japão, a Alemanha e tantos outros países: desmancharam tudo e construíram de novo. Hoje constituem um povo ordeiro, honesto, e dentro das possibilidades, feliz. Estes países aceitam tudo, menos a corrupção pública comprovada. Ela existe, mas é cobrada e reparada. Aqui tudo é livre: roubar bem é até um ato de bravura. Premia-se com faustosa cobertura, os traficantes dos morros, assim como a demagogia política; enaltece-se o ladrão astuto, assim como a falta de decoro público das escolas de samba. Não se tem mais respeito para com as coisas sãs, puras, enfim, com a moral. Não acredito que se possa mais remendar este país! A mim me parece que é preciso desmanchar e fazer de novo. É mais prático, mais seguro e duradouro.
O nosso povo perdeu a sensibilidade e o respeito às coisas mais dignas. Que mais se pode esperar de uma nação que chegou a este ponto? No carnaval, mulheres desfilando nuas permeio a milhares de crianças e jovens adolescentes, despreparados, sem entender ainda, a propalada arte que envolve tal tipo de afronta à moral; um animal atropelado na orla da rodovia em pleno perímetro urbano, com as pernas quebradas, no sol causticante, três a quatro dias agonizando, sem que ninguém o sacrifique de imediato ou lhe dê um pouco de comida e água; um ser humano em alto estado de putrefação, estendido na calçada, esperando identificação policial; milhões de pessoas cheias de vida e saúde, recebendo dos cofres públicos do Brasil e morando, até mesmo no exterior; homens pagos para manterem a ordem e a justiça, sendo os principais autores ou coniventes de crimes hediondos; tudo, enfim, se apresentando como a mais nítida e insofismável prova de desrespeito à moral, fraternidade, justiça, igualdade e por tudo quanto pode, de fato, soerguer uma nação falida. Não sei mesmo se há mais jeito! Sinceramente, não sei.
Quando um país perde o respeito pela decência, pela Natureza, pela justiça e por seus próprios semelhantes; quando ninguém pensa mais senão em si mesmo; quando não se mede mais os meios para se conseguir qualquer intento…, a coisa fica desesperadora, a esperança mingua, a fé esmorece e o caos enraíza-se e toma cada célula de nosso corpo. Contaminação irrecuperável. Desde os tempos de Jango que temos suportado esta safra triste de líderes inescrupulosos, de homens que só se preocupam em se manter no poder. É vergonhoso e ultrajante vê-los constantemente discutindo ideologias de poder, sim, de poder. O político atual defende suas ideias hoje, as ideias de seu partido, e amanhã, por interesse próprio, muda de ideologia, provando que nunca acreditou em nada, senão no poder. Nossos políticos raciocinam de comum acordo com seus eleitores e não de acordo com o desenvolvimento da nação. Pelo voto vende-se a verdade, a justiça, as pessoas e o país. Reafirmo: não é digno de confiança aquele que não vive conforme prega. Ou se acredita ou não se acredita em alguma coisa. É sempre mentiroso aquele que vive ensinando ou defendendo uma ideia e não vive conforme ensina; aquele que tem uma coisa na boca e outra no coração. Mais que ódio devemos a esta gente: pena. Eles não sabem que tudo o que fazem aos outros, um dia volta a eles próprios. Não sabem que as rugas, os cabelos brancos, o envelhecimento precoce, a consciência pesada, tudo enfim que se apresenta rapidamente neles, já é indício do triste reconhecimento da vida pelo que fazem a seus semelhantes. As preocupações constantes para se livrarem da lei comum dos homens e para aumentar o patrimônio, infiltram-se em suas cabeças e em seus corações, tornando-os velhos precoces. Morrem mais cedo, pelo menos no que tange a virilidade e a presença saudável de um homem.
Trapos humanos encapuzados. Vivem constantemente preocupados com o desnecessário. É uma fazenda para olhar, apartamentos com problemas, iates, contas escusas, papéis comprometedores, carros batidos etc. etc. etc., tudo isto como status, inteiramente dispensável. E toda a coisa desnecessária ou dispensável que adquirimos, certamente fará falta a quem de fato precisa e necessita. Enquanto estas coisas fazem grande falta a alguns, a outros só trazem problemas. Constituem as verdadeiras provas que serão apresentadas no dia do julgamento. Julgamento? Que julgamento se não acreditam em justiça alguma?
Casos comprovados de envolvimento em contrabando deixam impunes ministros que, anos mais tarde apresentam-se na televisão como moralistas exemplares. Infelizmente, senhores de quem falo, acreditando ou não, querendo ou não, sendo-lhes bom ou ruim, Deus existe e este seu sorriso de escárnio não tardará a fechar-se. Aguardem, não tenham pressa! Leiam sobre Creso, o mais rico e infeliz dos homens. Tudo o que temos em excesso, repito, estamos tirando dos outros. Todo excesso de nada serve para nós, senão para nos trazer preocupações, roubar-nos a paz de espírito e consumir nossos minutos de lazer e paz. Todo rico sabe que não é superior, senão em preocupações e problemas, àquele que possuí o necessário. Todo milionário inveja ou, quando nada, devia invejar o homem simples que passa com seu caniço, em plena segunda-feira, e fica em cima da pedra vendo as gaivotas planarem e o mar eterno com suas ondas azuis espocando nas areias da praia, como se estivesse ouvindo Strauss em uma de suas operetas vienenses. Tem-se a impressão que aquela paz é tocável, assim como parece palpável, a angústia que se enrosca na fumaça do cigarro do homem de consciência pesada que não consegue dormir.
“Como é difícil um rico se salvar” – já dizia Jesus Cristo, ao entender o grande apego que estas pessoas têm ao dinheiro, ao poder e aos bens. Contudo, para Deus, nada é impossível, arrefece adiante, para mostrar que também é possível possuir bens honestamente, sem massacrar ou extorquir a nação ou o semelhante. O mal não está na riqueza em si, mas na maneira de consegui-la, mantê-la e distribuí-la. Refiro-me ao modo escuso de certas pessoas ficarem bilionárias em curto espaço de tempo. Se consertar uma casa que racha as paredes já não é fácil, quanto mais a consciência de nossos “mandarins”.
E do jeito que vai, esta safra, esta escola, este sistema não vai acabar tão cedo. A coisa ficou hereditária. Quando um morre, já tem outro formado na mesma escola para ocupar o seu espaço: com as mesmas ideias, os mesmos pensamentos, as mesmas metas, a mesma cultura. Somente um homem predestinado por Deus, idealista, cheio de energia e de sonhos, um homem que varra esta velharia infectada e seja assessorada por homens (ministros) que entendam, não tanto de política, mas muito de honestidade, poderá guinchar dos limites do abismo, esta nação que despenca. Sem este milagre não vejo outro caminho senão desmanchar tudo e fazer de novo.
Que esperança podemos ter na mudança de um ministério, se o encarregado da pasta é o mesmo que veio de outro, totalmente inoperante, sem ideias novas, sem melhora alguma? Uma pessoa de boa intenção que pleitear política, ou se corromperá entrando no sistema, ou desistirá em bem pouco tempo. Parece não haver outro caminho em nosso país. Chegam presentes inesperados, encomendas, parentes e amigos irrecusáveis, pedidos mirabolantes, propostas tentadoras…, e no meio de tudo isto, o homem aceita ou desiste: não parece haver outro caminho. Mais que nunca o homem perdeu o brio e o senso de honestidade. Sem negociatas, sem complôs, sem o “tome lá e dá cá”…, ficou impossível governar. Os partidos são verdadeiros entraves ao progresso do Brasil. A eles, só as vantagens e a hegemonia do poder interessam. Eles trocam os interesses do país por alguns votos que possa ganhar. Primeiro eles; depois o Brasil. E nós a tudo assistimos, achando graça ou desabafando no deserto. Transformamo-nos em humoristas baratos de nossa própria desgraça. Muitos órgãos de divulgação, que sempre foram os maiores entraves destas falcatruas, também por dinheiro, parecem ter entrado no sistema, preferindo, quando muito, comentar os fatos. Perseguem – com reportagens contínuas – um criminoso, um corrupto e, de repente, não falam mais no assunto. Que terá acontecido? Às vezes perseguem um policial que perdeu a esportiva e espancou um menor e não atentam para os verdadeiros criminosos que matam pela fome e pela miséria extrema, milhões de crianças, e até de adultos, bem abaixo de seus narizes. Dos verdadeiros e hediondos crimes contra a humanidade, poucos conhecem, e os que conhecem, acovardam-se no silêncio interesseiro.
FOGO CRUZADO DE IDEIAS
Que fazer quando desponta em nossos sonhos o prazer da liberdade? Quando cavalgamos nuvens macias, batemos asas e voamos sobre os píncaros do medo e da angústia, livres de toda cadeia do temor e da depressão? Quando, sem ameaça alguma, deixamos o coração decidir livremente, a mente desejar, a paixão invadir nosso ser? Quando liberamos nosso corpo vadio para caminhar pelos prazeres sem sentir os vergastes da consciência modelada? Quando abrimos a página do livro da vida e não encontramos acusação, sentimento de culpa nem lições que truncam a satisfação do prazer? Quando deixamos os olhos e os ouvidos livres e as mãos e os pés para obedecê-los? Quando simplesmente assistimos à luta desigual que sempre se trava entre a natureza animal que vive dentro de nós, e as santas leis da moral? Quando enjaulamos a personalidade fabricada e soltamos aquela animal, intuitiva, aquela dirigida pela carne? Que fazer depois, quando acordamos e percebemos mil anjos acusatórios, dizendo que o prazer é crime, que a felicidade não existe aqui neste mundo, que só o sofrimento é digno? Quando recolhemos nossas inclinações, reprimimos nossos desejos e nos entregamos à terrível angústia de querer sem poder? Como agir encurralado entre estas duas hostes: uma empunhando o prazer, outra a recriminação? O que decidir se nossa decisão não passa de opção, se uns gritam a vida, a alegria e os desejos, e outros a abnegação, a mortificação, a negação da vida? Se só ouvimos, se só nos mostram, se só resta crer ou não crer, ser ou não ser? Se forças antagônicas juram suas verdades e somos imbeles e incapazes de saber qual está com a razão?
Se me despem do que me ensinaram, estou livre de qualquer acusação, de qualquer pecado; se não, estou acorrentado a todo tipo de angústia e recalques. Se sigo Locke, Aquino, Agostinho, Leibniz…, eles me dizem a verdade; se leio Nietzsche, Voltaire, Shopenhauer, Spinoza…, eles também me dizem verdades: as verdades deles. Mas elas são contrárias, obedecem suas alas, e eu… eu estou no meio do fogo cruzado. “Palavras, palavras… somente palavras”? Elas riscam o espaço como projéteis mortais. Ferem quem encontram no caminho.
Como são terríveis os argumentos bem-dispostos! Verdadeira ou não, a boa retórica inflama, comove, convence. É muito difícil a quem recebe o estilhaço, saber se lhe foi devidamente apontado ou se foi o acaso que o fez acontecer. Estamos no meio de uma guerra de ideias.
Mas antes não era assim. Nossa origem remonta séculos, apresenta um homem dirigido por um cérebro rudimentar, levado pelo instinto da sobrevivência, como tantos animais que ainda hoje são levados pela fome, cheiro ou sede. Nossos antepassados só obedeciam às leis do instinto. Não podemos afirmar que eram felizes, mas estamos certos que dormiam tranquilos, só se preocupando em se defender dos animais ferozes que existiam em profusão naqueles tempos. Mas, veio o tempo, e com ele a consequência da evolução e do progresso. Agora estamos aqui, cheio de pensamentos confusos, imiscuídos num mundo de ideias contraditórias, ouvindo o gargalhar sarcástico da verdade que, como a esfinge feroz, brada: “Desvenda-me ou o devoro”. Que fazer?!…
PROCURANDO DEUS
Às vezes fico debruçado na janela, cismando. Nem sempre é sol, nem sempre é chuva; nem sempre é frio, nem sempre é calor; nem sempre estou contente, nem sempre estou triste. Sempre estou com a mente inflada de desejos, de dúvidas e de incertezas. Ah, isto não apeia de mim. Não me canso da curiosidade de saber por que estou aqui agora, neste lugar. Hoje está chovendo; há horas que não para de chover. Ao lado, alguém dorme; na varanda da casa contígua, crianças matraqueiam sem parar; coisas e assuntos de meninos. Mas não sou mais pequeno, cresci; infelizmente, cresci. Já não me satisfaço em bater numa lata, nem em espernear porque não me dão um velho martelo de pau. Meu pensamento vai longe, além do lugar em que os cientistas imaginam o limite do infinito. E neste reide incansável de minha procura, em cada lastro de um planeta, de uma lua ou de um sol, não consigo enxergar as pegadas do Criador.
É um dó não ser mais criança! Elas estão aí do lado, falando e discutindo sem parar; – Mim dá o martelo. – Eu não. – Manhê, fala pra ele mim dá o martelo. – Parem de brigar e me deixem em paz. – Mim dá. – Eu não. – Seu viado. – Manhê! … – Olha a boca! Agora mesmo esfolo a bunda de vocês.
Ah, as crianças! A chuva cai, morosa e sonolenta. Garoa. Eu gostaria de ser sempre criança, mas isto não me é mais possível. Sou um homem maduro. Agora tenho de lutar, pensar, saber das coisas, procurar o caminho que perdi. Tenho minha verdade, mas sei que pregá-la ao mundo será em vão. Ela é diferente daquela que me ensinaram. Mais adiante, daqui a uns séculos, quem sabe, algum alfarrabista me acredite, ou pelo menos me entenda. É…., daqui a uns séculos, quem sabe? Mas a essa altura, já tantos foram os escárnios, tanto minha verdade pisada, que nem vagas lembranças irão se erguer mais em minha defesa.
Dúvida, confusão mental… Longe de toda preocupação, entregues a alegria de viver sem saber o porquê, as crianças embolam palavras: – Bota a mão aqui, bota! Hi, hi… se botar eu ó, pá. – Nossa Senhora, poca tudo.
Palavras desconexas, ainda sem sentido: coisas de criança. Na cabeça, nada de fórmulas, complicações, nada de lei a obedecer. Cada palavrinha ingênua é uma prece de simplicidade a Deus. Mas não sou mais criança. Mais de trinta anos separam-me deste ditoso tempo. Agora tenho de pensar, raciocinar. Assim ditam as regras da tradição e os ensinamentos de meus antepassados. – Mim dá o martelo. É meu, foi papai que comprô. – Eu não. – Mim dá aqui.
Cara amuada, martelo atrás das costas, olhar torvo: – Eu não. – Manhê! … – Calem-se! Quero ouvir o noticiário. – Mim dá cá. Muxicões. Choro, algaravia. Chineladas, resmungos, depois, fungadeiras, puxadas de narizes molhados. Afinal, silêncio. Nos olhos, a pureza de uma lágrima ocasional. A mãe olha-os: uns anjinhos de Deus. Aproxima-se, abraça-os. Estão emburrados. Ela ri e depois se afasta. Eles se sentam novamente. O olhar duro, aos poucos esmaece. Tudo esquecido outra vez. Não há pensar, não há leis, não há rancores. O orgulho ainda não chegou. Virá atrasado, mas infelizmente um dia chegará. Oh, meu Deus! Por que cresci? Para que esta ânsia de compreendê-Lo com tanta sofreguidão? Ansiedade! Ali na frente, bem pertinho de mim, quiçá, quem procuro esteja sentado, também brigando pelo martelo de pau, mas…, mas eu tenho que procurá-Lo nas galáxias, nos teólogos, nos templos e mesquitas…. Sou já grande, sou um homem. Ah, quanta falta de pobreza de espírito! Meus olhos estão embaciados, ofuscados, nublados por uma densa nuvem de orgulho e pretensão. Aqui pertinho, bem na minha frente, bem ali, as crianças brincam.
A disputa pelo velho martelo, continua. De repente, o menorzinho olha para o mais velho, puxa o brinquedo de detrás das costas e sorrindo, diz: – Toma aqui, pode brincá.
Os olhinhos não apresentavam raiva nem ressentimento algum. Todos se ajeitaram, riram, passaram o martelo de mão em mão. Não havia mais nem um leve resquício de rancor. Pude perceber, então, que o que eu tanto procurava em lugares tão recônditos e distantes, estava ali, bem pertinho de mim, na varanda, brincando com um velho martelo de pau.
SÉCULO XX
Obrigado, Senhor, porque meus olhos ainda conseguem maravilhar-se diante de uma flor. Tantos há que a pisoteiam sem a sensibilidade de perceber seu perfume e sua beleza. Para muitos foi em vão o Seu esmero, ó Pintor dos Pintores, em matizar esta terra com cores exuberantes, vitalizá-la com pássaros de todas as cores, enchê-la de verde inebriante, sulcá-la de regatos e grandes rios, dimensioná-la em oceanos e envolvê-la de incrível azulescência. E se pela janela de nossos olhos não percebermos estas nuanças, é sinal triste de que não valeu a pena ter-nos dado a chance de nascer.
Não há nada mais belo que a Natureza! Admiremos esta obra prima, cuidemos dela para que seu inventor também cuide de nós. Somos um todo. Qualquer parte destruída da Natureza, mutila a humanidade. Sem ela também nós não viveremos; sem parte dela, também nós não viveremos bem. Obrigado, Senhor, por este verde sem fim que nunca nos cansa; por estas quedas e cachoeiras que espumam águas cristalinas; por estas plagas imensas em que pulula a vida em harmonia. Obrigado meu Deus, por ter-me permitido passar por aqui no século XX, quando se sente que o progresso ainda não calcou de tudo o esmero deste afresco divino. Agradeço-Lhe porque, apesar do progresso, ainda posso ver flores, pássaros, animais silvestres, céu azul e água límpida. Amanhã, com certeza, o Seu mundo será o mundo dos homens. Nele só teremos sombra de marquises, águas escuras, luz de lâmpadas…. Os viventes não terão mais nas mãos a singeleza das poesias bucólicas, mas sim e apenas, bombas e granadas: a realidade dura do Apocalipse. Será o fim de tudo: das flores, dos rios, do verde…, do homem. Será terrível, “de sorte que se Deus não abreviar estes dias, nenhuma alma se salvará.” Nossos sucessores verão falar de um buquê, como hoje ouvimos falar dos dinossauros, dos australopitecos e de uma infinidade de seres estupendos e descomunais que, hoje, são apenas reminiscências históricas. Agradeço-Lhe, meu Senhor, pelo silêncio que ainda posso encontrar em alguma caverna do mundo; pela sombra que ainda posso sentir em algum recanto da floresta; pelo trinado do melro que esvoaça sobre o milharal… Obrigado também pelos jatos supersônicos que cruzam os céus; pelos computadores que revolucionam a tecnologia moderna; pelos foguetes que invadem os céus; pelos satélites que aproximam as nações…, sim, obrigado, pois muitos só viram a beleza da Natureza, outros, apenas o início do progresso, enquanto eu… bem, eu me sinto um homem privilegiado, vivendo esta dura transição: o fim e o início de duas eras.
PELOS ESCOMBROS DE UMA GUERRA
Do alto do morro eu podia ver o mundo. Flocos acinzentados de fumaça salpicavam a imensidão, intercalando o verde-claro com manchas de sol que furavam blocos vadios de nuvens. Eu estava cansado, roupa suada…. Havia subido até lá para perseguir os inambuguaçus. Não houve ninguém no Espírito Santo que perseguiu mais os alígeros do que eu. Quando criança, pelotava-os até com as balas doces da vendinha de meu irmão; depois que voltei do seminário e a coisa ficou ainda mais séria: de espingarda. Caçava e atirava tanto que cheguei à versatilidade de espantar as aves para abatê-las em pleno voo.
Só bem mais tarde fui me dar conta do crime estúpido que praticava. Sem pestanejar, arfante, eu continuava a fincar os olhos no infinito. As coisas se misturavam. Lá nos confins do horizonte, tudo se aplainava, formando um oceano imaginário. Meus olhos continuavam firmes naquele mar, enquanto o delírio do sono ia invadindo minha consciência. Algo em mim, quiçá o espírito descansado que me usara como cavalo até então, deixou a carcaça recostada na catana e saiu, lepidamente, em seu passeio pelo tempo. Levou-me de volta a tantos lugares felizes da infância que, quando me vi num trem, cheguei a remexer-me na sapopemba, no afã de não seguir viagem. Estava sendo levado para o seminário. Eu era mais puro que um diamante encravado numa rocha virgem. Na corrida veloz das lembranças, cheguei a um monturo, em que, logo abaixo, as ondas do Atlântico arrebentavam-se entre as pedras do sopé. Reconheci aquele morro, rodeado de sapotis e mangueiras, relvas de beira de morro e praias, de paredes misteriosas em que se tramava e se criava angústias, usurpando das cabecinhas ingênuas, a pureza e a simplicidade.
Não sei por que os homens têm tanta pressa em fazer a gente conhecer o certo e o errado deles, tanta pressa em tornar as crianças grandes ou adultas, tanta pressa em plantar angústia nos corações ingênuos. Estou no seminário, algumas décadas mais novo, sonhando. Sabe, é bom a gente sonhar e saber que está sonhando. Comigo é quase sempre assim. Fui descendo a encosta sob a luz do luar. Uma réstia de claridade alumiou a pedra do tropeço. Puxa, nem a pedra foi retirada. Quantas unhas arrancou aquela pedra traiçoeira, bem na curva da estradinha! A praia estava quase deserta. À luz do luar, lobriguei um vulto esquivo, sentado em cima da pedra que divide a praia Santa Helena da do Canto. Estava absorto em seus pensamentos: olhar de quem olha sem enxergar. Fui-me aproximando. Não precisava ter medo, pois sabia que estava sonhando. Ele também não estava com medo, além da insegurança que demonstrava ao apalpar os espaços sombrios que separam as galáxias. Aproximei-me a dois metros:
– Olá, companheiro de lutas, que anda fazendo aí a esta…
Ele virou o rosto. A voz morreu-me na garganta, pois vi em cima daquela pedra a mim mesmo. Olhou-me surpreso, e seus olhos eram tristes.
– Sente-se. Nossa amizade é profunda e dispensa qualquer apresentação. Ainda de pé, respondi:
– Quanto maior a amizade, maior o cuidado. As afinidades descobrem a alma, e uma alma desprotegida, torna-se mais sensível, mais fácil de ferir.
Percebi então que minha alma respondia a meu corpo, que havia um corpo que queria ser animal e uma alma amuada que não sabia como conviver com um parceiro de gênio tão difícil.
– Vejo, pelo que traz debaixo do braço, que a obra está iniciada.
– É, escrevi os primeiros capítulos. Estou com medo do assunto, mas preciso ir em frente. É sempre bom começar alguma coisa para se ter oportunidade de terminar.
– Não é medo que vejo nos seus olhos bem límpidos e azuis. Eles refletem grande paz e alegria.
– Não confie tanto nisto. Olhos verdes ou azuis, também podem esconder cores negras e muita dor. Olhe para um homem que chora; olhe para outro que sorri. Está certo de qual é, na verdade, o mais infeliz?
– Faz sentido, faz sentido! Mas, acabe de chegar e sente-se por favor. Estava mesmo com saudade daqueles bate-papos tão distantes, em que ficávamos discutindo as razões de tudo. Lembra, por exemplo, de quando discutíamos sobre o perdão?
– Hoje não discutiríamos mais. Sei que ninguém esquece as ofensas e que poucos perdoam com o coração. Contudo, jamais devemos declarar nossa indisposição ao conciliamento. O homem sensato quieto, não mostra seus sentimentos ao inimigo. Assim ele terá ainda uma pequena chance de usufruir de algum favor daquele que o ofendeu. – Agindo assim, continuaremos sendo bons?
– Não, não seremos. Seremos bons e estimados apenas enquanto servirmos. Quando alguém se cansa de dar e tenta receber, é sinal que deixou de ser bom.
– Mas, então, de que vale o nosso sacrifício? Tudo será ilusão?
– Vale a pena lutar, ainda que seja para sonhar com as ovações da vitória. Todo sacrifício equivale a uma força desprendida em favor de um objetivo. Por isso, se tem um sonho, vale a pena lutar por ele.
– Bem, já que veio, podíamos pôr em dia nossas ideias. Está disposto? – Sempre estou disposto. O pensamento é o mais puro alimento das ideias; as ideias refletem o espírito de quem as emite e quem as emite com sinceridade, está sempre seguro do caminho certo, ainda que esteja caminhando em direção oposta. A gente é o resultado do que pensa.
– Na última vez não conseguimos provar a divindade de Jesus Cristo, lembra? Você estava extremamente conturbado.
– A bem da verdade, não chegamos a um acordo. Tem coisas novas?
– Sim, Jesus era Deus, vindo do céu. Revelou-se nele o que há de mais divino no homem e de mais humano em Deus.
– Mas na Bíblia, Ele mesmo não se diz, em muitos pontos, conhecedor pleno das coisas do Pai. Como homem Ele se encarnou plenamente. Até para saber o que sabia teve de estudar duramente, possivelmente com os essênios. A natureza humana que assumiu, foi plena. Por isso Ele não sabia, como homem, das coisas do Pai. Veio do céu, tinha carisma e vocação e foi por meio de estudo e oração que acabou tomando consciência de que Ele era, de fato, aquele que o Pai havia prometido a Abraão e ao mundo. Jesus foi homem em toda extensão da palavra. Sentiu todos os nossos desejos, a nossa fome, a nossa sede, os nossos impulsos irascíveis, os nossos cansaços, a nossa preguiça…, só com uma grande diferença: Ele venceu todas estas fraquezas pela força de vontade e pela oração constante. Não foi por menos que disse que qualquer um poderia fazer coisas ainda maiores das que fez.
– Por isto, Deus é amor?
– É, Ele é amor, e tudo que fizermos com amor é virtuoso.
– Abrangentemente?
– Sem exceção alguma. Deus não olha o que fazemos, mas como o fazemos.
– Deus, pois, é bom e também justo?
– É, mas com livre opção de uma ou de outra prerrogativa, dependendo do tempo e da situação.
– Ora, amor e justiça não formam um mesmo predicado?
– Não. Amor, como bondade, é o contrário de justiça. Por amor pode-se perdoar o pecador, mas por justiça, o pecador deve ser castigado.
– Como explicar então, a bondade e a justiça de Deus?
– O amor ou bondade de Deus é aplicado, mais comumente, aos homens enquanto vivos; a justiça, depois de mortos. Enquanto vivos estamos sujeitos à bondade de Deus. Em se morrendo receberemos com justiça, os louros ou os castigos pelo que fizemos nesta vida.
– Se Deus é bom para com os homens, por que tanto sofrimento?
– A miséria que assola o mundo é apenas uma acusação constante do Criador contra os seres humanos. É o resquício, o sinal de sua justiça pela perversão do bem. Ponha-se no início de duas estradas. Você não as conhece. Chega alguém que conhece e diz que a da direita é asfaltada, larga, sem tropeço algum; e que a da esquerda é horrível, esburacada, cheia de atoleiros e abismos. Que não se lastimem depois aqueles que escolherem, por livre e espontânea vontade, a estrada da esquerda. Jamais poderá acusar ao informante.
– Esta miséria irá acabar um dia?
– Não enquanto o mundo existir.
– E aquela história de um só reino e um só pastor?
– Já poucos homens não têm uma divindade para adorar, e esta divindade, no fundo, é sempre o mesmo Deus criador. Mudam-se as formas de glorificá-Lo, de adorá-Lo, de nominá-Lo, porque são muitas as tradições e os costumes dos povos. Sol, Lua, Júpiter, Minerva, Jeová, Jesus, Alá…, tudo isto é uma questão de cultura, de tradição e de fé. Por isto Júpiter fez chover em cima da fogueira de Creso (por sua fé) para salvar-lhe a vida. Júpiter não é Deus, mas Deus pode ser Júpiter na mente daquele que, convictamente crê.
– Afirma que todas as religiões são verdadeiras?
– Todo aquele que acredita honestamente em alguma coisa, está certo. O verdadeiro Deus olha a intenção e ensinou que quem não é contra é a favor. Assim é mais fácil esperar que haja, um dia, um só reino e um só pastor.
– Tudo tem explicação, até mesmo o Apocalipse de João ou os mistérios mais profundos. O que falta sempre é a extensão de conhecimento para explicar e resolver as incógnitas.
– Como será o Reino de Deus?
– Será como uma luz que dissipará as trevas de nossa ignorância.
– Não seremos nunca um agrupamento de seres humanos com as mesmas ideias, mesmas crenças, mesmos costumes e mesmo senso de justiça?
– Limito-me a repetir que tais esperanças de justiça e paz, não passam de sonho utópico. Assim queria a República de Platão; assim idealizou Campanella em sua Cidade do Sol; Kant, na Cidade da Eterna Paz; Marx, no Paraíso do Proletariado; Hegel, no Estado Absoluto; Teilhard de Chardin, no Amor Total. Até nossos índios Tupis-Guaranis imaginavam um lugar cheio de caça, águas límpidas e piscosas, um mundo além em que todo sofrimento desapareceria.
– Nós, então, sozinhos, somos um universo pleno?
– Exatamente. Somos um universo pleno em que Deus faz vibrar a força de suas promessas. É em cada um de nós que se deve passar tudo o que foi prometido pelo Criador.
– Não se deve, assim parece, ter uma religião.
– As religiões são ensinamentos tradicionais das verdades de nossos antepassados. Estão aí para se ajustarem ao senso crítico de nossa verdade. Todas elas são falhas, pois como acentuou Leonardo Boff, até os eclesiásticos sofrem a influência das articulações históricas. Isto não deve afetar nossa fé, pois apenas Deus é perfeito.
– Deus é mesmo onisciente? Antes do universo ser criado, sabia Ele que estaríamos aqui em cima desta pedra, conversando sobre isto?
– É o que se tem como verdade até hoje. A Bíblia, porém, tem indicações distorcidas ou mal interpretadas a este respeito. No Gênesis, 6.6, lê-se: “Arrependeu-se (Deus) de ter criado o homem na terra.” Ora, fica difícil admitir-se que o arrependimento possa afetar alguém que tem pleno conhecimento das consequências de seus atos.
– Ele é infalível?
– Fica mais difícil ainda admitir-se um Deus que não seja assim.
– Mas então, por que o arrependimento?
– Os tempos, certamente, modificam o sentido exato das palavras. Não existe língua alguma no mundo capaz de exprimir, perfeitamente, os pensamentos e as ideias.
– E o papa da Igreja Católica, é mesmo infalível?
– Só Deus poderá sê-lo.
– Não é o que ensinam.
– Sim, não é o que ensinam, embora a infabilidade seja restrita apenas às coisas pertinentes à fé e aos costumes universais.
– Sua maneira de responder tudo, cheira-me a dono da verdade.
– Você me dirigiu uma pergunta. Eu a respondi por mim, para não trair meu entendimento. O que disse, tenho certeza, é verdade, ainda que seja mentira.
– Afinal, o que é a verdade?
– Se fosse abrangente, Jesus teria respondido a Pilatos. Melhor seria que perguntasse quais são as verdades. Aí eu teria de ouvir cada ser humano, pois como já se disse, em cada cabeça há uma sentença, uma verdade, um ângulo de ver as coisas.
– Para que servem as leis, então?
– Para aplicar a justiça comum; as bíblicas para provar que nós mesmos seremos nossos próprios juízes no julgamento. O que entendíamos como certo, será certo; o que acreditávamos errado, será errado.
– Um pouco confuso!
– Toda confusão provém da limitação de nosso entendimento. A incoerência no homem, prova-o normal.
– Que fazer quando não se está certo de nada?
– Buscar a certeza.
– Onde?
– Em Deus.
– Como?
– Pedindo.
– Ora, você sabe muito bem que faço isto desde criança, sem jamais conseguir. Como explica?
– Olhe uma barreira que cerca as águas. Apesar de todo seu desejo de vê-la fluir, se não abrir uma brecha, jamais escorrerá. Somos sempre envolvidos pela graça de Deus, mas se não abrirmos um buraco por meio de ferramentas que podemos chamar de “aceitação”, jamais ela penetrará na gente. E preciso ter humildade, reconhecer nossa limitação e entregar-se plenamente. Aberta a brecha, a certeza nos invadirá totalmente.
– Como pedir fé, se não a temos para fazer o pedido a Deus?
– Todos nós viemos de Deus e não há ninguém que não se lembre com saudade desta particularidade. Por isso, os que não acreditam plenamente, duvidam; e quem duvida, acredita, pois jamais há cepticismo em quem está certo de alguma coisa. E esta chama tênue de fé que teremos de avivar com tudo o que temos direito.
– Fé! O que é fé?
– É a consciência e a liberação da maior força universal existente. “Tudo é possível àquele que crê.”
– Deus, pois, é fé?
– Melhor seria dizer que a fé é a definição de Deus, porque aquele que acredita, quer uma coisa possível, e luta para consegui-la, fatalmente conseguirá. Foi pela fé que Jesus acalmou a tempestade do mar, ressuscitou Lázaro já cheirando mal depois de quatro dias enterrado….
– Toda luta do homem é convergida para a salvação da alma. O que é alma?
– Até hoje ninguém conseguiu uma explicação satisfatória sobre isto. Penso, pois, que nós mesmos somos a alma. No juízo final ressuscitaremos e receberemos justiça tal como somos. Eis aí a alma, nós mesmos, ou seja, a união amiga do ser com o não ser, da vida com a morte, assim como a amizade ou a necessidade da lesma com o caramujo. Passaremos a viver (os escolhidos), para sempre e bem unidos. A passagem por esta terra é apenas “uma prova de vestibular” a nós impingida pelo Professor dos professores.
– Não haverá um único julgamento?
– Sim, no Juízo Final.
– Como explica Lucas, 23.43? “Em verdade te digo, que hoje serás comigo no paraíso?”
– A linguagem mais perfeita do homem é o simbolismo. Por isto Deus a escolheu para nos transmitir suas mensagens. Diante da eternidade, o tempo perde todo sentido. Aquele que morrer em graça, já está salvo, assim como condenado será no juízo, aquele que morrer em pecado mortal. Ninguém poderá ser julgado tão logo morra, pois, os efeitos de seus atos perdurarão enquanto existir vida no planeta. Seremos premiados ou castigados pelo bem e pelo mal que praticamos ou incutimos aos outros. Somente quando cessarem seus efeitos com a destruição da terra e consequentemente a eliminação da vida, é que ressurgiremos no Juízo Final para recebermos o que nos for justo.
– A terra será destruída?
– Todo universo, um dia não o será mais. Não há matéria que não retorne de onde veio, ou seja, do nada presumível.
– Dizem que o limite de tudo quanto há, é o nada ou o infinito. Qual seria o ponto demarcatório do nada?
– Há coisas que não podemos compreender. Nosso raciocínio tem limite e após ele, tudo é mistério, ou se preferir, ignorância humana. Estas coisas são para nós inexplicáveis como o é para um menino de dois anos, o teorema de Pitágoras. No entanto, o teorema é até bastante simples para quem conhece matemática.
– Muitos tentam explicar o aparecimento de tudo. As explicações têm fundamento?
– Até as verdades têm seu tempo. Antes de Copérnico e Galileu, a terra era o centro do universo.
– Acho que entendi o que quis dizer.
– As pessoas inteligentes não têm muita dificuldade em entender as coisas. Acredita na reencarnação?
– Nada é impossível a Deus, e para tudo as teorias têm explicações. Daí à verdade, a distância é tão grande quão grande é a diferença entre nosso entendimento e o de Deus.
– Por que Jesus, sendo Deus, não foi mais claro em certos pontos tão polêmicos?
– Jesus, enquanto homem, não tinha os conhecimentos totais do Pai. Muitas coisas Ele morreu sem saber. O dia do fim dos tempos, por exemplo: “A respeito, porém, deste dia ou desta hora, ninguém sabe quando há de ser, nem os anjos no céu, nem o Filho, mas só o Pai”. Marcos, 13.32.
– Santo Agostinho diz que para se salvar não é bastante a gente querer, é preciso antes que Deus o queira. Isto seria acreditar na predestinação?
– Poucos sábios foram mais volúveis que Santo Agostinho. Lutou a vida inteira pela coerência filosófica das verdades e acabou morrendo sem desvendá-las todas. Não se lembrou que era homem. Durante muito tempo brigou para fazer prevalecer as ideias dos maniqueus, e durante outro tanto de tempo, para destruí-las. Quem quer salvar-se e luta com todas as forças para isto, certamente conseguirá. Afinal, nosso Deus se define como bom e justo, e condenar alguém por simples determinação não condiz com um Deus desta natureza.
– Então não há predestinação?
– Somente em alguns casos muitos especiais.
– Mas Judas não veio para cumprir as Escrituras?
– Absolutamente. As Escrituras, inspiradas por Deus onisciente, sabiam que Judas, não aceitando a graça de Deus, iria trair o Filho do Homem. Se vejo alguém que vai se lançar do décimo andar na calçada da rua, sem proteção alguma, poderei predizer sua morte, embora não tenha tido interferência alguma no acidente.
– Muita gente acha que é inútil lutar, pois o destino está traçado.
– Pensa mal quem pensa assim. A ninguém, exceto aos predestinados de fato, determina Deus o caminho. Somos felizes ou infelizes por nós mesmos. É o respeito de Deus à liberdade humana prometida.
– Por que muitas pessoas preferem as festas vãs, a concupiscência, as libertinagens, os roubos e toda sorte sórdida de viver, no lugar de seguir a Lei de Deus?
– Porque nunca conheceram ou quiseram conhecer o outro lado.
– Não entendi.
– Não há prazer que supere a felicidade de estar em paz com a própria consciência. Se houvesse um aparelho para comparar a alegria e a felicidade de uma pessoa que vive na graça de Deus, com outra que só vive em orgias e prazeres, então os homens sentiriam como é falsa a felicidade fundamentada nas riquezas deste mundo. Quantos há que desdenham o sabor de um prato grego, russo ou japonês, sem tê-los jamais experimentado? Assim também são as pessoas que nunca viveram os princípios divinos. Leiam o relato dos sete irmãos Macabeus e sua mãe; dos primeiros mártires jogados aos leões; de Joana D’Arc em cima da fogueira…, e entenderão a distância que existe entre crer e não crer, em andar certo e em permanecer no erro.
– Há pessoas que nascem e morrem no sofrimento, outras, na riqueza. E justo isto?
– Ninguém morre. Há pessoas que sofrem dignamente neste mundo e são felizes no outro; e há as que são ricas, que vivem em orgias e prazeres aqui e que, dificilmente, o serão no outro. Todo homem tem direito a um tempo de felicidade. A escolha: se deste ou do outro lado, é de cada um.
– Que acha da luta dos sindicatos e das igrejas, em favor dos descamisados?
– Assim Cristo ensinou, e nós seguiremos a Ele, porque é o Filho de Deus. Não se deve esquecer, porém, que há mais felicidade no céu por um pecador redimido do que pela perseverança de um justo. Você sabe o que tento dizer.
– Por que o homem só ama o que lhe parece belo?
– Porque só as coisas belas devem ser amadas. O conceito de belo, porém, e variável, e assim, ama-se errado e tão somente o que apenas tem aparência de belo. O belo tem ligação íntima com o perfeito, e só Deus o é.
– Há felicidade fora de Deus?
– Apenas efêmera e aparente. Fora de Deus, tudo é ilusório, mentiroso e passageiro.
– Um homem, por meio de sua sabedoria, poderá explicar e entender Deus?
– “Ainda que numerem as estrelas e as areias, ainda que meçam as regiões siderais e investiguem o curso dos astros”, jamais o maior dos sábios se avizinhará do lugar em que chegam os simples e humildes, pois esta é a vontade de Deus. E todas estas coisas – e muito mais – já estavam numeradas, medidas e pesadas há milhões de anos.
– Responde-me como um sábio?
– Tudo o que digo é a mais pura verdade.
– Posso acreditar cegamente nelas?
– Somente se estiver vendo as coisas pelo mesmo ângulo que olho.
– E como as olha você?
– Com sinceridade e boa intenção.
– Então, posso chegar a conclusões contrárias e estar certo?
– Sem dúvida alguma, desde que o faça com intenção sincera.
– De que nos adianta buscar a convicção ou as verdades?
– Se conseguir acreditar que ali embaixo, na areia da praia, está uma valiosíssima pedra preciosa, certamente descerá para apanhá-la. Se duvidar, poderá ir ou não. Se acreditar que não há nada, jamais se dará ao incômodo de tal trabalho. O homem que acredita, toma decisão.
– Gosta de minha companhia…
Uma onda mais forte respingou meu rosto, despertando-me. Eram os primeiros pingos de uma chuva fina que começava a varrer a montanha.
AH, SE REALMENTE CRÊSSEMOS!
Ah, se de fato acreditássemos! Tudo seria fácil, muito mais fácil. É difícil – ou impossível – conseguir alguma coisa sem a ajuda da convicção. A dúvida deixa os homens dispersos…. Não há justificativa para a abnegação e o sacrifício, vivendo na insegurança. Ah, se de fato acreditássemos! Quando a gente tem certeza de alguma coisa, a caminhada é suave e tranquila. Reacende a determinação, o caminho se alarga e não há empecilho que nos esmoreça. Ninguém faria nada de errado se realmente acreditasse nas consequências. Quem se atirará ao fogo, espontaneamente? Quem saltará de um navio em alto mar para ficar à deriva?
As pessoas quando estão certas de uma coisa, agem com sensatez ou, pelo menos, assim deveriam fazer. Se estão convictos de uma coisa, não esmorecem: agem para alcançar o objetivo.
Ah, se fosse possível crer sem reservas! O mundo seria outro mundo; as pessoas, outras pessoas. Mas, somo é difícil crer assim! Perdidos em nossa inconstância, vamos tropeçando, sofrendo e sofrendo.
Ah, se pudéssemos afirmar com o coração: De fato, Deus existe! Como seriam diferentes os nossos sorrisos, as nossas ações, os nossos tratos com o semelhante. Mas a gente acredita duvidando. Vemos na escuridão metuenda de nossa mente, nas águas eternas de nosso oceano de dúvidas, uma remota possibilidade de, um dia, ter de prestar conta a alguém muito superior às nossas forças. Este alguém poderá massacrar-nos, impingir-nos castigos eternos… Medo. Apenas resquício de temor possível: salto no escuro.
Ah!, por que tem de ser assim? Por que deixaram esta opção confusa ao nosso entendimento? Como é difícil crer plenamente! Por que acreditar sem ver no que apenas se imagina? Por que a fé e não o tato? Por que esta escrita confusa, estes símbolos salvatérios, esta magia de palavras e enunciados, aparentemente paradoxais, estes acontecimentos incríveis que dizem e desdizem, que provam e desaprovam, que vivifica e ao mesmo tempo mata? Mesmo assim, é preciso crer; sem a fé não há salvação.
Ah, como seria bom se pudéssemos crer! Confiar, em detrimento da ciência, das provas, das aparências. Quão maravilhoso seria se pudéssemos entender, “apalpar com o tato” de nossa limitada razão. Mas não é assim, nunca foi e, certamente, jamais o será.
Por que assim, ó Criador de nós? Nada há, existiu ou passará a existir, sem sua permissão. Está em todo lugar, em todo momento; cavalga em cada átomo do infinito e nenhum cabelo se desprende sem sua ciência. Até o mal foi criado. Tudo existe porque quer e só existirá enquanto quiser. Tudo é seu, só seu e de mais ninguém. Ah, como seria bom se pudéssemos entender essas coisas!
Vejo o mundo perdido, o mal arraigado, infiltrando-se, destruindo, aniquilando a tudo e a todos. Vejo tudo isto, sinto que estamos entre penhascos desolados, permeio a um infinito de estradas diversas, na plena escuridão das incertezas.
Por que tem de ser assim? Ah, como seria bom se pudéssemos entender essas coisas! Saber o porquê de Deus haver escolhido este caminho. Minha alma vive angustiada. É difícil ter paz sem acreditar plenamente.
Precisamos acreditar. A fé é o nosso passaporte perdido, precisamos dele, precisamos encontrá-lo. Não me peçam a simplicidade dos ingênuos, nem a ingenuidade das crianças, ou ainda, a mentira dos que afirmam apenas para enganar. Preciso de uma afirmativa da alma, endossada pelos sentimentos puros do coração. Por que Deus escolheu este caminho? Por que não elimina o mal e deixa sua criação feliz? Que reino poderoso e adverso é este que impede? Será impossível ao Criador de tudo, desfazer o mal? Criou Ele um ente rebelde do qual não poderá mais se livrar? Que guerra é essa? Onde e por que se firmou este acordo?
Ah, como é bonito um ser humano que crê, que tem fé! Não acredito haver nada mais maravilhoso que uma criatura prestativa, sem maldade, justa e paciente. Por que não somos todos assim? Por que a ganância, o egoísmo, a sede do poder e do prestígio? Por que tem de ser desta maneira? Ah, se pudéssemos saber o porquê de tudo isto! Se irrompesse dentro de nossa alma uma luz forte que clareasse os desvãos mais obscuros e tristes onde se aninham as incertezas, as angústias, as descrenças… A gente ouve conselhos, lê grandes místicos, emociona-se com relatos milagrosos, convive com gente cheia de fé; também com gente incrédula, perdida num mundo de incertezas. Ora provas, ora falta de provas; ora Deus intervindo, ora um Buda fazendo maravilhas no comportamento humano. Ora um grito de fé em nome do Deus único rompe as leis naturais; ora um grito de fé, em nome de um deus estranho, também parece operar maravilhas… A visibilidade do longo caminho é ruim, a chegada urge. Temos que caminhar, seguir e seguir.
Ah, como seria bom se não existisse a dúvida! Como seria maravilhoso, se a humanidade inteira tivesse um só Deus e conseguisse entendê-Lo! Como seria bom se o meu Deus se definisse conforme meu entendimento! Como seria bom se crêssemos de fato!
A dúvida é a amargura do mundo, o desassossego da alma e a fonte viva do infortúnio que grassa nos corações. É por falta de fé que se mata as mais lindas determinações, que se avilta a justiça… que se deixa para trás, o rastro deprimente da fome, da miséria e das injustiças sociais.
Ah, se pudéssemos crer! Se a fé penetrasse nos corações, ainda que não entendêssemos o mistério. Se fôssemos como as crianças que imaginam um velho de longas cãs, sentado em cima das nuvens, olhando para baixo, às vezes zangado por causa dos palavrões, das pirraças…. Se fôssemos ao menos assim!
Ah, como seria bom se, de fato, eu pudesse sentir aquele prazer indizível dos raros convictos. Mas não é assim que as coisas se passam. Fica-me no lugar, uma angústia massacrante por uma luta sem segurança, sem certeza. Ah, a fé! Coisa simples das mais intrincadas. Não adianta apenas querer… ela é uma graça, uma semente sem opção. Nem todos a têm e nem em todos ela nasce e cresce. A fé, nem tanto de nós depende. Resta-nos pedi-la, mas é muito difícil consegui-la, sem crer… e pior ainda, crer sem tê-la.
Ah, o dia que todos crerem! Dia de festa, de paz… Congresso eterno do Reino de Deus, que se fará à revelia de nossas angústias. Será a volta do filho pródigo, a volta do ser criado ao regaço de seu Criador, depois de tantos deslizes e indecisões pelos percalços da existência.
O homem veio de Deus, por isto não O esquece, por isso a necessidade extrema de reencontrá-Lo. Haveremos de, mesmo perdidos, caminhar nesta direção, pois estas reminiscências, segundo Platão e Santo Agostinho, são as provas incontestáveis de que viemos das plagas de Deus.
Quando estivermos do outro lado, tudo ficará claro e insofismável. Veremos então e exclamaremos também, estarrecidos diante de nossa incredulidade extrema: Ah, como teria sido simples, se tivéssemos crido. Nesse dia, a fé não terá mais razão de ser – deixará de existir. Decantar-se-á a fórmula dos contrários que originaram as definições de tudo, e tudo o que é mal e incerto, será suprimido para sempre. Olharemos de lá para os que ainda se debatem na terra e ficaremos penalizados de vê-los estonteados diante de tantas dúvidas. E ali, em cima das nuvens, um velho de cãs bem grandes, bonachão, justo e poderoso, rodeado de nós, continuará olhando para baixo, com a paciência eterna de um deus. Sim, porque Deus é fé, e será sempre inútil buscá-Lo nas ciências e nas comprovações. Ele é esta fantasia das crianças, mais real, porém, do que o ar que respiramos e do que o sol que brilha sobre nossas cabeças duras.
Você que vai e que vem pelos duros caminhos da vida; que fica triste, muito triste e, ás vezes, sorri; que não tem caminho definido a trilhar; que como a terra, segue na sua reide incansável pelo infinito, sem ter lugar algum para chegar; que quanto mais luta pela fé, mais dela se sente afastado; que anda por aí em tropeços e angústias; que erra e erra, e depois se entristece; que quer tanto ser um homem honrado, e acaba sempre no desconforto da pusilanimidade; que não encontra mais razão de ter nascido; que perdeu um ente querido; que foi menosprezado e traído no amor; que acreditou e ficou frustrado; que quis entender e não encontrou razão; que luta desde menino, no trabalho estafante, na labuta dura ao sol; que tenta sobreviver honestamente num mundo egoísta; que pé ante pé procura o lugar seguro para pisar em meio ao lamaçal da vida; que ergue os olhos como a buscar amparo, e só vê estrelas, imensidão, insegurança, tudo e nada; que inveja as pessoas que o cercam; que se considera a mais vil e desprezível das criaturas; que reclama, desdiz, lastima-se de sua condição e meio; que se acovarda diante dos infortúnios e se faz vítima diante da má sorte e dos reveses! Ah! Você, que é apenas mais um entre nós: com certeza é apenas mais um, nada tem de diferente. Não sofre nem é mais feliz que ninguém: é apenas mais um. Não inveje o semelhante, pois que, certamente, ele gostaria de estar no seu lugar.
Somos todos iguais, com incertezas, dores e sofrimentos; com apenas lampejos de alegria, e fagulhas de felicidade. Aquilo que sente e que faz; os caminhos que anda; o espaço que ocupa; as palavras que pronuncia; as revoltas que sente; as necessidades que arregimenta numa sociedade egoísta; o orgulho, a inveja, a ganância, a deslealdade, as tramas, as infidelidades, os desejos escusos, as desonestidades, tudo, tudo mesmo, são achaques naturais que avassalam sua alma e o deixa acabrunhado e desorientado diante de sua consciência. Todos nós somos iguais no espaço relativo de nosso mundo psíquico; na graça relativa recebida de Deus; nas aptidões e carismas que cada um recebe ao nascer. ”Quem recebe muito, prestará conta do muito; quem pouco recebe, pouca conta tem a prestar.” Nem todo assassino é tão culpado, nem todo santo tão virtuoso. Só Deus sabe quanto um homem progrediu ou regrediu na vida. Nossa função não é ser santo, exclusivamente. Há, entre nós, aqueles que, cujo mérito está em ser apenas, menos criminoso ou mais santo.
Ah!, você que mete as mãos nos bolsos rotos e encontra-os vazios; que vê na casa de ricos, prateleiras repletas de iguarias, enquanto seu estômago dói; que respira a poeira imunda da rua, erguida por um carro de luxo veloz, sem poder ter para si, uma bicicleta; que olha, maravilhado, as lojas, enquanto os remendos de sua roupa se desagregam e rasgam! Que passa as noites no cortiço, ouvindo a melopeia dos mosquitos; a cantilena dos sapos; os uivos melancólicos de cães esqueléticos e sarnentos; que passa horas acordado por não ter uma coberta para amainar o frio cortante! Ah!, como pensa ter o direito de se revoltar contra Deus e contra a vida? Por que inveja a mansão cercada de vigias, de cães ferozes e aparelhos sofisticados? Ah, como você é inocente! Lá dentro, estão criaturas como você, enganadas pela falsa ideia de que a felicidade está no conforto e nas riquezas. Lá também, amigo, pulsa um coração de carne; vive um ser humano cheio de defeitos, de fraquezas e desejos vãos, de tudo o que corrompe e corrói. Somos todos iguais. Ricos e pobres sofrem e têm curtos momentos de paz e felicidade. Não inveje ninguém. Enquanto lhe dói o bolso vazio, dói ao abastado, a ansiedade de ter sempre mais; enquanto o seu estômago dói de fome, o de muitos homens doem por excesso de comida; enquanto tilinta de frio nas noites de inverno, rola sob o cobertor felpudo, o avarento, por um mal negócio ou uma grande conta a saldar. E assim, todos sofrem, todos se tornam iguais no sofrimento. Agora, se quer ser diferente, procure melhorar a índole que Deus lhe deu; procure aplicar bem as dracmas que recebeu ao nascer. Se uma coisa muito forte o impele ao crime, aos roubos, às drogas, ao mal em si, não se assuste tanto. Procure matar menos, roubar menos, procure afinal, com todas suas forças, melhorar. O resto não é de sua responsabilidade. Se é um cara que dizem “legal”, lembre-se que isto pode ter sido dado a você gratuitamente e não lhe estar custando esforço algum. Se assim for, terá mais conta você a prestar a Deus, do que o criminoso que lutou para cometer menos crimes. Não tenha dúvida que terá muitas surpresas quando desembarcar na estação da outra existência e ver na sua plataforma, demônios e santos reunidos. Só então saberá quem é quem, quem sou eu e quem é você.
BÍBLIA, FONTE DE SABEDORIA E DE APARENTE CONTRADIÇÃO
Hoje, existem espalhados pelo mundo milhões de livretos de pensamentos célebres, todos entre tarjas brilhantes, destacados com letras de forma, enaltecendo o autor do brilhante enunciado. Ficamos maravilhados com tais celebridades, cujo único esforço talvez tenha sido o estudo acurado da Bíblia. Para qualquer pessoa que se dê o esforço de uma leitura atenciosa do Sagrado Livro de Deus, perceberá, sem sombra de dúvidas, que ali se encontra resumida toda sabedoria moral e filosófica do mundo.
Alguns exemplos de estrita semelhança: Sólon: Não se diga que alguém é feliz antes que morra. Bíblia: Por isso os ímpios não ressurgirão no juízo, nem os pecadores na congregação dos justos.
Sófocles: O homem ri e chora conforme Deus dispõe. Bíblia: Vede que só eu sou Deus e que não há outro fora de mim. Eu matarei e farei viver; ferirei e curarei, e não há quem possa tirar de minha mão cousa alguma.
Pitágoras: É difícil percorrer ao mesmo tempo vários caminhos de vida. Bíblia: Todo reino dividido contra si mesmo, será desolado.
Epiteto: Lembra que és apenas ator numa peça na qual o diretor determina seu papel. Bíblia: Quem formou o mudo e o surdo, o que vê e o que é cego? Não fui eu?
Eurípedes: O caráter do homem é formado pelas pessoas que escolheu para conviver. Bíblia: Com o santo, serás santo, e com o robusto, perfeito. Com o puro serás puro e com o perverso, far-te-ás perverso.
Demócrito: A felicidade não reside nas riquezas materiais, mas na alma. Bíblia: Por que de que aproveita o homem ganhar todo o mundo se vier perder a sua alma?
Gandhi: Todas as minhas experiências provaram que não existe outro Deus, a não ser a verdade. Bíblia: Eu sou o caminho, A VERDADE e a vida.
Luciano: A vida do homem simples é a melhor e a mais racional; portanto acaba com esta tolice de sondar os céus, de pesquisar motivos e fins. Bíblia: Não procures saber coisas mais difíceis do que as que cabem na tua capacidade, e não especules as que são sobre as tuas forças intelectuais; mas cuida sempre naquelas em que Deus te mandou cuidar, e em muitas das suas obras não sejas curioso, porque não te é necessário ver com os olhos o que está escondido. Não te apliques com muita atenção em cousas escusadas, e não examines com curiosidade as diversas obras de Deus; porque muitas cousas em grande número te têm sido patenteadas que excedem o entendimento dos homens.
Não resta dúvidas que se continuássemos pesquisando iríamos encontrar toda sabedoria de Deus parafraseada. Isto não quer dizer que muitos não digam ou já disseram, por si próprios, verdades que tocam o coração. O que afirmo é que, apesar deles terem descoberto sozinhos tais pensamentos, eles já existiam na Bíblia há milhares de anos.
Mas, esta mesma Bíblia tão sábia e citada, nem sempre nos parece coerente. Com liberdade a múltiplas interpretações, ela consegue confundir, deixando os homens perdidos quanto ao discernimento do que seja mais correto e verdadeiro. Até hoje, não consegui atinar qual a intenção do Criador ao inspirar verdades, a nós, tão ambíguas. Com suas parábolas, Jesus conseguiu provar aos homens que Deus e a própria vida existem, exatamente, para não serem entendidos plenamente por todos. Para os que imaginam que Deus enviou seu filho Jesus para salvar a humanidade, esclarecer dúvidas, vencer o mal e fazer reinar a paz e a felicidade entre os homens, certamente concluirão que Ele só conseguiu em parte o Seu intento. A Bíblia nos diz que Jesus é Deus. Ninguém duvida da onipresença e onisciência de Deus, logo, Jesus deveria, como Deus, saber de todas as coisas, inclusive das futuras. No entanto, perguntado sobre os fins dos tempos, Ele afirmou: ”A respeito porém deste dia ou desta hora, ninguém sabe quando há de ser, nem os anjos no céu, nem o Filho, mas só o Pai.”
Desconhecendo-se de que Deus, quando se fez homem, fê-lo plenamente, ficará difícil admitir que Jesus tenha sido nosso Deus descido dos céus. São em pontos assim que a Bíblia confunde sobremaneira. Há sempre algo mais a ser considerado, algo mais profundo, algo mais que transcende o alcance de nossa inteligência. Jesus Deus, ou somente Filho de Deus, é um questionamento antigo, sobre o qual já tantos ascetas e teólogos tentaram, inutilmente, chegar a uma conclusão. Na verdade, Jesus Deus ou Jesus Filho de Deus, não afeta senão nossa plena ignorância.
O livro de Deus tem ainda muitos outros enunciados que confundem nossa limitada razão. Isto certamente é coisa humana, mas perturba muito aqueles que se baseiam, letra por letra, no livro inspirado. Percebe-se, por exemplo, que três dos quatro apóstolos afirmam que todos os dois ladrões crucificados com Ele, diziam impropérios. Um porém atesta que um se arrependeu e que Jesus respondeu-lhe: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso.”
Werner Keller aponta fatos como estes: ”Ora afirma que o homem foi criado em último lugar, ora em primeiro. O nome do sogro de Moisés é dado como Jetro, Raquel e Hobab.” Estas e muitas outras coisas, não se sabe se por excesso de liberdade de tradução, ou simplesmente por interpretações equivocadas, deixam o livro santo, às vezes, em situação desagradável. É inegável a existência de fatos, a nós, contraditórios: “Eu vim para que tenham a vida, e a tenham em abundância” ou “Ai do mundo por causa dos escândalos; por que é preciso que sucedam os escândalos, mas ai daquele homem por quem vem o escândalo.” ou ainda: “Para que vendo vejam, e não vejam; e ouvindo, ouçam, e não entendam; para que não suceda que alguma vez se convertam, e lhes sejam perdoados os pecados.”
Em Mateus, cap. 19, Jesus ensina que aquele que deixar em seu nome, a sua casa, o pai, a mulher, os irmãos…, receberá cento por um e possuirá a vida eterna, mas conclui: “Porém muitos primeiros virão a ser os últimos, e muitos últimos virão a ser os primeiros.”
Em Marcos, 14.7 “Porque vos sempre tendes convosco os pobres, para que quando lhe queirais fazer o bem lho possais fazer ”
Há ainda indicações de guerras, aberrações de todo tipo e sofrimentos indizíveis, em que Jesus afirma que “assim é necessário que aconteça”. Para que tudo isto se faça, há de ter um triste protagonista, um homem sempre em desajuste com o fim supremo de proporcionar igualdade e justiça: normas supremas de um Deus perfeito.
Diante da nossa falta de discernimento do que é certo ou errado, do que se deve levar em consideração ou não, daquilo que está escrito ao pé da letra ou daquilo que deve apenas ser subentendido, ficamos muito desorientados. São muitas citações com evasivas, numa afirmativa, a mim clara, de que também Deus, no Seu relacionamento íntimo e particular com o homem, apresenta exceção aos mandamentos. É coisa raríssima Deus optar por castigos, provações… (afinal Ele é amor e bondade), mas não acho isto totalmente incabível. Faz parte (humanamente falando) da exceção que prova a regra. Essas coisas, certas ou erradas, justificam a existência de muitas religiões, seitas e todo tipo de crença existente no mundo. Mesmo pelo bom senso, qualquer um pode entender que Deus existe; e que este Deus é bom e justo e fez tudo perfeito; e que este Deus gosta da gente e por isto nos enviou seu próprio Filho para que não nos extraviassem do caminho de chegar a Ele.
As lutas pela hegemonia da verdade religiosa é danosa, pois demonstra falta de pobreza de espírito, já que o Deus de todos ensina o bem, a compreensão, a caridade, a partilha honesta dos bens terrenos, a misericórdia, o perdão, a humildade… “Quem não é contra mim, é comigo.” Por causa das interpretações, das ideologias e do fanatismo, muitas pessoas, nos terreiros, nas mesquitas, nas igrejas, nos templos… digladiam-se em nome de Deus, como se Ele, Senhor da Paz e do Amor, se prestasse a tais ensinamentos de revolta e violência. Por mais que se erre, não há limite de perdão, nem ”setenta vezes sete”.
Há verdades que as religiões, por teimosia, orgulho ou interesse, negam-se a aceitar. O celibato dos padres católicos; o escrúpulo do vinho dos protestantes; a dura cerviz dos judeus que ainda continuam esperando o Messias… todos continuam escravos de ideologias, como se fossem políticos cegos em defesa do poder, da hegemonia e do enriquecimento. “Eis aqui está posto este menino para ruína e para salvação de muitos em Israel e pra ser o alvo a que atire a contradição.”
Deus sabia disto, mesmo assim deliberou como necessário. É muito difícil saber o porquê de Deus permitir que achemos as coisas tão confusas. Quem ler o Apocalipse e tentar explicá-lo, certamente dirá tantas asneiras, quanto diria um matuto ao equacionar uma viagem à Lua. Por que será que Deus não falou claramente a todos, se como onisciente sabia que isto iria acarretar tantas discussões e confusões? Dirá alguém: “É porque Ele quer fé e não comprovação.” “Não é o discípulo maior que o mestre”. É, parece que o mal está em querermos saber tudo. Deus permite que andemos quebrando a cabeça inutilmente, mas não nos ensina nem nos incita a isto. As coisas do espírito ninguém conseguirá explicar plenamente.
Muitos, desde os tempos de Maimônides e Ezras até os nossos dias, têm tentado, inutilmente, explicar ou tirar estas dúvidas. Estes mistérios só conseguem ser arrefecidos ou diminuídos, no coração das pessoas simples e humildes. Se perguntarmos a estas pessoas quem é Deus, onde está, o que faz e por que fez o mundo e as pessoas assim, certamente receberemos uma resposta muito mais convincente. Contudo, se procuramos tal definição num teólogo emproado, iremos então nos deparar com tantos adjetivos arcaicos, tantas explicações rebuscadas, tantas perguntas em lugar de respostas que, no fim, até mesmo o mais ferrenho fiel passará a duvidar. Não terá sido por menos que Jesus desabafou: “Graças te dou Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas cousas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, parque assim foi do teu agrado.”
Perguntamo-nos então, é mau estudar a Bíblia e as coisas de Deus? Certamente que não, caso contrário ela não existiria como fruto de inspiração divina. O ruim é estudá-la interesseiramente, só com o intuito de cultura, só examinando trechos que possam justificar nossos caprichos. A Bíblia é a palavra de Deus (talvez não integralmente chegada a nós), mas é a palavra de Deus. Ao lê-la devemos fazê-lo com humildade, em espírito de oração. Se não se entender alguma coisa, pouco mal, pois no fundo estamos certos, certíssimos, de que Deus quer o nosso bem, a nossa salvação e a nossa felicidade eterna. O resto é balela. Para quer perder tempo pensando em como ir às estrelas, se jamais iremos conseguir? Não se pode esquecer também que a Bíblia é dividida em dois testamentos. Um, o Velho, contendo as leis adaptadas aquele tempo e preparando a vinda do Filho de Deus; o outro, o Novo, inteiramente perfeito com as diretrizes de nosso Criador, ajustado para até o fim dos tempos, enquanto durar a Terra e os homens sobre ela.
Até a vinda de Jesus, muitos eram os caminhos; agora, só Ele é o caminho para se alcançar a salvação. Deus sempre quis da gente, fé, muita fé. Ela, sozinha, pode tudo. A descrença impede até Deus de fazer milagres: “Mas Jesus lhes dizia: um profeta só deixa de ser na sua pátria, e na sua casa e entre seus parentes. E não podia fazer ali milagre algum, senão que curou alguns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos.” Aí está a força da fé. Não terá sido por maior reforço, a máxima oriental: “Para quem acredita, até uma cabeça de peixe faz milagres”.
Além de Deus, cada ser humano tem dentro de si uma força tamanha capaz de torná-lo um gênio, um herói, um super-homem, um deus em potencial. Esta força intrínseca, a fé, porém, precisa de apoio e de incentivo. É como uma porção de césio protegida em seu aparelho: extremamente potente para o bem ou para o mal, mas jamais causará qualquer benefício ou dano, se não for acionada ou exposta.
Bíblia é resquício, retalhos, toques da sabedoria e pretensão de Deus. Depois de tantos processos por que passou para chegar a constituir o livro que hoje é distribuído ao mundo, certamente ela recebeu inserções errôneas ou humanas. Explicá-la é como um robô mecânico explicar o seu inventor. Para ser sincero, o que me intriga mesmo é a interferência de Deus ou não, em nossas vidas. Muitos afirmam que fulano é santo, bom, honesto, justo… porque está com Deus ou vice-versa. Noto, porém, com muita estranheza, que muita gente que nunca pronunciou com respeito o nome do Criador, leva uma vida sóbria e honrada. Há pessoas que não professam religião alguma e, no entanto, têm uma retidão de vida invejável. A recíproca é verdadeira. Afinal, somos bons ou maus pela presença ou falta de Deus, ou nascemos bons ou maus geneticamente? Deus interfere ou não? Tudo indica que Ele respeita inteiramente nossa liberdade, mas se assim for, humanamente falando, onde fica a justiça? Afinal, não parece justo que alguém nasça (sem opção de deixar de nascer) e que, afinal, tenha sobre si uma carga negativa de gênio, que segundo se acredita, fá-lo-á sofrer eternamente.
Na verdade, continuo acreditando que nenhum homem responderá por aquilo que veio nele. Responderá sim, pelo aumento ou diminuição dos talentos que recebeu. Por isso, nem todo santo terá tanta glória, nem todo criminoso, tanto castigo. Deus sabe com quanto agraciou cada um de nós. É preciso acreditar nisto para saber se, realmente, a pessoa (diante do julgamento de Deus) tem ou não merecimento. Conformemo-nos com o que somos: pobre, rico, aleijado, inteligente, ignorante, homem, mulher, sábio, simples, alto, preto, gordo, intempestivo, calmo, ordinário…, não importa. Estas forças indomáveis que existem dentro de cada um, vieram por si (é o pedaço de terra que o ”Senhor da messe”) nos deu para trabalhar. O importante, o que conta mesmo é a nossa luta para melhorar esta terra. Só isto importa; por este esforço seremos julgados. Por isto não estranhem se encontrar, do outro lado, diabos no céu e santos no inferno. É, não estranhem! Só Deus e o homem em questão sabem dos motivos que levam alguém a delinquir. Todo mal existe pela desobediência dos homens aos planos e ensinamentos de Deus. Pelas aberrações dos homens, nasce toda miséria do mundo. Se não transgredíssemos as leis de Deus, a Terra seria um paraíso. É, pois, de Deus, a culpa de o mundo estar como está ou antes é nossa, só nossa?
COMO SER MAIS FELIZ
– Que tarde linda! Parece comemoração aos nossos quinze anos de convivência.
– Quinze anos! Puxa, como o tempo passa!
– Não só o tempo, mas também as coisas boas da vida. Lembro do nosso tempo de namoro, de noivado…, os primeiros meses de casados. Você era tão carinhoso!
– E difícil transformar 15 anos em alguns meses, você há de entender. – Não se é preciso ser um David Coperfield para realizar tal mágica. Apenas um pouquinho mais de compreensão e sensibilidade.
– Mudei tanto assim?
– Como mudou! Passa os dias se preocupando apenas com seus sonhos, jamais se importando com os meus.
– Refere-se a sexo?
– Não propriamente.
– Mas, refere-se?
– É, antigamente…
– Antigamente eu tinha muitas outras ilusões. Hoje não as tenho tanto. Tem de admitir que há um tempo para tudo. Hoje não rodo pião nem jogo bolinha de gude na rua – seria ridículo.
– Nem procura outras meninas?
– Isto vai longe! É passado, coisas da mocidade infrene.
– Você era um canalha, lembra-se?
– No entanto achava-me melhor.
– Uma ova!
– Acabou de afirmar nas entrelinhas, que mudei para pior.
– Minha vida não tem mais sentido. Não realizei nada do que sonhava. – Isto é passado. O próprio tempo imprime certas modificações, não só no ser humano como até nas estrelas. Penso que estou sendo mais comedido e que, se mudei, foi para melhor.
– Qual nada, você destruiu minha vida. Não consigo esquecer o que você me fez. Lembra-se daquele dia em que…
– Mas isto passou. Hoje estamos aqui, 15 anos de casados, diante de uma tarde maravilhosa, com todo um cenário lindo à nossa disposição. – Que se dane a tarde linda pelo que você já me fez.
– Mas, … Lágrimas, silêncio…, fim de mais uma tarde que podia ser feliz.
O homem que não cuida bem do presente, não tem futuro: vive se livrando do passado. Embora isto seja mais transparente que o ar puro que respiramos, nem sempre enxergamos. Nascendo numa época prenhe de normas morais ultrapassadas, o homem moderno vê prejudicado seu equilíbrio emocional e a sua felicidade. Não que tenha culpa total de ser tão mesquinho e vulnerável, pois é difícil a alguém atravessar um pântano sem sujar as botas de lama. Estamos num pântano. O homem de agora, vendo-se jogado num mundo com suas normas e diretrizes preestabelecidas, com engodos de todos os tipos à sã doutrina da moral, ouvindo os mesmos credos, percebendo as constantes manobras e manipulações do poder, não encontra mais a força intrínseca de Deus para erguer sua voz contra a imoralidade, as injustiças e os desrespeitos. Prefere aceitar o jogo e viver, aparentemente, em paz. “Tem vergonha de ser honesto”. Mas, não há paz verdadeira sem Deus.
O tempo vai passando, os erros se acumulando, as angústias crescendo, somando-se, fermentando, preparando o homem sem futuro, ocupado apenas em remendar o passado. Todos nós, em geral, estamos neste barco. Cometemos tantos desatinos, fazemos tantas coisas erradas, que somente o esquecimento do passado poderá oferecer-nos um presente com perspectivas melhores para o futuro. Quem de nós não vive numa comunidade? É o mundo, o país, o estado, o município, a vilinha, a família… Partindo-se do princípio da relação homem/sociedade, todo o mal que fizermos é eterno, enquanto o mundo for mundo. Qualquer coisa enquanto existe é eterna. Se é eterna, tende à perfeição, pois nada que pereça é perfeito. Não acredito que haja – enquanto houver vida sobre a terra – nada mais imperfeito na criação de Deus, do que o homem enquanto vivente aqui neste mundo. Por isso morre.
Ele próprio (Deus), segundo a Bíblia (com reservas de interpretação), andou meio atordoado com sua obra: “Ora, a terra estava corrompida diante de Deus e estava cheia de iniquidades” – Gêneses, 6.11; “Arre- pendeu-se de ter criado o homem na terra” – Gênesis, 6.6. Tudo isto estava previsto, porém, não com tanta intensidade. A inclinação do homem ao mal extrapolou os planos de Deus. “Quem formou o mudo, o surdo, o que vê e o que é cego? Não fui Eu?” – Êxodo, 4.11; “Porque o sentido e o pensamento do coração do homem são inclinados para o mal desde sua mocidade, não tornarei a ferir vivente algum como fiz…, enquanto a terra durar” – Gênesis, 8.21. Faço apenas estas citações para dizer que Deus, quando fez o homem (não importando aqui se por meio do barro ou da evolução), sabia que hoje estaríamos aqui, sujeitos a muitos tipos de balbúrdias e injustiças, porém, o que Ele talvez não tenha previsto é que iríamos ser tão criativos na forma de perverter o bem.
O fato é que aqui estamos, vendo irmão matando irmão; país espoliando países…, numa corrente contínua de desajustes e injustiças sociais intermináveis. Dentro deste mundo, como viver melhor e diminuir tanta angústia? Se já erramos tanto e se tudo o que fazemos é eterno enquanto durar a vida, a única saída menos dolorosa é criar, como o pequeno príncipe de Exupéry, o nosso pequeno mundo. Todos nós temos nosso asteroide, nosso pequeno mundo. Ora somos filhos, ora amigos, ora pais… Todos temos, também, nosso passado negro e triste. Se quisermos viver melhor, devemos não mencionar esse passado e jamais lembrá-lo a quem estiver ao nosso lado. Para quem cometeu desatinos, basta a triste companhia de tais lembranças. Despojemo-nos do sadismo maléfico de tais reminiscências, ajudando a quem não teve passado virtuoso a, pelo menos, sonhar no presente com um futuro melhor. Quantas e quantas vezes destruímos, impiedosamente, a alegria do presente com o toque malicioso do passado? Quantas vezes fizemos apagar nos lábios do nosso irmão, o sorriso de satisfação, desenterrando em sua frente uma triste lembrança sepultada? Passado é passado, é zero à esquerda, é apêndice desnecessário: faz parte do relacionamento íntimo entre Deus e o homem e, como tal, deve ser respeitado. Que você, amigo, que por acaso está correndo os olhos em cima destas considerações, jamais desenterre o passado triste de seu irmão. Se o fizer, saiba da extensão de sua maldade. Esqueça as coisas tristes que passaram. Não tenha nos lábios só críticas destrutivas. Observe no seu irmão, os atos bons dele, as suas façanhas, aquilo que tem de melhor. Por que só criticar, apontar erros e falhas? Se lhe custa tanto mencionar o lado bom de seu irmão, ao menos fique calado. É a inveja a mãe da vingança, e esta, o caminho da crítica destrutiva. Não inveje o bem-sucedido porque a felicidade dele em nada o prejudica. Contrariamente, uma pessoa azeda poderá acabar com qualquer entusiasmo, com a alegria de qualquer um. Sem as lágrimas não seria reconhecido o sorriso. Mas o sorriso é melhor do que as lágrimas. Se pode fazer alguém sorrir, por que fazê-lo entristecer e chorar? Se houver necessidade de apontar um erro, saiba fazê-lo. Qualquer um entende quando nos recriminam por amor, inveja ou vingança. Por isto as crianças não guardam rancores dos pais; por isto tantos homens se odeiam e se matam. Se hoje não pode mais rodar pião, ontem foi possível; se não consegue hoje correr atrás de uma bola, ontem pôde. Há um tempo para tudo. Não se rebele contra a determinação de quem o criou. Não transfira o mal que plantaram em você. Com o seu sofrimento estará quitando os pecados de seus ancestrais; as gerações futuras pagarão os seus. A sociedade cria e tenta modelar o homem; a inteligência do homem pode aceitar ou não. Por isso, saibamos compreender nossos semelhantes, pois não será outra a medida que Deus usará para aceitar ou não nossas justificativas. Se quer ser feliz, faça a felicidade dos outros, pois não há nada que faça e que não volte a você. Se criticar destrutivamente o irmão, ele ficará abatido e passará a tristeza adiante, porque ninguém transfere a outrem aquilo que não tem. Que esperar de uma pessoa zangada, triste e ferida? Que esperar de uma pessoa de bem com o mundo, alegre e de mente sadia?
Faça agora, amigo, sua escolha. Nunca é tarde para ser feliz o quanto possível. É de tostão em tostão que se fazem os milhões; é aproveitando os momentos, aparentemente insignificantes, que poderemos construir um monumento de felicidade. Experimente.
SEM DEUS NADA É POSSÍVEL
Até hoje se condena a miscigenação religião-política, alegando-se que uma coisa nada tem a haver com a outra. A política, representada por centenas de ideologias, pensa não precisar da parte íntima e moral do homem para sua sustentação; a religião, hasteada na moral, honestidade e no desprendimento, assegura, nestas virtudes, o sucesso de qualquer ideologia, mesmo sem pretensão política. O homem que acredita em Deus e nas sãs virtudes, procura ser bom e justo, simplesmente porque quer ser bom e justo. Os que não acreditam, dizem acreditar para ludibriar o povo e conseguir seus intentos. Pode passear pelos sistemas que até hoje mais se aproximam da justiça que, mesmo assim, jamais conseguirá a tão sonhada harmonia, o tão almejado equilíbrio, a tão esperada justiça social plena. Nenhum sistema conseguirá a perfeição social, senão colocando as leis humanas sob a égide da lei divina. Afinal, existe ou não um Deus criador de tudo isto? Um Deus que espera que respeitemos nossos irmãos e toda Natureza? Responda a você mesmo: existe ou não? Que sistema haverá de se impor contra a liberdade do homem inclinado ao mal? Se ele não quiser, certamente não fará, pois em respeito à liberdade, até Deus desiste ante a renitência do ser humano. Deus prometeu; Deus cumpre o que promete.
Todo homem é um jogador por excelência, um apostador inveterado, um “bicho” diferente que só joga com a intenção de ganhar. Por isso, quando ele acreditar que, dividindo, doando-se, amando o outro como a si próprio, conseguirá felicidade e paz nesta Terra e alegria eterna na outra, então não precisará mais de leis nem ideologias, pois, por si mesmo, fará o bem e criará a igualdade sonhada. Fora disto, apaguem-se as ideias e as filosofias. Sem Deus não há filosofia nem verdades que vinguem. O mundo terá – como bem frisou Hermógenes – de revisar suas normas de moral, de psicologia, de educação… que até hoje não conseguiram melhorar o mundo em nada, porque se afastaram da verdade indicada por Deus. O mundo só tem um caminho: Jesus Cristo. Ele é o ecologista, o mestre, o presidente…, o líder do mundo, e não há e jamais haverá outro cujos ensinamentos e leis O superem. Vejam como é falho na prática, o Socialismo, o Imperialismo… e toda gama de artifícios ideológicos criado pelo homem. A razão é clara: egoísmo, ganância, ideia fixa de supremacia, em suma, falta de Deus. Você que parece feliz da vida por suas riquezas conseguidas sem justiça social, que se acha um vencedor por dirigir uma grande potência enriquecida pela exploração dos países subdesenvolvidos…, você que segue o que o mundo ensinou até hoje, experimente o outro lado da moeda e depois examine a diferença que existe entre o que entende por felicidade e paz, do que realmente é felicidade e paz. Ser feliz não é olhar palácios, mansões, somas bancárias exorbitantes…, mas sim sentir no coração a paz de ser um homem honesto e desprendido, um homem que está certo de que daqui não levará nada, a não ser o resultado decorrente das boas ações. Jamais desminta o que está se dizendo, sem antes comprovar. Como poderá dizer alguém que tal fruta não presta se não a experimentou?
Certa, vez – conta-nos uma história – um fazendeiro branco voltou radiante de alegria por ter comprado ao índio, todas as suas terras, por um valor bem razoável; e também da felicidade do índio por ter conseguido vender ao branco, algo que ele jamais poderia possuir. O índio estava certo que aquelas terras ficariam ali até o fim dos tempos, e lamentou não possuir mais para negociar com o homem branco. Se você anda direito e está em paz, não tem medo de nada nem de ninguém, nem da morte sequer. Está certo que nada de ruim poderá lhe acontecer, pois está do lado do mais forte. A morte, que para tantos é um acontecimento trágico e temido, para o justo não significa, senão, o início de uma nova vida completa de paz e felicidade. Se está em dúvida quanto a existência de Deus e da vida após a morte, você crê. Todo aquele que duvida, acredita um pouco, pois quem tem certeza, não carrega interrogações. Diante disto, não arrisque: ande direito, largue o mal, siga as pegadas de Jesus. Se quando fechar os olhos, tudo se findar, você ainda foi um sensato, pois além de não ter arriscado, ainda foi mais feliz e seguro do que qualquer outro homem que viveu da inveja, da perseguição e do egoísmo, logo, em constante angústia e medo. Não há um só homem no mundo que, praticando coisas erradas, tenha paz e sossego. Vive sempre com receio do minuto seguinte, da polícia, daquele a quem espoliou ou prejudicou, dos filhos e amigos dele, da vingança e, finalmente, de Deus.
Qualquer ideologia política sem Deus será sempre uma simples ideologia política, como tantas que até hoje tentaram, inutilmente, resolver os problemas sociais da humanidade. Se acha que não acreditando em Deus Ele deixa de existir, está enganado. Como gravou Jung na entrada de seu consultório: ”Vaca tus atque non vaca tus, Deus aderit” – ou seja: ”Quer seja chamado ou não, Deus estará presente”. Se vive como incrédulo e infiel, pense nestas coisas. Lembre-se de Deus todos os dias e tudo será diferente. Não custa fazer esta experiência. Se fizer direito, com fé, persistência e humildade, e não funcionar, aí, volte a ser o que era.
PODER POLÍTICO INSTITUCIONAL BRASIL – 1988
Todos sabem, ao longo de meus trabalhos, da aversão exposta aos maus políticos. Há até quem possa imaginar que sou contra a política, o que seria uma aberração, pois como já se disse, ”o homem é um animal político” e não há nada, ou pelo menos, muito pouco do que se faz, que não traga no bojo a marca registrada de um ato político. Entre as ciências sociais, a política talvez seja a mais difícil de ser justa, perfeita e coerente. Não foi por menos que grandes sábios, filósofos e escritores da antiguidade, embora imbuídos do desejo de acertar, sempre apresentaram doutrinas políticas antagônicas como forma de atingir o desenvolvimento, o progresso e o bem-estar social de seu povo.
Platão queria cidadãos melhores e mais felizes, governados por sábios que fossem defendidos por guerreiros e sustentados pelo proletariado. Aristóteles lutou pela defesa da propriedade privada, aceitou até certo ponto a escravidão e sonhou com uma numerosa classe média. Os pobres não teriam direito a cargos políticos. Maquiavel acreditava no uso da força, no poder absolutista, ainda que fosse conseguido através de atos imorais e de corrupção. E um dó que tenha escolhido o Brasil para implantar suas ideias. Tomás Morus sonhou com uma democracia que assegurasse a igualdade de direitos a todos os cidadãos. Apenas sonhou. Tomás Hobbes confiava na monarquia absoluta, com o estado regulando, dividindo e impedindo a violência e as injustiças sociais. Montesquieu criou a divisão dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário. Rousseau escreveu a democracia do povo – apenas escreveu. Marx praticamente implantou o comunismo científico, com o enaltecimento do proletariado. E assim, desde os primórdios, sábios e sonhadores buscaram em vão um sistema que imaginavam capaz de implantar a ordem, a harmonia, o crescimento, a paz e a justiça entre as pessoas e as nações.
Mais adiante, grandes nomes tentaram decantar de tais ideias um ecletismo salvador, baseado na alquimia de transformar as mentes gananciosas, em homens prontos a defenderem e a lutar pela Pátria. Devaneio. Jamais se conseguirá consenso entre a ganância e o desapego; entre o egoísmo e a partilha justa; entre a corrupção e a honestidade; entre os desmandos e a justiça; entre a Política e a politicagem.
A política a que irei me referir, então, é esta conjuntura deteriorada pela corrupção, cujo único objetivo é estar no poder, não importando qual seja a corrente partidária que irá levar seus séquitos a isto. São pessoas oportunistas, que vivem em cima do muro, sempre prontas a saltarem para o lado das conveniências, ainda que estas representem o desgoverno, a miséria do povo, as injustiças sociais e o caos financeiro da nação. Aos políticos desta política, meu desabafo e minha oração. “Confessai pois, ó vós que não sabeis governar senão arrebatando aos cidadãos a subsistência e as comodidades da vida! Confessai que sois indignos e incapazes de dirigir homens livres! Ou então corrigi vossa ignorância, vosso orgulho, vossa incapacidade e vossa preguiça: é isto que excita o ódio e o desprezo pelo governo…, cessem de criar suplícios contra os infelizes que uma legislação absurda e bárbara impele ao crime e a morte.” “O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens…, levantou no mundo, as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passos de ganso para a miséria e os morticínios. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido…. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo afora… milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Não sois máquinas! Homens é que sois! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os desumanos. Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice. É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas só mistificam. Não cumprirão o que prometem. Jamais cumprirão!”
Deponham as armas da ganância, velhos estúpidos, homens doentes, psicopatas do poder e do pretenso prestígio, e se enclausurem num mosteiro, num canto qualquer, onde possam parar e meditar, perceber a extensão maquiavélica de suas falcatruas para não entregarem o poder. Só nos retiros, no silêncio, na quietude tumular da alma, poderão ouvir a voz doce e tênue da sensatez e dos valores reais e supremos. Pensem na miséria que a ganância, o egoísmo, a pusilanimidade e o poder atraem a tantos milhões de irmãos. Despojem-se da empáfia, da ostentação; desçam de seus pedestais e caminhem pelas calçadas; sintam a profundidade da miséria que a irresponsabilidade de vocês impõe. Penetrem nos cortiços, nas palafitas, nos guetos imundos, sem água nem luz; nas mansardas ribeirinhas, nas faveIas, nas prisões, nos hospitais públicos e tentem entender as desgraças impostas pelo egoísmo e pela incapacidade de governar. Deixem de iludir o povo com estas leis econômicas. Não são elas que não funcionam, mas sim a preguiça e a desonestidade daqueles que são eleitos e pagos, regiamente, para velar com dignidade pelos direitos humanos de seus cidadãos. Olhem as crianças famélicas, criaturinhas indefesas, esquálidos troféus da ganância, da corrupção e do egoísmo que existem em vocês. Desçam, abdiquem das imposições políticas e convivam um mês, uma semana… é, uma semana apenas, dependurados em redes esgarçadas, sem cobertores, sem emprego, sem comida. Olhem de perto uma criança que chora de fome, nua, picada de mosquitos, melequenta, anêmica… um trapo humano, um grito de justiça que sobe aos céus, aos palácios, às mansões e ronda a mesa farta, e penetra nos recônditos do coração empedernido, e clama a Deus por vingança. Ó homens que comandam criaturas! Cessem um momento, esta máquina terrível de humilhar, espezinhar, sugar até a última gota de sangue de seus irmãos. Eles têm estômago e sentidos como vocês. Pensem um minuto, verifiquem o que gastam à-toa, os salários que se auto estabeleceram fora da realidade de nosso País, as mordomias, os processos escusos de verbas, as remessas de nosso dinheiro para os paraísos fiscais… comparem tudo isto com os fundos vazios de latas corrugadas, aos punhados minguados de farinha-puba, às taperas esburacadas…. Penetrem no fundo das minas, nas carvoeiras, nos esgotos, nas imundícias que a ostentação de vocês joga os irmãos. Desanelem as peias que atam tantos pés; abram as algemas que tolhem o movimento de tantas mãos; retirem as imposições que cortam e calam as línguas que aspiram clamar por justiça. O Brasil tem solução – vocês é que são incapazes de encontrá-la por causa: ora da corrupção, ora da incapacidade, ora da inoperância. Vivem se digladiando por ideologias partidárias para se manterem no poder, perseguindo e sendo perseguidos nesta roda vida de Íxion que envolve o povo inocente. Entrem nos lazaretos, nas prisões, nas pocilgas da pobreza extrema, nas frentes de trabalho do Nordeste, no hospital da Irmã Dulce, nas creches, em todos os antros sombrios onde a desgraça se encafua, e percebam, e se toquem, e acordem desta ideia fixa e doentia, desta inépcia repugnante que clama, que desafia, que irrompe contra o mais ínfimo e primordial dos direitos humanos: o de poder trabalhar, ter uma casa, uma família decente…, ser gente e não bicho. Caminhem pelas ruas, pelos campos, pelas estradas de chão batido, pelas veredas; venham ver este outro mundo que lhes assegura o poder e a riqueza; o reverso desta efígie massacrada, que lhes torna farta, a mesa. Tudo o que excede às nossas necessidades, é tirado de alguém.
Milhões de crianças não morreriam de fome, nem seriam arrastadas ao crime pela falta de amparo, emprego e educação, se vocês – políticos insaciáveis – não lhes subtraíssem a parte, se vocês cumprissem com seus deveres, se vocês não extorquissem tanto a própria Pátria, a terra que lhes viu nascer, acalentou e deu guarida. Ah, patriotas de outra pátria, brasileiros de outro brasil! Respondam: qual o sacrifício que se impuseram até hoje em benefício do propalado “querido país?”
Jamais congelaram ou diminuíram os próprios salários; jamais aceitaram estudar qualquer possibilidade de diminuir as mordomias, as aposentadorias extorsivas, enfim, qualquer projeto ou lei para diminuir o sofrimento do povo e equilibrar as contas públicas. Desaprovaram a inafiançabilidade do crime político de corrupção; delegaram a si próprios, o poder de decidirem sobre seus próprios vencimentos. Não comparecem ao serviço e ninguém pode cortar-lhes os dias, dispensá-los, multá-los, enquanto qualquer outro trabalhador não tem o direito sequer de uma greve justa. Lembrem-se – homens inescrupulosos – que a vida passa. Lembrem-se que Hitler também teve lampejos de falsa glória, mas hoje representa apenas uma mancha negra na história. Lancem um olhar e um exame retrospectivos aos milhões de homens que já trilharam o inglório caminho da ganância, do egoísmo, da imposição ideológica, do abuso de poder, da insinceridade, da perseguição política, das trampas, das negociatas escusas, do orgulho, da ostentação… e vejam as honras que a história lhes imputa. Permito-me e a vocês, maus políticos, esta pequena lembrança: “Mas ai de vós os que sois ricos; porque tendes a vossa consolação. Ai de vós os que estais fartos, porque vireis a ter fome. Ai de vós os que agora rides, porque gemereis e chorareis. Ai de vós, quando vos louvarem os homens, porque assim faziam aos falsos profetas os pais deles.”
Meditem um pouco sobre a ilusão de querer tanto, enquanto outros morrem de fome. Meçam a amplitude da rejeição do projeto que tornaria inafiançável o crime político de corrupção. Que vergonha! Que mais podemos esperar de nossos representantes, se se confessam, publicamente, ladrões? Que esperar de nossa justiça (leis), quando se aponta o lugar, o nome, o desfalque, a data, o montante roubado pelos “ladrões de colarinho branco”, e nada acontece? Que Deus tenha pena deste país e principalmente de seu povo sofrido, humilde, espezinhado e, principalmente, covarde. Depois de tantos meses ouvindo os políticos da Constituinte lutarem ou não por aprovação de leis, simplesmente porque estas leis interessavam ou não ao PMDB, ao PFL, ao PT…; de tanto ver aprovarem no papel, os arrochos às demais classes sociais, com redução de benefícios, cortes de subsídios, dispensas, congelamento de salários etc. etc., enquanto eles, de si nada tiram, de nada se abstêm; de perceber este grupo faminto aprovando os próprios salários, a imunidade parlamentar; depois de não saber um terço do que de mal realmente faz esta casta insaciável, nociva e insaciável, só me resta erguer os olhos e dizer: obrigado Deus, por existir e ser senhor da justiça; por estar em algum lugar, ouvindo os lamentos deste povo escravizado e sofrido; obrigado pela promessa de que em um dia qualquer, a justiça triunfará e estes monstros que espoliam, amarfanham, massacram, sugam e extorquem o mais ínfimo direito de uma infeliz criatura humana, não ficarão Impunes.
Acordem políticos mesquinhos, cancros do país! Ouçam o lamento de crianças que choram de fome; de homens que definham à míngua, relegados à miséria; de seres que vegetam e imploram parcas migalhas de suas mesas fartas e extravagantes. Amanhã estarão também sob a terra, apodrecerão, tornar-se-ão por fora, tão imundos quanto o são por dentro, voltarão ao nada de onde vieram, e diante do mausoléu dourado, não haverá um genuflexo que lhe comutará as penas; não haverá senão a triste epígrafe de um déspota na lápide fria e sem vida. Vocês – e aqui falo de todos os políticos do mundo – são os principais, senão os únicos, culpados pela harmonia, paz e felicidade ou não deste planeta. Cessem, pois, ó psicopatas do poder, de fomentarem as injustiças, as guerras e todo mal que se arraiga entre os homens! Parem para pensar, meditem, acreditem: não vale a pena. E uma grande ilusão imaginarem-se senhores queridos, chefes respeitados, glória do país.
Na verdade, não há ninguém mais detestado do que um político incapaz, perseguidor, corrupto e inoperante. Não vale a pena, não, não vale! O Brasil tem solução – qualquer país tem solução, por pior crise que lhe aconteça. Vocês, ou não querem ou não conseguem encontrá-la. Deixem, pois, que outros tentem. Entreguem com humildade este perigoso poder, pois certamente, “melhor lhes será entrarem no céu com simplicidade e sem poder, do que irem para o inferno, cobertos de honrarias e glórias usurpadas”. Ah, se não houvesse políticos mesquinhos! Ah, se o dinheiro gasto com armamentos fosse aplicado na agricultura, na saúde e na educação! Se no lugar da corrupção acontecesse a honestidade; da violência, a compreensão; dos maus políticos, homens decentes, honrados e honestos, fiéis à linda vocação de cuidar dignamente de seus semelhantes! Ah, se isto fosse possível! Seria Deus capaz de realizar tal utopia em cima desta Terra que gira no espaço?
CONSELHOS E EXEMPLOS
As coisas do espírito quando tendem a cair, toda força vinda de conselho para impedir a queda, resultará em impulsão ainda maior de sua precipitação. O orgulho do homem, somente a força de Deus subjuga. Se desejamos retirar o pouco que resta de fé ao incrédulo, é só dar conselhos na hora errada. Não se deve jamais estimar tanto os “discursos de vida”. Eles explanam as normas éticas cristãs, mas não comovem o homem a ponto de demover seu orgulho. A real força que pode impedir a derrocada das más inclinações do homem, chama-se exemplo. Ele é a comprovação inequívoca de que há alguém realmente convicto de que vale a pena ser bom e honesto, de que há alguém que, de fato, acredita no que diz.
As palavras – sustentáculo da oratória – conseguem ludibriar, tornar o belo, feio; aguerrida, a paz. Não é por menos que se deve mais temer uma mentira bem contada, do que uma verdade, aparentemente sem coerência. É por meio da manipulação bem feita das palavras, que a mentira se apresenta com roupagem de verdade. Errará por certo quem imaginar uma pessoa por aquilo que prega. E muito difícil definir alguém pelo que escreve, canta, ensina ou anda dizendo. Contudo, é sumariamente impossível não se saber o que anda na cabeça da pessoa, depois de se examinar como age no dia-a-dia. São as ações que comprovam os pensamentos, as inclinações e a personalidade.
As palavras são como um jogo de dama ou xadrez. Quem souber mexer com elas melhor, certamente vencerá. O exemplo, não. Ele vem de dentro, do âmago, do fundo de nossa convicção. Parece derrotado pela vida, mas será o grande vitorioso no final. As palavras são o ruge e o batom; os exemplos são a cara lavada pela manhã ao despertar. Por isso, no tribunal do júri de Deus, muitos cíceros, demóstenes e quintilianos cederão a tribuna a ingênuos camponeses. Ah, fôssemos nós um sábio vírus, pousado na mente das pessoas! Um vírus que entendesse as tramas das palavras. Quanta farsa, quanta mentira, quanto jogo de interesse não descobriria ele!
Imaginemo-nos Deus de nós mesmos. Imaginemo-nos nos negócios, ao telefone, nas tribunas, nas mesas de escritório, ao pé do ouvido…. Quanta farsa, quanta mentira! É, se fôssemos o Deus de nós mesmos, se conhecêssemos a nós mesmos, certamente baixaríamos a cabeça envergonhados diante de tanta mesquinhez. Felizmente, os amigos, os parentes, os conhecidos, aquelas pessoas que de uma maneira ou de outra convivem com a gente, não são o tal vírus, nem o Deus da gente. É, felizmente não são!
MIL LIVROS DIRIAM TANTA VERDADE?
“E levantando ele os olhos para seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós os pobres, porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados os que agora tendes fome, porque vós sereis fartos. Bem-aventurados os que agora chorais, porque vós vos rireis. Bem-aventurados sereis quando os homens vos aborrecerem, e quando vos separarem, e carregarem de injúrias, e rejeitarem o vosso nome como mau, por causa do Filho do homem. Folgai naquele dia, e exultai; porque, olhai, grande é o vosso galardão no céu; porque desta maneira tratavam aos profetas os pais deles. Mas ai de vós os que sois ricos; porque tendes a vossa consolação. Ai de vós os que estais fartos, porque vireis a ter fome. Ai de vós os que agora rides, porque gemereis e chorareis. Ai de vós, quando vos louvarem os homens, porque assim faziam aos falsos profetas os pais deles. Mas digo-vos a vós outros que me ouvis: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos têm ódio. Dizei bem dos que dizem mal de vós, e orai pelos que vos caluniam. E ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra. E ao que te tirar a capa, não defendas levar também a túnica. E dá a todo aquele que te pedir; e ao que tomar o que é teu, não lhe tornes a pedir. E o que quereis que vos façam a vós os homens, isso mesmo fazei vós a eles. E se vós amais aos que vos amam, que merecimento é o que vós tereis? Porque os pecadores também amam aos que os amam a eles. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que merecimento é o que vós tereis? Porque isto mesmo fazem os pecadores. E se vós emprestardes àqueles de quem esperais receber, que merecimento é o que vós tereis? Porque também os pecadores emprestam uns aos outros, para que se lhes faça outro tanto. Amai, pois, a vossos inimigos; fazei bem e emprestai, sem daí esperardes nada; e tereis muito avultada recompensa, e sereis filhos do Altíssimo, que faz bem aos mesmos que lhe são ingratos e maus. Sede, pois, misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso. Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai, e dar-se-vos-á; no seio vos meterão uma boa medida, e bem cheia, e bem calcada, e bem acogulada. Porque qual for a medida de que vós usardes para os outros, tal será a que se use para vós. E pôs-lhe também esta comparação: Pode acaso um cego guiar outro cego? Não é assim que um e outro cairão no barranco? Não é o discípulo sobre o mestre; mas todo o discípulo será perfeito, se o for como seu mestre. E por que vês tu uma aresta no olho de teu irmão, e não reparas na trave que tens no teu olho? Ou como podes tu dizer a teu irmão: Deixa-me, irmão, tirar-te do teu olho uma aresta; quando tu não vês que tens no teu uma trave? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e depois verás para tirar a aresta do olho do teu irmão. Porque não é boa a árvore que dá maus frutos, nem má a árvore que dá bons frutos. Porquanto cada árvore é conhecida pelo seu fruto. Porque nem os homens colhem figos de espinheiros, nem dos abrolhos vindimam uvas. O homem bom do bom tesouro do seu coração tira o bem; e o homem mau do mau tesouro tira o mal. Porque do que está cheio o coração, isso é que fala a boca. Mas por que me chamais vós: Senhor, Senhor: e não fazeis o que eu vos digo? Todo o que vem a mim, e ouve as minhas palavras, e as põe por obra, eu vos mostrarei a quem ele é semelhante. É semelhante a um homem que edifica uma casa, o qual cavou profundamente, e pós o fundamento sobre uma rocha; e quando veio uma enchente de águas, deu impetuosamente a inundação sobre aquela casa, e não pôde movê-la, porque estava fundada sobre rocha. Mas o que ouve, e não obra, é semelhante a um homem que fabrica a sua casa sobre terra levadiça, na qual bateu com violência a corrente do rio, e logo caiu; e foi grande a ruína daquela casa.
Se cada um de nós pensasse assim, haveria roubos, assaltos, assassinatos, egoísmo, ricos ou pobres, miséria ou luxúria e toda sorte de malquerença que assola o mundo? Logo, a solução do mundo é Jesus Cristo. Quando todo homem dispensar alguns minutos de sua vida a este Homem, deixando de lado um pouquinho só, os livros de sua faculdade, de sua escola, de seu passatempo e ler um pedacinho por dia dos Evangelhos, certamente sentirá no coração uma satisfação ainda maior do que aquela que sente nos momentos de grande prazer. Não discuta, experimente primeiro; não reaja nem difame o que não conhece direito; não diga que tem a verdade fora de Deus, sem antes ler a Bíblia. Aí está o conselho de quem não é diferente de você.
EL CORDOBÉS E A CHIFRES DE BAIONETA
Junho de 1957.
Fui com o Velhão (mano Adalho) e papai passar uns dias lá em Conceição da Barra, no Espírito Santo, na casa de um velho amigo, o Tércio, inesquecível ponta direita do Marilândia F.C. Numa noite fria, sem ter o que fazer, resolvemos assistir a uma tourada. O proprietário do circo era espanhol, um infeliz de Fuengirola que viera escondido no porão de um navio. No sangue todo ardor das touradas de Madri.
O lugar do espetáculo era pequeno, sem qualquer proteção ou cobertura. O vento frio vindo da praia enregelava as faces e os braços desnudos de todos que estivessem por ali. Um picadeiro central cercado de ripas grossas e arquibancadas de tábuas empenadas, completavam a armação. Por fora, uma proteção ameaçadora de arame farpado, avisava aos caloteiros que o risco não compensava.
Depois de meia-hora de atraso, já batendo o queixo de frio, eis que aparece em cima da cerca, um “locutor”, avisando que a demora se devia à evasiva do titular El Cordobés, que ao saber do “curriculum vitae” da vaca, havia desaparecido misteriosamente. Em seu lugar apresentariam um “peone” da fazenda Spinosa, cabra da peste, destemido, criado no meio de gado bravio nas caatingas do Nordeste. Era ele quem deveria subjugar a vaca com chifres de baioneta, temida, responsável por dezenas de demissões de peões que bambeavam as pernas só em ouvir falar o nome do terrível animal.
O voluntário suicida apresentou-se, não sem antes mascarar o picadeiro com uma cusparada esverdeada de saliva com fumo de corda de Arapiraca:
– Escuta aqui, ô distinta plateia, tô aqui pra modi pegá uns animar. Num tô custumado trabaiá na frente di gente, mais vô fazê o pussive pra agradá. Sorta aí a desgranhenta da fera que nois vai lutá – e dizendo isto saltou no meio do picadeiro. Nem do tradicional pano vermelho teve ele consciência.
Um “arenero” lembrou-lhe do esquecimento. Ele retrucou:
– Não quero truqui, vai sê de homi pra homi mesmo.
Como o grande Alexandre, também ele não furtaria a vitória. Extremamente precavidos, “os monosabios” foram abrir a jaula da fera. Mal destrancaram a porta, pularam nas ripas, subindo como lépidos macacos. A plateia excitada, explodiu, pois de orelha a orelha já se ventilava a cruel fama da vaca chifres de baioneta: “Matou três de uma só vez”; “Destripou o Zé da Onça”; “Conhece o manqueta? Foi ela;”…
Havia em cada mente a antevisão do que iria acontecer: a porta seria estraçalhada na arrancada, a poeira levantaria sufocante, dois olhos faiscantes dirigiriam, enfim, as baionetas afiadas até as entranhas do infeliz toureiro. Pelas narinas vermelhas sairia fumaça e entre mugidos tétricos, seriam exibidas as tripas do vaqueiro: mesquinho troféu de uma fera imbatível. Se ainda fosse o titular El Cordobés!…
No íntimo, todos torciam pela vaca. Diante da algaravia da plateia, a vaca saiu assustada, retrocedendo vagarosamente para o ponto do picadeiro em que o barulho era menor. Nisto, como por encanto, fez-se silêncio tumular. Do meu lado, alguém que conhecia a vaca, ciciou:
– Está tomano distança, vai acabá com ele.
Neste momento, sem conhecer o vaqueiro, nem a vaca, nem o circo, nem a fazenda que mantinha a fera, juro, estremeci. Senti vontade de gritar, de tentar impedir tão impiedosa carnificina. Ainda hoje não me perdoo pela covardia do silêncio.
Passaram-se os centésimos de segundos, os segundos, os minutos e só não vieram as horas porque diante da impaciência da plateia, os “cuadrilleros”, primeiramente tímidos, e depois na mais desdenhosa ousadia, começaram a fustigar a vaca para que enfrentasse o toureiro. Ela empacou. Luta pra lá, luta pra cá, cutuca com a garrocha, torce-lhe o rabo, banha-se-lhe as ancas com capanema… Aos empurrões, mais arrastada do que voluntariamente, a vaca chega ao centro do picadeiro. O toureiro se aproximou. O pequeno resquício de precaução, paulatinamente, foi cedendo lugar ao ousado desrespeito. A vaca não reagia. Meus olhos que até então só enxergavam pontiagudos chifres, ancas potentes, narinas dilatadas, agora não iam além de mais uma irresponsável importação brasileira de Biafra: desnutrida, esquelética, ossos traseiros parecendo-se com dois cabides de pendurar chapéus, bunda suja de uma diarreia crônica, cabisbaixa, envergonhada de seu estado deplorável, a vaca não encontrava lugar para esconder sua desdita. O vaqueiro, ainda temeroso de um engodo para pegá-lo desprevenido, agia com certa precaução. Fez que avançava, chutou areia… nada. A vaca parecia apenas sonhar com uma moita de capim verde, lá na sua sossegada fazenda. Ao perceber que com sua inépcia, a vaca o estava desmoralizando, o vaqueiro avançou decidido, esfregando-lhe, primeiramente, as mãos nas ventas, depois na bunda suja e, por fim, já sem o que mais inventar, deu a volta e arremessou-lhe violento pontapé no traseiro. Era o que faltava: vaca desmunhecou. Nos seus olhos, toda tristeza que, tantas vezes, a impotência impõe aos desvalidos. O povo enraiveceu-se. Aos gritos exigia luta, sangue ou o dinheiro de volta.
Diante dos ânimos exaltados, o dono do circo reapareceu pedindo paciência:
– Não me perturbem, vocês irão ter luta. Vou soltar agora o touro, já que mais uma vez percebemos que não se deve confiar em fêmeas. São imprevisíveis. Querem sangue, irão ter sangue. Não me culpem por isto.
Novamente o suspense, um silêncio que não durou muito. Para que o touro entrasse, era preciso que a vaca saísse. Quatro ou cinco “areneros” lutam incansavelmente para erguer aquela armadura de ossos. Nada. Estava arredia. Torcem-lhe, quebram-lhe o rabo, acendem fogo no traseiro, puxam-lhe as orelhas, fustigam-lhe com tudo o que encontraram de pontiagudo, enfim, não dispensaram item algum da maldosa criatividade humana no ato de impingir sofrimentos. Nada, nem um leve sinal de mudança de ânimo. Já desconfiando da maçada, alguém grita da plateia:
– Será que aqui não tem homi pra tirar esta mundiça daí não?
Entre os caboclos ou matutos não poderia haver desafio ou ofensa maior. Uma verdadeira avalancha de homens irrompeu no picadeiro e em menos de um minuto, a atriz intempestiva foi devolvida ao camarim. Agora a coisa seria para valer. Com os machos não acontecem estes vexames: garantia o apresentador.
Abre-se o pequeno curral. De lá sai um bezerro com projeto de chifres, todo doidão de medo pelo barulho das pessoas, estonteado pela luz que o enceguecia. O vaqueiro, cheio de moral (pois já havia desmoralizado a mais terrível vaca da região), pulou na frente, desafiando “o touro”, atrevidamente. Cada vez mais assustado, procurando por todos os meios e lados um jeito de fugir, o bezerro acabou atropelando o pobre vaqueiro, que caiu nocauteado com uma joelhada na testa. Os assistentes acorreram céleres, retirando o vaqueiro e levando-o à farmácia mais próxima. Sem se conformar, a plateia irascível exigia o dinheiro de volta. Eu, qual hiena imbecil, não podia conter-me. Senti alguma coisa morna descer pela perna, e não foi difícil deduzir que estava me mijando todo. Foi inevitável.
– Este abestalhado ri de quê? – perguntavam-se os inconformados. No íntimo eu respondia:
– Vocês queriam sangue, mas eu, nada mais do que vi. Não acreditarei jamais se alguém disser que assistiu a um espetáculo mais inacreditável.”
Esta história me foi contada pelo mano Jayr, pediatra de Linhares – ES, hoje falecido.