LIVRO REVISADO EM MARÇO DE 2018

APRESENTAÇÃO
“Não me peçam coerência, sou um artista” – disse certa vez Glauber Rocha ao ser criticado por causa da instabilidade de diretrizes de seus trabalhos. Embora não seja eu Glauber Rocha, permito-me plagiar a defesa dele, já que OS HUMILDES é uma obra incoerente com os pontos de vista literários defendidos por mim nos sete primeiros livros.
Ele prima pela cultura daquelas pessoas que não puderam estudar, e que, por isto mesmo, expressam seus pensamentos e suas ideias da maneira com que aprenderam.
Afinal, o tempo vai nos ensinando que não se deve apregoar-se dono da verdade, porque ela é apenas uma contingência passageira neste nosso mundo em eterna evolução. Também aprendi que não se deve afirmar que alguma coisa não presta sem antes tê-la experimentado, ou antes, que dela tenhamos pleno conhecimento de suas causas e efeitos.
Os artistas que dependem da graça popular devem agir como se fossem donos de um restaurante, oferecendo a seus clientes, não propriamente o melhor, mas aquilo que acham melhor. Uma feijoada para japoneses ou um peixe cru para agricultores brasileiros, convenhamos, não seria uma boa opção.
Continuo achando que um livro deveria ser escrito com o maior respeito possível à nossa língua. Acontece que não sou dono, senão, de minhas verdades. Além do mais, OS HUMILDES se apresenta como uma denúncia contra nossos governantes, que não reconhecem que somente mudando a mentalidade do povo através da educação se conseguirá combater a ignorância que atravanca o progresso e o desenvolvimento do País. Jamais haverá choque ou pacote que resolva os problemas econômicos de uma nação viciada no “salve-se quem puder”; de um povo que tem todos os motivos do mundo para não acreditar mais nas promessas enganosas de seus governantes. Entre todos meus funcionários, apenas dois ou três sabiam, sofrivelmente, ler e escrever. Os demais nem assinavam o próprio nome. Diante disto, devemos sonhar com o 1º, ou com o 4º mundo?
Muitos dos diálogos foram gravados para que a fidelidade de expressão fosse resguardada. É claro que os protagonistas são heterogêneos: capixabas, paraenses, baianos, maranhenses, piauienses, goianos, mineiros… enfim, gente que apesar de conviver no Maranhão, ainda carrega resquícios de sua terra natal.
Preferi, na maioria das vezes, usar os apelidos com que se chamavam. A história é verídica no que tange aos fatos e personagens. Apenas as datas e os locais nem sempre são precisos.
O que quis deixar explícito neste livro foi a capacidade de raciocínio das pessoas humildes, embora sem cultura escolar. Quis deixar bem claro – a todos aqueles que mantêm o poder político ou financeiro – que as pessoas humildes não são animais grotescos que se deixam levar passivamente, mas sim, que se permitem explorar por ser impotentes ante o poderio econômico dos dominantes.
Eles sabem que não têm opção e então se sujeitam à humilhação de um salário mínimo; ou não se sujeitam e partem para a marginalidade. Têm os mesmos desejos dos que se dizem superiores, mas são obrigados a sufocá-los. A revolta latente, em muitos acabam nascendo e vicejando.
Diante da prepotência dos considerados grandes, os humildes, às vezes, criam sua própria filosofia de vida, aceitando mais vegetar do que viver dignamente, mas guardando dentro de si uma revolta perigosa que pode aflorar-se a qualquer momento. Aparentemente conformados, eles estabelecem suas normas morais e religiosas, não se importando tanto com as leis ou com o futuro. Mas, lá no fundo de seus corações, eles bem que desejariam crescer e ter um lugar ao sol neste país que e tão grande para uns e tão pequeno para outros; tão rico para uns, tão pobre para outros; tão generoso para uns e tão injusto e cruel para outros.
Quero com este livro prestar minha homenagem aos humildes, pelo que me ensinaram e pelas alegrias que me proporcionaram. Dos ingratos, quero esquecer, não deles, mas das ingratidões. Às vezes nos damos mais importância da que realmente temos; às vezes, nos damos tanto valor que, se real, muitas celebridades se sentiriam honradas em afivelar nossos sapatos.

1
Não, eu não conseguiria ser exato se tentasse retratar aquela tarde em que, quase ao por-do-sol, um caboclinho esquálido, muito maltratado pelos reveses da vida, achegou-se tímido para pedir emprego. Olhos de um pinscher tímido e envergonhado, cravados na ponta de suas próprias sandálias de dedos, ele aguardava mais um não para completar a coleção de negativas de sua via-crúcis. Virei-me para meu cunhado como a perguntar-lhe se havia alguma coisa que uma criança famélica pudesse fazer num serviço pesado como o de extração de madeiras em toros em lugar acidentado.
-Talvez ele pudesse carregar a motosserra para o Baiano – condescendeu meu cunhado que, apesar de não ser lá muito sensível, comoveu-se diante da humilde necessidade do menino.
– É – respondi – vamos fazer uma experiência. Segunda-feira às 6 horas, esteja aqui para seguir para o mato. Não esqueça dos trapos e vamos ver no que vai dar.
O menino pareceu não acreditar. Seus olhos pequenos e negros, desesperançados e tristes, readquiriram um brilho singular, como se todo seu sonho e felicidade se resumisse num prato de comida e num lugar para ficar. Não trazia consigo senão a roupa esgarçada do corpo.

2
Para mim, aquela convivência, agora mais restrita com pessoas humildes e pobres, muitas das quais não sabiam assinar o nome, era uma experiência esdrúxula, cheia de surpresas e novidades. Eu nunca convivera, até então, mais intimamente com elas. Nos anos anteriores, somente aos sábados, depois de algumas rápidas palavras, eu lhes passava o salário e pronto. Se a coisa estivesse andando bem, arguia-lhes as necessidades e não hesitava adiantar-lhes algum dinheiro. Aos poucos, a dor da miséria deles ia adentrando em alguma parte de mim. Já não me era tão fácil viver sem lembrar dos que sofriam ao relento, com frio, talvez revirando latas de lixo à cata de algum naco de pão sujo ou cheio de bolor. No silêncio da mata, diante da paz e do sossego da floresta, eu podia ouvir uma voz ciciada e clara, alertando-me para o perigo do egoísmo e pela insensatez de amontoar coisas que jamais suportaria o peso.

3
O militarismo cai no País. O presidente eleito, vítima de urna infecção hospitalar, falece. Em seu lugar toma posse o vice. Vem o Plano Cruzado: uma ilusão que voltaríamos a sonhar mil vezes se possível fosse. Foi como se Deus infundisse no Funaro o espírito social e justo de Morus. E o povo, desperto de seus pesadelos e duendes, entregou-se à modorra de novos sonhos e ilusões. Logo passou, mas não sem deixar um rastro de frustrações e de saudades.
Por um curto tempo, os preços não subiram, a inflação ficou a zero. Os sensatos arrumaram a vida, enquanto os ambiciosos pagaram um alto preço por suas ganâncias desmesuradas. Foi um ano de trégua em que os pobres encheram a barriga, vestiram-se bem e deram as cartas no jogo da mão-de-obra. Os ricos demoraram a encontrar uma saída para o plano que lhes dificultava os grandes lucros. Com o tempo, porém, eles boicotaram o governo, esconderam as mercadorias, exigiram ágios, enfim, implodiram os castelos e os sonhos da classe pobre e sofrida.
Tentando salvaguardar o plano, o governo subsidiou a defasagem de preço de algumas necessidades básicas, o que deu certa longevidade ao sonho e acabou falindo o País, interna e externamente.
Quando as eleições aconteceram, já parecíamos estar apalpando o fundo do poço. Não havia mais esperança de saída.
Empossa-se um novo presidente que, ainda antes de adentrar no Planalto, decreta feriado bancário para, em seguida, confiscar todo o dinheiro que estava nas agências bancárias. Entre protestos e aplausos, prossegue então o ano de 1990. Sem dinheiro, o desemprego e a recessão aconteceram em avalancha. A insegurança era total. Ninguém podia mais assegurar ser dono de coisa alguma. A necessidade transformou-se numa escola de delinquência, de roubos e de todo tipo de ação que se definia como legítima defesa pela sobrevivência. Aos poucos, sem que percebêssemos, fomos nos transformando em 160 milhões de ladrões.
Deixei o escritório, arregacei as mangas e fui para a frente de serviço, defender-me a qualquer custo. Trinta e uma pessoas acompanharam-me. Eram simples, despreparadas, sofridas e, principalmente, pobres e humildes.

4
Examinei a relação de funcionários, chamei-os, conversei e olhei nos olhos de cada um deles. Ouvi suas histórias, senti a miséria refletida na palidez de suas peles e nos sorrisos com poucos dentes remanescentes.
Gente simples, sofrida, cujo futuro era ter um dia, quem sabe, uma casinha de tábuas rústicas lá na invasão da Vila Redenção. Ao todo, somávamos 31 pessoas: meu cunhado e eu, três tratoristas e seus ajudantes, três motoristas de caminhões pesados e seus ajudantes, um patrolista e seu ajudante, dois profissionais em máquinas carregadeiras, dois mecânicos, duas cozinheiras, três técnicos em motosserras com seus auxiliares, um medidor de madeiras e dois rastreadores de madeiras e de locais de estradas.
Como em qualquer grupo, também no nosso havia gente comum, pessoas que não fugiam à normalidade de ser e de viver. Outros, porém, mostraram-me um outro lado da vida: ensinaram-me uma filosofia com ph, antiga, mas imutável em suas verdades simples. Com eles senti o que muita gente, por certo, também irá perceber ao ler este livro: que são seres iguais a nós, com a única diferença de expressar seus conhecimentos e suas verdades de maneira diferente.

5
O mundo se diz preocupado com a Amazônia. Há aqueles que, de fato, estão preocupados com ela, mas a maioria não perde a oportunidade de usá-la em benefício próprio. Nosso país, envolto em toda sorte de desatino financeiro por causa da inoperância e da corrupção, vive à deriva. O governo prega a vez dos descamisados – até parece sincero em seu objetivo – mas peca pela vaidade e pela mentira. As mordomias continuam, embora só sejam notadas pelos parentes e amigos íntimos destes. As montadoras e outros grandes cartéis continuam desafiando o governo, e este, diante da força antagônica prepotente e potente, não encontra saída. Mais uma vez, os pobres ficam órfãos.
A corrupção nos órgãos do governo é astronômica. O INSS, que recolhe bilhões, não tem dinheiro para atender aos associados que morrem pelos corredores dos hospitais. Vive um déficit jamais visto na história. A Imprensa aponta os desvios, dá nomes, importância, endereço; nada acontece. A inflação não para e, sem frear esta máquina, os pobres serão sempre mais pobres e os ricos, mais ricos.
Diante de nossa inadimplência, os países credores resolvem reestudar a possibilidade do Brasil não ser mesmo um país sério. Enquanto se aguarda, nada de novos empréstimos. Estamos sem estradas, sem dinheiro, sem crédito: um país, embora não declarado, falido.
Aproveitando a situação, o primeiro mundo, que destruiu as suas florestas e atualmente polui a Terra por meio de suas indústrias, acusa-nos de insensatos por não deixar aqui um pulmão para filtrar a grande poluição que causa com seu progresso. Apesar da influência internacional interferir em nossa soberania, o governo se humilha: recebe deles velhos e obsoletos helicópteros, monta-os de agentes florestais e polícia federal armados de metralhadoras e outras armas pesadas, e sai à cata dos destruidores da Amazônia, aqueles que industrializam a madeira e, portanto, têm aquilo que procuram: dinheiro. Pouco interessa aos nossos governantes a preservação ou não da Hileia, mas sim as pazes com os países ricos que poderão enviar mais dólares para serem rateados ou pessimamente utilizados. O IBAMA investe furioso contra as indústrias. Derrubar a floresta ou atear fogo no mato, só pagando. Em se pagando a Natureza parece não sofrer prejuízos.

6
O fogo, somente ele destrói, de fato, a fauna e a flora de qualquer ecossistema. A extração consciente e planejada, em muito pouco as afeta. Retirar uma árvore seca ou madura da floresta é apenas um ato inteligente de quem o faz. Certas extrações com tratores pesados e em lugares acidentados ocasionam danos à fauna e à flora, mas não é o pior. O que destrói tudo mesmo é o fogo.
Enquanto a gente caminhava com os olhos ardendo pela fumaça, os helicópteros sobrevoavam as grandes indústrias, infligindo a eles multas astronômicas por terem toras no pátio sem o devido acobertamento. Sentia-se claramente que o que pretendiam não era salvar a floresta, mas sim os seus honorários, que advinham do dinheiro arrecadado pelas multas. O órgão tinha de ser autossuficiente. Aí, eu ficava cismando onde encontrar um lugar no qual se pudesse trabalhar e confiar nas pessoas. Ficava pensando se valia a pena ser honesto, pagar todos os impostos devidos, acreditar mais uma vez em nossos políticos e ficar por aí pregando o amor eterno à Pátria idolatrada. É, eu ficava pensando.
Meus funcionários jamais perderam um só minuto de sono por causa destes problemas. Perguntados, respondiam:
“Oceis que são branco que si intenda”.

7
De Imperatriz ao serviço, media-se 203 km. Lá, mandamos que se construísse um barracão com 27 metros de comprimento por seis de largura, coberto com folhas de babaçu e armado com grossos caibros de árvores novas e resistentes, nos quais armaríamos nossas redes. Construiu-se apenas uma cozinha, uma despensa, dois almoxarifados e um barraco ao lado para o motor de energia. No primeiro dia, após o jantar, reuni o pessoal e expliquei:
– Isto é uma experiência nova para mim. Minha intenção é fazer de nós uma grande e laboriosa família. Não sei se irei me sair bem desta incumbência, pois no meu currículo neste tipo de serviço, nada consta. Vamos nos dar as mãos e dividir a produtividade. Quero que coloquem aqui neste papel que vou passar a vocês, a importância que gostariam de receber, considerando-se que irão ter calçados, roupa de serviço, capacetes, tratamento dentário para vocês e todos seus familiares, assistência médica particular para aqueles que ainda não tiverem INPS e, finalmente, toda madeira necessária para que os casais organizados possam construir as suas próprias casas. Não haverá mais tratamento diferenciado para quem quer que seja. A lei que for estabelecida será única, do ajudante à minha pessoa. Embora isto não seja possível a qualquer ser humano, tentaremos fazer justiça. Temos aqui duas mães solteiras. São, portanto, conhecedoras da vida comum das moças pobres daqui. Lá fora, elas podem fazer de suas vidas o que bem entenderem, mas aqui serão damas respeitadas, como seres humanos que são. Qualquer desrespeito ou insinuação perniciosa será castigada com demissão sumária. O pessoal ficará assim distribuído: meu cunhado e eu ficaremos na direção geral; o Tonsura se encarregará do…
E assim, durante quase 30 minutos, esclareci tudo quanto queria naquele ano de trabalho. Estabelecemos o ordenado de cada um e, no dia seguinte, às cinco horas, ainda antes de o sol nascer, fomos acordados pelo barulho do motor e pelo brilho das lâmpadas que nos enceguecia. Todos pularam das redes e, em pouco tempo, uma zoeira infernal se fez no meio da floresta. Os volvos aceleravam forte, a patrol testava os giros, os tratores aqueciam, as camionetas eram lotadas de tambores de óleo diesel, jogos de chaves, motosserras, enfim, de tudo quanto podíamos precisar durante um dia inteiro de muito trabalho. Logo que o café da manhã foi servido, saímos à luta.
O barulho das árvores que tombavam misturava-se à cantilena dos caboclos felizes e também aos gritos espavoridos das araras, gorgos e toda espécie autóctone, criminosamente violentada. Era como se um vendaval recaísse sobre aquele mundo que durante tantos séculos esteve ali quieto, equilibrado e cheio de paz. Pouca coisa me doeu mais do que o início daquela experiência. Orquídeas e samambaias daquele jardim de Deus passaram a murchar nas vergônteas daqueles gigantes tombados; os vales sombrios, onde a tona chororocava no início do inverno, agora se transformava num amontoado de empucas que às cobras se prestavam; aqueles edifícios verdes que levaram séculos para se autoconstruírem , agora se viam implodidos pela lei do papel, pela lei do “se pagar pode”, pela lei que assegura a possibilidade de tudo se destruir neste país, desde que renda lucros aos cofres públicos.
E na BR, um pouco mais tarde, centenas de caminhões trafegavam lotados. Nas inúmeras barreiras do IBAMA eles eram parados, examinados e autorizados a seguir: estavam legalizados para destruir a Amazônia. Os não legalizados asseguravam o salário daqueles que se prestavam ao cumprimento de mais uma lei estúpida e injusta deste país.


Os fiscais do IBAMA chegam ao barraco. Examinam o projeto, conferem e conferem: “É, está tudo pago certinho, podem trabalhar”. Aquilo me doeu fundo, pois me fazia entender que, em se pagando, toda floresta amazônica poderia ir ao chão. Para mim, a lei tinha de ser única: ou pode ou não pode, independente de pagamento ou não. Se a floresta tem que ser preservada e esta é a preocupação do momento, então nem todo dinheiro do mundo poderia conseguir uma ordem para colocá-la abaixo. Às vezes, os caminhões vinham com uma tora além do estrado. Os guardas rodoviários paravam o veículo, multavam e mandavam seguir. Ora, pagando, o perigo desaparece?
Quando uma árvore caía era como se arrancassem um pedaço de mim, mas eu permitia e até mandava que derrubassem. Havia um projeto em cima daquela área, aprovado pelo IBAMA, autorizando o desmate sumário para a formação de pastaria. Milhares de animais estariam, em pouco tempo, sem lugar para morar. Viria a broca, a derrubada, o fogo… E os animais que tanto o IBAMA protege, como ficariam? Quem iria processar os responsáveis por uma mortandade tão grande? Afinal, de quem foi a maior culpa na crucificação de Jesus: Pilatos que permitiu, ou o povo que O pendurou na cruz porque Pilatos autorizou? Pensei então que a lei, por meio de seu órgão competente, subsidiava o maior crime contra a Amazônia.
Com tudo organizado, a coisa funcionava maravilhosamente. Aos poucos ia me empedernindo, me acostumando e conhecendo as pessoas com quem lidava. O tempo foi passando. Depois de três meses, numa tarde de sábado, estava eu sentado à mesa que improvisara como escritório, quando o Tonsura passou de calção. Quase não o reconheci. Ganhara músculos, e embora não tivesse crescido tanto, tornou-se um caboclinho musculoso e retaco, disposto e trabalhador. Todos o elogiavam e não se cansavam de falar de sua coragem e disposição. Quase não falava e, todas as noites, de espingarda às costas, metia-se pela mata, só voltando depois da meia-noite. Descalço, sem camisa, com apenas um calção, uma espingarda, alguns cartuchos e uma lanterna, o Tonsura (como ficou conhecido por causa do sacro sinal que os seculares costumavam usar no cocuruto e que nele se apresentava naturalmente) nunca voltava para o barraco de mãos abanando. O Freezer estava sempre abarrotado de carnes: porco do mato, veado, tatu, paca, gorgo, quati, jaboti, tonas e tudo quanto encontrasse.
Muito esquisito e calado, vinha do serviço sempre a pé e sozinho, aproveitando o espaço de tempo em que as máquinas paravam e os ajudantes cuidavam da manutenção. (Os mecânicos exigiam que fossem reabastecidas à tarde, a fim de evitar que o tanque acumulasse água pela condensação). Pela estrada, quando voltávamos, era comum encontrar jacus e mutuns dependurados em forquilhas, barbados estirados no meio da estrada… A gente ia jogando tudo em cima da carroceria e numa algazarra psitacídea não se falava em outra coisa senão na possibilidade de o Tonsura ter ficado por aqui por causa da pane em alguma nave espacial em tempos remotos.

9
Depois do banho e do jantar, todos se reuniam e ficavam confabulando, falando do dia de serviço e dos planos que tinham para o futuro. Foi assim que comecei a conhecer melhor aquelas pessoas humildes com as quais eu estava convivendo. Cada uma era um mundo diferente, um universo, uma personalidade, enfim, um ser humano com todas suas características normais de virtudes e de defeitos. Fui entendendo, paulatinamente, a grande semelhança existente entre todos os seres humanos; fui aprendendo que apenas a cultura, a riqueza, ou ambas reunidas camuflavam a igualdade de sentimentos. No fundo, todos nós gostamos das boas coisas desta vida e, somente por necessidade, deixamos transparecer o contrário. Por causa disto, desta semelhança de sentimentos, os pobres invejam os abastados, e estes, enceguecidos pela ganância e pelo egoísmo, esforçam-se por desconhecer nos irmãos sofridos, seres humanos como eles. No mundo podemos classificar todos os seres humanos em dez grupos distintos. Num deles, cada um de nós está incluído, não importando se rico, doente, gordo, amarelo, negro…

10
Como em dezenas de quilômetros não houvesse rios ou igarapés, mandamos fabricar um grande reservatório de água. Era de “lamerão”, roliço, cinco metros de circunferência e sete metros de comprimento, tipo tanques de transportar combustível em caminhões. Com o auxílio de um de nossos caminhões a gente o transportava ao igarapé mais próximo, enchia-o com o auxílio de uma motobomba, trazia-o de volta e colocava-o em cima de um murundu que havia próximo à cantina do barraco. Dali, através de canos, levávamos água para o banheiro e a cozinha. A água dava apenas para dez dias, apesar de todo consumo ser vigiado e regrado.
Na hora do banho, a confusão era total. Quase trinta homens suarentos e sujos, pelados e impacientes, disputavam a minguada água. Ninguém tinha o direito de se distrair por um único segundo. Eram chutes nos traseiros, observações maldosas sobre os mais diversos defeitos físicos, histórias e contos que iam desde as mentiras mais deslavadas a fatos verídicos e estonteantes. No meio de tantos contistas, o Fuinha sempre se sobressaía, e não havia um assunto que ele não dominasse. Por isto, quando se falou em persistência para se conseguir alguma coisa, ele limpou a garganta, deu o eterno e imodificável sorrisinho de deboche e começou:
– É…., neste mundo, só vai mesmo pra frente quem é atirado. Meu avô (e nunca ouvi dizer que houvesse um avô que soubesse tantas histórias como o dele) contou um dia que lá numa fazenda nas prefundas de Goiás, viveu um sarará de nome Migué que tomava de conta do gado. Um dia, o fazendero vendeu a fazenda e deixou o Migué por conta do compradô. O novo dono veio com um montão de pião, gente pra tudo, principalmente prá tomá conta do gado. Sem função, o nego sarará, que antes era vaquero, para não ser despedido, aceitô o cargo de limpá o curral. Rebaixado, o nego começou a cair a crista. Foi ficando triste, triste, até que adoeceu mesmo. O fazendero foi conversá com ele:
– Que está sentindo, Migué?
– Nada não sinhô. Tô disgostoso da vida. Queria ser vaquero do bom, mas o sinhô quando comprô a fazenda me deixô no currá, mexendo com estrume.
– E sabe mexer com cavalo arisco e boi brabo?
– E minha especialidade.
– Pois não seja por isto. Manda a tristeza campiá e vai escolhê uma burra, um cavalo, o animal que quisé. Marciano – gritou o fazendeiro – leva o Migué pra estrebaria, deixa ele escolhê o animal que quisé e manda ele pegá o nelore fujão.
– Aquele das bandas do Antônio Faladô?
– Aquele mesmo. Tô dando motivo pra nego Migué virá vaquero.
– Mas aquele boi, seu…
– Tô mandando.
– Tá bem, o sinhô é quem manda mesmo – respondeu o capataz.
– Deixa que o fazendeiro havia trazido de onde viera, um burro tretero, cara assim do Cutuca…
– Da véia – retrucou em riste o Cutuca, ainda antes que a frase fosse completada.
Depois de uma leve pausa, o Fuinha continuou:
– O burro tinha cara de moscão, mais ninguém subia no lombo sem senti o cheiro da puaca. Por isso o Corisco (era o nome do diabo do burro) vivia remoendo seu capim, tranquilamente. O Migué nem desconfiava mode o burro vivê na boa vida.
O capataz levou o Migué pra escolhê a montaria. O sararazinho, muito veiaco e miúdo, de chapéu de paia na mão, passou em revista a tropa que tava disponive no currá. Em cada um que passava, batia com o chapéu nas venta e todos eles, menos o Corisco, se afastava de empino. O Migué escoieu logo o Corisco: animal manso e preguiçoso… se não tivesse ninguém em cima.
– E este que quero – falou o Migué.
– O home é do saco roxo mesmo – cochicharam os vaqueiro profissional, pois só mesmo sendo muito bom pra escoiê um diabo desse.
– Pois pode celá o bicho e ir pegá o boi – disse o capataz.
O fazendero torceu o quexo duvidoso. O Migué ciou a fera, bateu com a mão no fucinho dela:
Nada. O Corisco nem se mexeu. O que ele não aceitava mesmo era que alguém botasse a bunda em cima dele. Tudo pronto. O Migué puxou ele um pouco pra fora do currá e montou num pulo. Aí a coisa se deu. O Corisco deu três saltos quase mortais e peidando como metralhadora giratória, saiu pelo pasto afora, distribuindo coices que nem aqueles lutadô japonês fais nos filmes de Cunguifu. Apanhado naquela armadia, o Migué apelô pros santos do céu:
– Valei-me meu protetô São Migué; Virgem de Jesus, acode eu; Meu São Geromi dos caminhonero, me livre desse trem desgovernado…
E como as coisas iam ficando cada veis mais preta, ele resolveu usá tudo logo o que tinha direito:
– Valei-me, tudo o que tivé no céu, ou que tando fora, tem podê.
Ao ouvir aquela gritaria que tarveis só Deus mesmo entendesse, os piões acharo que ele tava cantarolando e comentaro:
– Rapais, o home é bom mesmo! Acho que argum de nois vai perdê o emprego, porque nesta fazenda ainda não apareceu pião pra domá o Corisco.
Sem socorro do céu ou da terra, com as duas mão grudada na aba da cela, o Migué foi gritando pastaria afora, em direção do milharal, onde o boi fujão pastava, até então sossegado. É…, porque quando ele notou o tufão que se aproximava, ele enroscou o rabo e tratou de dar no pé também. A coisa, de tão feia que tava, meu avô dizia que não dava pra contá. Pra desgraça do Migué, do Corisco e do boi, tudo se infilerô cuma se tivesse sido combinado. De repente, aparece uma vala, onde, pru outro lado, por está encurralado, o boi saltou. O Corisco, sem podê freiá, saltou também e foi tudo se embolá do outro lado. Ninguém podia mais sabe o que era Migué, Corisco ou boi.
Ao perceber a desgraça, os peões correram acudi. Laçaram e amarraram o boi, levantaro o Corisco que tava desmoralizado e por fim, o herói Migué. Foi então que um nariz sensive captô um chero estranho, cheiro de bosta mesmo. O caboco que não era besta, oiô logo pras calças do Migué: a merda escorria viva por cima das botas. A turma foi tapano o nariz e virando a cara com desdém. O Migué, se vendo acuado como onça sem saída, tentou explicá:
– Tá vendo só! É por isto que ocês nunca vão pegá boi brabo. Tô certo que se fosse um de ocês teria parado na perseguição só pruquê uma dorzinha de barriga quarqué apareceu. Eu não: primeiro a obrigação. Cagá a gente caga a hora que quisé e em quarqué lugá.
Depois das gargalhadas com as quais sempre premiávamos, nem tanto as histórias do Fuinha, mas principalmente a sua cara engraçada, observamos:
– Como inventou esta, Fuinha?
– Invenção nada, isto aconteceu lá em Ceres, numa fazenda de deputado. Inté posso levá ocêis lá pra conhecê o lugar e o Migué. Ele ainda vive lá na fazenda … se ela não mudou. He, he, he…
– Certamente! – Concordamos em coro.

11
– Para de me encher o saco, Cutuca! Vou lhe dar um tapa no cocoruto que vai incendiar até a tira da lambreta lá no seu pé.
– Dá nada, Cozidão, te olha! Se eu perdê pra tu vou ganhá de quem? Essa é boa: morar na lagoa e perder pra sapo!
– Ei, merda – retrucava o Cozidão – vou ter que fazer mais um pique na coronha de minha por-fora!
– Se borrou de medo de uma raposa e agora fala em matá home?
– Home? Que home? Onde está? Quando era Tucano, até que dava pra enganá, mas depois que foi jogado no estrume pelo Itamá, aí pronto, não tem mais nada pra fazê medo – nem o nariz.
Tucano era mais um apelido do Cutuca, por causa de seu nariz um pouco comprido, de sua índole extrovertida e de sua eterna impertinência, não permitindo que ninguém tivesse sossego ao seu lado. Era baixo, retaco e de uma capacidade de resistência invejável. Depois que um escorregão maldito o jogou na vexatória situação de ser derrubado pelo magriço Itamar, aí foi o caos. Chovia muito e o barro massapé escorregava como sabão. Num desequilíbrio fatal, o nosso Tucano foi parar na lama, diante de uma plateia implacável. Imediatamente foi rebaixado na hierarquia ranfastídea, passando de tucano para araçari.
Já o Manel (como o chamavam seus companheiros de trabalho) era um homem desquitado que abandonara a mulher com cinco filhos. Dizia-se puxador, embora em toda vida não tenha conseguido abater, sequer, um tatu peba. Em qualquer desabafo de alguém, logo se oferecia para eliminar o desafeto do reclamante. Só falava em matar, atirar, puxar, bater … Era, talvez, o mais pacato e medroso de meus funcionários. Tanto era que quando fomos abrir uma estrada no Pará, apareceu uma raposa que atalhou caminho. O Manel, que estava mais perto, sacou do facão e correu para cima do bicho. A raposa estava no cio e arreganhou os dentes para o Manel, numa clara demonstração de que conhecia a bravura fajuta de quem a desafiava. Do jeito que foi, o Manel voltou. Depois disto, passou muito tempo sem acompanhar quem quer que fosse às caçadas noturnas. Vivia arranjando amantes e levando chifres, mas também por isto não parecia importa-se. Justificava-se:
– Prefiro dividir pudim do que comê polenta sozinho!
Trabalhou como cozinheiro durante longo tempo, mas de relaxado a preguiçoso, possuía todos os adjetivos intermediários. Por isso, logo descobriu que jogando arroz, feijão, sal, algum tempero e carne, tudo numa panela grande, era mais rápido e cômodo para ele. Na segunda semana que repetiu a dose, um da turma o apelidou de Cozidão. Linguiça era outra alcunha que o irritava mais que o Camarão da Escolinha do Professor Raimundo, mesmo porque, segundo ele, mexia com a moral. O apelido apareceu quando 15 quilos de linguiça desapareceram do barraco sem que ninguém conseguisse explicar. Acusar o cozinheiro era uma alternativa que inocentava os demais causando tremenda irritação ao Manel. Por causa deste apelido, aconteceram alguns sérios desentendimentos e até algumas demissões.

12
Diz-nos a Bíblia que há um tempo para tudo, inclusive para perder. Nós estávamos no tempo de gastar o que em algum tempo havíamos ajuntado. Se mandingas, despachos, pragas ou quaisquer outras bruxarias pegam, fomos almejados em cheio. Nada mais dava certo, nada mais funcionava.
O posto que nos enviava combustível, fê-lo em tambores com resíduos de produtos químicos corrosivos. Por esta razão, em menos de uma semana, não havia uma bomba injetora funcionando mais. O serviço ficou parado por 40 dias. A uma coisa errada sucedia outra pior. Enfim, passada a terrível quarentena, recomeçamos o trabalho. Para recuperar o tempo perdido, passamos a trabalhar também aos sábados depois do almoço: coisa que até então nunca fizéramos. E foi exatamente num sábado depois do almoço que a desgraça maior aconteceu.
Permiti que a maior parte de meus funcionários ficasse fazendo algum serviço leve de limpeza no barraco e encarreguei o patrolista para arrumar um trecho de estrada que se apresentava em terríveis condições de tráfego. O Cícero era o profissional responsável pela máquina niveladora. Era primo e conterrâneo do Jeová que desempenhava a função de ajudante de motosserras. O Lindoiá, ajudante de patrol, por ser o serviço rápido, concordou em deixar que o Jeová fosse em seu lugar. Nunca aceitávamos tais pedidos, mas neste dia concordamos. Na curva da estrada, ele ainda acenou, pilheriando:
– Nego dos zóis lindos, pode arrumá otro imprego.
Referia-se ao Lindoiá, crioulo estrábico que certa vez assegurara aos companheiros que mulher alguma resistia ao fascínio de seu lindo olhar. De lindo olhar para Lindoiá, foi necessária apenas a criatividade do Cutuca. Ele era o titular como ajudante da patrol.
O local que deveria ser recuperado distava do barraco, aproximadamente, cinco quilômetros. Por ser o trecho pequeno e a distância um tanto inexpressiva, começamos a ficar preocupados quando o relógio marcou 16 horas e nem um leve ruído indicava que os dois estavam retornando. O Tonsura, sempre prestativo e amigo, logo prontificou-se à averiguação. Apanhou a espingarda, alguns cartuchos e saiu. Em menos de 30 minutos ouvimos, ainda longe, gritos de socorro que se faziam tétricos em meio à floresta. Nossos cabelos ouriçaram-se e, incontinenti, acorremos, indo encontrar o Tonsura. Ele vinha só, sem a espingarda, olhos estarrecedores:
– Eles tombaram a máquina lá na curva do ipê do Xibéu.
– E aí, que mais? – Perguntamos em coro.
– O Jeová está debaixo das ferrage e o Ciço está no meio da estrada, a um quilômetro daqui. Está que é sangue puro. Ele vinha se arrastando pra buscá salvação.
Num segundo, dei mil ordens:
– Faustão, volte, chame o Cutuca e o Caveira com os caminhões; você, venha com o D60; tragam também a carregadeira; Quoque, apronte as camionetas…
Quando a primeira camioneta nos encontrou, já estávamos com o Cícero nos braços. Toda resistência dada por Deus, pareceu-lhe sucumbir: desmaiou. Estava exangue no meio da poeira. Dois filetes riscavam suas faces pálidas e lágrimas de emoção, dor e tensão, brotavam-lhe dos olhos cheios de poeira. Demos-lhe água, esfregamos-lhe um pouco de álcool no rosto e mandamos que o levassem, urgentemente, até Açailândia – MA, para que recebesse os primeiros socorros. Acorremos então para o morro do Xibéu. Do alto, avistamos o amontoado de ferros retorcidos. Quando encostamos, escutamos logo os gemidos desesperados de nosso companheiro de lutas:
– Pelo amor de Deus, me tirem daqui.
Os lábios estavam brancos, a gengiva também. Uma grossa lâmina de ferro havia caído em cima de sua bacia torácica. Parecia havê-lo separado em dois. Vimos apenas suas pernas em frangalhos de um lado, e sua barriga e rosto do outro. Tentamos dar-lhe um pouco d’água, mas apenas tentamos, pois mal entrou na boca, voltou escarlate, num vômito de morte. Ele insistia:
– Pelo amor de Deus, me tirem daqui.
Nesta altura, já todo o maquinário de suporte havia chegado. A poeira quase não nos permita enxergar nada. No meio da confusão, o Quoque, meu cunhado, gritou forte:
– Meta o guincho aqui e force devagar.
Ele possuía vasta experiência de mato: eram mais de 40 anos no serviço, vendo de tudo acontecer. Por isto, conseguia, pelo menos, esconder um pouco o nervosismo e a tensão.
O Faustão encostou o D60, engatou o guincho e forçou. A máquina carregadeira firmou por baixo, para que a patrol não escorregasse. A camioneta encostou, tendo na carroceria inúmeros colchões e trapos de panos. Aos poucos a ferragem foi levantado, deixando livre o corpo esmagado. Com muita calma e cuidado, retiramos o Jeová, colocando-o em cima dos colchões. Ele olhou para todos e, simplesmente, disse: “Obrigado” – e cerrou os olhos definitivamente.

13
Petrificados, tontos e boquiabertos, entreolhamo-nos. Não havia nada a dizer. Alguém, talvez supersticioso, observou:
– Agora a coisa acaba. Eu sabia que quando a praga pega só sai com a morte de um. Ninguém sequer olhou para quem estava dizendo aquilo. Tomando coragem, tentei dizer alguma coisa:
– Pessoal, o que está feito, está feito e o que tínhamos a fazer, já fizemos. Agora acabou a pressa e a correria. Sempre acreditei que uma grande solução só advém depois de um grande problema. Quem estava zangado com a gente, certamente agora irá se acalmar, pois acredito, o azar chegou ao extremo. Estou convicto que o Jeová ainda está aqui com a gente, olhando-nos em sua última despedida. Vamos, pois, recomendá-lo a Deus, rezando de mãos dadas a oração que Jesus nos ensinou: Pai nosso que estais nos céus… Jeová, sei que ainda está aqui conosco. Por isto, quero que nos perdoe pelas incompreensões e pelas brincadeiras que possam tê-lo magoado. Fique com nossa amizade e não esqueça de recomendar-nos a Deus quando estiver com Ele. Agora está com a verdade, com a realidade da existência. Mais um pouco e também nós estaremos vivendo este momento que vive e que sei, não há palavras em língua alguma que possa descrever.
Dizendo mais ou menos estas palavras, despedimo-nos de nosso amigo. Depois, ordenei aos outros meus funcionários:
– Coloquem-no melhor no carro. Vamos levá-lo até ao barraco, arrumá-lo quanto possível e depois entregar o corpo à família em Buriticupu – MA.
Cabisbaixos, arrasados, fomos desfazendo o caminho. Alguns choravam o companheiro, outros se mostravam fortes, outros não conseguiam esconder o grande medo que os invadia. O outro dia foi um feriado forçado e triste. Avariados pelos reveses, até mesmo os empregados, que pouco tinham a perder com a nossa desdita, estavam abatidos e pesarosos. No fundo, pela filosofia de berço, eles sabiam que o emprego e o bem-estar deles, também dependiam de nossos bons negócios e lucros. Cada um em seu canto, sem jogo, sem televisão, sem piadas ou brincadeiras: vigília do tempo. Desta alquimia dependia a volta do humor, da alegria e do esquecimento.
Apanhei um facão e saí pelos derredores, podando as árvores em volta do barraco. Estava cortando uns “chupões” da laranjeira quando percebi o Tonsura que passava por perto. Como não era de muita conversa, mormente em dias como o que estávamos vivendo, não fui além de notá-lo. Imaginei que fosse passar ao largo, mas contrariamente, ele se achegou, agachando-se próximo a mim:
– A coisa tá feia! – foi dizendo enquanto tomava um graveto e riscava a areia do chão.
Interrompi o que fazia, enfiei a ponta do facão no chão, esfreguei a manga da camisa na testa e rosto suados, sentei-me no chão, dando mostras de que estava interessado no que ele tinha a me dizer. Ele continuou:
– Óia, talvez ocê num acredita, mais o que está acontecendo é força ruim de argum de nois. Trabaio com océs há muitos anos e nunca aconteceu estas coisas. Tem gente que até sem querê fais mal e leva desgraça por onde passa. Neste ano entrou muita gente aqui pro serviço e um deles é que tá fazendo tudo isto. Sê pode pensá direito, examiná que vai descobri. Pode inté ser uma ferramenta, uma máquina – é, tem coisa que também dá azá. Inquanto ocê não descobri, a coisa não yai mais pra frente, não. Eu tinha uma bicicleta que quase me matô. Era só eu saí que alguma coisa me barruava. Vendi ela e comprei otra e nada mais me aconteceu.
– Não acredito nisto. Acho que estamos nos distraindo, fazendo as coisas erradas. Quando não fazemos as coisas direito damos chances para coisas ruins acontecerem.
– Não é só isso não, tem mandinga no meio, tem gente ruim no meio de nóis. Ele pode até fazê o mal sem querê, mais fais. E que nasceu assim, com esta força pro mal.
Conversamos durante um bom espaço de tempo: o Tonsura defendendo sua maneira de explicar o que estava se passando e eu, baseado na fé, na religião e nos livros, rebatendo o que dizia. Depois, ele se ergueu e voltou para o seu barraco em seu meneio típico que me fazia lembrar o deslizar de uma cobra.
Fiquei pensando em tudo quanto tinha me dito. Lembrei que a própria Bíblia era pródiga em relatos de pragas e provações e que muita coisa já tinha acontecido comigo mesmo, sem que jamais encontrasse explicação convincente. Lembrei de um Passat que possuí e que foi abalroado por seis vezes, mesmo estando estacionado ou parado. O último acidente foi decisivo para que eu tomasse a decisão de vendê-lo. Houve um engarrafamento na Getúlio Vargas e acabei sendo o último da fila. De repente, olhei pelo retrovisor e percebi que atrás, a uns 200 metros, vinha um outro Passat em alta velocidade. Achei estranho que, tendo uma porção de carros parados na frente, aquele motorista se aproximasse naquela velocidade. Não deu outra coisa: do jeito que vinha, bateu no meu carro, quase destroncando-me o pescoço. Todo porta-malas veio juntar-se a mim nos bancos da frente. Quando cheguei em casa rebocando o carro, meu sobrinho pilheriou: “Ué, tio, trocou o Passat num Gool?” Por dois meses não pude virar a cabeça direito. Vendi o carro “azarento” e comprei um Santana: nunca mais aconteceu-me nada inesperado.
Lembrei de tudo isto e comecei a dar algum crédito ao Tonsura, mesmo porque estas lembranças retrospectivas trouxeram à tona dezenas de fatos parecidos. Todo mundo tem histórias destas para contar. Fui pensando: mais de 15 funcionários estavam fora de cogitação, porque sempre trabalharam comigo sem que nada de mau acontecesse. Apertando mais e mais o cerco, fui me aproximando de um suspeito: o mecânico. Lembrando bem, tudo começou exatamente com a sua chegada ao nosso serviço. Por causa desta conclusão, chamei o Tonsura:
– Pensei bastante no que disse, e se há um suspeito é o mecânico. Sou obrigado a reconhecer que existe muita coisa sob este céu que vive lembrando a gente de que estamos, em termos espirituais, na Idade da Pedra. Por causa disto chamei você. Sua experiência neste outro lado da cultura, talvez seja mais coerente e justa numa decisão desta.
– Pois bota ele pra fora hoje mesmo. Se não pará, bota ôtro. É uai, eu também acho que é ele. Ninguém topa o home e isto traz azá. Vai fundo e vai vê como estas desgraças vai acabá.
– Vou pensar – prometi.
Apesar da conversa e das conclusões, não me arriscava a uma injustiça baseada praticamente numa superstição. Contudo, como o mecânico era ruim e já estava na mira da demissão mesmo antes de minha conversa com o Tonsura, demiti-o.
Exatamente daquele dia até a data que escrevo isto, nada mais imprevisível aconteceu. Grande descoberta, grande verdade, ou apenas, engraçada coincidência? Só a crença de cada um ou então Deus poderá responder a esta pergunta. De uma coisa nunca duvidei: aquilo que se acredita é a verdade.

14
Marcamos um jogo de futebol: nossos funcionários versus peões da fazenda. As marcas mais dolorosas de tantos acontecimentos trágicos ou inesperados pareciam diminuídas. As injetoras haviam sido recuperadas, a patrol reformada, o serviço engrenara.
Era uma tarde de sol muito forte. O nosso barraco distava apenas alguns quilômetros do campo, o que não impedia de se ouvir os foguetes e a zoada de velhos Chevrolet que passavam levando os torcedores. Para abrilhantar ainda mais o espetáculo, fiquei de fora. Mandei que encostassem um Volvo lotado de madeira na orla do gramado e fiquei de cima registrando tudo com uma filmadora. A patrol terminou de nivelar o que seria um gramado, pois os animais o haviam transformado num montão de excrementos. A terra, por causa do vaivém da máquina, ficou fina e seca. Qualquer movimento era como se uma mina terrestre explodisse.
Com apenas cinco minutos de partida, pela máquina filmadora já não se identificava mais nada. A poeira densa e terrível pairada no ar dificultando a visão. Juro que jamais vi tantos “vacas-bravas” reunidos. Era cada entrada que eu, filmando, fechava os olhos temeroso. Só o Guruçá, após a partida, usou um vidro inteiro de mercúrio para cobrir as escoriações.
Foi neste jogo que o Tonsura conheceu a Marinalva, mulata de seus 15 anos, bem desenvolvida, cabelos sararás e pele de jambo, menina nascida no interior, bronzeada pelo causticante sol da roça, laço de seda prendendo uma flor de cipó cravo nos cabelos, olhos negros. Por mais que eu a examinasse, não conseguia chegar a uma conclusão se a achava feia ou bonita.
De cima do carro, sempre quando a bola caía na juquira e levava alguns minutos para retomar, eu olhava para ela e percebia que trocava olhadelas furtivas com o Tonsura. Embora todo desajeitado, vi-o aproximar-se:
– O jogo tá bom, né?
– Tá, é uma puaca danada.
– Os boi cagaro tudo e foi preciso passá a patrola.
– Eu não entendo nada de jogo. Vim só pra ver gente junta. Eu moro lá na Capoema e só vejo e escuto lá é bicho e grito de gorgo.
– Gorgo é bom de comer.
– Eu já enjoei. Nois passou mais de ano só comendo eles.
– Vamos sentar ali e proseá um pouco?
– Vamos sim.
O jogo terminou empatado. Quem não apareceu sangrando e cuspindo pó foi taxado de “oreia seca – não era homi”. Lembro bem que no outro dia foi impossível trabalhar. Não havia funcionários suficientes. Passamos o dia todo jogando dominó, bisca ou tômbola.
Quando a tarde caiu, a Florisvalda mandou que o Chapadão, encarregado do pessoal, viesse me pedir para dispensá-la. Pretendia viajar para Imperatriz a fim de receber mais uma parcela de uma miserável indenização pela morte do marido.
– Sou contra – respondi – mas se permitir, não direi nada. Afinal, você é quem responde por este setor.
– O sinhô sabe que só faço o que não qué, se não sei do seu querer.
– Tudo bem. Agradeço sua lealdade.

15
A noite chegou, finalmente! Poucos dias há mais compridos do que aqueles de uma semana sem nada a fazer. Jantamos, ouvimos reportagens pela TV e, depois, ninguém foi para a rede, o que não era normal, pois nos dias de trabalho, logo após o repórter, todos se recolhiam. Sem trabalho e tendo, quase todos, tirado uma boa soneca durante o dia, o sono só chegou bem mais tarde. Florisvalda e Tonha ficaram vendo novelas; os demais de nosso barraco entregaram-se aos jogos de sempre, enquanto o Tonsura, Grilo, Cozidão, Lindoiá e o Cururu, que faziam parte do barraco ao lado, pareciam estar num festival repentista. Exatamente por não gostarem de jogos e amarem a música sertaneja brega, eles se separaram dos demais.
Grilo era o mais culto da turma. Meio filósofo, sabia ler e escrever relativamente bem. Era ele quem passava para o papel os versos do Tonsura. Se alguém quisesse tornar o dia do Tonsura feliz, era só chamá-lo de repentista. Embora não soubesse o que era um A, o Tonsura conseguia cantar versos por horas inteiras, sem gaguejar. O Grilo gravava tudo e depois, calmamente, passava para o papel:
“Arnaldo mais o Xibéu Fizeram reunião. Arnaldo pra caçar, Xibéu pra comer pão.
No meio da semana, Arnaldo não caça não, Xibéu é inteligente, Continua a comer pão.
Entre Arnaldo e Xibéu Há um pequeno segredo, Se o patrão ver eles trabalhando, Fica logo com medo.
Entre Xibéu e Arnaldo, Existe um pequeno pecado, Se o patrão ver eles comendo, Fica logo zangado.
Eu fiz estes versos, No dia duma refeição, Arnaldo comeu cinco quilos de carne, Xibéu, um fardo inteiro de pão.
A Florisvalda fez uma promessa, E nunca pôde pagar, Toinha casa com Grilo, E Florisvalda com Lindoiá.
A Tonha mais a Florisvalda, Fizeram reunião, A Florisvalda casa com Grilo, E Tonha com Azulão.
A Tonha tem uma boneta, A Florisvalda tem um chapéu, A Florisvalda casa com Grilo, E a Tonha com o Manel.
No tempo que eu aboiava, A terra toda tremia, Eu aboiava na Vila Lobão, Na Redenção se ouvia.
O Grilo fez uma promessa, Pra São José do Belém Se não casar com a Florisvalda, Não casa mais com mais ninguém.
A Florisvalda também fez promessa, Com a Virgem de Nazaré, no Pará, Se não casar com o Grilo, Mas casa com o Lindoiá.
Cavalo alto é fuscão, Cavalo baixo é baié, Mulher magra é varapau, As pequenas são sarué.
Não dou uma mulher deitada, Por cinquenta home de pé, Garrote capado é boi, Moça casada é muié.
São Francisco é abençoado, Na matriz do Canindé, Eu também sou coroado, No coração das muié.
Cozinheiro de nome Manel, Não chora, Não recambeia, Não tem amor em perigo, Porque só arruma muié feia.
Meu cavalo e minha muié, Morreu num só dia, Do cavalo eu tive pena, Da muié tive alegria.
Bezerro de vaca preta, Onça pintada não come, Quem casa com muié feia, Não tem medo de outro home. Quem casa com muié bonita, Leva chifre e passa fome.
Quatro coisa neste mundo, Me faz trosse caminho: Um monte de cascavel, Uma briga de guachininho, Uma velha de calça esporte, E um velho gordo arrumadinho.
Quando Deus fez o mundo, Deixou a separação, Areia pra melancia, Massapé para algodão, Moça branca pra namoro, Nega pra fazê sabão.
Cozidão, de tão bonito, Tem os olhos abutecados, Careca de rodia, Só presta pra dar recado.
Quando ele souber disto, Vai virar um leão, Disto eu não tenho medo, Pois nunca temi questão, Ele tem medo de uma raposa, Faça cálculo, de um cristão.
Ele se lembra da muié, Que é bonita pra daná, Tem cintura muita grossa, O cabelo de fuá, Tem olhos atravessado, As pernas de sabiá.
Quando a gente vê ela, Dá vontade de se atrepá, A gente pensa que é uma fera, Da vontade de matá, O nome dela é Rosalina, Por apelido, Naná.
O Manel foba muito, Mas não aguenta rojão, O nome pra ele é Manel Pra nós, é Cozidão.
O Mico Preto da novela, Até tem muito valor, Tem a careca do Manel E a cara do Valdenô.
O nego fica zangado, Quando acaba, qué ter razão, Quem manda ele ser feio, Parecer com capelão?
Nego na sala de branco, Não conversa com juiz, Não é de confiança, Não sustenta o que diz, Os machos são cachaceiro, As mulheres são meretriz.
A mulher que ama preto, Ama cachorro também, E melhor se açoitá, Se quiser vive bem.
Nego nem é bicho, Pois nego não é ninguém. Ousadia que dou a nego, E a mesma que dou a urubu, Carniça bem fedendo, Ovo quando está cru.
Preto não tem pé, tem gancho, Não tem rosto, tem cara, Nego na sala de branco, Só serve pra dá desgosto.
Comê de branco é pato, O de caboco é peru, Preto, como é bicho besta, Come até os urubu.
Jacarandá, pau de andar, Ariranda, pau de abelha, Casaca de boi é canga, Palitó de nego é peia.
Nego só é home, Se gostá de muié, Se for irmão de gente fina, Ou filho de Pelé.
Vou te fazer uma procura, Quero que vai me respondê, Se a parteira que te pegou, Já parou de correr.
Quando o padre viu Lindoiá, Chamou logo o Sacristão: Isto é um bicho, Vai tê que ficá pagão, Só não sei se é macaco, Ou se é um capelão.
O padre arriscou, Batizou o Lindoiá, A igreja pegou fogo, Tudo foi de arrepiá, Os passarinho abriro passo, Os outros fincaro pé, Pensavam que era macaca, Mas era o Lucifer.

16
Xibéu era um crioulo de quase dois metros de altura, forte e relativamente bem-apanhado. A alcunha lhe veio do apetite para rapaduras, cujo sinônimo para o caboclo maranhense é xibéu: uma variação, quiçá, de chiba ou jacuba. Aliás, se o digníssimo Aurélio pesquisasse os regionalismos amazônicos, certamente dobraria o tamanho de seu dicionário.
O nosso Xibéu não subia na camioneta sem antes embrulhar meio quilo de rapadura e duas porções de farinha puba. Para dar uma ideia do consumo de rapadura, devo acrescentar que comprávamos 100 quilos por mês.
Faltava-lhe um incisivo e para camuflar tal deficiência (já que não pudera, até então, consultar um dentista), deixou que crescesse um vasto bigode que, durante muito tempo, impediu que se notasse a falta do dente. Falava grosso e não perdia a oportunidade de dizer-se forte e machão. Completando a empáfia, sempre afirmava: “Aqui é o Xibéu falado, nascido e crescido debaixo dos cacaus de ltamaraju”.
Com a morte do Jeová, a turminha, sempre supersticiosa, começou a contar histórias de gente que foi e voltou, de gente que lá não ficou enquanto não acertou as contas por aqui e coisas mais.
Numa noite sem lua e com céu nublado, tão logo desligamos o motor, uma rajada de saibros caiu no quarto das cozinheiras. Todo mundo ouviu aquilo, mas ninguém ousou tecer qualquer comentário. Passados alguns segundos, o fato se repetiu.
As meninas começaram a cochichar e de repente, outro punhado de saibros caiu-lhes sobre as redes. A Tonha logo gritou:
– Oi gente, vão pará de sacanagem, heim!
Em seguida, outra rajada caiu. Quoque e eu dormíamos bem perto do quarto das meninas, estávamos acordados e não vimos ninguém fazendo aquilo. Mesmo assim, arrisquei:
Pessoal, seja quem for, vamos parar com isto. Amanhã é dia de trabalho e já é tarde para brincadeiras.
Nisto, outro punhado de pedrinhas cai. As cozinheiras, tendo a Tonha na frente, espirraram do quarto como pacas acuadas e vieram juntar-se a nós. Os cabelos encarapinhados da Tonha estavam hirtos. Sentaram-se no banco da mesa de refeição e ficaram ali paradas por algum tempo. O silêncio se fez tumular. Como as horas se passassem e ninguém tomasse qualquer providência, a Florisvalda interpelou:
– O, Tonha, a gente precisa dormi.
– Só entro lá arrastada – foi taxativa a Tonha.
– Isto é brincadeira de mau gosto de alguém – disse eu com certa sinceridade, já que sempre tive dificuldade em acreditar na interferência de seres do outro mundo aqui no nosso.
– Pelo amor de Deus, gente, vamos pará com isto. Eu morro de medo – suplicou a Tonha.
É o Quoque, pode acreditá – opinou o Araçari que dormia quase no meio do barraco.
– Juro per tuti ei santi de Itália – defendeu-se numa recaída de saudade peninsular, o meu cunhado. Mi son cá com ei cavéi em pié, pol credere.
As meninas, temerosas, voltaram para o quarto. Deitaram-se. Os minutos que se sucederam pareceram horas. Todos nós estávamos acordados, mas nem o novo mecânico que sofria de uma rinite alérgica e vivia com as narinas obstruídas fazia-se ouvir com suas fungadas insuportáveis. Podia-se escutar o barulho do próprio silêncio. De repente, no auge da expectativa, aconteceu a mais forte rajada de até então. Droga! – imaginei – como pode alguém jogar pedras dentro deste quarto se por cima e dos lados está tudo fechado, e pela porta, estou vendo, não há ninguém? Seria mentiroso senão confessasse que minha incredulidade titubeou.
Querendo se impor, uma voz grave e forte se fez ouvir:
– Quero ver este fantasma de perto! – Era o Xibéu, o baiano falado.
– Rapais, não brinca com coisa do ôtro mundo não – falou-lhe o vizinho de rede.
– Merda nenhuma – vociferou o Xibéu. Fantasma não existe. Isto é alguém querendo encher o saco. Vô sentá lá dentro e quero ver o fantasma jogar pedra.
E, de fato, o Xibéu, com seu bigodão que fazia sombra nas noites de luar, passou por minha rede e entrou resoluto no quarto das cozinheiras. Mal penetrou o umbral, um punhado de terra foi-lhe lançado no rosto, tingindo de amarelo, o vasto e negro bigodão. Trocando completamente o seu costumeiro timbre de voz por perrengue e afeminado som espremido, o nosso “baiano falado de Itamaraju”, espirrou de dentro do quarto como se estivesse sendo espetado por uma afiada garrocha:
– Gente, a coisa é séria – foi só o que conseguiu dizer.
Meus cabelos levantaram. A Tonha desatou a rede e correu pra junto de nós. Atrás e um pouco mais devagar, veio a Florisvalda. O silêncio era tanto que incomodava. Meu rosto parecia pegar fogo: nunca tinha vivido uma situação parecida. A única coisa que me salvava era a eterna incredulidade. Num ímpeto incontrolável, desafiei: – Se é fantasma que jogue agora um punhado de terra na minha cara também. Fechei os olhos, mas nada aconteceu. Alguém, lá dos fundos, observou:
– Seu moço, não fais uma desgraça desta, não!
– Sabe o que é, gente – justifiquei-me – nunca consegui acreditar nestas coisas. Portanto, creio eu, esta é uma hora das mais propícias para tirar de mim estas dúvidas. Não estou mexendo com o além, estou apenas procurando minha verdade.
É bem certo que eu estava tenso, morrendo de dúvida e de medo. Acho até que falei aquilo sem pensar direito, mas o certo é que falei e nada aconteceu.
Durante o resto da noite, nada mais de anormal se fez sentir. Cheguei a pensar que havia desmoralizado o fantasma. Nas noites seguintes, também nada mais caiu no quarto das meninas. Aos poucos fomos esquecendo que, de fato, fantasmas podem existir.

17
Havia em Buriticupu um tombadouro com madeiras extraídas no ano anterior. É que, no Maranhão, o tempo fica chuvoso durante cinco meses e faz sol durante sete. Por este motivo as indústrias madeireiras aproveitam o tempo de verão para extrair as madeiras e colocá-las na orla do asfalto. Quando as chuvas chegam, quando não se é mais possível entrar nas matas, então suspende-se a extração e começa-se o transporte das madeiras às indústrias. Assim sendo, tínhamos uma sobra de estoque em Buriticupu de, aproximadamente, dois mil metros cúbicos. Um dos nossos maquinistas, de nome Clemente, morava lá. Era homem de nossa confiança. Vinha periodicamente passar os fins de semana em minha casa, onde era recebido com todas as honrarias de um amigo. A gente tinha por ele profunda admiração.
Um dia, o outro meu cunhado, o Adalvirul, que gerenciava a indústria, reclamou da qualidade dos ipês que estavam chegando e disse não estar entendendo, pois havia muita madeira de primeira qualidade lá naquele tombadouro. Como as reclamações continuassem, fomos constatar e percebemos que, de fato, lá só havia madeiras de segunda e terceira qualidades. Para desvendar o mistério, começamos a averiguar, perguntar… até que um dia, quando já estávamos esquecendo o assunto, eis que um senhor amigo, possuidor de um Mercedes 1113 que trabalhava a frete, chamou meu cunhado ao lado e ciciou:
– Vocês estão pagando carreto daquela madeira do Buriti?
– Nós nunca pagamos frete: temos nossos próprios caminhões – respondemos.
– Então, podem abrir os olhos que estão roubando a madeira de vocês. Meu caminhão mesmo anda puxando madeira a frete de lá.
– Não é possível! Temos lá um vigia que mora no meio do tombadouro; a madeira lá, para sair, tem que usar a carregadeira; o Clemente, que manobra ela, é homem de casa. Trabalha com a gente há anos e é de nossa confiança. E como se fosse um irmão.
– Pois é ele mesmo quem carrega os carros a frete.
– Mas, como?
– Ele fais isto nos domingos ou então à noite, quando voceis não estão por aqui. Ele sabe que voceis não trabalha nos domingos, nem à noite.
– Está brincando?! … Filho de uma égua!
– E verdade, mas não me meta nesta increnca. Se me meter eu vô negá, pode acreditar nisto. Você sabe como são estas coisas: acaba sempre dando em morte. Gente ruim só pensa no mal.
Quando o Quoque me contou o fato, organizei logo a viagem e fomos para lá. Encostamos a camioneta na porta da casa do Clemente. Ele veio sorridente:
– Chegô caminhão pra carregá?
– Chegou sim – menti.
Logo que nos distanciamos um pouco de sua casa, meu cunhado falou duro:
– Você se meteu numa enrascada, Clemente.
Ele empalideceu:
– Como assim?
– Você é um ladrão, e nós vamos meter você na cadeia.
Ele fez menção de reagir, mas acabou quietando-se, mais pálido que um acidentado moribundo. Falei então:
– Como é a vida, heim Clemente? Você, exatamente você, a pessoa em quem eu mais confiava. O funcionário que mais ajudamos. Demos-lhe crédito, casa, madeira, guarida em fins de semana junto às nossas famílias … puxa, como isto é triste! Sinceramente, acredito ser esta a maior frustração de minha vida em relação a pessoas humildes como você.
Ele a nada mais respondia. Paramos em frente a delegacia de polícia.
Alto, gordo, preto, de uma empáfia de fazer inveja a um rastaquera imodesto, o delegado, depois de fazer-nos esperar umas boas horas, resolveu atender-nos. Eu falei primeiro:
– Senhor delegado, nós estamos acusando este homem de roubo.
– Baseado em quê?
– Em testemunhas oculares.
– Onde estão elas?
– Aí fora.
O delegado virou-se cheio de autoridade, e como nos filmes de faroeste, com um nuto, ordenou a um subalterno para que fizesse as testemunhas entrarem. Numa antessala crivada de balas desferidas pelos posseiros da região (isto era uma constante por lá), com todos os implicados reunidos, o delegado iniciou aquilo que poderíamos chamar, inquérito policial:
– Continue você – disse-me ele mirando o indicador no meu nariz.
Contei tudo quanto sabia e quanto havia feito para o ingrato funcionário. Em seguida, as testemunhas foram ouvidas. O gerente da fazenda onde ficava o tombadouro disse que viu, por sete vezes, o carregamento de trucks com ipês de primeira qualidade, todas elas feitas aos domingos, feriados ou à noite. Depois, foi a vez do vigia, que logo arrancou do bolso roto, seiscentos mil cruzados novos e devolveu-os ao delegado, dizendo que havia recebido aquela importância para ficar calado. Disse também que tentou sair fora pois nunca lhe passara pela cabeça ser ladrão, mas que o Clemente o havia ameaçado se não aceitasse ou se abrisse o bico.
Diante de tais evidências o delegado pediu ao acusado para confirmar ou não o que se estava dizendo a respeito dele. No começo, ele tentou diminuir o roubo, afirmando que não havia roubado sete, mas quatro viagens apenas. Depois, como havia roubado muito mais que sete, achou por bem ficar com a irrisória quantidade da qual era acusado. O delegado pediu, então, a minha opinião:
– Ele me devolve a madeira ou o dinheiro correspondente à madeira roubada, eu retiro a queixa e tudo fica esquecido.
– Só tenho comigo mais dois milhões e quinhentos mil cruzados novos. O restante eu já gastei.
– Em quê? – Perguntou o delegado.
– Numa porção de coisa.
– Por exemplo?
– Só lembro de um lote, um revólver … e outras bobagens.
O delegado mandou logo dois soldados apreenderem a arma: nunca mais foi vista. Em seguida ficou (com minha anuência) com um milhão de cruzados novos para a blitz e outras despesas inerentes. O lote eu não aceitei. Ele foi preso.
Passados três dias, o sogro dele apareceu oferecendo-me cinco milhões de cruzados novos a serem pagos com 45 dias. Aceitei, retirei a queixa e o Clemente foi posto em liberdade. Tudo parecia terminado.

18
Ressabiado, mais desconfiado que tona que fugiu do laço, numa tarde de agosto, o Tonsura passou por mim e disse que precisava falar-me. Quase sempre, quando um funcionário dizia isto, era fácil deduzir: dinheiro, gonorreia encruada ou licença para ficar alguns dias na cidade. Desculpas nunca faltavam para a classe mais inteligente do planeta na arte de inventá-las.
Após o jantar, chamei-o e nos separamos dos demais a uma distância que nos permitia privacidade. Na sua eterna e costumeira característica, ele agachou-se, arrumou logo um graveto e, tendo preenchido o ritual que lhe dava segurança, falou:
– É que queria que o sinhô me fizesse o favô de lê este papel. Foi a menina que conheci lá no jogo de domingo. Ela escreveu um bilhete mais eu não sei lê.
– Vamos lá pro seu “palacete”. Aqui no escuro, também não consigo ler.
Fomos para o barraco que distava apenas uns 30 metros do nosso. Acomodamo-nos frente a uma lâmpada. Abri a folha de caderno amarfanhada e já no cabeçalho percebi que minha função não seria menos cruel daquela exercida por Champollion:
“Capuema
Tonsura minha flor de laranjeira, meu anjo delicado mim perdoa eu li peso mim desculpa por caridade que eu passei o pé anti da mão li peso pela três pessoa da Satisma tridade mim perdoa que eu não mereso você olha meu Tonsura eu sinto um tração muito forti por você meu Tonsura eu não mando meu coração olha se eu mandasi você axa que eu escrevia este bilhete pra você por caridade mim perdoa não é eu é um desejo que faiz li peço não fiqui com raiva de mim.
Quando estiveres em silêncio lembre que este silêncio sou eu que estou pençando em você.
A rosa nasce bonita por causa do jardim a culpa é toda da sua mãezinha que feiz você asi.
Qui maçã de rosto linda boca santa disculpa eu só mulher errada eu não mereso você paixão das minha paixão.
O tempo em que fizer uma declaração era dizer com toda sinceridade eu ti amo.”
Bem sei que qualquer um que ler este bilhete entre tropeços e solecismos, na mistura de frases decoradas com frases puramente do coração, irá perceber o que a Marinalva tentou transmitir.
Qualquer um entenderá esta linguagem simples, mas extraída da pureza da mais linda das emoções: o amor. Por isto eu afirmo mais uma vez: somos todos iguais, somos todos inteligentes. A diferença reside apenas na maneira de traduzir os sentimentos.
A Marinalva poderia ter estudado e escrito de outra forma, mas jamais transmitiria ao Tonsura coisas diferentes. Por isto, logo que terminei a leitura, virei-me eufórico para ele e num gesto de vibração, comentei:
– E isto aí, Tonsura, a menina está apaixonada por você – e pilheriei: também, com todo este charme, qual a gatinha que resiste?
Sempre calado, ele deu urna risadinha de felicidade, apanhou o bilhete, agradeceu e saiu assoviando qualquer coisa. Não era preciso ser muito inteligente para entender que estava muito feliz.

19
O Fuinha chega pela madrugada com dois gorgos dependurados. O vaivém pelo barraco, as raspadas do garfo na marmita de alumínio, as limpadas de garganta na luta para desgarrar pigarros grudados… tudo concorreu para que os que tinham sono mais leve acordassem e se levantassem para urinar ou tomar um cafezinho. Com o Fuinha tilintando talheres e os de sono leve andando pelo barraco, não demorou para que quase todos, inclusive as cozinheiras, deixassem as redes e fossem ver a proeza do Fuinha. Somente o Cabeção dormia – era quase impossível acordá-lo. O Cabeção não dormia: hibernava. Surpreso, perguntei:
– Ué, Fuinha, caçando barbados à noite?
– Não, matei eles ainda antes de escurecê.
– E as pacas, veados ou ao menos os tatus?
– Quebrei a cara. Fui lá naquela figuera excumungada. Era tanto morcego que se uma anta viesse montada no cavalo do Migué, não dava pra suntá. Os bicho fazia uma zuada com as asa que cheguei lembrá daquele caçadô medroso que gostava de i esperá os bicho no jatobã curuba da beira da picada. Foi lá no Trecho Seco, perto de Açailândia. O cabra tava lá em cima do mutá, suntando de oreia em pé. Só um ventinho fresco de vez em quando passava mexendo as foia seca, parecendo bicho veiaco que chega assustado. Aquele baruinho começou deixá o caboco cabrero. De minuto em minuto ele acendia a lanterna e não via nada. Deixa que se Deus é grande o diabo não é pequeno: perto do mutá dele, morava uma veia tuberculosa que quando a crise dava ela saía pela mata afora pra procurá valida. E óia no que deu: foi passá mesmo na picada, perto do mutá do caboco. E ela tossia mais ou menos assim: if, if, if, if – e terminava se explicano – i tosse!
Ele apurou as venta, suntou mas não conseguiu descobri nada. Só podia ser alma penada do outro mundo. Arrumô o borná, botou dois 3T na 12 e ficô veiaco. Quando a coisa se aproximô demais, ele perdeu a confiança na espingarda e nos cartucho: pulou em baixo e deu na perna. Como cotia que corre de cachorro, de veis em quando ele parava pra vê se o bicho tava seguindo ele, e ouvia: if, if, if, if … i tosse! “O leão abera o homem” – pensava. Pensava e corria como doido. Chegô no barraco mais assustado que padre saindo de moté. Só depois ficô sabendo da veinha. Foi até visitá ela e levou um quarto de tatu pra tadinha matá a fome.
A gente quase nem mais ria de tantas histórias que o Fuinha narrava. Em média, dependendo dos bate-papos, ele contava cinco ou seis por dia. Jamais houve um assunto comentado em que ele, estando por perto, deixasse passar em branco. Depois dos devidos comentários, ainda perguntei:
–Mas Fuinha, só gorgos?
– Não adianta campeá aguia perdida no paiero – respondeu ele. Paca lá é remédio de canço.
O cozidão, que nunca conseguia dormir mais que duas horas por noite, aproximou-se com a faca amolada:
– Pindura o Lindoiá aqui neste varão que vô deixá ele com frio esta noite.
– A veia – retrucou em riste o vesgo crioulo que também perdera o sono.
– Vê lá como desdiz seu pai, nego!
O Lindoiá apanhou um facão que estava ao alcance, riscou-o no chão, fez malabarismo, pulou de lado e arrotou vantagem:
– Já tava em duas bandas.
– Sai pra lá, macaco. Com você brigo só com a bainha. É uma lapada na testa que incendia as tira da lambreta lá em baixo.
Vigi!… – limitou-se a contradizer, o Lindoiá.
Eles eram grandes amigos: amigos de infância. Trabalharam sempre juntos e não havia nada que um desconhecesse do outro. Por isto, as discussões entre eles era sempre muito interessante.

20
Tomou-se comum ver o Tonsura tomar banho, arrumar-se, apanhar a espingarda e desaparecer rumo à Capuema. Lá pela madrugada retomava, porém, não mais com bichos abatidos. Não era difícil adivinhar a espera que estava frequentando. Mais calado que nunca, um pouco mais vaidoso e se dedicando semana após semana às músicas sertanejas, o Tonsura foi se tornando um perfeito idiota: totalmente apaixonado. Quase não viajava mais para Imperatriz, preferindo sempre ficar como vigia do barraco. Agora que havíamos construído uma estrada até à casa do Velho da Onça (um índio que trabalhou como guardião das Terras da Mapisa durante quarenta anos) e cuja estrada distava apenas cinco quilômetros das invasões da Capuema, o Tonsura não parecia querer outra vida. Pedia permissão para “caçar de tramontina” (uma velha pick-up adaptada para abastecer as máquinas e que só alcançava vinte quilômetros por hora de velocidade) e com ela fazia a festa. Com chuva ou com sol, no morro ou nos atoleiros, a tramontina abria caminho. Com tração nas quatro rodas, leve e muito alta, nada a detinha.
Com tantas e insistentes visitas do Tonsura, logo apareceu, em nosso barraco, o Velho da Onça. É que o índio tinha sua maloca na passagem para a Capoema. O Tonsura deixava ali a tramontina e desfazia o resto do percurso a pé.
Raquítico, pálido pelos quarenta anos de floresta, já quase surdo e cego, o índio não parecia ter outro sonho senão descansar para sempre num casebre de taipa em Buriticupu.
– Oia, eu tenho oito arve de pau d’arco logo pra cima de onde fico, na divisa da invasão. A estrada agora já tá perto. Foi Zezinho, gerente antigo que me deu, mas nunca pude tirá porque não tinha estrada. Queria que o sinhô comprasse elas pra mim comprá uma casinha lá no Buriti. Já não escuto, não vejo direito… os bicho me come as galinha e os porco, os cachorro late, mas eu só fico sabendo muito tempo depois. Não sirvo mais pra nada. Depois, os homi vendero as mata e não precisa mais de mim como vigia. Eles me prometero uma casa, mais agora estão dizendo que não vão dá o que um gerente antigo prometeu. Mandaro eu procurá o Zezinho, mais tem vinte ano que não sei dele. Você sabe como é estas coisa!
Olhei para ele penalizado: quarenta anos sozinho dentro de uma floresta, vigiando terras e tendo como vizinho mais próximo um morador a vinte quilômetros de distância. Tudo isto não lhe assegurava o direito de uma tapera numa vila perdida nos confins do Maranhão.
– Vou falar com o novo gerente e tentar convencê-lo de que as árvores são suas. Se ele concordar eu as compro.
O índio não escondeu a felicidade na vã esperança de que eu conseguiria realizar seu sonho. Dias depois, falando com o gerente, ouvi dele, com tristeza, as evasivas:
– Infelizmente não tenho ordem para entregar as tais árvores. Segundo o patrão, aquelas árvores foram indevidamente dadas e por isto não irá permitir que sejam extraídas em favor do índio.
– Mas – condescendi – acho que não seria muito indenizar com oito árvores de ipê, 40 anos de serviço.
– De fato, não é. Aliás, você sabe que se o velho tivesse algum estudo ou alguém por ele que entendesse de lei trabalhista, muitos zeros seriam acrescidos aos oito.
Baixei a cabeça envergonhado: não encontrava palavras nem ação para postar-me dignamente diante daquele quadro de ingratidão.
Durante algum tempo continuei visitando o velhinho. Ele tinha muito mamão, muitas bananas, canas caienas e batatas doces. Eu levava carne, pão e remédio e ele me dava o que a terra produzia com sobra. Como dizia: não precisava de dinheiro, senão para um pouco de querosene e sal.
Numa de minhas visitas, encontrei a palhoça vazia. Esqueléticos cachorros me acuaram; um jegue que estava amarrado numa goiabeira dava mostras de ali estar há muitos dias. O chão estava limpo e nenhum ramo verde podia ser visto, ao seu alcance.
Acalmei a bicharada como pude. Dei alguns pães aos cachorros, soltei o jegue, cortei urna cana e pus-me a chupá-la sobre um tronco seco de tatajuba. O jegue correu para o poço d’água e parecia não haver líquido bastante ali para lhe saciar a sede. Depois estremeceu o pelo e começou a pastar pachorrentamente. Minutos depois, ergueu a cabeça, direcionou as orelhas e esturrou. Os cães atestaram a veracidade do alarme, ganindo com euforia. Ergui-me apreensivo. Por mais que afinasse os ouvidos e examinasse os derredores, nada escutei nem percebi. Estava certo, porém, que o aviso não era falso. Os animais têm sentidos mais aguçados que o homem. De fato, eles não estavam enganados.
Com escoriações pelo corpo inteiro, o velho índio retornava, depois de sete dias bebendo, Deus sabe onde e quanto. Ainda antes de perceber minha presença, monologou: “Esta desgraça ainda me mata”.
Dei-me a conhecer:
– Caiu, amigo?
– O, o sinhô taí?
– Cheguei há pouco.
– Veja só, se eu tivesse vindo pela sede vinha de ponga com o sinhô.
– É… acabo de chegar.
– Eu vim por dentro da mata, na minha velha trilha de quarenta anos.
– O senhor é muito corajoso!
– Já tive medo, quando a vida me servia. Hoje estou surdo, meio cego e muito velho. Ter medo de mais o quê?
– De se machucar e até perder a vida.
– Minha vida eu já vivi. Já matei onça, enfrentei briga… Deus do céu, quanta coisa já fiz na vida! Hoje acabô. E só esperá fechá os zóios e parti deste mundo veio.
Tentei mudar o assunto que me constrangia. Pouco há que maltrata mais uma alma sensível do que o irreversível.
– Conseguiu pegar algum pássaro?
– Só um uru, mais acho que já morreu. Fiquei muito tempo fora e a comida acho que acabô.
Na verdade, não era um uru, mas sim, um udu. Milagrosamente ainda estava vivo no meio de uma porção de mamões podres. Aquilo me entristeceu sobremaneira. Um pássaro tão lindo, um esmero de cores vivas, ali, prostrado, todo sujo. Era como se se tivesse jogado lama em cima de uma flor. Com o fito de soltá-lo, disse-lhe que aquele pássaro me interessava muito. Percebendo minha mentira, ele observou:
– Se pensa em soltá ele, pode tirá o cavalo da chuva. Eu tirei as penas da asa dele e elas não vão mais nascê.
– Nascem sim. Com o tempo, novas penas nascerão.
– Não, dele aí não vai nascê mais não.
Só por capricho, trouxe o pássaro. Ficou comigo durante anos e as penas da asa direita, de fato, nunca mais nasceram.
Com o tempo, deixei aquele local de trabalho. Não mais vi o Velho da Onça. Talvez tenha morrido; talvez esteja vivo e morando num casebre de estuque em Buriticupu. Afinal, seu grande sonho era tão pequeno! E sempre há um lugar vulnerável, mesmo no coração empedernido de pessoas ingratas.

21
Sempre filosofando, mais concluindo do que tecendo comentários, vivia o Grilo. Quando colocava o capacete branco, então, tinha que cuidar-se dos inambus, pois era impressionante a sua semelhança com o ortóptero que lhe agraciara a alcunha. Se a gente perguntasse a alguém com quem se parecia, a resposta vinha imediata: com um grilo.
Nos últimos dias eu notara que ele vinha me espreitando como se procurasse um momento oportuno para me dizer alguma coisa. Sabendo-o tímido e calado, favoreci a situação. Pedi-lhe que limpasse os derredores do banheiro, e munido de um facão forjei a poda das macaxeiras que ali havíamos plantado. Com olhadelas furtivas e ocasionais eu percebia que ele buscava coragem para dizer-me qualquer coisa. Passado algum tempo, encorajou-se. Disse que precisava da minha ajuda, que confiava em mim e esperava que eu não fosse decepcioná-lo.
– Quando quiser – respondi-lhe. Estarei sempre pronto a ouvi-lo e dizer minha opinião sincera a respeito daquilo que me for perguntado.
– Tá okey – terminou ele satisfeito e conciso.
Dias depois, aproveitando um momento de folga, ele se aproximou e entregou-me uma carta. Guardei-a naquele momento e logo que fiquei sozinho, passei a lê-la:
“Meu ilustre patrão:
Deposito toda minha confiança no senhor pois sei que estais a altura pra me dar uma palavra de esclarecimento como também sei que não vai ignorar pois tens um bom coração como sempre tens demonstrado.
Sou uma pessoa infeliz, tenho medo daquilo que é importante, tenho medo de me encontrar com uma pessoa que é importante, mas por que esse medo? É a timidez que me assola que me acaba mas porque essa timidez? Algumas pessoas dizem, na minha ausência e até na minha presença em tom de brincadeira, que tenho anormalidade na mente. Eu até admito, mas às vezes imagino: tem pessoas que julgo ser igual a mim neste sentido e conseguem se relacionar com as outras pessoas e não vivem na solidão como eu, inclusive acho que tenho superioridade no conhecimento de algumas coisas, mais que algumas outras pessoas.
Acho que o que falta em mim é a compreensão desta gente que só quer saber de quem é engraçado ou de quem tem muito dinheiro.
Fazer sexo para mim sempre foi uma tarefa difícil. E vergonhoso dizer isto, mas é a verdade e sei que como já disse acima, estou dizendo para uma pessoa de minha verdadeira confiança. Sei que meu problema não é físico. Tenho quase certeza que se encontrasse uma mulher que me compreendesse em todos os sentidos, eu me tornaria, como dizem, um homem normal. Tenho lutado para ver se consigo isto mas parece que o sol não nasce para mim. Tenho também pedido a Deus, aos anjos e santos, no meu serviço, trabalhando e rezando para que não deixe que uma coisa que não existe, acabe existindo dentro de mim. Às vezes fico descrente: será que Deus existe mesmo? Será que existe santos? Será que a gente tem alma quando morre?
Peço as almas de meus pais para que elas, pelo menos me apareça em sonho e me diga alguma coisa, mas nada, nada mesmo acontece.
Tem certo tipo de mulheres que não tenho nenhuma atração sexual por elas enquanto outros homens têm, mas quem sabe se estas mulheres me dessem o carinho necessário eu me tornaria igual aos outros homens? Enquanto para aquelas que tenho atração, a timidez é tão grande que me faz ficar sem jeito ao me aproximar delas e conversar.
Portanto sou um homem que nunca consegui superar a fase de criança aquela dos anos 50 pois hoje até as crianças são mais levadas que eu. Nunca contei meu problema para ninguém embora tivesse vontade, pois só agora penso ter encontrado alguém que, de fato, pode me ajudar. O senhor pode analisar todo meu problema e me dizer alguma coisa.
Portanto, patrão, o senhor não imagina o quanto ficarei imensamente feliz se o senhor me disser alguma coisa a esse respeito, pessoalmente ou por escrito.
Que Deus lhe dê tudo o que o senhor almeja.
Grilo.”

22
Aos poucos eu ia conhecendo melhor meus funcionários, percebendo que eram parecidos comigo, com problemas, às vezes, um pouco diferentes por causa da condição social, mas com dificuldades como todo ser humano. Eu sempre imaginava que as pessoas humildes só viviam problemas financeiros, mas, tendo angariado a confiança deles, logo percebi que também na alma sofriam dúvidas, tensões e sonhos.
Como começassem a ser frequentes as chamadas para troca de ideias, resolvi, sem que desconfiassem, tirar um dia por semana para nos reunirmos a fim de tratar de assuntos inerentes ao serviço. No meio da conversa eu sempre inseria os problemas que, sabia, existiam em cada funcionário. Humildemente e com a melhor das intenções tentava dar a minha opinião para que as dificuldades fossem superadas. Eles, estou quase certo, pouco aprenderam, mas eu sim. Depois disso passei a ter uma ideia bem mais humana e clara da vida desta gente humilde. Entendi, finalmente, que há várias maneiras de se dizer uma coisa, várias palavras para se elaborar um pensamento, mas que estes pensamentos, embora expressados com palavras diferentes, são igualmente verdadeiros e reais, tanto num filósofo como num humilde ser humano que nem sequer sabe assinar o nome. Se um dia eu não usar a grande experiência e sabedoria dos humildes não será por culpa deles; se um dia eu me perder em pernosticismos e verborreias, que servem mais para ofuscar a verdade do que para dizer o que de fato é certo, também não devo culpar-lhes.
Com eles percebi como os ditados, as observações e as reações são mais puras e coerentes quando não são prejudicadas por montagens de palavras. Hoje, estou certo que também eles sabem o que é bom, que também eles sabem quando estão sendo enganados; que também eles desligam os aparelhos de TV quando um político fanfarrão, espumando hipocrisias pelos cantos da boca, prega promessas enganosas em favor dos descamisados, pobres e oprimidos; que também eles sonham possuir uma casa, um carro e um dinheirinho extra para jantar fora com a namorada ou com a família; que também eles perdem horas e noites de sono, imaginando se, de fato, Deus está sempre por perto para creditar-lhes os tantos sofrimentos pelas injustiças sociais recebidas; que também eles sentem inveja, são vingativos, têm ódio no coração, roubam e matam; que também eles têm dentro do peito muito amor, fraternidade e carinho.

23
Eu acabara de chegar de Imperatriz. A cada quinze dias eu passava uma semana na cidade a fim de pôr em dia a contabilidade, ajustar-me à situação, reiterar-me dos compromissos, “tomar um banho de civilização” etc. Mal desci do carro já vieram céleres trazer-me a notícia de que o fantasma, mais afoito que antes, voltara, e que, por isto, ninguém havia dormido. Um frio perpassou-me a espinha, já que, embora viva apregoando que fantasma não existe, não sabia explicar também como aqueles torrões caíam de cima para baixo, num quarto fechado, onde era impossível arremessar qualquer coisa para que descesse em cima das redes das cozinheiras.
Passei o dia cismando, tentando buscar uma explicação convincente. Sabia que, à noite, possivelmente, a coisa se repetiria e aí, então, todos esperariam uma solução de minha parte. A noite veio.
Desligamos o aparelho de televisão e o motor que gerava energia. Uma semiescuridão invadiu o ambiente, já que apenas um fiapo de lua, uma vírgula luminosa, alumiava sem presteza a floresta. Em menos de dez minutos uma rajada forte de pequenos calhaus caiu no quarto. O silêncio se fez tumular. As meninas pareciam estar dormindo, pois também delas não veio qualquer ruído. Eu, que dormia na quina do quarto, botei a cabeça para fora da rede e fiquei observando se, de alguma maneira, alguém estava fazendo aquilo. Nada.
Mais um pouco e outra rajada. As meninas saíram como cutias em oco enfumaçado. Saltei da rede e examinei os funcionários: todos estavam em suas redes, bem acordados, mas em suas redes. Somente o Cabeção, que nem com fantasmas perdia o sono, roncava. Na verdade, se ali perto entrasse um vulcão em erupção e as lavas não o atingissem, ele continuaria dormindo.
Droga! – imaginei – a coisa está mesmo ficando insustentável. Como em toda minha vida, sempre a maior dificuldade foi acreditar em coisas transcendentais, achei que não poderia haver situação mais propícia para dirimir a dúvida. Seria naquela hora ou nunca mais. Embora correndo o risco de uma desmunhecada, engrossei a voz como o Baiano o fez anteriormente e falei com firmeza:
– Gente, fantasmas não existem. Para o que está acontecendo, para ser sincero, ainda não encontrei explicação, mas os fantasmas, estou certo, não estão jogando pedras. E para provar isto eu desafio, pela segunda vez, ao tal fantasma, para que lance em meu rosto uma pá cheia de terra – e dizendo isto fechei os olhos, confesso, temeroso.
Nada aconteceu. A coragem aumentou. Pigarreei mais forte e ordenei às cozinheiras para que voltassem ao quarto, pois eu iria passar o resto da noite lá também. Embora temerosas, elas obedeceram. Fui junto. Elas se deitaram e eu fiquei sentado numa tábua ao lado, onde deixávamos os alimentos. O tempo foi passando, passando. De repente, novo punhado de pedrinhas caiu no local, algumas delas em cima de mim. Corri até a porta e examinei: todos estavam nas redes. Para tirar dúvidas, averiguei uma por uma: todas estavam ocupadas e com os rapazes de olhos esbugalhados, menos o Cabeção, é claro. Com tal estímulo, confesso, minha segurança combalida chegou à fase terminal.
Acendi a lanterna e procurei as tais pedrinhas que caíram. Examinei-as: eram iguaizinhas às do chão. O fantasma estava catando-as ali mesmo. Afinal, quem poderia imaginar o frete de pedras místicas do além? A ideia foi me clareando. Disse então:
– Aconselho ao fantasma a não mais arremessar pedras aqui dentro, pois caso contrário será demitido e terá que fazer despachos em outra freguesia. Amanhã, prometo, vou desvendar este mistério. Já estou quase certo do que está acontecendo.
Saí do quarto e fui para minha rede. Os cabelos estavam eriçados, mas eu não podia recuar mais. Era uma boa hora para que eu tirasse algumas dúvidas que sempre me acompanharam. Fosse o que Deus quisesse. Afinal, Tomé não deixou de ser santo por causa de sua proverbial descrença!
Pela manhã, depois do café, adentrei no quarto das meninas. Comecei a verificar tudo amiúde. Comparei as pedras: eram as mesmas do piso. Continuando minhas pesquisas, percebi que havia arranhados em baixo da rede da Florisvalda, local onde o fantasma, preferencialmente, apanhava as pedrinhas com terra. Quando me virei para chamar o Cutuca que me auxiliava nas investigações, notei que a Florisvalda estava agarrada ao portal, muito assustada:
– Olha, seu Carlos, eu não tenho nada a ver com isto não, heim!
– Nem eu a estou acusando de nada – respondi.
Já não havia muita dúvida em mim: a Florisvalda era o fantasma.
Confabulei com o Araçari. Ele concordou com minhas suspeitas. Depois de rápidos ajustes de minha consciência, arrisquei alguns anos de purgatório:
– Florisvalda, eu gosto muito de você e da Tonha, mas se o fantasma continuar atrapalhando o sono da gente, sou obrigado a dispensá-las, já que tudo indica que o bichinho gosta mesmo é de vocês. Rezem e peçam para ele ir embora, senão irão vocês. Depois de tudo, o Jeová era um ótimo rapaz e não voltaria para assustar as pessoas. Acho até uma falta de respeito e de coleguismo fazer isto usando um companheiro de trabalho. Como sabem, sempre sou muito franco e sincero com todos aqui. Por isto, sem rodeios nem insinuações, acuso você, Florisvalda, de estar fazendo isto. Seu emprego, portanto, dependerá, de agora em diante, do fantasma.
Daquele dia em diante, nunca mais os seixos caíram em qualquer parte de nosso barraco. Sherlock Holmes certamente me invejou e os fantasmas sofreram uma grande baixa em seus intuitos de assustar. Quanto a mim, como era fiquei: muito na defensiva quanto a crer sem tocar. Como dizia o Tonsura: “É difícil dá festa sem salão”.

24
De quinze em quinze dias, como já frisei, os funcionários podiam passar o fim de semana na cidade. Eram dias para visitar as famílias e familiares, os amigos, fazer compras… Em toda quinzena, se não houvesse voluntários, eu escolhia dois e pedia a eles que ficassem cuidando do barraco. Como o Tonsura estava apaixonado pela Marinalva que morava por perto, e era também maluco por caçadas, já há várias quinzenas ele se apresentava como um dos voluntários.
Arrumamos tudo, anotamos as compras que deveriam ser feitas e partimos. Na segunda-feira, quando retornamos, encontramos três couros de onça espichados em varas, secando ao sol. Se matar uma onça já não é tarefa fácil, que dizer de três? Só podia ser arte do Tonsura. Intrépido e destemido, pouca coisa que acontecesse com ele deixava a gente surpreso. Não demorou para que saísse de seu barraco e viesse, em seus passos lestos e desengonçados, até nós. Mal se aproximou, o bombardeamos com mil perguntas ao mesmo tempo. Ele tratou logo de nos matar a curiosidade:
– Foi lá na mata do Daructha, ontem – começou ele, então, no meio da roda que se formou. Eu fui lá caçá. No alto, prá lá quando já dá na entrada da nossa mata, encontrei os porco. Matei treis. Aí eu tava sozinho e não guentava carregá os treis. Aí eu pensei: levo um e vou chamá o Domingo, aí nois trais os outros dois. Botei um porco nas costa e acunhei na estrada.
Quando já tava aqui perto da subida do tombadô, vi um bicho deitado na beira da estrada. Oei bem e vi que era uma onça. Joguei o porco no chão e ela nem deu fé de mim. Eu fui me achegando, me achegando e quando ela oiô eu já tava a quinze metro dela. Meti um 3T na cara dela. Ela escambuteou, berrou e eu dei outro. Ela se bateu, se bateu e se acalmô. Eu oiei aquilo e já tava de bom tamanho. Virei pra panhá o porco e ia chamá o Domingo, quando brota da mata mais duas onça. Aí eu lembrei que não tinha cartucho mais e que o único remédio era corrê com elas. Ranquei do facão e caminhei pro rumo delas. Elas me encararo. Eu achei que era blefe delas e continuei andando pro rumo delas, de facão aprumado. Aí elas partiram pro meu encontro, de ôio firme, barriga raspano no chão. Meus cabelo subiu e quase me farta perna. Oei do lado e vi um pau que o trator pendeu. Com o pouco de perna que ainda tinha, corri e subi nele. Elas viero e ficaro debaixo do meu poleiro. Aí eu gritei, toquei, mas elas nem dava bola. Eu cortei uns gaio e joguei nelas e elas nem ligaro.
Eu quietei. Elas ficaro, ficaro e depois foro saindo devagá. Eu tava muito avexado e mal elas sairo eu fui descendo pra corrê pra casa. Quando botei os pé no chão escutei um barunhinho que se achegava. Embutuquei os oio e vi que elas vortava. Meti mão no pau e subi otra veis. Elas viero e se aninharo debaixo. Tampei gaio outra veis e nada. Me acarmei otra veis. Elas ficaro, ficaro e depois de muito tempo tornaro a saí. Eu me arrumei todo, oei bem e quando estava a uns treis metro do chão, sartei e abri no mundo. Nem oiei mais pra trais. Pode inté sê que elas quisero me pegá, mais disanimaro porque eu corria como viado de casco moiado.
Cheguei no barraco, falei com o Domingo, panhei mais cartucho e nois vortemo pro rumo delas. De longe já vimo que a onça morta estava no meio do caminho mais meu porco tinha sumido. O Domingo tava de porrete e facão e eu de facão e espingarda. Nois foi chegando, chegando, apuramo os ouvido e suntamo as onça comeno o porco logo um pouco pra dentro da mata. Eu enfiei os oio nos buraco dos gaio e vi elas lá: uma tava comendo e a outra deitada do lado, esperando a veis. Elas estava distraída e eu apontei bem no pescoço da maió e atirei. Ela começou a se batê e veio rolano pra estrada. Quando caiu dentro da estrada o Domingo muntou de cacete nela e acabô de matá. Eu subi um pouco mais e não mais vi a otra. Agora ela não tava mais mansa como quando eu tava sem cartucho. Nois então arrastou o porco meio comido para a estrada e fumo buscar os outros dois porco. Quando vortemo, óia a merda: o porco que nois deixo não tava mais no meio da estrada. Hê, hê – disse o Domingo – e eu fiquei meio assustado, mesmo com o companhero do meu lado. lmpinamo as oreia e outra veis escutamo que a outra onça tava comendo o resto do porco logo pra cima da estrada. Outra veis eu entrei e vi ela lá deitada, comendo tranquila, como que se nada tivesse acontecido. Botei um cartucho que eu mesmo carreguei só pra matá onça e fui pro rumo dela. Ela me oiô nos zóio e arreganhou os dente. Eu atirei. Pode i lá oiá: só fiquei com o pau da coronha na mão, mais ela também nem se mexeu. Ainda agora tô escutando as abeia zuni nos meus ouvido, tão grande foi o tiro. Aí nois ajuntô tudo e truxemo pro barraco em várias viage. Pra quem duvidá, a prova taí, é só oiá. O home da fazenda me deu uma vitela, porque quem mata onça que come bezerro, leva prêmio.
Ouvimos a história, boquiabertos. Não havia como negar as evidências. Em cima de três varas descascadas, podia-se ver três crânios de felinos com caninos afiadíssimos e ameaçadores. Só mesmo o Tonsura para fazer um trabalho daquele. Depois da história dele, como é claro e evidente, mil histórias apareceram. A primeira foi o Arnaldo quem contou:
– Onça é bicho da peste mesmo. Nois tava fazendo uma medição de terra lá no Pará. Eu abria picada pru agrimensor passá o aparelho. Lá na frente, um outro segurava a baliza. Eu tava do lado de cá, do lado do agrimensor. Ele olhou no aparelho e viu que um galho pendido atrapalhava fazer a medição. Me mandou ir lá tirar o galho. A picada tinha mais ou menos um quilômetro. Eu fui caminhando para tirar o galho. Ele ficou de cá. Quando eu já tava perto do galho, a quase quinhentos metros, ele olhou no aparelho e viu que atrás de mim, uma pintada raspava a barriga no chão, preparando a corrida e o bote pra me pegar. Ele gritou, mais eu ia pensando alto e não ouvi nada. Um bando de gorgo fazia uma truvuada dos inferno. Então ele falou pro outro ajudante: panha a espingarda e vai socorrê o Arnaldo que a onça tá pra pegá ele. O home panhô a 20 e acunhou na pinicada. Quando ele atirou nela já tava pra dá o bote. Eu escutei o tiro e dei um breque que as tira da lambreta cuspiro fora. Quando olhei pra trás vi a onça se batendo e o homem atrás com a espingarda ainda apontando.
– Já começaram a estragar sua façanha, Tonsura – observei eu que nunca acreditei que onça alguma tivesse a audácia de atacar um ser humano para comê-lo. A única história que, infelizmente não poderei negar, era a do Tonsura, pois as provas estavam ali. As demais, terei sempre minhas dúvidas, pois tenho mais de vinte e oito anos de mata e nunca encontrei onça que quisesse enfrentar-me. Sempre que as percebo, elas debandam apavoradas.
– É, você tá bem no ponto pra elas – disse o Tonsura. Eu também não acreditava não, mas desde aquele dia, lá na SUDAN, que atirei numa e ela veio na fumaça do tiro, tou cabrero. Ando veiaco cum elas.
– É…, pode ser!, admiti.

25
Naquela mesma semana, chegou ao barraco o Geraldão, gerente de nossas terras lá no Pará. Falou dos problemas e depois contou também a história dele. Numa reunião de caboclos, se o assunto é “causo”, ninguém fica sem contar o dele. Tinha pouco a ver com onça, mas nem por isto deixava de ser menos incrível do que a façanha do Tonsura.
O Geraldão era mineiro e fazia parte de uma grande família dispersa há mais de quinze anos. Com a “diáspora” familiar, muitos se perderam, ou pelo menos de alguns nunca mais tivera notícias. Ultimamente soube ele que um de seus irmãos estava no Maranhão, mais exatamente por estas bandas. Por isto, embora em vão, vivia fazendo perguntas a quem encontrasse a respeito do mano. É que o tempo havia mudado completamente as características do irmão. Aquele magriço que procurava, de quase dois metros de altura (era uma verdadeira família de gigantes) havia encorpado, deixado a barba crescer, mudado um pouco o sotaque e a maneira de se vestir. Por isto, só mesmo pelo nome poderia ser reconhecido. Estava certo que, mesmo esbarrando com ele, não o reconheceria. Já estava quase desanimado quando a coisa aconteceu.
Havíamos acabado de jantar, assistido às reportagens e desligado a televisão, pois iria começar mais um grande acinte à paciência do povo brasileiro: o horário político obrigatório. Certos grupos de fanfarrões inoperantes, hipócritas, corruptos, exploradores da nação iriam desfilar seus rosários de mentiras para tentarem, mais uma vez, engabelar o povo simples e humilde.
Conversa vai, conversa vem, surgiu o assunto de gente desaparecida. Não demorou para que o Geraldão retomasse a palavra. Nunca um superlativo caíra tão bem numa pessoa: com quase dois metros de altura, uma cabeçorra quase sem cabelos, uns bíceps que fariam inveja a qualquer halterofilista russo: um verdadeiro Hércules sertanejo. Ele também contou suas histórias de onças, pois sempre viveu nas matas e não poderia deixar de ter algum encontro casual com elas, mesmo porque possuía uma matilha esganiçada que vivia enxotando até os pacatos jabutis que, pachorrentamente, se arrastavam pelos derredores. Depois destas histórias, ele pigarreou e aproveitou o assunto de família para contar seu acontecimento incrível:
– Eu fui lá em Imperatriz na véspa da eleição. Aí chegou lá nesta véspa, no outro dia … primeiramente, eu vinha procurando o meu irmão. Estou procurando ele tem oito ano. Aí, o dia que eu fui daqui na véspa da eleição pra lá, no Zero, ainda procurei ele mais de hora. Aí, procura daqui, procura dali, tudo o que me dissero é que estava morando numa vila de nome Filinto Milla. Uns falava que era o Zero, outros falava que era um tal de Cabeludo que tem aí pra frente. Aí, ninguém informou. Aí eu fui pra Imperatriz. Cheguei lá no outro dia. Andei mais seu Brando lá pra rua. Quando foi de tardinha eu falei: vou fazê minha barba. Aí, quando eu fui, fiz a barba e inclusive, no lugar que eu fiz a barba, eu conversando mais o cara, e o cara disse: Ocê mora onde? Eu disse: eu moro no Pará. Em que lugar? Eu disse: eu moro no 25, eu entro lá. Aí ele falou: Ah, o meu genro, o meu sogro mora lá também. Pra lá não tem um cara que mora num barraquim que vira pra cá?, pois é, é sogro do cara que feis minha barba, lá na Vila-Lobão. Aí, tudo bem. Virei pra trais. Ali eu saí na pista lá da casa do seu Brando, a primeira rua que droba, que tem aquele boteco.
Ali naquele boteco, toda veis que passo, eu encosto lá. Aí nesse dia eu cheguei e já encostei o ombro na porta. Aí tava o home e a muié lá, os dono. Encostei assim na porta, entrando pra dentro. Aí, tava um home lá, sentado assim, virado com as costa pro lado da porta, onde eu estava. Aí, quando eu encostei na porta a muié falou: senta seu moço, entra e senta. Falei: não, aqui tá bom. Aí o home oiô assim por cima do lombo pra mim. Ele oiô assim, pegou um tamborete e falou: senta aí, eu gosto de conversá mais home de chapéu de coro, que ele é minero ou baiano. Aí eu sentei, né. E aí, passei uma horinha, eu falei com ele assim: e você é o quê, minero ou baiano? Ele falou assim: eu sou minero. Eu falei: ocê é minero de que região? Ele falou assim: eu sou minero de Água Formosa, Machacali … Eu falei: eu sou daquela região também. Aí eu falei: eu sou daquela região, pruquê fui criado lá naquela região. Aí ele falou: meus pais é de Juaema também. Aí eu falei: meus pais foi criado mais o home mais rico da região, Luís do Araújo. Aí ele falou: meus pais tombém foi criado com Luís Araújo. Aí eu falei: ó, tinha um homem que todo mundo falava, era falado na região que trabalhava com Luís de Araújo, que se chamava Joaquim Vaquero, que é meu avô. Aí ele falou: o Joaquim Vaquero que era vaquero de Luís Araújo é meu avô tombém. Aí, desta hora em diante, eu oei pras feição dele e pensei: é meu irmão. Aí eu falei com ele: cumé que chama seu pai? Ele falou: quando eu vim lá de fora, meu pai se chamava, é, o meu pai já tinha morrido. Mas comé que se chamava ele? Chamava João. E sua mãe? Minha mãe – se não morreu tombém – mas ela se chamava Maria. Aí, nesta hora eu falei: você se lembra … e seu nome, como é seu nome? Ele falou: meu nome é Luís, mas desde lá de fora todo mundo só me trata de Luisão.
Neste momento, as tensões acumuladas durante todo o relato simples, explodiram em risadas e comentários. Era de fato uma história incrível. Esvaziado o compartimento das tensões, fez-se novo silêncio, e ele alinhando o prolixo bigode, continuou:
– Aí eu falei com ele assim: você lembra de um irmão que ocê tinha que se chamava Geraldo tombém e que todo mundo tratava ele de Geraldão? Aí ele falou: mas ó, eu lembro demais. Eu falei: Mim dá a mão aqui. Aí ele falou (ele quase que cai) mais rapais é você mesmo? Você é o Geraldão? Aí, eu falei: você não lembra que nois trabaiô na fazenda Julieta na Camisaria Guanabara de Nanuque? Aí ele falou: e nois mesmo! Aí, toda veis que nois tocava num assunto a gente falava: é nois mesmo. Falamo dos nossos irmãos, avós, tios, é … José, Reinaldo, a vó nossa, a Tenória. Ele falava sempre: é nois mesmo. Eu falei: Ocê não veio lá de fora, com o Deoclides? O Deoclides veio trazendo uma carrada de cachorro americano. Ele falou: é mesmo. Do Céu Azul, pertinho da Pedra … não me lembro mais o nome, morava lá pertinho … Ele interrompeu e disse: é, não tem jeito: é nois mesmo.
Engraçado – interferi – vocês mudaram a fisionomia tanto assim?
– Ô, fais quinze anos! Eu pelo meno mudei muito, e ele muito mais. Ele é mais novo que eu, tem um ano e meio, depois que é ele. Ele tinha uns quinze ano, veio depois a barba, incorpô…
– Ele mora perto da COBRÁS?
– Não, ele mora na fazenda do Ribamar Cunha.
– Pra cá do Posto Jacaré, entra-se à esquerda – completou o meu mano.
– É muita coincidência!
– Pior é que um mora aqui, no fim do inferno, e o outro mora lá no Maranhão, no cofundó do judas. Entram lá num buteco, lá na Vila-Lobão, no toiota do mundo, e depois de quinze ano vão se encontrá – observou um curioso.
– É, até as pedras se encontram!
– O que é mais engraçado é o lugar em que eles foram se encontrar e de que maneira: dentro de um botequim.
– Só tinha ele lá, os dono do buteco e ieu que cheguei – esclareceu o Geraldão.
– O nome do santo milagroso é 51 – pilheriou alguém que sabia o fascínio que a pinga exercia sobre o Geraldão.
– Não, eu não tava nem lembrando dela nesta hora. Já tinha bebido mais o home que me feis a barba.
– Mas, em dia de eleição é proibido beber cachaça!
– Não, mas lá nesse boteco ele vendia que eu vi os cara entrá e enché a cara. Lá mesmo pertinho de onde eu aparei os cabelo, tinha uns cara que abria a portinha e tomava de cuspi no chão. Aí eu falei: é aí mesmo que vou cortá as crina. Mas depois que cortei os cabelo eu passei lá no boteco pra fazer hora, pra escurecê antes de jantá. Aí, óia o que aconteceu! Quando cheguei já era meia-noite. Seu Brando ficô fazendo chacota. Se eu tivesse procurando meu irmão, tarveis vendo ele naquele boteco, eu conhecia, mas eu não tava procurando e nem passava na ideia achá ele ali. Por isso, mesmo depois de vê nele meu irmão, antes eu não via. Logo que eu vi que era, eu reparei bem nas feição dele e falei: ah, é ele mesmo, a formatura todinha!
– Lá tudo é grandão: Geraldão, Luisão … e o resto, como é: Zecão, Armandão? – observei.
– O otro é, se chama José, mais trata ele de José Russo. Nois toda vida lá pra fora fomo chamado assim: Geraldão, Luisão… só o Zé é que ficou Zé Russo. É…, eu já passei muitas e boas por esse mundo!
– E aquela do tiro que quase se borrou? – lembrou maldosamente, o mano.
Ele arrumou mais uma vez o bigode desalinhado e consultou a turma olhando de soslaio a fim de certificar-se se estava sendo indesejável ou não. Em sua psicologia de homem simples, concluiu que estava agradando. Por isto, fez o cabeçalho:
– É, foi lá numa fazenda, a uns quarenta quilômetro daqui.
– Ué, esta eu não sabia – comentei demonstrando curiosidade.
– Floriano, o capixaba, foi o que morreu nos meus pé. O matador foi o Baiano, home mau que até hoje vive aí no meio da polícia e ninguém prende.

26
O nosso Geraldão contou que há mais ou menos cinco anos, ele trabalhava numa fazenda no Pará: fazia parte de um grupo de boias-frias que recebia o que seriam hoje, setenta cruzeiros por hora. Dentro da equipe havia um capixaba faroleiro, extrovertido, que passava o dia trabalhando, cantando ou assoviando, como se isto fosse um lenitivo para arrefecer o calor causticante da lida. Junto ao magote de peões trabalhava um baiano enfarruscado e carrancudo, introvertido, mal-encarado e, corno diziam, metido a cavalo-do-cão. Muito namorador, depois de várias falcatruas com diversas moças e mulheres da região, ele começou a visitar a “sendeira” de um posseiro vizinho. Num dia qualquer, o pai da “sendeira” encontrou-se com o capixaba Floriano e perguntou-lhe sobre o tal baiano. Como já o conhecesse bem, o Floriano não hesitou em dizer que o tal baiano era mau caráter e que vivia enrolando a filha dos outros. O delator não precisou mais que estas curtas palavras para mudar o seu aniversário para o dia dois de novembro.
À noite, quando o baiano chegou para cortejar a filha do posseiro, este o chamou de lado e disse que o namoro não seria mais possível, pois ficara sabendo pelo Floriano que ele não prestava, e que não obstante já tivesse emprenhado várias mulheres, nunca havia assumido uma delas sequer.
O baiano rodou furioso nos calcanhares. Mal chegou ao Barraco, agarrou o capixaba pelo braço, arrastou-o para fora e disse tudo que tinha na mente suja:
– Seu corno velho, ocê tem só o tempo de arrumá sua tralha para desaparecer daqui com vida. Se demorá cinco minuto, é um home morto.
Sem sequer desatar a rede, o capixaba jogou o que pôde num saco sujo e meteu pé na estrada. Não havia ainda desfeito a curva do caminho e o baiano, talvez arrependido pela oportunidade dada, tomou de um afiado e longo punhal e passou a persegui-lo. Quando o alcançou, segurou-o pelos colarinhos e disse:
– Sê sabe que em home covarde eu não bato, mato.
Sem saída, desarmado e com muito medo, o Floriano entregou-se passivamente. O baiano olhou-o de alto a baixo, viu-lhe a tremedeira e se compadeceu:
– Tá bem, não precisa se cagá. Não vou matá ocê agora, não. Suma de minha frente e peça ao demo pra nois não cruzá caminho.
Não querendo abusar da sorte, o Floriano, mal se desvencilhou, ventou do lugar, não ousando cair na incúria da mulher do bíblico Jó, olhando para trás. Mas vejam o que é o destino, ou melhor se expressando, no que dá a falta de bom senso. A dez quilômetros, havia outro fazendeiro de nome Lorival, que também estava a roçar as juquiras de suas terras. Ele vinha pela estrada a procura de uma rês vadia quando avistou o Floriano que seguia apressado com a tralha desarrumada nas costas. Os dois se conheciam e o Lorival sabia que o capixaba era destemido no serviço. Por isto interceptou-o:
– Aonde vai com tanta pressa, home de Deus?
– Tô indo imbora, correndo pra não morrê neste fim de mundo.
– Não deu certo lá, não?
– Foi contratempo que a amaldiçoada da língua me criô.
– Como assim?
– Me perguntaram sobre o baiano e eu disse o que sabia dele. O home que me perguntou foi direto contá pro baiano e ele disse que se me vê diante dos zóios, vai me matá.
– Mata nada – disse o Lorival, certo de que em caso de erro, não seria ele quem iria perder a vida – fica aqui comigo que tô precisando de gente como você pra me ajudá aqui na juquira.
– Será que o home não vem aqui me pegá?
– Vem nada. Vê se ele vai sair de lá pra procurá encrenca aqui!
– É…, se o sinhô garante minha vida, eu fico, pruquê preciso mesmo trabaiá.
Uma semana depois, dois peões amigos do baiano passaram por lá e logo disseram a ele que haviam visto o capixaba na fazenda do Lorival, e para atiçar ainda mais a discórdia, observaram maldosamente:
– Capixaba é gente ruim, não corre de quarqué baiano, não.
O Geraldão, que trabalhava no mesmo eito do capixaba, termina o relato:
– Nois tava trabaiano na bera de uma vareda. Eu fiquei capando umas impucas que os brocadô deixaro de malandrage e ele ficô maçano a bera da cerca da estrada. Nois tava só esperando dá a hora da bóia e, pelo sol e nossos cálculo, já era umas deis hora. Lá a gente armoçava cedo porque não tinha café da manhã. Como nossas tripa era melhó que relógio suíço, nois já sabia que tava na hora do armoço. Eu ainda tava dando umas foiçada de despedida, quando ouvi um tiro medonho, bem do meu lado. Escutei, tombém, um grito e pensei que era o capixaba brincando, porque ele só vivia gritando mesmo! Mas depois ouvi uns gemido isquesito e então eu oiei e vi o Floriano no chão, cheio de sangue e se esperneando. Quando me dei conta que era uma tocaia, eu me deitei atrás da moita e o único baruio era meu coração que parecia um tambor grandão das banda de música. Quando me acarmei um pouco, eu raspei a barriga pro lado de outra impuca e acunhei no mundo pro lado do barraco. Lá falei com o Lorival e então nois veio num monte de gente armada. Se quantidade de arma valesse nois ganhava o Lampião. Quando nois avistô o capixaba, ele já tava difunto. Nois quis levá ele pro barraco mais o Lorival disse que precisava chamá as autoridade porque senão ia dá problema depois. Nois vortô e o Lorival saiu pra buscá direito. Era tempo de chuva, de muita chuva. Chovia de intrapaiá os zóios. O Lorival saiu de cavalo e só vortô oito dias depois. Quando a polícia chegô só tinha no lugar um monte de osso trocado. Arguns nem tinha mais, porque os cachorro tinha levado pra roer longe. Aí o delegado mandou nois interrá o que tinha sobrado e deu o assunto por resorvido. Depois nois viu o lugá de onde o baiano atirou: era um toco de catana de angelim. O fogo tinha quemado um poco, mais com mais o mato, dava pra se escondê. Ele inté feis um buraco na cantana pra enfiá o cano da espingarda, pra o Floriano não vê. O lugá tava tudo amassado. Acho que ele já esperava o Floriano há muitos dia e ninguém de nóis percebeu.
Histórias e histórias eram contadas e eu ficava imaginando se a justiça do futuro também não iria sorrir da nossa, assim como achamos engraçado, aquela que nos contam do tempo da Pedra Lascada. O que seria justiça afinal? Sim, porque, segundo se sabe, o tal Baiano anda emproado lá na Vila-Rondon – PA, bebendo e fazendo arruaças, bem debaixo do nariz da polícia que sabe do crime. Aliás, por aquelas bandas, todo mundo sabe.

27
Nada me era mais surpresa e novidade que ver meus trabalhadores reunidos, brincando, falando sério ou discutindo opiniões. Eu ficava ouvindo e tirando conclusões. Estávamos impacientes, esperando a hora do jantar. Tonha e Florisvalda começavam a colocar as panelas (enormes panelas) em cima do improvisado balcão. A rapaziada faminta postava-se em fila: aguardava o momento em que eu iria dizer a palavra mágica: LIBERADO. Aí então a coisa ficava séria, com empurrões e observações picantes. O Cutuca não deixava ninguém sossegado. O Cozidão era sua vítima preferida:
– Tira esta desgraça deste Zói-de-jaboti-morto aí da frente que ele vai cumê nosso rango todo.
– Araçari – retrucava defensivo o Cozidão – esta noite sonhei com você rodeado de vela e já estou suando no trabaio da cova.
– Você? Ah, ah, ah!… Correu até de uma raposa!
– Só não te mato agora porque já matei um gato na minha vida e não quero corrê o risco de outro atraso, seu filho de alguém mais eu.
– Filho desta mundiça? Me dá inguio só em pensá. A mãe que ingravidá desta lástima, come o fiote no ninho – repeliu o Araçari meio atingido. A torcida deu uma força.
– Dá duro nele, Mexidão. (Às vezes usavam o sinônimo).
Quem falava agora era o Cururu. O Cutuca enfrentava mais este inimigo comum.
– Cururu, Bucho-de-capivara, Intestino-alto… ainda não bati no cocho.
O Cururu era nosso gerente de pessoal. Baixinho, gozador, barrigudinho e muito espirituoso, vivia sempre aproveitando as deixas para descontar um pouco as tantas que o Araçari lhe aprontava. Nunca esquecera o dia em que o Cutuca lhe bebeu quase todo o suco de açaí, misturando o restante com uma dose dupla de Gutalax. Sedento do serviço, o Cururu nem saboreou: bebeu até a última gota. Na primeira noite, como se fosse uma alma penada, nosso chefe de pessoal não dormiu. Passou a noite mais agachado do que na rede. Em qualquer hora que se acordasse, poder-se-ia notar uma luzinha de lanterna quase apagada, lá na orla da mata: era o pobre do Cururu contorcendo-se em cólicas. Foram três dias de diarreia insuportáveis em que ele não se cansou de pedir-me licença para procurar um médico. “Acho que peguei cólera ou AIDS, seu Carlos, porque num é possíve” – vivia afirmando o Cururu, já com as faces encovadas.
Como eu já soubesse da trama, neguei-lhe a dispensa e ele ficou borrando os derredores do barraco ainda por um bom período. Quando soube da verdade, jurou desforra e eterna guerra ao impossível cutuca. Em qualquer encrenca que se metesse, podia estar certo que o Cururu seria mais um de seus ferrenhos adversários.
Mas não era só com ele que o Araçari se metia. Ninguém escapava. Quando as tigelas eram feitas, vinham os comentários maldosos. O Maguila, forte, alto e parrudo, logo foi apelidado de Miguelão, um formigão que existe em profusão aqui pela Amazônia e que passa o dia inteiro procurando alimentos ou carregando-os, incansavelmente, até mesmo sem saber para aonde. Estava o Miguelão por detrás de seu murundu de comida (era alimento para, pelo menos, quatro pessoas normais), quando veio a maldosa observação:
– Olha só esta desgraça, enche a boca, mastiga e bufa mais mais que filho de pobre de cu abafado.
– Deixa o home de mão, lástima! – assumia as dores, o Cozidão. E completava: – Este infeliz é mais infarento que todas as Raimundas juntas.
– Esta mundiça de novo? – rebatia incontinenti o Cutuca.
A cara, como sempre, era a mais cínica do mundo.
– É…, – entrou na conversa o Fuinha, que jamais se dispensava de uma elucidação para qualquer assunto – só fazendo como aquele fazendero que tinha um canavial. Os trabalhadô chupava as cana dele tuda e então o que ele fez? Saiu pelo mundo contratando tudo o que era banguela. Seu Carlo vai tê que fazê o mesmo com arguns aqui. Vai comê assim na putaquepariu.
De fato, em toda minha vida, jamais vi gente comer tanto! Era desafio para Jesus nos ermos de Bethsaida. Quando começávamos os trabalhos de verão, os funcionários apresentavam-se magros e sofridos. Quando o inverno chegava, apesar dos duros esforços e de um trabalho pesado como o é o de extração de madeiras em lugares acidentados, eles estavam roliços e até barrigudos. Alguns chegavam a se submeter a regimes duros a fim de não perderem as roupas que já não abotoavam.
Eu comprava um boi de 14 arrobas por quinzena, sem contar com caixas de leite em pó, sacos de trigo, fardos de rapadura, caixas e caixas de verduras, enfim, deixava alimentos à disposição capazes de saciarem, sem milagres, os famintos de Biafra.
A fazenda na qual extraímos madeira somava milhares de alqueires, mas não havia um mamão ou uma laranja por ali que não fossem comprados na cidade. Então eu imaginava como era injusta a posse de tanta terra por uma única pessoa que só pensava em gado. A fazenda era lucrativa, mas os empregados que trabalhavam nela estavam sempre famélicos e desnutridos. Comida, só no almoço e no jantar e, mesmo assim, reduzida a arroz, farinha e carne. Na verdade, o sertanejo maranhense não é muito afeito a plantar, principalmente frutas e verduras para consumo próprio. Tem grande preferência pela farinha puba, rapadura, arroz, peixe e carne de sol.

28
– Muitos dias da semana eu ficava no barraco, juntamente com os ajudantes de caminhão e as duas cozinheiras. Neste dia, os caminhões vieram cedo e levaram os ajudantes. Eu fiquei cubando a madeira e ajeitando as contas para que o fazendeiro tivesse em mãos o resultado da extração em todo fim de serviço. O dia anterior havia sido fraco e por isto logo terminei minha tarefa. Coloquei os blocos numa pasta, saí pelos derredores examinando as sementes que havia plantado e depois retornei ao barraco. Florisvalda estava cuidando dos últimos detalhes para o almoço e a Tonha cismava, sentada à mesa. Aproximei-me e ficamos conversando. Como elas adoravam (como diziam) falar sobre sexo e namoro, logo o assunto convergiu para essa direção. Os funcionários gostavam de buscar minha opinião. Apesar de não possuir vocação para conselheiro e saber também de minhas limitações, eu sempre tentava ensinar o que achava, conscientemente, ser o melhor.
– Você seria capaz de sair com outra mulher que não a sua? – perguntou-me a Tonha, já com os olhos brilhando, pois a resposta, positiva ou não, parecia interessar-lhe sobremaneira. Eram dois extremos embaraçosos, mas mesmo assim, como sempre fazia, respondi:
– Não teria eu a pretensão de dizer-me santo, mas para que isto aconteça comigo, muitas coisas teriam de ser levadas em consideração. Todos nós sabemos que isto não passa de ilusão, contudo ninguém dela se esquiva. Faz parte da natureza, da vida, do cotidiano de cada ser humano. E uma armadilha que a gente olha, examina e depois mete o pé inconsequentemente. Jamais eu diria sim ou não, como se só me restasse um caminho. Eu diria NÃO para o que hoje é mais comum, ou seja, os homens saírem pelo simples prazer de somar mais uma; diria SIM, se de fato a pessoa me atraísse, valesse a pena e, acima de tudo, me convencesse de que, de fato retribuía meus sentimentos. Deve ser a pior coisa do mundo ficar com alguém que não sente nada pela gente. Você não pensa assim?
– E eu cá tenho direito de pensar, de escolher alguma coisa? Virei mulher à força, num tempo que eu era ainda quase menina. Minha família era muito pobre, meus pais botava a gente no mundo mas não tinha com que manter a gente viva. Por isto, muito cedo, nós, filhos saía de casa. Eu meti pé no mundo bem cedo. Fui pra lugar maior e o primeiro emprego que apareceu eu aceitei. Foi lá pras bandas do fundo da Sunil, uma grande firma madeireira que tem em Açailândia. Um homem me chamou para cozinhar para os peões e eu fui. Nem perguntei o preço. O gerente era um homem velho e gordo, se chamava Osvaldo. O homem me metia medo, mas a gente quando é pobre tem que aturá tudo neste mundo. O lugar era pra lá do fim do mundo. A gente gastava dois dias de carro pela mata adentro pra chegar lá. Os bichos, até onça, passava na frente do barraco e quando não tinha ninguém eu quase morria de medo, lá sozinha. Tinha bichos esquisitos que até hoje eu não sei o que era. Nunca vi o Tonsura matá aqui um igual.
– Que idade tinha?
– Uns quinze anos,… é, acho que era uns quinze anos.
– Já “conhecia” homem? – perguntei usando a linguagem comum entre eles.
– Não. Eu via lá aqueles homens pelados e morria de medo. Sabe, eles achava que eu era vagabunda, mas eu não era ainda, era vigi. Eu quase não tinha o que vestir. Usava um calçãozinho curto e tinha os peito aprumado. Os homem vivia querendo me agarrá. Passavam a mão e eu fugia, mas não podia reclamá porque não tinha com quê nem com quem. Era como se eu fosse um gato rodeado de uma porção de cachorros. Todos os dias os trabalhadô tomava café e saía pro serviço. Eu ficava sozinha. Um dia, porém, quando era umas nove horas, o gerente voltou pro barraco. Ele veio, tomou um gole de café, sentou e começou a conversá. Logo de cara eu vi que ele estava diferente, bonzinho e com uns papo esquisito. Ele queria que eu fosse com ele ver a beleza das flores de pequi – uma árvore muito alta, toda cheia de flor que a gente via de onde estava. Apesar de burra eu logo vi a intenção dele. Por isto não quis ir, mas ele insistiu e depois acabou me obrigando. Ele jurava que não ia fazer nada comigo, mas eu não acreditava, porque se ele não quisesse me fazer nada, não me obrigava a ir com ele. Com medo, acabei indo. Quando chegou lá ele começou a me passar a mão no pescoço, nos cabelos e foi arriando minha blusa. Eu só sentia medo e não sabia o que fazer. Aí ele me arrastou para um galho do pequi que tinha caído e sentou eu no colo dele. Depois começou a meter a boca nos meus seios e foi escorregando meu calção. Eu forcei e fugi dele. Ele ficou parado um pouco, me olhando com os olhos de um bicho. Eu sabia que não adiantava correr. Por isto comecei a chorar e a pedir pelo amor de Deus para que ele me deixasse, que eu era vigi e muito criança ainda praquilo que ele estava querendo. Sem me ouvir ele tirou a roupa dele e veio pro meu lado. Eu só chorava e pedia a Deus pra me ajudar. Comecei a querer correr mas logo ele me pegou e jogou no chão. Eu me tranquei toda e ele não conseguia nada. Então ele panhou a espingarda que sempre carregava e falou que se eu não abrisse as pernas e ajudasse que ele ia me matá ali mesmo. Eu não sabia se ele estava falando sério. Chorando como louca eu fiz o que ele mandou. Então ele subiu em cima, fuçou, rolou, pelejou mas o negócio dele não subiu. Eu pedia a Deus sempre que me ajudasse e tava achando que era por isto que ele não conseguia. De repente ele pulou de pé, me esmurrou e disse que ele não era assim, que a culpa dele não ter conseguido era eu, com aquele choro do inferno. Aí ele me tampou no chão outra vez e com os olhos do capeta me enfiou o dedo e me rasgou toda, me fez mulher. Eu quase morri de dor. O sangue corria pela perna e ele saiu andando depressa e eu corri, logo que me aguentei, para o barraco. No outro dia eu caí de cama e eles tiveram que me levar embora. Depois que tudo sarou, eu fiquei maliciosa. Pensava que não adiantava mais me guardá porque não era mais moça e então comecei a sair com outros homens. Logo fiquei buchuda, sem emprego e sem dinheiro. Se o sinhô não tivesse me aceitado aqui no emprego, buchuda mesmo, acho que teria morrido.

29
Um dia, veio nos visitar, o Dr. Aristeu. Magriço como um pica-pau, cheio de manias e de um querer próprio de fazer inveja ao mais renitente líder de matilha. Sonhava com caçadas. Todos os anos, como se fosse um meteoro programado, ele aparecia por estas bandas e passava o dia zanzando pelas matas e, à noite, tomando cerveja. Eram 10 garrafas por etapa, antes das quais não ia se deitar. Não tomava o desjejum nem jantava. Como um camelo que armazena água para toda uma longa jornada, ele almoçava para todas as demais refeições. O resto do tempo era usado para os cigarros e as cervejas. Era fácil pressenti-lo se estivesse pelas proximidades, graça ao cheiro de fumaça de cigarro ou a chaminé que sempre fumegava sobre sua cabeça. Apesar de parecer paradoxal, era inteligente: um dos médicos, teoricamente, mais versáteis que conheci. Discorria sobre qualquer assunto, mesmo fora da medicina, com uma presteza incrível. Conhecia literatura, política e religião, o tanto bastante para fazer inveja aos mais renomados críticos do assunto. Todos as noites eu tinha que acompanhá-lo a qualquer bar ou boteco que houvesse cerveja gelada. Se não encontrasse devidamente gelada, fazia-me segui-lo de bar em bar, quiosque em quiosque, como se fosse uma verdadeira via-sacra cristã. Encontrando o que desejava, então quietava e ficava representando o lendário Caipora, fumando, bebendo e conversando, se eu permitisse, a noite inteira. No outro dia, só iria levantar-se lá pelas 11 horas, quando a parafernália das panelas na cozinha dava-lhe conta de que era chegada a hora de seu abastecimento dial. Não era difícil, também, saber quando acordava, pois já que não fumo, consigo pressentir o terrível mau cheiro da nicotina a 100 metros de distância, ainda mais se a fumaça for solta dentro de uma casa fechada.
– Abra as janelas, pelo amor de Deus – pilheriava eu. Agora mesmo o corpo de bombeiros vai imaginar um incêndio aqui.
– Você é do piru – retrucava. Jamais apagava o cigarro, ainda que ouvisse as sirenes. Durante a semana, ele ia comigo para a frente de serviço. Levava um isopor grande cheio de cerveja gelada e nunca falava em voltar enquanto pudesse contar com o preciosíssimo líquido de sua dependência. Suas caçadas não iam além de três horas, pois a falta da cerveja gelada não o permitia. Por sorte escolheu a cerveja, pois se se desse ao malefício de Escobar, certamente o Brasil ficaria com mais este triste troféu. Neste tempo o Tonsura estava no apogeu de suas loucuras. Passava a noite toda dentro da mata, caçando bichos ou zanzando atrás de sua amada como se fosse um lobisomem. Um dia, estava ele olhando a mata, parado, olhar perdido em um ponto qualquer. O Dr. Aristeu que passava viu-o, olhou para mim, cutucou-me e observou:
-É um bicho! Não sei de que espécie, mas garanto: é o primeiro que fica de pé. Pode chamar o Werner para classificá-lo. E uma boa oportunidade para termos um brasileiro à altura de Berla, Spix ou Vieillot. Achei graça, mas ele insistiu:
– Estou falando sério: é um bicho. Um homem normal não faz o que ele faz. Olhe para as feições dele, o jeitão. Aposto que está pressentindo o cheiro de alguma coisa. Daí onde está, acredito, ele percebe os bichos lá nos infernos. Olha só! …
– De fato – ponderei – ele está muito estranho ultimamente. E o Dr. Aristeu estava com a razão, pois não demorou muito para que, em sua eterna timidez, ele passasse por mim e ciciasse um tanto assustado:
– Quiria falá com ocê em particular.
-Agora?
– Neste momento.
– Vamos ali para aqueles tambores.
Assentei-me sobre um deles, enquanto ele ficou de cócoras, riscando o chão com o dedo.
– Que foi? – comecei a conversa, já que se fosse por ele, o dedo sangraria em silêncio.
– Eu tô querendo me ajuntá com a Marinalva.
– Já? Vocês ainda nem se quer noivaram! …
– Eu já comi ela e ela está sentindo uns injôo. Acho que vai ficar buchuda logo, logo. E mió me ajuntá antes que o véio disconfie para evitar quizumba.
– Mas, simplesmente juntar-se a ela? Como? Não estou entendendo.
– Ué, eu trago ela pra cá no meu barraco, se ocê deixá.
– Não é o caso de deixar ou não. É que eu penso de maneira bem diferente sobre o casamento. Para mim, casar é coisa muito séria, coisa que a gente tem de pensar e pensar, pois é um sacramento indissolúvel.
– Indissoluve?
– E, uma vez casado, sempre casado. Viverem unidos até a morte.
– Se der certo a gente vive.
– E se não der?
– A gente vai cada um pro seu canto.
– E a criança que nascer?
– Se ela quisé ela leva, se não eu cuido dela. Sabe, oceis é que complica muito as coisa. Eu mesmo só vô me ajuntá porque o pai é valente e mesmo sem sabê que ela está buchuda já me chamou na conversa.
– Ele concorda que você a traga para cá?
– Ele disse que aquele negócio de namoro por aí não vai dar certo e que se nois estivesse se gostando era pra ajuntá os trapo e ir cuidá da vida.
– Assim? Sem casamento sem nada?
– Ué, não tô casando? Se carrego ela comigo, tô casando.
– Está sim. Eu é que estou atrasado no tempo.
Resolvi concordar com ele na certeza de que os erros só existem para quem imagina o certo e não o pratica. Para que prepará-lo ao sofrimento se jamais precisou das leis morais para ser feliz? Para que melindrar sua consciência se ela, sendo sempre a mesma, hoje não se impacienta em levar uma jovem para casa, sem igreja ou cartório? O mal que lhe faria forçando-o a acatar o que penso ser a verdade, não seria menor do que aquele que praticam, embora de boa-fé, os evangelizadores aos aborígines, usurpando-lhes a crença nos astros. Pensando bem, cada ser deve aperfeiçoar aquelas coisas boas que o meio lhe deu como graça. Se um índio sempre acreditou no sol e na lua, deixemo-lo em paz, porque só há crime e virtude nas intenções. Estou certo que o Ser Superior que tudo criou o castigará se ele praticar atos que aos astros não convêm, pois estará Ele, o verdadeiro Deus, pela força das circunstâncias, representado pelo sol e pela lua.

30
Por uns tempos, meus sobrinhos trabalharam perto de nós. A equipe deles era menor que a nossa, porém não menos barulhenta. Todas as noites eles se juntavam à nossa turma, assistiam aos programas de televisão, jogavam cartas e dominó, discutiam e contavam casos. Era muito divertido, pois, como frisou alguém, tínhamos lá uma cidade em miniatura: energia elétrica, rádio amador, campo de futebol, congeladores e geladeira, televisão e muita gente para conversar e trocar ideias.
Depois, a extração de madeiras de meus sobrinhos acabou e eles se retiraram, deixando para trás um resto de madeira nos tombadores, dois porcos e uma galinha, ainda viva por ser mais arisca que uma pomba-trocal. Não precisava nem ver a gente: bastava desconfiar para se meter na mata e só aparecer no outro dia. Os porcos foram sempre uma eterna novela reclamatória de meu cunhado, que nunca se conformara em ter que, três vezes por dia, colocar uma lata nojenta de lavagem às costas e caminhar cerca de 300 metros para tratá-los. Vivia rogando pragas para que os bichos morressem ou para que as onças os comessem. Mas se Deus é grande, o diabo não é pequeno, e assim, depois de gordos e roliços, eles foram levados para Imperatriz e postos num chiqueiro no pátio da indústria. A mana pretendia aproveitá-los nas duas semanas seguintes, por ocasião do casamento de um de seus filhos. Afinal, foram quase seis meses de trabalho e desavenças para engordá-los, e somente uma ocasião assim justificaria o pagamento de tantos transtornos. Acontece que no pátio da indústria havia muitos outros porcos e um poço desativado, com um beiral de proteção de apenas 40 centímetros de altura. Entre os animais (e em muitas ocasiões os seres humanos não diferem), bicho novo é sinal de discórdia iminente. Por isto os anfitriões reagiram e no corre-corre, os dois porcos que tanto trabalho deram a meu cunhado, acabaram caindo no poço, só sendo encontrados no outro dia. Depois de dura mão-de-obra, eles foram alçados e enterrados. Pela última vez, como sarcástica despedida a quem tanto lhes desejara mal, os porcos deixaram na mão de meu cunhado, belos e doridos calos. Mas, se os porcos viviam presos, o mesmo não acontecia com a galinha. Eu sempre dizia que precisávamos pegá-la e comê-la, pois do contrário as raposas ou os bracaiás o fariam por nós.
– Eu já escanzinei aquela galinha – disse o Mexidão, nosso cozinheiro.
Aliás, por causa deste apelido ele quase havia abandonado o mister. Sempre, com o fito de facilitar sua parte, misturava arroz, carne e tudo quanto houvesse para o almoço, cozinhava quanto podia e pronto: estava ali a refeição do dia. Mas, se resistiu ao Mexidão ou Cozidão, não aconteceu o mesmo quando descobriram o sumiço de dois quilos de linguiça e o acusaram da rapinagem. Foi a gota d’água que faltava: no primeiro “linguiça” que sussurraram, ele arremessou a concha para o alto e pediu demissão.
– Sô Carlos, pode achá otro que não cozinho mais pra estas pragas não.
– Por favor, fique somente até eu encontrar outro bode expiatório. Depois, quero matar aquela galinha e conto com sua culinária para saboreá-la.
– Si eu fô esperá por aquela galinha, vou ficá até o fim do ano. E mais faci matá uma tona do que aquela diaba.
– Nois mata – repeliu à pressa, o Fuinha.
– Nois quem? – pilheriei.
– Eu e o Tonsura.
– Aí não duvido – condescendi – mas vocês só tentarão depois de minha desistência.
No outro dia, quando a luz do sol já começava a se declinar, apanhei a escopeta e saí de fininho rumo ao chiqueiro. Ela mariscava por lá, em busca de restos de lavagem que sobravam do cocho. O chiqueiro ficava a uns oito metros para dentro da mata. Fora construído ali para amenizar a incidência do sol causticante do descampado. Protegido pelos entulhos que o trator havia jogado, aproximei-me bastante. Depois, fui levantando a cabeça devagarinho. Só ouvi o cacarejar espavorido da miserável, já em desabalada corrida. Como ela houvesse tomado a direção do tombadouro clandestino de meus sobrinhos (eles haviam escondido a madeira porque naquela farsa do IBAMA, com o projeto ainda em andamento, eles corriam o risco de uma multa astronômica), dei a volta e fui para lá. Quando atingi a curva que se abria no tombadouro, enfiei a cabeça devagar entre as folhagens e vi, toda ouvidos, a pretensa vítima. Estava atenta, ouvindo e olhando sem piscar. Contudo, não me viu. Ajeitei-me todo, armei a espingarda, enfiei-a por uma fresta. Fiz pontaria e apertei o gatilho. Uma nuvem de poeira cobriu a penosa que, num salto felino atingiu o monte de toras de onde, certamente, voaria para dentro da mata. Antes que ela fizesse isto, fiz o segundo disparo e, então, num vôo de condor, ela passou por cima das árvores menores e baixou a uns 20 metros do tombador. Desolado, pus a espingarda nas costas e voltei para o barraco, visivelmente frustrado. Ainda na curva da estrada, ouvi a maldosa observação de alguém:
– Vai sê môio pardo ou ensopado?
– Desisto – defendi-me laconicamente. Entrego a tarefa ao infalível. Tonsura.
– Mais logo nóis dá conta dela – interferiu o Tonsura.
Vindo dele a garantia não se tinha muito o que duvidar. No outro dia, certamente, a malandra estaria na panela. Quando paramos o serviço, o sol já quase não alumiava mais a terra. Sem esquecer, logo o Tonsura apareceu com a espingarda nas costas, acompanhado do Fuinha, dizendo que podíamos ferver a água. Quinze minutos depois ouvimos dois disparos. Mais um pouco, e ei-los, também, de mãos abanando.
– Ué, cadê a bicha? – perguntou o Boca de Pirarara.
– Rapais, a bicha é infarenta mesmo. Mais não tem nada não: amanhã nois trais ela pra panela.
– Se não me engano – observei – ouvi dois disparos.
– Foi naquela infeliz mesmo, só que nem pude fazê pontaria direito. A bicha passou por mim que parecia o Linguiça correndo da raposa.
A reação vem em riste:
– Óia Fuinha, já escanzinei ocê no dia em que vi o céu truvo e vi que deixaro ocê nascer, mas não é difícil de dar cabo agora. Ocê só tá vivo ainda pruquê não encontrei lugá na coronha pra fazê o pique.
O Fuinha riu de fininho e se assentou. No outro dia antes que eu levantasse, o Tonsura chegou com a pobre galinha nas mãos sem ter dado um único disparo: ninguém escapava dele. Ao limpar a penosa arredia, a Tonha mostrou três caroços de chumbo grossos, encontrados no corpo da galinha. Sem pensar na consequência de minha observação, distraí-me:
– Eu sabia que não podia ter errado. Afinal, de 12, com cartuchos de fábrica, ela não podia ter escapado ilesa.
– He, he… deu o Fuinha sua risadinha quicada, contando em seguida: “Uma veis, treis caçadores foram pra uma espera na orla da mata do capinzal de um fazendero muito brabo. A espera era boa, estava pisada de mateiro. Os treis foro cedo, fizero os mutás e subiro, cada um do lado da arve, um jatobá curuba. Lá pelas tantas escutaro o bicho que vinha pisando pesado, vinha pro lado da fruteira. Quando o bicho chegou debaixo, logo treis foco alumiaro ele e treis tiro pocaro no mesmo instante. O bicho nem se mexeu, mais crivado que tauba de pirulito. Eles apagaro as lanterna e começaro logo a discussão. Um falou: Minha espingarda não faia, ainda mais quando o bicho me dá a taba do pescoço. O outro não deixou por menos: Onde minha 20 conversa, o papo fica acabado. O terceiro jogou duro também. Bateu na coronha e falou grosso: quando meu avô deu pro meu pai esta espingarda, ele disse: “Meu fio, esta nunca me deixou com fome. Guarda ela para criar seus fios. ” E assim, até o dia raiá, os treis ficaro contando vantage, cada um querendo segurá pra si, o direito sobre o mateiro que tava lá estirado no chão, morto, bem morto. Quando o dia clariô de veis, os treis pularo do mutá e correro pro bicho. Quando eu viro que tinha matado o bezerro do fazendero mais brabo da região, logo a conversa mudou: “Eu logo vi que aquele pau tinha me atrapaiado a pontaria. Oia, eu atirei aqui e aqui no tem nem um chumbo”. “Eu ainda ralhei com minha muié pruque gastou as pilha. Quase não vi o bicho e por isto devo ter faiado na pontaria. ” Neste caso – frisou o terceiro que demorou a se justificar – este bezerro deve ter vindo chumbado lá de fora e dado de morrê logo aqui embaixo. Só não sei cumo nois vai convencê o home da fazenda, pruque ele sabe que nois veio aqui”.
Acabou de contar a história dele e saiu de mansinho, com um sorriso sarcástico e gozador, próprio de um caboclo vivo e sagaz. Eu, que nunca acreditei muito na perspicácia dos matutos, senti a garrocha funda e fiquei deveras surpreso em saber que também eles não são bobos. Na verdade, o Fuinha me apanhou de surpresa, pois por certo não estava eu fazendo tanta questão que aqueles caroços de chumbo provassem meu deplorável orgulho de atirador eficiente. Em defesa de meu amor próprio ferido, gritei atrás dele:
– Se a carne ferida já estiver fedendo, então foi você quem acertou, porque este seu trabuco é mais danoso e promíscuo que uma bolota de césio encontrada dentro de um chiqueiro.
Ele não se defendeu, na certeza de que, também aquele “seu último tiro” tinha atingido o alvo: meu orgulho.
Da rapaziada que ouvia tudo, sobressaiu-se a voz do Cururu:
– E, seu Carlo, quando atirá, mira bem, se não o “bicho” te pega.

31
Assentamo-nos à vontade. Era o primeiro sábado da quinzena, aquele em que ficaríamos no mato. O serviço parou, como sempre, ao meio-dia. A rapaziada lavou as roupas, tomou banho e café e depois ficou sem saber o que fazer. Claro que tínhamos a opção dos programas de televisão, dos jogos de baralho, de tômbola, tria, dominó e das caçadas, mas mesmo assim, nos sábados que ficávamos lá, todos pareciam preferir o sossego total. Caçar – que era o esporte preferido da maioria – era mais praticado aos domingos, feriados ou então, à noite, nas esperas. Eu nunca recriminava o abate de animais silvestres ali, por dois motivos: primeiro, porque ali era área que seria derrubada, queimada e, fatalmente, os animais seriam exterminados; segundo, porque os rapazes precisavam da carne, que salgavam, secavam e depois enviavam para suas famílias. Carne de gado em suas casas era coisa rara. Aproveitar os animais ali era juntar o prazer de caçar ao necessário de comê-los. Menos ruim.
Estando todo mundo ali reunido, sem ocupação alguma, propus a eles iniciar uma troca de ideias, onde todos dariam o que aprenderam da vida e receberiam o que ainda a vida não lhes tinha ensinado. Todos concordaram. Organizamos um semicírculo. Todos acomodados, perguntei primeiramente se todos sabiam ler e escrever. Dois sabiam soletrar e apenas um, embora sofrivelmente, sabia ler e escrever. Era o Grilo. Vivia, por isto mesmo, com um lápis atrás da orelha, anotando recados, transcrevendo as disputas repentistas, escrevendo cartas para os companheiros… Era o escritor-filósofo da turma. Vivia sempre pensativo, calado, maquinando ou ruminando seus próprios “grilos”. Como primeira troca de ideias, escolhi o tema VIDA e argui o Baiano sobre o que achava de ter nascido, crescido e de viver sabendo que mais adiante iria, como todo ser vivo, morrer; como justificava estar ele ali, naquele lugar e momento; se acreditava mesmo que depois da morte sua alma continuaria vivendo por toda a eternidade…
Como se estivesse numa sala de aula, ele se levantou, aprumou-se todo, arrumou o vasto bigode que usava para encobrir a falha de um incisivo, limpou a garganta num grave que sempre evoluía com a finalidade de impor sua condição de macho ímpar e gaguejou:
– Bem, eu acho que tô aqui num é porque Deus quis não, pois nasci da molecagem de meu pai com a empregada de um fazendero. Como eu, tem uma porção por aí, pois meu pai era pior que gorgo chefe de bando. Então, eu nasci assim. Cresci atrás da minha mãe, só até os oito anos, porque depois acunhei no mundo e me virei. Eu penso que existe o outro lado porque todo mundo fala e porque tenho medo de dizer que não tem e quebrá a cara.
– Sabendo-se que se Deus existir ninguém irá enganá-lo, você poderá dizer o que pensa sem medo. Afinal, o que conta é sempre aquilo que anda dentro de nosso coração, ou seja, a nossa intenção. Por isto quero que responda, com toda sinceridade: acha que quando morrer, você continuará vivendo por meio de sua alma, por toda a eternidade?
– He, he… eu não gosto nem de falá nisso. A gente acredita e não acredita e no pouco que acredita tem medo bastante pra não dizer besteira. Sei lá, acontece umas coisa de veis em quando que a gente fica agoniado!…
– Está bem. E você Tonsura, que acha?
– Eu num acho nada. Quem me botô aqui deve saber porque me botô. Eu vou vivendo, trabaiando e deixando que as coisa acontece. Igual o Baiano, eu também larguei meus pais com oito ou nove anos. Nem sei se tenho irmão. Ela, a minha mãe, mora até aqui perto, em Marabá, mais eu nunca fui lá vê ela.
– E por que não?
– Nunca tive vontade. Eu só faço o que tenho vontade. (Lembrei-me então do Dr. Aristeu: “É um bicho”). Acho que também minha mãe não tem vontade de me ver, não. Ela não tem nada, eu não tenho nada. Pra que a gente vai querê se vê se a miséria que eu tenho pra dá, ela tá afundada nela? Se pelo menos eu tivesse um presente pra dá pra ela?!…
– Bem, eu acho que a amizade não só é demonstrada por meio de presentes. O carinho, a compreensão, a solidariedade, tudo pode representar um valiosíssimo presente.
– Falá assim é faci, mais óia se rico tem amizade por pobre. Os pobre só vive pedindo favor, pedindo ajuda, dinheiro, emprego… e os rico foge deles como o diabo da cruz.
– De fato, existe muita amizade por interesse, principalmente nas pessoas ricas. Contudo, não se pode julgar o mundo por essas pessoas. Há também seres humanos desprendidos, desinteressados das coisas deste mundo e muito interessados nas coisas do outro mundo. De qualquer forma, é a sua opinião e eu, assim como todos que aqui estão, a respeitamos. Você concorda com ele, Florisvalda?
– Ah, seu Carlos, eu acredito nas amizade sincera, sim! Sei que tem muita gente fingida, mais tem muita gente que é sincera também. Eu penso que você não é fingido e que gosta da gente, mesmo sendo nois pobre.
Meio sem jeito, acrescentei:
– Bem, eu acho que gosto de vocês de coração. Mas isto é um assunto que o dia-a-dia se encarregará de provar. Quero saber, agora, se você acredita em visagens, fantasmas e também na continuação da vida depois da morte.
– Acredito, sim. O sinhô não viu aquela casa que as coberta voava, o cochão pegava fogo… só podia ser o diabo.
– Segundo os especialistas no assunto, isto não é o diabo e sim uma força que todos nós possuímos, mas apenas em algumas pessoas elas fogem do controle.
– E como é que eu não consigo botá fogo nem com um fosco?
– Mais consegue criá fantasmas e fazê chuvê pedras. (Era mais uma observação maldosa do Cutuca, aquele que, segundo o Cururu, nascera com a praga do tio Loló.)
A Florisvalda enrubesceu, repuxou alguns músculos da face como se fosse chorar, e saiu. Ela era extremamente sensível. Notando a situação desagradável que se formava, fulminei o Cutuca com um olhar repreensivo e continuei:
– Segundo os parapsicólogos, todos nós temos esta força, mas somente em raríssimas pessoas ela aflora, aparece e age. Eu penso que é como a fé: as pessoas que a possuem firmemente, como disse Jesus Cristo, são capazes de, literalmente, remover montanhas do lugar.
– Sei não! …
– Eu acredito em visage – era o Cozidão que entrava na conversa. Uma veis eu tava caminhando de noite… “e uma raposa correu atrás de ocê” – interferiu o Nereu. A gargalhada foi geral e o Cozidão, esquecendo a seriedade do assunto tratou de defender-se:
– Seu Bucho-de-anta, Tonel-de-prástico-estufado… óia, seu Carlo, vou botá mais este nego na lista. Só vou esperá mascá um cartucho porque ele não vale um carrego novo. Oia, nego, quem quer vortá não entope caminho, tu sabe!…
– Conversa, Zói-de-jaboti-morto, visage não existe. Existe só na cabeça de medroso. É como dizem: onde tem medroso, onça e assombração fais a festa.
– Fala, fala nego! Um dia ainda quero vê este seu cabelo-de-pico espichando de medo, mais duro que espinho de arizeiro.
– Calma, pessoal! É bom afrouxar o arco de vez em quando, mas só depois da batalha terminada. Agora estamos trabalhando, conversando sério. Como sabem, não há um bate-papo por mais simples que seja, um livro por mais vulgar que pareça, um assunto por mais trivial que se nos assemelhe que não tenha alguma coisa de novo ou de bom para oferecer. E só ter sensibilidade. Nem tudo o que sabemos aprendemos nos colégios, mas sim, na vida. Por isto escolhi este tema, pois a vida é a melhor escola do mundo, e a única cujo preço não é estipulado em dinheiro, mas no trabalho e no sofrimento. Minha opinião é de que tudo quanto existe não veio por acaso. Se estamos aqui, agora, é para desempenhar uma função preestabelecida por Deus.
Se somos como somos, ricos ou pobres, fortes ou doentes, é porque Deus precisa em seu mundo, desta desigualdade. Se nascemos descrentes, revoltados, por certo também não é por opção de um Deus bom e justo. Acontece que os seres humanos cometem tantos desatinos uns com os outros, agridem tanto a Natureza, que acabam por favorecer as imperfeições que hoje campeiam pela terra. Na verdade, aqui estamos, e não adianta ficar questionando os porquês de tantas desigualdades. Agora, é preciso diminuí-las, consertá-las, arrumá-las um pouco, dar todo nosso esforço para diminuir nossas imperfeições. Nossos atos vão para a balança da justiça… ou da sorte. Nosso destino será decidido pelo prato que mais pesar.

32
Se alguém imaginar que as pessoas humildes não têm alegrias ou humor, engana-se. Aliás, em termos de presença de espírito elas superam as pessoas emproadas ou que só sabem proporcionar o riso através da apelação obscena e pornográfica. Há, nas pessoas humildes, um requinte todo especial de fazer humor, mesmo porque são mais autênticas, e tudo o que contam, dizem ou fazem, sempre obedece ao clima do momento.
Em determinada época, quando já as primeiras chuvas prenunciavam o inverno, compramos e abatemos um garrote de quinze arrobas. Já era o quinto no trimestre. Sinceramente, nunca vi gente comer tanta carne! Baseado na premissa de que o homem alimentado produz mais, eu vivia abarrotando o freezer de carne e incentivando os funcionários para que não se preocupassem com os gastos com a alimentação. Primeiramente, comíamos os mocotós, depois o fígado, os rins e o coração; a seguir as carnes com ossos e finalmente, as partes mais maciças e de primeira qualidade. O couro era sempre jogado fora.
Nesse tempo, veio trabalhar com a gente um outro mecânico de nome José Maria. Era um homem estranho, esdrúxulo, temperamental…, mas um dos maiores conhecedores de máquinas pesadas que já tive a oportunidade de conhecer. Era ele o único sobrevivente de um acidente automobilístico: os quatro companheiros, todos mecânicos, faleceram. Não sei se por isto ou se por um distúrbio de infância, ele era imprevisível. Se havia serviço, não se alimentava nem dormia até concluí-lo. Certa feita, trabalhou durante três dias e duas noites no motor do trator de esteiras MF 3366, sem praticamente arredar os pés da oficina improvisada no meio do mato. Apenas eu, entendendo que um homem não pode alimentar-se apenas de preocupação, levava-lhe sucos e biscoitos.
Detestava ver alguém bisbilhotando seu serviço e não admitia peruadas. Durante a noite, acendia uma lâmpada de 150 velas e ficava lá, sozinho, dando marteladas e resmungando a noite toda. A gente acordava lá pela madrugada e ouvia suas marretadas, ranger de parafusos emperrados ou o desabafo pouco educado por alguma coisa que não funcionava a contento. No fim, porém, como numa novela convencional, tudo dava certo. Parecia o lendário Macgyver, já que, com apenas algumas ferramentas, conseguia em plena floresta, retificar um motor pesado de trator. Era aparentemente dócil e tratável, mas apenas aparentemente. Quando menos se esperava, vinha a surpresa: se estivesse dirigindo, passava por cima de quem ou de qualquer coisa que lhe obstasse a passagem; brigava por pouco e nada; discutia e ralhava, mas tudo isto não ia além de algumas horas. Logo estava a sorrir, conversando com quem havia ofendido. Só não pedia desculpas diretamente, porque dizia não haver necessidade de tamanha humilhação. Se se achegava à pessoa e puxava conversa era porque estava arrependido de ter favorecido uma desavença.
Pois bem, este Zé Maria, nosso mecânico, neste dia em que mataram o garrote de quinze arrobas, pediu ao Cabeção e ao Pirarara para trazerem o couro e esticá-lo para ele, pois tinha uma utilidade para o mesmo. Trouxeram-lhe o couro. Como era costume, pediu logo ao Cabeção e ao Pirarara (eram os mais novos do barraco, aqueles a quem todo mundo se aproveitava pedindo favores) para pendurá-lo ao sol. Os dois foram até a mata, cortaram varas apropriadas, esticaram o couro e puseram-no a secar. Já no segundo dia, ninguém suportava mais o mau cheiro exalado por ele. Apanharam-no então, e o levaram para mais longe. Porém, com a ameaça de chuva, trouxeram o couro de volta e o encostaram na parede do barraco, num lugar em que a chuva não pudesse molhar. Quando a noite chegou (depois de mais ou menos uma hora que estávamos deitados), o Chapadão, chefe geral dos funcionários, deu o alarme:
– Acho que morreu um rato por aqui. Ninguém aguenta esta catinga de carniça.
Um outro observou:
– É o couro do Zé Maria.
– Não venha me dizer que colocaram aquela desgraça aqui perto do meu quarto. Olha, se amanhã aquela mundiça ainda estiver por aqui, vou jogar ela no mato.
– Vai pagar dois mangos se fizer isto – grunhiu meio sonolento, o mecânico.
– Não quero nem saber. Você acha que tenho que ficar aqui cheirando seu couro podre?
O dia amanheceu. Foi uma noite de lamentações, com o Chapadão ameaçando o “couro fedorento do Zé Maria” e este defendendo com unhas e dentes aquilo que iria servir-lhe, Deus sabe lá pra quê! Ele nunca nos dissera o que pretendia fazer com aquele diabo de couro fedorento. Na noite seguinte, o Tucano, agora Araçari, quando todos se deitaram, levantou de fininho, foi lá no mato, colocou o couro nas costas e recolocou-o bem colado à parece de tábua onde o Chapadão dormia. A catinga que o couro exalava era insuportável: até de quem estivesse em sono profundo, ela afetava as narinas. Como o Chapadão não imaginasse que o Cutuca fosse ter a ousadia de arrastar aquela imundície do mato para o barraco, apenas desabafou:
– Êta desgraça! Óia, Zé Maria, aquela praga infestou o mundo, intranhô até nas taba. Vocês não estão sentindo a carniça não?
– É, tá mesmo. A coisa tá infarenta. Acho que nois vai tê que lavá as taba onde incostaro aquela desgraça.
– Puta-que-pariu – resmungou mais um – não vai dá pra dormi. Amanhã nois pode caçá sarué e urubu aqui perto.
Foi mais uma noite, e bem inteira, de sucessivas reclamações. Pela manhã, o Chapadão foi examinar as tábuas e viu lá, bem rente onde dormia, o diabo do couro podre:
– Quem foi o viado que botou esta carniça aqui otra veis?
Silêncio absoluto. Ninguém se acusou. O Chapadão, entre impropérios e ameaças, novamente apanhou o couro e foi pela juquira adentro, deixando-o a uma distância de mais de 300 metros. Afinal, já eram duas noites que havia ficado acordado, cheirando aquela porcaria. Quando a noite seguinte caiu, o primeiro trabalho do Cutuca foi se meter na juquira, apanhar o couro fedorento e recolocá-lo no lugar da confusão. O Chapadão estava dormindo, e pelo cansaço, resistiu até à meia-noite o terrível mau cheiro do couro. Porém, pela madrugada, com a bexiga cheia demais, acordou. Acordou e farejou forte o ar contaminado:
– Oia, se pusero aquela desgraça aqui otra veis, vou cortá ele todo em pedacinho e interrá… ele e quem botô: se eu descobri. Só pode ter sido o viado do Cutuca. Eta praga do mundo!
– E só dois mangos – interferiu o ciumento proprietário.
– Eu só queria sabê pra que você quer este coro – retrucou o Chapadão. Afinal, você é mecânico ou sapateiro?
Não precisou mais que isto para que o nosso mecânico José Maria carregasse pelo resto da vida a alcunha de Sapateiro. Mais um resto de noite o Chapadão ficou acordado. Pela manhã lá foi ele com o couro fedorento às costas, pela juquira adentro, sem picadas e tentou escondê-lo debaixo de uma moita de espinhos. Para camuflar o esconderijo, teve a infeliz ideia de cortar ramos e jogar por cima. Era o de que precisava o sentido sherlockiano do Cutuca.
Na outra noite, depois de duras buscas, o Cutuca conseguiu encontrá-lo, e novamente o trouxe de volta. Com menos de duas horas de sono, o Chapadão acordou. O facão já estava amolado e bem ao lado da cabeceira. Ele farejou o ar e sem dizer qualquer coisa, saiu determinado. Isto, todos nós já prevíamos. O que ninguém poderia imaginar era até onde o maléfico poder inventivo do Cutuca poderia chegar. Bem na esquina do barraco, onde o Chapadão teria de passar para chegar ao fedorento couro, o Cutuca, baseado nas ameaças da noite anterior, colocou um velho pneu do N12. A noite estava mais escura do que nunca, como se o próprio diabo não se eximisse do prazer sádico de tão agradável conluio. Do jeito que o Chapadão veio e chegou, desceu. Afrouxou a unha do dedão e para não se cortar com o facão, foi de cara bem no couro podre. Antes de fazê-lo em pedaços, o Chapadão riscou o Collins no chão e desafiou até as potestades abissais. De demissão a homicídio, nenhum funcionário escapou. Somente sua voz exaltada feria o sacrossanto silêncio da noite. A coisa ficou tão séria que nem os mais ousados gozadores se encorajaram a qualquer observação maliciosa. Depois de alguns minutos, ouvimos o chiar de couro arrastado, pés pesados que carregavam, bufadas dragonianas e, por fim, silêncio tumular. Seria o fim daquela agonia?
No sábado de folga, porém, como o então Sapateiro houvesse vendido o que sobrou do couro ao Fuinha, o Chapadão teve que suportar, por mais quatro horas de viagem, o desagradável “perfume” de seu pesadelo. Da defasagem de dois mil cruzeiros do antigo preço, para mil cruzeiros que o Fuinha pagou, o Sapateiro jamais ousou cobrar do Chapadão. Couro foi, por muito tempo, uma palavra que o dicionário da turma eliminou. Se chegava algum bicho das caçadas, logo alguém perguntava:
– Quem vai tirá a pele deste bicho?

33
Estávamos jantando, quietos, ouvindo apenas um toca-fitas que, ao luar, desempenhava bem seu papel melancólico de dias não tão memoráveis. Além de Leandro e Leonardo, apenas o tique-taque de talheres que esbarravam ou raspavam nas bacias de plástico era ouvido. De repente, gritos de socorro e gemidos de gente que agonizava. Não houve um maxilar que ousasse apertar mais um grão de arroz. Na mesma posição que estávamos, continuamos, apurando os ouvidos e pedindo a Deus para que tudo não passasse de uma ilusão auditiva. É que o Carequinha e o Quoque estavam ainda no mato, onde pretendiam empoleirar uma tona que dormia na orla da estrada. Infelizmente não foi ilusão! Os gritos e gemidos, mais intensos e altos, agora vinham nítidos e cortantes. Engolindo o que tínhamos na boca e deixando cair o garfo que estava na mão, levantamo-nos incontinenti e corremos pela estrada ao encontro dos gemidos e gritos de socorro. Não havíamos ainda percorrido cinquenta metros quando vimos, embora mal, o vulto hercúleo de meu sobrinho Carequinha, transportando, não sabíamos como, o seu pai de mais de cento e trinta quilos. Ambos, se divididos, passavam de duzentos e cinquenta quilos. O Carequinha trazia o pai nas costas, todo mole, gemendo alto, braços balouçantes, cabeça caída. O coração parecia sair-nos do peito.
Ordenei logo ao Tonho Gritador para que providenciasse a camioneta e ele saiu em disparada; às cozinheiras, para que aquecessem um pouco de água; enfim, dei as mais estúpidas ordens que se transmite em momentos de pânico sem o uso pleno da razão. Uns foram logo tomando o grandalhão do Quoque das costas do Carequinha e quando já não sabíamos sequer o que fazer, eis que estrondosa gargalhada explode, dando-nos conhecimento de toda farsa.
Fora o Carequinha e o Quoque, ninguém mais conseguiu engolir uma colher de comida. Entre o susto e a raiva, ficamos com a vergonha de ter caído em mais um conto do vigário. A fome só apareceu no outro dia…. e bem devagarzinho.

34
Chega ao nosso barraco o meu sobrinho Galalau. Dezessete anos, extrovertido, falando em pegar onça a unha, fazendo um perfeito par com o faminto Armindo, de dezoito anos, também “caçador implacável de bichos ferozes”. Viviam pelas matas atirando como doidos, e raramente traziam um mísero tucano para o barraco. Naquela mesma noite, os dois pediram o carro emprestado e foram a uns dez quilômetros de distância, onde havíamos construído uma estrada nova e que, segundo os caçadores de espera, era ótimo para visitas de onças, pacas, tatus e outros bichos. De fato, os animais silvestres noturnos gostam muito de passear por estradas recém-construídas, talvez para se certificarem das modificações de seu habitat.
Lá pelas 22 horas, o Carequinha me chamou e sugeriu:
– Tio, vamos lá assustar aqueles dois panacas?
– De que maneira? – perguntei, bocejando de sono, cansaço e preguiça.
– Você trouxe aquela fita do esturro da onça que o cientista gravou?
Eu havia adquirido uma coleção de fitas K-7 do cientista Joham Dalgas Frisch, na qual, junto com as cigarras, o urutau, os surucuás… ele havia gravado esturros medonhos da onça-pintada. Eu sempre carregava comigo aquelas fitas, pois tinha como passatempo, capturar pássaros para criá-los em cativeiro. Para tanto, usava um possante toca-fitas de quase quinze quilos, devidamente acompanhado de alto-falantes com extensão de trinta metros, microfones, redes etc. Por isto, respondi:
– Trouxe sim. Aonde vou, levo tudo.
– E então?
– E então, o quê?
– Vamos atrás deles e botar a onça pra roncar.
– Será que vai dar certo?
– Não custa nada tentar.
– São dez quilômetros e teremos que desfazê-los na canela.
– Ah, mas vale a pena!
– Sabe, acho que vale mesmo. Afinal, meu sadismo é mais forte que minha preguiça. Vamos lá.
Saímos a pé com todo equipamento nas costas e uma boa espingarda também, pois não se descartava a possibilidade de uma onça no cio ser atraída pelos esturros de uma outra invasora. Escolhemos uma curva de estranha bastante sombria onde, inclusive, o felino tinha, dias atrás, arrastado e comido uma rês. Ali existia um ipê oco com três metros de circunferência, deixado para trás por estar defeituoso. O mato havia crescido sobre ele e, embora isto fosse perigoso, metemo-nos atrás, sem sabermos se estávamos ou não invadindo a privacidade de alguma surucucu pico-de-jaca. Esticamos o fio do alto falante, atravessamos a estrada e o colocamos dentro de uma moita a uns vinte metros de nós. Mal nos alojamos, percebemos que havíamos escolhido um ninho de vorazes formigas-de-fogo para disputar a posição. Enquanto havia repelente, usamos, depois tivemos que nos defender com as mãos. Não sei quantas picadas levamos daquela hora da noite até as três, momento em que vimos despontar, lá na curva da descida, dois vultos fantasmagóricos. Vinham de armas em punho, muito atentos a qualquer ruído. Respiramos aliviados, pois por muitas vezes já havíamos comentado a decisão de abandonar a ideia . Preparamo-nos.
Os dois vinham sorrateiros e perscrutadores: mais ameaçadores que uma canguçu rastreando o mateiro assustado. Quando chegaram perto, em todo volume, liguei o toca-fitas. O esturro que saiu do outro lado da estrada arrepiou até nossos próprios cabelos. Sem pestanejar, os dois viraram as espingardas e detonaram os quatro cartuchos de uma só vez. Desliguei o toca-fitas. Eles ficaram alguns rápidos segundos sem respirar e em seguida recarregaram as armas. Não sei como sufoquei a vontade de explodir em gargalhadas. Eles comentaram:
– Acho que acertamos.
– Era onça pintada.
– Você viu o mato balançar?
– Era grande. Esta daí comia até o Zico (boi de raça enorme, da fazenda).
– Tá morta.
Neste momento, torno a ligar o toca-fitas e mais quatro disparos se fazem no mesmo instante, como se tivessem sido disparados por ordem de um computador programado. Imediatamente recolocaram mais quatro cartuchos que já mantinham nas mãos. Dei um curto intervalo e tornei a emitir os esturros. Ato contínuo, eles dispararam. Desliguei momentaneamente o aparelho.
– É melhor a gente dar no pé.
– Se nois corre é pior. Os bicho sabe quando a gente tá com medo. Vamos aguenta firme.
Enquanto falavam e procuravam nervosamente mais cartuchos, pus a onça para roncar novamente. Eles, que já recuavam lentamente, começaram a apressar o passo para em seguida desabarem numa carreira de fazer inveja ao campeão de corrida com obstáculos, Edwin Moses. Em menos de dois minutos ouvimos a porta da camioneta bater a mais de duzentos metros.
Apressadamente saímos de detrás da tora e rolamos na estrada, de tanto rir e de tentar se livrar das formigas que já haviam se espalhado até mesmo por lugares escusos de nosso corpo. Agora que estavam longe, a gente se defendia sem cerimônia, mas com eles ali a cinco metros, tensos e medrosos, era tão arriscado um ruído como ser onça de verdade. Uma folha que caísse naquele momento, por certo seria metralhada. Nem a tora de ipê, com três metros de circunferência, era para nós garantia suficiente. Tiramos a roupa, ajeitamo-nos, livramo-nos das formigas e viemos voltando. Conversávamos alto e girávamos as lanternas para todos os lados. A ideia era eliminar qualquer semelhança com a onça que os havia ameaçado. Chegamos na camioneta, (havíamos tirado a chave para não voltar a pé). Por isto eles ainda estavam lá, sem saber o que fazer. Do carro não sairiam nem enxotados. Estavam trancados por dentro, vidros erguidos, espingardas armadas, facões em riste. Bem melhor, nestas circunstâncias, seria enfrentar as onças todas da mata. Sem saberem que eu possuía a tal fita, foi fácil, ao chegarmos, convencê-los de que estávamos ali empoleirando macucos. Investimos maquiavélicos:
– Que desgraça de tiroteio foi aquele? – perguntou meu sobrinho Carequinha, com a cara mais porca deste mundo.
– Vocês não ouviram?
– Ouvimos tiros e bois mugindo no pasto.
– Boi uma ova! Era uma pintada que esta camionete não carregava.
– Não lhe disse – interferi eu virando-me para o Carequinha – que aquilo não era boi?
– Olha, quase que ela pega nois. A bicha estava sentada na beira da estrada e embora a gente atirasse ela continuava lá, berrando, querendo pegá nois.
– Estão brincando! Onça não pega ninguém.
– Não pega? Não pega? Aquela come até boi de vinte arroba. Nois chumbamo ela e ela saiu balançando a mata toda….
E eles foram contando a história até chegarmos. Lá, acordaram todos os que estavam dormindo e inventaram peripécias que, depois de três dias, já penalizado, chamei-os e disse que tudo havia sido uma brincadeira do Carequinha e minha. Ficaram tão sem graça que, sinceramente, arrependi-me do que havia feito. Graças a Deus eram muito crianças, sobrinho e amigo: fomos perdoados. É, teve um “filhos da puta”, mas absorvemos agradecido, porque eles sabiam que teriam de carregar aquele vexame para o resto da vida.

35
Os primeiros pingos de chuva começaram pela madrugada, três horas, talvez. Quando amanheceu, as enxurradas pareciam arrastar nosso barraco. Eram mais de oito horas e apenas algumas cabeças saíam da rede para espiar as torrentes. O café já estava pronto e como era servido bem na cabeceira de onde eu dormia, quando as cozinheiras se aproximaram, já acordado, observei:
– Esta chuva seria ainda mais maravilhosa se eu tivesse no banco uma conta de milhões.
– Eu não – respondeu ela – eu queria só que hoje fosse o sabo de nois i embora.
Disse isto e foi saindo para cuidar do forno que cheirava a pão. Fiquei imaginado como era profunda aquela simples observação. Quanta filosofia de vida havia naquelas palavras cheias de solecismos, mas que não impediam de entendermos o pensamento. Enquanto uns hasteiam a felicidade no dinheiro e no conforto, outros o fazem exigindo apenas o necessário. Para muitos, basta apenas seguir as regras da Natureza: nascer, comer, crescer, trabalhar, se divertir e descansar. Juntar o que não se poderá levar não faz parte dos sonhos dos verdadeiros pobres e humildes.

Determinadas coisas parecem acontecer num mesmo período, como se fossem os vírus da gripe ou varíola. O mano Jayr (médico) costuma comentar que até dores lombares nunca vêm num só indivíduo dentro da mesma semana. Se aparece um caso no consultório, logo a fila aumenta. Por influência dos astros ou de outros fatores cósmicos, realmente as “coisas” acontecem em bloco, como se os primeiros acontecimentos forçassem o desencadeamento de outros subsequentes.
Ainda à noite, assisti a uma entrevista feita em Biafra na qual um repórter perguntou a uma senhorita muita elegante, os motivos que a levavam a aceitar um serviço que exigia tamanho desprendimento. Depois de outras perguntas, o repórter observou categórico:
– Minha cara irmã, eu não faria o que faz nem por um milhão de dólares por mês.
Foi aí que, num gesto de amor e fé, ela respondeu laconicamente:
– Nem eu.
Doutra feita, ainda naqueles dias, ouvi a Irmã Dulce de Salvador – BA, dizer para uma infeliz maltrapilha cujo caso não tinha jeito, por que precisaria de dez milhões de cruzeiros para operar-se:
– Se o problema for apenas os dez milhões, a senhora vai ficar boa. Dinheiro não é problema.
Ora, todo mundo sabe que a Irmã Dulce nunca teve um centavo disponível e mesmo assim construiu grandes e boas obras para as pessoas e para a humanidade. São exemplos assim que acontecem todos os dias, bem debaixo de nossos narizes e que insistimos em não enxergar. Para muitos a vida só tem graça e felicidade se houver muito dinheiro, muitos bens, muitas coisas. Para estas pessoas, só há chance de se praticar o bem com muito dinheiro no bolso. Outros, porém, humildes, sem dinheiro, sem condições até mesmo de saúde, conseguem grandes feitos e grandes obras. Na verdade, a única coisa que é extremamente necessária para alguém fazer grandes e boas obras neste mundo é a boa vontade, o trabalho, o amor e a fé.
Quando começamos a nossa reunião, eu estava pensando nestas coisas: era o desencadeamento provocado por acontecimento anterior. Escolhi o tema: dinheiro, loteria…, coisas inerentes. Primeiro falei um pouco sobre o assunto e depois comecei as perguntas:
– Se cada um de nós fosse milionário, ganhasse muito milhões na loteria sozinho, o que faria do dinheiro? Cabeção, você primeiro.
O Cabeção era um exemplo digno e singular de ingenuidade e pureza. Dezessete anos, bastante escuro para justificar os cabelos lisos, órfão de pai e mãe, sozinho no mundo. Nunca reclamava de nada. O que lhe pediam, se fosse possível, ele fazia. Nunca escondia sua admiração por qualquer feito menos comum de seus companheiros e ficava pasmo e boquiaberto com a versatilidade dos atletas olímpicos. Por causa destas características, ao ser interpelado, ficou honrado e nervoso:
– Rapais, ganhá sozinho é troço bom demais. Eu ia compra um carro, uma casa mais ou menos pra o dia que eu casá, uma fazenda só de boi branco igual ao dotô Rinaldo e dexá o tempo passá.
– Você, Grilo.
– Eu ia comprar um carro, uma casa bonita na beira do mar e já que o dinheiro não ia acabar mesmo, deixava o resto no banco para usar quando precisasse.
– Tonsura.
– Eu não ia casá nunca. Cum dinheiro a gente fica bonito, tem a muié que quisé, a hora que quisé. Ei ia comprá um espingarda importada, uns bom cachorro e ficar por aí atrais de otras Marinarvas.
– Faustão.
– Eu ia cuidar de minha família. Formar meus filhos e viver com eles numa cidade grande, lá na Bahia.
– Florisvalda.
– Eu não jogo, por isto nunca vou ganhá.
– Ninguém vai ganhar nada, Florisvalda. Estou apenas querendo saber se isto acontecesse, o que você faria.
– Nunca vai acontecer, então, pra que conversá?
– Cabeça dura, quando eu tinha dezesseis anos, estudava fora. Vivia na casa de um amigo da família e não possuía um centavo sequer. Para ver meus pais ou jogar bola na equipe da vila, apanhava uma velha e pesada bicicleta e viajava vinte quilômetros pedalando por estradas acidentadas. Mais empurrava a bicicleta do que viajava montado nela. Naquele tempo, eu olhava para os carros que trafegavam, para as pessoas que bebericavam nos bares, para muitos dos meus colegas que lanchavam e ficava me perguntando:
– Meu Deus, será que um dia eu vou conseguir ter dinheiro para, pelo menos, matar esta fome canina? É que quando voltava do colégio, o estômago parecia digerir-se. Ele roncava e doía de fome e eu nunca tinha um centavo no bolso. Era só café da manhã, almoço e janta. Eu era um adolescente faminto. Hoje, as coisas melhoraram e nem sei se foi por esforço ou merecimento meu. As coisas, simplesmente aconteceram. Isto também poderá acontecer com qualquer um de vocês.
– Comigo não vai acontecer.
– Tudo bem, esqueçamos. Fale você – disse eu então, virando-me para uma criança de seus nove anos, filho de um peão da fazenda que, por acaso, estava ali esperando a hora em que iríamos ligar a televisão. Envergonhado, muito tímido como quase toda criança da roça, ele só balbuciou algumas opções: balinhas, chicletes, picolés e gaiolas para gaturamos.
Virei então para o mais velho do barraco, um homem que já havia casado duas vezes e deixado muitos filhos no mundo. Como bom nordestino da classe sofrida, não parecia muito se importar com o passado: seus filhos pelo mundo, sua vida sem perspectivas….
– Cozidão, e você, que faria se ganhasse uma sena acumulada, sozinho?
Primeiro ele brincou, pois jamais começava um assunto, por mais sério que fosse, sem antes pilheriar:
– Primeiro eu ia pará de puxá. Os que farta eu ia incomendá e depois ia pará de veis. Tem ainda o Baxinho e o Araçari que faço questão de arrastá eu mesmo, o resto mando um pouco destes polícias corrutos fazê pra mim. Por dinheiro até juiz vira ladrão.
– Ia puxá a raposa também? – entrou sem aparte, o Cutuca.
Sem desviar os olhos, o Cozidão continuou:
– Ia me esquecendo: a mãe do Araçari eu mesmo também vou puxá antes de pará. Ô desgraça de bicho impestiado, só cabando com a raça tuda.
– Gente – acudi – a conversa é séria. Gostaria que deixassem as brincadeiras para depois. Cozidão, fale sério, o que faria se ganhasse muito dinheiro, se fosse um homem rico?
– Falano sério, eu ia ajeitá meus fio que estão por aí passando necessidade. Comprá uma boa casa e deixá eles bem. Depois eu ia procurá a Naná e desaparecê do planeta.
– Logo a Naná? Será que o barbudo do Chevrolet velho vai deixar? – era o Cutuca outra vez.
– Praga dos inferno, deixa eu de mão.
A risada foi geral. Não havia mais clima para continuar. Tratei de interromper as brincadeiras, encerrei a reunião e fiquei pensando: de fato, o ser humano, quase sem distinção de classe social, é um animal egoísta e estranho. Somente os predestinados, os idealistas, as exceções conseguem ser diferentes. Ninguém falou em praticar a fraternidade, em ajudar os irmãos carentes. O egoísmo parecia geral. Em cada fase da vida, cada um pensava em si. A criança queria balinhas; os moços, carros, conforto e mulheres; o mais velho, lembrou-se, pelo menos, dos filhos que nem bem sabia onde estavam. Não houve um sequer que pensasse em construir creches, hospitais, escolas, asilos ou outra coisa qualquer que amenizasse o sofrimento de seus irmãos.
Talvez não seja por outro motivo que o próprio Jesus sempre desaconselhou as riquezas deste mundo. A maioria dos homens só pensa no conforto próprio e no poder. Com o poder e o dinheiro nas mãos, o caminho está aberto e propício para a libertinagem e para as injustiças sociais. E muito difícil ao rico ser bondoso e compreensivo. Por certo, mais fácil que isto é “passar um camelo pelo buraco de uma agulha”.

36
Quando depositei o cheque, fui avisado que o mesmo era desprovido de fundos, e que o emitente, por meio de seu genro, havia recorrido à justiça. Procurei o sogro de meu funcionário Clemente, senhor Raimundo, para saber o que havia acontecido. Ele se esquivou dizendo que lamentava, mas que o seu genro havia ajustado um advogado para resolver a questão. A intimação não demorou a chegar. Contei, então, por carta, o acontecido ao juiz de Direito da Comarca de Santa Luzia, relato este depois comprovado com testemunhas e inquérito policial da Delegacia de Buriticupu. A carta defesa foi assim redigida:
“MM Juiz de Direito da Comarca de Santa Luzia – MA.
Na qualidade de sócio-diretor da Madeireira São Marcos Com. e Ind. Ltda., contra a qual move ação trabalhista o funcionário Clemente de Jesus Silva, sinto-me na obrigação moral de transcrever-lhe a verdade, para que o MM. possa aplicar a sentença nos páramos da justiça e da Lei.
O senhor Clemente de Jesus Silva foi admitido no dia 1º de setembro de 1987, vindo da fazenda Amazônia (SAMBRA). Aparentemente, até o dia do roubo, era um funcionário eficiente e responsável, gozando por estas prerrogativas, regalias singulares. No dia 15 de setembro de 1988, apanhou quinze mil cruzados novos, que segundo ele, seriam pelas férias que não queria tê-las em repouso. No dia quatro de dezembro do mesmo ano, pediu e foi atendido em duzentos e cinquenta mil cruzados novos, com os quais construiu sua casa em Buriticupu, dinheiro este que só veio devolver, sem juros, em abril, alegando que havia recebido o PIS. (Neste mês já estava desviando nossa madeira). Em 10 de abril de 1989, tentando esconder suas falcatruas, solicitou-me novo empréstimo de cem mil cruzados novos, o que foi prontamente atendido. No dia 23 de abril de 1989, foi flagrado em roubo, quando o próprio dono do caminhão que transportava a madeira e que nos conhecia, deu-nos ciência.
Devo acrescentar que, por se tratar de um empregado, até então de inteira confiança, jamais lhe pedimos qualquer tipo de recibo ou comprovação, a não ser alguns, assinados por estrita coincidência. Tendo sido flagrado, foi levado à Delegacia de Polícia de Buriticupu, onde, perante a polícia, minha pessoa, do senhor Arlindo Falqueto, do senhor Raimundo Evangelista dos Santos e do senhor José Barbosa de Carvalho Filho, confessou ter roubado sete caminhões de madeira (ipê de primeira qualidade), ipê este escolhido no meio de centenas de toros espalhados no tombadouro, o que fazia com o auxílio de nossa máquina carregadeira, aos domingos ou à noite. No terceiro dia em que se achava recolhido no xadrez, apareceu-me o senhor Raimundo Rodrigues Veras, seu sogro, que acompanhado da esposa, irmão do acusado, e outros parentes, propuseram-me pagar a madeira roubada, desde que eu retirasse a queixa e desse uma “baixa limpa” na carteira. Diante da situação embaraçosa da família, e embora o prejuízo confessado ultrapassasse a casa dos vinte e cinco mil cruzados novos, aceitei a importância irrisória de sete mil cruzados novos e dei o caso por encerrado. Fizeram então a coleta entre eles, sendo que o acusado entregou um mil cruzados novos que restava da última negociata; o vigia devolveu os seiscentos cruzados novos que recebera para se calar, e o sogro do acusado assinou um cheque no valor de cinco mil e quatrocentos cruzados novos.
Ficou combinado que o senhor Clemente de Jesus Silva enviaria a carteira para que fosse dada a baixa, e assim foi feito. Ao ser chamado para assinar os papéis, mandou avisar que não podia, mas que se os enviássemos a Buriticupu, ele assinaria. Assim fizemos. Quando os papéis chegaram, notamos que havia má fé nos documentos, pois a assinatura não conferia. Pedimos então que comparecesse para acertamos tudo de uma vez.
Tudo parecia ter terminado quando, depois de quinze dias vencido, pus o cheque em cobrança e o mesmo estava destituído de fundos. Ato contínuo recebi um comunicado judicial, conclamando-me a pagar quase nove mil cruzados novos por ter dispensado o senhor Clemente de Jesus Silva, sem justa causa.
Acredito, meritíssimo, que o cheque emitido pelo senhor Raimundo Rodrigues Veras, os mil cruzados novos devolvidos pelo acusado, os seiscentos cruzados novos da tentativa de suborno, o aviso do proprietário de um dos caminhões que transportava a frete os toros roubados (sem contar outras provas de somenos importância), tudo isto somado às afirmativas das testemunhas, inclusive oculares, devem oferecer material convincente para que a Madeireira São Marcos Com. Ind. Ltda. faça uso da lei e demita o funcionário em questão por inteira JUSTA CAUSA.
Respeitosamente,
Madeireira São Marcos Com. Ind. Ltda.”

37
Depois de muitos vaivéns, levando e trazendo testemunhas, comecei a perceber a grande amizade que havia entre o advogado de defesa do acusado e o juiz. Mesmo assim continuava acreditando que, diante de fatos tão contundentes, tão cristalinos e comprovados, nem a mais ferrenha afinidade poderia ferir a Lei e modificar o rumo da decisão. No entanto, eu estava redondamente enganado. Alegando abuso de autoridade por haver prendido o ladrão fora do flagrante, o juiz deu ganho de causa ao ladrão, obrigando-me a pagar, ainda, o dobro do que havia me furtado. Meu advogado, diante do vexame de perder uma causa tipo Bolívia 6 x Brasil 0, aconselhou-me a recorrer, mas preferi, pela segunda vez, ficar com os conselhos do velho e querido pai: “Filho, é muito mais sensato um péssimo acordo, do que uma ótima questão”. Preenchi o cheque com a quantidade que o “ilustre defensor da justiça” estabeleceu e enviei-o, anexando-o à carta que se segue:
Imperatriz, 31 de agosto de 1990.
MM Juiz
Dr. Francisco Florismar de Almeida
Juiz da Comarca de Santa Luzia
Nosso conhecimento foi rápido e em oportunidade um tanto desagradável, ou seja, numa situação em que eu tentava conseguir justiça perante a ação trabalhista movida contra minha empresa pelo Sr. Clemente de Jesus Silva, em 27 de julho de 1989. Para avivar a memória e economizar seu preciosíssimo tempo, eu lembraria que o Sr. Clemente de Jesus Silva foi meu funcionário: um ladrão esperto que conseguiu, confessadamente, desviar sete caminhões de ipês de primeira qualidade, que hoje renderia, a baixo custo, a insignificância de novecentos mil cruzeiros.
Confessou isto publicamente, na minha presença, de meus irmãos, de meu cunhado, do vigia do tombadouro, do gerente da fazenda onde estavam estocadas as madeiras, dos policiais, dos próprios receptadores do roubo, além de outras pessoas que, por acaso, estavam na delegacia naquele momento. Por isto foi preso por trinta dias, saindo por intercessão do sogro que para isto assinou um cheque de cinco mil cruzados novos, que pelo menos a mim, até hoje, não foi pago.
Fora da cadeia, amparado pela “lei da impunidade”, o ladrão acusou o roubado, levando-o à justiça do trabalho, alegando absurdos e mentiras, não menores do que a que sempre apresentou.
Por duas vezes levei a camioneta cheia de testemunhas, gente que trabalhou com ele, gente que conhecia ambas as partes… gente de todos os níveis, mas o MM limitou-se a ouvir apenas duas. Senti, desde a primeira entrevista, que o veredicto estava dado e que, mais uma vez, a verdade e a justiça seriam, vergonhosamente, impotentes ante a “lei”. Baseado apenas na Lei ou no comum, a polícia é sempre arbitrária e não se pode prender ninguém fora do flagrante, mas devo relembrar que nada é mais responsável pelas desordens sociais do que a impunidade, amparada ou não pela Lei.
Logo depois do veredicto, o meu vigia que havia testemunhado contra o Sr. Clemente, apareceu morto dentro da rede, com a cabeça esfacelada a golpes de enxadão. Apesar de o Sr. Clemente haver ameaçado o infeliz vigia, eu não ousaria alimentar dele qualquer suspeita. Estou certo que me levaria a novo processo por difamação ou falsa acusação. Mas me pergunto: quem teria motivo para assassinar um infeliz sem família, cujo único mal foi testemunhar uma verdade?
Pensei em procurar a Justiça, mas que justiça? O que é afinal, Justiça?
Desde os primórdios de nossa história que mesmo os mais conscientes e honestos pensadores tentam encontrar uma definição para ela. Jamais encontraram e jamais encontraremos, enquanto ela for manipulada por seres humanos sem sutileza nem sensibilidade para enxergar a verdade. Sei que as verdades são inerentes a cada um e que somente uma consciência sensível poderá decantar do acervo de interesse das leis, a verdadeira justiça.
O MM. parece confundir justiça com direito. Há juízes que procuram ser justo, outros que apenas sabem aplicar a Lei, escudando-se no álibi de uma Constituição escrita por políticos, logo, desacreditada de sinceridade e totalmente convergida para a manutenção do poder.
E muito confortável aplicar a Lei, auxiliar os pobres, tirar de quem tem muito e dar a quem tem menos, desde que o virtuoso use os seus próprios bens. O Sr. Clemente é ladrão, sim, mas um ladrão pobre. A Lei ajudou-o tirando de mim que tenho mais. Mas, e o pobre vigia, quem irá ressuscitá-lo?
É bom lembrar aqui o jurisconsulto romano Ulpiano: “Justiça é dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuendi)”. Isto seria Justiça. Infelizmente (e isto já afirmava Thomas Hobbes), não é a sabedoria, mas a autoridade quem faz as leis. “Nossas leis não passam de um monopólio da violência física legitimada.”
O direito de não se fazer justiça pode ter aprovação das leis, porém, jamais, da consciência.
A sentença dada, além de haver incentivado o Sr. Clemente a continuar em suas falcatruas, ainda destruiu em mim, o pouco de fé que restava na Justiça de nosso País. Jamais irei conformar-me, mesmo porque, não consigo entender uma Justiça que se baseia apenas na Lei, esquecendo-se da verdade. Eu sempre imaginei que, para os juízes, mais importante que os incisos e artigos, era a verdade. O MM. não procurou saber quem era quem, apenas aplicou a lei da suposta arbitrariedade, deixando-me como empregador injusto e arbitrário.
A opção pelos pobres é bonita: faz parte da febre religiosa e da demagogia política, mas o bem-estar da sociedade não deveria nunca ser justificativa para as injustiças.
Acredite-me, MM., apenas Deus faz o milagre de ser bom e justo ao mesmo tempo, já que, filosoficamente, bondade e justiça são contraditórias. Bom é quem perdoa o pecador: justo é quem o condena. O MM. é representante da Justiça. Esqueça as leis, pois os juízes devem ser sensíveis e perspicazes à verdade, caso contrário se estará dando mais valor às mentiras bem contadas do que às verdades gaguejadas
No meu caso, o MM. apoiou-se na lei da arbitrariedade, porque eu não fiquei com a polícia e mais testemunhas, atrás das toras, a fim de flagrá-lo à noite ou aos domingos, desviando a minha madeira. Mas, de livre consciência, o MM. sabia que ele havia roubado, que jamais trabalhou à noite ou em dias feriados e que a firma nunca deixou de pagar-lhe um centavo sequer. Mas não existiam provas escritas e contundentes.
Veja, MM., o que nos diz Júlio C. Barbosa, no seu livro O QUE E JUSTIÇA: “Uma decisão judicial pode modificar as vidas das pessoas, contribuindo para sua integração ou marginalização sociais definitivas, e acarretar-lhes consequências indeléveis. Neste sentido o poder de um juiz é imensurável, pois justo ou injusto a decisão proferida pelo Poder Judiciário deve ser cumprida. Torna-se de vital importância que seus membros sejam altamente qualificados e preparados. Não basta que o juiz conheça as leis, mas é necessário que ele alie este conhecimento a urna perspectiva social, histórica, cultural e moral ao decidir.”
Como percebe, não é só minha a opinião de que um verdadeiro juiz tem que, na maioria das vezes, ler mais o coração das pessoas do que a própria Constituição.
Rodbruch disse um dia: “Se não se é capaz de estabelecer o que é justo, que pelo menos se saiba o que é mais direito.”
Deve ser desanimador para os honestos, lembrar que as virtudes nem sempre são recompensadas ou reconhecidas. O MM. por meio da sentença dada, incentivou o Sr. Clemente a continuar roubando, bastando apenas fugir do flagrante; e estremeceu em mim a crença de que vale a pena andar direito. Sempre digo que a maior necessidade da existência de Deus é a Justiça: “Vocatus atque non vocatus, Deus aderit”. Que Deus o ilumine em outras decisões.”

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Já grávida, a Marinalva chegou. Menina assustada, morena, baixinha…, com todas as marcas que a miséria impõe. Era agora a esposa do Tonsura. Os dois pareciam nem se conhecer. Era praticamente impossível flagrá-los dialogando. Por coincidência, também ela quase não conversava. Se o Dr. Aristeu estivesse presente, certamente diria que o casamento havia sido perfeito, ou que, por fatalidade dos grandes e misteriosos acontecimentos, num mundo tão grande, os dois únicos da espécie haviam se encontrado.
Não ficou por muito tempo ali naquela maloca, contígua ao nosso barraco. Certa feita, para ajudar um vizinho em apuros, comprei-lhe um canto de quintal onde havia um barraco de sarrafos. O Tonsura ofereceu-me por ele, dois mil cruzeiros para serem pagos quando pudesse. Para ser mais preciso, dois anos depois, ele quitou a dívida, sem juros nem correção. Quando o fez a gente já dava a quantia de esmola, muitas vezes por semana, graças à inflação galopante que assolava a política econômica do Brasil. No entanto, não reclamei, pois quando a importância foi estabelecida eu já sabia, não só que não iria receber, mas também que o Tonsura merecia um presente bem melhor do que aquela maloca.
Alguns meses depois, o filho deles nasceu. Era um garoto, fotocópia do pai: caboclinho esguio, assustado, quieto e tímido. Como um caititu, vivia agarrado à mãe e se era impossível saber se já balbuciava alguma palavra ou não, mesmo dois anos depois de nascido. Falar, só em última instância. Foi mais ou menos neste período que o Tonsura se apaixonou por uma meretriz do bairro e abandonou a Marinalva, deixando-a com o seu filho. Mesmo assim, a Marinalva não desistiu. Sempre fiel e apaixonada, vivia no barraco, passando fome e necessidade, mas cuidando do garoto, pois mesmo em sua santa ingenuidade, sabia do valor de um filhote, ainda que para um bicho como era seu marido. Por isto, engravidou outra vez. Nem isto comoveu o Tonsura. Só ia lá para transar. Viver debaixo do mesmo teto, nunca. Um dia me procurou:
– Sô Carlos, a muié tornô a fica buchuda e eu não sei o rumo.
– Buchuda? Vocês não estão separados?
– Nois tá, mais ocê sabe cumu é.
– Não sei não, porque se ainda se gostam, por que não vivem juntos?
– Eu não quero aquela muié pra vivê comigo, nem morto.
– Essa não!… E mesmo assim você pôs um outro filho nela?
– Puis sim. Ocê pudia me arranjá uns trocado pra ela esvaziá o bucho.
– Olha, Tonsura, para ser sincero, acho que este seria o melhor caminho. Estaria mentindo se lhe pregasse as normas da moral e da religião, afirmando que isto é, num caso deste, o que acho certo. Contudo, embora eu ache que eliminar este feto seja o mais viável, jamais compartilharei ou assumirei tal responsabilidade. Sei que cada milhão de criança deste tipo que nasce, noventa por cento tornam-se sofredoras, chegando mesmo à marginalidade. Uma, às vezes, se torna honrada, honesta, um exemplo para a humanidade. Não sei se diante deste prisma, desta estatística, deve-se optar por deixar esta criança nascer. Isto, porém, não compete senão à mãe da criança que vai nascer, porque entendo que mais importante que a moral, os mandamentos, a religião e a Constituição do país é o relacionamento da pessoa em questão com Deus. Se eu fosse mulher e estivesse na situação da Marinalva, com o mesmo entendimento que tenho hoje, por certo abortaria. Porém, isto é a minha consciência e não a dela. Só a pessoa em questão, ao mergulhar no silêncio com seu Criador, sabe da decisão certa a tomar. Às vezes isto vem de encontro à sociedade e a uma porção de princípios, mas não afeta a paz de espírito da pessoa. Eu sempre costumo dizer que cada um possui sua própria verdade e que por ela será julgado. Por isto eu jamais mandaria ou aconselharia o aborto, nem sequer, agora, arranjarei o dinheiro para tal.
– Tá bom, vão vê no que vai dá.
Três meses depois o Tonsura estava na sua motosserra no pé de um grosso jatobá, todo suado, quando me acheguei e bati-lhe nas costas. Ele olhou, desligou o motor para ouvir o que eu tinha a dizer. Fitei-o penalizado. Sua roupa estava imunda, banhada de suor é pó de madeira. Pensei em desistir da tarefa, mas enfim, encontrei coragem:
– Tonsura, tenho uma notícia bastante desagradável para passar-lhe.
– lé?
– É sim. Sabe, sua mulher perdeu a criança e está passando muito mal. Talvez você queira vê-la.
Ele deu um sorrisinho – pensei que fosse de tensão – depois esfregou a costa da mão na testa para afastar farelos de madeira que quase lhe cobriam os olhos e comentou:
– Graças a Deus! Agora só farta morre aquela desgraça também.
Quase caí de costas. Eu que havia até decorado frases solidárias para amenizar-lhe a dor, via agora toda uma filosofia fraterna cair por terra. Mais do que nunca lembrei do Dr. Aristeu, num dia qualquer a observá-lo: “E um bicho!”

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Os quatro disputantes assentaram-se. Ao redor da mesa, mais de dez perus tisicavam a paciência dos jogadores. Era sempre assim: quatro masoquistas à mercê de mil demônios, sempre incansáveis na tarefa de transformá-los, ao menos por alguns dias, em ferrenhos inimigos. A coisa chegava a tal ponto que houve dias em que filhos e pais se mandavam “pro meio dos infernos”, tudo em nome do nervosismo causado por uma assistência sádica e diabólica. Minha irmã mais nova sempre alertava: “Este senso, exageradamente crítico de vocês, ainda vai custar-lhes duros anos de purgatório”. A conversa era peculiar:
– Qia, se arguém labigosá, perde a vaza.
– Eu, oceis sabe, só jogo sério.
– Quatro meis antes de nascê sua mãe já apertava as pernas pruquê não confiava em ocê.
– Vamos lá. Se jogá sério, perde.
– Nascido em lagoa e perdê pra sapo?
– Vamos vê.
– Oia a cara do Zói-de-jabuti-morto! Vê se não é cara de derrotado.
– Me deixa de mão, Araçari. Sou lá de passá fome? Tou aqui no mato há mais de ano e só ocê não sabe que quem já comeu muié não sente outra fome.
– Mula e linguiça é muié?
– Te aqueta, Ventinha. Ocê sabe que dois tatu num entra num buraco só.
– Vamos deixá de papo. Mexe aí. Dá cá, não confio em ocê.
– Pra jogá com você pego até sete buchas e ainda bato de lasquinê.
– Se língua ganhá jogo nois já perdeu mesmo!
– Mexe logo, mundiça!
– Carma, carma. Quem anda depressa custuma dá topada.
– Falô bonito: falô vinte quilometro e não entendi nem meio metro.
– Burro é assim mesmo: tem dificuldade em intendê.
E a conversa continuava no ritmo da gozação matuta. Mais adiante, outros já improvisavam outra mesa para um pife a dez cruzeiros por vaza. Na cozinha, o Quoque e o Velhão arrumavam iscas e varas para uma pescaria no Pindaré. Também não escapavam de observações picantes:
– Ei, desgraceira, hoje as minhoca vai tomar banho!
– E vai mesmo porque este monte de véio só pega mesmo mutengo cego.
– Hoje vai sê dia de tirá espinho da garganta.
– Não estão sentindo a catinga de mofo? Só pega mesmo piau vesgo.
– Ocê vai também, Fuinha?
– Tô fora: vô campiá uns corumbé lá na estrada nova.
– Vigi do céu, ainda tem jabuti nestas mata?
– Arguns. Se não acho eles, trago uns nego (gorgos) mesmo.
– Não duvido!
É que dias atrás, o Fuinha, aproveitando a folga, foi caçar na mata vizinha. Distava vinte quilômetros e mesmo assim ele foi a pé. Lá, sem outra alternativa, abateu dois barbados enormes e, sem pensar na distância, meteu-os nas costas e começou a encurtar o caminho. Mais ou menos no meio da estrada, notou que alguma coisa se mexia numa moita fechada. Arriou os gorgos, preparou a espingarda e ficou atento. A coisa, sem se assuntar, continuou a mexer-se. Ele viu então um vulto meio amarelo e supôs tratar-se de uma enorme surucucu que se enroscava preguiçosa. Continuou olhando e depois descobriu que era um corumbi que, como afirmou, não tinha mais onde crescer. Sem pestanejar, deixou os barbados na orla da estrada, entrou na mata, aproximou-se do jabuti e disse:
– Vão bora, rapais!
Meteu-o nas costas, deixando os barbados para trás. Conforme a qualidade, a escolha. Se mais adiante abatesse um castanheiro ou mesmo um tatu, não se era de duvidar que o jabuti ganharia novamente a liberdade. Questão de hierarquia culinária. O fato é que, sem carne, ele não retornaria ao barraco. Aos sábados que completavam as quinzenas, sempre voltava levando para a família meio fardo de carne moqueada. A necessidade proteica de seis famintos caboclinhos estava garantida. O resto, o arroz e a farinha de puba da região resolveriam.

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O trator zoava num barulho infernal. Os paus que caíam, as motosserras que cortavam, os carros que baldeavam… tudo parecia um sacrilégio ao silêncio sacrossanto da floresta. Nestes momentos, quem quiser falar com alguém, só mesmo agarrando-o pela roupa para avisar, ou atirando-lhe uma pedrinha ou graveto.
O trator abria estrada e se aproximava do lugar em que o Baiano estava derrubando um jatobá com mais de cinco metros de circunferência. O Grilo desce um pouco a rampa e começa a gritar como louco, avisando para que o Fuinha se afastasse, pois o jatobá estava prestes a cair. A parafernália era total, e nem o Fuinha no trator, nem o Baiano na motosserra, tomavam conhecimento. Nisto, quando menos se esperava, a árvore tombou e foi com a galhada certa em cima do trator. Por sorte, apenas os galhos mais finos o atingiram e a cabina florestal resistiu a contento. O susto foi tremendo. Desligados a motosserra e o trator, fez-se um silêncio razoável, com apenas gritos de desespero se sobressaindo no meio dos piados esganiçados de dois tucanos de-peito-branco que protestavam do alto de uma tatajuba. Apareceu caboclo de cada brocotó: provavelmente o Fuinha estivesse morto. Ainda não havíamos chegado perto, quando percebemos os ramos se mexerem e alguém que se desvencilhava do emaranhado, colocando o nariz para fora: era o Fuinha.
– Estão querendo me matá, fios de uma égua!
– Nois gritô de esfolá a goela, mais ocê é mais surdo que uma anta véia!
– Gritá prum home em cima dum trator é o mesmo que fazê careta pra cego. Quem escuta arguma coisa num baruio deste?
– E o que nois podia fazé mais que gritá?
O Cutuca, que dirigia o N 12, vinha chegando. Ainda sem saber se havia alguém morto ou não, fustigou:
– Será que são brabo, seu Carlos?
Os grandes e retorcidos bigodes do Baiano estavam impassíveis:
– Eu não posso adivinhá – disse ele enquanto retirava da “boroca” imunda, um limatão para amolar a corrente.
– Ocê tem também que pará esta merda de veis em quando pra saber se a gente está por perto.
– E você, por que não parou o machão? (Machão, dois-dias, manha-colonha… eram os nomes que definiam nosso MF 3366 com quinze anos de uso. Machão, porque vivia, segundo eles, botando na bunda dos donos; dois-dias, porque jamais trabalhava mais que isto sem dar problemas; e “manha-colonha”, porque enquanto produzia um cruzeiro, comia vinte).
Manha-colonha era um termo muito usado pelos imigrantes italianos, vindos de Vêneto, para definir os negros. Quando desembarcaram em Benevente, no Espírito Santo, os italianos se depararam com uma raça totalmente avessa aos seus costumes de trabalho, economia, alimentação, aparência e sistema. Trabalhar de sol a sol, receber pouco, comer puina com polenta e rezar o terço todas as noites, de fato não condizia com a pinga e o candomblé. Por isto, os italianos logo se indispuseram com os negros, classificando-os de manha-colonha ou de lori: observações picantes ou difamantes. Não deixando por menos, os negros contra-atacavam, chamando-os de polenteiros, puinas etc. Até hoje, como alemães e judeus, negros e italianos não vivem em boa paz: a rixa vem de longe.
E a discussão continuava acirrada. Interferi:
– Gente, vocês estão me parecendo com aquele atacante que, mesmo perdendo o gol, quer agredir o juiz porque marcou impedimento. Ora, se chutou fora, por que reclamar? Também aqui, se não aconteceu nada, por que a discussão? O negócio agora é a gente não incorrer no mesmo erro, pois como vocês mesmo viram “sorte ou azar, nem sempre dá”.
Já sabendo do possível acidente com a máquina, nosso mecânico já chegava. Neste tempo possuíamos um D60 da Caterpillar que era novo. Fora ele, tínhamos duas carregadeiras, um MF 3366 com quinze anos de uso, um D50 da Komatsu, três N10 XHT, um N12, uma patrol, duas camionetas e um pick-up Tramontina. Com a exceção do D60, todo o restante do maquinário tinha muitos anos de uso, trabalhava em lugares acidentados e eram forçados além da capacidade etária. Mesmo assim não paravam. O segredo estava no Macgyver, nosso mecânico que também era conhecido por Sapateiro, por causa daquele problema do couro com o Chapadão. Com o auxílio de uma marreta, uma chave de fenda, um alicate, algumas raras chaves e um verdadeiro arsenal de arame, cola, durepox e fios, ele conseguia fazer com que tudo funcionasse durante um verão inteiro. Não foi por menos que logo ficou conhecido no meio da turma por “Magaivo”. Quando o verão terminava, a gente embarcava aquela sucata toda e trazia para as oficinas. O maior trabalho dos mecânicos da cidade era desfazer tudo aquilo. Suavam e suavam desmanchando amarradas que intrincariam Alexandre, o único, segundo Aristóbulo, que conseguiu desatar o nó górdio feito com casca de sorveira.
O certo é que nosso “Magaivo” não desperdiçava tempo e a gente produzia o suficiente para que não faltasse matéria prima para a indústria durante todo o inverno.
Um dia, porém, o nosso mecânico mostrou as unhas e por isto foi despedido. Não levou uma semana para que nada mais funcionasse. O novo mecânico, inexperiente e preguiçoso, não dava conta. Perdeu-se no meio de tanta gambiarra, de tanta cola, de tanto arame e fui obrigado a dispensá-lo também. Daí para frente começou a nossa via-crucis: ninguém dava conta mais do recado. Para sorte nossa o verão estava bem no fim e assim, com mais tempo, trouxemos tudo para arrumar nas oficinas mecânicas da cidade de Imperatriz – MA.

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Reunimo-nos para mais um debate de ideias. Aos poucos eu ia me interessando pelos pensamentos daquelas pessoas humildes que são iguaizinhas ao resto da humanidade que se diz culta, com a única diferença de se expressarem de modo diferente. Lembrei-me do dia em que os demais políticos quiseram processar o ingênuo Juruna porque ele havia dito que a maioria dos políticos roubava. Eles não aceitaram a mudança da sintaxe ou o sinônimo mais esclarecedor da simplicidade indígena. Sempre se acusam de desvio de verbas, de uso ilegal do patrimônio público, de mordomias e salários escorchantes…. Isto já o brasileiro se acostumou… e eles também. É como se o povo fosse uma criança que se acostumou a dormir com o barulho de um ventilador de palhetas soltas e que logo acorda se alguém o desliga ou modifica o som. Por isto, quando o Juruna desligou o ventilador e abriu as janelas para o uivo dos ventos, eles espernearam. A palavra, embora fosse sinônima e dissesse a mesma coisa, parecia dura demais. Se dizemos que um político faltou com o decoro parlamentar, desviou verbas ou não agiu corretamente, nada acontece; mas, se usarmos o sinônimo “ladrão”, aí a coisa pega, com processo e tudo o que pode intimidar aqueles que ousarem dizer tamanha verdade. O assunto, em vista da eleição presidencial que se aproximava, versaria sobre política, justiça social e coisas que as valessem. Na verdade, vivíamos um tanto alienados neste assunto, mesmo porque tão logo anunciavam o horário político obrigatório, alguns quase se atropelavam para desligar o aparelho de televisão. Durante todo aquele acinte vergonhoso do horário político imposto, o tempo era dividido em imprecações contra a lei estúpida que ousava nos enfiar goela abaixo e em jogatinas que iam do dominó ao pife.
A rapaziada fez um semicírculo. Depois dos indispensáveis gracejos, fiz a primeira pergunta, um tanto indiscreta, já que desejava saber a opção de cada um na escolha do novo presidente. Com a exceção de dois, todos os demais eram Collor. Quis saber o porquê e ora um ora outro, todos deram sua explicação:
– Eu vô votá no Collor porque o Lula é pior. Sei que é tudo ladrão, mais o Collor é mais rico e vai robá menos.
– Eu voto no Lula porque ele é mais burro e vai robá menos. Depois ele diz que não vai pagá o que nóis deve lá fora e eu acho isto bom, porque se não a gente vai passá a vida pagando juro.
– É por isto que só voto em branco – disse alguém não convidado a falar. Tem tempo que não boto um ladrão lá em cima. Quarqué um que subi lá não foi impurrado por mim. Quem votô no home que xingue.
– Gostaria de saber de vocês a opinião, sem ressentimentos, sobre os políticos de nosso país. Fale você primeiro, Chapadão:
– Tenho 43 anos. Já votei em tudo que é partido e desgraça de gente. Nunca as coisa melhorou, também nem piorou, pois a gente vive dizendo que piorou, mas se piorasse mesmo, nois já tava tudo morto, porque há trinta anos que venho do mesmo jeito, trabalhando e passando necessidade. Se as coisa piorasse, eu e tudo nóis já estava defunto.
– Eu não confio mais nesta gente, é tudo ladrão igual. Eles só pensa neles. Pra nóis e o Brasil eles nem se toca. Se eles pensasse na gente eles não vivia lutando contra o salário dos trabaiadô. Nóis ganha uma micharia que pra eles não dá nem pro café da manhã e eles vive lá o ano todo discutindo se pode ou não aumenta um cruzeiro. Vocês viro onte? Um reporte disse que os políticos ganha pur meis mais de cem salário mínimo e ainda tem viage de avião de graça, despesa de comida paga, casa pra morá, impregados até pra limpá a bunda dos fio… um monte de coisa que cumo eu disse, daria uns duzentos salários dos nossos. Aí eu fico imaginando cumo é que nóis pode passá com um e eles reclamam com duzentas vezes mais. Eles ainda vive discutindo e fazendo reunião pra aumentá mais o deles.
– E – condescendi – você teria que trabalhar uns dez anos para pagar um salário mensal completo de um único deputado federal. É só fazer os cálculos.
– Nossa sorte é os amigo, principalmente aqueles que são um poquinho melhor de vida que nóis. Pode oiá os meus fios, estão todos forte e sadios. E que eles come um dia aqui, otro acolá, roba uma fruta do vizinho, ganha arguma coisa… e assim a gente vai tocando e criando eles. O que a gente não guenta mesmo é estudá eles. Aí eles fica burro que nem nóis e depois tem que entrá nas juquiras e morrê trabalhando para sustentá os mais sabido.
– Vocês acham isso justo?
– Eu não sei se é justo, mais nóis merece. Se a gente quisesse, eles não fazia isto. Burro tem que puxá carroça mesmo.
– Como assim?
– Ora, não é nóis que guenta este país? Se a gente desse a testa, eles ia vê só. Queria que nóis tudo fosse unido, que nóis brigasse contra esses robos, contra essa desgraceira que eles fais com a gente, pra vê se eles guentava. Enquanto eles são um pouquinho só, nóis é um monte: acho que dá mais de cem por um.
– Mas eles são poderosos. Veja por exemplo o que acontece com milhões de insetos quando invadem nossa casa. Logo damos conta deles com venenos e outros recursos, porque somos mais inteligentes e poderosos.
– É verdade, mais só que nóis não precisa deles e eles não ganham dinheiro sem nóis. Somos nóis que trabalha para dar o que eles tem. Oia, se nóis, mesmo de pau, infrentasse eles, um dia eles teria que arriá as calça. Não falam que nóis são a voz de Deus? Se nois são a voz de Deus, nóis está com a razão. Quem tá com Deus, tá com tudo. Acho que a gente tinha que fazê igual aqueles árabe lá de fora, que briga até morrê mais não aceita o que não qué. Pelo menos vivo eles não aceita.
– E os empresários que também vivem reclamando, mas que têm muito mais que vocês e só pagam o salário mínimo, o que pensam deles?
– É também um bando de filhadaputa. Eles reclamam, reclamam mais estão sempre com o carro do ano, bem vestido, comendo em restaurante de luxo…. eles também só pensa neles.
– Olha que posso despedi-lo por tal topete!
– O sinhô sabe que não tô falando do sinhô. Aqui a gente é bem tratado, recebe até bem, come de estufá o butoque, tem médico e dentista…. o sinhô sabe que não tô falando do sinhô.
– Ufa, pensei que estivesse! De qualquer maneira a carapuça esbarrou na orelha.
– Eu tamem quero falá, metê o pau é coisa fácil, mais fácil do mundo. Falá de quem fais as coisa errada então, nem precisa dizer. Eu penso que nóis não devemo reclamá mesmo porque nóis não tem corage de reagi e então nóis só tem que agradecê os rico que dá emprego pra nóis e o cumê também. Agora se um dia houvé uma guerra eu sou o primeiro, pois é quase mió morrê do que levá uma vida de cachorro e vê tanta gente robando e ficando por aí como se nada tivesse feito de errado.
– Sinceramente, eu acho que vocês têm razão. É claro que não é isto que o próprio Deus ensina, mas aceitar tudo passivamente é quase um pecado. Todos são unânimes em dizer que devemos, justamente, defender os nossos direitos, e pouca coisa acho mais justa do que refrear estas tantas injustiças sociais que assolam o país, deixando os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Eu penso que o país inteiro devia lutar pela educação, pois com ela a nação se desenvolve. Vou só perguntar a vocês uma coisa simples: já viram alguém formado roçando juquira, dirigindo trator ou cozinhando numa fazenda? E muito difícil, mesmo porque as opções de uma pessoa esclarecida são muitas e melhores.
– Mais arguém tem que capiná e derrubá os pau!
– Tem sim, mas não na proporção de nosso Brasil. Os países desenvolvidos também têm garis e gente que enfrenta serviços, aparentemente humilhantes, mas recebem bem, muito bem. Eu mesmo tenho um primo que entrou clandestinamente nos Estados Unidos e, lavando pratos, ficou rico. Voltou agora para o Brasil e com os dólares do “lava pratos”, comprou uma serraria. Não é o serviço em si que é humilhante, mas sim o salário que se recebe. Depois de tudo, pensar que se é possível ter um país ou um mundo todo em harmonia e felicidade é uma utopia de sonhador. No entanto, diminuir a miséria, refrear bastante as desigualdades sociais, conscientizar as pessoas de que é preciso serem mais fraternas e que deste mundo não se levará nada, isto é possível. Há países que têm conseguido isso e que, em relação ao Brasil, são um paraíso. A gente fica maravilhado ao ouvir falar de lá.
– O diabo é que todo mundo qué só pra ele.
– Isto se chama egoísmo. É a estupidez de nos acharmos imortais em termos humanos. Quando a gente morre as coisas materiais ficam aí para outros brigarem e se matarem por elas outra vez. As próprias nações, englobando um espírito coletivo de egoísmo, vivem guerreando para tomar as coisa umas das outras. Está aí, agora, já uma nova encrenca com o zunzum de que o Iraque pretende invadir o Kwait só para ficar com o petróleo deles. Não precisa disso, mas quer mais e mais, como se fosse levar alguma coisa daqui.
– Mais é assim mesmo! …
– Como assim?
– Todo bicho é assim mesmo. Se tem vida, qué tudo pra ele. Pode olha os animais, eles vive brigando e se matando pra ser o chefe e comê as coisas melho. Se a gente bota uns passarinho junto, logo um começa a batê nos outros pra não deixá que ninguém tire nada dele. Se é no pasto, os boi briga por causa da vaca e chifra sempre os mais fraco que estão no cocho de sal; os porcos no chiquero são a mesma coisa. Tudo é igual no mundo, com alguns sempre querendo o melhó e mandá nos demais. Acho até que isto não tem nada de errado e que os homens estão certo em também querê tudo pra eles. Acho que Deus fez as coisas assim mesmo e se fez, tá certo.
– Meus respeitos, filósofo Grilo, por seu ponto de vista. Nem sei bem se é a realidade, se está certo ou não, mas que o mundo é assim desde que o conhecemos, lá isto é. Penso, porém, que com a criatura humana a coisa deveria ser diferente, mesmo porque somos animais racionais, criados à imagem de Deus, seres pensantes que têm liberdade e razão para escolher a própria sorte. Enquanto um boi, instintivamente, chifra o outro pelo sal, nós não podemos matar ou machucar nosso irmão para tomar-lhe o que possui, porque Deus nos deu algo mais, o raciocínio, que é um dom divino que nos mostra o que é certo e o que é errado. O boi age pelo instinto e nós, pela razão. Cada animal irracional tenta defender-se conforme seus princípios. É certo ele defender sua subsistência e sua vida pela agressão, meios de que dispõe. Os homens não dispõem apenas da força para subsistir e viver. Somos, em suma, animais diferentes. Eu, particularmente, vou morrer sem jamais entender as razões que levam as nações a se autodestruírem por causa do poder, da riqueza e da glória. Para mim, as guerras representam o que há de mais estúpido no ser humano. Um ser inteligente não devia fazer guerra. Afinal, devia lembrar-se que não é eterno e que ao morrer não irá levar nem a muda de roupa que veste.

42
Chovia fino. Para os trabalhos pesados, o dia não prestava. Escalei alguns funcionários para que fizessem a limpeza ao redor do barraco. Já havia convencido meus empregados de que estando em qualquer lugar, deviam plantar, ainda que não viessem utilizar os frutos: alguém os utilizaria. Se todos agissem assim, certamente haveria frutas para todo mundo. Não consigo entender como, em plena Amazônia, onde quase todo proprietário de terras é um verdadeiro latifundiário, haja tão poucas árvores frutíferas plantadas. Enterrar uma semente no chão é a coisa mais simples do mundo. Como ninguém desconhece, a Natureza é exagerada nisso: oferece milhões de sementes para que apenas algumas aconteçam. Eu vivia levando frutas para o barraco e notava que os funcionários as chupavam ou as comiam e, imediatamente, jogavam as sementes fora, em lugares inóspitos. Aos poucos fui conseguindo que entendessem que se devia enterrar as sementes e cuidar delas tão logo germinassem. Nos dias em que não podíamos trabalhar na mata, ficávamos cuidando dos renovos e assim já tínhamos, ali, centenas de jaqueiras, mangueiras, goiabeiras, cajueiros, abieiros, amoreiras… além de quiabos, canas, macaxeiras, abóboras, maracujás e uma infinidade de plantas que, mais tarde, certamente, serviriam a alguém. Com apenas um ano, um verdadeiro pomar se fez. Sabia que jamais iríamos utilizar aquilo particularmente, mas mesmo assim vivia recomendando ao gerente da fazenda para que, quando saíssemos, não se descuidasse das plantas.
Como era gente demais para pouco serviço, a pedido, escalei alguns caçadores para variarmos o cardápio, já que a maioria se dizia “abusada” de tanta carne de gado. Cutuca, Tonsura e Fuinha logo se fardaram, ligaram o N 12 e saíram:
– Não vão rompê, aposto.
– O N 12 é desaforado e não vai respeitá esta laminha.
– Tonsura, você não estava com dor de cabeça?
– Tava não, tô. Vô só pra pegá a casca do feijão-brabo e cherá. Cura na hora.
Os três desapareceram na curva da estrada. A turminha escalada continuou a limpar e a podar as árvores frutíferas. Outros se “atracaram” no dominó:
– Passa duas pedra, foi de lasquinê.
– Como lasquinê se uma ponta era minha?
– Onde já se viu bater de lá e lô se uma ponta é nossa?
– Pra uma dupla de moscão como vocês tudo é possive.
– Ganhô uma na cagada e já está rastando bafo. A de carrão na otra jogada ocê num fala não.
– Foi cagada.
– Dá uma oiada no resultado: nóis tá com treis de vantagem.
– Tava, porque um cacete deste vale treis.
– Ainda vale!
O jogo ia com suas observações próprias quando um grito esquisito de socorro ecoou de uma rede do canto:
– Socorro, me acode, o Capilobo, hummm, solta peste, socorro!
Todos nós ficamos quietos e surpresos, até entendermos que o Faustão estava sonhando e tendo um pesadelo infeliz.
– Num acorda ele não, deixa sofrê – observa alguém de uma rede ao lado.
– Me acode, me acode, larga bicho, larga desgraça! …
– É covardia, acorda ele.
– Acorda não, deixa passá aperto. Ele vive contando história pra amedrontá os otro. Deixa ele vê acuma é bom.
E o pobre do Faustão debateu-se, gritou e implorou e só se livrou mesmo do Capilogo quando uma estrondosa gargalhada explodiu, sobressaltando-o:
– Vigi da Lapa, quase que o bicho me arrasta pelo mato (ele ainda estava aturdido e não sabia o que estava dizendo). Quando percebeu que todos estavam rindo, todo suado saltou da rede e reagiu:
– Seus viado, vocês num sabe que quando a gente tem pesadelo tem que sê acordado?
– Nóis sabe, sim, mais nóis queria que você se borrasse todo, pra pará de conta história de fantasma.
………………….
À tarde, os três chegam: alguns barbados, um tatu, um castanheiro e três jabutis. O Cozidão aceirou-se:
– Aposto que o Araçari só foi pra carregá os bicho.
– Não trouxe nada porque o meu jabuti ficou no barraco.
– Oia que te boto na lista, espraguejado.
– Eu chamo a raposa.
– Ela tá longe, cuidando da veia sua mãe.
Mexer naquele ponto, o Mexidão, Linguiça ou Zói-de-Jabuti-Morto não resistia: contra-atacava com tudo quanto tinha ou não direito.
– Tonsura, olha aí, o meu jabuti fugiu do chiqueiro.
– Tô fora – respondeu o Tonsura que já havia notado que a lembrança da raposa havia deixado o Cozidão de mau humor.
– Tá com medo desta lástima? Isto não faz mal nem à Naná.
– Tá esta praga me futucando com vara curta, mexendo onde não deve.
– Estou te ajudando, corno manso. Vi ela grudada que nem uma tatuage naquele negão do Chevrolet.
– É inveja sua. A muié é loca por mim. Vô me juntá mais ela.
– Pra você ela é mesmo uma princesa. E como dizem: melhor dividir o pudim do que comê polenta azeda sozinho.
– Mas, como foi a caçada mesmo? – perguntei, mais para refrear os ânimos. Eles sempre começavam brincando e acabavam brigando, principalmente se alguém não interviesse.
– Esbarramo com a onça outra veis. Nunca vi tanta onça na minha vida. E pura. Dotô Rinaldo tem que criá muito nelore pra dá conta delas.
– Nóis ia passando quando sentimo o pixél dela. Levantamo as oreia e ficamo suntando. Era carniça pura. Nóis só encontrou a moita que ela tava descansando. Ela pressentiu nóis e acunhou no mundo.
– Elas já conhecem o Tonsura! (Ele havia matado três num só dia.)
O Baixinho, lisonjeado, riu e foi saindo, como dizia, para o palacete. Muito esquisito, ele não usava o banheiro coletivo. Todos os dias, pela manhã, enchia um tambor com água e o deixava exposto ao sol para que, à noite, pudesse banhar-se em água morna natural.
O resto da turma cuidou das caças, retirou um pouco delas para o jantar, deixando o restante no freezer. Ligamos o motor, a televisão, jantamos e aos poucos a conversa foi silenciando. Desligado também o motor, apenas o ronco do Cabeção se fazia ouvir. Ele tinha um sono tão pesado que surpreendia a todos. Não havia como acordá-lo depois de vinte minutos dormindo. Um dia o Cutuca e outros, desataram a rede com ele dormindo dentro e, cuidadosamente quanto podiam, levaram-no para dentro da mata, deixando-o lá.
Somente pela madrugada, quando naturalmente acordava para urinar, deu-se conta. Aturdido, tonto, meio dormindo, começou a gritar, achando que estava perdido. Com as gargalhadas da turma ele percebeu o que haviam feito. Apanhou a rede, enrolou-a debaixo do braço e como sempre, sem irritar-se ou ofender ninguém, voltou para o barraco:
– Rapais, cumé que não acordei! …
Se estivesse roncando, não parava, não obstante quase derrubássemos as tábuas do barracão com marretadas e imprecações. Muitas noites fui obrigado a filosofar furioso por causa de insônias ocasionadas por aquele ronco infernal. Entre demiti-lo e matá-lo, muitas vezes fiquei em dúvida. Quando amanhecia, porém, a bondade dele me vencia. Era a criatura mais dócil e ingênua do barraco.

43
O ano ia passando. Fim de outubro, propriamente. Mais dois meses e já seria impossível trabalhar com os caminhões por causa das chuvas e dos atoleiros que os tratores e carregadeiras formavam na selva. Nossas máquinas pareciam mais uma cerca de arame farpado danificada do que ferramentas para enfrentar as agruras e intempéries da mata molhada. Tudo era um amontoado de fios amarrados, de peças soldadas… uma gambiarra de fazer inveja à mais relaxada eletrificação da Rocinha do Rio de Janeiro.
O IBAMA investia cada vez mais ameaçador. As indústrias menos organizadas iam fechando e desempenhando seu triste papel no desemprego e na recessão. Era difícil o dia em que não chegava alguém do setor para executar alguma ordem de devassa e levar o quinhão dos amedrontados madeireiros.
O terror entre as pessoas humildes era tanto que um dia dois amigos chegaram de longe e disseram-se fiscal do IBAMA e agente da Polícia Federal. Estavam lá para levarem o dono daquela extração para a cadeia. A Tonha e a Florisvalda esgueiraram-se pelos fundos, ganharam a mata e foram procurar-me no serviço. Estavam pálidas e trêmulas como se tivessem sido vítimas de um estupro:
– Seu Carlos, pelo amor de Deus, não vai pru barraco. Dois home que se diz da Polícia estão dizendo que viero pra prendê o sinhô e todas as máquinas.
– Não se assustem, acalmem-se. Não tem nada de errado aqui. Estamos trabalhando “legalmente”, portanto, não têm fundamento as coisas ou as ameaças deles.
– Eles estão dizendo que vai prendê todo mundo.
– O máximo que pode estar acontecendo é um grande equívoco, acalmem-se.
Quando chegamos ao barraco, logo reconhecemos dois velhos amigos que ainda não tinham perdido o humor de passar trotes nas pessoas. A Tonha e a Florisvalda não gostaram da brincadeira e me deram trabalho para que os velhos amigos não fossem enxotados a vassouradas naquela mesma tarde.
– Uns véio destes, aí, fazendo coisa de criança! Se eu tivesse buchuda perdia o fio – lembrou a Florisvalda.
A ação do IBAMA estava visível e clara: mais uma farsa brasileira para engabelar os gringos e conseguir mais empréstimos para engordar as contas bancárias de alguns falsos ecologistas.
Certa noite, fomos acordados por um Toyota que chegara às duas horas com sete esquálidos caboclos que me procuravam por ordem de um tal chefe do IBDF ou IBAMA, nem lembro direito.
– Fulano mandou a gente aqui pro sinhô incaminhá nóis lá pro projeto. Nóis veio fazê as linha e tirá os cipós.
– Sim – retruquei meio dormindo – sei que tal serviço terá de ser efetuado, mas pagamos setecentos e oitenta mil cruzeiros para tal. Segundo acordamos, não temos obrigação alguma de supervisionar, administrar ou comandar o serviço.
– Nois não sabe de nada. O home mandô a gente procurá o sinhô.
– Mas, a esta hora? Não havia outra pra chegarem aqui não? Levá-los lá agora é simplesmente impossível.
– É, mais nóis tem que ir. O home do carro aí fora qué voltá porque o filho dele tá no hospital.
– E aí, quem vai levá-los até ao projeto? Fica longe daqui.
– O home lá disse que era pra nóis falá com o sinhô que o sinhô resolvia.
– Ora, já paguei um absurdo para evitar incômodos e agora…
– E, nóis lamenta mas foi ele que mandou.
– Brincadeira!… Bem, descarreguem isto aí num canto qualquer que vou mandar fazer alguma coisa para vocês comerem. Amanhã a gente vai ver o que se pode fazer.
Naquela noite quase não dormi de raiva. Onde já se viu! Pago uma fortuna para cumprir mais uma estúpida exigência do IBAMA e acabo tendo que, praticamente, desenvolver os serviços. O pior é que fiquei sabendo que quem recebeu os 780.000,00 ficou em seu escritório com ar refrigerado, bebendo sua cervejinha e repassando a responsabilidade para os pobres caboclos que iriam receber apenas 285.000,00.
Na manhã seguinte, depois do café, arrumei água e carro e levei-os ao projeto. Durante todo aquele tempo tive que dar assistência e ainda ficar feliz, pois pelo menos, escusaram-me das escorchantes multas que vinham aplicando em nome da preservação da Natureza. O que mais me doía era a certeza de que tudo aquilo era uma farsa; doía sobremaneira saber que com o dinheiro podia-se destruir até os mais lindos santuários amazônicos. Era só pagar!
Eu vivia pedindo a Deus para que impedissem a derrubada das florestas, que se conservasse o verde da Região Tocantina, mas isto nunca acontecia. A lei estava lá, abrindo caminho para que aqueles que pagassem pudessem usufruir impiedosamente dela. E assim, também eu ia participando de um dos maiores crimes legais deste país. Nunca irei esquecer-me do dia em que o filho do Chapadão, um garoto de apenas dez anos, estava com a gente no serviço de extração. O Baiano derrubava um grosso angelim e nós estávamos à distância, dentro de uma estrada, olhando o tombo do gigante indefeso. Na hora em que o tronco começou a ranger e a copa frondosa e secular sucumbir, o garoto virou as costas e cravou os olhos no chão:
– Está com medo? – perguntei a ele. Não precisa ficar com medo não, pois estamos a mais de cem metros e nada dele virá até nós.
– Não é medo não, eu tou com pena. Parece que tou vendo vocês matá alguém.
Aquilo me doeu fundo na alma. Tentei explicar-me à minha própria consciência e à minha concepção de bom senso:
– Esta extração é legal. Os homens que olham para isto acharam por bem, ao preço de alguns milhões, liberar a destruição de tudo isto. Por causa da lei que existe, se não formos nós, serão outros. E bem certo que se entendemos alguma coisa como estúpida não devemos ser coniventes, mas neste país, filho, a gente tem que se defender com as próprias mãos. Não há lei sincera nem comando justo: tudo é uma questão de poder e de dinheiro. Um dia, você irá entender tudo isto.
O menino nem entendia nem dava ouvido mais ao que eu tentava justificar a mim mesmo. Deixei-o riscando o chão com um toco de vara e fui olhar se a árvore era sadia.

44
– Há, há… quá, quá… he, he, he… esta não!…
E as risadas explodiam em cada lembrança. Reunidos em cima de algumas toras do pátio, a turminha contava suas peripécias e ria de esquecer as horas. Cada um contava a sua e não havia ninguém que não houvesse presenciado ou mesmo sido protagonista de momentos engraçados ou embaraçosos na vida:
– Ô, tio, você se lembra do Tunico, aquele talhano lá do Interlagos?
– Tunico… Tunico… Fiorot?
– Esse mesmo. Um dia, ele contou que veio na casa dele um compadre que vivia pedindo favores. Aí ele lembrou de uns porco que tinha e teve a ideia de quebrar o galho do compadre pidão:
– Compadre, tenho aqui um negócio-da-china pra você. Tô com uns porco aí e é meio muito. Eles brigam e por isto se esquecem de comer. Vou lhe dar um pra você, à meia. Topa?
Seis sabe, na roça é muito comum entregá porco magro pra engordá à meia. Por isto o compadre do Fiorot, malandro e preguiçoso falou:
– Opa, vamo oiá o bicho!
Os dois saíram e foram pro chiqueiro. O compadre olhou o porco indicado e concordou:
– É, dá de levá. O compadre pode levá ele pra mim até lá em casa?
O Fiorot, meio a contragosto, concordou. Afinal, o compadre não estava querendo demais? Os empregados do Fiorot levaram o porco, tiraram de cima da camioneta, despediram-se e pronto: o negócio estava consumado. Era só esperar alguns meses e receber uma banda do porco bem gorda.
Algumas horas depois, eis que o Fiorot escuta alguém batendo na porta e vai ver quem era:
– Ué, compadre, você outra veis?!…
– Vim trazê sua banda de porco conforme nóis combinô.
– Quá, quá, quá… he, he, hi…
– Tenho uma melhor, aquela do criolão, que vivia roubando as galinhas do talhano. O talhanão, já véio e cheio de ódio dos preto, nem podia ver eles na frente dos olhos. Quando soube que era um crioulo que andava roubando suas galinhas, foi à loucura. Falô com o delegado, com toda gente da ordem do lugar, mas ninguém levou a coisa a sério. Chateavam:
– Os talhanos viero pra cá pra sustentá os preto sabido mesmo!
Isto deixava o italiano velho, desesperado:
– Me toca copar quel negro (Preciso matar aquele preto).
Bolou um plano, ele e sua mulher, no qual constava uma armadilha na porta do galinheiro. Botaro uma tramela forte do lado de fora e esticam duas linhas de nylon pra fechar a porta, tão logo o preto entrasse. Estando tudo pronto, ele examinou e observou:
– De questa volta lu non me escapa piú (Desta vez ele não me escapa).
Não deu outra coisa. Na primeira noite seguinte, as galinha dero o alarme. Ele correu na janela e viu que havia alguém futucando nas penosas. Acordou a mulher, panhou a piper e abeirou por baixo das laranjeiras. Um pouco mais, gritou:
– Ferme-la, vetcha, ferme-la ancuoi (Feche, minha velha, feche agora).
Ato contínuo a véia puxou a linha, a porta se fechou e a tramela desceu, trancando o ladrão lá dentro. O véio correu e passou a outra tramela de segurança, trancando o crioulo junto com as galinhas.
– Ah, bruto fiol dum can, adesso va vede (Ah, cachorro, agora você vai ver com quantos paus se faz uma canoa)!
E aí ele gritou para a véia dele ir chamá o delegado que ele ficava na porta vigiando pra o nego não saí.
Acuada pelos cachorros da vizinhança, a véia saiu ventando que nem tufão. Chegô na casa do delegado e contou o caso. Muito mal humorado, o delegado panhou seu revólver e veio acompanhando a véia. Quando chegaram lá encontraram a porta do galinheiro no chão, toda em pedaços e o véio com a cara pocada, cheia de sangue, no meio dos pedaços de pau da porta. Ainda grogue, ele explicou:
– Quel maladeto quase me copa. Mi a pensá que ei Vesúvio la arrivat. So sentist la porta batest em mi fatcha e son caiste in terra quase mort. Maladeto dum diaul dum negro. Mi sustá um bauco, ah, mi, sustá um bauco! Mi restá com la fatcha impetada in te la porta. Ah, bauco, bauco!… (Aquele maldito quase me mata. Eu até pensei que o Vesúvio estivesse entrado em erupção. Só percebi quando a porta explodiu em minha cara e eu caí por terra, quase morto. Maldito de um diabo negro. Eu fui um idiota, ah, como fui um idiota! Fui ficar com a cara colada na porta. Ah, idiota, idiota!…)
– Quá, quá, quá…
– E a do Pirotinga, voceis conhece?
– Conta, conta!
– Pirotinga é o apelido que nóis botou no Altoé, um colega de infância. Nóis fazia o diabo. Um dia nóis descobriu um jequitibá lá no alto da pedra, cheio de cipó. Escolhemo um, cortamo em baixo e fizemo um balanço, destes que o tarzã usa nos filme. A gente voava no ar mais de cem metros e ficava uns dez metros de altura. Deixa que lá longe ficava uma pirotinga, quase na direção de onde nosso cipó ia. Eu, sempre o mais doido, fui o primeiro. Mais eu não dei muito impulso, não. Fui lá e voltei numa boa. Quando vi a distância e a altura quase me deu uma vertige, mas não falei nada, não. O Altoé perguntou:
-É bom?
– Ah, é! A gente parece uma tisora planando. Na próxima veis vou dá mais impulso.
– Deixa comigo – disse o Altoé – e tomando a maior distância possível ele se pendurou no cipó e partiu como uma bala. Quando passô por nóis, eu vi que ele ia se matá mais eu não podia fazê mais nada. Ainda no meio da viage ele tentou se segurá numa foia de palmito e aí desviou a rota pro lado da pirotinga. Quando viu que ia batê ele ficou com medo e soltou as mãos para se agarrar na pirotinga. Ele foi de perna aberta e bateu com o saco em cheio, descendo pela pirotinga abaixo desmaiado. Nóis só escutou o estrondo no chão e os gemidos de agonia dele. Nóis nem foi olhá. Saímos correndo e gritando: corre, acuda, o Altoé se matou.
Papai, já com a vara na mão, respondeu:
– Que son fat, pipicol? (Que fez, menino?)
– O Altoé se matou na pirotinga.
– Maria Vérgina! (Virgem Maria!)
Passou por mim, me deu uma varada nas costas e subiu o morro. Lá, encontrou o Altoé, meio morto, meio vivo, mas ainda gemendo. Acho que foi por isto que o Altoé nunca mais feis filho. A pirotinga castrô ele.
– Quá, quá, quá….
– Deixa eu contá a minha também.
– Conta, home!
– Eu sei que muitos aqui não conhece o Gavião: era um fogoió de óio azul, nariz fino. Chamavam ele também de Masinho, mais Gavião pegô mais porque ele tinha os óios azuis e era fogoió. Ele morava numa vila chamada 51 e tinha naquele tempo um caminhão véio que vivia mais na oficina do que no trabaio. Quando chegava o sabo, o Gavião parecia que vinha de uma guerra: as unha preta de graxa, a pele toda cortada de lata véia: o home parecia um bicho. Por isso ele quase não saía pras bagunças dos domingos.
Um dia, no entanto, a turma do futebol não achou outro carro e foro lá chamá o Gavião pra levá o time lá num brocotó dos inferno. O Gavião disse que não ia nem morto, que não tinha home que tirava ele da cama, que nem a mãe fazia ele ir… mas acabou indo. Com a cara de amedrontá jacaré mergulhado, botô os home em cima e foi. Quando chegô lá, ele encostô o carro e foi pruma sombra dormi. Se dormisse uma semana inteira ainda o sono tinha saldo. Nem tinha fechado os zóios e viero chamá ele pra jogá, porque tinha faltado um. Ele abriu os zóios vermeios. Os home falaro:
– Gavião, nóis tá precisando de você pra completá o time. Tá faltando um.
Sem entender a razão ele pulou de pé e animado disse:
– Sou bom nisto, eu jogo.
– Intão vomo lá. Panhe a camisa 11.
O Gavião arranjou tudo emprestado, inclusive as chuteiras que era dois número maior que seu pé. Parecia mais botina de palhaço de circo. As meia também era de cor diferente: uma amarela, cor do time, e outra do Flamengo e rasgada. Só tinha o cano. Só não conseguiu o calção e por isto entrou com um bermudão apertado que ia até na canela. Entrou em campo. Logo de cara, mostrando que de fato “era bom na bola”, perguntou a um companheiro que tava do lado:
– Pra que lado eu furo gol?
– Pra lá – respondeu desconfiado o meia-esquerda.
O jogo começou, aliás, nem se podia dizer que tinha começado, tão rápido se deu a desgraça. Para evitá danos maiores, colocaro o Gavião na ponta esquerda, só para não quebrá a armação do time, pois ninguém duvidava da ruindade do Gavião no futebol. Mais diz um ditado que, se Deus é grande, o diabo não é pequeno. Lançaro uma bola em profundidade, lá pro lado da esquerda. Lançaro e gritaro como se tivesse combinado o grito:
– Vai, Gavião!…
O Gavião disparô de encontro à bola. Acontece que o lateral direito chegô primeiro e encheu o pé, como é costume no interior. Também é costume nos time da roça não errar o alvo e assim, o pé do lateral acertou a bola no meio, que saiu como uma bala de canhão em direção catastrófica, indo acertá em cheio, os badalo do Gavião. Ele deu um pulo e caiu teso, como se a bola fosse um tiro de escopeta. Feis silêncio de morto. Em seguida, todos acudiro:
– Que foi Gavião, a bola pegou naquele lugar?
O Gavião, sem fala, os zóios meio virado, os dentes trancados, só bufafa como um boi peiado: não conseguia falá. Arrastaro ele pra fora do campo. Ele continuava respirando fundo, sem abrir os dentes. Só as venta abria e fechava como se fosse um dragão. Depois, aos poucos foi abrindo a boca, respirando mais compassadamente e por fim se levantou.
– Está mió agora, Gavião?
Ele oiou prum lado, pra outro, viu onde tinha deixado sua roupa, se levantô e foi andando e falando ao mesmo tempo:
– Tô indo embora!
– Mais você não pode. O jogo nem começô direito!…
– Já tô indo. Quem não quisé ficá a pé, trepa na carroceria.
Veio o presidente do time:
– Não fais isto com nóis não. Tá vendo o montão de gente? Aqui é festa e nóis não pode fazê isto cum eles não.
– E melhor pará de conversá e ir subindo. Já tô indo.
– Também nóis não paga o frete.
O Gavião não respondeu. Arrumou-se, entrou no carro, ligou a chave e avisou pela última veis:
– Seis tem cinco minuto pra subi. Quem não trepá, fica.
– Dessas – disse eu – também sei uma. Não sei se conhecem o Valentim, meu primo. E um alemãozinho “gico”, nervoso e blasfemador, que hoje vive lá em Itamaraju, na Bahia. Um dia, ainda quando íamos saindo para um jogo no Córrego Alegre, lá em Linhares, no Espírito Santo, o Valentim vinha chegando da Bahia.
– Aonde estão indo? – perguntou ele enquanto esticava os membros, cansados e encolhidos pela viagem ininterrupta de várias horas.
– Jogar lá no Alegre. É festa lá e fomos escolhidos para abrilhantar a parte esportiva.
– Tô nesta – decidiu por si próprio, sem nos deixar qualquer opção.
Alguns entraram no carro dele e juntos seguimos para o vilarejo. O FAFRE, como era conhecido o nosso time, pois era formado de apenas duas famílias: Fregonas e Falquetos, tinha jogadores para o primeiro e segundo quadros e ainda sobravam reservas. Mesmo assim, por consideração, resolvemos colocar o Valentim para jogar: dez minutos no final do segundo tempo. De cara, o Valentim entra com um calção de praia, apertado e muito estampado. Mal pisou no campo, um gaiato gritou de algum lugar:
– Tira este calção-de-puta do campo! …
– Calção-de-puta é a mãe! – retrucou em riste o briguento Valentim.
Esta reação foi-lhe a completa desgraça. Não se ouvia outra coisa em cada jogada que disputava. Por sorte, faltavam apenas alguns minutos para o jogo ser encerrado. O resultado ainda estava indefinido: 1 x 1.
O zagueiro do Alegre F. C. era um grandalhão de nome Tijolo (lajota de oito furos), apelido baseado na potência de suas rebatidas. Como sempre, os times colocam os jogadores ruins na linha, pois suas falhas lá não são tão comprometedoras. E aí se deu o que bem podíamos classificar, sem exagero, de desgraça ou catástrofe. Uma bola imprensada desviou-se pelo miolo da área, mais para o Valentim do que para o Tijolo. O Valentim disparou com tudo o que tinha de perna e o Tijolo também. O Valentim chegou na bola primeiro e deu um biquinho nela, deixando a canela no alvo do bico da chuteira ressequida do Tijolo. O impacto foi danoso, estrondoso e mortal. O Valentim caiu desmaiado, também sem condições de falar. Também foi levado para fora das linhas. Mal o deitamos no chão, já se podia confundir o inchaço da canela com a panturrilha do outro lado: tornaram-se dois ressaltos uniformes. Com muito esforço nosso oferecido o improvisado atacante sentou-se, olhou para a canela e num grito tétrico de revolta, pronunciou uma blasfêmia tão violenta que, tenho certeza, se a transcrevesse aqui, certamente eu e meus leitores passaríamos alguns bons séculos no purgatório para o devido ressarcimento. Não conseguiu nem dirigir seu carro mais.
– E o Velhão, você esqueceu? Aquela vez que fomos jogar lá no Japira? Veio uma bola pelo alto e ele se armou todo para a cabeçada. Quando deu o impulso para subir, o lateral veio da ponta e quase quebrou o osso da cabeça dele. Depois que voltou a si, ele disse para o lateral:
– Oia aqui, seu viado, se você queria tanto aquela bola podia pedir que eu dava, não precisava me matar não.
E assim, histórias e piadas alegravam aquele ambiente ermo, onde apenas a fraca luz do luar deixava a gente ver o balé das folhas na brisa fresca e pura que corria.

45
Devido à recessão imposta pelo governo em sua ideia fixa de conter a inflação, e também por causa dos achaques e ameaças constantes do IBAMA, poucos continuavam ainda no serviço de madeira. Nossa frente de serviço permanecia no mato apenas enquanto aguardava a chegada do inverno. Fazia-se pouco ou nada, pois a carga tributária imposta, se paga honestamente, apresentava prejuízo a qualquer empresa. A única essência que ainda dava algum lucro era o ipê. Por ser uma espécie nobre e difícil de ser encontrada, quase ninguém a possuía e, assim, para trabalhar por trabalhar, muitos iam preferindo fechar as portas.
A cada semana ouvia-se falar: a serraria de fulano fechou. Junto com a medida, crescia o desemprego, a recessão e a fome, não só do demitido, mas também de sua mulher e filhos. Pelas ruas, os pedintes aumentavam. Não se tinha mais sossego nem em casa, pois embora demitidos, os ex-funcionários vinham pedir ajuda porque sua família estava em apuros.
Enquanto isto, o governo e os políticos de um modo geral continuavam ditando regras e normas. Acusavam o povo, mas viviam inoperantes e numa prepotência digna dos césares. Eu que havia depositado no presidente eleito toda a esperança de um novo tempo, aos poucos ia sentindo minados os meus sonhos. No começo de seu governo, o que dizia era, para mim, dogma de fé. Tanto que quando me deixou sem um centavo em dinheiro, até bati palmas. Para se ter uma diretriz, um país digno, uma Pátria da qual a gente pudesse se orgulhar, para que cada brasileiro tivesse esperanças no amanhã, valia a pena qualquer sacrifício e qualquer preço. Ninguém o apoiou mais do que eu.
Entendo que sempre devemos acreditar nos governos que começam seus mandatos, pois não é de todo impossível que, um dia, Deus nos presenteie um que seja sincero, um que se esforce para cumprir o que prometeu a tanta gente ingênua, humilde ou miserável. Todo nosso dinheiro ia em impostos e na melhoria de vida dos funcionários. O ano foi passando, passando, e a gente via as multinacionais impondo condições e o governo não cumprindo com as promessas de que reconstruiria a nação, desta vez, com o sacrifício dos ricos.
Os políticos aumentavam seus próprios honorários e passavam a maior parte do tempo lutando contra o aumento dos salários dos trabalhadores. E eu não conseguia entender como um homem, chefe de família, possuindo a mesma boca, mesmo estômago, mesmos desejos… tivesse que trabalhar sete anos para somar o salário de um deputado. Aos poucos, minha fé e esperança combaliam. Fui percebendo que tudo continuava na mentira de sempre e que as coisas continuariam como sempre foram: o governo tentando extorquir o povo, e o povo lutando para não ser totalmente extorquido.
Criação de novos impostos e aumento de alíquotas dos já vigentes; sonegação para compensar o abuso tributário; polícia, fiscais… rotina vexatória de uma África do Sul, não contra os negros, mas contra os humildes e oprimidos. Direitos humanos feridos naquilo que é mais sagrado: o direito de dividir aquilo que é de todos: a Pátria.
Diante deste panorama, eu ia perdendo a esperança e não tinha mais nem como lutar, pois, o trabalho honesto não dava para os impostos exigidos pelo governo. Na esperança de que as coisas iriam mudar, não dispensei de imediato os meus trabalhadores. Deixei-os à disposição, usando-os apenas para algum afazer de somenos importância. Eu mesmo estava a visitar o velho índio que reaparecera, lá nos confins da CIAMA, naquela tarde de 26 de novembro. Quando cheguei no meu barraco, já era noite. Desliguei o motor da camioneta e ordenei a dois funcionários para que retirassem de cima alguns mamões, canas e batatas doces que o velho índio me havia oferecido. Os funcionários entreolharam-se. A luz apagou-se e, novamente, como no ano anterior, um “parabéns para você”, desentoado e alegre se fez ouvir. Lembrei que completava mais um ano de vida, e num misto de surpresa e felicidade, deixei que terminassem. Quando as luzes acenderam, já um bolo estava sobre a mesa e todos os meus funcionários em volta. Ao lado, um bilhete das cozinheiras: “Olha, seu carlo, mim desculpa porque o bolo está muitos feio mais nóis fizemos com muito amor carinho dezejo muitos anos di vida para você.”
Tive a sensação de que meu coração se apertava e foi impossível impedir que algumas lágrimas arredias caíssem de meus olhos. Muitas vezes meus irmãos ou amigos diziam que eu iria arrepender-me por tratar do jeito que tratava os meus funcionários, mas preferia sempre acreditar que era válido tentar ser amigo e companheiro das pessoas+ que conviviam comigo. Naquela hora, a felicidade que me infundiram valia muito mais do que tudo o que eu havia feito de bom para eles. É próprio do ser humano, a inveja e a ausência de virtudes que se sublevam ante as diferenças de classes. Por observação sei que, regra geral, os ricos desprezam os mais pobres, ou simplesmente os usam para ficarem cada vez mais ricos, e que os pobres invejam ou têm ódio daqueles que lhes são superiores ou os escravizam e extorquem. Embora dito de um jeito duro, esta é a pura realidade da vida. Acho até que nem depende muito da gente, porque estas coisas são inerentes ao ser humano, quiçá como resquício do propalado pecado original, que tem na inveja e na ganância a definição mais coerente.
Abracei a todos e todos me abraçaram. Eu sentia em cada abraço o apreço que me devotavam. Embora eu controlasse e tivesse consciência disto, também apertava mais a uns do que a outros. A amizade também é qualquer coisa muito ligada à simpatia e aos dividendos da compatibilidade. Eu acreditava que podia avaliar o carinho e a amizade por meio do abraço.
Quando a noite avançou e o silêncio chegou profundamente, meus pensamentos balouçavam como a rede em movimento. O céu estava estrelado e satélites errantes passeavam pelo firmamento. Imaginei alguém numa “estrela” qualquer, divisando nosso planeta: um pontinho iluminado e insignificante perdido no espaço. Imaginei lá um filho de Deus qualquer, um filho arredio e egoísta. Imaginei e pensei em mim, e também em todos aqueles que não se lembram que estão montados num grãozinho de areia, perdido no infinito. Sobreveio-me uma angústia profunda, uma dor na alma, que os sonhos transformaram, mais tarde, na ingênua esperança de que Deus, com sua fórmula mágica de poder, pudesse transformar a ganância e o egoísmo das pessoas, em divisão e fraternidade.

46
Há oito anos (dois anos depois de nossa chegada à Imperatriz), construiu o muro em volta de nossas casas, um homem magriço e alto, aparência cafuza (chamavam-no até de Zé Caburé), trabalhador conformado. Passava os dias cantarolando, e se fosse samba, conseguia moldar o tijolo no ritmo de um bom crioulo da Mangueira. Ainda hoje, se retrocedo ao tempo, posso ouvir aquelas pancadas estridentes relembrando Ataulfo Alves: “Nunca vi fazê tanta inzigença…”
Chamava-se José, nome que hoje vive apenas nas certidões e documentos, graças à proverbial preguiça (às vezes preguiça sarcástica) do brasileiro que tudo sintetiza.
O Zé Caburé, tão logo terminou o trabalho, acertou as contas e desapareceu. Muitos anos depois, atendi umas pancadas na porta e, ao abrir, deparei-me com um trapo humano, “um decadente mendigo”. Estava em minha frente, um homem, embora de pé, exânime: um fantasma ambulante. Seco, sem a maior parte dos dentes, roupa rasgada, descalço, poucos e muito compridos cabelos, barba esquisita, sem definição. Ao perceber-me confuso, perguntou:
– Não lembra mais de mim?
– Desculpe-me, mas não lembro.
– Sou o Zé Caburé, aquele do muro…
Lembrei-me então que chamá-lo de Zé Caburé, naquele tempo, era o mesmo que escapulir um “camarão” na Escolinha do Professor Raimundo. Por alguns segundos convenci-me da crueza que a miséria impõe, corroendo o brio, o orgulho e o amor próprio das pessoas. Hoje, a fim de atrair a compaixão, ele parecia forçar o apelido vexatório.
– Você é aquele moço que levantou o muro aqui no residencial?
– Em pele e osso. Num tá reconhecendo?
Achei graça, pois de fato, estava sendo coerente e sincero.
Observei:
– Que aconteceu com você, homem?
– Quando saí daqui fui pra roça. Sabe, criá filho no mato é mais fáci. Eles num fica querendo bala, biscoito, iugurti, chiclete.., estas coisa que toda criança gosta, mas que pobre não pode dá. Eu ia inté bem, quando me muntou uma mandraca que não qué mais apiá. Fui ficando fraco, fraco, até que fiquei assim como tá vendo.
– Meu Deus!… – exclamei num sussurro quase imperceptível.
– É, mais é assim mesmo: Deus dá, o diabo tira. Tem tempo pra tudo. Ainda tô vivo e isto é muito bom. Eu vim aqui pro sinhô me fazê uma carta de pobreza pra eu vê se consigo alguma coisa pra sustentá meus bacurauzinhos.
– Caburezinhos, você está querendo dizer, não? – pilheriei sem maldade. Ele também achou graça. Voltei ao assunto:
– Uma carta?!…
– E, uma carta contando minha situação e pedindo ajuda.
Levei horas elaborando a carta, buscando palavras que pudessem tocar a sensibilidade das pessoas. À tarde, ele veio. Estava mais alegre. Entreguei-lhe tudo em envelopes, pois havia tirado fotocópias, para facilitar-lhe o trabalho. Apanhou, agradeceu e saiu.
Mais ou menos um mês depois, ele voltou. Novamente havia se transformado. O problema era, parecia, apenas miséria e fome. Aquela fisionomia abatida, a gente não mais percebia. Pude até lembrar daquele Zé que vivia cantarolando com um tijolo na mão, um fitilho amarrado nos cabelos (devia segurá-los para trás para que a cara obtivesse a cor abacinada do rosto, que vivia exposto ao sol) e que não se cansava de dizer quando lhe perguntavam como ia a vida: “Melhó estraga!”
– Deu certo, Zé?
– Como deu! Arranjei tanta coisa que pruns meis não preciso pensá mais.
– Fico feliz que tenha dado certo. Espero que com esta injeção você se recupere e volte ao trabalho para poder cuidar dignamente de seus filhos.
Ele agradeceu e saiu. Em menos de vinte dias, reapareceu, novamente com feições abatidas e já com a cópia da carta que eu devia escrever para que entregasse, desta feita, a outra classe de pessoas. Examinei e concordei. Quando veio buscar, ao entregar-lhe os envelopes, observei:
– Estou um tanto decepcionado, Zé. Sinto que gostou do dinheiro fácil e que não lhe passa mais pela cabeça o trabalho. Por isto, não me procure mais para ajuda desta natureza.
De fato, não voltou mais. Pude vê-lo, por acaso, de bicicleta, na BR 010, todo sujo do trabalho, suado e contente. Vinha pedalando e, desta feita, assoviando Amélia. Ataulfo, acredito, gostava mais assim: ao menos para livrar-se das “ingizenças” costumeiras. Ao ultrapassá-lo, buzinei e dei com a mão. Ouvi-o gritar:
– Valeu, heim, valeu! Tô numa boa, agora.

47
– Feições à Mazaropi, o homem achegou-se timidamente. Junto a ele, numa perfeita escadinha, cinco criancinhas muito, muito bonitas mesmo. Pareciam mais que irmãs: propunham clones, uns maiores, outros menores. Ele, o pai, vinha à procura de serviço:
– Que sabe fazer além de filhos – perguntei brincando.
– Sou tratorista de profissão mais inzicuto qualqué trabalho. Tou desempregado há meses e com este monte de bacurauzinhos, a coisa tá feia.
– Onde trabalhava antes de ficar desempregado?
– Num monte de lugar, mas sempre como biscate. Se o sinhor quisé, faço um teste.
Eu estava mesmo precisando de um tratorista e pedi ao gerente que o levasse para o teste. Não era dos melhores, mas a necessidade de ambos foi suficiente para que fosse empregado. Enquanto falávamos de salário, direitos e obrigações, a tarde foi caindo. Estando tudo acertado e sem que eu perguntasse, ele contou:
– Minha mãe criou oito filhos, só eu de homem. O resto é mulhé e mulhé safada, tudo puta. No meio de toda esta safadeza, eu também virei safado. Embora com este monte de filho, continuei, depois de casado, a dar em cima das outras mulhé. Por isso, lá em casa a vida virou uma desgraça. Minha mulhé e eu briga mais que cachorro e gato. Eu é que não presto porque minha mulhé vive lavando pra fora pra comprá a farinha dos filho. Agora eu vim aqui depois de rezá muito, pruquê prometi a Deus que se arranjá emprego vou deixá esta vida que não presta, que é tudo ilusão boba. As mulhé são quase tuda igual: só qué usá a gente. Nóis pensa que usamo elas, mas na verdade elas é que usa nóis, pruquê toma o dinheiro da gente e ainda desgraça a nossa vida. Agora que estou sem emprego e sem dinheiro, nem puta véia me qué mais. Então, por isto, eu resolvi levá a vida a sério. Se este emprego der certo, o senhor vai vê: chega de molecagem. Um dia, veja o sinhô como é a vida!, eu estava sem dinheiro e fui lá na Farra Véia. Encostei no balcão e fiquei olhando se pelo meno uma véia aperriada me queria sem dinheiro mesmo.. Mas tuda se achegava, me convidava pra tomar uma cerveja e sabendo da minha quebradeira, cuspiam no chão e saíam. Aí eu fui lá pro escurinho onde as mulhé se reunia. Sentei e já não agüentava mais, pruquê quando a gente tem um vício ele domina a gente. Tinha veis que eu nem tava com vontade mais parecia que tinha uma coisa me empurrando e eu tinha que ir. Veio uma mulhé e sentou. Quis tomar… nem lembro o quê!, mas eu disse que não bebia, que estava lá só porque estava muito tempo no garimpo e queria uma mulhé pra desafogar. Tava tudo escuro: ela nem sabia se eu era bonito ou não, mas mesmo assim me chamou pro quarto. Eu não tinha dinheiro mas isto eu resolvia depois.
– Ocê mora aqui?
– Moro lá na Vila Lobão.
– Ué, eu também moro lá, home!
Não demorei muito pra fazê de minha desconfiança, a verdade: eu tava no quarto com minha própria irmã. Eu descobri na frente e quis sair. Ela me segurou pelo braço:
– Onde vai, home?
– Não quero te enganar: eu não tenho dinheiro.
– Amanhã ocê me paga. Tô gostando de ocê.
– Não, pensando bem, não. Amanhã ainda não vou tê dinheiro.
– Esqueça, então: eu faço de graça. Nem amanhã precisa pagá.
– Não, eu não quero.
– Diabo, que acontece com ocê? Ficou froxo logo agora?
– Não, não é isso. Qué sabê, eu tô doente e por ter sido tão boa comigo, me doeu a consciença. Não quero fazê nenhum mal a você. Nem camisinha eu trouxe.
– Eu tenho camisinha. Quero ver agora qual a desculpa.
– Quer saber, eu não quero mais. A vontade passou.
Tava escuro e eu até que detesto escuro, mas é que antes dela acendê a luz, eu descobri que era minha irmã. Então eu dizia, sempre que ela queria acendê a lâmpida, que eu não fazia amor no claro. Era um problema que tinha de vergonha. Ela veio então e se sentou no meu colo e foi passando a mão, me alisando de um jeito que mesmo sendo minha irmã eu já não agüentava mais. Pensei até em aceitá, mas depois pensei que Deus podia me castigá se fizesse aquilo com minha irmã. Aí eu empurrei ela de lado e disse que voltaria logo mais ou então no outro dia. Ela correu pro botão e acendeu a luz e aí nóis quase morreu de vergonha. Sabe, por causa disto eu vou largá esta vida de sem-vergonha e vou cuidá de meus filhinhos e de minha mulhé.
Este homem trabalhou dois anos comigo e foi, durante um ano e meio, um funcionário muito bom, não diria, exemplar. Exemplar ele quase foi como chefe da família. Era muito compensador ouvi-lo repetir que o emprego havia lhe salvado a vida e a convivência com sua família.
Quando ele e outros mais agradeciam ou diziam que o emprego havia salvado a vida deles, eu pensava na culpa das pessoas que dirigiam os destinos do Brasil. Quanta gente se entrega à marginalidade, ao desespero, à bebida e às drogas, aos roubos e assaltos, aos crimes de toda espécie, pela falta do direito mais elementar de um ser humano: o de trabalhar. Será que é muito exigir trabalho? Que nação é esta que nega aos filhos o próprio direito de produzir? Que nação é esta que para impedir a inflação, estagna o crescimento econômico? Que nação é esta … Desculpem-me, estou confundindo nação com governantes!

48
– O pensamento é o home – começou dizendo no início de nossa palestra, o Mineiro. A gente não fais nada sem pensá. Tem veis que a gente tá num lugar sossegado, olhando o mato, escutando o vento e aí aparece alguém e começa a encher a gente com conversa. A cabeça que estava calma e fria, logo se esquenta e a gente vira outro home daquele que estava tranquilo e sossegado. Então a gente vê logo que nóis são levado pelo pensamento.
– Eu também penso do mesmo jeito – interferiu o Cozidão, sempre com seus pensamentos voltados, ora para as brigas, ora para as mulheres. Isto é tão certo que tem vez que a gente tá até pensando em coisa boa e aí aparece uns amigos e começa a falá de muíe e logo a gente já começa a querer ir pra rua. Quando a gente tá com a muié da gente, vivendo com ela há muito tempo, nem lembra de safadeza, mas se a gente vê outra logo dá vontade de convidá ela pra juquira. A ideia da gente fais o caminho.
– Até certo ponto, acho isto muito normal – condescendi. Como animais que somos, estamos sujeitos a todas estas vicissitudes. Porém, carregamos com a gente uma grande e fundamental diferença: o raciocínio. Os outros animais também lutam pelas fêmeas, brigam e até se matam pelos alimentos, porém somente em casos especiais. Eles são levados pela lei da conservação da espécie e agem, inconscientemente, em cima disto. Na presença do alimento, querem ser os primeiros; na época do cio, não se lembram que outros poderão substituí-los. Há neles uma força intrínseca, muito forte que os impele a não transferir a outrem a grande responsabilidade de manterem a espécie no mundo. O homem carrega consigo estes mesmos impulsos, mas com a diferença de poder refreá-los em nome da integridade, da sensatez e do bom senso.
– É…, os animal tem veis que são pió que nóis. Eu tenho lá nó quintal uma porção de bichos e eles vive se matando, só brigando. Eles briga mais que nóis.
– De fato, brigam, mas quase sempre impelidos por uma força que lhes foge do domínio. É como a nossa respiração. Já percebeu que a gente respira dormindo e até desmaiado? Quem criou os irracionais deixou neles esta força, pois sem ela muitas espécies já estariam extintas desta terra. Devo confessar que nunca consegui entender o porquê de Deus ter escolhido esta modalidade para povoar e manter as espécie. No meu modo de ver as coisa, imagino que Deus poderia simplesmente ter dito: o mundo viverá em harmonia, sem as fraquezas e vícios que corrompem as virtudes, com paz e felicidade.
– Escuta aqui – entrou na conversa, o Cururu – eu escutei um pastor dizer que na Bíblia está escrito que o mundo nasceu e será sempre assim e que somente o Home lá de cima sabe o porquê dele ser assim. A gente tem só que não se revoltar e aceitar tudo como é mesmo. Quanto aos home, eles sempre vão brigar pra mandar. Os home briga mais para ser o mandão, o chefe … do que pelo dinheiro.
– Eu não concordo, não, porque os políticos só vive pisando nóis e panhando o dinheiro pra eles.
– Os político mesmo serve de inxemplo: quase todos ele nasce e morre robando, tem dinheiro pra tudo quanto é lado e estão sempre querendo ficar lá, só pra mandá. Se fosse por dinheiro eles ficava os quatro ano e se mandava. Ainda tem mais, estes home que mandam sozinhos, os rei, eles fica mais de vinte ano no poder, tem riqueza pra mil vida e prefere morrê que deixá o poder. O que os home qué mesmo é mandá. Mandá é a maió força que domina os home.
– Para ser sincero – disse eu interrompendo os diversos apartes que se davam entre eles – concordo. Não há limite para a ganância de poder e riqueza do homem. Muitos são aqueles que sonham em ser senhores de todo o mundo. Vocês se lembram de Hitler? Aquele alemão maluco que imaginava se tomar senhor do mundo e que provocou a morte de milhões de pessoas, principalmente, de judeus? Este é apenas um entre os tantos exemplos que poderíamos citar de sede de poder insaciável.
– É…! – entrou o Fuinha, que jamais deixava qualquer conversa sem sua elucidação – diz que Deus quando feis o mundo, feis todas as coisas com inteligença. Os bicho, os peixe e as arves conversava e pensava também. Aí o mogno começou logo a querer ser o mió e danou a crescer, crescer. Ele foi pra cima dos morro e de lá de cima não parava de crescer e tapava o sol e a chuva das outras arves. As outras arves foram diminuindo, ficando fraca porque não batia mais sol nelas. Aí elas foro raclamá com Deus porque os mognos estava querendo tudo só pra eles. Deus escutou as reclamação e depois disse: “Pode deixá que vou dá uma lição neles.” Chamou as nuvem e os ventos e falou pra eles: “Oceis fecha o céu, trais muito barulho e corra a todo galopes por cima dos morro.” Aí as nuvem começaram a roncá e soltá logo fogo e o vento disparou por riba dos morros. Os mognos quando viro aquilo correro pra baixo, pedindo clemença. O vento quebrou eles no meio porque era muito altos e não pudero aguentá o esbarro. Por isto, ainda hoje os mogno só vive escondidinhos nas beiras dos brejos, nos lugar mais fundo e meio alagado e são bem curtinho porque tem medo que o vento volte a quebrar eles no meio.
Todo mundo entreolhou-se desconfiado. Estaria o Fuinha inventando aquela lenda por causa do assunto, ou de fato, ele tinha sempre uma história que se encaixava na conversa? Não suportando a curiosidade, o Cutuca observou:
– Você inventou esta agora, não foi, Fuinha?
– Cunversa, isto é mais véio que pé-de-serra.
– Nunca ouvi você contar.
– Nois nunca falou deste assunto.
– Você tem história pra qualquer conversa?
– Sei lá, depende de vê.
– Se nóis tivesse falando de peixe, você teria uma pra rebater?
– Bem, peixe também vive em loca e loca lembra tatu. Dos tatu tenho história ainda mió pra contá. Quando não sei uma, torço as coisa pra chegá notra.
– E como é a do tatu?
– Seis sabe que tatu, entrando no buraco, é o bicho de mais força neste mundo, num sabe? Nem guincho Caçador arranca ele se tivé meio enfiado.
Notando que a conversa desviava da finalidade da aula ou palestra, interferi, embora educadamente:
– Fuinha, se não se importa, gostaria que deixasse a história do tatu para quando houvéssemos terminado nossa troca de ideias.
– Não tem questão quando a conversa resorve – respondeu ele.
– Está aí unia resposta inteligente e que todos nós deveríamos observar como mandamento: todas as vezes que for possível resolver algum incidente, usando apenas a força das palavras, devemos fazê-lo. Para que a agressão física se apenas conversando a gente pode resolver?
– É, mais tem hora que não dá tempo de cunversá, não. Quem vai usá conversa com um burro como o Zói-de-jabuti-morto?
– A veinha vai bem? – perguntou o Cozidão, vendo-se mais uma vez acuado.
– Já tô tirando o meu carro da estrada – observou outro de um canto quase escuro.
– Gente, vamos primeiro discorrer sobre alguma coisa ou algum assunto que possa nos ajudar. Todos temos alguma coisa pra dar, vocês sabem.
– A gente pode falá tudo que tem vontade?
– Claro que pode. É para isto que estamos reunidos.
– O sinhô promete que não vai ficá zangado ou me mandá embora?
– Prometo e aqui você tem uma porção de testemunhas.
– Por que será que os patrão não divide aquilo que os empregado ajuda eles ganhá?
Aconteceram alguns risinhos e depois bastante silêncio. Embora um tanto desconcertado, quase sem pensar, respondi:
– Talvez porque os ricos de hoje, foram, em sua maioria, os pobres de ontem. Nem todos os que hoje estão bem financeiramente, nasceram assim. Muitos vieram da pobreza, do sofrimento, da necessidade, da economia dura e do trabalho.
– A maioria que fica rica é porque roba. Não tô dizendo isto do sinhô, não, porque o sinhô é até um bom patrão, nóis não pode reclamá. Mais a maioria robô e continua robando, porque qué sempre mais. Primeiro roba pra ficá rico e depois pra mandá.
– Olha, já que estamos conversando abertamente, sem ressentimentos, quero ser franco e honesto com vocês também. Entendo que muitos poderiam melhorar de vida se fossem mais econômicos, se tivessem na mente a determinação de crescer. Muitos de vocês, para não dizer todos, ficam aqui na mata durante quinze dias. Recebem em média, por quinzena, dois salários mínimos. Recebem na sexta-feira e muitos, no domingo, já estão lá em casa pedindo vale. Não compraram nada pra si. Gastaram tudo com meretrizes e com bebidas. O Tonsura mesmo, na semana que passou, gastou cento e vinte oito mil cruzeiros e o próprio relógio, numa única noite. Fatos assim desencorajam muitos patrões a pensar em partilhas. No entanto, há aqui funcionários que estão indo bem. Já têm casa própria mobiliada, não obstante seus salários sejam iguais aos dos demais.

– Um dia… he, he, he… lá na minha terra, tinha um véio cheio de filhos e netos. A véia tava runha, mas o véio ainda soltava faísca nos cabo da vela. O veio se apaixonou pela filha do colono e…
– Fuinha!…
Ele olhou pra turma:
– É…, depois se pudé, eu conto.
– Gostaria de frisar apenas um exemplo, apresentar a vocês o Arnaldo, pedindo a ele que conte a sua vida. Importa-se, Arnaldo?
– Posso até contá, mais acho que todo mundo já sabe.
– Não tem importância, pode repeti-la, por favor.
– Na verdade, o seu Carlos tem razão. Lá em casa deu tudo safado: meu pai era uma desgraça; minha mãe, uma santa, coitada; minhas irmãs, tudo puta. De home, só tinha eu.
– Ouvi home? – chasqueou o Cutuca.
– Gente, vamos deixar as brincadeiras pra depois. Continue, Arnaldo.
– Quando panhei idade, casei. Comecei a tomá conta de uma boate e vivia mais com as rapariga do que com minha muié. Ela mesma eu só usava quando não podia pegá outra. Não tinha dinheiro que bastava. Em casa era um inferno, porque eu não escondia o que fazia. Que muié pode aceitá um home assim? Meus fios, tudo pequeno, não falava, mas eu via nos zóios deles a dincepção que tinha com o pai. Pra esquecê quem eu era, comecei a bebê. Nem se eu ganhasse na loteria, o dinheiro dava. A boate logo quebrou. Fui trabaiá com o seu Miguel lá no Pindarré, mas as muié não me saía da cabeça. Home assim não trabaia. O seu Miguel me mandou logo embora. Vim pra casa e fiquei sem emprego e sem dinheiro. Vivia nervoso e então pensei em me matá. Aí eu fiz uma promessa que se arranjasse um bom emprego eu ia cuidá de minha família e largá a vida de vagabundo. Depois de uns dias, a irmã de seu Carlos me disse que ele tava precisando de um tratorista. Eu era um tratorista aprendiz, mas me apeguei a Deus e fui fazê o teste. Aí eu fiquei. Hoje, cuidando só da família eu estou numa boa. Não bebo mais, não vivo só atrais das puta. Minha muié e meus filhos… nossa, eu adoro eles! Fico pensando como a gente fais besteira e loucura neste mundo. Não consigo nem acreditá que eu fazia tanta merda.
– Chegou até a querê comê a irmã!…
– Gente, por favor, olha o nível! Não esqueçam que, embora não santas, temos aqui duas mulheres participando.
– Puras e vrigem, hi, hi, hi…
– Bem, gente, hoje vocês estão mesmo dispostos a falar de tatus, de velhos afoitos… por isto dou por encerrado o nosso bate-papo. Fuinha, conte agora, à vontade, suas histórias.
Ele aprumou-se:
– Não, é que os tatu quando estão nos buraco, ninguém ranca. Nem o Negão do Nini rancou um fiote que já tinha encravado na terra. Um dia, vinha um cavaleiro, cabra da mata que chegava da vila onde tinha ido fazê compra: farinha de puba e rapadura. Na estrada ele esbarrou com dois peba que campeava minhoca na bera da vareda. Sartô do cavalo e conseguiu pega um. O outro acunhou na moita e quietou suntando. Ele veio, apanhou um cordinha e amarrou o tatu no pé do cavalo e foi campiá o outro. Ficou por lá uns vinte minuto e quanto vortô achou seu cavalo deitado, com o pé enfiado dentro do buraco e fazendo força pra se livrá do diabo do tatu.

– Êi, desgraceira de mentira – rebateu o Cabeção, levantando-se em sinal de protesto. Todos imitaram seu gesto e entre comentários e risadas, cada um foi ocupar-se com alguma coisa. Somente o Tonsura, sempre sedento das histórias do Fuinha, ficou. Insistiu e ouviu mais a do velho que não negava fogo. Não demorou também para sair com a cabeça entre nutos e meneios, numa demonstração inequívoca de que, realmente, com o Fuinha não tinha jeito mesmo.

49
Um dia, bem cedo (eu tenho esta mania), apanhei meu equipamento de gravação e filmagem e saí pela floresta. Os objetos que eu transportava eram pesados e por isto demorei bastante para me afastar e encontrar um lugar no qual pudesse sentir o silêncio da floresta. Nada de zoadas de motores, de conversas, de mugidos vindos de fazendas próximas: só a natureza com toda sua pujança e graciosidade. Armei a choça numa sapopemba de jatobá e estendi os fios do microfone e do alto-falante a uma distância de 25 metros. Tomei um gole d’água, esfreguei o boné de pano na testa suada, dei alguns minutos de intervalo e depois comecei o meu trabalho de piar para atrair ou excitar os pássaros que estivessem pelos derredores. Ali, sozinho, naquele silêncio sacrossanto, pude ver e sentir o esmero do Criador na singeleza da brisa e nos piados esparsos que, quando em vez, algum pássaro escondido emitia. Vi o sol criando imagens engraçadas que as mãos das árvores, qual batutas de deidades, faziam dançar ao sabor dos ventos. Imaginei Deus sentado à sombra, descansando de sua reide pelo infinito de galáxias. Vi o guriatã bater as asinhas e dançar trigueiro na imitação de companheiros que vinham, viam e saíam chateados. Ouvi e vi a guaçu enciumada, chegar como se fosse uma sombra fantasmagórica e postar-se sob o alto-falante, em desafio à pretensa intrusa que invadia seu território; o chororão inocente, que relutava para encontrar a companheira que chamava, chamava, sem jamais entender o que estava acontecendo; ouvi a azulona rogada que se achegara até próximo e esperava que o visitante afoito fosse encontrá-la debaixo da copaíba; percebi o roçagar perigoso e ameaçador das tocandiras, que caminhavam, senhoras de si, pelo cipó oblongo que curvava por sobre a choça; vi o gavião de olheiras pousar sobre um galho estratégico, faminto, tentando agarrar o emissor daqueles sons tão familiares e desejados.
Senti a pujança da vida naquele cantinho verde de Deus, na tristeza da chorona e das sururinas, no piado espalhafatoso dos urus, nos gemidos metuendos dos castanheiros, no gargalhar de escárnio dos jacus, no despertar barulhento das aracuãs, na fricção de trilhos da cotia espavorida, nas digitais assustadoras das pintadas e suçuaranas, nos guinchos mirabolantes dos gorgos, macacos e saguis, nos coaxares vindos dos gravatás, nos berros tétricos dos ratões das taquaras, nos piados quase fúnebres dos pés-de-serra, no fuçar distraído e inocente dos tatus, no matraquear das araras, papagaios, jandaias e periquitos, no tenor dos corrupiões, na flauta afinada das pegas, na passagem rápida e futriqueira dos azulões, nos mil e um sons de grilos, besouros, cigarras….
Depois de ver ou pelo menos saber que toda aquela vida existia ali e que tantas outras estavam dormindo, esperando a noite para despertar e sair em busca de alimentação e também da perpetuação da espécie, eu fiquei imaginando a extensão do crime que era destruir aquele lar sagrado, apenas para conseguir dinheiro e conforto.
Senti na alma aquelas palavrinhas ingênuas, mas profundas, do filho do Chapadão, e pareceu-me vê-lo virar-se e baixar a cabeça no ruído mortal que destruía, em minutos, o que a Natureza levara séculos para construir. Não haveria outro jeito?
Será que os que cantam a Ecologia deixariam todo conforto que a madeira lhes proporciona e viveriam em palhoças, resistindo pacientemente as picadas de muriçocas, enfrentando o lusco-fusco das lamparinas, dormindo ou se deitando às dezenove horas ao embalo da cantilena de sapos e pererecas ou de esturros de pintadas e barbados?
Será que se fosse proposto a um destes fajutos e pretensos defensores do Ambiente, que se abstivessem do conforto que os objetos extraídos da Natureza lhe proporcionam, eles aceitariam? Será que estas pessoas, que usam sons e palavras tão bonitas e comoventes, sentem também no coração o que pregam e cantam? Será que se absteriam de seus iates, seus tacos de golfe, suas mansões de mogno, sucupira, ipê… madeiras nobres que são consumidas em dez por um quando trabalhadas e perfeitas? Será que os governantes abdicariam dos grandes lucros que a indústria madeireira lhes proporcionam?
Enquanto estes pensamentos me dominavam, eu ia desmontando minhas gambiarras, arrumando-as e tomando a vereda de volta. Lindas flores silvestres quando em vez eram vistas em cipós, arbustos ou mesmo nos altos paus-d’arco que desafiavam a ação dos temporais no inverno que se iniciava.
Mais um pouco e os tratores passariam por ali desmanchando e espantando os moradores, jogando no chão suas casas exuberantes e centenárias… tudo para servir ao capricho, também, de mais um pretenso defensor do ambiente.
E eu pensava, pensava. Seria eu o maior dos criminosos? Por que estava ali derrubando aquelas árvores? Estava ali destruindo tudo aquilo porque tinha um projeto aprovado pelo IBAMA. Era por meio daquele papel, que me custara dinheiro e humilhações, que agora eu tinha, por lei, o direito de desfazer o que Deus carinhosamente construiu. Em cada sombra densa eu parecia ver o Criador sentado nas folhas secas, cabisbaixo e tristonho. Ele, com todo esmero e sabedoria, tinha enchido o vale de árvores frondosas, de pássaros e animais, de insetos e de flores, mas o homem, em sua ganância insaciável, continuava relutando em reconhecer.
E aqueles olhinhos azuis do filho do Chapadão, tristemente cravados no terra, acusavam-me sem piedade, martirizando-me em cada lembrança. Aos poucos, fortificava-se, dentro de mim, o desejo de mudar de ramo, deixando em paz a Natureza e seus animais.

50
– Sô Carlo, queria uma prosa com o sinhô.
– Pode falar.
– Vamo saí dos abelhudo.
Afastamo-nos até algumas toras que haviam sido deixadas na orla do pátio, bem juntinhas ao aceiro da mata. Aquelas toras representavam o Muro das Lamentações de Jerusalém, tantas eram as angústias ali contadas. Assustado, o Cozidão passou umas olhadelas furtivas pelos derredores, e depois segredou:
– Sabe o que é, eu tô querendo me junta com a Naná.
– A Naná?
– É, a Naná mesmo. Acha ela feia?
– Não, ela é uma mulher bonita, mas sabe você o que dizem dela?
– Sei, sim, mas na minha idade, pobre e largado, poco tenho a perdê. Ocê já pensou quem sou eu? Num tô mais pra exigi nada. Agora, o que vié é lucro.
– Dizem por aí que ela está só esperando você comprar o fogão, a cama e a geladeira velha do Pernambuco. Feito isto, ela irá lhe dar um belo pontapé no traseiro. É difícil acreditar que exista gente assim no mundo, mas…
– Vai sê mais uma na lista, pode escrevê.
– A coisa é séria, Linguiça. Você luta com dificuldade e já não está em tempo de ficar dando cabeçadas deste tipo. Além do mais, você tem cinco filhos de seu casamento legal. Não seria mais sensato e honesto você comprar estas coisas para eles? Mulheres, como dizem que é a Naná, você encontra quando quiser, sem se expor a tanta humilhação.
– A desgraça e a felicidade se fais num minuto, você sabe. Eu já decidi: vou me juntá com a Naná. Bom pra mim é mesmo o que eu quero.
– Sendo assim, por que me chamou?
– É que tô avisando que vou saí do emprego e que o sinhô pode arranjá otro pro meu lugá. Sabo eu já fico no posto, na casa da Naná. Pode ir providenciando um pra ocupá a minha vaga.
– Está bem, irei convidar outro para ocupar o seu lugar, fique tranquilo.
De fato, no fim da semana, o Cozidão foi e não mais voltou. Apanhou o que chamam de “direitos”, comprou as coisas que a Naná exigia e apenas duas semanas depois, já não se sabia por aonde andava. Conforme o boato, a Naná enxotou-o como se faz a um cão e ficou mesmo com a geladeira velha do Pernambuco, a cama de casal e o fogão a gás. No lugar do Linguiça, a ladina meretriz colocou um sarará barbudinho, motorista de um velho Chevrolet. Só fui encontrá-o Cozidão onze meses depois. Arrasado, magro e desiludido, ele me pediu para voltar.
– Dei tanta cabeçada por aí, sofri que nem cachorro sem dono.., mais, fui eu que quis assim, tá bom… era o que eu queria, não era? Cheguei mendigá comida, coisa que nunca maginei na vida. Sabe, fiquei sem nada inté a ropa se acabô. Fui pro Pará, Rondônia… bati caminho que nem socadô das companhias de estrada. Peguei malária, léxi… no garimpo não me ajeitei: terra de pistoleros. Nasci mesmo pra madera, você me conhece. Lá no…
Depois de ouvi-lo desabafar, entrecortando ideias e emoções, fiquei pensando na feliz tirada de Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.”

51
Novamente nos reunimos para trocar ideias. Tanto eu como a rapaziada gostávamos destas reuniões, pois havia sempre muito a dar e a receber. Apenas ficava difícil estabelecer uma diretriz para a conversação, já que as piadinhas e gracejos sempre acabavam distorcendo o assunto em pauta. Não me importava tanto com isso, pois tudo quanto diziam era deveras importante. Entendia que embora sem a gramática, o pensamento fluía puro e dava para entender a profundidade do que lhes ia na cabeça. Não me incomodava se a frase era “nóis fumo” ou nós fomos, contanto que eu percebesse que haviam ido.
Como quase sempre acontecia, a gente iniciava a reunião após o Jornal da Globo. Por isto, o assunto quase sempre versava sobre algum absurdo que acabava de ser noticiado. Falava-se em demasia sobre a vitória de Collor, sobre a corrupção que grassava e a caça aos marajás. Fiz, aproveitando o mote, a primeira pergunta:
– Baiano, dê uma trégua ao xibéu e me fale com sinceridade: acredita que agora a coisa vai funcionar? Espera que o presidente, de fato, vai ser duro e prender os corruptos?
– Só se ele entrá na cadeia primeiro. Todos os político são ladrão e vivem na safadeza. Esta conversa de prendê ladrão é só pra ingambelá a gente. Daqui uns dia o sinhor vai ver. Eles são tudo farinha do mesmo saco.
– Mas você mesmo votou nele?
– Porque o Lula é muito pior. Além de ladrão é burro.
– Quem então você acha que deveria ser o presidente?
– Nenhum deles. Os político de hoje tão todos na robalheira. Antigamente, de veis em quando, aparecia um que prestava. O Eduardo Gomes, por exemplo, era bom. Nóis passou todo o tempo que ele mandou sem nem vê falá nesta tal de infração. A gente comprava no começo do ano pra pagá na colheta, no fim do ano, e não pagava nem um tostão de juro. Mas, Eduardo Gomes não foi… bem, deixa pra lá.
– Mas o novo presidente prometeu muitas coisas boas para os descamisados, as pessoas mais carentes e humildes.
– Esta eu respondo – goelou sem aparte, o Tonsura. Ele falou isto com sabedoria, porque nois são a maioria, somo um montão de burro que elege. Nóis devia tomá vergonha, apanhá os título de eleitor e rasgá eles na cara deles no dia das eleição.
– Você, como o Baiano e talvez como todos nós, não estaria com inveja por eles estarem numa boa? Quem sabe você está com ciúmes e doido pra estar no lugar deles?
Ele apenas sorriu, antevendo mordomias e vida fácil.
– Óia, pra consertá o Brasil, só se matá eles tudo e botá otros novo que vai ficá com medo de robá porque senão morre. Pode oiá: já há uns deis ano, os político são sempre os mesmo. Muda a merda mais as mosca continua. Se nunca fizero nada, como vão fazê agora? Oia só as fábrica do governo: estão sempre dando prejuízo. Elas não é que dão prejuízo, mais os chefão roba tudo.
– Gostaria também de dar minha opinião.
– Pois pegue a corda.
– Entendo que a razão principal é o empreguismo e a corrupção. Toda estatal emprega gente demais, gente até que nunca aparece no emprego. A finalidade dos políticos é assegurar mais um voto, voto este que poderá assegurar-lhe mais um longo mandato de mordomias e vida fácil, em detrimento da miséria do povo e do endividamento da Pátria. Com estas e tantas outras corrupções, não tem indústria estatal que dê lucros.
– E isto mesmo. Por que só a firma deles dá prejuízo? Por que todo mundo trabaia e consegue ganhá arguma coisa? Só besta trabaia no prejuízo.
– Sei que criticar é muito fácil. Respondam-me com sinceridade: que fariam para resolver os problemas mais cruciais da nação?
– Bem, primeiro quero sabê o que qué dizê esse palavrão que o sinhô sortô.
– Cruciais, aqui, quer dizer momentos difíceis, duros de serem vividos.
– Pois é, eu não fazia nada não, só deixava de fazê o que eles fais.
– Taí, cabra bom de pensamento: ocê acertô na mosca. Se dois tatu num entra no mesmo buraco, intão é só fazê o contrário do que eles fais que vai dá certo.
– É só pará de robá.
– Tô nessa – acordou o Cabeção – que raras vezes entrava na conversa.
– Tudo bem – anuí – mas sinceramente, acho que temos também muita culpa neste processo de imoralidade política.
– Do jeito que já tá num tem mais conserto. Agora a gente tem que infiá a mão também. O diabo é que a gente é burro e não sabe robá muito pra mode a gente depois prendê até quem a gente robô.
– Pessoal, vocês sabem que não é bem assim e que também nós, se tivermos a oportunidade adequada, esquecemos os bons costumes. E como sempre diz o mano: “Quero ver o homem ser honesto quando, tendo oportunidade, não rouba” Ou então: “Quero ver o bom pagador quando, não tendo dinheiro, vende o que possui para pagar a dívida.” Não saberia também dizer ou afirmar se com esta safra fraca de políticos o País vai se reerguer. Sempre disse e ainda afirmo que isso só gerará uma esperança no dia em que tomar o poder um idealista. Idealista é aquela pessoa sem vaidade, sem ganância, depreendida – aquela pessoa que acredita em coisas sublimes e que prima pelas virtudes, enfim, que realmente está certa que irá, um dia, prestar contas a Alguém de seus atos. Há dois anos, quando foi lançando o livro “Abismos”, um crítico literário observou: “O dia em que o autor falar menos de Deus, certamente seus livros serão mais bem aceitos.” O autor retrucou: “Prefiro pregar mais minha pouca fé do que o meu amontoado de dúvidas. Afinal, o pouco com Deus, sempre se disse, é muito.” De fato, Deus está esquecido e sem Ele não há esperança alguma para ninguém. Vocês que convivem comigo sabem de minhas dúvidas, de meus problemas e de minha insegurança quanto as coisas transcendentais. No entanto, preferi sempre escondê-los, pois considero injusto passar aos outros minha pouca fé.
Eles quietaram: voasse uma mariposa, ouvir-se-ia o roçagar. Sempre que se tocava no místico, eles se interessavam sobremaneira. Então, usei o momento pedindo a Deus que me ajudasse a não espalhar mais dúvidas do que, certamente, aquelas que já povoavam as cabeças deles.
– Sei que talvez não estejam preparados para entender certos enunciados a respeito da existência ou não de Deus. Nem eu tão pouco consigo entender pessoas mais cultas do que eu quando abordam o assunto. Por isto, se não entenderem, perguntem-me e façam suas observações. Tentarei ser muito simples, usar, enfim, a linguagem de vocês.
Os religiosos discutem muito querendo cada um dizer que sua religião é a verdadeira; os materialistas, que o mundo se fez por acaso e os seres vivos pela evolução. Uns atestam que Deus é Jeová, Alá… que a gente morre e tudo acaba ou que nossa alma é eterna; que a Bíblia é… ou não é o livro inspirado pelo Criador. Engalfinham-se em cima de controvérsias que ainda mais deixam as pessoas confusas. Para ser sincero, minha grande dúvida não reside na existência ou não de Deus, mas sim se Ele se preocupa com cada um de nós em particular. Digo isto porque a fé, independentemente de credos, realiza maravilhas. Que existe um Criador, não tenho dúvidas, já que não se concebe um objeto sem alguém que o tenha feito.
Muitas coisas que eram mistérios há alguns séculos, hoje a ciência explica a contento; muitas outras ainda não têm explicação, porque ainda não atingimos o raciocínio e o conhecimento necessários.
Se olhamos para o céu ajudados por um possante microscópio, mais nos certificamos da presença de uma inteligência superior. O câncer e a AIDS continuam matando. Mais adiante, isto que hoje parece impossível, será descoberto e estas doenças não passarão de mais uma humilhação que alguém nos passou para demonstrar que somos criados e devemos respeito e humildade por esta condição de criados. Vou só ler um pequeno trecho de um cientista, a respeito da formação da vida por acaso ou por Deus.
É uma coisa complicada, mas dá para se ter uma ideia entre o acaso e o criado. Vamos lá: “As instruções contidas no ADN (ou DNA) da célula, “se escritas por extenso, ocupariam mil livros de 600 páginas cada um. Cada célula é um mundo repleto de até duzentos trilhões de diminutos grupos de átomos, chamados moléculas. Nossos 46 filamentos de cromossomos, se unidos, mediriam mais de 1,80 metros. Todavia, o núcleo que os contém tem menos de um décimo-milésimo de centímetro de diâmetro. Cada uma daquelas 100 trilhões de células funciona como uma cidade murada. Usinas geram a energia da célula. Fábricas produzem proteínas, unidades vitais do comércio químico. Sistemas complexos de transporte guiam substâncias químicas específicas de um ponto ao outro da célula e mais além. Sentinelas nas barricadas controlam os mercados de exportação e importação, e monitorizam o mundo exterior em busca de sinais de perigo. Exércitos biológicos disciplinados mantêm-se em prontidão para combater invasores. Um governo genético centralizado mantém a ordem”.
Sei que tais observações, para nós, soam como um enunciado em grego ou aramaico, mas dá para entender que não existe possibilidade alguma de as coisas terem surgido por acaso. A coincidência jamais uniria átomos e moléculas apropriados, com temperatura, pressão e tempo, a fim de iniciar um processo rudimentar de vida.
É claro que Deus não criou as coisas como são hoje e que elas vão evoluindo lentamente, por expressa necessidade do desenvolvimento de nossa inteligência. No meu caso, o problema não é acreditar na existência de um Criador, mas sim em Sua preocupação com a gente. A Bíblia nos ensina que tudo quanto pedirmos a Deus, Ele nos concederá. Se não conceder é porque tal coisa irá ser prejudicial à nossa salvação. E assim nunca podemos provar nada. Parece até que a fé é Deus, pois quem acredita em alguma coisa, realiza milagres, sendo de qualquer religião. Notando que alguns já começavam a impacientar-se, senti que estava já no limite do discurso. Por isto, perguntei:
– Vocês estão me entendendo?
Um logo respondeu:
– Eu não me preocupo com nada disto, porque sei que nunca vou entender. Vou deixando a vida passar e mais tarde, querendo ou não, vou ficar sabendo se estas coisas existe ou não. Se até hoje não conseguiro explicar estas coisa é porque não precisamo delas pra se salvá, senão os que viero antes da gente estaria tudo no inferno. Eu acho que isto só serve pra deixá a gente doido do juízo. Pra mim Deus existe, e eu se andar direito e não torto, posso ganhá o céu. Se não existir nada, fico no mesmo; se existir e Ele for ruim comigo, nada posso fazê também. Intão, pra que vou ficá esquentando a cabeça? Eu vivo os dias do jeito que eles vem e pronto.
– Tá certo, home.
– E isto mesmo.
– Isto é que é papo certo.
Depois destes pareceres, entendi que filosofia é para filósofo e que Deus é para quem Ele quer. São Paulo, certamente, não estava errado. Perguntei a seguir o que esperavam da vida para serem felizes. O Chapadão, driblando a timidez, começou gaguejando:
– Olha, quanto a este negócio de religião e Deus eu acho até simples. Eu nunca tive problema, porque eu olho estas coisa assim: nóis somo diferente dos outros bicho; nóis pensa e os outros bicho não. Os bicho fais aquilo que Deus manda: o tatu fuça a terra atrais de milanga; a cotia enterra semente pra depois; a anta campeia as tatajuba; os passarinho voa de pau em pau, pra comê e pra enfeitá o mundo. Nóis não, nóis pensa e fais aquilo que nóis qué. Se é assim é porque tem que ser assim, porque nóis também somo bicho.
– Somos um bicho diferente, com inteligência capaz de escolher o próprio caminho. Para isto somos livres.
– E isto aí, nois pode escolhê nosso caminho e foi Deus que quis assim. Os outros bicho não, eles tem que fazê o que foi mandado. Se nóis pode fazê o que nóis qué, é porque Deus deixa. Se Ele deixa é porque tá certo. Por isto eu acho errado algumas pessoa querê que a gente seja igual a eles, querê que a gente acredite nas coisa que elas acredita. Se nóis tem que fazê só o que os outros manda, então a gente não é gente, é bicho.
– Muito bem, Chapadão. Para ser sincero, nunca havia pensado direito sobre este detalhe. Agora, gostaria de saber de você mesmo, o que gostaria que o governo fizesse para que se sentisse inteiramente feliz em ser brasileiro.
– Esta pergunta eu acho mais faci responder. É que eu penso diferente das pessoa que quer o mundo todo pra elas. Eu sei que vou morrê e que não vou podê levá nada, por isto eu queria apenas consegui um emprego bom e que o dinheiro que eu ganhasse com ele desse pra eu comê, bebê umas cervejinhas, me vesti e tê uma palhocinha pra morá. Não queria mais nada que isso.
Um emprego digno! Tão pouco seria necessário para a felicidade do Chapadão e, por certo, de tantos brasileiros. Por que, meu Deus, tem que ser assim neste País? Por que uns têm tanto e outros, quase nada? Será que um dia, os que possuem em demasia se farão também esta pergunta? Será que não há um lugarzinho no peito dos detentores de grandes riquezas que doa quando veem seus irmãos definhando na miséria e no sofrimento? Será?

52 
Desligava- se o motor. Todos os trinados e ruídos do dia davam lugar ao silêncio tumular da noite, entrecortado apenas pelo roçagar de algum inseto que caminhava por entre as folhas de babaçu que cobriam nosso barraco. Fora isto, apenas o ranger de alguns armadores e o ressonar de alguém que já iniciava o sono reparador. Sempre, nestes momentos, eu puxava o gravador para perto de mim e colocava uma fita bem romântica para tocar, enquanto a luz tênue da lua dava o toque final de singeleza e poesia. Com tanto embalo, somado ao cansaço do dia, os funcionários logo dormiam.
Nessa hora meus pensamentos voavam, corriam, chispavam entre os astros numa angústia aparentemente sem explicação. Tudo aquilo era pouco, era nada diante da insegurança que entrava sem piedade dentro de meu coração. Não havia, naquele momento, nada que justificasse minha presença ali naquele ermo hostil. A música triste continuava transportando-me num carrossel de angústias, por entre penhascos e abismos contíguos. Não havia onde esconder-me, agarrar-me ou pisar. Fechava os olhos na vã tentativa de driblar a insônia. Desistia. Abria-os e tentava pensar em alguma coisa que valesse a pena, mas somente uma dor tonitruante, inexplicável, achegava- se impiedosamente. De tão forte, doía no peito.
Os insetos continuavam seu rumor de pequenos estalos nas folhas ressequidas. Eu pensava: amanhã será um novo dia. Levantarei bem cedo, distribuirei as funções, escreverei alguma coisa, lerei ao menos uma página de um bom livro… Almoço, café, banho, janta, televisão, bate-papos… uma repetição interminável. Droga! Só espero que amanhã o cansaço me domine, afugente esta angústia e me faça dormir e esquecer a grande responsabilidade de querer entender e explicar tudo.
Sinto-me um milagre de Deus. Se não estou enganado, sou mais importante que todo este universo, porque tudo isto um dia findará, mas eu não. Em mim se passou um dos maiores milagres do universo: o de ter vindo do nada para nunca mais acabar. Sou um Deus, pequenino, criado por um Deus maior, mas sou um Deus, no milagre do Criador.
Penso em tudo isto, mas a angústia não me deixa dormir. Alguma coisa estranha está acontecendo. Acho que é a dor da insegurança, o desestímulo de estar perdido sem saber a direção a tomar para encontrar a saída. Cada passo é um esforço sobre-humano, porque se fundamenta na indecisão. Se ao menos eu visse, ainda que a milhares de quilômetros, uma luz indicadora, não me importaria de morrer a caminho.
Por que estou aqui no meio desta floresta silenciosa e hostil? Por que não encontro sossego para dormir e descansar? Ah, as mãos calejadas de minha mãe! Elas nunca falhavam, fosse qual fosse a doença. Agora, tudo é pouco: nada me satisfaz. O tempo é pouco, as obras são pequenas, os pensamentos medíocres… Droga, minha cabeça não está preparada para ordenar tanta ansiedade!
A lua agora se apresenta plenamente sobre o dossel da floresta. Está límpida. Vejo traços visíveis de “São Jorge” montado em seu cavalo, esmagando o dragão. Lá no alto, tão longe, voando feito um bólido por um espaço infinito. Também ela, parece-me, não sabe onde chegar. Quanta coisa há pelo universo para quem o criou reparar! Terá Ele tempo de se preocupar comigo, angustiado, aqui debaixo destas folhas de babaçu?
Fora meus pensamentos, tudo ia bem. Uns roncavam, outros limpavam a garganta, ajeitavam o cobertor e logo quietavam em sono profundo. Um rato faminto roía qualquer amêndoa caída que encontrara por detrás do aparelho de televisão. Aragens esparsas valsavam entre as folhas e depois vinham acariciar o meu rosto: pareciam as mãos de minha mãe. Quando pequeno e doente, vivendo num lugar sem recursos, ela passava suas mãos calejadas e milagrosas no meu rosto. Eu lembro que tinha plena confiança que nada de mau iria me acontecer enquanto ela estivesse ali, passando aquelas mãos abençoadas no meu rosto febril. E meus pensamentos remexiam os recônditos misteriosos de meu passado, desenterrando ilusões e fracassos e não me deixando dormir. Eu pensava: tantos anos sem fazer nada de bom, sem compreender o verdadeiro sentido da vida. Trabalho, planos… juntar, querer mais, sempre mais…
E foi então que me dei um tempo, que meu corpo se aquietou e imóvel pude sentir a aproximação daquelas mãos cheias de alquimia de minha querida velhinha: “Já viu quanta gente trabalha, economiza e junta para comprar um carro, uma casa, um pedaço de terra? Pois é, as coisas que tem nesta terra são para todos. Tem tempo que as pessoas passam juntando, juntando e, se perguntados, nem sabem para quê. De fato, de nada adianta juntar, porque, com a morte, tudo fica aí. Mas quase ninguém se dá conta disto e junta, junta. Juntar é uma grande idiotice das pessoas.”
E naquela angústia terrível, meus olhos cada vez mais cediam ao cansaço. Da consciência ao sono profundo, eu ia vivendo uma modorra de visagens estranhas. Sempre que um vento mais forte passava, eu relembrava as mãos de minha mãe, quando ainda eu era criança.

Mal o dia amanheceu, chegou em nosso barraco um carro: “Sua mãe está muito mal. Aquela erisipela complicou e ela, ela está muito mal. Vim buscá-lo”.

53 
Encontrei o quarto cheio de amigos e parentes. Minha mãe estava ofegante, porém, ainda muito lúcida. Acheguei-me:
– Ô mãe!… Que está acontecendo?
Ela abriu os olhos já um tanto apagados:
– Não sei, filho, não sei. Me dói o corpo inteiro. Acho que chegou a minha vez.
– Não fale assim, por favor!
Ela tornou a fechar os olhos e sua respiração estava muito difícil.
O médico que havia sido chamado chegou. Examinou-a e nos chamou para o corredor:
– A coisa é muito séria, muito séria mesmo.
Entreolhamo-nos pesarosos. Nos rostos impassíveis, gotas de lágrimas começaram a surgir. O médico explicou como pode o problema. Pedi licença e liguei para o mano, que também é médico e mora no Espírito Santo. Ele foi categórico:
– Se realmente este for o quadro, ela poderá morrer de agora a três dias, no máximo.
– Nada a fazer?
– Rezar – respondeu ele gaguejando de emoção.
Voltamos para o quarto. A crise parecia diminuir. Aos poucos, ela dormiu.
As mãos começaram a ficar arroxeadas: era indício da proximidade do fim. Mas não houve uma evolução rápida. O quadro parecia estabilizar-se. Então, com o passar do tempo, talvez para quebrar aquele silêncio constrangedor, começamos a falar sobre negócios. Cada um, timidamente, dava sua opinião sobre como encontrar uma saída para a inflação, recessão e suas sequelas. Depois de conversarmos bastante, eu, que segurava as mãos de minha mãe entre as minhas, soltei uma delas e lhe acariciei as rugas que o tempo e o sofrimento haviam acentuado. Perguntei:
– Mãe, que acha de tudo isto? Devemos investir na indústria ou na fazenda?
Era mais uma tentativa para desfazer aquela situação constrangedora do que propriamente preocupação. Poucos neste mundo não pagam o preço da alegria e do prazer de ter tido mãe, na hora do último adeus.
Ela entreabriu os olhos já lânguidos, correu-os mansamente pelo quarto e, mais balbuciando que dizendo, ciciou:
– Tragam-me um pouco d’água.
Um pouco d’água! Sim, ela disse: um pouco d’água. Fizemos silêncio.
Nele pude concluir o que aquela última lição queria ensinar. Naquele “um pouco d’água” eu pude ouvir a mensagem final do ser humano que mais me quis bem neste mundo. Era como se ela estivesse ao pé da cama, há alguns anos atrás, passando as mãos calejadas em nossos rostos e dizendo:
“Sim, filhos, vocês estão entendendo o que quis dizer, porque eu daria o universo inteiro, se o possuísse, para ficar um pouco mais com vocês. Eu daria as estrelas, o céu azul, a terra com suas fazendas, com seu gado, suas indústrias, seu ouro e todo poder que há, por este pouco d’água e mais algum tempo. Entendam isto agora, filhos: só há uma riqueza neste mundo: a saúde; só uma esperança nesta hora: a misericórdia de Deus. Nem vocês, que são meus filhos, posso levar comigo. Nem a roupa que visto me acompanhará nesta caminhada. Por isto, filhos, usem o dia e descansem a noite; divirtam-se nos feriados e busquem Deus nas horas do Senhor. Agora eu entendo melhor todas estas coisas. Sinto o mundo afastar-se, virar-me o rosto e apenas a esperança assiste ao meu fim. Nada há mais valioso, neste momento, que um pouco d’água. Não o trocaria por uma tonelada de ouro, nem por todo diamante do mundo. Minha garganta está seca, meu coração cansado, o ar me falta. A água que jorra de toda nascente que Deus deixou em profusão para todos é agora a maior riqueza que posso desejar. Não esqueçam disto, filhos. Não percam o tempo com correrias e ofegos, não busquem além do necessário.”
No outro dia, dia 23 de abril, dois dias antes do aniversário da morte de meu pai, ela foi respirando menos e menos, até silenciar plenamente. Sua fisionomia era serena, parecia que dormia. Então eu senti que Aquele em quem ela confiou a vida toda sem jamais esmorecer, estava ali, pertinho dela, estendendo a mão para a longa caminhada.

54
Finalmente a Marinalva cansou- se de esperar. Deixou o filho com a mãe e foi se juntar com outro. O Tonsura que, durante o tempo vivido com a Marinalva já tivera dois filhos com prostitutas, agora já se preparava para deixar também a Francisca definitivamente, para se juntar com uma outra mãe solteira que já tinha um filho com seis anos de idade. Ao todo, o Tonsura já se responsabilizava pela criação de quatro crianças. Todos os sábados as mães chegavam para apanhar a mesada de um mil e quinhentos cruzeiros que era para ajudar na comida dos meninos. E ele, como um burro incansável, trabalhava de sol a sol, sempre contente. Assim era a vida.
Dois meses depois, aquilo que se passava na cabeça do Tonsura veio a se concretizar: largou mesmo a única mulher com quem casara no civil e no religioso e apanhou uma outra. Veio a mim:
– Eu quiria que ocê me arranjasse uma rama pra mode eu comprar umas coisa e alugá uma casa.
– E a sua casinha, a sua mulher e o seu filho?
– Larguei de mão.
– Mas com ela você casou mesmo, não foi de brincadeira.
– Que tem o papel? Eu não vou vivê com uma muié que pode me impestiá.
– Que história é esta?
– Ela tá de péla-péla que não cura.
– Hanseníase?
– Acho que é isto mesmo.
– Por isto vai deixá-la?
– E pricisa de mais motivo?
Sem saber o que argumentar a um “bicho” que se introduzira numa sociedade regulamentada, fui ao ponto que lhe interessava.
– Vamos ver sua conta … ah, ah, um… , é, sua conta está em dia. De quanto mesmo você pensa precisar para um novo casamento?
– Setenta mil cruzeiros.
– É muito!
– E aí?
– Fica sem fazer mais uma besteira.
– Não, nóis vai casá. Eu gosto dela.
– Você, por acaso, sabe mesmo o que é amar alguém?
– Ora, a gente bate os zóios, tudo mexe na gente, então a gente se gosta.
– E se um dia vocês se olharem e não mexer mais nada?
– Aí a gente se larga pruquê o amor acabou.
– Então você acha que quando aquilo que chama amor acaba, pode-se deixar a mulher e até os filhos e procurar outra?
– Mais é claro!
– E os filhos?
– Se elas não quisé criá eu crio; se elas quisé criá eu deixo pra elas.
Pensei novamente em buscar fundamento na moral, nas leis e na justiça, mas preferi o silêncio. Aliás, invejei o desconhecimento destas normas que o eximia de qualquer culpa, quiçá até perante Deus. Voltamos ao assunto:
– Intão você me dá baixa na carteira – disse ele.
– Vai deixar o serviço?
– Não, vou só panhá meus direito e casá otra veis.
E assim foi feito. Com os 203.000,00 de seus direitos ele arrumou a casa e carregou sua nova mulher para lá.

55
Lá em Marilândia, meu lindo torrão natal, quando criança, sempre ouvia dizer que “araruta tem seu dia de mingau”. E foi assim que o Tonsura, arredio, aparentemente insensível, uma folha seca que jamais reclamou com a direção dos ventos, começou a se modificar. As caçadas já eram raras, a vaidade sempre mais, a conversa diferente: falava até em aprender a ler e a escrever. Todas as tardes, depois que chegava do serviço, a sua mais recente conquista, a Dos Anjos, ficava com ele no colo, espremendo espinhas, alisando-lhe os cabelos. Mesmo a um bicho, isto satisfaz.
Um dia, quando passava por perto de seu barraco, ouvi um tanto truncada, uma discussão mais ou menos assim:
– Oia, não se fais de abestada, não. Eu vi ocê alongando conversa com aquele pião.
– Ó, amô, tu sabe que gosto só de ocê.
– E este moleque que não é meu?
– Isto foi antes de ti conhecê. Tá interrado como defunto.
– Sei não! E mió ocê ficá no seu canto e cuidá do interesse. Taí a criança suja… tem muita coisa a fazê mió que fica de arrudeio com pião.
Para não ser inconveniente, fui passando ao largo, verificando as mudas de diversas fruteiras que havia plantado. Eles, por certo, nem me perceberam, mas concluí que, pela primeira vez, o Baixinho estava com ciúmes, realmente apaixonado.
Mais alguns meses e a Dos Anjos ficou grávida. Era o quinto filho do Tonsura, mas ele nem se importava. “Muié é pra criá mesmo”. Para ele, bastava-lhe os braços, as pernas e a saúde.
– Tonsura, dê um pulinho até aqui. Preciso falar-lhe.
Ele veio cabisbaixo (era costume) e ainda olhando para o chão, falou:
– Pode falá, tô escutando.
– A Dos Anjos está esperando um filho seu, não está?
– Tá, sim.
– Mais um. É o quinto que tem, contando o que a Dos Anjos trouxe.
– É, mais eu dô conta.
– E se acontecer alguma coisa: ficar doente, ser despedido, sei lá?
– Otro cria. Estes bichinhos vive até com macaxera crua. Num é que nem os fio de madama que só come troço bom, não. Isto é que nem fiote de nambua, já nasce comendo sozinho.
– Sabe, estou preocupado. Você já tem uma porção de filhos. Algumas mães já estão entregando a você a responsabilidade de criá-los…
– Já mandam eles tudo. Tá tudo com a Dos Anjos. Ela é uma muié e tanto.
Logo que o Tonsura foi para o trabalho, fui visitar a Dos Anjos. Era uma criatura singular em termos de compreensão e afeto. Com seus quase trinta anos, com toda experiência de uma vida sofrida, ela já não encontrava qualquer problema que a paciência e a boa vontade não pudessem resolver.
– Dos Anjos, posso conversar um pouco com você?
Ela olhou pela porta como a certificar-se que o seu amásio não a estava observando. Percebi e acalmei:
– Não se preocupe, o Baixinho não tem ciúmes de mim.
– Tem inté de pião!
– Ele sabe que, como peão ou patrão, eu jamais me envolveria com qualquer mulher compromissada.
– Pois pode intrá.
Sentei-me, passei a mão na cabeça de uma das crianças retirando um carrapicho que se havia enroscado nos cabelos encaracolados. Depois, bem de mansinho, argui:
– Dos Anjos, que pensa do futuro, ao lado do Tonsura com esta porção de filhos e mais um que está esperando?
– Que tem isto?
– Meu Deus!, que tem isto? Não acha que vai ser impossível carregar uma cruz com este peso?
– É nada, a gente dá conta. O Tonsura é trabaiadô. É brabo que nem cobra agoniada, mas eu sei cumo amansá ele. E só alisá os cabelo dele e se tivé muito inzambuado mesmo, então eu levo ele pra rede e fica tudo resolvido.
– Mas, e o futuro? Como vai educar estas crianças todas?
– Pra quê educá, levá pra escola, fazê delas dotô? Eles vão morrer mesmo, igual a todo mundo! Os dotô também morre, apesar do estudo. Eu penso que não é só os home impacotado que são feliz não, porque eu sou feliz e nem sei assiná o nome.
– Você é feliz? Com esta palhoça, esta porção de crianças, vivendo neste país incerto e inseguro, sem o mínimo de respeito pela justiça social?
– É que eu não penso no amanhã, não. Acho que nóis pobre não pensa no que tá pra chegá, não. Isto é por conta de Deus. Por isto nóis pega o dinheiro, quando tem, fais tudo o que pode fazer. Depois a gente espera. Eu penso que tem muita gente que passa vontade de fazê as coisa podendo fazê elas. Se é pra ficá sem fazê o que se gosta quando se pode eu prefiro fica sem, quando não tem jeito mesmo.
– Então a pobreza, estas crianças… enfim, o futuro não significa preocupação para você?
– Não, não qué dizê nada. Acho que é por isto que nóis canta e vive até feliz, mais feliz que muita gente rica. A gente só não fais o que qué quando não tem jeito mesmo.
– É…., estamos em mundos diferentes! Não quero discutir tais opiniões, mesmo porque prego que cada um tem a sua verdade. Está bem, vá em frente. Se é assim, só me resta torcer por vocês dois e pedir a Deus que os considere no rol das aves do céu.
– Preocupa não. É que ocê vive em outro mundo, diferente do nosso. Ocê foi criado de um jeito diferente e por isto é difícil entender nóis. Vai ver, vai dar tudo certo. Se não der, também não tem importância: ele arruma otra e eu otro e pronto: a gente vai levando. Mais por enquanto nóis vive muito bem.
Voltei para o meu barraco com a mão enclavinhada no queixo, tentado desenterrar de algum ponto de meu cérebro a razão para entender o que era a vida e a própria felicidade.

F I M

Obs.: Em julho de 2004 visitei o Tonsura. Ele ainda estava morando na Vila-Alvorada, município de Uruará – PA. Continuava com a Dos Anjos. Já demonstrava cansaço, mas possuia uma peuena área de terras, casa e filhos bem nutridos, todos estudando. A “tonsura” (aquele espaço redondinho que os padres usavam no cocuruto como identificação sacerdotal, e que lhe granjeou a alcunha) desapareceu: os cabelos em volta, também caíram. Possuia bens e continuava “senhor das florestas”. A sanha por caçadas havia diminuído, mas quando tinha vontade de saborear um tatu peba, uma paca, veado ou porcão… ou mesmo uma pirapitinga, não levava mais que meio-dia para realizar seu intento. Aprendeu e sabe quase tudo sobre os animais e as matas. Como seu trabalho era inspecionar os trinta mil alqueires de florestas da Madeireira São Marcos, ele o fazia passando dias e, às vezes, até semanas sumido. Entrava com uma espingarda, um facão na cintura, alguns cartuchos, um pacotinho de sal, um de farinha, uma lanterna, uma caixa de fósforo, uma redinha garimpeiro… e só. Tempo depois ele reaparecia, normalmente como se estivesse levantando de sua cama preferida. Não demonstrava cansaço nem escoriações. Continuava… UM BICHO, como bem o definiu o Dr. Aristeu. Hoje, 16 de março de 2018, quando estou atualizando minha página na Internet, soube que ele e a família estão morando no Bairro Vila Lobão, na cidade de Imperatriz – MA. ainda com a dos Anjos e alguns filhos.

Devido a invasão das terras da firma em que trabalhava (ver o livro SIMBA), ele, tentando salvaguardar os bens dos patrões, acabou perdendo tudo o que possuía. Hoje trabalha como vigia noturno de firmas em Imperatriz.

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