SIMBA
Apresentação
Desnecessária a alguns, essencial a muitos, a apresentação sempre se faz presente, seja num simples opúsculo, seja num consagrado best-seller. Ela é a leitura dinâmica da obra, o cartão de visita, a manchete, a bula do produto que se está oferecendo. E é por meio desta “manchete” que o leitor ficará curioso, ou não, para ler o desfecho da história.
Quando imaginei escrever mais um romance, a grande dúvida pairou entre o real e a ficção. Nesse impasse, resolvi pinçar, como roteiro, fatos e lugares conhecidos e, como imaginário, personalidades fortes que caracterizassem o que anda acontecendo na Amazônia.
Os personagens são empregadores e empregados, latifundiários e invasores, todos com grau mínimo de instrução. Daí a linguagem usada por eles nos frequentes diálogos, constantemente desrespeitando as normas de nosso idioma.
O livro original foi escrito obedecendo, quando necessário, às antigas regras gramaticais, mesmo porque, a tentativa de mudar o velho hábito, bem podia incorrer em danos maiores. Atendendo o prazo para adaptação estou, agora, revisando e adaptando-o à nova ortografia.
A personalidade do protagonista principal, Simba, foi extraída de um homem trabalhador, ganancioso e determinado, que elegeu o poder e a riqueza como objetivo principal de sua vida, em detrimento dos sábios ensinamentos cristãos ministrados por sua mãe. Lutou e sofreu honestamente para conseguir seu intento e foi sanguinário para não o perder. No fim, mais uma comprovação de que o crime não compensa, que a riqueza constitui um grande perigo para a paz e a salvação das pessoas e que sempre é tempo para recomeçar.
A história, no que se refere aos acontecimentos narrados, nada tem de real, embora o real, ao longo da Transamazônica, tenha exatamente as feições do fictício aqui narrado.
Qualquer similaridade com o protagonista, ou coadjuvantes citados no livro, advém da realidade que, ainda hoje, campeia na Amazônia. Mortes acontecem diariamente por lá, todas hasteadas na ganância de alguns e na incitação de outros, manipulados por organizações escusas, quase sempre transvestidas de boas intenções. Ora em nome da proteção ambiental, ora dos valores morais, ora dos ensinamentos religiosos, as maiores atrocidades acontecem na Amazônia. É muito fácil incitar, ou iludir um homem pobre e sem capacidade para medir a consequência de seus atos.
Na verdade, outros Simbas aparecerão ao longo da Transamazônica, atraídos pela facilidade que se tem de usufruir as riquezas naturais da maior reserva de floresta equatorial do mundo. Infelizmente, apenas quando as matas estiverem substituídas por pastarias; quando os galos cantarem no lugar dos inhambus e os latidos de cães substituírem os esturros das onças, aí sim, as forjadas ONGS responsáveis pela preservação do ambiente montarão, interesseiramente, esquemas milionários para tentar defender os juquirões. Assim sempre foi e assim sempre será, porque feliz ou infelizmente, somos descendentes da escória portuguesa, filhos do Brasil. O autor
I
Oito de dezembro de 1991.
Naquele domingo, quando o velho e surrado Fiat estacionou sob uma laranjeira sem frutos, ao lado de uma tapera toda escorada com forquilhas carcomidas pelos cupins, já os trovões iniciavam, pelo lado leste, o desfile a passos resolutos sobre a Floresta Amazônica, de aparência indestrutível.
Mal retiramos os alforjes com seus bornais compactados de roupas e alimentos, e pisamos na pequena sala de chão batido, já a ventania, vanguardeira do temporal que se avizinhava, chegou ameaçadora. Grossos pingos começaram a cair sobre as folhas de babaçu que serviam de telhado àquela arruinada habitação, acordando os ratos que dormitavam cansados das estripulias da noite anterior. Apesar de ter visto alguns mudando de lugar por causa das goteiras, não imaginei, até então, que eles eram os verdadeiros moradores daquela tulha.
Em apenas alguns minutos, o vento cessou, a chuva caiu forte e o batalhão de choque das vanguardeiras nuvens carregadas passou, levando, aos poucos moradores da região, a previsão de mais um inverno rigoroso.
Uma amazônida, aparentando 80 anos, alquebrada pelo tempo, e seu neto de mais ou menos 20 anos, vieram nos receber. Ela, muito raquítica, talvez 40 quilos, tez e cabelos típicos de seus ancestrais silvícolas, apresentou-se com ares de extrema preocupação, porque, pela vivência, percebeu que teria de alimentar mais três bocas e pouco tinha a oferecer. O neto, moreno de cabelo encarapinhado, vestindo uma bermuda jeans esgarçada, apenas desperto pela nossa chegada, também não se mostrou satisfeito com a inoportuna surpresa. Conheciam apenas nosso acompanhante Gonçalo que, certamente, já havia levado dezenas de convidados para vender aquela área devoluta de que se dizia ocupante legal.
Percebendo que todo mal-estar se prendia à miséria que os cercava, fui logo retirando de algumas caixas, arroz, pão, café, açúcar, latas de alimentos em conserva…, deixando ao lado da parede de estuque da cozinha. Senti-os aliviados. A senhora Alzenira, mesmo claudicando, retirou o açúcar e o café e começou a assoprar o braseiro escondido sob espessa camada de cinzas, indicando que, nesse dia, o fogo ainda não fora aceso.
Enquanto aguardávamos o café, saímos para o terreiro. Alguns filetes do toró que passara ainda escorriam por valetas criadas pelo declive do terreno, descendo pela íngreme encosta que terminava no verde escuro do baixadão florestal. Simba e eu que, pela primeira vez pisávamos solo verdadeiramente amazônico, tornamo-nos incansáveis nas perguntas ao cicerone Gonçalo: um grileiro vindo da Bolívia ainda criança e que nunca desistira de sobreviver à custa das riquezas, aparentemente perenes, da Floresta Amazônica.
Simba, meu amigo com grandes sonhos de enriquecimento e poder, deixava transparecer no semblante, a ansiedade de se tornar um grande empresário, talvez o mais poderoso dos pioneiros sobreviventes da imensa Hileia.
Lá embaixo, a perder de vista, percebia-se a curvatura da terra, como se estivéssemos numa praia olhando o oceano através de um mirante. Só que, no lugar do azul-esverdeado das águas, víamos o verde-escuro das matas. Simba fitava a imensidão com as pálpebras semicerradas, procurando calibrar o alcance de seu olhar para o que seria seu. Se possível, ele construiria um império ainda maior do que o de Daniel Keith Ludwig, aquele do Projeto Jari.
Quando a velha Alzenira, com voz rouca e imprecisa, veio à saída da casa em que morava – pois não havia portas nem janelas – avisando que o café estava pronto, foi preciso um cutucão para que Simba despertasse de seu estupor. Há minutos ele se mantinha extático, sem piscar, admirando as flores amarelas e roxas. Ele sabia que cada copa florida representava a essência de seu sonho. E aqueles eram apenas os retardatários, pois o período em que florescem abrange, principalmente, o início da primavera.
A noite vinha chegando. A barra avermelhada do horizonte, esmaecendo a cada minuto, mostrava-nos isso. Os relâmpagos e trovões já iam longe, muito longe, incansáveis em sua missão de inverno.
Ainda não havíamos acendido as lanternas, nem o neto da velha Alzenira, Jacinto, o pavio do litro de óleo diesel, já os verdadeiros inquilinos se apresentaram, atraídos pelos odores de queijo, salame, pão e outros alimentos que havíamos trazido para mais ou menos uma semana. Eram tantos os atrevidos ratos, que nós, os intrusos, não conseguimos dormir um só minuto. Eles chiavam como crianças pirracentas, desciam pelos punhos das redes, passavam por cima da gente…
Lá embaixo, nas caixas que trouxemos, a disputa era ainda mais acirrada, com roedura irritante para romper o papelão das caixas que protegia os alimentos.
Acendi a lanterna, desci da rede, chamei o Simba e o Gonçalo – que também estavam mais que acordados – e falei-lhes do problema. O Simba, sem desmerecer a proverbial alcunha de “Professor Pardal”, o cientista maluco criado pelo mestre Carl Barks, disse que precisávamos alçar os alimentos a um fio de arame ou náilon, pois, do contrário, pela manhã, não restaria mais nada.
Como arame nunca falta em carro velho de motorista precavido, assim foi feito. Salvamos os alimentos, mas não amainamos a falta de educação dos roedores. Revoltados, continuaram as estripulias, usando o punho de nossas redes como trampolim.
E o desgraçado do Jacinto, bem ali do nosso lado, arriscava pequenos roncos, apenas atrapalhado pelas nossas reclamações constantes. Pior deve ter-se sentido quando, ainda antes de o dia amanhecer, pulamos das redes. Eu, porque jamais dormiria com um barulho e uma promiscuidade daquelas; o Simba e o Gonçalo, porque teriam de caminhar 50 quilômetros por uma trilha da mata, até alcançar as margens do rio das Pedras.
Dona Alzenira, especialista em tirar chamas de braseiro, logo acendeu o fogo e preparou o café. Da cumeeira, ratazanas famintas nos olhavam enciumadas e vorazes. O cheiro exalado das caixas dependuradas era-lhes verdadeira tortura.
Mal divisando o caminho, os dois, já com todo o necessário para a sobrevivência deles por quatro dias de caminhada, despediram-se de mim e começaram a descer a íngreme encosta.
Às margens do rio das Pedras, o Gonçalo instalara seu ponto de apoio para breve descanso e recomposição de alimentos para o retorno dos pretensos compradores. Com o tempo, ele plantara, na pequena abertura de apoio, muitas sementes e mudas e, em qualquer mês do ano, algumas delas estavam produzindo. Bananas, abacaxis e macaxeiras nunca faltavam.
Do alto fui acompanhando os dois sonhadores de seus planos: Gonçalo, esperançoso de vender parte daquela floresta de que se sentia dono; Simba, maluco para fechar o negócio, sem se importar com qualquer garantia. Era o encontro da fome com a vontade de comer.
Acompanhei-os enquanto minha visão permitiu, pois, a descida era grande e a juquira que se formara da derrubada daquela posse ia até à entrada da mata imponente. O entusiasmo do Simba era notado pela constante gesticulação, com nutos contínuos e braço direito estendido, apontando para todo lado, como se manejasse uma metralhadora giratória. Só Deus poderia precisar o que se passava em sua cabeça ao olhar aqueles imensos troncos que pareciam plantados como num reflorestamento.
Enfim, eclipsaram-se na densa floresta.
II
Não mudes os desígnios de Deus, não forces a barra, não transcendas a missão que te foi destinada. Cumprida a missão, arria o alforje, retira o calçado e o chapéu, espreguiça-te à janela, admira o céu. Respira fundo da longa caminhada, lembra, apenas lembra, os tropeços e sofrimentos de tua longa estrada.
A viagem do Simba e do Gonçalo estava prevista para durar, mais ou menos, uma semana. Eu ficaria ali, alimentando minha mania de capturar aves para possuir, em cativeiro, a coleção completa dos inhambus brasileiros. Desde que abandonei as caçadas, propus-me a isso, como forma de amainar a compulsão de sempre estar em contato com a Natureza. Jamais algo me fascinou tanto quanto as aves, seus piados e o verde das florestas.
Com o tempo fui aperfeiçoando as técnicas de ludibriar os inhambus, sem levar em conta a lei que proíbe a captura de animais silvestres. Nesse tempo, a proibição já existia, mas não era tão severa como hoje, principalmente em áreas recônditas como as da Amazônia.
Tendo amanhecido, a menos de 100 metros da tapera, bem no aceiro da mata, uma azulona (Tinamus tao tao) se pôs a chororocar insistentemente, dando clara mostra de que estava em seu período de reprodução. Mas, azulonas eu já possuía em meu criadouro e, por isso, apenas me deleitei com sua carente necessidade.
Eu acompanhava o Simba, mais para aproveitar a oportunidade de descobrir novas espécies e tentar capturá-las, do que propriamente compactuar com sua doentia ideia fixa de se tornar um homem rico e poderoso. Por comodidade, ou mesmo por sábio reconhecimento, bem cedo aprendi que todo excesso é prejudicial.
Dona Alzenira, que havia levantado para passar o café, continuou de pé, mas o preguiçoso Jacinto voltou à rede e estava a roncar, ainda que o sol, vindo da abertura do que seria uma janela, incidisse sobre seu rosto. Os ratos retornaram aos seus abrigos. Os únicos sons que podiam ser ouvidos dali eram o chororocar, quase dorido, da azulona; o piar das pipiras que atravessavam o barraco em direção às curindibeiras próximas e o constante xô de dona Alzenira a uma pintainha solitária que vivia ali, rondando a cozinha, em busca de algum grão de arroz caído.
Esperei o Jacinto acordar, o que apenas se deu às 10 horas, mais ou menos. Logo que tomou café, tentei informações:
– Você caça muito por aqui?
Demonstrando logo que não gostava de papo, resumiu:
– Nunca cacei.
– Estou vendo uma espingarda ali pendurada.
– Faz tempo que está aí. Só pego ela pra limpar. Foi o Gonçalo que deixou aí.
– Caça de outro jeito?
– Não.
– Um tatu, uma paca…
– Não gosto de carne de bicho.
Percebendo que não conseguiria nada com ele, arrisquei o que mais me interessava. Fui à minha capanga, apanhei o pio de macuco com o qual eu imitava uma ave amazônica que os caboclos autóctones chamam de “macuco de topete vermelho”, emiti um piado e perguntei:
– Você tem ouvido algum piado semelhante a esse, aí pelas matas?
– Não.
Desisti.
Nos três dias seguintes não tivemos problema com a alimentação. Sobras de queijo, salame e algumas latas de conserva complementavam o arroz. No quarto dia, porém, o arroz veio puro. Alzenira, a seu modo, disse que viviam à custa do Gonçalo e que era comum passarem semanas e mais semanas, tendo apenas o arroz como alimento.
– E por que não matam um bicho? Pelo que vejo, tem muito por aqui.
– O Jacinto não sabe caçar. Passa o dia aí na rede. Tem dia que tatu fuça aí no terreiro e ele não faz nada.
Percebendo que o problema não era não gostar de carne de bicho e, sim, a preguiça de caçar, perguntei se eu podia apanhar a espingarda para matar um.
– Não tem cartucho – interferiu o Jacinto, que ouvia a conversa disfarçadamente.
No outro dia, dei falta da frangainha, porque não ouvi a Alzenira enxotá-la. Bem, ela podia estar mariscando na juquira, já que a coisa estava feia até para ela. Mas, na hora do almoço, quando senti, vindo de uma panelinha corrugada, o cheiro que sempre me foi familiar, desconfiei:
– Dona Alzenira, a senhora matou aquela pintainha?
– É, meu senhor, era a única coisa que eu tinha para oferecer pro senhor.
– Ó, meu Deus! Nem tinha todas as penas ainda – disse para ela.
– É…., não tinha.
Apanhei um pouco do caldo que se formara com a água salgada, aspergi em cima do arroz com farinha-puba, sem mexer nos minguados pedacinhos de carne.
Durante dois dias, a frangainha foi apresentada na hora do almoço: eles deixando para mim e eu, apenas, usando um pouco do caldo, milagrosamente multiplicado pela dona Alzenira.
No sétimo dia, como Simba e Gonçalo não aparecessem, vesti minha farda de caçada, apanhei meus laços e disse que iria dar uma volta na mata para ver se ali existia o tal macuco de cabeça vermelha (Tinamus major olivascens).
Na verdade, iria usar tudo o que aprendera em minha vida para capturar algum inhambu para comer. Fui direto ao lugar em que, dias anteriores, ouvira a carente azulona chororocar. Sabia que ela estava em seu período de reprodução, mas a causa era justa. Afinal, segundo me ensinaram, os animais foram postos no mundo para servir os seres humanos.
Em menos de três horas eu já estava saindo da mata com a azulona, ainda viva, na mão. Alzenira e Jacinto continuavam ali, ora no terreiro, ora nas redes, esperando a vida passar. E eu pensei: como gostaria que algum psicólogo respeitado me explicasse a razão desse comportamento. Dois seres humanos, ali, dia após dia, sem qualquer perspectiva de vida, sem sonhos, às vezes sem comida, sem planos de mudar alguma coisa. Certamente viveriam ali até o fim de suas vidas. Mas, para quê? Deviam ter recebido raras “dracmas” e nunca quiseram arriscá-la em qualquer investimento.
Com esse pensamento, mas muito alegre, entrei no terreiro e apresentei a azulona aos dois, dizendo:
– Dona Alzenira, para o jantar, hoje teremos carne de galinha azul.
– Meu Deus!, – exclamaram eles ao mesmo tempo – como o senhor fez isso? O senhor é feiticeiro? Tem parte com alguma coisa do outro mundo?
– Nada disso! É simples. Fui caçador durante 20 anos. Aprendi quase tudo sobre os bichos. Enganar inhambus, então, sempre foi minha especialidade.
– Mas, como o senhor conseguiu botar as mãos nela?
– Eu a lacei primeiro. Depois é que a peguei com as mãos.
– Mas, como?
– Bem, é complicado e vocês não iriam entender agora. Vamos preparar esta fêmea para o jantar.
– Como o senhor sabe que é uma fêmea?
– Digamos que eu esteja deduzindo, jogando no bicho.
– Hum! …
Com uma dorzinha pegando fundo no coração, puxei-lhe o pescoço e a entreguei à Alzenira.
– Fazer ela como?
– Do mesmo jeitinho que a senhora prepara as galinhas – disse eu.
E antes que o sol se escondesse, nossos estômagos já estavam fartos. Confiando no meu “poder mágico” de apenas ir buscar o bicho no mato, nem o que restava da frangainha derretida pelos sucessivos cozimentos ficou para o outro dia.
– Amanhã o sinhô vai outra vez? Podia levar o Jacinto e ensiná ele como é que pega.
– Isso não se aprende assim, dona Alzenira. Levei mais de 30 anos para conseguir isso. Irei sozinho mesmo e verei o que posso conseguir.
E, no outro dia, quando cheguei com mais três inhambus, eles ficaram mais assustados do que, possivelmente, ficaram os índios Caetés com a demonstração de Caramuru. Senti que me olhavam num misto de medo e devoção, como se eu fosse um curupira, alguém com poderes sobrenaturais sobre os bichos do mato.
E o tempo ia passando e nada do Simba e do Gonçalo.
Eu já não suportava mais passar o dia inventando armadilhas para matar os ratos, e, à noite, acordado com medo de que me atacassem dormindo. Os ratos infectados transmitem, ao homem, um sem número de doenças: leptospirose, tifo murino, triquinose, raiva, sarnas…, sem contar a hantavirose, quase sempre mortal. Dormir com companhias assim, havemos de admitir, não é para qualquer ser humano normal.
Não bastasse, um dos pneus do velho Fiat estava arriado e o sobressalente apresentava-se mais careca do que a cabeça do Kojac, depois de rapada e dado lustre. Os demais – todos de meia vida – também não ofereciam a mínima segurança para nosso retorno, nem para alcançar a Transamazônica.
No nono dia, eu não saí mais para piar nem pegar pássaros. Vivia adiando o momento de chamar o Jacinto e ir em busca de socorro para o Simba e o Gonçalo. Alguma coisa grave teria acontecido a eles. Chamei o Jacinto e lhe falei:
– Jacinto, você iria comigo até a Transamazônica? Estou pensando em buscar gente para procurar aqueles dois malucos.
Pela primeira vez, o Jacinto foi mais prolixo:
– Eles deve chegar amanhã. O Gonçalo trais gente todo mês aqui pra vender essa área. Tem vez que demora, tem vez que não. Depende do interesse do comprador.
Então, imaginei: eles deverão retornar somente no mês que vem. Acalmei-me.
No dia seguinte, pela manhã, mais calmo, voltei ao mato e garanti, mais uma vez, a carne do jantar. Os inhambus estavam no início da reprodução e todos atendiam ao pio quase correndo. Eu armava três laços, um perto do outro, punha um alto-falante por cima, esticava o fio a uns 15 metros e apenas reproduzia os piados gravados em fita. E os anjos pareciam conspirar a meu favor, porque nunca foi tão fácil enganá-los.
Também nessa tarde, como já se tornara hábito, sentei-me sobre um pau que resistira ao fogo da derrubada, e fiquei olhando a vereda em que os dois desceram no dia em que partiram. Quase o coração me saiu do peito quando vi duas silhuetas ambulantes aparecerem lá embaixo. Eram eles. Aliás, não podia ser mais ninguém.
Fui descendo para recebê-los. Quando nos encontramos, o Simba, praticamente já não caminhava: arrastava-se. Seu estado era deplorável, mas não o bastante para embaçar o brilho de seus olhos:
– Amigo, enfim, meu destino. Aqui vou realizar meus sonhos. E ai de quem tentar me impedir.
E sem que soubesse, nunca fora tão profético.
III
Ali mesmo, no sopé do morro, na nascente em que o Jacinto apanhava água para fazer a comida, lavar duas colheres e dois pratos todos os dias e, aos sábados, um balde de dez litros para sua avó Alzenira tomar banho, o Simba parou. Pediu ao Gonçalo que subisse e lhe trouxesse um pedaço de sabão, uma toalha e a bermuda mais larga que encontrasse e foi logo se despindo. Quando arriou as calças, juro, preocupei-me: na parte interna das pernas, do joelho à virilha, tudo estava em carne viva. Alguns lugares sangravam.
– Pelo amor de Deus, Simba, como deixou as coisas chegarem a este ponto?
E ele, espalhafatoso e radiante, dando um peteleco no pênis, gracejou:
– O principal está bom, amigo. O resto sara logo, logo. A gente vai gastar uns quatro dias para chegar em Imperatriz. Já até fiz os cálculos: iremos chegar no domingo, em tempo de correr atrás das negas do Bacuri.
Fitei-o num misto de piedade e orgulho. Ali estava um homem singular, um homem que se havia esquecido de Deus, mas que, com certeza, Deus não se esquecera dele. Não havia tempo ruim para ele. Tudo o que era possível resolver, deixava de ser problema. E aí me lembrei da observação feita pelo meu irmão, já falecido, referindo-se à minha obsessão por caçadas: “Se caçada fosse droga, você seria o maior traficante do planeta”. Para o enunciado adaptar-se ao Simba, era só trocar a palavra caçada por dinheiro, poder e mulher.
Com as próprias mãos ele foi aspergindo-se. A água que escorria tinha a cor de vinho, misturada que ia com sangue, suor e muita sujeira. E ele, como se estivesse anestesiado, humilhava-me:
– Pois é, velho amigo, achei o que sempre procurei. Vai ser aqui que vou ficar um homem rico e poderoso. Já fechei o primeiro negócio com o Gonçalo. Não sei de onde vai sair o dinheiro, mas já me comprometi a pagar a ele os 70 mil reais logo que eu chegar do Novo Repartimento. Amigo, a árvore que mais tem nessas matas é ipê. Já pensou a gente exportando ipê com o dólar a quase quatro reais? Se me derem tempo de eu me instalar, em dois anos, bye, bye miséria. E não pense que é só ipê, não. O que vi de cedro, sucupira, jatobá… Putaquipariu, amigo, descobri o veio da mina, agora…
E, notando que o Gonçalo se aproximava com as roupas e o sabão solicitados, colou o indicador nos lábios, mudou de assunto e aumentou a tonalidade da voz:
– Pois é, amigo, madeira até que tem, mas já imaginou o custo para tirar uma árvore neste fim de mundo, transportar ela até na serraria, beneficiar e depois andar 1.500 km em estrada de chão? Isso para vender na primeira cidade, porque se a gente for vender em São Paulo, Curitiba, vai ser pior ainda. De qualquer maneira fechei um pequeno negócio com o Gonçalo e vamos ver no que vai dar.
– Você vai ficar rico, cara – foi entrando, mesmo de longe na conversa, o Gonçalo. Seu amigo aí é um cara de visão, seu Tiba. Confesso que já trouxe muitos frouxos aqui, que desistiram ali em cima do morro mesmo. Nem quiseram descer e entrar no mato. Acho que eles queriam os ipês lá na Transamazônica, já derrubados, torados e com o imposto pago.
E o Simba, tomando o sabão das mãos do Gonçalo e o esfregando com vontade, sem se importar com o ardume de suas coxas em carne viva, arrefecia:
– Eles é que foram espertos! Não foram idiotas como eu. Veja meu estado só pra olhar. Imagina quando eu tiver trabalhando? Espero que, ao menos, me sobre isso – (e segurou o pênis outra vez) que, a esta altura, estava mais retraído que cabeça de jaboti fustigado por um bando de jacamins.
– Sei que está dizendo isso só pra me comprar o restante bem baratinho, mas pode ir tirando seu cavalo da chuva. Esse precinho foi só para trazer você pra cá. Daqui pra frente a gente vai negociar dentro do justo valor.
Percebendo que o Gonçalo não era nada bobo, Simba desconversou, virando-se para mim:
– E aí, pegou o passarinho que queria?
– Não, peguei alguns outros, mas depois eu conto como e para quê. Iremos ter tempo de sobra. O Fiat está com um dos pneus arriado e os demais, carecas como estão, não nos oferecem segurança nem para alcançar a Transamazônica.
– Você, pessimista como sempre, heim! Tô aqui, tô em casa, amigo – riu o Simba.
Não dava para acreditar. Na situação em que se encontrava, sem dinheiro, olhando o estrago que a fricção da calça jeans lhe havia causado nas coxas, ele ainda sorria e brincava.
Duas horas depois, ao jogar no prato uma suculenta coxa de azulona, ele pilheriou:
– Se matou este bicho aqui, vai ter que me pagar. Isso aqui agora é meu.
Devolvi-lhe a granada com a coronha do fuzil:
– Pago, mas terá de me devolver a coxa.
– Abra o preço.
E eu, rindo:
– Hoje é cortesia, não é mesmo, dona Alzenira?
Ela não entendeu aquela linguagem esquisita e avessa à sua cultura. Por isso, sem dizer nada, nem demonstrar qualquer reação de consentimento ou negação, foi voltando à cozinha.
Nessa tarde, nem a rapa da panela escapou. O Simba parecia insaciável. Quando terminou, olhei para as duas panelas e comentei:
– Pelo menos, amanhã, dona Alzenira, a senhora não vai precisar lavar o vasilhame. O Simba não deixou nem uma crostinha para a bucha com areia retirar.
E, mais uma noite foi passada praticamente sem dormir. Os ratos, mesmo com seu contingente diminuído, graças às minhas mil e uma armadilhas, foram bastante para atazanar todo mundo.
Às 21 horas, mais ou menos, os trovões se fizeram ouvir, lá do lado leste, como sempre. Isso acontecia todos os dias, apenas com pequena diferença de horas. Eu preferia que se fizessem de dia, porque era mais fácil proteger as coisas das goteiras. E eram tantas, que a maior parte dos pertences do Simba e também meus, já estavam no Fiat.
Lá pela meia-noite, “os metaleiros siderais” chegaram, e o fizeram de forma ainda mais furiosa do que nos dias anteriores. Foi essa a primeira vez que me senti nada, um zero à esquerda, uma formiguinha num caudaloso rio, diante da potência das forças da Natureza.
No meio da derrubada, a 100 metros do barraco, altiva e solitária, jazia uma jarana com mais de cinco metros de circunferência. Lá estava porque os derrubadores – como diziam – a enjeitaram.
A estrada que teríamos de passar para retornar à Transamazônica passava ao lado de seu tronco. E a Natureza, em seu ultimato ao Simba, como a proteger aquele ambiente lindo, intocável até então, imponente e aparentemente indestrutível, apelou: um raio desceu em seu tronco, esfacelando-o, transformando aquele monstruoso tronco em milhões de palitos. Os imensos galhos cobriram a estrada. Era seu último apelo para que ninguém fosse mexer por aquelas bandas.
Pela manhã, quando fomos verificar o estrago, imaginei que o Simba até desistisse diante de tantas dificuldades. Diferentemente, depois de saber do Gonçalo que não tão longe dali havia alguém que possuía uma motosserra, encarregou-o de ir buscá-la. Enquanto isso, sem nem tirar a roupa que vestira para viajar, apanhou o facão e foi logo fazendo o que de facão teria de ser feito.
Aproximei-me dele e comentei:
– E aí, Simba, ainda animado?
– Pô, cara, se um graveto deste pensa que vai me fazer desanimar, está muito enganado. É só o tempo de eu voltar pro Novo Repartimento, acertar as contas com a CIMAPA e me enfiar aqui.
Percebi, então, que não tinha mais volta: o Simba, de fato, terminaria seus dias na Amazônia e, se escorraçá-lo de lá fora a intenção daquele raio, os céus teriam de repensar as estratégias.
Simba me fazia lembrar o que sempre defendi: todo sonho possível pode ser realizado pelo homem que luta diuturnamente para realizá-lo.
Ele não tinha pressa, mas também não descansava. Como autor de um grosso volume, ele escrevia uma página por dia. Negava-se a fazer conta e até a ouvir conselhos. Como alguém que mira um distante objetivo, Simba caminhava em direção a ele, sem olhar para os lados, não se importando em quê, nem onde seus pés pisassem.
Se alguém tentasse demovê-lo de seus planos, ele reagia imediatamente, dizendo que dispensava conselho de acomodados ou de quem quisesse viver mendigando favores:
– Neste mundo há aqueles que manda e aqueles que obedece. Eu quero ficar do lado daqueles que manda, porque não suporto ser mandado. Depois, o senhor já viu algum empregado rico? Ele pode até ter uma vida mansa, com férias e um carrinho velho na garagem, mas terá sempre que obedecer o patrão. Desse time, amigo, tô fora.
IV
Simba – apelido recebido ainda quando criança amamentada, por causa da mania de bater com a boca nas babás, na mãe ou de quem estivesse com ele no colo, emitindo o som que lhe originou a alcunha – cresceu diferente dos outros quatro irmãos: Heitor, Arquimedes, Artêmio e Benjamim. Sempre fora criativo, destemido, inquieto, ousado, ganancioso e mulherengo. Os desafios mexiam com seu brio de jogador da vida. Não havia nada possível que o intimidasse a não tentar.
Quando cresceu, atingindo os 17 anos, sem terminar o ginasial – assim como três de seus irmãos – não quis mais estudar. Juntaram-se a mim no árduo trabalho de extração e venda de madeiras. Foi graças a ele que, em menos de dez anos, tornei-me financeiramente independente. Simba não hesitava chegar a mim e dizer:
– Seu Tiba, pode comprar um Volvo novo que pago as prestações e ainda deixo troco de rebarba pro senhor.
No começo, relutei a acreditar, mas depois que cumpriu a promessa do primeiro desafio, era só ele falar e no outro dia eu estava na agência financiando a compra de mais um caminhão. Ele quitava um e quase me obrigava a logo pedir outro.
– Quero apenas que seja grande, o melhor e mais possante da montadora, e novinho em folha – dizia-me ele.
Trabalhava dia e noite, inclusive aos sábados e domingos. A única exigência era de que a máquina suportasse a refrega e, para isso, tinha de ser boa e nova.
Tornara-se magro, recoberto de músculos, canelas finas…. Acho que não possuía meio-quilo de gordura excedente. Com seus ralos cabelos castanhos colados na testa, sempre mourejante, ele passou a morar dentro da cabina dos Volvos, transformada em escritório, motel e lanchonete. Ali ele tinha tudo de que gostava. Não precisava perder tempo parando em lanchonetes ou restaurantes. Sempre com o som ligado, saboreando um bombom ou tomando leite quente com chocolate, ele ia desfazendo estradas e cumprindo suas obrigações.
Nesse tempo morávamos no Espírito Santo, e explorávamos o ramo de madeira, na Bahia, mais precisamente nos arredores de Nova Alegria, uma vila não muito distante da cidade de Itamaraju. Tanto se admira os Maias pelas obras que deixaram, mas, se algum historiador tivesse testemunhado as peripécias que fizemos para extrair os jequitibás daquela região, certamente os Maias, Incas e Astecas ficariam em segundo plano. Nova Alegria é uma região acidentadíssima, tanto que, até os tratores de esteiras tinham dificuldade para chegar às árvores.
Simba não levava jeito – como seus irmãos – para o futebol, nem gostava de perder muito tempo com este esporte, mas superava todos eles no trabalho e nas conquistas. Não passava três vezes pelo mesmo caminho sem levar para poltrona de seu Volvo, a lavadeira do riacho, ou uma das garçonetes de beira de estrada.
Quando nos mudamos para o Maranhão, ele já carregava o apelido de Abraão, o bíblico que teria recebido de Deus a promessa de uma posteridade mais numerosa que as areias do mar. Deixou para trás filhos comprovados e também suspeitos, já que, para ele, nenhuma mulher precisava possuir mais que um tornozelo redondo para satisfazer sua libido.
No Maranhão, com a divulgação de uma doença que seria transmitida sexualmente e que não tinha cura, Simba resolveu restringir o perigo a uma só parceira, prometendo a si mesmo, tomar juízo. Sua prioridade, no momento, não eram as mulheres e, muito menos constituir família, e sim, ser rico e poderoso. Amasiou-se com uma linda garota chamada Francisca, mas não mudou em nada. Não podia ver um rabo de saia que se arvorava todo, dizendo que a tal AIDS só não valia a pena se fosse com mulher feia. E tem mais – concluía – logo, logo eles vão descobrir uma vacina pra liberar a gente de novo.
Nesse tempo, eu que ajudara a criar o Simba e seus irmãos no ramo industrial de madeira, senti que eles precisavam se libertar, ter vida própria, caminhar com as próprias pernas.
E nem precisei amadurecer a ideia, porque na manhã do dia 15 de julho do ano de 1990, domingo, quatro dos cinco irmãos, chefiados pelo Simba, bateram à minha porta:
– Que houve? Uma pelada marcada logo cedo?
É que, mesmo sendo ruim de bola, Simba, não dispensava as constantes peladas que jogávamos sempre que possível. E eram tantas as discussões, xingamentos e raiva que passávamos nessas peladas, que se Deus não extrapolar em misericórdia, iremos terminá-las no purgatório.
E ele, tomando ar um pouco grave – o que não era de seu feitio – explicou:
– Seu Tiba, queremos falar com o senhor. Dá pra ser agora?
– Claro. Vamos ali para o escritório.
– Bem, pode ser aqui mesmo. É que a CIMAPA dos Poncieris nos propôs um negócio e queremos ouvir a opinião do senhor.
Os três irmãos Poncieris, por sinal, nossos conterrâneos, haviam-se mudado para o Maranhão bem antes de nós. Já eram donos da CIMAPA (Companhia Industrial Maranhão Pará), uma indústria financiada com dinheiro da SUDAM, e que funcionava na divisa do Maranhão com o Pará. Desviando dinheiro do projeto, eles adquiriram fazendas e muitas matas, principalmente no Pacajá e no Novo Repartimento. Muitas máquinas adquiridas no projeto, agora estavam velhas e precisavam ser repassadas. Espertos, eles prepararam toda documentação forjada sobre um incêndio, puseram as máquinas velhas à venda, instalaram-se provisoriamente em Novo Repartimento, pediram concordata para, logo em seguida, pela insolvência combinada com os profissionais do ramo, declararem falência. Isso não era normal, mas muito comum na antiga SUDAM: verdadeiro paraíso da corrupção. O País ficou com o prejuízo e, eles, por meio de laranjas confiáveis, estabilizados financeiramente em diversos outros ramos de negócio espalhados pelo País.
Embora eu soubesse que, particularmente, o Simba estava ali apenas para receber minha aprovação, procurei dar-me importância:
– E o que os Poncieris lhes propuseram?
Eles estão querendo vender pra nós dois tratores, um Skidder, uma carregadeira e uma camioneta Toyota. As máquinas são velhas, mas estão todas trabalhando.
– Meus Deus!, exclamei. É muito dinheiro. Onde irão consegui-lo?
Como líder nato, o Simba tomou a palavra e explicou:
– Eles não querem nem um centavo em dinheiro. Vão entregar o maquinário e a gente vai pagar eles com serviço.
– Como assim?
– É que eles têm uma grande área de matas no Novo Repartimento e outra no Pacajá. Querem que a gente tire apenas os mognos das áreas, a um preço que, segundo eles, dá e sobra para pagar o maquinário.
– E as despesas?
– Serão todas por conta deles.
– Bem, a proposta, se verdadeira, é a melhor possível. Espero que não haja nenhum embuste, nenhuma mentira em tudo o que lhes disseram. E, quando eles pretendem que vocês iniciem a extração?
– Puxa, seu Tiba! O mais rápido possível.
– Hum! …
– Vai ficar difícil pro senhor, não é mesmo?
– Vai – respondi laconicamente.
– Pois é! … – retrucou ele bastante angustiado.
– Bem, tudo o que possuo, ao menos o que veio de madeiras, devo a vocês. Acho que já é passada a hora de reconhecer isso e retribuir, não criando dificuldades para que sigam o próprio caminho. Eu estava mesmo pensando – por uma questão de coerência com o que ando pregando ultimamente – em abandonar o serviço de madeira, ao menos como meio de sobrevivência ou enriquecimento, como queiram. Acho que a hora é essa.
– O senhor sai, e a gente continua – falou ele mostrando os dentes de canto a canto.
– Bem, é como se diz: “nada têm a perder”. Se for o que querem, vão em frente.
Dos irmãos, apenas o Arquimedes ficaria fora do negócio. Era o único que estava estudando fora. Iria se formar em agronomia. Heitor, Artêmio e Benjamim enfrentariam, com o Simba, as agruras de uma mata diferente, desconhecida para eles. Não pesquisaram nada. Malária e outras febres, cobras, intempéries…, tudo seria visto in loco e resolvido quando aparecessem. Se aparecessem.
Dali mesmo eles ligaram para os Poncieris e marcaram o encontro que mudaria, por completo, a vida deles.
Simba parecia estar flutuando, tal a felicidade e a ansiedade que demonstrava. Era o início de novos tempos e a oportunidade ímpar de trabalhar seu sonho de se tornar rico e independente, dono de um império.
V
Há milhares de anos, os Babilônios, Egípcios, Gregos e Maias já criavam suas medidas de tempo. De um jeito ou de outro, os povos sempre procuraram se ajustar ao tempo, a fim de organizar seus planos. Segundas-feiras sempre existiram, ainda que se desconheçam as denominações que a elas eram dadas nos primórdios da história, mas nenhuma – para o Simba e seus irmãos – foi igual à primeira segunda-feira do mês de agosto de 1990, quando desembarcaram em Novo Repartimento, no estado do Pará.
Mundo de ninguém, terra sem dono, forasteiros mal-encarados, suspeição em cada rosto fitado de frente… Serrarias, velhos caminhões, sujeira, poeira, promiscuidade…
Mal desembarcaram, um representante da CIMAPA dos Poncieris apresentou-lhes um monte de sucata: objeto do negócio que haviam fechado em Imperatriz, dizendo-se pronto para mostrar-lhes as matas em que teriam de extrair os mognos existentes para o pagamento daquele monte de ferro velho.
Mesmo ante a desolação dos demais irmãos, Simba não perdeu a postura de liderança e fé. Olhou para o relógio e perguntou se conseguiriam chegar à mata, ao menos antes daquele anoitecer.
– Não. Vamos ter de partir amanhã bem cedo. Mesmo assim, só vamos chegar lá se tudo correr bem.
– Mas, o Poncieri me disse que era menos de 200 quilômetros!
– E é – retrucou o mateiro. O que talvez ele não falou com vocês é o estado em que se encontra a estrada. Vocês sabem que mogno só dá no brejo, e brejo, para estradas, é como água pra eletricidade: não combina. Vamos ter que sair de madrugada, no Jipe da firma. Esse sim, se não quebrar, consegue romper até lá.
Simba olhou para os irmãos que, cabisbaixos e aparentando desânimo, de cócoras, não se cansavam de riscar o chão com cavacos de madeira do pátio da serraria.
– Então, vamos deixar pra amanhã, não é mesmo, turminha?
Heitor, o mais velho e também mais sensato, sem saída, concordou. Em seguida, perguntou ao mateiro, onde podiam passar a noite.
– Bem, vocês podem amarrar as redes de vocês aí nos esteios da serraria, ou alugar quartos lá na pensão – e esticou o beiço mostrando uma construção de tábuas carcomidas, não tão longe dali.
– E de comer, eles dão?
– Dão sim, mas é preciso encomendar umas duas horas antes.
Recobrando o ânimo, Simba decretou:
– Vamos lá, rapaziada. Nossa vida começa aqui. Enquanto eles preparam a galinha, a gente toma banho.
– Bem – brincou o Benjamim – do jeito que estou sujo, um papagaio com 100 anos de vida, ainda cozinharia antes de eu me limpar.
– Com certeza – confirmaram os demais, olhando para ele com certo ar de comiseração. De fato, o estado dele era deplorável.
O quarto da pensão fedia a urina. Aliás, toda a pensão fedia, mas, com odor de amônia ou sem ele, não iriam dormir mesmo. O constante sapatear de fregueses pelo extenso corredor de tábuas soltas, os palavrões de protesto de clientes contra o calor e os mosquitos, e a emoção de estarem experimentando um mundo desconhecido, eram-lhes ingredientes bastante para mantê-los tensos e acordados. Deitaram-se o mais tarde possível e não viam a hora em que algum galo cantasse, ainda que em sonho, anunciando a proximidade do amanhecer.
Lá pela meia-noite, a recepção de boas-vindas consumou-se ante o barulho surdo de uma porta aberta no pontapé, dois disparos de arma de fogo e a sentença:
– Isso é pra tu aprender a não buli com mulhé alheia, seu filhodaputa.
Janela arrebentada, queda forçada em cima de porcos do chiqueiro contíguo e, em seguida, um curto e dramático silêncio, interrompido por uma voz feminina suplicante:
– Não me mate, pelo amor de Deus. Você saiu brigado e disse que não ia voltar mais. E tu sabe que amanhã preciso comer.
– Levanta daí, puta runha! Tu precisa comê, mas não dá de comê. Vamo pra casa que lá te dou o corretivo que merece. Não sou homem nem de bater à toa em mulhé, quanto mais de matar. Levanta daí.
Arrastada apenas com um pedaço de lençol como penhoar, a mulher foi jogada na boleia de uma camioneta velha e levada dali.
As reclamações que se davam de tempo em tempo, agora se transformavam em burburinho de disse-me-disse, com toda a clientela reunida no corredor, tentando saber quem era quem.
O dono da pensão, como se nada acontecera, passou no meio do pessoal e foi arrumar o quarto desocupado para um cliente recém-chegado.
Aos poucos, depois de enfrentarem a fila da latrina comum para aliviar a bexiga, cada um foi entrando em seu quarto. Os mais apressados mijavam no fim do corredor, nas tábuas que serviam de parede.
– É…., vamos torcer para que este resto de noite passe depressa – observou o Artêmio.
Ele era de pouco falar. Era mais de agir. Gostava de caçar e pescar e, para satisfazer seus desejos, qualquer sacrifício lhe parecia pouco. Soubera que a mata fazia divisa com o rio Pacajá, um dos mais piscosos da região e que bichos e aves havia em profusão. Estando lá, com certeza, se sentiria em casa.
Heitor, mesmo interpelado pelo Simba, não ousava deitar-se. Permanecia sentado na cama, desferindo tapas a torto e a direito, tentando livrar-se da sanha dos pernilongos. Ocorreu-lhe dizer que não precisava todos irem à mata, mas logo mudou de ideia, imaginando permanecer naquele inferno que estava vivendo. Por isso, quando o Simba, notando a frustração do irmão, sugeriu-lhe ficar, ele respondeu negativamente, ainda antes de a proposta ser concluída:
– Prefiro ficar na estrada, sem comida e sem água, do que esperar nesta espelunca. Sempre ouvi falar em “fim de mundo”, mas nunca imaginei que ele existisse. E o que é pior: que eu fosse conhecer e passar uma parte de minha vida nele.
Simba riu. Fora um sorriso amarelo, um sorriso de quem concordava “em gênero, número e grau”, com o que dissera o irmão. Em seguida, buscando alento, que pouco existia nele, incentivou:
– Vocês sabem que todo começo é difícil, mas, tendo começado, as coisas se ajeitam, muda a cara e logo a gente percebe que o diabo não é tão feio como pintam ele. Vocês vão ver quando a gente estiver lá no meio do serviço, com nosso barraco instalado e os primeiros mognos no chão. Não bastasse, nada vai nos faltar. Precisamos apenas de nossos músculos para começar nossas vidas. Vai dar certo, vocês vão ver. Ainda que seja isso a última coisa que faço na vida, eu farei. Juro que farei. É claro, com a ajuda de vocês. Eu me comprometo e juro: vai dar certo, nem que eu tenha de morrer de tanto trabalhar.
Animado com o alento do Simba, o Heitor resolveu se deitar. Não dormiria, mas sentiu que o irmão o livrara do peso da responsabilidade de ser, como mais velho, o responsável em cumprir o contrato assinado com a CIMAPA.
VI
O mateiro da CIMAPA, firma dos Poncieris, responsável por mostrar a estrada, entreabriu a janela do seu quarto, todo em tábuas de cedro, construído no fundo da serraria, e não pareceu nada amistoso. Seu mau-humor por ter sido acordado fora de seu habitual horário, somado à compleição física: crioulo com apenas dois caninos relutantes, duas acentuadas entradas nas laterais da cabeça e porte de halterofilista aposentado, deram aos quatro irmãos, a dura sensação de terem sido inconvenientes. Contudo, não havia mais como recuar:
– E aí, pronto?
– É o jeito, não?
Tentando amenizar aquela situação embaraçosa, Heitor, meio atropelando as palavras, desculpou-se:
– O senhor nos desculpe, mas é que não conseguimos dormir uma só hora da noite. Então….
– Vieram acordar quem estava dormindo – rosnou o crioulo lá de dentro.
Os quatro se entreolharam temerosos. Simba, meio brincando, meio falando sério, sussurrou:
– Rapaziada, vamos ter de ficar de olho neste crioulo!
– E como! – consentiu o Artêmio que, devido à grande e desengonçada estatura, seria o zagueiro mais indicado para marcar aquele centroavante matador.
O crioulo levou mais de meia hora para ir ao banheiro, lavar o rosto e calçar os sapatões. Entrou no Jeep e sem bom-dia, olá ou qualquer cumprimento, enfiou a chave na ignição, acionou o motor e saiu da garagem: uma pequena cobertura de lona para evitar que as poltronas rasgadas molhassem com as constantes chuvas. Os quatro pularam para dentro e o crioulo arrancou, jogando cavacos de pau para trás. Ficava claro que ele não deixaria de graça aquelas perdidas horas de sono.
Às 9h, o primeiro atoleiro. Tração dianteira ligada, solavancos para tudo o que era lado e, enfim, o outro lado de terra firme. Às 15 horas, depois de vários outros atoleiros, chegaram à entrada da mata em que deveriam extrair os mognos. O crioulo manobrou, desceu, abriu a braguilha e ficou mijando por quase dois minutos. Deu a impressão de que iria derreter-se ali.
Simba foi o primeiro dos quatro irmãos a pular e a lançar um olhar em volta do imenso tapete verde que se espraiava. E mal viu a folhagem de um mogno, rindo, disse:
– Olha lá, turminha, bem ali no aceiro. Aquele ali vai ser o primeiro. Cinquenta paus a menos pra pagar os Poncieris.
Totalmente abatido, Benjamim, o mais novo completou:
– Quero ver é a gente chegar com ele lá na estrada. Pra mim, ele aqui não vale nem dez. Além do mais, quem nos garante que não está oco?
– Hei, levar não é com a gente, não. Nosso contrato é apenas para derrubar e amontoar em tombadouro aqui dentro da mata mesmo.
– Ah, é assim? Ainda bem, senão hoje mesmo eu me retiraria da sociedade.
Também o Artêmio e o Heitor não sabiam dessa particularidade, já que não presenciaram o acordo feito, nem assinaram o contrato. Ante essa boa notícia, seus rostos despiram-se da visível frustração de que estavam tomados. Mesmo assim, Heitor, antevendo o dia seguinte, lamuriou-se mais uma vez:
– Só não sei como a gente vai trazer, até aqui, aquele monte de ferro velho.
– Sofra por antecedência não, mano. Tudo é difícil antes de começar, já falei. Nem que a gente tenha de desmontar aquelas geringonças de um lado do atoleiro e montar elas do outro lado, nós vamos botar tudo aqui.
O entusiasmo, a coragem e a determinação do Simba eram contagiantes. Por isso, a volta foi mais alegre.
Chegaram de volta ao Novo Repartimento, ali pelas 23 horas. Voltaram à pensão, encomendaram o jantar, tomaram banho, jantaram e mais uma noite foi passada, matando mosquitos e rogando pragas aos que escapavam.
Para o Benjamim tudo parecia mais difícil e insuportável. Passara a infância sob o avental da avó materna, que o tratava com desvelo, carinho e todo chamego do mundo. Mais adiante, já crescido, foi para a capital do Maranhão. Vivia num confortável alojamento da Companhia Vale do Rio Doce, onde desempenhava a função de controlador dos trens que buscavam minério na serra dos Carajás e o transportava ao Porto de Itaqui. Lá ele dificilmente perdia uma noite de sono por causa de mosquitos, falta de colchão macio ou ambiente climatizado.
Mudar de vida, passando do pior para o melhor, ou, pelo menos, diminuindo o sofrimento paulatinamente, parece ser o caminho de todos que nascem na classe remediada e lutam por um melhor lugar ao sol. Chega até ser normal, porque são raros os que nascem em berço de ouro. O contrário, porém, ainda que temporário, não é fácil de ser assimilado com resignação.
Por essa razão, as imprecações dos irmãos ante o calor e as picadas de mosquitos e percevejos aumentavam-lhe a angústia e a saudade da Vale. A promessa do Simba de que, com um pouquinho de sacrifício eles ficariam ricos em poucos anos, não o convencia plenamente. Conhecia bem o Simba e sabia, pela longa convivência, que, para ele, luta, trabalho e sofrimento pouco significavam: o importante era ficar rico e poderoso. Fosse como fosse, agora não tinha mais como recuar. Tentou esquecer e deitou-se.
Felizmente, como tudo passa nesta vida, inclusive a própria vida, também aquela noite de cão passou.
VII
Só Deus sabe o sofrimento e as tantas angústias sofridas pelo Simba para evitar que os irmãos o abandonassem no meio do primeiro atoleiro. O caminhão que transportava uma das máquinas não chegou, sequer, a entrar todo na lama: atolou tanto que nem a porta do lado do motorista foi possível utilizar para sair da boleia. Ele teve de abrir o vidro e sair por ali. E pensar que, para frente, havia mais quatro, iguais ou piores que aquele!
Sem descansar, Simba decidiu que teriam de conseguir um cabo de aço com 150 metros de comprimento, estivar o atoleiro com varões roliços e atravessar um dos tratores, para que os caminhões fossem puxados. Mandou o Heitor e o Benjamim retornarem para conseguir os 150 metros de cabo de aço, enquanto ele, o Artêmio e mais dois funcionários, derrubavam os varões e os arrastavam até ao atoleiro.
Dois dias depois, quando o cabo de aço chegou, o trator já estava do outro lado. Como o Simba planejou, a primeira travessia foi feita, apenas, com a ajuda dos varões estendidos. E, usando sempre a mesma estratégia, as demais também foram desfeitas. Foram cinco dias que nenhum prisioneiro, em campo de concentração, deixaria de assinar embaixo. Não restava mais qualquer dúvida de que eles iriam cumprir o combinado e ser donos daquele monte de sucata: ferragem indispensável para o Simba começar seus planos, não somente de escapar da pobreza, mas de ser o homem mais poderoso e rico de certa região da Transamazônica.
E durante mais de dois anos, incluindo sábados e domingos, eles trabalharam do amanhecer ao anoitecer. As máquinas, apesar de velhas, eram muito possantes para o trabalho que desenvolviam. Por isso, davam poucos problemas mecânicos e, quando davam, o Simba resolvia com parafusos, arame, durepox, borrachas e tudo o que pudesse manter o monstro em funcionamento. Arrastar toros de mogno era como se os tratores estivessem andando sem nada pendurado atrás. Por isso, diferencial, caixa e motor não davam problemas.
Em Imperatriz, Simba continuava com Francisca, bela moça que fugiu da casa dos pais e viera trabalhar como doméstica, numa casa de família da Vila Lobão. Possuía dois lindos e enigmáticos olhos verdes, era pequena e de corpo, podia-se dizer, perfeito. Tudo era relativo à sua pequena estatura. Quando a viu de biquíni pela primeira vez, Simba encantou-se. Ela, totalmente dependente de tudo, talvez nem tenha perguntado pela vida de seu pretendente. Aceitara o convite para um sorvete e depois deste, para todos os lugares em que Simba a convidasse. Branca, quase loira, cabelos cor de mel, sotaque maranhense acentuado… Era tudo o que encantava e atraía Simba. Por isso, tão logo partiu para Novo Repartimento, Simba assegurou a ela uma modesta casa, próxima à residência em que trabalhava. O dinheiro para as despesas, religiosamente, Simba enviava pelos Poncieris, em todo final de mês, depois de medirem a produção da extração. O dinheiro era pouco, mas dava para Francisca continuar frequentando o colégio. Simba não se preocupava se ela estava estudando mesmo ou se apenas usando o dinheiro para suas vaidades. Por enquanto, apenas as noites agradáveis que curtia com ela, quando por Imperatriz passava, já lhe satisfaziam.
Francisca vivia dizendo a ele, nos raros encontros, que pretendia se formar em Direito. Com o tempo, mesmo ela, com total liberdade para fazer e agir como bem lhe conviesse, começou a sentir falta do homem que lhe dera abrigo e proteção. E já não era por medo de faltar a mesada que recebia, porque Simba nunca incorporou o envio de dinheiro ao bom ou mau uso que dele estaria Francisca fazendo. Ainda que não soubesse explicar a razão, a aparente frieza com que Simba demonstrava em saber de sua vida, começou a incomodá-la. Mas, ainda era tempo de provar tudo o que ela vinha a ele falando, porque era nova, bonita e inteligente.
Ela que, embora estudasse, não levava o compromisso muito a sério, começou por assistir mais às aulas. Organizou seus livros e cadernos e, a cada vez que tomava tais decisões, mais o sonho de se tornar advogada aumentava.
E Simba, metido nas matas do Novo Repartimento, sempre cansado, tenso e preocupado, quase nem se lembrava de que vivia amasiado com ela. Sempre que havia oportunidade, seus irmãos o interpelavam sobre o motivo que o levava a manter aquela mulher sob suas expensas. Simba respondia com um sorrisinho amarelo e apenas encerrava a conversa com um “deixa comigo… deixa comigo!” Às vezes brincava, dizendo que, infelizmente, não podia provar a razão, porque não aceitaria que eles dormissem com ela uma única noite.
O certo é que o procedimento de Simba, de fato, era muito estranho. Sustentar Francisca e passar meses sem vê-la, para os irmãos, era inconcebível.
Francisca também não conseguia entender aonde Simba queria chegar com aquele comportamento. Por isso, depois de quase um ano sem vê-lo, resolveu ir pessoalmente constatar se, de fato, ele estava no mato ou já morando com outra mulher. Ela conhecia o homem que tinha e sabia que cansaço algum amordaçaria a libido dele. Sozinho ele não devia estar.
Apesar das tantas chuvas do inverno, o verão começara prometendo o troco. Os Pancieris, aproveitando o sol, haviam melhorado a estrada e não foi difícil, para ela, chegar ao barracão da extração. Ao se deparar com o lugar em que ele estava vivendo, bateu-lhe um profundo arrependimento. Mas, o pior ela ainda não havia visto.
Pedindo ao cozinheiro para levá-la ao lugar em que a extração estava sendo feita, ela foi encontrar o homem que, estranhamente a sustentava, quase irreconhecível: muito mais magro, barbudo, um dente incisivo partido…. Um trapo. Estava com lama até os joelhos, tentando tirar o Skidder de um atoleiro. É que a área era cheia de igapós e as máquinas pesadas afundavam constantemente. Ocupado, Simba nem percebeu que Francisca estava ali pertinho, olhando-o cheia de ternura.
Impulsionado por um sentimento ímpar, ela foi entrando na lama até aproximar-se a um metro dele. E aí, com lágrimas nos olhos, o chamou:
– Simba?!…
Sem erguer os olhos de um tronco que tentava enfiar sob o pneu do Skidder, ele parou. Teve a sensação de estar delirando, porque, apesar de tudo, Francisca era tudo o que ele queria há muitos meses. Nenhum trabalho, nesse estágio da vida de Simba, significava tanto sacrifício quanto viver sem mulher. O tempo de luta e sofrimento devia estar mexendo com sua cabeça. Esfregou as costas das mãos na testa suada e olhou para trás. Olhou, olhou, esfregou novamente a mão nos olhos:
– Meu Deus! É você, mulher?
– Sou sim, meu querido. Não vem aqui me dar um abraço?
Simba continuou com as pernas enterradas na lama, corpo retorcido como se estivesse numa academia em exercício de alongamento, sem palavras, sem ação. Então, ela deu mais um passo e se atirou sobre ele, beijando-o sofregamente. Pedia, incessantemente, que ele a perdoasse pelo que havia pensado dele.
– E o que pensou de mim, mozinho? – perguntou ele meio atabalhoado.
– Achei que tivesse me esquecido e vivendo com outra mulher.
E ele, sempre brincalhão, disse:
– Ah, mozinho, a cozinheira aqui é homem.
Tirado aquele peso desconfortável de desconfiança da consciência, Francisca arrefeceu:
– Pelo que acabo de ver, meu querido, todos os seus pecados já estão perdoados. Nenhuma mulher no mundo teve ou terá a graça de ter, ao lado, um homem determinado como você. Me dê a chance de conseguir lhe provar que o amo como ninguém neste mundo.
Ante o olhar de alguns funcionários e do irmão mais novo, Simba simplesmente foi alçando-se da lama e dizendo para que ela voltasse ao barraco. Ele iria acabar de tirar o Skidder do atoleiro e, à noite, falaria com ela. Meio triste, meio decepcionada, Francisca chamou o cozinheiro e foi desfazendo a estrada em que viera. Ao menos, para ela, não havia mais qualquer dúvida de que algo estranho, relacionado a seus sentimentos, estava acontecendo. Sua ida até ali fora mais que suficiente para fazê-la compreender que a semente do amor verdadeiro estava brotando, virente e saudável em seu coração.
VIII
Finalmente, depois de quase três anos, a madeira exigida para a quitação das máquinas foi entregue aos Poncieris. O contrato rezava cinco mil e quinhentos metros cúbicos, mas, num acordo prévio, Simba extraiu mais 500 metros, cujo dinheiro, somado ao empréstimo que fizera à sua mãe, seria utilizado para acalmar o Gonçalo e levar as máquinas até ao KM 117 da Transamazônica: lugar escolhido pelo Simba para explorar as matas adquiridas do Gonçalo.
Enquanto os três irmãos tiravam 15 dias de férias para visitar parentes em Linhares – ES, Simba, de Novo Repartimento, foi à Uruará. Para ele, ainda não era hora de descansar, nem de visitar Francisca. Ligou para a casa em que ela trabalhava e tendo ela atendido, disse que, logo, logo ela poderia escolher a faculdade que desejasse para se tornar uma boa advogada. Disse, também, que quando menos esperasse, ele estaria chegando, tanto para vê-la como para apanhar a velha serraria do Coco Grande e transferi-la para Uruará, a fim de iniciar os trabalhos de beneficiamento das madeiras. Mandou um abraço, avisou que o dinheiro do mês estava na conta e que, ao menos por enquanto, um motivo maior exigia a presença dele muito longe da segunda maior cidade do Maranhão.
Desligou o telefone, retornou aos caminhões, verificou se as máquinas estavam bem travadas nos estrados, deu um adeus àquele mundo inóspito, acelerou e partiu com o caminhão que lhe tocara como motorista. Ele fazia tudo: consertava, dirigia tratores e caminhões, derrubava árvores, montava serrarias…, entendia tudo sobre madeira e máquinas pesadas.
Alguns imprevistos novamente aconteceram, porque tudo era velho e a necessidade de recuperação urgia. Não bastasse, o fim do inverno deixara a estrada péssima, sem atoleiros, mas com enormes crateras, ainda que secas. Enfim, a trancos e barrancos, chegou.
Na orla da estrada, o Gonçalo, primeiro e único cobrador até então, já o esperava. Simba saltou, abraçou-o efusivamente, foi logo metendo a mão no bolso, tirando um pacote de dinheiro e entregando-o a ele:
– Sei que ainda está faltando, mas vou te pagar o juros. Este aí é apenas para você não me bater logo na chegada. Vai tendo paciência mais um pouquinho, que tudo irá dar certo, conforme o seu e os meus planos.
Gonçalo apanhou o dinheiro, não conferiu. Apenas perguntou:
– Quanto?
– Trinta e sete paus.
– Você me trouxe só o juros, não é?
– Pô, Gonçalo, você ainda diz só? Se olhar direito essas notas, vai encontrar muitas manchadas de suor e até de sangue, tudo para não falhar com o nosso trato. Mas a coisa tá dura, cara. Os três mil que deveriam completar os quarenta estão aqui neste outro bolso. Reservei ele pra mim porque amanhã mesmo estou indo para Imperatriz. Preciso contratar um bom gerente e um ótimo mecânico. Veja aí o monte de ferro velho que vou usar para comprar toda sua área. É mole?
Gonçalo enfiou um pouco de dinheiro em cada bolso, e concordou. Por certo, nem precisava de tanto para os planos que a maioria dos caboclos aventureiros alimenta: boa noitada, com muita cachaça e mulheres a escolher. Quando já se preparava para sair, Simba confirmou:
– Foi por aqui mesmo que combinamos que eu podia instalar a serraria, não foi?
– Bem, foi mais acolá, mas qualquer lugar que escolher daqui até aquela cerca lá longe, não vai fazer diferença. Tudo aqui é meu.
– Então, vou descarregar tudo por aqui mesmo. Gostei mais daqui. Quando eu voltar escolho o lugar definitivo.
– Sem problemas, mas não esqueça do restante do dinheiro.
– Cara, isso é a coisa mais sagrada pra mim. Investi minha vida aqui, confiando em você e no resto daquelas matas que você disse que vão ser minhas…. Se eu pagar, é claro.
– Quando me pagar o restante deste primeiro negócio, iremos conversar sobre isso.
– Valeu! Agora ninguém mais me segura, Gonçalão! Olha, pelo amor de Deus, não vai vender o resto de suas matas para outro não, heim?!…
– Fique tranquilo. É só você não demorar demais, porque se eu ficar sem dinheiro, eu apelo.
E, com leve aceno, Gonçalo foi-se retirando. Em sua cabeça, sabe lá Deus… ou o diabo, os planos que arquitetava para aquela noite.
IX
Ao abrir a porta de minha casa, quase não reconheci o Simba: a cor da floresta parecia entranhada na pele dele. Assemelhava-se a um camaleão da floresta em seu mimetismo de defesa. Parecia-me 10 anos mais velho. Unhas grandes e sujas, hematomas, cicatrizes e feridas recentes ao longo dos braços, um dente incisivo precisando de tratamento urgente, olhos cansados, alguns cabelos agrisalhando, magro, muito magro. Tentei disfarçar o estado deplorável com que o via, mas ele percebeu:
– Estou um trapo, não é amigão?
– Bem, terei de plagiar parte de uma tirada do líder pacifista Mahatma Gandhi: de fato, nesses últimos anos, fisicamente, você não tem feito grandes progressos.
– É…., a empreitada foi dura, amigo, mas o pior já passou. Estou vindo lá do KM 117, na entrada daquela vicinal que o senhor foi comigo quando fui ver a mata, lembra? Estou lá com centenas de toneladas de ferros velhos: aquele maquinário que compramos dos Poncieris. E aqui estou para levar mais.
– Da entrada eu posso até esquecer, mas daquele paiol de ratos, nunca, ainda que eu viva mais que o longevo bíblico Matusalém. Depois de ter visto o que vi, acreditarei em só dez por cento sobre o perigo de doenças transmitidas pelos ratos.
– Pois é, amigo, além de ver o senhor, eu vim te pedir um favor.
– Pois fale, velho Simba.
– Queria que o senhor me emprestasse o carro ou fosse comigo até Buriticupu. Recebi informação que lá tem um homem que será perfeito para gerenciar meus negócios, principalmente no início.
– E quando quer ir lá?
– Agora, se o senhor puder.
Conhecendo-lhe a sofreguidão, assenti:
– Deixe-me calçar os sapatos. Irei com você. Estou maluco para saber das últimas.
Logo depois de um suculento café, partimos para Buriticupu. Como eu tivesse péssimas referências do lugar, brinquei:
– Que pistoleiro irá contratar por lá?
Simba riu, e por ter eu acertado quase na mosca, explicou:
– Sabe o que é, lá naquele fim de mundo, sem um cabra macho e de confiança, ninguém consegue nada. Não que eu esteja querendo contratar um “pistoleiro” para chegar lá, matar as pessoas para tomar o que é deles, como costumam fazer, mas preciso de alguém com coragem para defender as coisas que eu comprar. O senhor sabe que, na nossa família, qualquer mulher com uma vassoura na mão põe a gente pra correr. E lá, o que nunca falta é gente disposta a explorar a fraqueza dos outros.
– Ora, Simba, então está indo lá pra isso mesmo?
– Estou. Indicaram-me um tal de Feitosa, cabra que já enfrentou bandidos e pistoleiros e que está com marcas de tiro por todo o corpo. Isso não deixa de ser uma boa referência para eu contratar ele, o senhor não acha?
– Simba, não se meta com esse tipo de gente! Se você entrar, não terá mais como sair. Ainda está em tempo. É só a gente virar o carro e voltar.
– De jeito nenhum. Não estou indo chamar ele para matar ninguém, já disse. Apenas para não permitir que me tomem ou roubem as minhas coisas. O senhor sabe que estou lá para me tornar um homem poderoso e muito rico, mas apenas com o trabalho. Por lá ainda está fácil. O Governo ainda não se deu conta da riqueza que tem lá. Se meus cálculos não tiver errado, vou fundar um império naquele fim de mundo, o senhor vai ver.
– Buscar riquezas honestamente nada tem de errado. O que me preocupa é você se misturar com gente violenta.
– Ele não é violento, apenas corajoso. Não procura briga, mas não foge delas se for desafiado.
E meus conselhos pouco adiantaram. Simba sabia onde e como encontrar o que queria. Mal nos aproximamos de Buriticupu, ele tirou um papelzinho esgarçado, confirmou o endereço e foi direto a uma casa de madeira que ficava no fim de uma das ruas da pequena cidade, ou vila, nem me recordo mais. Parecia fechada, mas quando saltamos em tom amistoso, uma das janelas foi aberta e alguém perguntou quem éramos nós e o que queríamos.
– Sou Simba, o homem que seu amigo Zé Motta deve ter falado pro senhor. É sobre o senhor gerenciar minhas terras, lá no Pará.
Feitosa deixou a janela, abriu a porta e nos convidou a subir à varanda. Assim fizemos. Como eu vira uma pipira, desconhecida para mim, passar por nós e pousar num cacho de bananas maduras do quintal, pedi licença, dirigi-me para lá, deixando os dois totalmente à vontade para conversarem.
Simba sempre fora de muita ação e pouca conversa. Extremamente afoito, em menos de meia hora me chamou, dizendo que estava tudo acertado e que podíamos retornar.
Feitosa era um homem com seus 35 anos, no máximo um metro e setenta centímetros de altura, retaco, cor abacinada, olhos miúdos e bem embutidos na testa, todos os dentes na boca e bem claros e, também, de pouca conversa. Talvez por isso tenham se entendido logo. Com certeza, se Simba queria um homem que se impusesse em situações embaraçosas, tinha conseguido. Logo que nos afastamos, perguntei:
– E aí, contrataram-se?
– Ele vai. Disse que eu cheguei em boa hora, pois se permanecer em Buriticupu irá morrer ou ter que matar mais um. Se meteu numa confusão danada, matou um cara pra se defender e, há um mês, enquanto dormia em sua rede, alguém lhe encostou uma espingarda calibre 20 nas costas, puxou o gatilho e correu, na certeza de que a vingança estava consumada. Acontece que o Feitosa, graças a um bico de papagaio que só doía menos quando se deitava numa rede, de barriga pra cima e com um travesseiro escorando a coluna, se livrou da morte. Os grossos caroços de chumbo vazaram o travesseiro enchido com penas de galinha, penetraram no gordo lombo dele, mas não tiveram força para atingir o coração. Ainda está se restabelecendo.
– Simba – asseverei – não se meta com gente tão diferente de você. Isso é como acalentar cobra venenosa apanhada numa cova gelada: quando descongelar poderá picá-lo.
– É…., mas irei me prevenir com bom soro – pilheriou. Vou estar sempre de olho. Sei que não fomos criados assim, mas também nunca vivemos em lugares em que a gente tem de mudar a maneira de agir e de ver as coisas. Você conhece o dizer: na terra de sapos, de cócoras com ele.
– Bem, o que está feito, está feito. Tenha muito cuidado, tente sempre saber o que anda na cabeça dele. Jorge Amado, num de seus livros, afirma que bandidos e putas, quando fiéis, nenhuma mulher ou amigo de verdade são mais confiáveis. Vamos aguardar para ver. E, mudando de assunto: já tem em vista o mecânico que vai contratar?
– Já. Agorinha mesmo vou falar com ele. Sei que dorme cedo, mas creio que não antes das 10 da noite. Acho que chegaremos em Imperatriz antes disso.
– Com certeza – assenti. Já estamos no meio da estrada e alcançaremos Imperatriz em menos de duas horas.
De fato, às nove horas já estávamos conversando com o Raimundo, um baixinho que claudicava de uma perna e era maluco por música. Possuía uma infinidade de discos de vinil que qualquer colecionador ambicionaria. Sabia tudo sobre máquinas pesadas, apesar de viver dizendo que não morreria sem fundar uma banda de forró, abandonando, para sempre, o serviço pesado. Este também foi contratado e já deveria estar pronto para seguir para Uruará, uma semana depois, quando o Feitosa chegasse de Buriticupu e a serraria estivesse em cima do caminhão com julieta que a levaria para o novo destino.
Quando nos despedimos de Raimundo, estranhando que nada tivesse falado sobre Francisca, não me contive:
– Ué, Simba, não vai me dizer que já desistiu da Francisca?!
– Nem pensar. Já ia pedir pro senhor me deixar lá.
– Ela sabe que você chegou?
– Sabe não.
– E não tem medo de ter de pedir licença para entrar na casa em que paga o aluguel?
– Tenho não, amigo. Sabe, as coisas estão mudando. O senhor sabe que estou gostando dessa mulher? Aquele diabo não me sai do pensamento. Acho que estou mesmo é apaixonado.
– Apaixonado?
– É, apaixonado. Eu sempre a tive como mulher disponível para quando eu quisesse descarregar a espingarda, mas, ultimamente, as coisas estão mudando. Estou pensando em assumir a Francisca, definitivamente. Não penso nada sem que ela esteja no meio. Um pouco antes da gente sair de Novo Repartimento, ela esteve lá. Me tratou diferente, disse que está gostando realmente de mim e que irá se dedicar aos estudos.
– Você acreditou?
– O senhor acreditaria?
A inesperada devolução da pergunta deixou-me atônito, sem saída. Depois de um pequeno silêncio, retomei o fio da meada e respondi:
– Tanto é difícil acreditar, como não acreditar. Nesse caso, a gente deve escolher o que manda o coração, porque nessa questão de amor, ele é mais poderoso que a razão.
E Simba, sempre resoluto, agindo sem pensar em qualquer situação, completou:
– Pois é, me deixa lá. Se eu encontrar lá algum reserva, pedirei licença e assumirei o comando. Mas, se ela estiver sozinha, marcará mais um ponto comigo.
X
Acho que nunca irei entender como um ser humano pode ter tanta resistência física e força de vontade como o Simba. Na noite que chegamos de Buriticupu, ele deve ter dormido, ou melhor, permanecido deitado, menos de quatro horas. Foi dormir com a mulher e quando o dia amanheceu, ele já estava no Coco Grande, examinando e calculando como iria desmontar e alçar ao caminhão, mais um monte de ferro velho.
Como eu tivesse certeza do lugar em que ele se encontrava, tomei meu café, pedi à minha esposa para preparar-lhe um suculento misto, enchi uma garrafa térmica com café e leite bem quente e fui para o lugar em que se encontrava a serraria desativada havia quatro anos. Na sociedade que eu mantinha com mais três sócios, o pai dele fazia parte. Quando nos separamos, juntamente com outros imóveis, a serraria fez parte dos bens do pai do Simba, que nunca se preocupou com nada, nem antes, nem depois da sociedade extinta. Simplesmente recebeu a parte que lhe tocava e, na primeira oportunidade a transferiu aos filhos.
Era essa serraria que o Simba estava, com mais 15 empregados temporários, desmontando e arrumando em cima de um caminhão trucado com julieta. E, no meio de uma zoeira infernal, como sempre, transpirando aos borbotões, estava o Simba, alçando pesadas peças, dando ordens, agindo como se estivesse sob o fogo cruzado de Austerlitz. Foi preciso que eu o puxasse pela camisa para que tomasse conhecimento de minha presença:
– Pelo amor de Deus, Simba, onde encontra tanta obstinação e resistência? Pare um pouquinho e venha comer um sanduíche que minha esposa preparou para você.
– Puxa, amigo! Precisava não. Estou aqui como cobra venenosa alimentada pelo próprio veneno. No meu caso, o veneno é a ansiedade. Nem imagina como estou afobado para me instalar lá naquele fim de mundo. É lá que está a realização dos meus sonhos. Não sei se o senhor me entende, mas aquilo, para mim, é como uma jazida de ouro, bem por cima da terra.
– Eu sei, eu sei! Mas, não esqueça os velhos provérbios: “o apressado come cru”; “a pressa é inimiga da perfeição”…
– Pois é! Eu até acredito um pouco nisso, mas prefiro arriscar. Tenho pressa. Nem imagina quanta! Sempre fui assim.
E, um pouco mais calmo, depois dos primeiros goles do café com leite e da destruição do sanduíche em apenas quatro bocadas, arrisquei perguntar-lhe sobre a noite anterior:
– Foi ainda melhor do que eu pensava. Encontrei ela sozinha, estudando. Quando me viu veio correndo, me pulou no pescoço e me fez acreditar, mais uma vez, de que pretende levar nosso namoro a sério. Sabe, ela é uma mulher atraente e bonita e, se tomar jeito, poderá fazer a felicidade de qualquer homem. Não bastasse, só não quero ser avacalhado. Ela diz que está gostando de mim de verdade, que jamais conhecerá outros homens que não eu e que está precisando que eu confie nela. O diabo é que estou rezando para que ela esteja dizendo a verdade, porque, também eu, estou maluco pela bichinha. Estou dizendo isso porque confio no senhor e porque já se tornou meu confidente. Sei que não deve ser fácil ficar ouvindo minhas lamentações, mas se eu não contar pra alguém o que se passa aqui dentro do meu coração, acho que acabo explodindo. Acho que estou apaixonado como nunca estive na vida.
Depois de uma rápida conversa, Simba ergueu-se, esticou os mirrados e, ao mesmo tempo, fortes braços, agradeceu mais uma vez o café e pediu licença para voltar ao mister. Antes que mergulhasse no meio das ferragens, perguntei se devia voltar para apanhá-lo para o almoço, ou se preferia que eu lhe trouxesse a marmita. Lá de longe, ele gritou:
– Se ainda tiver saco pra me aguentar, traz a marmita pra cá, porque avisei a Francisca que só voltaria à noite. Quero que quando o Feitosa chegar, tudo já esteja pronto para a viagem.
– Okey. Ao meio-dia estarei de volta. Bom trabalho e vai com calma. Cuidado com minhas canelas. Está lembrado do inventário?
É que eu sempre brincava com ele, dizendo que, quando ele morresse, eu queria aquelas tíbias resistentes e quase expostas, para fazer um cabo de facão.
Ele voltou-se e lembrou-me:
– Se depender de mim, seu facão vai ficar sem cabo por muito tempo ainda. Infelizmente, vou ter que mijar em cima de sua sepultura, velho amigo.
Rimos e nos despedimos com um breve aceno de mãos.
XI
Imagino que jamais irei conhecer um homem com tantas qualidades para definirem determinação e persistência com tanta probidade, como as encontradas em Simba.
No sétimo dia, a serraria já fora desmontada e se encontrava sobre o caminhão, em frente à porta de minha casa. Só quem lida com ferragens pesadas, velhas e enferrujadas para aquilatar a luta que se tem para desmontar uma velha serraria. E o Simba, andando sempre de um lado para outro, lastimava a perda de tempo:
– Puxa vida! Nessa hora eu já podia estar pra lá de Augustinópolis. Eu devia ter marcado com o Feitosa para ontem.
Diante de tanta sofreguidão, repreendi-o:
– Simba, pelo amor de Deus, as coisas não podem ser desse jeito. Tenha calma, homem de Deus! Você ainda é muito novo. Pode deixar que haverá tempo para você derrubar, transportar, serrar, beneficiar e exportar todos os ipês da Amazônia.
– É, mas se eu morrer antes da hora, sem ter tempo de realizar meus planos?
– Que planos, cara? Ninguém deixa este mundo antes do tempo concedido por Deus. A gente, quando nasce, já vem programado. Somos peças que serão utilizadas pelo Grande Arquiteto na construção do reino dEle.
– Vou me tornar um homem poderoso, muito rico. O senhor ainda vai se orgulhar de mim, aguarde.
– Bem, Simba, dou a você todos os descontos possíveis e mesmo assim sou obrigado a frustrá-lo, dizendo que mesmo que isto aconteça, não irei admirá-lo mais do que o admiro hoje. Falo assim porque já fui ganancioso, já lutei, briguei, só não matei gente porque consegui reaver, sem morte, o que me haviam tomado. Só agora, com a chegada dos anos, percebo o quanto fui inconsequente, jogando todas as minhas cartas em coisas que não levarei daqui. Tenho certeza de que irá alcançar seu objetivo, mas sei também que irá envelhecer e, como eu, perceber o quanto se desgastou inutilmente. Quando estiver rico e poderoso – escreva aí em algum lugar – você terá mais problemas do que centavos no bolso.
– É nada, amigo! Com dinheiro a gente resolve tudo.
– Quase tudo, Simba. Você ainda não avalia a força da inveja e da ganância. Dificilmente um grande empresário é amado pelos seus funcionários. E os mesmos que irão circular em sua casa, curtindo confiança, bajulando você, comendo do seu churrasco, bebendo de sua cerveja, irão preparar-lhe armadilhas. Fique atento, porque conhece minha língua.
Sentindo que a conversa estava minando seus planos, Simba desconversou:
– Bem, cada coisa em seu devido tempo. Tudo o que eu conseguir com meu suor, não entregarei a ninguém, ainda que eu tenha…
Antes que concluísse seu pensamento, interferi:
– Ainda que tenha de dar trabalho ao Feitosa.
– Nem estava pensando nisso, mas se for preciso, ele vai ter que trabalhar mesmo.
Depois do banho, convidei o Simba para comer um espetinho. O convite fora uma estratégia para ficar a sós com ele, porque sentia a necessidade de, ao menos, tentar demovê-lo de algumas ideias fixas. Lá, depois que ele degustou com prazer uma cerveja, arrisquei:
– Bem, já que me tem como confidente, vamos conversar mais um pouco. É possível que possa aproveitar alguns de meus conselhos. Ajudei a criá-lo, carreguei você no colo, vi você crescendo, construindo carrinhos de pau, frequentando as escolas cheio de má vontade, abandonando os estudos, trabalhando com máquinas pesadas, enfim, não fossem infinitas as vicissitudes humanas, poderia dizer que o conheço como a palma de minha mão. Quero que saiba que tudo o que fizer, mesmo sendo coisas erradas, não será tão culpado. É que a gente nasce programado, ou como já foi dito, somos produto do meio em que vivemos. Sem contar a genética que já nos predispõe a ser o que somos, mesmo à revelia de nosso consentimento.
– É, isso eu não posso negar.
– O problema é que, mesmo sendo criado aqui no meu colo, e de seus pais jamais praticarem atos que pudessem servir-lhe de mau exemplo, você está fugindo dos trilhos, não está sendo o tal produto do meio.
– Êpa lá! O senhor não está achando que irei virar um bandido, tá?
– Ainda não, mas a ocasião – já reza o velho brocardo – faz o ladrão. Eu jamais irei aceitar vê-lo cercado de pistoleiros ou com gente afim. Isso é um labirinto, Simba.
– O Feitosa não está indo comigo para matar ninguém, já falei. Mas o senhor sabe que é preciso alguém de pulso e coragem para lidar com centenas de peões, que é o mínimo que vou ter logo, logo.
– Quanto a mim, sempre tive medo de possuir mais que o necessário, ou, se preferir, de ser muito rico. O que tenho observado é que, primeiro, dificilmente se fica rico honestamente; segundo, ainda que isso aconteça, os ricos são sempre alvos da inveja e da traição dos próprios funcionários, antes, de confiança. Não bastasse, quase todos os afortunados têm os corações endurecidos, tornam-se exageradamente apegados às coisas materiais, esquecem os verdadeiros valores espirituais, enfim, acabam, mesmo na riqueza, tornando-se solitários e até odiados. Ao invés de amigos, são cercados por puxa-sacos interesseiros. E esses são os mais perigosos, porque nunca irão se conformar em perder a teta. São os espertos goderos rondando os ninhos dos tico-ticos.
– Vamos ver no que vai dar. O certo é que não retirarei uma vírgula de meus planos. Já está tudo aqui na cabeça. Depois, acho que ficar rico com o trabalho não desmerece ninguém.
– Com certeza, mas estamos tratando aqui da constatação dos problemas que a riqueza excessiva acarreta. Você já viu um grande milionário passar meses de férias em pescarias; ficar longos minutos batendo um papo com um filho, com a mulher ou com os amigos? Está sempre ocupadíssimo, com uma centena de problemas a resolver. É uma diferença no extrato bancário; um negócio que não deu certo; uma fazenda em que o gado está morrendo; um apartamento em que o inquilino está inadimplente; um carro acidentado; uma multa astronômica em uma de suas empresas, e por aí afora.
– Sempre digo, com dinheiro, tudo se resolve. Não bastasse, enquanto há prejuízos por um lado, há outros bons negócios rendendo. Dinheiro atrai dinheiro. Como diz a Bíblia (ela diz isso mesmo?), “quem muito tem, mais lhe será dado e quem não tem, até o pouco lhe será tirado.”
Diante da citação bíblica, não contive os repuxos faciais do riso. O Simba citando a Bíblia! Estava certo de que, apesar de ter sido, durante muitos anos de sua vida, obrigado a rezar o terço ao lado da mãe, já não conseguiria recitar uma simples Ave-Maria. Nunca mais, nos últimos anos, alguém o viu fazendo o sinal da cruz. E ele, lembrando-me de que meus conselhos não eram bem-vindos, enterrou-os de vez:
– Sabe o que é, caro amigão de fé, eu preciso provar que sou um homem forte. Vou ter dinheiro para arranjar quantas mulheres eu quiser, desfilar com elas em carros importados e nunca mais me preocupar com a miséria.
E então, pela primeira vez, Simba abriu o baú de muitos segredos, até então guardados a sete chaves. Ouvi planos e sonhos inimagináveis até aquele momento.
Extremamente surpreendido com o que acabara de ouvir, chamei o garçom e pedi a conta. Com certeza, daquele minuto em diante, eu teria de refazer meus conceitos. Simba podia não ter diploma universitário, mas tinha todos os da vida. Só ele e Deus tinham acesso à senha que abria as recônditas páginas de sua vida.
XII
Quando seus irmãos regressaram das férias, preocupados com o início da nova vida: transportar as velhas máquinas adquiridas até Uruará, arrebanhar funcionários, escolher lugar adequado para instalar a indústria, ir a Imperatriz desmontar e transportar a serraria, contratar gerente e mecânico…, e encontraram, às margens do KM 117, até a área da indústria já rapada pelos tratores, ficaram pasmos. Entreolharam-se e nada precisou ser dito: com um irmão como o Simba, eles podiam entrar de cabeça que seriam donos de boa parte da Amazônia. Era só acreditar e deixar que ele comandasse o timão.
Sempre esbanjando otimismo, mal os viu, Simba acorreu:
– E aí, recuperaram as forças para a nova e última empreitada da vida?
– Sou obrigado a confessar – respondeu boquiaberto o mais novo, Benjamim – que não tenho mais dúvida de que essa loucura vai dar certo.
– Como não dar – interferiu o Heitor – se para o Simba não existe problema?
Esfregando a mão sobre a sobrancelha para retirar os filetes de suor que ameaçavam não respeitar a barreira dos cílios, Simba, com mais esta dose de reconhecimento que, diga-se de passagem, sempre lhe fora uma necessidade, disse:
– Vão pegar na graxa com as domingueiras mesmo, ou vão desentocar os trapos do Pacajá?
– Com certeza, desentocar os trapos, porque o tempo das vacas magras continua, e deve continuar por bom tempo – responderam quase em coro.
E, qual uma ventania de direção incerta, Simba ia distribuindo ordens, comandando as ações, jamais fugindo de qualquer trabalho, por mais difícil e pesado que fosse. Aliás, ele fazia questão de participar de todos os considerados mais difíceis. Isso o definia como líder nato. Os irmãos reconheciam esse dom do irmão e não impunham qualquer obstáculo, mesmo porque, todos os problemas recairiam sobre ele.
Os madeireiros, donos de posses, pessoas desempregadas, gente de todos os cantos e naipes, em menos de uma semana já faziam fila para ser contratados. E o Simba, eufórico e quase realizado, distribuía otimismo, dizendo que tivessem paciência porque, em menos de um ano, ele daria emprego a todos que quisessem trabalhar:
– A gente vai fundar um império aqui, turminha, vocês vão ver. Essa parte de cima da estrada eu vou comprar para que todos construam casas para suas famílias. A vila será chamada Vila Novos Sonhos, porque aqui, todo sonho será realizado. Por enquanto, temos de construir a serraria e abrir as estradas até a mata. Aí, sim, haja gente pra trabalhar!
E todos os que vinham voltavam cheios de esperança. A maioria era formada de amazonenses, posseiros antigos que esperaram décadas para levar alguma vantagem financeira sobre as terras devolutas. Simba atendia todo mundo, sem distinção aparente. Um homem, porém, de nome Judas, chamou-lhe a atenção. Apresentou-se, ainda que novo, como pai de quatro filhos. Apesar dos cabelos lisos, era de cor negra. Alto, forte, com um bigodão que logo lhe valeu o reconhecimento cartorial, passando de Judas para Bigode ou Bigodão. Não sei se aquele bigode se devia à vaidade, pois lhe faltava um incisivo, ou se o tinha, até mesmo sem o saber, como marca enrustida de sua má índole. O certo é que Simba simpatizou-se com o crioulo e o teve como um dos primeiros funcionários. Disse-lhe que podia começar no dia seguinte, ajudando-o a montar as peças mais pesadas, a preparar os esteios e todo madeirame da indústria. E Bigodão nem precisou de muita conversa para conseguir emprego também para seu filho mais velho, apelidado de Sarará, que viria como ajudante em seu trabalho com a motosserra.
Foram, podemos dizer, terríveis os dias que se seguiram. Sem dinheiro e precisando dele a cada minuto, Simba apanhava empréstimo de todos que confiassem nele. Comprava fiado quanto podia. Como garantia, o otimismo, a coragem, a prova diária de que qualquer um pode vencer com o trabalho. Não bastasse, o IBAMA ainda não havia se preocupado com aquela parte da Amazônia. Tudo era livre e sem qualquer impedimento. Fiscalização federal, estadual ou municipal, por ali, ninguém conhecia nem ouvia falar.
Simba, apenas com o ginasial mal feito, logo que lhe sobrou algumas horas, viajou para Belém para reiterar-se de como funcionava a exportação. Nunca havia exportado nada e ficava maravilhado quando dela ouvia falar. Devia – para ele – ser um bicho-de-sete-cabeças, mas, que mesmo tendo sete cabeças, não o amedrontava. Nada mais podia ameaçar seus planos. O pior estava feito. As sementes estavam plantadas e já nasciam viçosas e promissoras.
Não entendia nada de dólar, de cotação, de câmbio…, mas iria entender. Procurou um escritório que assessorava indústrias que ofereciam produtos para serem exportados. Gostaria de fazer tudo por sua conta, mas achou muito complicado. Por isso, combinou o valor da assessoria e já deu o prazo aproximado de 70 dias para embarcar as peças de ipês, conforme bitola cedida pelos assessores.
Nesse escritório havia um pedido de uma firma canadense quase impossível de ser atendido, porque as peças teriam de ser enormes, de ipê, e sem qualquer defeito. No entanto, o preço era tentador. Mais uma vez, para o Simba, isso não seria problema. Anotou telefone, marcou os dias e os horários que deveriam se falar, já que, para isso, teria de buscar cidades em que houvesse comunicação. Só depois que tudo ficou resolvido é que ele se deu o direito de procurar um restaurante para forrar o estômago. Dali mesmo partiu para a rodoviária. Simba terminava um trabalho, partia para o seguinte, jamais se preocupando com o relógio. Na rodoviária ele saberia do primeiro ônibus e, se só saísse pela madrugada, ele esperaria.
Com seus quase 30 anos, não se lembrava – mesmo em seus tempos de criança – de ter parado um minuto para relaxar. Trabalhando ou brincando, sempre estava ocupado. Se convidado a parar para descansar, ele plagiava Tancredo Neves, dizendo que, para isso, ele teria a eternidade.
XIII
Simba desembarcou às margens da Transamazônica com uma pasta cheia de anotações. O que havia de endereços de advogados, de escritórios de exportação, de despachantes para a papelada…, com certeza, qualquer grande empresário aprovaria. A pasta ainda era de plástico, dessas encontradas em qualquer livraria do interior, mas em breve seria uma OO7, com cadeado e senha. Seu surrado tênis, que permitia ao mindinho boa refrigeração, mas que vivia protegido por velhos trapos de pano, a fim de minimizar os escalpelos naturais, seria substituído por um sapato Luís XV, diretamente vindo da França; a camiseta de propaganda daria lugar a uma camisa de seda chinesa, bem mais chique do que a usada pela noiva do imperador Huang Ti; suas viagens de ônibus ficariam apenas como lembrança: passaportes e voos para o exterior ficariam no lugar; a calça deveria ser jeans, de marca – disso ele não abriria mão – porque sempre olhou com inveja os grandes empresários que conheceu: gorduchos arrochados como se fossem cavalos encilhados para longa viagem. Mulheres!… Bem, as pobres lavadeiras de beira de estrada que o perdoassem, pois, algumas modelos lhes seriam concorrentes.
Como escritório ainda não havia, ele deixou tudo em cima da rede do barraco coberto com folhas de amianto, que era o lugar, inclusive, em que dormiam. Nem olhou para os lados, partindo logo para o lugar em que os irmãos estavam cavando as valetas que receberiam areia e cimento: base para sustentação da pesada e principalmente, do carrinho que receberia e transportaria as toras para serem esfatiadas nos moldes dos pedidos.
– E aí, “turminha do bambu-amarelo”, já posso arrastar a base da Sheffer? – já foi gritando de longe, o sempre alegre e espalhafatoso Simba.
– Homi! – retrucou o Heitor – sacudindo as mãos para se livrar da terra vermelha impregnada em cada poro do corpo suado.
“Turminha do bambu-amarelo era reminiscência dos tempos de menino. Naquela época, a criançada conseguiu uma bola de borracha, não se sabe de quem, e em qualquer folga partia para a pelada. Lá em Marilândia, no Espírito Santo, vila em que Simba nasceu e passou boa parte de sua infância, o único lugar menos acidentado, e com alguma grama rasteira, ficava ao lado de uma touceira de bambu-brasil, assim chamado porque apresentava os gomos listrados de verde e amarelo. O diabo é que o lugar era de propriedade de um italiano encrenqueiro, que jamais aceitava crianças malinando por lá. No começo, mesmo sob protestos verbais, ele deixou passar, mas tão logo a água que utilizava em sua casa – e que vinha da nascente próxima à touceira de bambu – caiu barrenta nas torneiras, veio o conflito direto. Correu para lá e flagrou os moleques esbaldando-se, pelados, no poço de sua água de serventia. Diante da “expulsão sumária”, com varadas de guaxima pelo costado dos retardatários, toda a comunidade protestou, mas não teve jeito. Por causa dessa demanda, o “bambu-amarelo” nunca mais foi esquecido.”
“Há também a interjeição “homi”, uma corruptela de homem, criada pelo avô do Simba, que sempre a usava quando desejava dar a ideia do “não duvide”. Por isso, sempre que possível, os netos a empregavam como forma carinhosa de manter viva a imagem do avô.”
Ao notá-lo, todos foram saindo de dentro da valeta para abraçar o herói daquela loucura. Não havia problemas que Simba não tomasse para si. Com isso, os irmãos não estavam mais se lamentando pela falta de nada. Era só um cobrador chegar, e os três indicadores apontavam para o “responsável”. E Simba, longe de se aborrecer. Aliás, estava feliz por saber que era capaz de enrolar meio mundo e, principalmente, por ser reconhecido pelo supremo esforço de mandar a miséria para longe. Mais uma vez – como reza o mandamento único de um verdadeiro líder – Simba pulou para dentro da valeta, apanhou um enxadão e, como se estivesse cheio de ódio, começou a ferir a terra. Três cavoucavam e um jogava a terra escavada para fora.
À noite, extenuados nas redes, os planos para o dia seguinte:
– Alguém tem de acompanhar o serviço de extração. O trator já está no meio dos ipês e em menos de um mês quero estar serrando a todo vapor.
Artêmio foi designado. Heitor e Benjamim continuariam trabalhando ali mesmo, sempre assessorados pelo Simba.
Vinte dias depois foram serradas as primeiras tábuas de madeira branca. Nem bem caíam do carrinho, já eram retiradas pelos futuros funcionários. Dezenas de casas de madeira foram surgindo pelos derredores da madeireira. Estava lançada a pedra fundamental da Vila Novos Sonhos.
Enquanto a serra-fita preparava madeira para as casas, os tratores continuavam abrindo estradas em busca de ipês, cedros, sucupiras, freijós e outras madeiras nobres preferidas pelos importadores.
Quatro carpinteiros foram fichados e os barracões foram tomando forma: quartos, escritório e dois imensos galpões, um para a serraria e outro para a estocagem da madeira preparada para a exportação. Dinheiro, só promessa.
Mesmo sem receber um centavo, ninguém se negou a trabalhar. Simba os reunia e explicava o grande negócio, dizendo que, com os ipês praticamente de graça, com seu valor no exterior 10 vezes a mais do que no comércio interno, com o dólar perto da casa dos quatro reais, com certeza o sufoco só iria até o envio do primeiro navio. E todos acreditavam, porque o que Simba dizia, era evidente, real, coerente e palpável.
XIV
Enfim, as peças de ipê espessas e compridas exigidas sem qualquer defeito pela firma canadense ficaram prontas. Um despachante especializado em exportação, vindo de Belém a peso de ouro, preparou toda papelada, conferiu as peças solicitadas, aprovou-as e disse que o navio estaria no Porto de Vitória – PA, perto de Altamira, esperando pela carga, durante os próximos 10 dias.
Como havia acordado que o pagamento da comissão só seria efetuado depois que a remessa dos dólares equivalentes chegasse ao Banco do Brasil de Altamira, em nome da madeireira remetente, o assessor tomou o primeiro ônibus e retornou a Altamira. Dali seguiria de avião para Belém.
Três caminhões deveriam trabalhar dia e noite para fazer com que a carga chegasse no tempo estipulado. Às 13h do dia seguinte, eles partiram num pequeno comboio rumo ao Porto de Vitória. Simba ia num deles: precisava ver de perto como tudo funcionava. Trabalhava o dobro dos irmãos, mas, em contrapartida, sabia bem mais que o dobro de todos eles. Preguiça, nunca soube o que era.
Quando os três caminhões se eclipsaram na primeira curva da Transamazônica rumo ao Porto de Vitória, Heitor, Artêmio e Benjamim, enfim, expiraram fundo, descarregando a pressão do ar dos pulmões, ali retidos devido a expectativa de como aquilo iria terminar. Almoçaram e, pela primeira vez, aproveitando a chuva que caía, recolheram-se nas redes para uma boa e merecida sesta. Antes, como acalanto à chegada do sono, algumas considerações:
– E não é que esta porra vai dar certo mesmo? – observou alegremente, o Heitor.
– É…., não tem mais como dar errado – observou o Benjamim. Nem imagina quanta coisa fiz de má vontade, desde que nos metemos nessa empreitada, seguindo o maluco do Simba. Não gosto nem de pensar naquela tarde quando chegamos ao Novo Repartimento! Juro que me deu vontade de desertar como soldado covarde e voltar pro meu empreguinho lá na Vale do Rio Doce. Era pouco, mas, seguro. Naquela noite lá no Repartimento senti as coisas fugindo do controle e jurava que a gente ia continuar pobre para sempre, apenas com a diferença de passar por caloteiros e ter o nome sujo pra toda vida.
– Não sei não – completou o Artêmio – acho que estamos devendo mais de um milhão de reais. Não sei como o Simba está conseguindo empurrar tanta gente com a barriga! E o dinheiro desta primeira viagem, até que o carregamento chegue no Canadá; que eles paguem; que o dinheiro chegue na nossa conta, deve demorar mais de um mês. Até lá, nossa dívida deve chegar nuns dois milhões. Será que a turma que a gente deve vai esperar mais esse tempo?
A esta altura, Heitor nem mais respondeu e Benjamim apenas encerrou o papo com um monossilábico, é. Artêmio virou-se de lado, puxou para dentro a perna esquerda que estava dependurada na rede e começou a roncar em fração de segundos.
E a sesta, reconhecida como soneca ou pequeno descanso, desta feita foi cumprida à risca: um dos caminhões que transportavam a madeira para o Porto, patinando na subida do primeiro morro, desceu na vala feita pela enxurrada e por pouco não tombou. Simba retornou sem qualquer desânimo e foi logo gritando:
– Turminha, aconteceu um pequeno imprevisto. (Todo problema, tendo solução, para ele era pequeno.) O caminhão do Avelino escorregou e caiu na vala. Só a carregadeira para retirar ele de lá sem que tombe de vez. Primeiro temos que arrumar a carga que ficou pendida e, depois, puxar o caminhão para fora do buraco.
– Putaquepariu – vociferou o Benjamim. Será que é preciso mesmo sofrer tanto para se ter alguma coisa na vida? Acho que nem a miséria é pior.
– Esquente não – continuou o Simba. O caminhão está logo ali na frente. Daqui até lá não dá nem 30 km. A carregadeira vai rodando mesmo.
– Deus me livre – retrucou o Heitor. Para andar 30 km ela levará meio dia. O Joca chegou com o Mercedes dele e está descarregando. Vamos botar a máquina em cima do estrado, amarrar bem e levar ela até lá.
– É…., acho que fica melhor e mais rápido – aderiu o Simba. O importante é a gente resolver este probleminha o quanto antes. Temos prazo de deixar a madeira toda no navio em 10 dias, mas, com uma semana, quero ver baixo o casco do canoão.
Nesse tempo, por insistência da mãe deles que muito dizia me considerar, eu estava viajando para Uruará. Eu sempre fora dependente de caçadas e pescarias e Simba me falava maravilhas sobre os rios e as matas dos fundos da área que ele e os irmãos compraram. Aliás, eu lembrava bem do tempo em que passei naquela casa de ratos, invadida pela velha Alzenira e seu neto Jacinto. Os inhambus piavam por todos os lados.
Já estava a caminho havia um dia e meio e acabara de passar por Medicilândia. Lembrava bem de que, dali à serraria do amigo Simba, eram menos de 70 quilômetros.
Um pouco mais à frente, ao atingir o início de um declive, vi, lá no meio da descida, o que me pareceu um acidente grave. Havia uma máquina tombada. Estava com os pneus para cima, no meio da estrada e, ao lado, um caminhão no barranco, com muita madeira espalhada. Fui descendo devagarzinho e, qual não foi minha surpresa ao deparar-me com Simba e seus irmãos.
A carregadeira, que viera para resolver o problema, aumentou-o. Ao erguer com o garfo uma pesada “amarrada” que ameaçava cair, a máquina desgovernou-se, o bloco de madeira escorregou para a ponta do garfo e a carregadeira foi de pernas para o ar, ou melhor dizendo, de pneus para o ar. Havia apenas acontecido, motivo pelo qual vi meus amigos com as mãos nas cadeiras, desolados, tentando organizar algum pensamento que levasse à solução de mais aquele, para o Simba, probleminha.
Estacionei de lado, desci e fui cumprimentá-los:
– Puxa!, nem irei perguntar como estão, pois reconhecer isso como desgraça, será eufemismo.
Depois dos tradicionais abraços, tentei também fazer valer minha opinião, no sentido de prestar alguma ajuda. No entanto, em matéria de resolver problemas aparentemente insolúveis, ninguém precisava procurar outro, tendo o Simba por perto. E ele logo sentenciou:
– Gente, o certo é ir buscar o trator, mas acho que se um caminhão pesado, através de um cabo de aço, forçar este lado ali, a máquina destomba. Temos apenas de achar um meio dela não escorregar. Pra isso, vamos enfiar esteiotes em cada lado dos dois pneus para que eles não escorreguem.
Não havendo ideia melhor, logo o cabo de aço foi amarrado e os calços aplicados. E como se fosse contratado, um caminhão adequado à operação do Simba chegou. Estava lotado de madeira em toros: peso ideal para desvirar a máquina. Em menos de uma hora, a carregadeira estava de pé. O pouco óleo que vazou do motor, medido o nível, não prejudicaria o seu funcionamento. Então, Simba disse que precisaria refazer toda a carga, descarregando, pondo o caminhão na estrada e carregando-o novamente. Tudo foi feito e, antes da meia noite, a viagem continuou e chegou ao Porto de Vitória.
Heitor, Artêmio e Benjamim retornaram, e Simba seguiu com o caminhão, alegre, espalhafatoso, aparentemente, muito feliz. O resto da noite, enfim, os três puderam dormir. Simba chegou no dia seguinte, um pouco depois da hora do almoço. Olhou o relógio e comentou em voz alta aos três que tiravam uma soneca:
– Bem, estaria mentindo se dissesse que não estou cansado, mas precisamos ajudar a carregar os caminhões novamente. Estou no veneno e quero aproveitar. Por isso, vou até o limite de minhas forças pra ver esta joça funcionando. Funcionando e dando certo. Dando certo e muito dinheiro. Muito dinheiro e muitas negas, hahahahahahaha.
Os três acordaram, espreguiçaram-se e desceram das redes. Lavaram os rostos e foram para a cozinha improvisada, onde o café das três já estava pronto. Uma suculenta broa de fubá acabara de sair do forno a lenha. Aquela broa fora-lhes, durante anos, o alimento mais desejado. Não apenas porque não havia coisa melhor, ou porque eles estivessem sempre famintos, mas pela razão de que era, de fato, saborosa. Eu mesmo me empanturrei e saí falando maravilhas, elogiando a cozinheira: uma morena cor de jambo, corpo bem delineado. Diante de meus excessivos elogios, o Simba avisou:
– Essa, velho amigo, ninguém tasca: já é minha. Pode procurar outra. Ser gostosa é mal de família lá na casa dela. O senhor precisa ver a mãe! Pra idade do senhor, até que ela cairia bem. E riu-se a valer.
Há muito Simba não falava sobre mulheres. Apesar de ser um inveterado namorador, os compromissos, o corre-corre, a falta de tempo, de dinheiro e as tantas preocupações haviam-lhe amordaçado a libido. E de acordo com que os maiores problemas iam sendo resolvidos, a testosterona reaparecia, mostrando as unhas ameaçadoras.
XV
O advogado/assessor de Belém mandou avisar que o dinheiro já estava na conta da madeireira: 636.135 dólares, mais de dois milhões de reais. A notícia chegou através de uma carta com envelope lacrado, entregue a um dos funcionários à beira da estrada. O motorista da Van apenas perguntou se ele trabalhava ali, se conhecia Simba. Entregou a encomenda, pedindo ao rapaz que a levasse ao destinatário.
O funcionário já estava indo para casa, pois os trabalhos daquele dia haviam sido encerrados, mas, voltou e foi ao barraco dos patrões. Eles estavam jantando, conversando sobre a demora e os tantos problemas que, já nem o Simba, com todo seu jogo de cintura, sabia mais como contornar. Os credores estavam impacientes, no limite, com alguns já dando mostras de que estavam lidando com caloteiros.
– Seu Simba, o motorista da Van deixou esta carta aqui pro senhor.
Eles se entreolharam desconfiados, mas não sem uma nesga de humor:
– Deve ser uma ordem de prisão – falou o Benjamim.
Simba apanhou o envelope, tentou saber de quem e de onde vinha, mas não havia remetente. Como suas mãos endurecidas de calos estavam dificultando abrir o envelope, ele usou os próprios dentes. Depois, apanhou o papel, olhou, olhou, e ao se deparar com a notícia, começou a tremer, empalideceu, respirou fundo e pediu que os irmãos o ajudassem, pois se sentia desfalecer.
– Pelo amor de Deus – implorou o Heitor – papai morreu? Alguém da família? Diga aí, pelo amor de Deus, homem!
E, depois de um copo d´água com açúcar, a cor começou a voltar, e Simba, pulando pra cima do pranchão que servia de mesa, gritou como se tivesse perdido a razão por completo:
– Enfim, enfim, enfim, meu Deus! …
– Enfim o quê?, gritaram os três ao mesmo tempo como se tivessem ensaiado o grito.
– Enfim, o dinheiro chegou. Neste exato momento, nossa nova vida começa. Está neste papel o resultado dos tantos sofrimentos que plantamos e regamos com nosso suor. Está aqui, manos, o comprovante de 636.135 dólares depositados no Banco do Brasil de Altamira, em nossa conta. Seiscentos e trinta e seis mil dólares! Já pensaram nessa quantidade transformada em real? Como está a cotação, hoje? Vocês ouviram? Puxa!, temos de saber. Alguém tem de dar um pulo lá em Uruará para saber. Não fecharei os olhos hoje sem saber quantos reais temos. Meu Deus, quanta luta, quanta espera! Hoje, dia…. dia…. Que dia é hoje? Bem, seja lá que dia for, amanhã a gente anota. Hoje estamos recebendo a taça de campeões. Campeões de determinação, de querer, de acreditar, de não esmorecer, de lutar e lutar como doidos.
Em seguida, Simba desceu da mesa e começou a pular, a imitar índios na dança pela chuva. Os irmãos se juntaram a ele e, como loucos, pularam em volta da mesa. Alguns funcionários que passavam por ali pararam e ficaram atônitos ante aquela demonstração de loucura. Que estaria acontecendo? Terminada a dança, Simba disse que iria até Uruará para saber da cotação, e nisso não foi sozinho. Todos quiseram ir, porque a necessidade de festejar aquela conquista era bem superior àquela que agracia um ganhador solitário da Mega Sena acumulada: vinha de anos de luta honesta e sobre-humana.
E os quatro, rindo e falando ao mesmo tempo, foram à cidade que distava apenas 117 km e, como o posto de combustível era-lhes um entre os grandes credores, nele pararam. Só ali a despesa já passava de cem mil reais. Foram diretamente ao escritório que, por sinal, já estava fechando. O proprietário, imaginando que fosse mais um pedido de paciência, recebeu-os com reservas.
Simba o abraçou e brincou:
– E aí, camarada, ainda temos crédito?
– Bem, crédito até que eu podia dar, mas é que não tenho mais dinheiro para comprar combustível. Tenho confiado em mais gente que vocês e todos parecem que estão passando por problemas financeiros terríveis. Infelizmente…
– Mas, seu Manoel, se eu pagar o que devo ao senhor, amanhã, o senhor nos reabre o crédito?
Seu Manoel, diante da euforia que os quatro estavam demonstrando, não teve como duvidar que, enfim, tinham recebido o tão propalado e milagroso embarque de que tanto falavam na hora de dobrá-lo para mais cinco tambores de diesel, fiados. Mesmo assim, quis certificar-se:
– E aí, o dinheiro chegou?
– Enfim, seu Manoel, enfim chegou. E chegou bonito e muito. Foram 636.135 dólares e já estão na nossa conta. Estamos passando aqui para desejar a você a primeira noite de sono tranquilo nesses últimos meses e saber qual a cotação do dólar, hoje.
– Bem, não mexo com dólares, mas, se não me engano, está perto de quatro reais. Passa de três e sessenta, disto estou certo, porque ontem ouvi bem e me lembro ainda.
Simba correu para o carro, apanhou a esferográfica, um pedaço de papel, debruçou-se sobre o capô e começou a conta. Os outros três e o próprio proprietário do posto – também cheio de curiosidade interesseira – pareciam subir aos ombros do Simba. E faz e refaz, ouve observação de que 9 x 6 eram 54 e não 63, para, enfim, o veredicto:
– Manos, temos hoje, no Banco… – e escondendo o papel atrás de si – solfejou seu refrão de suspense: tcham, tcham, tcham…
– Fala logo, desgraçado – vociferou, nervoso, o Artêmio.
Então, o Simba, mais cruel que uma apresentadora de TV que não sabe como usar o tempo do programa, apelou mais um pouco para valorizar o momento:
– Tcham, tcham, tcham!…
Nisto, o Artêmio, homenzarrão com quase dois metros de altura, 98 quilos de músculos distribuídos num reforçado esqueleto, grudou o Simba pelo pescoço, e, entre risos, ameaçou:
– Fala agora ou vou ter que fazer a conta outra vez.
– Tá bem, tá bem. Tire estes grampos de trator de destocar fazenda de meu pescoço, para eu poder falar bem alto.
E, então, sonoramente, ele pronunciou, devagarzinho, número por número: R$2.290.086,00.
Por lá, nesse tempo, ainda não havia o perigo, não só de dizer que possuía em banco tamanha quantia, como tê-la, integralmente, numa bolsa a tiracolo.
E ao entrar na velha camioneta Toyota, Simba acelerou fundo, quase provocando um cavalo-de-pau, ao que o Benjamim gritou lá detrás:
– Seu desgraçado, está querendo matar a gente bem na hora de meter a bufunfa no bolso? Se ainda estivesse sozinho, eu até que não ia reclamar, porque era uma parte a menos para dividir.
E rindo, felizes, retornaram à serraria. Na entrada, Simba parou, saltou do carro, deu uma olhada para todos os lados e sentenciou mais uma vez:
– Amanhã mesmo vamos começar a segunda parte de nossos planos. Vamos pegar tudo o que for pedreiro e carpinteiro, de Altamira até Santarém, e botar pra quebrar. Em menos de 90 dias quero ver aqui, a mais bem montada indústria da Transamazônica. O mapa já está aqui na cachola. O escritório vai ficar ali (e apontou para a parte esquerda em que o terreno era mais alto); a serraria principal ficará por comprido, lá no meio do terreno. Aquela parte de baixo lá, ficará para a faqueadeira, a fábrica de móveis, a estufa e para mais uma serra-fita, porque a nossa velhinha está para entregar os pontos. Ali, pelo lado direito, pra cima da serraria, vamos construir as casas dos funcionários mais graduados. Não pode ser pra baixo porque o vento vem de cá e vai encher a casa deles de pó. Lá nos fundos, já perto do brejo, será reservado para os entulhos. Quero ver uma fogueira ardendo dia e noite, com labaredas de 15 metros de altura, como as tochas de fogo da sobra de gás dos campos de petróleo da Petrobrás. Aquela que a gente vê pela televisão. Vamos comprar mais tratores de esteiras, caminhões pesados, skidderes, uma patrol para deixar a estrada lisinha até no pé do pau, e carregadeiras. Vamos botar pra quebrar, porque em menos de cinco anos quero que nossa firma seja a mais poderosa do Pará. Vamos…
Nisso, o Heitor, que sempre fora menos sonhador e muito menos ganancioso, deu-lhe um cutucão nas costelas e disse:
– Acorda, Simba! Amanhã você continua seus planos, porque hoje tentarei dormir. Pela primeira vez, depois de tantos anos, espero dormir sossegado.
– Eu também – emendou o Benjamim.
– E quanto a mim, nem se fala – completou o Artêmio.
XVI
Às cinco horas, extremamente excitados, depois de uma noite rolando de um lado para outro, todos pularam das redes. Acordaram a empregada, pediram o café mais cedo e começaram a fazer mil planos, todos de pé no centro do pátio, tendo, às costas, o mais belo nascer do sol. Também a Natureza parecia conspirar para que o prêmio de um tempo de lutas e sofrimentos fosse degustado num cenário de cores, brilho e calor. Aquilo sim é que podia ser definido como o raiar de um novo dia.
Já sabendo que os cobradores não demorariam saber da boa notícia, Simba pegou o primeiro ônibus e partiu para Altamira. Esperou que o banco abrisse e foi um dos primeiros a ser atendido. Transformou os dólares, solicitou 50 talões de cheques, retirou um milhão de reais, alugou uma Van e retornou célere.
Durante três dias ele não pode mais “trabalhar” como desejaria. Sentado a uma mesa que continha uma gaveta com centenas de anotações sobre as dívidas da empresa, ele foi atendendo a fila de credores. A própria serraria parou no segundo dia: vez de os funcionários receberem seus salários. No final de três dias, a quantidade em dinheiro que havia retirado do banco, acabou, e Simba resolveu somar os cheques dados: mais 735 mil reais. Como, nas contas do banco, a transformação dos dólares resultara em R$2.301.207,80, Simba percebeu que ainda lhe sobrara quase R$ 600.000,00 que, somados à confiança reconquistada, permitiriam a ele mais 90 dias de grandes investimentos.
No improvisado escritório, em cada pagamento, um papelzinho era retirado da gaveta e jogado na lixeira (uma caixa de papelão). No final dos três dias, as “notinhas” da gaveta estavam todas na caixa de papelão que fora incinerada sem demora. Tudo estava em dia.
Simba deu a ideia de comprarem um boi e fazer um churrasco, junto a todos os funcionários que acreditaram e trabalharam, meses e meses, sem receber um centavo. Os irmãos concordaram e, dois dias depois, num domingo, pela primeira vez depois de anos de sufoco, trabalho e sofrimento, houve uma festa. E que festa! No final, com muitos caboclos caídos bêbados no chão e centenas de latas de cerveja espalhadas pelo pátio, Simba e os irmãos concordaram que haviam sido ressarcidos, à altura, do preço da obstinação.
E com a cabeça transtornada pelo álcool, nesse domingo mesmo, Simba conquistou Katarine, a tal moça de meus elogios. Ela era ainda muito jovem, a mais linda e atraente da festa e de todas as famílias que havia pelas cercanias da indústria. Moça sem qualquer instrução, cuja mãe solteira tocava um inferninho, não pensou duas vezes em ir para cama com o Simba. E o que parecia efeito de bebida e decisão insensata de uma jovem, transformou-se numa doentia paixão.
Pode parecer estranho a muitas culturas deste País, mas lá e nesse tempo, não causou qualquer estranheza. Katarine, já no outro dia, levou seus pertences e foi morar num quarto improvisado. Estavam casados, segundo a lei da região.
E tudo fora rápido e envolvente. Sem problemas financeiros – diga-se de passagem – com dinheiro sobrando e com Simba insaciável em sua sede de riquezas, a firma deslanchou como uma enorme represa que se rompe; como lavas de um vulcão que escorrem por ladeiras.
Antes mesmo que embarcassem a segunda remessa, já Simba havia adquirido, por crédito, três caminhões Volvos com julieta, capazes de transportarem até 40 toneladas de uma vez; duas grandes carregadeiras; uma patrol; dois tratores D-60 da Komatsu e cinco camionetas, uma para cada sócio e outra para atender serviços da indústria.
Enquanto isso, quem chegasse pedindo serviço era imediatamente contratado, sem, sequer, ser perguntado sobre sua procedência, sua família, enfim, sem qualquer pergunta. Com poucos meses, 260 funcionários já estavam listados no cadernão, único livro contábil da madeireira. Contador? Nem pensar. Tudo era registrado na memória ou em anotações escritas num cantinho de jornal, revista ou caderno. Ali se punha o nome, a quantidade envolvida e o dia, nada mais. O papel era jogado dentro da grande gaveta da mesa e de lá só sairia quando a nova remessa chegasse. Da importância dos compromissos assumidos, nem procuravam saber. Tudo seria resolvido quando os novos dólares desembarcassem no Banco do Brasil de Altamira.
XVII
Ano de 1995. Talvez o profeta Isaías não tenha sido mais incisivo e contundente em sua predição sobre a vinda do Filho de Deus a este mundo, do que Simba em antever, ao menos até certo tempo, seu futuro de poder e glória. Mas, Simba não estipulou data para a validade de sua clarividência. Esqueceu-se também dos ensinamentos de sua mãe, que não se cansava de lhe dizer, quando menino, para que nunca caminhasse sem o amparo de Deus. Simba esqueceu-se de muitos valores espirituais, convergindo seus passos para as coisas materiais, coisas que se deterioram, que acabam, que jamais alguém levou daqui…. a não ser a dúvida sobre a carruagem de Elias.
No auge de seu progresso, ele não pensava, senão, em ter sempre mais, tanto em dinheiro como em mulheres. Como sua companheira e nova amásia apenas buscava badalação, não foi difícil, para Simba, viver em concubinato com outras jovens, inclusive mantendo Francisca, em Imperatriz, sob suas expensas, já que tinha por ela uma grande paixão. Nesse tempo, Francisca já estava na universidade e Simba, quando possível, passava por Imperatriz para ficar com ela. Apesar de sentir que Simba lhe desejava com paixão incontrolável, Francisca sentia que estava sendo difícil, para ele, acreditar que ela o amava de fato. Mas, como estava sendo sincera e levando vantagem financeira, foi dando tempo ao tempo. O que ela não sabia é que Simba era refém de um grande complexo de inferioridade. Ele mesmo não sabia disso, mas vivia segundo essa determinação genética. Amava Francisca sim, como amava Katarine, como amaria todas que se pusessem em seu caminho.
Katarine, sua, agora, amante titular, vivia em sua camioneta, sempre relinchando os pneus na saída e rodando pelas casas das amigas e de algum parente, fofocando e contando vantagens.
Nesse tempo, já que, para Simba, o preço de um barraco pouco significava às suas finanças, ele adquirira, por escritura, a casa em que Francisca morava. Também depositava, antecipadamente, o dinheiro para que ela continuasse e concluísse seu sonho de ser advogada. Como sempre, o dinheiro era enviado sem qualquer controle, impreterivelmente, em cada pedido feito.
Enquanto pôde, foi utilizando o dinheiro fácil da exportação de ipê, sucupira, cedro e jatobá, que lhe rendia muito mais do que necessitava, inclusive para seus desperdícios. Controle pessoal, não havia. Cada irmão sócio portava talão de cheques e nunca perguntava aos demais pelas retiradas ou saques. O termômetro para avaliar a temperatura do crescimento, era o saldo bancário e a soma dos bens adquiridos.
Nesse tempo, a empresa tornara-se quase um império. As tantas casas de madeira que construíra para seus funcionários foram, realmente, se transformando numa vila, que logo ganhou ruas e praças e o nome de Vila Novos Sonhos. A quantidade de funcionários extrapolava o limite de uma empresa recém-instalada. Nada de carteira assinada, nada de contabilidade apurada: apenas o essencial para poderem exportar, o que, normalmente faziam com notas fiscais arranjadas pelo assessor de Belém.
Nos fundos da área de 30 mil alqueires, Simba e os irmãos abriram mil alqueires de pasto, todo cercado de arame liso, com um grande círculo no centro e abertura semelhante aos raios de um pneu de bicicleta, abrindo e formando talhões para a recuperação da pastaria. O sal mineral ficava no centro e todos os animais desciam para lambê-lo sempre que sentissem necessidade. Água havia por todos os lados, porque o Pará, como toda a Amazônia, é riquíssimo em nascentes. Numa delas foi instalada uma turbina, e ótima energia, 24 horas por dia, praticamente sem custo, atendia as necessidades dos peões e da sede. Nessa pastaria viviam 4.700 cabeças de nelores, todos de raça pura. Dez vaqueiros cuidavam deles sob a batuta do inseparável e confiável Feitosa, que jamais precisou mais que uma olhada de soslaio para convencer algum descuidado a cumprir suas obrigações.
De dois em dois dias uma rês era abatida, somente para atender aos funcionários. E como não era rentável aproveitar o leite, todos os cachorros e a criação de porcos eram alimentados por ele e seus derivados.
A indústria fora ampliada com mais uma serra-fita, uma fábrica de móveis, uma grande estufa, dois imensos galpões de estocagem e uma faqueadeira, agora, funcionando em dois turnos, ou seja, 24 horas por dia. Nos fundos, uma fogueira que, à noite, era notada a mais de 15 quilômetros, destruía os sarrafos, bons, mas, para eles, com rentabilidade pequena.
É que, devido a exuberante floresta ser riquíssima em madeira, eles não se davam o trabalho de perder tempo para aproveitar árvores ou, posteriormente, peças serradas que apresentassem qualquer tipo de defeito. Os cortes das árvores, no mato, eram feitos bem altos, acima das saliências das catanas e, na parte da ponta, no ponto em que começava o primeiro galho. Na serraria, mesmo com toros selecionados, a quantidade que ia para a fogueira, às vezes, era superior à aproveitada. A firma se tornara especialista em pedidos milionários, mas de intensa exigência de qualidade. Por isso, se uma peça apresentasse uma pequena mancha, um minúsculo furo, era descartada.
Toda a área da indústria fora murada e protegida por um portão eletrônico de aço. Os barracos de madeira foram substituídos por casas confortáveis de alvenaria.
Com a chegada da energia, toda tecnologia eletrônica foi instalada: computadores, televisores, dezenas de telefones, antenas parabólicas, um campo de futebol society iluminado, centrais de ar…. uma festa. A Novos Sonhos já contava com vereador, presença semanal de padre e mais de três mil habitantes, todos vivendo direta ou indiretamente da madeireira do Simba e seus irmãos.
No verão, em pleno dia de funcionamento, era perigoso atravessar o pátio. O tráfego de caminhões, máquinas pesadas, camionetas e carregadeiras se transformavam em poeirão ascendente, em vultos ameaçadores, trovejando seus motores possantes, levando, trazendo, descarregando toros, carregando blocos para exportação…. Um pandemônio.
Simba já quase não parava ali. Visitava outros países, sempre acompanhado de um cicerone que dominasse o idioma do país visitado. Vinha de lá com a agenda cheia, e muitos negócios fechados. Aquela maneira grosseira de falar, aos poucos se amainava. Suas mãos duras de calos, cujos dedos nem conseguiam fechar direito, agora estavam maleáveis e macias. Apenas sua ganância aumentava. Nada de contar histórias engraçadas de sua infância sofrida, de lembrar fatos hilariantes do passado. Tudo se resumia a milhões, dólares, compras, vendas, negócios e planos de crescimento. Como lazer, apenas mulheres, quantas conquistasse, de preferência, bem jovens. Era o único assunto que, às vezes, fazia com que ele esquecesse o objetivo de se tornar o homem mais poderoso da região.
Quem quisesse vender bugigangas ou mesmo novidades, era só passar por lá. O que havia de bolas, luvas de boxe, aparelhos de musculação, filmadoras, armas de todos os calibres, vinhos importados, caixas (centenas) de cerveja, whisky… Acinte à miséria.
E as exportações seguiam a todo vapor. Agora, todo mês um navio partia e milhares de dólares chegavam. Lembro bem o dia em que o Simba me ligou. Falamos rapidamente sobre bichos e peixes, porque ele não se importava e lhe era extremamente torturante usar o tempo de contar suas conquistas, para ouvir um velho acomodado, avesso totalmente ao capitalismo selvagem. Depois, dizendo que aqueles planos com que sonhara estavam sendo realizados, confessou que, dificilmente houve um mês em que não lucrasse um milhão de reais, totalmente livres. Então, interferi:
– E, mesmo assim, seus planos ainda estão sendo realizados? Pelo amor de Deus, Simba, não acha que já basta? Aonde quer chegar?
– Nem pensar, amigo! Daqui até Santarém é mais de meio dia de viagem. E nada é meu… ainda.
– E o que irá fazer com tanta coisa, meu caro?
– Vou ser cada vez mais poderoso, e ter mais e mais mulheres. O senhor não sabe como é bom ter dinheiro sobrando! A gente fica bonito, você precisa ver. Meu telefone não para. Ainda bem que descobriram que o Viagra tem também a função de ajudar a gente a dar conta do recado. Agora é que ninguém me segura mesmo.
– Simba – pronunciei consternado – apenas o infinito não tem limites, pelo menos diante de nosso raciocínio limitado. Todas as coisas do mundo têm limites. Há um ponto em que não se pode ir além. Sei que estudou pouco, mas deve saber que nenhum império da terra durou para sempre, apesar de, em seu tempo de glória, ser considerado imbatível e eterno. Hoje, a exemplo do Império Romano, temos os Estados Unidos. Parece impossível que a maior economia do mundo enfraqueça, mas também ela cairá.
– Duvido!
– Se formos olhar pelo prisma de nossa existência, talvez você possa duvidar, mas nossos filhos ou netos comprovarão o que estou dizendo. E já que resolvi estragar seu telefonema, pergunto: como anda sua relação para com Aquele que, ao menos até aqui, tem lhe dado forças para realizar seus sonhos?
– Ah, amigo, de fato, não gosto de falar sobre isso. Ninguém, até hoje, voltou para contar se existe ou não o tal outro lado. Na dúvida, vou curtir a vida daqui. Esta eu sei que tenho, e vou aproveitar ela até a última gota.
– Sabe, Simba, tudo correu bem até agora porque você escolheu uma terra devoluta, da Nação, que não lhe cobrou um centavo pela madeira. A Natureza também lhe foi pródiga, fornecendo uma floresta cheia de ipês. Mas, pode estar certo, apesar de o nosso Governo não se importar com as riquezas da Amazônia, ou se importar de modo equivocado, os países estrangeiros estão de olho. Eles, por meio das forjadas ONGs, incitarão cada vez mais o nosso Governo para que não permita a destruição, ou, se preferir, para que reserve as riquezas para eles. E tem mais, farão isso com o nosso dinheiro. Logo, logo o MST, o IBAMA, o INCRA, a fiscalização e sei lá mais quem, vão começar a aparecer por aí, porque onde há alimento estocado, logo as formigas e os ratos aparecem. Você está vendo as invasões provocadas pelos sem-terras em quase todo o País. Não apareceram aí ainda porque não descobriram que a valorização chegou. Quem garante que seus próprios funcionários já não estão pensando seriamente em arrebanhar desocupados para invadir suas terras? Alguns conhecem bem onde atacar.
– Bem – gaguejou Simba – estamos tendo problema com o Bigode, lembra dele? Aquele nosso primeiro funcionário que chegou aqui passando fome e que recebemos ele como irmão. Vive pedindo aumento, se diz merecedor de uma boa área como indenização pelo tempo de serviço, enfim, está me enchendo o saco.
– É o Judas, não é?
– Esse mesmo.
– Pois é! Outros Judas surgirão. Isso aí não atraía a ganância de ninguém porque, até vocês prepararem, não valia praticamente nada. Eu vou repetir-lhe aquele conselho de que lhe falei algumas vezes: vai apanhando o dinheiro e aplicando em outros negócios fora daí e que sejam mais seguros. Você tem como exemplo as sociedades similares à de vocês: todas têm prazo de validade. Agora é um bom momento de irem dissolvendo a sociedade, sem traumas. Reúnam-se e vejam o que cada um gostaria de ter ou em que trabalhar, quando a sociedade for dissolvida. Cada dinheiro que sobrar, vocês vão comprando imóveis inerentes ao gosto de cada um. Assim, quando a perseguição chegar, vocês não sentirão tanto. É só vender o que sobrou e tomar posse dos bens seguros.
– Iiiii, amigo, isso ainda está muito longe! Aqui nós mandamos e se alguém tiver o topete de nos enfrentar, eu apresento pra ele aquela minha aquisição de Buriticupu.
– O Feitosa?
– Esse mesmo. Aliás, ele precisa “trabalhar” porque, até agora, teve a vida mais mansa do mundo.
– Eu não acredito que esteja falando sério, meu caro Simba! Para ser sincero (e não me acuse de língua maldita), acho que está passando a hora de vocês mudarem os planos e aceitar os meus sempre e eternos conselhos. Se um dia utilizar o Feitosa, será o fim de toda paz e progresso. Acredite, meu caro, violência atrai violência e bandidos não dão valor nem à própria vida. Para eles, a esquecida lei de talião continua vigente.
– Deixa comigo, amigão, deixa comigo!
XVIII
E o meteoro que caminhou e caminhou, perdido no vácuo dos sonhos, enfim, atingiu a atmosfera da realidade. Brilharia ainda mais fortemente no céu por algum tempo, e, depois se desintegraria ou voltaria ao vácuo, apagando-se para sempre.
Num belo domingo de sol, como sempre acontecia, a maioria dos funcionários estava em festa na sede da fazenda, às margens do rio das Pedras, na confluência com o Piabanhas. No gancho, uma gorda vitela dependurada. Ao lado, duas churrasqueiras acesas e cinco grandes isopores cheios de cerveja para complementarem os congeladores. O som, ora de forró, ora de músicas sertanejas, feria o sacrossanto silêncio da floresta em volta. Alguns, de péssimo gosto, soltavam fogos, punham o som em altura máxima e dançavam na grande varanda da casa. De repente, os cachorros se assanharam e partiram para o lado da cancela de entrada. Alguém mais curioso percebeu, olhou e correu avisar o Simba:
– Está chegando aí três carros da polícia.
Já um pouco alto, Simba afastou Katarine de seu colo e foi espiar. Aparentemente sem se perturbar, riu e disse:
– Deixe que venham. Não há nada errado aqui. Tenho certeza que irão participar da festa com a gente e, no máximo, levar mais um pacotinho.
Os 12 policiais chegaram, perguntaram pelo Simba e sem mais uma palavra, algemaram-no. Em seguida, foi a vez do Feitosa, algemado com safanões e palavras de ameaça, das quais jamais iria esquecer, jurando, ali mesmo, diante de sua consciência, que não morreria sem se vingar daqueles que o haviam falsamente denunciado. Os demais funcionários, encantoados como vara de porcões selvagens acuada por esganiçada matilha, assistiam a tudo, boquiabertos, completamente sem ação. O som foi desligado e um silêncio profundo e constrangedor passou a reinar. A maioria era gente humilde que, possivelmente, nem sabia assinar o próprio nome. Apenas o veterinário, recém-formado, com especialização em inseminação artificial, constava como mais esclarecido. Logo depois do primeiro impacto, ele adiantou-se e com toda mesura de sua formação universitária, informou-se sobre o motivo daquela operação. O agente mais exaltado apontou para o carro estacionado, no qual se via os vultos de três pessoas: uma com insígnias diferenciadas, escoltada por dois guarda-costas com metralhadoras prontas para serem usadas. O veterinário Aurélio, com as mãos para o alto, encaminhou-se para o carro. Pediu para ser atendido e informou-se:
– Por favor, podem-me dizer o que está acontecendo?
– Recebemos denúncia de trabalho escravo, da presença de armas e pistoleiros e viemos constatar.
– Trabalho escravo? O senhor pode ver o tipo de trabalho escravo que há aqui. Com a exceção dos proprietários, todos os demais são funcionários da firma e eu, apesar de estar trabalhando com eles há apenas alguns meses, nunca notei desrespeito a qualquer direito humano ou trabalhista.
– Para ser sincero – ponderou o chefe – também não estou notando nada que implique em trabalho escravo. Mas há também denúncia de que aqui existe um pistoleiro perigoso e grande quantidade de armas, e isso vamos averiguar.
Enquanto isso, os agentes que vasculhavam as casas foram chegando com três espingardas de caça e dois revólveres 38. Havia mais, mas não encontraram, porque o Das Chagas – um caboclo muito esperto e que era tratado como irmão, ou filho – ao notar a intenção dos policiais, apressou-se a esconder as que pôde.
Notando que a denúncia cheirava a vingança de funcionários ou de bandidos ligados ao MST, o chefe da guarnição desceu e foi até ao local em que estava acontecendo a festa. Passou uma olhada por todos os lados e arguiu os presentes:
– Isso acontece sempre por aqui?
– Não – respondeu inocentemente um dos vaqueiros. E continuou – esta é a primeira vez que a polícia vem aqui.
– Estou me referindo à festa – explicou o policial.
– Ah, sim! Todos os domingos e feriados os patrões reúne nóis e faiz esta festança.
– Bem – considerou o policial – aqui pode haver muita coisa errada, mas, trabalho escravo, jamais. Aliás, deste jeito, eu também queria ser um funcionário escravizado. Mesmo assim – e aí se virou para os dois algemados – vocês terão de nos acompanhar para esclarecer outros pontos da denúncia.
Os dois foram levados juntamente com as armas apreendidas. Não houve mais festa. O som continuou desligado, o boi foi destrinchado e a carne dividida. A festa acabou. Aos poucos, cada um foi jogando as tralhas sobre o caminhão que os havia levado e retornando para a Vila Novos Sonhos.
XIX
Imediatamente foram contratados os melhores advogados e, sob fiança, Simba e Feitosa voltaram para casa. O processo continuaria e muito dinheiro começou a sair pelo ralo. Era a primeira investida dos invasores, segundo alguns, sob a orientação de um bispo da região. Outros bandidos infiltrados nos movimentos pelo direito à terra fariam coro, não porque não existisse terra para ocuparem, mas, unicamente, porque preferiam aquelas já prontas e valorizadas. Tudo estava errado, tanto o excesso de posse, como a invasão em lugares já ocupados. Diante disso, governo e outras autoridades preferiram ficar em cima do muro, deixando que os envolvidos resolvessem seus problemas, ainda que ao preço de muitas vidas, tanto de culpados, quanto de inocentes.
Minha triste previsão estava se concretizando. Não era minha língua que se tornara maldita, mas o raciocínio lógico de que, quem se lança do décimo andar, sem qualquer proteção, tende mesmo a se espatifar na calçada.
Antes que o processo chegasse ao demorado fim, novo problema: centenas de sem-terras tentaram invadir a sede, mas, antes que adentrassem, foram impedidos pela polícia local, paga regiamente para isso. Então, o tempo que era consumido com trabalho produtivo começou a ceder lugar ao burocrático. Os dólares que chegavam todo mês, deixando um lucro líquido de aproximadamente um milhão de reais, passaram a chegar com dois meses e, a maior parte do lucro já ficava nos cartórios, gabinetes governamentais, delegacias e, principalmente, nas propinas a agentes fiscais e a policiais e advogados corruptos. Milhares de olhos invejosos começaram a se volver em direção ao império do Simba.
Não bastassem os problemas empresariais, os sentimentais também se agravavam. Francisca começou a perceber que Simba, agora, escapava-lhe do controle. Alguns pedidos de dinheiro começaram a ser negados, mas a razão era, unicamente, porque as coisas já não andavam tão bem como antes. As remessas para o exterior continuavam, a fogueira das sobras ainda clareava longa distância, mas nada como nos tempos áureos de fartura e euforia.
Simba já parava pouco na indústria. Havendo algumas horas de folga, ia à fazenda. Sentia grande prazer em montar seu cavalo árabe e passear pela bem cuidada pastaria, deleitando-se com os milhares de pontos brancos que a enfeitavam. Ao lado, seu escudeiro de fé, Feitosa, companheiro e amigo fiel, que jamais fora bandido, apenas agia, sem medo, contra os que, de fato, eram bandidos.
Fora de suas dependências, era mais comum Simba viajar para Altamira, cidade mais próxima da indústria. No Banco do Brasil dessa cidade ficava a vultosa conta da firma. E todas as semanas, Simba ia ao gerente para ver como as coisas estavam. A sobra ainda era polpuda, porém, não fossem os últimos desagradáveis acontecimentos, podia ser bem maior. E foi ali, quando trafegava com Katarine, que Simba percebeu, talvez pela primeira vez, como Jesus estava certo quando afirmava o perigo das riquezas. Os tempos estavam mudando sem que ele se desse conta.
Dois motoqueiros emparelharam à camioneta e dispararam seis tiros em direção a ele. Simba agachou-se; Katarine, apalermada, começou a gritar. O carro, sem condutor, subiu pela calçada, levando na frente uma banca de verduras e esmagando tudo contra o muro de uma residência. Os bandidos, vendo frustrada a empreitada, desapareceram. Simba, recuperando-se do susto, ergueu-se vagarosamente, olhou para Katarine e começou a chorar. Fora uma reação, digamos, humilhante, para quem vivia dizendo que não admitia que um homem com H maiúsculo chorasse, fosse qual fosse a situação.
Centenas de curiosos se aproximaram. O perigo maior desaparecera. A polícia chegou, ouviu a história e levou Simba e Katarine à delegacia para que fosse registrada a ocorrência. A camioneta, embora com a frente destruída, ainda funcionava. Foi deixada na oficina de um amigo e conterrâneo, que lhe emprestou o próprio carro para que ele retornasse à madeireira.
Devagarzinho, a terra firme, que por tanto tempo lhe dera sustentação, começou a fender-se, trincar, desmoronar sob seus pés. Daquele minuto em diante, Simba já não seria o mesmo: começavam os dias negros que nunca se fazem ausentes na vida de um aventureiro sem limites.
Quando chegou à serraria, a notícia foi amarga e preocupante. A mãe entrou em pânico e logo convocou todos os filhos para um terço. Cada Ave-Maria deveria ser oferecida à mãe de Jesus, que interferira junto a Jesus para evitar o pior. E foi ali, naquele momento, que Simba se deu conta de sua alienação às coisas espirituais.
Cada mistério era rezado por um dos presentes. Quando chegou a vez do Simba, ele não sabia mais conduzir o terço, milhares de vezes ensinado, pela mãe, nos tempos em que ele era criança.
Sua mãe assumiu o lugar e continuou. Diferentemente do que seria em outros tempos, ninguém riu nem comentou nada: as lágrimas que desciam do rosto de Simba foram suficientes para atestar a gravidade das transformações que sofrera. Viu-se sobre o pináculo, aceitando a oferta do poder e da riqueza que a força do mal oferecia.
XX
No mês seguinte à quase tragédia de Altamira, outro golpe. Sempre sob denúncia dos sem-terras, orientados, segundo os ruralistas, pelo bispo da região, fiscais do IBAMA chegaram à empresa, de supetão. Durante uma semana vasculharam toda a indústria e todo serviço de extração da matéria prima. No final, além de uma semana parados, multa de quase dois milhões de reais. O advogado de Belém foi chamado e acompanhou grande parte da devassa fiscal, anotando e conversando, quanto podia, com todos. Quando os fiscais deram por encerrado o levantamento, ele chamou Simba de lado e explicou:
– Eles lavraram uma multa exorbitante, mesmo para vocês que têm muito. Queria que me autorizasse a tentar uma “negociata” com eles. Percebi que o chefe, com uma gorda propina, baixa a multa pela metade, ou ainda mais. Que me diz?
– Que digo a você? Claro que aceito. Tente lá. Faça o possível. Eu vou estar no escritório esperando. Afinal, não pago cinco mil reais por mês a você se não fosse para resolver problemas como este. Chegou a hora de você valer o salário que recebe.
O advogado, apesar do modo rude com que fora tratado, saiu com um nuto de assentimento à lembrança de seus honorários, e foi estar com os agentes. Da fresta da janela do escritório, Simba percebeu que, em dado momento, ele e o chefe da fiscalização se distanciaram dos demais, indo se acomodar sobre os toros de cedro que estavam amontoados a uns 30 metros dali. A conversa foi longa. Depois, como se tivessem falado apenas sobre assuntos circunstanciais, o chefe, ficando a sós com seus subalternos, iniciou nova reunião. Mais uma meia hora de conversa e o advogado foi chamado:
– Você deve saber como é delicada a decisão que estamos tomando. Os diretores da madeireira e nós poderemos ir para a cadeia se, por acaso, alguma coisa deste acordo for vazada. Quero que nos olhe bem, assim como estamos olhando para você. Qualquer deslize não será perdoado, concorda?
O advogado, diante da ameaça implícita, pensou em desistir, mas a lembrança do salário que lhe garantia lagostas nos melhores restaurantes de Belém foi imperativa em sua decisão:
– Sei, e como sei. Quero apenas que, se alguma coisa errada acontecer, que me comuniquem antes de agir. Vocês sabem que muitas injustiças já foram cometidas, no mundo, por precipitação ou mal-entendido.
E os fiscais, também loucos para concluírem a trapaça, concordaram sem qualquer restrição. Depois do aperto de mãos, o advogado retornou ao escritório. Simba estava cabisbaixo, numa retrospectiva de vida. Estava tão absorvido no passado, que levou um susto quando a maçaneta da porta foi acionada. Ergueu os olhos:
– E aí?
– Negócio fechado. Eles irão baixar a multa para 370 mil reais. Você deve dar a eles, agora, 100 mil. Exigem, também, 50 mil em cada vistoria que fizerem, atestando normalidade no funcionamento da empresa.
– E quantas vistorias eles vão fazer por ano?
– Isto vai depender do chefe deles. Normalmente, umas três por ano.
– É… – suspirou Simba – já está ficando difícil trabalhar por aqui! Pelo que estou percebendo, embora não constem nos documentos, “os sócios” da firma estão aumentando a cada mês. De qualquer forma, neste país, é bem mais vantajoso se juntar aos ladrões, do que aos honestos. Pelo menos, ficamos com a maioria.
O advogado entendeu as indiretas e preferiu o silêncio. Simba abriu o cofre, apanhou um pacote de 100 mil reais e entregou a ele:
– Entregue esta propina você, pois talvez eu não me aguente e quebre o nariz de um filhodaputa daqueles. Traga a multa para eu assinar e veja se eles dividem em três prestações.
– Pode deixar comigo. Acho até que posso dividir em mais.
– Não! Em três vezes está bom. Por enquanto, isso ainda é mixaria, mas a continuar assim, em breve será dívida impagável.
O advogado saiu e fez o pagamento. Ali mesmo, entre a madeira estocada, eles contaram e fizeram a divisão. Depois, lavraram a multa. O advogado levou o bloco ao escritório. Simba assinou, mas não quis despedir-se da corja, apesar de o advogado tê-lo aconselhado a não agir daquela maneira:
– Meu caro, ou você, ao entrar no esquema, aceita o jogo e se torna um deles, ou desiste, porque, como inimigos, serão bem piores. Aliás, você me lembrou isso há poucos minutos.
Simba silenciou. Por momentos, deve ter-se lembrado da formação que recebera e abandonara. A mudança espicaçava a consciência. Sem o perceber, estaria mesmo se tornando um bandido? Até então não havia pensado nisso. Franziu a testa, empurrou alguns papéis para longe, afastou a cadeira, ergueu-se, esticou os braços e desabafou:
– Que assim seja! A gente nasce para executar uma missão e eu irei até o fim. Nem Judas Iscariotes escapou do destino. Vamos almoçar, pois o cheirinho que vem da cozinha já está revolucionando meu estômago.
– Ainda bem que não perde a fome. A maioria das pessoas, depois de um contratempo deste, não consegue nem ingerir um copo de laranjada.
– É, de fato, nunca problema ou doença alguma me tirou a fome. Meus parentes sempre comentam isso. Na semana passada mesmo, fui pego por uma diarréia dos diabos, e nunca repus tão rápido. Saía da mesa, corria pro banheiro e retornava pra mesa. No fim, o bicho que amolecia por lá, desistiu.
E rindo, os dois se dirigiram para a cozinha em que já se encontravam os demais irmãos do Simba, extremamente aflitos para saberem sobre o fim da negociação. Depois de ouvir tudo, houve quem deixasse boa parte dos alimentos no prato. Benjamim, normalmente, era quem comandava as finanças: pagamento de funcionários, extração de notas, cessão de vales etc., mas, quando o assunto era fiscalização, multa, processos, Simba tinha de fazer valer sua condição de líder. E foi ele, Simba, quem vaticinou:
– Eu já vi que se não entrarmos no esquema, matar uma meia dúzia para intimidar, esses ladrões acabam levando a gente de volta para Novo Repartimento.
– Vade retro, satanás! – apressou-se a dizer, embora rindo, o Heitor.
XXI
Passado o transtorno, alguns meses depois, a rotina de receber 300 metros cúbicos de toros por dia e de exportar uma viagem por mês, entrou nos eixos novamente. Mas, com o dólar caindo a cada mês, o lucro já não era tão exorbitante. Diminuíam os lucros e aumentavam as despesas e os problemas.
Embora eles não soubessem, entreveros sempre existiram, mas como havia dinheiro demais, nunca se deram conta. Agora, quaisquer 100 mil reais já eram sentidos. Centenas de pessoas, aliás, a vila Novos Sonhos inteira vivia à custa, direta ou indiretamente, do Simba e seus irmãos. Além dos funcionários e todos seus familiares, ainda havia os parentes deles, que os sabendo bem-sucedidos financeiramente, viviam pedindo favores, nunca negados.
Qualquer dinheiro que saía já passava a ser sentido, como uma topada num pé em que um dos dedos está ferido.
Até as onças que atacavam o gado nas pastagens, agora preocupavam. Havia semana que a fazenda se assemelhava a um curtume, tal a presença de urubus disputando as carcaças de animais putrefatos espalhados pela pastaria. Como coadjuvantes ou concorrentes, os felinos tinham as sucuris e os jacarés. Estes, sempre descomunais e gulosos, não dispensavam leitões e carneiros que também eram criados para atender a churrascada dos fins de semana. Com mais esses indesejados sócios, foi preciso contratar onceiros e profissionais no abate a predadores. Cinco caçadores chegaram e mostraram serviço logo no primeiro dia. No final de um mês, quase uma dezena de predadores, entre sucuris, jacarés grandes e onças haviam sido abatidos. E nem foi difícil, porque os felinos, principalmente eles, estavam tão mansos que se podia alvejá-los dentro do pasto.
Muitos fins de semana Simba e os irmãos passavam na sede da fazenda. E foi num desses domingos que eles resolveram adquirir mais uma grande área de matas situada do outro lado do rio das Pedras. O problema não era comprar a mata, mas sim, construir a ponte sobre o rio das Pedras, com mais de 50 metros de comprimento: única maneira de se explorar as madeiras que seriam adquiridas. E, como era próprio do Simba, o negócio, que já fora proposto pelo dono da área, foi fechado ali mesmo no domingo e, já na semana seguinte os construtores da ponte chegavam. Em menos de 90 dias, com mais de 100 metros de extensão, incluindo os grandes aterros nas cabeceiras, ela estava concluída. A altura alcançava 12 metros, porque era mais ou menos esse o alcance das águas do rio das Pedras no auge do inverno.
Nesse tempo, a firma já havia catado os ipês, cedros, jatobás e algumas outras espécies de madeira em mais de 20 mil alqueires da área antiga. Mas, o filé – como costumavam dizer – estava nos 10 mil alqueires dos fundos, que seriam reservados para mais adiante, num possível tempo de vacas magras. Nessa área dificilmente alguém se postava em qualquer lugar da floresta sem contar, ao alcance da visão, pelo menos quatro árvores de ipê. Em outubro, as flores roxas e amarelas cobriam o dossel da floresta, como se ali só essa espécie existisse. Foi para preservar essa floresta que Simba convenceu os irmãos a comprarem mais essa área do outro lado do rio.
Tantas vezes, em nossos telefonemas de saudade e amizade irrestrita, por ter eu carregado no colo o Simba, ousava aconselhá-lo, repetindo-lhe que devia aproveitar o que pudesse; que investisse os lucros em outros negócios; que vendesse por qualquer dinheiro o que sobrasse; que não mais investisse por lá…
Pertinaz, quase ensoberbecido, ele me perguntava:
– Amigo, o senhor acha que se eu tivesse fazendo as coisas erradas, estaria tão rico como estou? O senhor sabe que não tenho estudos para dizer coisas bonitas, e nem quero aprender, porque o máximo que os caras que falam bonito conseguem é escrever poesias. E até hoje ainda não vi nenhum poeta rico.
– Talvez seja por isso que não o são – retruquei em riste, mesmo porque sabia que, embora imerecidamente, eu estava incluído em seu ponto de vista.
– Eu já fui um lascado, o senhor sabe, e não quero mais voltar pra lá. Até fome passei, mas o pior de tudo era ser um zé-ninguém. Entrar num banco todo sujo, ficar lá na fila horas a fio, ser humilhado pelos gerentes…. Não gosto nem de lembrar! Agora, parece até que eles sabem quando vou chegar, pois me esperam na porta com uma xícara de café na mão. Aliás, acho que não morro sem dizer a esse tipo de gerentes, que agora me botam na frente de outros que continuam lascados, que são um bando de filhos da puta.
E, demonstrando grande revolta pelo tempo de sofrimento, Simba desabafou por vários minutos. Eu o ouvia, sem palavras, reconhecendo que, ao menos algumas coisas boas e sãs ainda vingavam em sua alma. Depois, dei mais um toque na velha tecla:
– Sei que já estou me tornando repetitivo e inconveniente, mas é que um torcedor percebe melhor do que quem está jogando, o lugar em que a bola deve ser lançada. Aqui de longe, vendo as coisas acontecerem, percebo que está passando da hora de se mexer no time. Pense bem, caro amigo, você e seus irmãos sofreram demais para chegar onde chegaram e seria triste ver todo esse sofrimento perdido, jogado fora, desperdiçado. Pense mais uma vez no que vivo lhe dizendo: isso aí agora está valendo muito dinheiro e vai atrair, cada dia mais, a ganância e a inveja das pessoas sem escrúpulos. Não me leve a mal, mas se persistirem, terão grandes e talvez insolúveis problemas. A vida – isso é mais velho que pé de serra – é muito curta e dela não se leva nada. Se vocês pararem agora e apenas administrarem o que possuem, morrerão ricos e sem problemas; mas se continuarem investindo e querendo sempre mais, com certeza irão entender, a ferro e fogo, a insensatez que estão cometendo.
– Amigo, como disse pra mim o Heitor outro dia: “vade retro, satanás”. Não tente meter na gente seu pessimismo. Sei da fama da língua do senhor, mas aqui ela não vingará, o senhor vai ver. Vai dar tudo certo e ai de quem tentar impedir.
– Bem, se é assim, siga em frente, porque tudo indica que haverá gente tentando impedir. E, mudando de pau para cavaco: descobriram os motivos daquele atentado?
– Ah!, o senhor não soube, não?
– Claro que não. Supus que fosse para roubar.
– Antes fosse! Antes fosse! Nada ainda certo, mas estão investigando a Francisca e o Bigode. Há suspeitas de vingança. A primeira seria de Francisca e o alvo seria a Katarine e não propriamente eu; a segunda, é que o Bigode já comanda, clandestinamente, uma quadrilha de sem-terras para invadir os fundos de nossa fazenda. Sem mim, seria melhor. Até que faz algum sentido, porque meus irmãos nunca gostaram de resolver problemas complicados e perigosos. Se eles me tirar do time, o jogo vai ser fácil pra eles.
– Fico estarrecido só em imaginar que Francisca, mulher simples e humilde, ultimamente extravasando felicidade, tenha mudado tanto. Prefiro acreditar que tenha sido mesmo tentativa de latrocínio. Afinal, sua fama de milionário já deve ter passado por todas as bocas-de-fumo e chegado às mais organizadas quadrilhas da região. Não esqueça que o mundo evoluiu, e o banditismo, muito mais. Antes você podia andar com um milhão no “picuá”; agora, até sem um tostão no bolso se torna perigoso zanzar por aí. Com certeza, Francisca nada tem a ver com isso. De qualquer forma, tenha cuidado. De quem não suspeitamos pode vir a fatalidade. Quando eu jogava futebol, levei um drible de cair sentado, e sabe de quem? Do pior jogador que havia na região. Quando ele tentou dominar – como era péssimo na arte – entrei de vez, certo de que lhe tomaria a bola. Ele deu uma puxadinha esquisita, mas, providencial para que eu pelasse a bunda toda no solo seco do gramado. Até hoje não esqueci. Tenho muitas histórias parecidas, demonstrando que, da mata que menos esperamos, os coelhos saem.
Os telefonemas do Simba sempre me eram muito agradáveis e proveitosos. Eu não gostava de falar ao telefone, mas se a ligação viesse dele, eu corria para atender. Simba me fazia crer ser eu um malandro acomodado; eu não deixava por menos, acusando-o de ganancioso insaciável. No fim, tudo acabava em risos, ao menos até que não chegasse o dia de chorar.
XXII
Nove horas de uma segunda-feira de julho de 2000. Simba estava acabando de arrumar a mala para ir a uma feira no Paraná, onde iria buscar tecnologia para a compra e instalação de mais uma máquina de beneficiar madeira para exportação. De repente, o caminhão de carroceria que atendia o serviço de extração transportando funcionários, óleo, graxa…, freia bruscamente a seu lado. Juca, o encarregado, mesmo antes que o caminhão parasse, pulou da boleia, e mais lívido que um boneco de cera, quase não conseguindo articular as palavras direito, deu a notícia:
– Simba, uma desgraça!
Já acostumado a tantas nos últimos tempos, mais uma não deixaria Simba apavorado. Como sempre dizia, não sendo morte, o dinheiro resolveria.
– Vamos lá, diga logo. Que aconteceu desta vez?
– Mais de 100 sem-terras invadiram a área dos fundos das terras de vocês, aquela que você disse que só mexeria se não tivesse outro jeito. A gente ainda nem havia tomado café, quando eles, comandados pelo Bigode, passaram pelo nosso barraco. Eu ainda saí para perguntar ao Bigode o que estava acontecendo, mas ele, cheio de autoridade, me empurrou de lado e disse que, a partir daquele momento, ele não era mais amigo de ninguém e que, do barraco para frente, era ele quem mandava agora.
– Reconheceu mais alguém?
– Uma porção, quase todos funcionários ou ex-funcionários de vocês.
– Vou lá falar com eles.
– Não, pelo amor de Deus, não vai não! Eles estão todos armados e disseram que o primeiro de vocês que aparecer por lá vai voltar na vara. Você conhece o Marilso e o Binda?
– Aqueles dois pistoleiros de Uruará?
– Esses mesmos. Estão juntos e eu vi todos dois com uma 12, com os canos serrados, na mão. Ainda apontaram para o nosso barraco e dispararam na lona que cobre, fazendo dois rombos enormes. Disseram que quando os primeiros caminhões deles tiver saindo, não quer ver mais ninguém da firma de vocês naquela estrada.
– E a nossa turma?
– Correram quase todos pra dentro da mata. Acho até que muitos vão se perder. Os que veio comigo, saltaram ali na entrada de Novos Sonhos. Acho que vai ser preciso alguém voltar lá para apanhar as coisas: motor de energia, congeladores, vasilhas, motosserras, tambores…. Você sabe que lá tem muita coisa.
Simba ouviu toda a história, deixou a mala onde estava, subiu para o quarto e se pôs a pensar. Alguma coisa estava errada. Que diabo estaria acontecendo? Seria a língua maldita do amigo Tiba? Agora, danou-se! Se a gente der mole, eles ficam com nossa melhor reserva de madeiras. Se a gente enfrentar, com certeza muitos vão morrer. Que situação! Mandou chamar os irmãos, relatou o acontecido e ficou aguardando alguma solução milagrosa.
– Acho que chegou a hora de mostrar que também somos homem e sabemos defender nossa propriedade. Se a gente ficar com medo, eles vão tomar o resto tudo – opinou primeiro o Artêmio, o que menos estudara e mais tinha coragem.
Depois de longas horas trocando ideias, chegaram à conclusão de que o melhor que tinham a fazer era: primeiro, avisar a polícia e, segundo, convidar o Tião com sua equipe para se instalar na mesma região e extrair ipês também. Pelo menos não perderiam tudo.
Tião era um crioulo respeitado, acusado de muitas atrocidades na região. Trabalhava com madeira e sempre andava com o carro cheio de ipês de primeira, sem nunca ter comprado uma árvore. Entrava na propriedade de qualquer um, escolhia as melhores toras que estivessem nos tombadouros e seguia para a serraria que lhe apetecesse. Só derrubava uma árvore se não encontrasse, nos tombadouros, a qualidade que procurava. Se timidamente fosse interpelado, avisava que o dono podia se dar por satisfeito por ele não obrigar, também, que o reclamante transportasse as madeiras para ele. A tiracolo, sempre uma escopeta, apoiada sobre um revólver de grosso calibre que levava pendurado no cinto de couro cru.
Foi este homem que Simba foi procurar. Por coincidência, antes mesmo de chegarem a Uruará, encontraram-no com seu velho caminhão, descendo para o lado de Medicilândia.
Simba o conhecia e fez sinal com a mão de que precisava falar com ele. Ele freou, e balançando seus mais de 100 quilos do avantajado corpo, perguntou:
– Que manda o patrão?
– Tenho um negócio pra macho e resolvi procurar você.
– Se o negócio é pra macho, você acaba de encontrar. Qual é o traçado?
– É que o Bigode…
– Que fez aquele merda?
– Invadiu nossa fazenda, juntamente com o Marilso e o Binda e disseram que vão tirar 10 mil alqueires de nossa mata dos melhores ipês.
– Quando foi isso?
– Hoje pela madrugada.
– Estão em muitos?
– Segundo o Juca, nuns 100.
– É…, vamos precisar de muita munição.
– Mas, eu não queria ir lá matar ninguém não, a não ser que seja extremamente necessário. Queria lhe dar todo equipamento necessário para que você e mais quem juntasse por aí, fosse lá tirar madeira também. Ao menos não se perderia tudo.
– Se é só isso, prepare as máquinas e uma pessoa para levar a gente até o lugar.
– Bem, devo dizer que isso seria a segunda etapa de nossa ação. A primeira é falar com a polícia e pedir pra ela tirar o pessoal de lá.
Tião riu e sentenciou:
– Se é isso que vão fazer, pode preparar o maquinário e amontoar a munição, porque eu terei mesmo de ir lá resolver o problema. A polícia daqui não prende nem bêbado babando, quanto mais, bandidos armados.
De fato, a polícia não resolveu nada. Esteve no local e retornou dizendo que aquilo era da alçada do IBAMA ou da Polícia Federal que, por sinal, já fora avisada.
Então, como o maquinário já estivesse pronto, no primeiro dia da semana seguinte, Tião e sua equipe, mais armados do que o bando de Lampião no agreste, tendo como cicerone, o Feitosa, partiram pra lá. Ocuparam o barraco abandonado pelo Juca e sua equipe, então, totalmente vazio. De todo o material deixado, só a chapa do fogão restava.
– Filhos de uma égua – vociferou Tião. Levaram, mas terão de devolver. Não pelo patrão, mas porque eu não vou ficar aqui no escuro.
Mandou que a turma subisse no caminhão, rodou apenas alguns quilômetros pra frente, e já ouvindo a zoada das motosserras, parou e foi seguindo a pé com sua turma. Mais adiante havia um igarapé e, certamente, eles estariam abarracados por lá. E estavam.
Tião e seus comparsas chegaram de supetão, armas em riste, mas apenas dois peões se encontravam. Todos os objetos estavam lá. Então, Tião mandou que fossem buscar o caminhão, pôs tudo em cima e retornou ao “seu” barraco, deixando o recado de que apanhara apenas o que era seu e que iria tirar madeira por ali também, sem se envolver com o trabalho deles.
À noite, quando a turma do Bigode retornou, tudo estava às escuras. Olhou, chamou…. Nada. Um pouco mais, um dos caboclos foi saindo do mato e contou o que havia acontecido.
Bigode, Binda e Marilso precisavam mostrar pulso e coragem para merecerem o respeito daquele monte de peão. Conclamou quem fosse homem para acompanhá-los. Conseguiu sete caboclos voluntários e saíram dizendo que voltariam com as coisas.
Acontece que Tião, que também era do ramo, anteviu a reação de seus pares e ficou amoitado, com toda sua equipe, na orla da mata, em volta do barraco. Bigode chegou gritando e atirando pra dentro do barraco, imaginando que estivessem dentro.
Pegos de surpresa, apenas um conseguiu escapar. Nove ficaram estendidos lá e cá no terreiro. Tião esperou mais uma meia hora e depois saiu, apanhou um por um, jogou em cima da camioneta em que vieram, transportou tudo até próximo ao barraco deles, jogou gasolina em cima, pôs fogo, voltou para seu caminhão que o acompanhava e retornou ao barraco para dormir.
Por via das dúvidas, deixou duas sentinelas postadas à margem da estrada, a uns 100 metros do barraco, com dois foguetes na mão para avisarem em caso de revanche. Dentro do barraco, todas as armas, deles e do espólio, prontas para serem usadas em fração de segundos.
Sem que Simba soubesse, estava decretado, ali, naquela ação, o fim de seu império e, perdida, a última chance de recobrar a paz que, embora minguando, ainda existia.
XXIII
“Quando te sorriem prosperidade mundana e prazeres, não te deixes encantar; não te apegues a eles; brandamente entram em nós, mas quando os temos dentro de nós, nos mordem como serpentes.” Santo Antônio de Pádua.
Não houve revanche naquela noite, mesmo porque os chefes haviam caído na armadilha do Tião. A turma do Bigode, para retornar pela estrada, teria de passar pelo barracão do Tião, mas ninguém se atreveu. As motosserras silenciaram, a mata retornou à quietude que lhe fora fundo desde o início de sua existência.
Sabendo que a polícia não demoraria a aparecer por lá, Tião recolheu as tralhas e o pessoal, e retornou à serraria.
Ao receber a notícia, Simba, que imaginava ser essa a solução, ficou estático, sem palavras, hipnotizado.
Às vezes apregoamos valentia e solução dos problemas pessoais através da violência, sem nunca a ter experimentado. Para que se tenha certeza de nossa reação e personalidade, só mesmo vivenciando o problema. E, agora, Simba tomava consciência da gravidade de sua insensatez. Não autorizara o Tião a fazer o que fez, mas se lembrou tarde de que era um homem inescrupuloso, e que, como tal, tinha sua maneira peculiar ou cultural de resolver os problemas. Nada mais típico, para ele, do que um “putaquepariu!” para desabafar. Como se o que acontecera fosse o mais normal possível, Tião retomou o diálogo:
– Bem, tiramos os chefes. Acho que a peãozada está procurando caminho para fugir de lá. Com certeza essa polícia de merda de Uruará irá até lá catar os pedaços de ossos que sobrou da fogueira e, se borrando de medo, deixará tudo como está. O perigo é os filhos daqueles malacos. O Bigode tem um, o Sarará, que precisamos tirar logo do caminho. É um maconheiro desgraçado que, quando fuma um baseado, quer dar uma de machão. Mas, deixa comigo que isso eu resolvo ainda esta semana.
Simba continuava boquiaberto, apavorado. Nove assassinatos! Era demais para quem falava, apenas da boca pra fora, que mataria quem ousasse subtrair seu suor ou impedir-lhe o projeto de se tornar o homem mais rico e poderoso da região.
Com tanta gente já morta, ele percebeu que poderia ser o próximo da lista. A realidade lhe chegava forte e avassaladora. Já escapara, por milagre, de um atentado. Escaparia do segundo, do terceiro, dos tantos que sempre estão disponibilizados a quem se imiscui no submundo do crime? E, depois de “longos segundos” pensativo, como desperto de um pesadelo, enfim, falou:
– Tião, tenho de ir na serraria lá de cima para apanhar um documento. Vamos até lá. No caminho a gente conversa melhor e busca uma saída.
Entraram na camioneta e seguiram rumo a Uruará. Simba possuía uma pequena serraria lá.
O carro seguia devagar, mesmo porque precisavam tratar de um assunto, deveras, preocupante. Quando chegaram e pararam em frente ao escritório, Simba pediu ao Tião que aguardasse enquanto ele fosse apanhar o documento. Já assustado, abriu a porta do carro, olhou em volta: tudo tranquilo, sem viva alma por perto. Desceu, alcançou a calçada, desfez os três degraus, passou pela varanda, enfiou a chave na fechadura, abriu a porta e adentrou. Ainda estava procurando a posição da chave da porta do escritório, quando uma verdadeira rajada de disparos se fez ouvir do lado de fora. Nervoso, sacou da arma, que já não lhe saía da cintura, empurrou a porta de entrada com o pé e protegeu-se detrás da mureta que dividia a sala do escritório.
O rosto incendiava, o temor suprimia-lhe, até mesmo, a força de acionar o gatilho. Felizmente, ao menos para ele, a zoada de um kadrom explodiu em forte acelerada e foi diminuindo ao longe: eram os assassinos que se retiravam. Mais encorajado, entreabriu a porta, olhou pela fresta, mas tudo o que viu foi um filete de sangue escorrendo por debaixo da porta da camioneta.
Na serraria, apenas o vigia que, a essa altura, vinha mostrando a cabeça por detrás de uma pilha de tábuas serradas. Olhando para todos os lados, Simba saiu para a calçada e chamou pelo vigia. Extremamente nervoso, ele veio. Juntos foram abrir a porta da camioneta. Dentro de uma poça de sangue ainda escorrendo, estava o Tião, cabeça recaída, corpo meio tombado, mas ainda sentado. Simba perguntou ao vigia:
– Você viu quem fez isso, seu Ricardo?
– Vi, sim senhor. Um eu conheci bem: era o Sarará, filho do Bigode; o outro, se não me engano, era o Astério, irmão do Binda. Desde ontem que vejo eles rondando por aqui. Acho que estavam mesmo esperando o senhor.
– E não me disse nada?
– Eu disse que vi eles por aí e isso eles faiz sempre, porque não trabalha mesmo. Se soubesse que estavam querendo matar o senhor, é claro que eu avisava. Pois é, seu Simba, ou o senhor acaba com eles, ou eles vão acabar com o senhor.
E, de fato, era uma questão de vida ou morte. Tanto Simba fora avisado, mas nunca acreditou! Agora, estava numa jaula, frente a frente com o leão: ou ele matava a fera, ou seria morto por ela. E já sem qualquer raciocínio, pulou ao volante e retornou célere para a madeireira de onde viera. Veio tão desvairadamente que, ao chegar, quase atropelou o porteiro. Brecou na frente dos quartos em que ele e os irmãos dormiam, e vendo o Heitor em pé na varanda, chamou-o:
– Venha ver a desgraça que aconteceu.
Heitor desceu o único degrau existente e olhou para dentro da boleia. O sangue lhe saiu do rosto:
– Minha Nossa Senhora! – exclamou.
XXIV
O ataque à turma do Bigode, feito pelo Tião, com a intenção de amedrontá-la, teve efeito rebote: foi como se tivesse cutucado um vespeiro com vara curta. Dias depois, caminhões fretados pelos invasores, lotados de ipês, saíam das reservas do Simba; a mata que guardava para tempos difíceis; a melhor mata que conhecera em sua vida de madeireiro.
Dizia que havendo quem vendesse matas em outros lugares, ele nunca mexeria naquela área. A floresta ali era diferente das demais de suas posses. Às vezes ele ia lá, adentrava quebrando galhinhos aqui e acolá para não se perder, e deleitava-se vendo monstruosos troncos de árvores que, postos no exterior, devidamente beneficiados, valeriam carradas de nelores gordos. Foi para preservar essa área que ele convenceu os irmãos a comprarem a grande área do outro lado do rio das Pedras, cuja ponte de travessia custou-lhe o preço do negócio.
A cada dia que passava, mais gente invadia os 10 mil alqueires. IBAMA e polícia não interferiam, satisfeitos, quiçá, em ver gananciosos morrerem inoculados com o próprio veneno.
Quando o caseiro da entrada das matas da madeireira do Simba enviava informações da quantidade de carros que passavam lotados de ipês, Simba se descontrolava. Depois de 15 dias, ele reuniu os irmãos e disse:
– Manos, vocês sabem o que nos custou chegar aonde chegamos. Agora, ou reagimos para mostrar a eles que não temos medo, ou teremos de recomeçar a vida.
– Isso é verdade – concordou o Artêmio.
– E então, que faremos? – quis saber o Benjamin.
– É arrumar as malas e fugir, ou ir lá e enfrentar aqueles filhos da puta – desabafou o Heitor, num momento de pouca reflexão, pois não era de seu feitio resolver as coisas pela violência.
Benjamim, mais novo e cauteloso com a vida, questionou se não havia outro caminho.
– Qual? – disseram os três, praticamente ao mesmo tempo.
– Então – assentiu o Benjamim – que vamos fazer?
– Sugiro que ajuntemos uns cabras machos, armemos eles até os dentes e, sob o comando do Feitosa, mandemos eles lá fazer uma limpeza ainda maior do que a que fez o finado Tião. Se o Tião morreu para defender o que não era dele, quanto mais nós, para defender o que é nosso.
– Nós iremos juntos? – perguntou o Benjamim.
– Não. Para isso podemos pagar bom dinheiro a quem tiver peito de fazer o trabalho. Uns sete ou oito bastam. Já imaginaram, sete cabras machos, com escopetas repetitivas, acostumados a matar, chegando de surpresa? Quem escapar não vai nem mais querer trabalhar com madeira.
No outro dia, acompanhados de funcionários fiéis e valentes, os quatro desceram para a fazenda. Andar quase 100 km de estrada dentro de matas fechadas, com cada sapopemba sendo uma tocaia em potencial, não era fácil. Desde a chacina consumada pelo Tião, ninguém da madeireira havia passado mais por aquela estrada. Por isso, os invasores deitavam e rolavam.
Para evitar que pequenas tocaias os pegassem desprevenidos, Simba deixou alguns funcionários em cima da carroceria, todos com as escopetas em riste. Isso, certamente, inibiria algum ataque de pequena proporção.
Quando chegaram à casa da corrente (assim era conhecido o barraco da entrada das terras da firma), outra surpresa: barraco incendiado, todo no chão e nem sinal do caseiro.
Vistoriaram e, então, com mais ódio do que medo, partiram resolutos para a sede da fazenda. Conversaram com o Feitosa, combinaram a estratégia e depois retornaram.
Três semanas depois, com um cicerone à frente de sete pistoleiros, alguns velhos no ramo, descia a jusante do rio das Pedras, numa grande canoa de madeira. Das Chagas, que recebia para correr as linhas; que conhecia toda a área como a palma de suas mãos; que, sozinho, com uma espingarda, uma rede garimpeira, uma caixa de fósforos e meio-quilo de sal, andava por uma semana inteira percorrendo as linhas divisórias da imensa posse de Simba e seus irmãos, era o cicerone. Deveria levar a turma ao local exato da invasão, indo pelos fundos, onde não existia estrada nem tocaias.
Depois de cinco horas rio abaixo, Das Chagas encostou a canoa sobre um ingazeiro-da-mata que debruçava seus galhos sobre um remanso formado pela foz de um igarapé. Desceram.
– Pelos meus cálculos – disse o Das Chagas – eles estão arranchados a três horas daqui. Acho que devemos ir devagar, assuntando bem. Pode ser que algum deles esteja bobando por essas bandas. Cuidado é como mingau: não faz mal a ninguém.
E fazendo o mínimo barulho possível, foram adentrando. Quando em vez paravam, afinavam os ouvidos, e não percebendo qualquer sinal ou ruído, continuavam a caminhada. Depois de duas horas, a zoada de uma motosserra foi ouvida.
– Tá vendo? Eles estão bem aí na nossa frente.
– Que horas temos? – informou-se o Feitosa.
Das Chagas meteu a mão no bolso, puxou seu relógio de pulso com a pulseira quebrada:
– Quase hora do rango.
– Então, vamos fazer o serviço logo e voltar. Vamos pegar eles almoçando.
– Mas, peão que se preza não vem almoçar no barraco não, seu Feitosa. A comida é levada onde eles – lembrou o Das Chagas.
– Bem, se na hora do almoço os chefes não estiver, a gente espera o jantar. De noite eles se juntam.
– É…., vamos chegar devagarzinho e espiar. Com a chuva de ontem, a mata não faz barulho e podemos chegar bem pertinho.
Vagarosamente, como bichos do mato que já quase eram, eles chegaram à orla do descampado. Escolheram um lugar estratégico em que vissem o barracão pela lateral. Como não tinha paredes, era fácil ver quantos e quem estava lá. Como supôs o Das Chagas, um caboclo chegou numa motoca que arrastava um trailer, e dezenas de marmitas foram colocadas dentro, enquanto ele almoçava. Tentando acalmar o espírito dos iniciantes no crime, Feitosa brincou:
– Vamos contar a munição, porque acho que não vai dar. Se cada marmita daquela for um peão, vamos ter que matar só a metade hoje e deixar o resto pra outro dia.
Ninguém riu. O barraco continuava calmo, como se aquele trabalho fosse o mais legalizado da Amazônia. Com a partida da motoca, apenas o responsável pela cozinha permaneceu ali. O jeito era esperar.
De repente, o cozinheiro, tendo nas mãos um rolo de papel higiênico, partiu em direção ao local em que eles se encontravam.
– Ah, não! O filhodaputa vem cagar aqui – lastimou o Feitosa. Se ele vier aqui e enxergar a gente, vou ter de matar ele. Vamos ficar bem quietos. Ninguém se mecha nem faz barulho, ainda que picado por uma cobra. Não estou com vontade de matar este desgraçado, não.
E o cozinheiro veio, veio, sempre olhando para o chão, procurando um lugar para se agachar. Encontrou o que procurava a menos de seis metros do local em que a turma se encontrava amoitada. Empurrou as folhas pra lá e pra cá com a sandália de dedo (sempre é provável a presença de uma jararaca em qualquer ponto da floresta), puxou a camiseta em que se lia em letras garrafais, “PAPAI, EU TE AMO” e, por fim, baixou uma velha e esgarçada bermuda. O ar ficou irrespirável. Sem nada perceber, ele se ergueu e foi voltando, enquanto apertava o cipó que lhe servia de cinto. Quando saiu da mata e começou a barulhar nas panelas, o Feitosa observou:
– Se eu soubesse que este desgraçado estava podre, teria matado logo. Quem vai aguentar esta carniça até de noite?
E virando-se para o Tonho, principiante, ordenou:
– Vai lá e tapa aquela merda. Sem fazer barulho, se não ficará em cima dela.
Antônio encostou a escopeta num varão e já ia saindo sorrateiro, quando foi admoestado:
– Leva a escopeta, seu idiota. Daqui pra frente, em qualquer momento a gente pode precisar. Você não viu o perigo que o cozinheiro correu sem saber de nada?
Temeroso e obediente, ele apanhou a arma e foi quase rastejando, em direção ao fedor, que parecia palpável. Tirou o facão da cintura e com todo cuidado foi cavoucando terra e jogando em cima daquela imensa carniça: “o desgraçado deve ter comido uma mucura podre, temperada com molho de urubu e bosta de chororão” – pensou. Terminado o serviço, com todo cuidado, retornou e se juntou ao grupo.
– Missão cumprida – sussurrou ao ouvido do chefe, o comandante Feitosa. O desgraçado está com uma caganeira dos diabos.
E devia estar mesmo, porque mal haviam resolvido o primeiro problema, eis que sai da cozinha, novamente com o rolo de papel higiênico, o pobre cozinheiro. E veio na mesma direção, resoluto e parecendo disposto a utilizar o mesmo local. Vinha apressado, a passos largos, quase correndo. Quando alcançou a orla da mata, arriou a bermuda e ali mesmo deixou o pútrido material. Depois, voltou ao barraco, apanhou um enxadão e tapou tudo. Para sua sorte não houve tempo para alcançar o lugar de seu primeiro desafogo. Se o fizesse, certamente tentaria entender o que acontecera, acabando por descobrir a tocaia.
Aliviado por mais essa coincidência, Feitosa desengatilhou a escopeta. Depois comentou baixinho:
– Pensando bem, acho que devia ter me livrado dele quando veio pela primeira vez. Se chegar mais algum peão aí e ele voltar aqui e descobrir a gente, vamos ter problema.
Todos ouviram calados. Mais tarde, a zoada de um carro. Era o Sarará, filho do Bigode, que chegava com mais oito pistoleiros, fortemente armados. Percebendo a situação, ainda enquanto desciam da camioneta e esticavam os músculos no meio do terreiro, Feitosa gritou:
– É agora, pessoal – e mirou o filho do Bigode como primeiro, invadindo o terreiro em seguida. Sarará caiu com metade do rosto esfacelado, e os demais, antes que se pusessem em posição de defesa, foram metralhados também. Dos que vieram, ninguém escapou. Então, alguém se lembrou do cozinheiro:
– Procurem o desgraçado. Temos de matar ele ou levar ele com a gente.
Não foi difícil encontrá-lo. Todo borrado, estava atrás do fogão, tremendo, lívido. Levaram-no ao chefe. Feitosa engatilhou a escopeta, apontou para o peito do infeliz, mas na hora de apertar o gatilho, deparou-se com os dizeres da camiseta, e estremeceu. Lembrando, também, de sua filhinha que há tempo não via, baixou a arma e perguntou a ele:
– O Astério, irmão do Binda, está na mata?
– Não, senhor.
– Quando ele vem pra cá?
– Não sei, não senhor.
– Mas ele costuma vir, não costuma?
– Ontem ele esteve aqui.
– Está bem. Você voltará com a gente. Qualquer vacilo e será morto sem piedade. Entendido?
– Sim, senhor. Eu posso pegar o retrato do meu filho que tá lá na cozinha?
– Vai, vai depressa. Agora, pessoal, vamos pegar as armas e a munição, jogar este monte de jagunço morto em cima da camioneta, tacar gasolina e meter fogo. Jogue gasolina no barraco também e toca fogo em tudo. Puxem os tambores e bota dentro do barraco, para que a fogueira seja completa. Queimem o motor também. Vamos fazer com eles o que eles fazeriam com a gente se tivessem no nosso lugar. Matar bandido não é crime: é favor que se presta ao mundo.
E, novamente, falou ao cozinheiro, já cheio de moscas varejeiras:
– A que horas os peões vêm do serviço?
– Mais ou menos nessa hora. Tem dia que nessa hora eles já estão aqui.
– Então, vamos rápido, pessoal. Não quero mais confronto hoje.
Depois de terem cumprido as ordens do chefe, o grupo distanciou-se. Mesmo um pouco distantes, eles ainda podiam ouvir as explosões e ver a negra fumaça expelida pelas labaredas. Por sorte, a intensa umidade da floresta amazônica ainda impede que o fogo se alastre. Funciona como autodefesa para sua preservação, pelo menos contra as queimadas.
A satisfação do Feitosa assemelhava-se ao contentamento de um atleta olímpico que conseguiu o primeiro lugar. Era amigo fiel do Simba e nada lhe era mais justo do que cortar a erva má que não dá frutos e lançá-la ao fogo. Pode parecer incrível e inadmissível, mas poucos cristãos se sentiriam mais felizes por ter praticado uma boa ação.
XXV
Há momentos em nossas vidas, que sem a ajuda de Deus, ou do diabo, fica impossível ir adiante.
Em menos de meia hora de caminhada, tiveram de parar. Das Chagas conhecia a mata, mas apenas de dia, ou em noite de luar. De GPS ou bússola, nunca tinha ouvido falar.
A escuridão chegou de chofre, acompanhada de forte chuva e violentos relâmpagos e trovões. A consciência de alguns principiantes não se encontrava em situação diferente, pois três do bando haviam assassinado seres humanos pela primeira vez. Afinal, que estavam ganhando para merecerem o inferno? Sim, porque cada um é julgado pelo que acredita e bem podia estar, entre eles, alguém que ainda acreditava na existência de Deus.
Das Chagas, o cicerone que não disparara um tiro, mas que assistira ao massacre, estava confuso. Fora criado quase como irmão e sempre gozara de algumas regalias diante do Simba e seus irmãos. Era ele sempre o último a dormir se na televisão passasse algum filme de apologia à violência. Mas, na televisão era mentira, era arte. Agora ele acabara de assistir a um filme diferente, real, com gritos de horror, pedidos de socorro e súplicas comoventes não levadas em conta pelos executores. Adolescentes encorajados por drogas, que ainda não lhes ofuscara a consciência, sabiam e sentiam o que estava se passando. Nos ouvidos do Das Chagas, o grito de pavor de um deles, caído ao lado do pneu dianteiro do carro, tentando erguer-se, gritando pela mãe que, àquela altura, bem podia estar no fogão esquentando o arroz e esperando alegremente por ele, não parava de ecoar. Depois, outro estrondo, e o silêncio tumular. Olhares sôfregos, perdidos: uma tragédia que nenhum cineasta produzira, tão tristemente real, nos tantos filmes que assistira em suas noites de insônia lá na sede da fazenda.
– É…., vamos ter que passar o resto da noite por aqui – decretou o Feitosa que chefiava a trágica expedição.
Cada um procurou proteger-se da chuva o quanto podia, mas era forte demais para que, ao menos a cueca permanecesse enxuta. Enfim, ensopados, viram o mau-tempo passar, as nuvens negras se dissiparem e uma lua cheia brilhar no céu.
– Seu Feitosa, se quiser, com a lua no céu, eu acerto a direção – falou o Das Chagas. Com a lua no céu, eu vou parar lá na canoa.
O Feitosa consultou a rapaziada e a caminhada continuou, devagar, com apenas três lanternas. Sempre bem atrás, vinha o cozinheiro Zé, com apenas uma velha sandália nos pés, tropeçando, caindo, esfolando-se todo. Se o vento virava, o protesto era geral, com o Feitosa logo gritando:
– Putaquepariu, Zé, quantas vezes já mandei você ficar uns 10 metros da gente?
Fora isso, ninguém reclamou de frio ou qualquer outro mal-estar: o que cada um estava sentindo na alma era supressão suficiente a todo desconforto físico. E Das Chagas, passo a passo, sempre olhando para o alto, bem antes que o dia amanhecesse, chegou ao rio das Pedras. Aproximou-se da margem para ampliar a visão e falou:
– Olha lá, aquela castanheira seca do outro lado do rio. Ela está na derrubada que os “meninos” compraram do seu sogro, Feitosa. (O Feitosa havia se juntado com a filha de um posseiro que largara o marido). Ela fica a uns 100 metros da canoa, que está mais pra baixo. É só a gente descer.
Desceram, encontraram o igarapé e, sob o ingazeiro, a canoa.
Das Chagas conhecia o rio como a palma da própria mão. Mesmo que não houvesse lua brilhando no céu, ele desviaria de cada pau caído no leito. Por isso, entraram, acomodaram-se e a canoa embicou a montante. Ninguém conversava, a não ser para pedir um cigarro ou mostrar um bicho que vadiava nas pequenas praias das margens. Sobre o acontecido, nem um comentário.
E quase no horário em que partiram na última manhã, agora chegavam. Simba e os irmãos ainda estavam deitados em suas redes. Com certeza, não estavam dormindo. A tensão, que ultimamente invadia a vida deles, não permitia conciliar uma hora de descanso. Por isso, quando o barulho do motor da canoa se fez ouvir, os quatro pularam das redes ao mesmo tempo:
– São eles – observou o Simba. Estou curioso pra saber o que aconteceu.
– Nem fala!, – repetiram os demais.
Saíram para o terreiro. A cantiga dos galos começou: era o dia que amanhecia. Não dava para reconhecer quem estava subindo a encosta, mas os vultos eram percebidos. Simba logo os contou:
– Um, dois, quatro, seis, sete…, sete, oito, nove. Nove? Que diabo aconteceu? Foram em oito e estão voltando em nove?
– Talvez eles desistiram no meio do caminho.
– Não acredito. O Feitosa não é homem de desistir de uma empreitada.
Quando eles chegaram, Simba e os irmãos os chamaram para o curral que ficava a leste, no cimo de uma pequena elevação, a uns 150 metros da casa da sede. Os demais peões não podiam, sequer, suspeitar do que estava acontecendo, muito menos do que acontecera. Lá no curral, sentados sobre os ripões de ipê do cercado, Simba falou:
– Vocês vão me perdoando, porque minha curiosidade é bem maior que a fome e o sono de vocês. Afinal, como foi a “viagem”?
– Fizemos o que o senhor mandou. Fomos lá e deixamos mais um monte de gente morta e ainda trouxemos um de presente.
– Um monte…. Quantos?
– Uns dez. É que não tivemos tempo de contar direito.
– E esse cara aí?
– É o cozinheiro deles. Trouxemos ele porque ficamos com pena de matar ele, mas se o senhor quiser, a gente faz o serviço aqui mesmo.
Simba o olhou penalizado. Parecia um frango que vem da liberdade da roça e é posto ao sol de uma feira de rua para ser vendido, morto e comido num almoço de domingo: arrasado, vencido, humilhado, totalmente indefeso. Então, disse:
– Depois a gente fala sobre ele. Quero saber de mais detalhes. Algum chefe no meio?
– Só o filho do Bigode. O Astério, filho do Binda, esteve lá há alguns dias, mas pode deixar que a gente pega ele por aqui mesmo, logo, logo.
– Então, tá. Agora vocês vão tomar um banho, trocar de roupa e comer alguma coisa. Pela catinga que estou sentindo, vocês estão precisando.
– É o cozinheiro aí – esticou os beiços o Feitosa, mostrando o pobre homem.
Simba deixou aclarar um sorriso amarelo e falou para o homem:
– Como se chama, homem de Deus?
– Zé. Olha, eu tou cagado não é de medo, não. É que tem uma semana que estou com uma caganeira dos inferno.
– Pois é, seu Zé, vai também tomar um banho e um bom café. Vou arranjar uns trapos para você se cobrir. Depois, até que a gente converse tudo direitinho, vou ter que deixar você por aqui, bem vigiado. Não quero que saia por aí contando o que viu. Vai. Logo mais a gente se fala. Vai tomar o banho. E não se esqueça: não tente fugir. Tenho gente armada vigiando cada picada que sai daqui. Seria uma grande besteira de sua parte, “escapar da onça” na mata e vir morrer na unha de nossos gatos caseiros.
Zé, sempre cabisbaixo, com imensa tristeza servindo-lhe de aura, foi seguindo os demais para a margem do igarapé Piabanha, afluente do rio das Pedras. O Piabanha era quase do tamanho do rio das Pedras, mas suas águas eram cristalinas e frias. Era dele que todo mundo se utilizava, tanto para beber como para tomar banho. Cardumes de surubins, piabanhas, piaus, pacus e mais uma infinidade de outras espécies eram vistos passeando para cima e para baixo, num desfile que somente os afortunados pioneiros admiraram.
E o Zé, mais uma vez, era humilhado. Ao se aproximar do rio Piabanha, os demais que ali se banhavam o obrigaram a descer uns 30 metros, até a confluência com o rio das Pedras. E não economizaram jocosas observações:
– Por seis meses eu não como mais peixe pegado aí pra baixo!
– Pode olhar que até as piranha tão gumitando de sair as tripa, ha ha ha ha…
E o Zé, menor que o próprio nome, sentia-se uma piabinha abandonada e indefesa, no meio de vorazes tucunarés. Nada tinha a ver com tudo aquilo, mas poucos ali estavam mais envolvidos do que ele. Como gostaria de voltar para casa, apanhar a mulher e o filho e se mudar para sua pequena São Miguel, lá nos confins de Alagoas. Mas nem precisava ser lá. Podia ser qualquer outra parte do mundo, desde que os conflitantes esquecessem que ele existiu.
XXVI
Depois de longa conversa e algumas ameaças, Simba convenceu o cozinheiro a se tornar seu informante. Seria recompensado com bom salário e não apareceria na serraria, nem para receber. Tudo seria providenciado por outra pessoa que, uma vez por semana, entregar-lhe-ia o pagamento em troca de informações sobre as tramas dos inimigos. Deveria procurar o Astério, irmão do Binda, imediatamente, e dizer a ele que, ao ouvir os tiros, fugiu pelos fundos da cozinha, embrenhou-se no mato, perdera-se e só agora estava retornando. Sabia apenas que muita gente devia ter morrido, mas não vira quem os matou, nem quantos morreram.
A esta altura, Astério, que parecia substituir bem o irmão no submundo do crime, já sabia de tudo e pouco se interessou pelas informações do Zé. Ao perguntar se ele continuaria no emprego, Astério disse que não, porque era um cagão. Apesar de, literalmente ter acertado, o que de fato o pistoleiro insinuara era o mais puro sinônimo de covardia. Depois, pensou um pouco, condescendeu e teve uma ideia: a pior de sua vida.
– Espere aí, acho que posso aproveitar você de outro jeito. Quero que vai pedir emprego lá na indústria dos cabras e ficar como meu informante. Continuarei te pagando, por fora, o salário mínimo que recebia. O Simba não ficará vivo, ainda que mude do País!
Zé gostou da perigosa sugestão e voltou à serraria do Simba. Ao vê-lo, Simba irritou-se:
– Que diabo de homem é você? Acabamos de combinar e você já tá aqui de volta?
– É não, seu Simba, é que falei com o Astério e ele mandou eu vir aqui para pedir emprego pro senhor, para saber de tudo e falar pra ele. Disse que vai me pagar um salário mínimo pra isso. Disse também que já sabe de tudo e que o senhor pode se considerar um homem morto, ainda que fuja do Brasil.
Simba entreabriu a boca e continuou com ela aberta, apalermado, sentindo que o cerco se apertava e que, de fato, entrara – como tanto seu amigo o alertara – num beco sem saída. Imiscuíra-se com bandidos, tornara-se um deles. Agora, não tinha mais como recuar. O negócio era eliminar o Astério o quando antes. Era ele o último dos chefes declarados da invasão. Sem ele, os demais abandonariam a área. Mas, se demorasse, outro líder surgiria e, então, o problema ficaria insolúvel. Num rápido pensar, depois de agradecer, levou o Zé para seu escritório:
– Pelo que vejo, você está se saindo muito bem. Receba o salário de fome dele e, aqui, você ficará junto com o vigia aí na entrada. Receberá por isso, mil reais. É importante que fique ali porque conhece os invasores e poderá me avisar. Enquanto o Astério estiver vivo, você terá livre acesso lá e cá. Isso é ótimo. Por enquanto, você volta lá, e diz que conseguiu o emprego, mas que ainda não teve intimidade para me fazer pergunta e saber de qualquer plano de minha parte. Diz a ele, também, que ficará de orelha em pé e que, talvez na próxima semana, você já fique sabendo de alguma coisa. Vai enrolando enquanto puder, e trazendo dele, tudo o que ficar sabendo. Vou te fazer uma perguntinha: você tem coragem de matar?
– Não, seu Simba. Deus me livre disso! Se a gente mata um homem, perde a amizade de Deus e, sem ela, a gente continua matando, virando bandido e indo pro inferno. O senhor me perdoa, mas eu não conseguiria matar, não.
– Nem por 50 mil reais? Vejo que você tem família, e por essa camisa que não tira do corpo, um filho que deve gostar muito. Com 50 mil você poderá botar ele numa boa escola, fazer dele um doutor. E aí, que me diz?
– Ele é tudo pra mim, seu Simba. É tudo que tenho. Por ele estou fazendo uma coisa que se minha mãe ficar sabendo ela morrerá de desgosto. Mas, matar, não.
Simba abriu a gaveta, pegou um revólver 38 e um pacote contendo 50 mil reais. Pôs em cima da mesa e empurrou para o lado do Zé. Ele afastou a cadeira como se ali na frente houvesse uma serpente venenosa, pronta para o bote. Simba não teve mais qualquer dúvida: pela mão do Zé ele não seria assassinado.
Enquanto isso, toda a região já ouvira a notícia do novo massacre. A polícia federal, aparentando descaso, já havia enviado agentes disfarçados à região e esperava a hora de prender os culpados.
Simba e os irmãos escondiam da mãe – que os criara falando de Deus – a guerra que se instalara. Diziam a ela que a briga lá na mata fora entre os invasores, com cada grupo querendo o melhor pedaço. Mesmo assim, sempre com o terço enrolado na mão, a pobre mãe, já cansada, claudicava para lá e para cá, rezando, cuidando de sua pequena criação de codornas, das flores e de uma pequena horta.
Sua intuição de mulher e de mãe lhe dizia que alguma coisa estava errada, muito errada ou mal explicada. A indústria que funcionava a todo vapor, agora se parecia mais com o pátio de uma delegacia, tal a presença constante da polícia e de agentes florestais.
O tombadouro próximo de sua casa, que nunca estivera com menos de três mil metros cúbicos de madeira em toros estocados, desfazia-se como éter ao sol. Também seus filhos quase não mais apareciam para visitá-la e quando o faziam, era sempre com conversas evasivas, às escondidas, como se estivessem passando informações sigilosas. Se ela perguntava sobre o que cochichavam, diziam que era impressão dela, que tudo estava bem, mas a mãe cedo aprendera que todo segredo é perigoso e não recomendado.
A presença quase diária da polícia, segundo eles, era porque as mortes estavam acontecendo em área de propriedade deles. A mãe escutava, mas não acreditava. A conversa alta, as brincadeiras, a alegria do dinheiro sobrando, há meses ela já não ouvia.
E a falta de paz, aproveitando a debilidade dos anos, investiu cruelmente. Como a casa para ela fora construída a uns quinhentos metros da indústria, numa rampa desmatada logo após um pequeno pântano; como nenhum filho, há dias, já não ia lá dormir; como seu marido vivesse em Altamira com outra mulher; como o caseiro que a ajudava no cuidado à horta só ficava com ela durante o dia, num domingo que amanhecera com fortes chuvas, ela foi encontrada morta, de joelhos ao pé da cama, tendo entrelaçado nas mãos, o terço de que nunca se separava. Bem acima, sobre um pedaço de mármore cravado na parede, com a cera derretida de uma vela em forma de estalactites, a imagem de Nossa Senhora, olhando para baixo, como a ampará-la no momento mais difícil da vida dela. Milhares de vezes ela rezou: “…rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte”.
Nesse dia, os filhos resolveram visitá-la. Quando chegaram, às 9h, para o sempre esperado café com bolinhos de trigo e banana, polenta e ovos fritos, leite e queijo, a casa estava silenciosa. Apenas seus passarinhos esvoaçavam no viveiro, enquanto, sem se dar conta do momento de dor, o sabiá da mata cantarolava sobre o pé de jamelão, plantado ali, propositadamente para atraí-la.
Ao notar o estranho silêncio, os irmãos se entreolharam assustados. Procuraram pelo caseiro, mas ele ainda não havia chegado. Chamaram, chamaram, bateram, mas apenas os latidos de um pincher marrom, eterno companheiro da mãe, respondia dentro de casa. Sem escolha e sem chaves, arrombaram uma janela dos fundos, que a sabiam mais frágil. Simba subiu ao portal, pulou para dentro, correu para o quarto e voltou desesperado. Esbarrou com os três irmãos que já haviam pulado e se dirigiam pelo corredor. Foi lacônico na descrição da tragédia:
– Nossa Senhora! Mamãe está morta.
Não precisou dizer mais nada. Os três que acorriam, frearam de chofre, apalermados como alguém que tenta alcançar alguma coisa que ameaça precipitar-se, mas não chega a tempo.
Já no quarto, elevaram-na e a puseram na cama. A central de ar ainda estava ligada. A cama se apresentava intacta, indicando que ela tivera um enfarte ainda antes de terminar suas orações da noite. Os membros estavam gelados e enrijecidos, o semblante era de paz. Calmamente eles a distenderam, cruzaram-lhe os braços e alinharam as pernas que, para continuarem assim tiveram de ser amarradas. Cobriram-na com o melhor lençol e depois, de joelhos em torno da cama, mantiveram-se em silêncio. Das velhas e tradicionais orações decoradas na infância, poucos se lembravam.
Depois de alguns minutos eles se ergueram e, como sempre, Simba tomou a iniciativa:
– Há menos de um mês ela me disse que, quando morresse, queria ser enterrada na catacumba da vovó, lá em Imperatriz. Não podemos negar pra ela seu último pedido. O Benjamim vai lá pra serraria e liga pros familiares; o Heitor vai atrás do carpinteiro e manda ele fazer um caixão de cedro, o mais bonito que puder. Mande forrar com seda azul, porque mamãe sempre falava em seda azul. Artêmio vai espalhando a notícia entre os funcionários, dispensando eles do serviço de hoje e amanhã, enquanto eu vou alugar um avião para levar ela pra Imperatriz. Como estou marcado para morrer, preciso de uns cabras machos para me acompanhar lá em Uruará. Acho que talvez eu consiga alugar o avião do correio. Se não der certo, esticarei a viagem para Altamira. Benjamim deve ficar sempre próximo do telefone, pois posso precisar.
Às 6h de uma terça-feira, o corpo embalsamado da mãe era alçado ao avião que viera de Imperatriz, especialmente para transladar o corpo. Os quatro filhos a acompanhavam em sua derradeira viagem. E, naquele mesmo dia, às 17h, ela entrava no jazigo em que repousava sua mãe. Agora, as duas santas juntas iriam apelar a Deus pela recuperação dos filhos e netos.
Nesse momento – se do outro lado as pessoas ficam sabendo de tudo –, um espírito estaria vertendo lágrimas.
XXVII
Simba e os irmãos, depois das cerimônias fúnebres da mãe, passaram mais um dia na cidade de Imperatriz. Como precisassem de mais um carro, aproveitaram o tempo disponível para comprá-lo, pois teriam, inclusive, condução própria para retornar.
E, se houvesse qualquer intervalo entre as negociações, ainda que fosse de apenas uma hora, Simba corria para Francisca, já quase formada e estagiando no Fórum. O importante para ela era aprender, vivenciar, tornar-se, com o tempo, uma causídica de renome. Simba nutria por ela, agora, mais que nunca, uma paixão quase doentia.
Ainda que a liberação do veículo fosse sua principal preocupação naquele momento, o dia quase não deu para que o mesmo fosse liberado. Como sempre, ele cuidou de tudo. Eu o levava de repartição em repartição para que pagasse taxas, assinasse papéis, preenchesse garantias etc. Nesse ínterim de idas e vindas, conversamos bastante. Em dado momento, aproveitando um dos tantos desabafos do amigo, especulei:
– Simba, vocês têm algum envolvimento com as mortes que estão acontecendo por lá?
Sem demonstrar o mínimo constrangimento pela pergunta indiscreta, ele confessou:
– Até agora, não, mas a partir de hoje estarei envolvido até no pescoço. Eu não vou perder toda uma vida de luta praquele bando de filhosdaputa. De jeito nenhum, pode acreditar.
– Quero que me perdoe por pensar diferente. É que isso não vai terminar bem. Uma coisa puxa outra, você sabe melhor que eu.
– Sabe o que é, amigo, se fosse pra começar esse chafurdo agora, juro, eu não começava, mas não tem mais jeito: ou a gente reage ou eles tomam tudo da gente, até a sede com as mais de quatro mil cabeças de gado e, para completar, vão levar minha vida, porque já me juraram. Virou guerra, e nas guerras vale tudo. Nós só perdemos um “soldado”, até agora; eles, uns vinte. Se a gente tirar o Astério de circulação, acho que o problema vai acabar. Ele é o último líder de peso que resta na invasão. Na verdade, se não tivesse gente da igreja incentivando, e amaldiçoadas Ongs querendo mostrar serviço para defender os repasses, tudo já teria acabado.
– Mas, não aparecerão irmãos, amigos, parentes…? Você sabe que bandidos têm família também e, normalmente, seguem o caminho dos pais ou dos irmãos mais velhos.
E, fugindo ao momento de quase reflexão, Simba retrucou:
– Conforme for aparecendo, a gente vai matando, até que eles fiquem sabendo que aquilo tem dono e que a Amazônia tem lugar pra todo mundo, logo eles não precisam querer o nosso lugar. Chegamos primeiro e isto é a lei que vale lá naquele fim de mundo.
– Já pensou que você pode ser o Astério do lado de cá, já marcado para ser o próximo?
– Pode ser, não, sou. Eles já decretaram minha morte.
– E, então?
– Então, quem puder mais, chorará menos. Pelo amor de Deus, não espalhe e se disser que falei, eu nego, mas o Astério será riscado do mapa ainda esta semana, o senhor vai ver.
– Não esqueça que sou seu maior amigo e lhe carreguei no colo. Toda esta preocupação é para encontrar um meio de demovê-lo desta batalha insana. Isso não vai terminar bem, ou melhor, pela violência, não irá terminar nunca.
– Puxa!, amigão, o senhor e sua língua maldita! Se continuar azarando, vai acontecer mesmo.
– Não é azarar, nem língua maldita alguma. É enxergar o óbvio. Se uma pessoa vai se jogar do décimo andar de um prédio, sem proteção alguma, que lhe irá acontecer?
– Bem, você já me disse: ele irá se espatifar na calçada da rua; mas, pra mim, ele pode dar sorte, amortecer em cima de fios desligados e aterrissar no capô de um carro.
– Pois é, são probabilidades. A minha, com 99% de chances de acontecer; a sua, com 0,0001%. Nesse caso, vai continuar com 0,0001% de chances de dar certo ou com 99% de dar errado?
– Ah, deixa pra lá! Vamos ver no que vai dar. Agora, não tem mais volta.
No outro dia, os quatro retornaram correndo o risco de ser presos por porte ilegal de armas. Todos os quatros viajavam atentos e fortemente armados. Não houve qualquer contratempo durante a viagem. Embora vendo e já sabendo de quase tudo, a polícia federal se mantinha aparentemente inoperante, esperando a hora exata de agir.
Bem ou mal, apesar da imensa tristeza, mais uma etapa estava vencida. Chegaram, perguntaram ao porteiro se havia novidades e, na negativa disso, encaminharam-se para o aposento do Heitor: um quarto construído no segundo andar, com ampla visão, entrada segura e porta aferrolhada. As paredes, que eram de cedro, receberam, de reforço, grossas tábuas de cumaru, capazes de impedirem, até, a perfuração de projéteis de armas pesadas.
Ao acordarem foram recebidos pela polícia. Ela queria saber o motivo da viagem e fazer perguntas sobre o último massacre. Como, até o momento, nada ainda havia vazado, os policiais acabaram retornando sem saber nada de novo. A justificativa apresentada para a viagem era mais que contundente. Ficava claro, porém, que estavam monitorando os passos deles.
Mal a polícia dobrou o portão, o Zé se aproximou:
– Seu Simba, soube que eles disseram que se não matar o senhor, vão matar um de sua família. Falaram no seu irmão mais novo. Ouvi dizer também que o Astério disse que tem várias tocaias pela estrada e que, em qualquer dia que o senhor passar por lá, eles vão arrancar seu couro.
Simba bateu-lhe no ombro, disse para que continuasse ouvindo e, num repente, pôs em prática um plano que arquitetara durante a viagem. Autorizou o Zé a dizer para o Astério, que na madrugada da sexta-feira próxima, ele iria, com os três irmãos, bem cedo, antes mesmo do amanhecer, pescar no rio Iriri. Seria uma isca que o Astério não deixaria de morder, porque, em todo o trajeto da estrada havia apenas uma mata para ser atravessada: ponto único de uma boa tocaia.
– Mas, fale com ele apenas na quinta-feira à tarde. Não esqueça, na quinta-feira à tarde.
Na quinta de manhã, Feitosa e seu grupo postaram-se às margens da estrada que levava ao rio Iriri. A uns 50 metros depois da entrada da mata, sob um imenso angelim-pedra de quase oito metros de circunferência eles se posicionaram fortemente armados. Com certeza, aquele ponto estratégico, criado pelo diabo, seria escolhido pelo próprio Astério. Isso pouco importava, porque Feitosa e seu grupo conheciam bem o veículo em que ele andava. Se ele não parasse, seria metralhado em movimento mesmo.
Para evitar qualquer falha, cinco ficaram sob o angelim, e três, 30 metros adiante, numa curva. Esse grupo arrastou um varão para a orla da estrada, deixando-o estendido no mesmo sentido da estrada. Ele seria atravessado, interrompendo a passagem de carros, somente no exato momento em que iniciasse o tiroteio na tocaia do angelim. Interromper a estrada antes disso seria correr o risco de algum outro carro passar e descobrir a trama. Em caso de imprevistos, se o Astério e seus pistoleiros ultrapassassem a primeira barreira, certamente não passariam pela segunda.
Na quinta-feira, quando já o sol se punha, a camioneta do Astério surgiu lá longe na reta da estrada, exatamente como fora previsto. Estava sendo esperada. Sem muita precaução, Feitosa dispôs seus melhores atiradores.
Astério, tão logo entrou na mata, diminuiu a marcha como a procurar um bom lugar para a tocaia. Quando viu o angelim, desacelerou tanto que o carro quase parou. O alvo foi fácil e fatal, mas não para o Astério, que se agachou e, mesmo ferido, zanzando na estrada, conseguiu furar o primeiro bloqueio. Seu caminho alongou-se apenas por mais 30 metros, quando bateu no varão. Ele ainda saltou e tentou entrar na mata: foi liquidado com mais de 10 tiros de escopeta.
A Toyota do Feitosa, escondida no meio da juquira, logo apareceu. Ainda antes de completar a manobra para retornar, já Feitosa e seu grupo estavam em cima. E desta vez, como se todos estivessem se acostumando, subiram satisfeitos e realizados por se sentir eficientes em estratégias de guerrilhas. Não juntaram os mortos, nem incendiaram o veículo. Agora era jogo aberto, guerra declarada.
Entraram pelo portão da serraria e foram direto para o “pombal”, como foi ficando conhecida a fortaleza criada por Simba e seus irmãos. Simba abriu a janela e o que viu primeiro foi o polegar em posição de positivo do Feitosa. De lá de cima mesmo, Simba fez sinal para que todos subissem.
Ele e seus irmãos ouviram a história com todos os detalhes. Escolheu um para ir buscar marmitas para todos, abriu a geladeira e liberou cerveja a quem quisesse.
– Come bem, pessoal, porque precisamos traçar novos planos. Por enquanto, parece que resolvemos o problema, mas nunca se sabe. Tem gente demais lá na invasão e outro líder pode aparecer. Enquanto não se define quem é quem, alguns vão ter que se mandar daqui. Eu mesmo, amanhã bem cedo, estarei me mandando por alguns meses. Quanto ao lugar pra onde vou, nem eu sei direito. O certo é que aqui não estarei amanhã. O que vai baixar de polícia, não vai ser fácil. Eu, o Feitosa e mais vocês cinco contratados, temos de sumir do mapa. Cada um procure seu rumo. Tonho e Das Chagas voltam pra juquira e fiquem por lá roçando alguma coisa. Se precisar, sei como encontrar vocês. Ninguém liga pra cá de jeito nenhum. Nesse tempo de grampos, segredos só no cochicho.
E, enquanto falava, foi abrindo o cofre e retirando vários pacotes com muito dinheiro. E foi generoso. Todos receberam satisfeitos, comeram de se empanturrar e disseram que estavam dispostos a voltar, caso Simba precisasse.
– Sabe o que é, seu Simba, nois nunca trabalhou com um homem inteligente como o senhor – falou por todos, um crioulo mal-encarado que, só pela característica, já impunha terror – e pode ficá tranquilo: enquanto “a Lombo Preto” aí tiver com o senhor, ninguém vai tomar as suas terras, não. Feitosa é cabra macho pra ninguém botá defeito.
Feitosa, que nunca fora de muita conversa, apenas emitiu um sorriso de agradecimento, pela metade, satisfeito com o elogio. Matar bandidos, para ele, era apenas uma boa ação que praticava em favor do mundo. Nunca partira para uma empreitada sem antes pedir a bênção a São Pedro, seu santo protetor. Poucas consciências estavam mais em paz do que a dele.
E ali passaram toda a noite. Alguns conseguiram modorras, com certeza, repletas de duendes e fantasmas, gritos e muito sangue.
Às quatro horas, a camioneta do Simba partiu da serraria. Dentro, junto com ele, o Feitosa e alguns contratados que foram ficando pela estrada. Com o Simba, apenas os endereços de cada um, estrategicamente camuflados dentro da capa que protegia o macaco do carro. Na verdade, aquilo era apenas uma garantia, porque Simba já havia decorado os endereços de cada um, até com detalhes desnecessários.
XXVIII
Como previsto, mais ou menos às 10h, um verdadeiro destacamento policial chegou. Desta vez, os federais faziam parte. Não perguntaram nada: foram logo algemando os irmãos do Simba e perguntando pelo Feitosa. Avisados de que, possivelmente ele estaria na sede da fazenda – porque lá era o lugar em que trabalhava – a polícia exigiu que o Artêmio, irmão do Simba, no próprio carro dele, levasse os agentes até lá.
E ainda no meio do grande alvoroço que se formara, um soldado do destacamento de Uruará chegava, avisando sobre um novo assassinato. Desta vez, a vítima foi o pobre Zé, envolvido inocentemente pelas contingências. É que a turma do Astério nem procurou comprovar: decidiu pela execução sumária, já que a informação do Zé a eles sobre a pescaria no Iriri, fora premeditada, orientada pelo Simba e seus irmãos. Para eles era mais que evidente.
Esse acontecimento derrubava, de vez, o prognóstico do Simba de que, eliminando o Astério, os invasores, sem liderança, abandonariam as terras dele. Astério e mais alguns homens da inteira confiança dele foram eliminados e, mesmo assim, os crimes continuavam.
Em menos de quatro horas, a camioneta que saiu em busca do Feitosa voltou sem ele e sem o para-brisa dianteiro, espatifado com tiros de escopeta numa tocaia armada pelos invasores. E os policiais, tão cheios de empáfia quando senhores da situação, depois do primeiro estampido, enfiaram as cabeças entre as poltronas, inclusive com um deles ferindo a orelha na alavanca de controle. Para o Artêmio, nada podia ter sido melhor. Seria, para eles, uma atenuante e, para os invasores, uma agravante que bem podia mudar o rumo das investigações.
A esta altura, Feitosa já estava longe e ali não voltaria tão cedo. Sobre o Simba, os irmãos apenas avisaram que estava viajando para o exterior, a fim de visitar importadores, possivelmente, espanhóis. Perguntados sobre quando saíra, os federais foram informados ter sido na tarde do dia anterior. Isso, segundo o Benjamim, evitaria que eles o perseguissem antes que chegasse e saísse de Altamira.
A indústria, sem comando, parou. Os funcionários ficaram de braços cruzados, sem saber o que fazer. Mesmo diante da tocaia sofrida por Artêmio e os policiais que o escoltavam, Heitor, Benjamim e o próprio Artêmio foram algemados e levados para Santarém. Não ficariam muito tempo por lá. Afinal, sem provas contundentes, poderiam responder o processo que sobre eles recaía, em liberdade. Dinheiro para a fiança, ainda não lhes faltava.
Mesmo assim, já com advogados acompanhando-os a cada passo, eles ficaram por lá 12 dias. Quando retornaram, mais um terrível problema: aproveitando a ausência dos proprietários, os agentes florestais fizeram uma devassa, lavrando nova multa milionária. Lacraram a indústria e todo estoque de madeiras que havia em toros no tombadouro. Nem as madeiras beneficiadas, já prontas para o embarque, escaparam. Todas as máquinas também foram lacradas, não podendo funcionar até que a decisão sobre o processo de que eram acusados fosse exarada sob decisão judicial.
Quando Heitor, Artêmio e Benjamim chegaram, foi como se estivessem apenas despertos do mais terrível dos pesadelos. O sofrimento pelo qual passaram com a refrega da extração dos mognos em Novo Repartimento, a montagem da velha serraria à margem da Transamazônica (lembranças que ainda os visitava nos dias mal dormidos em forma de terríveis pesadelos), agora lhes parecia doce sonho, ante a desgraça que se abatera. Entreolharam-se e, ao ser procurados pelos gerentes, deram férias coletivas por mais 15 dias: tempo que achavam suficiente para encontrar uma saída.
Subiram ao pombal, abriram o cofre, mas não viram nem um centavo. O último extrato dava conta de que menos de 100 mil reais constavam como saldo positivo. E, num desabafo próprio da cultura deles, Heitor exclamou, quase soletrando:
– Putaquepariu, manos! Estamos lascados.
Cabisbaixo, olhando para os pés que balouçavam de dedos abertos, como refrigério de quase duas semanas sufocados dentro de sapatos, Benjamim nada disse. Artêmio, talvez o de menos instrução, desabafou:
– Eu juro, comigo vivo eles não vão ficar com o que é nosso!
E era tanto o ódio e a convicção com que disse, que ninguém ali duvidou do que se passava na alma dele.
– Nem sei o que dizer – complementou, então, o Benjamim. Desde o começo eu desconfiava que a maneira do Simba conduzir o problema da invasão não ia dar certo. Agora, parece que estamos num beco sem saída. Todo mundo já está desconfiado que somos nós que estamos comandando essa onda de assassinatos. Olha – e aí ele ergueu a cabeça e fitou os irmãos – se bobear, vamos quebrar no toco. Vocês já pensaram na situação financeira que estamos? Sem dinheiro, indústria fechada, funcionários para pagar, processo pra todo lado…
Ao cessar a enumeração dos problemas, fez-se silêncio constrangedor. Sabiam que a luta de agora era bem pior do que aquela que enfrentaram em Novo Repartimento. Lá, eles sonhavam com um porvir promissor, agora, com um futuro aterrorizante.
Pior ficou quando souberam que os invasores continuavam lá, saindo com dezenas de caminhões lotados de ipês de primeira qualidade, sem que o IBAMA ou a polícia tomassem qualquer providência. Parecia mesmo que o mundo conspirava contra eles, como castigo supremo à ganância do Simba de tornar-se o homem mais rico e poderoso daquela região.
Restava a linda fazenda com mais de quatro mil cabeças de nelores de raça, mas ninguém podia arriscar-se a passar pela estrada, porque o boato que corria era de que havia uma tocaia em cada curva da vicinal. E como duvidar, se acabavam de sofrer um atentado, mesmo tendo policiais dentro do carro?
A falência, a continuar assim, era apenas uma questão de tempo. E tempo curto. Por isso, depois de explicar aos funcionários a situação e dizer que ainda tinham o gado, com o qual podiam fazer dinheiro para pagar-lhes os direitos, mas que ninguém tinha coragem de passar pela estrada, cinco funcionários se apresentaram e disseram que iriam lá para provar que não havia tocaia alguma e que aquilo não passava de estratégia para o calote. Foi aceito o desafio.
Apanharam uma camioneta da firma e saíram, pela manhã. À tarde, com a frente toda amassada e os vidros perfurados a bala, eles retornaram. Disseram que havia uma tocaia bem perto da antiga “corrente” e que só os atacaram quando voltavam. Ao perceber, Avelino que dirigia, acelerou fundo e conseguiu romper, mesmo sem o para-brisa. Tudo o que havia de cancela foi levado de roldão, o que danificara toda a frente do veículo. Deram notícias, pelo menos, de que a fazenda continuava com o gado bonito, mas que a juquira já estava tomando conta da pastaria.
E agora? Que fazer?
Como havia um trator que não se encontrava no pátio na hora dos lacres, resolveram utilizá-lo para ligar uma vicinal até à sede, abandonando a estrada antiga e cheia de tocaias, toda ela construída e piçarrada por eles. E isso foi feito em menos de um mês. Era quase uma picada, mas dava pra chegar à segunda sede, ainda em formação. Daí para frente, a estrada já estava pronta e com pouco perigo de tocaias. Ficava decretado, assim, que todo império seria reduzido à fazenda de gado, porque as matas estavam infestadas de pistoleiros/invasores, acobertados pela sigla MST. Não bastasse, o zunzum que corria entre os proprietários era de que alguns religiosos, mais precisamente, um bispo da região, apoiava, não as mortes, mas a, para ele, justa divisão das terras amazônicas. O que doía nos proprietários de terras invadidas naquela região era saber que os invasores, mesmo tendo metade da Amazônia totalmente disponível, só invadiam terras que já tivessem estradas, pastarias, muito gado e madeira para ser vendida. Não se conformavam com a lei que proibia, somente a eles, a ocupação e exploração daquelas áreas devolutas. Se não há lei para se destruir a floresta, como o MST, sob os olhos complacentes do IBAMA e da polícia, continuava praticando este crime?
Uma semana depois, novo problema. Cerca de oitenta invasores, utilizando a nova estrada, tentaram se apossar da segunda sede. Recebidos a bala pelos funcionários que dela cuidavam, desistiram. Não houve mortes, apenas a perda de dois bois que os bandidos já haviam abatido.
XXIX
Ao sair, Simba pediu, por precaução em caso de grampo, dois telefones celulares de funcionários, a fim de que pudesse manter contato. Um ele levaria consigo, o outro ficaria com os irmãos. Assim ele estaria a par dos acontecimentos sem que mais gente o fizesse. E não demorou a ligar, principalmente porque o dinheiro que levara já estava terminando. Sabendo da situação complicada pela qual estavam passando, e mais, da tentativa de invasão da segunda sede da fazenda, Simba descontrolou-se completamente. Disse que estava retornando com o Feitosa; que iria ligar para os contratados e solicitar-lhes a volta com quantos mais pudessem arrebanhar; que ele mesmo comandaria o ataque e que tomaria posse do que era seu de qualquer jeito. Ele havia comprado, de cada posseiro, cada palmo da área que ocupava. Assim era o costume; assim era a lei que vingava por lá.
A decisão caiu como uma bomba sobre os irmãos e pouco lhes adiantou falar sobre os últimos acontecimentos.
– Não é possível que só eles têm direito. Se as terras são do governo, nós compramos de quem chegou primeiro. Se nós não podemos tirar os ipês, como eles podem? Não me importa o que vai acontecer. Aliás, nem quero pensar nisso. Estamos voltando. Se vocês não forem covardes, juntem quanta gente puder por aí. Iremos fazer um arrastão, da ponta ao fim da estrada.
– Mas…
– Estaremos chegando aí, logo, logo – disse Simba, desligando o telefone.
Os três ficaram petrificados. Nada lhes fora tão triste e desastroso até aquele momento, do que a decisão drástica do Simba. Mas, de uma coisa estavam conscientes: ou seria assim, ou tudo estaria perdido.
Heitor, sempre mais sensato e pé-no-chão, ficou a coçar os cabelos grisalhos da nuca; Benjamim – talvez por ser mais novo – encheu-se de medo justificável. Pensou alto:
– Gente, e as nossas famílias? Nossos filhos? O Simba anda desvairado, sem família, com uma mulher hoje, outra amanhã. Para ele, tudo se resume em dinheiro e poder, mas nós podemos recomeçar com o que restou.
– Nem morto! – vociferou o Artêmio. Eu irei com o Simba. Sei o que passamos para chegar até aqui e se for para fazer tudo de novo, prefiro a cadeia ou mesmo morrer. Eu vou. E vou de peito aberto, bem na frente.
– Sinceramente, esta é a decisão mais difícil de minha vida – continuou o Heitor. Se eu deixar vocês sozinhos, nunca irei me perdoar; mas, assim como o Benjamim, penso nos meus filhos. Não tenho a menor dúvida que nosso futuro vai ser a morte ou a cadeia, porque, agora, não tem mais como negar nossa participação. Sinto que não nasci para ser um assassino, nem para matar alguém em legítima defesa. Será que não há outra saída?
– Há, sim – continuou o Artêmio – borrar as calças de medo e entregar, de mãos beijadas, toda uma vida de trabalho. Eu não tenho mais idade, nem saco para recomeçar. Eu já não vejo a hora para resolver isso de uma vez por todas. Depois, o que tenho visto é que só perde quem morre. Nesse país ninguém fica por muito tempo na cadeia. Sei que se a gente expulsar esses filhosdaputa daí, matar uns 20 ou 30, o máximo que ficaremos na cadeira é uns cinco ou seis anos. A gente vê isso na televisão todos os dias. Gente que mata, sequestra, rouba bilhões… fazem tudo isto, saem algemados e logo depois estão novamente por aí. Eu vou, aconteça o que acontecer.
Ante mais um intervalo de constrangedor silêncio, Heitor foi à janela. Dali ele via claramente a casa de sua mãe, agora sozinha, sem vida. Os passarinhos foram soltos, a horta amarelecera, as flores pareciam desistir de enfeitar o ambiente: já não havia quem merecesse isso.
E pensou na mãe que, certamente, fora mais uma vítima das tantas decisões impensadas dos últimos meses. Quantas vezes ela, diante dos planos do Simba de sempre comprar, crescer, investir…, dizia, para todos os filhos reunidos durante as refeições: “Meus filhos, chega! Vocês já têm demais. Para quê tanto, meus filhos? Vocês precisam parar, se divertir, gozar a vida, lembrar mais de Deus. Vocês já ganharam esta vida, agora lutem para ganhar a outra. Estão esquecendo que chegaram onde estão porque Deus ajudou. Agora, chega, meus filhos! Quando pretendem parar? Quando, meus filhos?”
E a dor lhe batia fundo no peito. Daria tudo o que havia conquistado para se ver fora do problema que estava vivendo. Como chegara até ali, como? Quanta saudade de seus tempos de menino, lá na vilinha perdida de Marilândia, no longínquo estado do Espírito Santo!
E olhava, pensava, pensava…. Que dura decisão teria de tomar nos próximos dias! Deixar os irmãos sozinhos, com certeza seria covardia; dissuadi-los, parecia impossível; ir com eles, com certeza iria morrer ou matar, ambas as opções totalmente fora de seus planos de vida. Se morresse, como ficariam seus filhos, ainda dependentes? E se matasse, como iria suportar as noites, ouvindo a voz esganiçada da consciência: assassino, assassino, assassino, assassino…
Então, prendendo fortemente o portal da janela com as mãos, como se estivesse se agarrando a algo em busca de socorro, tentou, pela última vez, merecer a misericórdia dos céus. Rezou atabalhoado, desesperado, sentindo que Deus lhe virava as costas, porque tantas vezes lhe estendera as mãos e ele não aceitara. As lágrimas começaram a lhe correr pelo rosto: lágrimas como a que Cristo derramou diante do irreversível. Haveria, também, de beber aquele cálice?
XXX
Simba – numa rápida retrospectiva do que havia passado para chegar aonde chegou e pressentindo que estava prestes a perder tudo o que conquistara com supremo esforço – já pouco se importava com o que lhe pudesse acontecer. Tornou-se inconsequente, cheio de ódio e vingança.
Ligava de qualquer telefone e nem olhava dos lados quando descia do carro. Passou por Imperatriz e foi visitar Francisca, que estava sentada à mesa da sala, rodeada de livros jurídicos. Simba, transtornado, visivelmente desequilibrado, foi enfático:
– Mulher, nunca deixei de amá-la, mas quis o destino que assim as coisas acontecessem. Vim apenas me despedir de você. Me dê um forte abraço e tente me esquecer, porque eu farei o mesmo… se sobreviver.
Notando a maneira trágica do homem que sabia não ser assim, Francisca atemorizou-se:
– Vamos lá para o quarto. Ali foi sempre o lugar em que resolvemos nossos problemas. Precisamos conversar. A coisa não está sendo fácil pra ninguém, mas sinto que, para você, nesse momento, nunca esteve pior.
– Não tenho mais tempo, mulher. Quem sabe, talvez tenha todo tempo do mundo, daqui a alguns dias.
– Ora!, que maneira é essa de conversar como se estivesse se despedindo da vida? Vai morrer, por acaso?
– Ninguém fica pra semente. Me perdoe e me dá licença que estou atrasado. Preciso cumprir meu destino, urgentemente. Podem me acusar de tudo neste mundo, mas nunca de que não acreditei no trabalho como maneira honesta de vencer na vida. Infelizmente, o trabalho honesto é apenas o caminho mais difícil de enriquecer, e isso só agora estou percebendo.
E nem adiantou Francisca tentar segurá-lo pela manga da camisa. Ele a abraçou fortemente, transpôs o umbral da porta, entrou no carro, acelerou forte e partiu para Novos Sonhos.
Pela primeira vez tornara-se um homem perigoso, transferindo toda obstinação e coragem de sua personalidade, em favor da violência. Isto lhe era um trunfo terrível, porque iria partir para matar, sem medo de morrer. Não tremeria diante do confronto e atiraria com ódio naqueles que lhe implorassem a vida. Não haveria perdão àqueles que, de alguma forma já o tinha matado, porque seus sonhos eram a razão de sua vida.
XXXI
Quando Simba chegou à madeireira, a comoção já era geral. Funcionários voluntários arrebanhados pelo Artêmio, tendo em vista a possibilidade de perderem o emprego, estavam a postos, esperando apenas a entrega das armas. O burburinho era geral e o grito de guerra era para expulsar, com a morte, todos os invasores.
Simba, qual um general que vive seu momento de herói; como político que dá a vida por um momento de glória, ergueu a mão e disse aos motoristas dos caminhões:
– Encostem os carros. Quero três. Providenciem grossas tábuas de ipê para proteger as laterais. Benjamim, traga todas as armas do esconderijo e as munições e ponha tudo aqui na varanda. Turma, eu e meus irmãos que toparem, vamos na frente, na camioneta. Feitosa e os mais treinados, vão no primeiro caminhão, logo depois de nós. Os voluntários, no terceiro, levando tambores de gasolina e fósforo: vamos queimar tudo. Só não quero que matem as crianças de 14 anos para baixo e alguma mulher grávida, se tiver por lá. O resto, faxina geral. Todo e qualquer carro que for encontrado trazendo nossos ipês, serão metralhados e queimados. Se tiver alguém aí com medo, algum covarde que foge da raia, que não suba no carro.
Foi então que se sentiu a força e o perigo que um líder inconsequente representa. Suas palavras entranhavam nos funcionários como se fossem proferidas num trabalho psicológico de lavagem cerebral. Não havia um, entre os funcionários, que pensasse nas consequências do que estava para fazer. Todos agiam como num estouro de boiada, em que, cada rês segue as demais sem saber para aonde e nem para quê. Mas isso só aumentava o perigo, porque tudo o que estivesse na frente seria atropelado. A euforia continuava cada vez mais temerosa.
Em pé, em cima da pequena calçada do escritório, Heitor ouvia aquilo e não podia acreditar. Era o fim de tudo, o dia do apocalipse, a morte em vida, o fim de todos os sonhos. Olhou para o céu: estava azul, com farrapos de nuvens passeando aqui e lá. Elas formavam figuras que se transformavam em anjos estarrecidos. A indecisão em participar e acabar com sua vida; tornar-se um assassino ou viver como um covarde, invadiam pesadamente a sua alma. Os filhos não lhe saíam da cabeça; a figura de sua mãe, postada diante de seus olhos, quase de joelhos, atônita, com o terço na mão, parecia implorar-lhe para que não fosse, para que não permitisse mais aquele desatino. E no lugar dos gritos de ordem, ele apenas via e ouvia sua velha mãe a dizer-lhe: “Faça alguma coisa. Você é o mais velho. Eles têm de ouvir você”. E mais que nunca, Heitor agora entendia o valor daquele terço sempre entrelaçado nas mãos de sua mãe, a pedir a Deus que não desamparasse seus filhos. Ela se fora e agora estavam à mercê de entidades diferentes.
Pelo pátio, a correria, o triste entusiasmo do inferno. Era gente amarrando as tábuas de proteção, gente escolhendo armas e enfiando nos bolsos muita munição. E Simba dando ordens, estimulando, acendendo o ódio no coração daquela gente que não sabia o que estava fazendo. Em determinado momento, Heitor pulou da calçada, segurou Simba fortemente pelo braço, sacudiu-o e tentou a última cartada, despertando-o daquele estupor:
– Mano, pelo amor de Deus e também por amor à nossa mãe e aos nossos filhos, não faça isso. Não vê que está acabando com nossas vidas e com a vida de muitos inocentes? Que têm a ver esses pobres infelizes aí com o nosso problema? E os que vão morrer lá pra dentro? Não bastasse, quem nos garante que vocês vão voltar vivos de lá?
– “Vocês… vão…”. Pelo que vejo, está com medo. Não vai com a gente. É isso?
Heitor baixou a cabeça e implorou:
– Peço pela última vez, desista. Ainda vai sobrar muita coisa pra nós. Até agora, ninguém pôde provar nada. Será palavra contra palavra. Mas, se fizerem isso, não haverá como negar nossa participação. Inclusive eles vão entender que, em todas as mortes que já aconteceram, a gente tava no meio.
– Sai pra lá, seu covarde. Enfie-se debaixo da cama, que é o lugar dos cagões.
Cabisbaixo, arrasado, Heitor foi voltando para a calçada. No caminho, viu o Benjamim, seu irmão mais novo, pálido, aterrorizado, caminhando com uma escopeta na mão rumo à camioneta. Na porta, o outro irmão, Artêmio, perguntou-lhe:
– O Heitor não vai não?
– Não sei, mas se não for, será o único que está pensando neste momento.
– Você está com medo, mano?
– Nunca tive tanto em toda minha vida. Teve muitos dias que, em minhas caçadas, não tive coragem de atirar num bicho, por sentir pena dele. Imagina o que será, para mim, atirar num homem que nunca vi, que talvez está lá só para ganhar o pão de seus filhos.
– Se está com tanto medo assim, fique em casa. Deixa que eu e o Simba fazemos o serviço sozinhos. Até seria bom que você não fosse, porque iremos precisar de você para nos tirar da cadeia, porque a bagaceira que vamos fazer vai ficar na história.
– Não há mais como! A noite que passou eu não dormi, fazendo todos os cálculos possíveis para me decidir. E decidi que não deixarei vocês sozinhos. Não consigo esquecer aqueles anos que juntos passamos no Novo Repartimento. Não acredito que haja no mundo alguém que tenha lutado tanto para se livrar da pobreza, honestamente. Agora, seja o que Deus… ou o diabo quiser.
Artêmio bateu-lhe no ombro, suspirou e repetiu:
– Seja lá o que Deus… ou o diabo quiser!
Como se estivessem, como Judas Iscariotes, programados para cumprirem um triste destino, os dois se acomodaram na parte de trás da camioneta cabine dupla. As poltronas da frente seriam ocupadas pelo motorista e pelo Simba.
Simba entrou na camioneta, ergueu a escopeta em impulsos resolutos, disparou para cima e gritou:
– Pelo emprego de vocês, pelo pão de seus filhos, pelo direito de propriedade, vamos expulsar aqueles filhosdaputa. Que ninguém se acovarde. E não se esqueçam: vivos, somente as crianças e as mulheres grávidas.
O grito de guerra foi dado, com o comboio partindo para a região da invasão. Ninguém mais se importava com as apregoadas tocaias que existiam em toda a extensão da estrada pela qual iriam passar.
A madeireira ficava na orla da Transamazônica, tão perto dela que já havia sido exarada a ordem para que o escritório e algumas casas fossem afastados. Mas, até então, nos tantos anos que ali estavam instalados, nada foi feito.
Não haviam percorrido 30 km da vicinal, e o primeiro caminhão transportando os ipês roubados da reserva do Simba foi encontrado. Serviço fácil. Nem precisou gastar muita munição. Eliminaram os ocupantes, empurraram o caminhão com os mortos dentro para fora da estrada, jogaram gasolina em cima e atearam fogo. E como se estivessem drogados, a diabólica euforia aumentava.
No cômputo geral, foram oito caminhões incendiados, mais o barracão, 37 mortos, uma grávida e três crianças trazidas como reféns. Ninguém, da turma do Simba, havia sido morto, nem ferido. Os invasores foram apanhados de surpresa e não houve reação. Apenas um peão que se encontrava no barracão dos invasores, apresentou-se com uma espingarda na mão, mas nem ousou apontar. Morreu segurando a arma, com a mão estendida para baixo. Pelo caminho, nenhuma tocaia. Talvez até houvesse, mas diante da disparidade de forças, ninguém ousou reagir.
E, em algazarra, foram retornando. Tudo foi conforme os planos do Simba. Só não, a chegada.
XXXII
Quando chegaram à serraria, encontraram-na deserta e silenciosa. Nem uma viva alma havia pelo pátio, nem pelos derredores. Apesar de ser aquilo muito estranho, o comboio foi entrando, atirando para o alto e fazendo uma algazarra psitacídea. Nisso, como se brotassem do chão, dezenas de policias federais foram aparecendo com metralhadoras apontadas.
O barulho cessou completamente. Toda euforia da aparente vitória diluiu-se. Cada um foi descendo do carro e se encaminhando para um canto designado pela polícia. As armas foram recolhidas, as pessoas algemadas. Durante toda a tarde, cada indiciado prestou depoimento preliminar. E quando a noite chegou, nos mesmos carros da chacina, eles seguiram, agora, para Altamira.
Heitor, apesar de não ter participado, também foi preso, por conivência. Benjamim, que entregara a arma sem uma cápsula deflagrada, também não teve complacência. Como atenuante, ao menos para sua consciência, levava a certeza de que não se tornara um assassino. Isso lhe seria boa companhia durante os anos em que ele, o Simba e o Artêmio seriam condenados. Heitor ficou respondendo o processo que lhe coube, em liberdade.
Hectare por hectare de terra, boi por boi do rebanho, máquina por máquina da indústria, carro por carro de cada um, enfim, tudo o que possuíam foi vendido e consumido com advogados, multas, impostos, direitos trabalhistas…
E, quando mais nada restava, apenas com uma mala contendo velhos trastes, Heitor retornou a Belém, junto à família que, por economia, já morava numa casa modesta e alugada, na periferia, juntamente com a mulher e os dois filhos de Benjamim. Na cabeça, apenas a visão do inferno que vivera. Jamais saíam de sua mente aquelas figuras esquálidas, pálidas, de cabelos desgrenhados de seus queridos irmãos, presos numa fétida cadeia, junto a centenas de perigosos bandidos.
Em todos os horários permitidos, vestida de preto, Francisca, que desde o incidente mudara-se para Belém, ia visitar Simba. Levava alguma coisa na mão e, no coração, o eterno pedido para que ele acreditasse que ela o amava. E Simba, parecendo 10 anos mais velho, pendurado nas grades, com Artêmio e Benjamim apoiados pesarosamente nele, apenas balbuciava, como se estivesse com medo de confessar, em claro e alto som, que jamais abandonaria seus planos, enquanto estivesse com o coração batendo:
– Ainda não acabou! Ainda não. Tire-me daqui minha querida, que eu consigo tudo outra vez.
– Eu vou tirá-lo, juro. Você está certo, não acabou ainda. Estou tentando provar que você e seus irmãos são mais vítimas que culpados. Eu juro, vou tirá-los deste inferno. Se há quem defende as invasões, há outros que as acusam e detestam. E os grupos que recriminam a maneira com que o MST age, invadindo até propriedades produtivas, são muito maiores e mais poderosos, porque se já não viveram o problema, correm o risco de vivê-lo a qualquer momento. Já tenho gente grande, inclusive políticos influentes, interessados em provar, não a inocência de vocês, mas a inconsequência dos que invadem terras que já têm dono.
XXXIII
Setembro de 2007.
Os parentes de Simba, penalizados com a desgraça que se abatera sobre ele e os irmãos e também gratos por eles nunca se terem negado – nos tempos de abundância – a ajudar a quem estivesse em apuros financeiros, uniram-se em cotas mensais para garantir a eles todo necessário às despesas processuais.
E Francisca, incansavelmente, a cada dia útil que nascia, caminhava para o Fórum, para as delegacias de órgãos públicos ligados ao problema e lá buscava apoio, somava petições…, de tudo fazia para não permitir que a condenação transitasse em julgado, pedindo anulação, redução da pena, revisão criminal ou, no mínimo, que eles respondessem pelos crimes em liberdade condicional ou em regime aberto.
Enfim, no dia 21 de setembro de 2007, numa sexta-feira de lindo sol, com milhares de flores já desabrochadas pelos jardins e campos, o juiz deliberou por conceder redução da pena, considerando os anos em que estiveram presos, suficientes para o pagamento do que definiu, “defesa de seus direitos à propriedade”.
Quando o alvará chegou às mãos de Francisca, ela não se conteve e chorou copiosamente. Com as mãos trêmulas, sentou-se ao lado do telefone e começou a discar para os parentes, avisando que, enfim, eles estavam livres.
Heitor foi o primeiro a ficar sabendo. Demorou tanto em tecer qualquer comentário, que Francisca imaginou ter-lhe acontecido algo grave. Mas, depois de um bom tempo para recuperar-se, ele apenas disse:
– Meu Deus, enfim!
Imediatamente ele se dirigiu, com Francisca, à prisão em que os três estavam. Depois de apresentar o alvará de soltura ao delegado de plantão, Francisca e Heitor se dirigiram, acompanhados pelo policial indicado para abrir a cela, ao local em que eles se encontravam.
Simba estava sentado no chão, cabisbaixo, arrasado, raros cabelos finos e quase brancos desgrenhados, barba rala sem rapar, esfregando o indicador na crosta empoeirada e cuspida do chão. Artêmio, de braços cruzados, e Benjamim, com uma revista na mão, estavam ao lado, de pé, dividindo aquela dor que parecia palpável em Simba.
Francisca e Heitor apoiaram as mãos na grade da cela, e novamente não contendo as lágrimas, Francisca chamou:
– Simba! …
Ele apenas elevou a cabeça, sem interromper os riscos que fazia aleatoriamente sobre o piso nojento. Ao perceber que Heitor e Francisca choravam, tentou concluir:
– Obrigado meu irmão e minha eterna namorada! Sei que fizeram tudo o que foi possível e que iremos apodrecer neste cubículo imundo. Eu sei que fizeram tudo, eu sei. Não precisam chorar.
E Francisca, ainda mais emocionada, virou-se para o carcereiro e pediu:
– Por favor, abra a porta, solte-os.
Benjamim, que apesar de ter estudado pouco, adquirira o bom costume de consumir o tempo lendo livros e revistas, estava, quando chegaram, lendo qualquer coisa de uma Veja que lhe fora emprestada pelo carcereiro. Ergueu os olhos, fitou Francisca e, entre crer ou não crer no que estava ouvindo, agachou-se, ergueu Simba do chão e, juntamente com Artêmio, dirigiram-se à grade em que se encontrava Francisca com os olhos lacrimejantes:
– Pelo amor de Deus, não crie uma esperança falsa. Você conseguiu mesmo nossa libertação? – perguntou ele com a voz entrecortada.
E, erguendo o alvará, Francisca respondeu:
– A partir deste momento, vocês estão livres, livres para sempre, livres para viverem em paz o resto dos dias que Deus reservou a vocês.
Por mais que tentasse, Simba não conseguia acreditar. Abraçado à Francisca, tendo ao lado os três irmãos, ele foi desfazendo o corredor da penitenciária. Era um corredor quase escuro, apenas com pequenas aberturas em cobogós para que se evitasse permanecer com as lâmpadas acesas. De repente, a claridade foi aumentando e as portas da liberdade se abriram.
Apesar de a primavera estar apenas começando, a Natureza parecia em festa. Simba, muito deprimido, sempre se opusera aos banhos de sol. Sua pele estava branca, sensível, e agora ardia como se estivesse a poucos metros de uma fogueira. Os olhos não conseguiam permanecer abertos. O barulho da cidade, com grande movimento de carros e burburinho incessante de transeuntes, parecia-lhe que, tudo o que passara no silêncio da cela, fora apenas preâmbulo do inferno que ora adentrara de vez.
Francisca fez sinal para o primeiro táxi e eles foram todos para a modesta casa de Heitor, situada numa travessa do Bairro Pedreira. Pouco conversaram durante o trajeto. Não havia planos nem qualquer entusiasmo pela liberdade, porque a desgraça que se abatera não parecia terminada. Pelo menos para Simba, viver na miséria pouco diferençava do cubículo asqueroso do qual apenas acabara de sair.
No entanto, como semente fora do sol e da umidade, que não germina por falta de condição, mas que continua com a vida latente, esperando apenas a oportunidade para brotar, assim era Simba: estava aparentemente morto, mas, com certeza, tão logo se sentisse em liberdade, como semente regada, ele despertaria.
Francisca perguntou a ele se não queria acompanhá-la de volta a Imperatriz, viver na casa que, afinal, era também dele. Simba pediu um tempo. Disse que queria melhorar um pouco a aparência. Francisca não insistiu. Deixou-os e voltou, vivendo um dos dias mais felizes de sua vida.
XXXIV
Na pequena e modesta casa da periferia de Belém em que Heitor, sua família e a família de Benjamim passaram a morar depois da tragédia, não havia mais acomodação. Os únicos espaços vagos, e cobertos, resumiam-se a um estreito e curto corredor entre os quartos e a uma pequena área atrás da cozinha, em que havia um tanque de lavar roupa. Artêmio, por ter perdido a mulher de seus sonhos num acidente de carro, escolhera viver solteiro o resto de seus dias. Namorava muito, mas suas conquistas iam somente até o dia em que a namorada falasse em casamento. Esse tipo de conversa, segundo ele, significava o momento de arranjar outra. E assim, de galho em galho, ele ia mantendo a promessa que fizera à sua amada, de que jamais se casaria com outra mulher.
E a sofrível casa, com todo aquele sufoco no limite, agora recebia mais três inquilinos irrecusáveis.
No fundo do quintal, havia uma frondosa mangueira que parecia desafiar o tempo. Seus galhos iam do muro dos fundos à porta de entrada da cozinha. Sob ela, um tosco banco de cumaru que parecia não ter menos tempo que a mangueira. Era ali que os quatro irmãos, sentados, passavam a maior parte do dia. Tudo o que se passara nos últimos quatro anos exigia um bom tempo, tanto para esquecerem a humilhação, como para repensarem a vida.
Mesmo assim, não foram necessários mais que algumas semanas para que a semente dos sonhos de Simba, já com o sol da predestinação e a umidade da esperança, começasse a dar mostra de que ainda podia germinar. Os irmãos sabiam que aqueles anos de sofrimento que passaram na cadeia não seriam suficientes para matar a obstinação do irmão. E naquela tarde, depois do almoço, sob a mangueira e sentados naquele banco de cumaru, Simba olhou para os irmãos, apalpou o bíceps do Heitor que estava mais próximo e especulou:
– E aí, mano velho, ainda posso confiar neste músculo possante para começar tudo outra vez?
Como desperto de um pesadelo, Heitor olhou para Benjamim e Artêmio em busca da resposta a dar, mas eles continuavam olhando para o Simba, sem acreditar no que estava sendo proposto. Então, observou:
– Recomeçar? Como? Partindo de onde?
– Ora, daqui deste quintal! A gente pode se meter em outro canto da Amazônia. Ela é grande. Vocês não se lembram como parecia impossível quando começamos lá no Novo Repartimento?
– Pelo amor de Deus, Simba, me peça para assaltar um banco ou um aposentado do INSS, mas jamais para voltar pro Novo Repartimento – falou meio sério e meio brincando, Benjamim. E continuou: naquele tempo a gente era novo, mas agora…
– Tem nada não, mano! Se tiver que ser pelo Novo Repartimento, que assim seja. Estamos vivos, não estamos? Não dizem por aí que enquanto se está vivo é porque a gente ainda não terminou a missão que Deus deu pra gente neste mundo? Pois é, estamos vivos. E melhor: agora é que não temos nada a perder mesmo, nem dinheiro, nem a juventude.
Artêmio que, diga-se de passagem, nunca se preocupou com qualquer problema por maior ou mais grave que fosse, e que tinha sua maneira peculiar de, com uma risadinha de três trepidações, responder ou dar sua opinião, agora a complementou com humor:
– Não disse pra vocês? – falou ele virando-se para o Heitor e o Benjamim – que se a gente não der um jeito da polícia prender este desgraçado outra vez, ele vai fazer a gente voltar pro Novo Repartimento? Sinceramente, eu não sei o que foi pior: se aqueles anos lá no Pacajá e no Novo Repartimento, ou os anos na cadeia.
– De fato, é uma escolha difícil, muito difícil – completou o Benjamim.
XXXV
No início de 2008, quando o mundo parecia reviver a tragédia do dilúvio – tanta a chuva que caía sob a batuta de trovões, relâmpagos e raios – lá estavam os quatro, duas mudas de roupa, uma no corpo e outra numa sacola plástica, no alpendre do barraco do Gonçalo, novamente na vila Novos Sonhos, criada por eles próprios.
Do mesmo jeito com que Simba o encontrou da primeira vez, apenas com menos cabelos, agora grisalhos, e desenvolvendo a mesma estratégia para sobreviver, o boliviano veio atender-lhes. Simba adiantou-se, dando-lhe um forte abraço:
– E aí, Gonçalão, dá ainda para acreditar em mim?
– Ainda que nem a boroquinha que traz aí debaixo do braço você tivesse, eu confiava. Não há como duvidar de um homem como você, Simba.
– Você toparia me vender fiado um pedaço de sua mata pra gente começar tudo outra vez?
– Está lá, Simba, esperando por você. Lá, junto à minha posse, tenho ainda mil alqueires de matas virgens, cheinha de ipês. Mas, só uma perguntinha: como vai fazer para ganhar dinheiro com aquilo, lá onde está, sem um puto no bolso?
– Bem, a gente começa alugando uma motosserra, compra alguns machados, foices e facões que são baratos e mete bronca. Derruba os ipês, paga frete aos caminhoneiros e, no começo, vende as toras nas serrarias. Com o dinheiro que for sobrando, a gente vai pagando você, retomando o crédito e comprando as coisas tudo outra vez. E já que me disse que continuamos amigos e que confia em mim, pergunto se você nos empresta o barraco e a roça de macaxeira para a gente começar o serviço.
– Minha roça de macaxeira? Ora, vocês vão fazer farinha ou tirar madeira?
– Tirar madeira e comer macaxeira, ora. O Artêmio é bom caçador e o melhor pescador do mundo. Ele mata os bichos, pega os peixes e a gente faz o famoso mexidão com a macaxeira. No fim, prometo plantar as macaxeiras outra vez.
Gonçalo riu, disse que faria tudo o que lhe estivesse ao alcance, porque já tivera provas sobejas da determinação do Simba.
Heitor, Artêmio e Benjamim, apenas se entreolharam e disseram ao mesmo tempo:
– Meu Deus, tudo outra vez!
E num lampejo da lembrança, Benjamim, que havia lido a Bíblia por três vezes enquanto preso, arriscou o lamento bíblico narrando o quase desespero de Jesus, ante a proximidade da crucificação: “Pai, se possível, afaste de mim este cálice!”
E Simba, já com os olhos brilhando de esperança, concluiu:
– Tudo outra vez! Igualzinho antes: um pouquinho (para ele, trabalho e sofrimento eram sempre definidos como irrisórios, pequenos, desconsiderados, em suma, pouquinho) de sofrimento e tudo de volta. Agora que aprendemos a lição, que conhecemos o caminho, que muitas pessoas ainda acreditam em nós, vai ser mais fácil, vocês vão ver. E tem mais: cada gota de suor que a gente derramar, agora vai ter seu justo valor. Nada de jogar fora à toa, como tanto fizemos. As piranhas que me perdoe, mas vão ter que procurar outro trouxa.
E os quatro, dali mesmo, seguiram para as margens do rio das Pedras, alguns quilômetros acima do que já fora deles, na abertura que pertencia ao Gonçalo. Este, num misto de amizade e pena, emprestou-lhes uma velha motosserra e lhes comprou, fiado, as ferramentas que pediram.
E, de fato, tudo começou outra vez.
XXXVI
No Natal de 2009 já não havia qualquer dúvida de que Simba restabeleceria, agora com fundamento sólido, um novo império. Ele era um homem singular, algo que o mundo só lança no mercado de século em século. Demoraria mais, porque já não conseguia suportar o peso do sofrimento e do tempo, sem reclamar do cansaço. Cedo se deitava na rede, para que quando o dia amanhecesse, já estivesse com os músculos descansados para mais 12h de refrega. Também não exigia tanto dos irmãos, que os reconhecia menos dotados de determinação para o trabalho.
Muitas vezes lembrou de Katarine, que bem podia estar ali a seu lado, mas ela, desde o dia em que as invasões começaram, com a crise retirando dela todas as mordomias, inclusive o carro, amasiou-se com outro e foi com ele para Santarém. Katarine era uma verdadeira perdigueira: dono dela seria quem a chamasse e a tratasse bem. Simba gostava dos carinhos dela e nunca se disse injustiçado, porque também a usava para amainar suas taras. Nem ele mesmo conseguia explicar, mas sentia grande necessidade de uma companheira. Não mais para fazer sexo ou, pelo menos, não apenas para o sexo, mas para lhe ser confidente e amiga.
De qualquer forma, os negócios iam bem e ele voltava a ter alegria, prazer de viver e certa felicidade. Aos domingos, não mais trabalhava. Voltou a decorar as orações dos tempos de criança, recitava-as ao se levantar e, à tarde, saía com os irmãos para pescar no rio das Pedras. E dentro de uma velha canoa do Gonçalo, as lembranças “da travessia do deserto” agora se transformavam em histórias de humor.
Mas, se Simba já se sentisse feliz pelos rumos que sua nova vida tomava, mais feliz ainda ficou quando, numa tarde, ao retornar do serviço, encontrou Francisca cozinhando arroz com macaxeira e mamão verde, na cozinha do barraco. Gonçalo que a levara, estava com a rede estendida por detrás do barraco, para que Simba e os irmãos não o visse. Fora combinado para não estragar a surpresa que Francisca imaginara.
Foi difícil, muito difícil para Simba, acreditar no que estava vendo. Correu para ela e já debilitado emocionalmente por tanta luta e sofrimento, apertou-a contra si e começou a chorar. E Francisca, depois que retomou a voz, jurou:
– Simba, prometo que te acompanharei até os últimos dias de sua vida. Quero participar de sua luta e da luta de seus irmãos, porque vocês são guerreiros e não podem ficar sozinhos. Tenho certeza que verei vocês de novo lá no alto.
Não vim aqui para ser sua mulher, porque sei que não mereço. Quero apenas que me aceite como sua cozinheira. E não pense que isso me deixa triste, não. Irei sempre agradecê-lo por mais esta oportunidade de lhe provar que, desde o dia em que lhe jurei fidelidade, sempre lhe fui fiel, como nenhuma santa mulher o foi até então.
A cada dia, como se tivessem recebido o perdão pelos erros cometidos e as graças de Deus pela obstinação, eles iam aumentando a coragem e o entusiasmo para lutar. Quem os visse agora, não acreditaria se tratar daqueles trapos da cela 119, tristes, desolados e abatidos.
Francisca continuou com eles, e foi ela quem conseguiu uma firma de Belém para legalizar a primeira exportação de ipê que Simba providenciara, pagando o frete e a serragem numa serraria de Uruará.
De fato, tudo outra vez, porque nada é impossível a quem quer uma coisa possível e luta diuturnamente por ela.
Fim.