Apresentação:
Quando aquele adolescente humilde e pobre apertou a campainha de minha casa não imaginei senão um pedido de empregou ou de ajuda. Trazia nas mãos algumas folhas de papel almaço muito amassadas e rabiscadas. Disse que precisava falar-me:
– Isto aqui é o meu diário. Sei que o mundo já está cheio de miséria, mas mesmo assim queria que o senhor contasse a minha.
Sem nada afirmar ou negar ante o inesperado, comprometi-me a examinar o trabalho e, posteriormente, dar-lhe uma resposta. Duas semanas depois ele voltou. Entrou, tomou café comigo e em seguida se despediu radiante: seu sonho se transformaria em realidade.
Não foi fácil encontrar um jeito de entender, transcrever, deduzir, enfim, criar uma forma capaz de ser fiel à realidade sem empanar o brilho do relato juvenil – ou infantil – nem posso precisar.
Palavras foram colocadas e retiradas às centenas, procurando, sempre, dentro de um vernáculo compatível, manter a beleza dos relatos ingênuos de uma criança, sem afetar as regras básicas e elementares do nosso idioma.
Outra árdua missão foi tentar ser escritor, criador, narrador, psicólogo, sonhador, sociólogo e até vidente, estudando, vendo e manipulando os acontecimentos que acabaram por criar a personalidade do pequeno Siriano.
Foi exatamente depois disso que lhe arrisquei um futuro menos cruel. Hoje, Siriano está por aí, perambulando pelas nossas ruas e ainda sonhando. Sua ideia fixa de unir persegue a família dispersa. O País tenta sufocar até mesmo seus pequenos sonhos, mas ele sabe que tudo se processa e acontece a partir de um inexpressivo pensamento. Sim, porque o pensamento é como a chama de um fósforo: pequenina, mas se colocada junto a uma palhada transforma-se numa grande fogueira.
Ele pensa, lembra – alimenta a ideia, rega a semente e espera em Deus. Esses pensamentos não lhe dão trégua. E hoje, quando atinjo o presente, ouso me enfiar pelo futuro e como um deus, colocar na vida desse menino, a realização de seus honestos e possíveis sonhos.
O autor.
EXPLICAÇÃO PRÉVIA:
Por favor, lendo este livro, encha-se da emoção com que ele foi escrito. Absorva os personagens, mergulhe em seus sentimentos e em suas vibrações. Pense, sorria ou chore: feito para alcançar o sentimento mais profundo do leitor.
Não tome as fraquezas do pequeno Siriano como exemplo, mas apenas sua dignidade de criança pobre e humilde. Os pequeninos não pecam porque não conhecem as leis que criam os pecados. Escrevi a verdade nua e crua relatada por uma criança. Nesse tempo, Siriano estava se despedindo da pureza das crianças e experimentando os eflúvios da adolescência, cheios de expectativas e curiosidades.
Quem policia seus momentos furtivos, a privacidade ou tem a coragem de relatar os segredos inconfessáveis, saberá que jamais se deve ignorar as fraquezas dos outros, mormente as de uma criança.
Este livro é cheio de intercalações. Até a página 30 não me preocupo com as sete folhas de papel almaço manuscritas que sintetizam o roteiro da vida de Siriano. Em seguida, em itálico, transcrevo um possível diário de Francisca.
Em situação semelhante, uma adolescente instruída, sofrida, apaixonada e desiludida, não desabafaria menos tristemente.
Na página 33, Maria, mãe de Francisca, conta ao neto o seu milagroso nascimento e o grande sofrimento da filha. Na mesma página, Siriano toma as rédeas. Procuro aí ser fiel à sua simplicidade, relatando os fatos à sombra da realidade.
Na página 124, preestabeleço para Siriano um fim compatível com seu merecimento. Penetro no futuro, atrevendo-me a acreditar que Deus não irá privá-lo da sã obsessão de unir a família. Sei que Deus não fará o que desejo ou aquilo que ele quer, mas tenho certeza que Ele fará o que for melhor para o pequeno Siriano.
Devo confessar que recebi conselhos para repensar a descrição de determinados episódios. Apesar de perceber as razões, acabei por restringir-me a esta “explicação prévia”, salvaguardando a originalidade da obra.
1
O galo carijó bate as asas e canta pela última vez voando espalhafatosamente de cima da palhoça coberta com folhas de babaçu. Cacarejando, rodopiando em torno de suas odaliscas, ele é um rei feliz e supremo em seu império. Um frangote “adolescente” tenta cobrir uma de seu harém e é rechaçado com estardalhaço.
O barulho encantado do despertar na roça faz com que Francisca se mexa na rede. Da cozinha de chão batido ela ouve o barulho de achas de lenha sendo arrumadas entre as pedras que servem de chapa de fogão.
Aqueles sons funcionavam como um despertador sensorial e todo o seu corpo, ainda que relutasse, despertava. Dezesseis anos desse exercício rotineiro a haviam condicionado de tal forma que, mesmo nos dias em que podia dormir até tarde, sentia-se na obrigação de se levantar como se fosse acionada por um dispositivo automático.
Esticou os braços mirrados e afastou a porta feita com folhas amarradas de babaçu, que serviam apenas para impedir o sereno, as chuvas, o vento ou a claridade. Na murteira em frente, bem perto de sua janela, já as pipiras disputavam o desjejum, enquanto a decana sabiá, orgulhosa de seus dois rebentos recém-nascidos, desfiava um verdadeiro ramerrão embalador. Francisca bocejou relutante entre o dever que a chamava e o sono preguiçoso de toda adolescente.
Muitos dias ela vira nascer assim, mas neste havia algo diferente: uma angústia como aquela pressuposta a um peru-de-natal que sai de seu habitat e é jogado numa calçada quente da cidade para ser vendido e degustado.
– Vai arrumando as coisas enquanto preparo o café – ralhou a mãe sempre ventando como se os dias fossem pequenos para consumir a grande responsabilidade de tirar do nada o sustento de duas crianças. Viúva há treze anos, não mais procurou uma segunda experiência: a primeira lhe fora dura e cruel.
Às nove horas daquele janeiro já estavam a caminho. Cacaios às costas, não tão pesados, pois cada um deles se restringia a uma velha coberta, uma rede pequena, alguns trapos esgarçados pelo tempo e poucas e corrugadas panelas de alumínio.
– Mãe, é muito longe? – indagou Francisca, a mais velha de suas filhas.
– Fazenda do senhor Onofre. Umas três horas de pernas esticadas.
– Três horas, mãe?
– Lá é bom, filha. Conheço. Iremos ficar numa palhoça bem perto do serviço. Tem lá uma cachoeirinha bonita, água de sobra. Você vai gostar.
Francisca esticou um olhar melancólico pelos eternos juquirões, que pareciam grossas artérias a regarem as selvas muito sacrificadas pelo uso constante da extração de madeiras. Camuflavam a mulata esguia, atraente e cheia de desejos. Nem os olhos maliciosos de Alberto haviam ainda detectado isso.
Por essa razão, pelos campos, sobre os galhos das goiabeiras, em cima dos cajueiros ou pelas margens do igarapé Azul, Francisca vivia apenas na pureza e na esperança de seus sonhos de criança. Pescava mandis, piaus ou traíras e se deleitava brincando com os pequenos camarões que vinham, inocentemente, beliscar os seus dedos dos pés. Devido ao trabalho áspero a que sempre fora forçada no meio de peões embrutecidos, sem o direito – desde a tenra infância – de se enturmar com outras meninas, Francisca se masculinizara um pouco, embora houvesse em seu coração, todo o afã de uma fêmea cheia de desejos.
Não era qualquer rapaz que podia equiparar-se a ela no amanho da terra. Muitos peões tentavam achegar-se, mas eram sempre repelidos pela indiferença. Embora fosse um segredo de que se envergonhava só em pensar, ela só tinha olhos e coração para Alberto, do qual, até então, não tivera a menor retribuição. Mas não importava: a vida nunca lhe dera mais que sonhos mesmo! Talvez por causa disso apanhara o hábito de olhar de soslaio: um olhar amedrontado e dependente, mas ao mesmo tempo do mais impulsivo ardor. Ao cruzar com Alberto seu coração estremecia como se tivesse recebido a mais contundente declaração de amor. Poeta algum, ainda que dominasse todo o vocabulário de seu idioma, conseguiria definir nela, tanta paixão por Alberto. A respiração lhe faltava. Então ela parecia aspirar todo ar da atmosfera para logo em seguida expeli-lo para não explodir de paixão.
Só agora, sob as águas da cachoeirinha do igarapé Azul, ela mesma percebia quanto era bem delineado o seu perfil e que sensação estranha e gostosa lhe dava o massagear da água que caía sobre seus seios, como se fossem mão aveludadas a acariciá-los.
Enquanto os cachos de arroz amadureciam – subtraindo a necessidade de se usar a enxada para retirar o mato danoso – toda a sua pele se refazia como por encanto. Tinha mais tempo para pensar no que vinha acontecendo com o seu corpo. Já não era difícil flagrá-la espremendo espinhas, escolhendo um penteado, limpando e aparando as unhas ou ficando em alguma sombra com o olhar perdido num ponto qualquer. A vida fluía, o coração palpitava, os hormônios maliciosamente se incumbiam de lembrar-lhe que era mulher. Enquanto isso o arroz ia amadurando nos cachos.
2
Os primeiros moradores vizinhos da Fazenda Cachoeirinha podiam ser encontrados a partir de 12 quilômetros. Se houvesse alguma coisa a que Alberto se prestasse, era arrear seu cavalo, perseguir reses fugidias e marcar presença em qualquer festa que acontecesse pelas cercanias da fazenda de seu pai.
Não admitindo profissão diferente da sua para o filho, o senhor Onofre contentava-se e ficava feliz ao ver o filho perseguir, laçar e submeter os nelores rebeldes da manga. Orgulhava-se também em saber que seu filho era considerado um dos partidos mais cobiçados da região. De fato, Alberto não era um rapaz desajeitado. Francisca já nem sabia mais se valia a pena alimentar o sonho de ter Alberto para si. De qualquer forma ela era dona de suas ilusões e ninguém podia privá-la de sonhar.
Já tornara hábito deitar-se em sua pequena rede e esperar a noite. Protegida por ela, Francisca suspirava transformando o contato da rede no corpo quente de Alberto, sem que ninguém suspeitasse.
Alberto, porém, vivia da primeira impressão que tivera, considerando-a menina sem atrativo, alguém fora de sua lista de pretensões. Nunca se dera o trabalho de observar melhor para descobrir que aquelas musselinas esgarçadas escondiam a transformação daquela menina na mais bela adolescente que já vira. Não bastasse, nunca correra o risco de encarar os olhares cheios de malícia da menina que crescera sem que ele percebesse.
Aquele grande e irrefreável desejo de gritar, correr, viver, conhecer, amar, já não cabia no peito de Francisca. Com o passar do tempo ela ia sentindo que toda a ilusão criada podia-se transformar em desilusão. Por isso, depois de mais uma noite sem dormir, ela procurou a mãe:
– Mãe, quando a gente vai embora daqui?
– Acabo de falar com seu Onofre. Ele quer que a gente fique aqui mesmo na fazenda, na lida de outras coisas.
– Vamos ficar pra sempre aqui, mãe?
– Pelo menos por uns tempos, filha. Que adianta a gente ficar daqui pra ali, se em todo lugar só temos o direito de trabalhar para não morrer de fome?
– Mas eu, mamãe?!
– Eu o quê?
Francisca enrubesceu como se tivesse confessado todos os seus desejos naturais que, por ignorância, pensava-os imorais e pecaminosos. Tentou esquivar-se:
– Vou trabalhar em quê?
Seu Onofre quer que ajude a mulher dele lá na sede.
Os olhos de Francisca brilharam num lampejo de curtas esperanças. Logo, porém, se ofuscaram na realidade cruel:
– E lá eu sei cuidar de casa bacana, mãe? Nunca mexi senão em litros vazios, latas amassadas…. Ô mãe, estou com medo!
Em seguida, num misto de apreensão e alegria, quietou. Não sabia mais o que perguntar ou argumentar. Uma forte emoção invadia-lhe o coração como se previsse um futuro trágico e incerto. Quando a tarde chegou, como de costume, ele foi para a cachoeirinha banhar-se juntamente com a sua irmã, dois anos mais nova, a Sílvia. Protegidas por verdadeiros farrapos elas entraram debaixo da água que despencava a uns três metros de altura. Seus corpos logo ficaram modelados como se fossem esculturas de bronze. Os seios aprumados, as cinturas finas, os bumbuns arrebitados…, faziam delas imagens que bem lembravam o mito das amazonas, das sereias e das rainhas das selvas.
Enquanto a água escorria pelo corpo de Francisca, ela escorregava as mãos pelos seios e voltara a sentir, agora com mais intensidade, a sensação agradável do toque de suas mãos. Em seguida, como toda sem-direito-a-nada, sacudiu a cabeça como se tentasse arremessar para longe, aqueles pensamentos que tanto lhe ensinaram como pecados. Tomando a água na palma da mão em concha ela começou a jogar em seu rosto como a esfriar os eflúvios que, embora deixados pela Natureza, ensinaram-lhe que deviam ser reprimidos.
Rindo, pulando e brincando com a irmã, nem percebeu que Alberto estava na margem do riacho, boquiaberto como estivesse vendo uma miragem do além.
Quando Francisca o viu, com um dos pés apoiado numa pedra e os dedos da mão direita enclavinhados no queixo, ficou sem saber o que fazer ou dizer. Era a primeira vez que um homem vinha até ali no horário destinado ao banho das mulheres. E aquele vestido fino, esfarrapado e molhado nada escondia. Só então Alberto pôde ver o que lhe havia passado despercebido por tanto tempo. Jamais imaginara que aquele quase espantalho externo, cheio de carvão, pó e carrapichos, escondia algo tão atraente e fascinante. Mil ideias perpassaram-lhe a mente.
Escolhendo uma bica em que a água caía mais densa, Francisca procurou desvencilhar-se daquela situação embaraçosa, porém, no fundo de seu coração, desejada.
Alberto olhou por mais um pouco de tempo e depois se retirou apressadamente para o banheiro: um cercado de tábuas que ficava ao lado da casa. Só ele sabia o que aquela menina-moça tão atraente fizera com seus hormônios.
Francisca, tomando Sílvia pelas mãos voltou correndo para seu barraco. Seu coração parecia sair do peito. Embora inexperiente, quando a noite caiu, veio só, sem sono, sem a paz de quem cresceu sendo criança. Nunca os armadores rangeram tanto, nem uma noite foi tão comprida. Não pôde sonhar, apesar de tantos motivos.
3
Não foram necessários mais que alguns dias para que Francisca se entregasse a Alberto. Foi um rápido olhar retribuído e curtas palavras num dia de sábado em que todos, menos Francisca e Alberto, foram a um culto na casa do vizinho mais próximo. Foi um impulso que, embora pudesse custar-lhe a própria vida, ela repetiria mil vezes se lhe fosse dada a oportunidade. Alberto, por sua vez, contava os minutos de cada dia, esperando o momento propício para revê-la, pois jamais encontrara alguém, em toda a sua vida, que lhe proporcionasse mais prazer. Francisca era uma fêmea ímpar, alguém que nascera com toda a malícia, com todos os ímpetos, com toda a sutiliza necessária para fazer um homem desejá-la a cada instante.
A vida, por meio de seus desígnios inconfessáveis, havia adiado aquela explosão de amor, retida, contida, reprimida por muitos meses pela falta de oportunidade. Com o tempo, porém, tudo foi se acumulando como se seu coração fosse uma verdadeira panela de pressão que explodiria tão logo alguém a tocasse.
Cheia de vida, um metro e setenta de altura, olhar penetrante, convidativo, cor morena, esbelta, seios pequenos, pernas grossas – mulata maranhense de cintura fina e bumbum arrebitado – uma verdadeira tentação que fugira, inexplicavelmente, por tanto tempo, à perspicácia sensual de Alberto. Ele era tido como um “expert” em mulheres atraentes.
Quantas vezes, agora se surpreendia olhando o teto, pensamentos vadios que não se cansavam de frequentar a moita que Cupido criara como seu ninho de amor, ali, bem detrás da cachoeirinha. Na cama, só mesmo em momentos muito especiais, quando havia festas ou cultos pela redondeza. A família de Alberto era adventista e a de Francisca, católica.
Com sua maneira diferente e excêntrica de amar, Francisca não demorou a fazer de Alberto um rapaz ocioso, um homem pensativo que já não sabia o que seria de se um dia tudo aquilo viesse acabar. Seus galopes pelas pastarias, suas vadiagens em fins de semana, toda uma vida rotineira de até então implodia ante o desejo de estar sempre por perto de Francisca.
Ela, de tanto amor, era inconsequente. Quando se apanhava só com seu namorado ou amante – nunca pensava nisso – agarrava-o, rasgava sua roupa, atirava-o sobre a cama ou no chão e, praticamente o estuprava. Alberto fechava os olhos, curtia aquele mundo de prazer. Francisca vibrava também, pois só o toque que sentia de seu companheiro fazia-a morrer de satisfação. Era o “côncavo e o convexo”, a “fome com a vontade de comer”… O macho e a fêmea perfeitos, criados um para o outro. Apesar de Alberto ter sido seu primeiro homem ela parecia uma prostituta de longos anos. Tudo lhe era inato. Sabia e fazia as coisas como se tivesse passado por uma faculdade do sexo – passado e sido aprovada em primeiro lugar.
De abril de 1969 até fins de julho do mesmo ano, os dois viveram em furtiva lua-de-mel: uma felicidade para a qual talvez Shakespeare não tenha tido a graça da inspiração em seu Romeu e Julieta. Jamais deixavam de transar desde que a oportunidade aparecesse. Às vezes, sem que comentassem, cada um lembrava de que o pior poderia acontecer, e que aqueles encontros sem precaução alguma, um dia, fatalmente, iriam premiar-lhes com o inevitável de uma gravidez indesejada. E assim como respiramos sem perceber, também o feto foi-se formando sem a aquiescência dos dois. Depois de três meses já eram evidentes os sinais de seu aparecimento. O resultado irreversível de toda aquela paixão chegava enfim. Já no segundo mês ambos sabiam de tudo, mas não ousavam tocar no assunto com medo de atrapalhar tanta felicidade. Contudo não havia mais como protelar. Numa quinta-feira, depois do intercurso, agindo de maneira diferente da costumeira, Francisca apoiou-se no peito suado de Alberto, passou as mãos em seus cabelos castanho-claros e muito lisos, olhou-o fixamente e gaguejou:
– Amor…
– Não fale nada, por favor.
Ela fez menção de rir, mas preferiu manter a seriedade que o assunto exigia:
– Desculpe, mas preciso…
– Eu sei, você está grávida.
– Como sabe?
– Ora, quem não vê.
Tentando arrefecer, ela ponderou, embora a incredulidade lhe vazasse pelas feições:
– Talvez não seja.
– Deixa de ser inocente.
– E então, que iremos fazer?
– Não sei.
– Você gosta mesmo de mim?
– Sou louco por você.
– Ama?
– Que acha?
– Ama?
– Ora! …
– Quero ouvir, preciso ouvir, por favor.
– Você sabe o que sinto. Sabe também como me comporto quando estamos juntos. Se tiver pensando em alguém, querendo este alguém em cada dia, morrer de prazer três ou quatro vezes quando se está junto…. Se tudo isto for amor, eu amo você até demais.
– Pode ser apenas paixão.
– Pode sim, mas se for é melhor que amor.
Os olhos de Francisca brilharam. Ela possuía dois olhos que eram castanho-escuros, mas que pareciam possuir um verde embutido, um verde que embora fosse difícil de decantar, com certeza existia. Alberto sempre lhe falava desse detalhe. Vindo dele, tudo lhe era felicidade. Considerou alegremente:
– Então não tem problema, a gente fica junto e pronto. Nosso filho, se for homem, será chamado Emanuel, concorda?
– Siriano – pilheriou Alberto num lampejo de relaxamento.
Francisca sorriu, convencida de que o menor desejo de seu amante seria a eterna máxima de suas decisões. Alberto retirou a mão que estava em cima do peito e sentou-se sobre a toalha ainda manchada, cruzando as pernas.
– O pai não vai aceitar.
– E por que não? Não é ele quem vai casar comigo?
– Mas é ele que irá nos sustentar. É um homem de convivência difícil. É bruto, ignorante – nunca estudou. Acha que apenas ele sabe das coisas e que somente a vida ensina verdades e cria os verdadeiros homens.
Francisca tornou a enroscar-se em Alberto. Agarrou-a pela cintura, estirou-o no chão – não podia perder um segundo que fosse do prazer de estar perto, colada com a maior ilusão de sua vida. Apesar dos carinhos, ele, talvez induzido pelos inevitáveis problemas que viriam, fracassou. Ela perguntou atônita:
– Que está acontecendo, amor?
– Parece maluca?! Nós com um problema deste tamanho e você nem se toca!
– Preocupe-se não, a gente dá um jeito.
– Não é bem assim. Na hora que souberem, você vai ver a quizomba que vai rolar.
E, de fato, não precisou de muito, nem de muitas horas. Naquela mesma tarde a coisa aconteceu. Já eram evidentes os sinais de sua gravidez. O senhor Onofre investiu furioso. O que ele não supunha era que seu filho fosse o causador de tudo aquilo.
– A gente emprega estas vagabundas aqui só para ajudar e veja no que acaba dando. Metem-se com peões e agora está aí buchuda.
Francisca, apesar de toda a coragem e amor, desfaleceu. Temerosa, assustada, sem saber a quem recorrer, retirou-se soluçante para o quarto. Alberto continuou sentado numa cadeira, quase no canto da mesa. A mãe de Francisca foi chamada.
Depois de discussões, suposições, acusações, esclareceu-se que Alberto era o pai da criança que iria nascer. Amarelo, temeroso, sem aquela arrogância que lhe era peculiar antes de conhecer Francisca, ele se retraiu como um cão submisso e covarde. O pai não deu trégua à discussão, porém nunca se importando por ser Alberto o causador de tudo. Investiu contra Maria, a mãe de Francisca.
– Pode ir arrumando a sua trouxa, apanhando a vagabunda de sua filha e ir metendo os pés na estrada.
Maria, já vivida e sem precisar muito temer as ameaças, repeliu:
– Meter pé na estrada? O senhor pensa ser o dono do mundo, mas conheço homem que pode mais que o senhor. Vou procurar meus direitos.
– E vagabunda tem lá mais que obrigação? – Continuou autoritário o senhor Onofre. Pode ir pegando sua puta e ir se mandando da fazenda.
Maria sentiu-se mal e não pôde mais falar. Deram-lhe um copo d´água, mas ela não bebeu. Deitaram-na por alguns minutos e com a gritaria sufocada, ela ficou mais calma. Agora, somente as fungadelas ocasionais de Francisca eram ouvidas em tom irritativo. Numa demonstração inequívoca dos sentimentos de mãe, Maria aproximou-se da filha, mãos trêmulas:
– Filha, eu cuido de você, fique calma, por favor.
Nesta hora, num choro convulsivo, Francisca liberou toda a angústia, agarrando-se à sua mãe na mais bela das dependências.
A noite caiu. Pareceu mais negra e quente que as demais. Fora longa e triste, talvez como a primeira de uma perdida na floresta. No meio daquela dor indefinível, ela só se lembrava de uma noite e, dessa noite, de uma frase que Alberto lhe dissera em tom de clarividência:
– Pititinha – ele gostava de chamá-la assim – você tem tudo para ser a mulher mais feliz… ou infeliz deste mundo.
Nunca ninguém fora mais preciso.
4
Apenas algumas nuvens perdidas e retardatárias caminhavam apressadas pelo céu, naquela manhã em que Maria e suas filhas refaziam caminho. Como chegaram, agora partiam: sem nada, a não ser a companhia do infortúnio e da angústia de muitas incertezas.
Enquanto subiam pela estrada que levava ao chapadão, Francisca ia ouvindo o chuá-chuá da cachoeirinha, que tanto serviu de acalanto a seus momentos furtivos de paixão, mas que agora se pareciam com vaias e vergastes a açoitar seu coração atribulado. Bem disse o poeta que o que dá para rir, também dá para chorar.
Olhou para trás: lá embaixo, serpenteando por entre pedras, o igarapé Azul caminhava sem pressa, mas para um destino certo. Ao contrário, ela seguia sem destino, não podendo sequer conjecturar como seria o amanhã.
Por entre mangueiras, jaqueiras e cajueiros despontava a cumeeira da sede. Dentro, quanta coisa se passava naquele momento! Por que a vida tinha de ser daquele jeito?
Ela podia fechar os olhos e mesmo assim ver Alberto num canto da casa, acuado como uma fera irresponsável que tinha amado acima dos preconceitos. Foi naquele momento que percebeu que nenhum ser humano é dono total de sua vida e que toda a apregoada liberdade não passava de simples discurso. Se ela e Alberto fossem livres, certamente naquele momento estariam abraçados, gozando da mais pura felicidade.
Quando alcançou a mata alta, estando então a mais de três quilômetros da residência do senhor Onofre, a angústia atingiu o clímax. Era como se os laços que a uniam a Alberto estivessem tensos; era como se a corda estivesse cada vez mais sendo esticada e prestes a se partir. Então parou de chofre, empacou como uma fera cheia de desejos, jogou-se ao chão e começou a chorar convulsivamente. Sílvia correu solidária. Maria, sua mãe, cheia de dor, sentou-se no barranco da estrada e esfregou as costas das mãos nos olhos a fim de espalhar as lágrimas que lhe embaçavam a visão.
– Mãe, eu quero morrer!
A mãe – mergulhada também em sofrimento – nada respondeu: não havia dizer. E ali soluçaram por bastante tempo. Depois, erguendo-se primeiro, Maria foi à filha, tomou-a pela mão ajudando-a a reerguer-se:
– Vamos caminhando, filha. Haverá um lugar pra se chegar.
– Tem não, mãe! Como as estrelas que nas noites riscam o céu, nós também não temos destino.
– Tudo o que caminha, um dia chega a algum lugar, filha! Vamos andando. É só uma questão de tempo.
Aproximadamente seis meses antes, Francisca, ainda com seus instintos e desejos adormecidos, pisou aquela estrada. Não a acompanhava a alegria, nem a tristeza. Vinha só, caminhando como um meteoro, apenas com a expectativa do desconhecido. Agora, porém, era-lhe companheira, a curiosidade de ver crescer em suas entranhas, um renovo de paixão.
Não podia ser verdade o que estava acontecendo. Não podiam ser mentirosos aqueles impulsos incontroláveis que uniam Alberto a ela. Quantas vezes ele a arrastava sedento, quase a machucava por não ter a paciência de alguns segundos enquanto desatava os cintos que prendiam sua roupa. Não, não podia ser tudo mentira, muito menos, traição.
E pela estrada, aqueles mesmos juquirões eternos assistiam impassíveis à sua desdita. Ao meio-dia, passando por estradas ainda pantanosas, chegaram à palhocinha de babaçu, que por tantos anos lhes fora guarida. A murteira estava lá e na laranjeira ao lado o sabiá, como se estivesse vindo recebê-las, pousou com seus filhotes robustos. Só não viu as criações que permaneciam, então, aos cuidados do vizinho mais próximo. Mais abaixo, a orquestra de sapos e pererecas, os grunhidos de jacarés chafurdados na lama, pareciam afinar a garganta para o réquiem a um coração que servia de féretro à felicidade esvaída. Aqueles que imaginam que eterno é somente Deus – que não teve princípio e jamais terá fim – certamente não conhecem o suplício de alguém que vive a angústia de haver perdido o único amor de sua vida. Como foram eternos aqueles dias de Francisca, ali naquele fim de mundo, vendo o sol nascer e levar séculos para se declinar; aquelas tardes, varridas por alísios sem presteza e as tantas noites, em que os únicos sons eram o lamento do urutau e as notas desafinadas da orquestra lúgubre dos anfíbios.
Com todos os achaques da solidão e do abandono, ela adoeceu. Sua gestão se tornara cruel. Em constante mal-estar, sempre vomitando, sempre com dor de cabeça e fortes cólicas, ela curtia o sofrimento de cada minuto vivido. Por que tem de ser assim? – Perguntava-se a cada momento. Por que não podia ela também ter o direito de ser feliz? Seriam sua cota de felicidade nesta vida, apenas aqueles três meses?
Todas as tardes, ao pôr-do-sol, ela deixava a humilde palhoça e andava pela orla da lagoa, passando perto de enormes jacarés que lhe davam dois tamanhos, sem ao menos desviar um passo. Não lhe importava que, ainda que nas fauces medonhas daquelas feras, fosse-lhe abreviada toda aquela angústia.
…
Mamãe traz a gente de volta para nossa antiga casa. Depois de muitos dias, manda a Sílvia ir trabalhar de doméstica na casa de uma doutora em Imperatriz. Minha gravidez é complicada. Sinto muitos dores, febre quase todos os dias, muita tontura.
Ninguém acredita que meu filho irá nascer vivo e fazem promessas para que pelo menos eu sobreviva ao parto. O tempo passa e a cada dia fico pior. Estou no sétimo mês, já não ando senão com a ajuda de outros.
Minha pele que era bonita, quase branca, agora está roxa. Eu me olho e pareço ver aquele pano com o qual cobrem as pessoas para serem enterradas.
Todo meu corpo está inchado. A criança não se mexe mais na minha barriga. Acham que o bebê já está morto. Mandam chamar uma parteira para retirar a criança. Ela, depois de examinar o meu estado, diz que nada pode fazer e que têm de me levar com urgência para os médicos.
Conseguir um carro aqui nestes sertões é quase impossível. Mamãe vai à casa de um senhor que tem uma C-10 e pede, quase chorando, que nos leve para Imperatriz. Ele diz que vai nos ajudar. Manda mamãe voltar e me levar para a beira da estrada onde estará com o carro. Quando ela volta não existe mais o sol.
Sinto que vou morrer neste fim de mundo. Já quase não lembro do pai desta criança que está me matando: ele, também, em meu coração, morre aos poucos pelo abandono em que me deixou. Quem ama não faz isso. Nunca mais me procurou nem mandou saber como eu estava. Só me resta a morte como alívio.
Quando Maria chegou, de fato, a escuridão da noite já se avizinhava, apressada por densas nuvens que se acotovelavam no céu. Lá longe, quando em vez, longínquos e fortes trovões ribombavam como prenúncio de tempestade avassaladora.
Francisca apenas gemia. Sua visão já estava turvando: não havia mais nada a temer. Toda natureza convulsiva, alardeante e negra dava os últimos retoques àquele palco em que se assassinava lentamente o fim da felicidade de uma adolescente que tanto sonhara.
Maria tentou esconder as poucas esperanças, alentando a filha para que acreditasse no grande amor de Deus, mas dela só vieram gemidos, gemidos de agonizante. Diz-se que nada de bom ou mau existe sem seus contrários e que toda felicidade é medida pelo grau de sofrimento vivido. Se assim o for podemos imaginar o quanto foi Francisca feliz durante o tempo que, furtivamente, conviveu com Alberto. O preço estava sendo saldado, quiçá, com a própria vida.
Ao perceber o estado deplorável e agravado da filha, Maria saiu ventando de sua palhoça em busca de socorro com alguns pescadores de pirarucu que, a mando de Deus, havia chegado há pouco para pescar na lagoa. Eles vieram solidários. Muniram-se de lamparinas e tochas, arrumaram dois varões, amarravam a rede neles, colocaram Francisca dentro e partiram.
Antes que o verão chegasse plenamente, a picadela por dentro da mata baixa – quase igapó – ficava pantanosa, e passar por ali se tornava um verdadeiro desafio. Não obstante, apesar da noite tempestuosa que se avizinhava, e uma gestante em agonia dentro de uma rede, os pescadores caminhavam resolutos e incansáveis, movidos pelo mais nobre dos sentimentos: o da fraternidade. Parecia que alguma coisa mais forte, uma força estranha os movia a prosseguir, mesmo diante de tantos tropeços e percalços. Também eles acreditavam que, para Deus, nada é impossível.
…
Minha avó, hoje está com 58 anos. O sofrimento e a miséria, no entanto, acentuaram nela muitas rugas. É dela o relato que se segue:
A distância da casa para a estrada era longa, meu netinho. Eu sabia que iria chegar lá tarde da noite, mas o que me importava era tentar salvar sua mãe. Com a ajuda de uns desconhecidos saímos carregando minha filha. Pelo caminho começou a cair uma chuva forte. As lamparinas apagaram-se e tivemos que continuar a viagem no escuro, já que a única lanterna de um pescador, que vinha com pilhas usadas, apagou de vez.
Atravessamos açudes, caímos dentro de poças de lama, sempre debaixo de uma chuva que parecia delirar com o nosso sofrimento. A gente já nem sabia se sua mãe estava viva ou não, porque os estrondos dos trovões e o barulho da chuva grossa não deixavam a gente ouvir mais os gemidos de sua mãe. Finalmente chegamos à estrada e a caminhonete estava lá esperando. Deitamos minha filha na poltrona e ele ficou muito desajeitada, mas não tinha mais o que sofrer. Respirava com dificuldade e não falava mais.
Sentei-me no lugar de pôr os pés e fui segurando sua mãe para que nos solavancos ela não caísse.
A viagem começa. A chuva não para. A estrada era de barro vermelho, muito ruim – um atoleiro só. Por diversas vezes eu mesma tive que descer para ajudar a empurrar o carro. Pensávamos chegar na manhã do dia 30, mas só vimos Imperatriz à noite. A Sílvia, sua tia, estava empregada na casa da doutora Ilma. Essa médica faria o parto.
Logo que o carro entrou na cidade fomos direto para o hospital. Sua mãe foi retirada da cabine do carro, inconsciente, estado em que já se encontrava há muito tempo, quase desde o começo da viagem. Foi levada ao centro cirúrgico, onde os médicos a examinaram.
A doutora Ilma que comandava os demais médicos, não sabia o que fazer. O feto estava atravessado numa posição impossível de ser removido num parto normal, sem contar que a paciente já não reagia mais a qualquer estímulo.
Os médicos se reuniram mais uma vez. Depois de muito discutirem, apesar do risco, decidiram pela cesariana. Aplicaram em sua mãe sedativos, vários remédios anti-inflamatórios, deram a anestesia e a operação começou.
Ela só vive agora graças aos aparelhos que colocaram nela e por causa dos remédios. Finalmente, às cinco horas do dia trinta e um de dezembro de 1069, a criança foi retirada. Eu estava encostada na porta da sala de operação e ouvi a doutora dizer: “A criança está morta, vamos cuidar da mulher que ainda vive”.
Ao ouvir isso eu saí desesperada pela porta do hospital e comecei a chorar. Enquanto isso levaram a criança morta para o necrotério, até que fôssemos apanhar o corpinho para sepultar. Colocaram você, meu neto, numa bacia de zinco – a enfermeira o deixou no necrotério e voltou para a sala de cirurgia.
Algumas horas se passaram até que a operação de sua mãe terminasse. Eu, depois que chorei, que tirei de dentro de mim muita dor, voltei para junto da porta para ver como estava minha filha. Abriram a porta e me disseram que a mãe da criança estava fora de perigo, que fora uma pena a criança ter morrido. Depois de tudo, senti grande alegria: ao menos minha filha estava salva.
Aí uma enfermeira foi limpá-lo para nos entregar para o sepultamento. Você estava todo sujo de sangue. Ela jogou um pouco de água e depois pegou nos pezinhos para a água escorrer. Quando começou a passar-lhe uma esponja de algodão banhada em álcool, notou alguma coisa estranha. Colocou você em cima de uma laje e por curiosidade, o ouvido no seu peito. No começo ela disse que não escutou nada, mas de repente, o milagre: o coração estava batendo.
Espantada, correu, chamando a doutora Ilma, dizendo que a criança estava viva.”
“Você está ficando louca, Aparecida? – retrucou a doutora. Eu mesma retirei a criança morta da barriga da mãe.”
Todos correram para a sala, inclusive eu. Não sei a razão, meu neto, mas algo em meu coração me dizia que a enfermeira estava dizendo a verdade.
Quando os médicos chegaram, você estava quieto, porém, rosa como se fosse uma fotografia colorida.
– Não disse?! – Repetiu a doutora Ilma – a criança está morta.
Mas, para espanto geral, ainda antes que terminasse de dizer que criança estava morta, você começou a chorar. Os médicos ficaram parados: não faziam nem diziam nada. E então, sem saber o que estava fazendo, passei pelo meio deles e apanhei você nos braços.
Foi assim, desafiando a tudo e a todos que você, meu neto, ressuscitou. Estou certa que foi um milagre e que Deus tem planos para você. Por isso, por mais castigos que a vida lhe imponha, não esqueça que Deus é maior. Nunca perca as esperanças enquanto ouvir as batidas de seu coração.
…
O amor de minha mãe por meu pai foi como um vendaval: rápido, forte, passageiro e devastador. Só Deus poderia precisar o que cada dia de ausência significou para o seu coração. Durante dois anos ela se cuidou, esperou, mandou recados, fez tudo o que alguém apaixonada faz para salvar sua felicidade. O constante desprezo de Alberto, depois de dois anos, acabou corroendo a perseverança de minha mãe. Sem ninguém para orientá-la acabou fazendo o que tantas desiludidas fazem ao perder as esperanças: vingou-se de si própria engravidando novamente. Mais uma vez, vovó, verdadeira mãe, amparou-a. Nasceu Maria do Carmo, minha primeira irmã. Eu estava com três anos. Era um menino ingênuo, mas mesmo assim sofria muito com as desavenças que existiam entre minha mãe e minha avó.
Via mamãe arrumar-se toda e sair, um dia com um, outro dia com outro…. Às vezes ela ficava uns meses com o mesmo namorado, mas isso não era muito comum. Percebia que não gostava de mim, talvez por ser eu a eterna lembrança de sua desilusão. Sempre que chegava, maquinalmente eu corria para ela sedento de carinho. Ela passava inexpressivamente as mãos sobre minha cabeça, entregava-me um chiclete e logo adentrava no quarto. Jamais vi um olhar mais triste e desiludido em minha vida! Acho que jamais esquecerá meu pai. Em sua eterna auto vingança ela feria os princípios que sempre lhe nortearam a vida. Vovó não aceitava aquilo e as duas começaram a discutir quase todos os dias. A vida foi ficando cada vez mais difícil e até em mim, criança de apenas três anos, começou a doer fundo.
Certo dia, um novo namorado de minha mãe convidou-a a trabalhar em Juazeiro do Norte, lá no Ceará. Talvez por causa de minha presença e das constantes brigas com minha avó, ela aceitou. Hoje, sinceramente, eu não saberia precisar se sofri com sua partida.
Foi numa tarde cinzenta, dessas tantas tristes que acontecem na vida da gente. O caminhão chegou, buzinou: ela já esperava. Vovó dava mamadeira para Maria do Carmo e eu empurrava um pedaço de osso de costela de boi, fazendo-o de carrinho. Lembro que quando minha avó ergueu a cabeça para se despedir, os olhos estavam cheios de lágrimas. Minha mãe, apesar da desilusão, era muito despachada: nunca tinha preguiça para nada. Sílvia continuava trabalhando com a doutora Ilma e vovó vivia de um lado para outro do rio Tocantins, lavando roupas para terceiros.
O caminhão acelerou fundo como se fosse sair. Parei de empurrar meu carrinho de osso e cheguei a pensar que mamãe iria partir sem sequer me dar um abraço. Para sorte de meu coração de criança – talvez até num ímpeto maternal incontrolável – ela desceu e veio até mim, estreitando-me fortemente. Eu então disse quase gaguejando:
– Você vai embora, mamãe?
Eu nunca a chamava de mãe e isso devia machucá-la sobremaneira. Hoje sei que não fazia isso por maldade, mas o certo é que fazia. Para mim, minha mãe era minha avó. Se fosse possível dar ênfase ao amor, se fosse possível definir um amor quase divino, eu diria que adorava minha avó. Jamais pude imaginar viver sem ela. Nas noites de inverno pesado, quando travões assustavam e raios caíam estertorosos, eu me abraçava a ela e ria, na certeza de que me protegeria contra tudo e contra todos.
– Vou fazer uma viagem, mas não vou demorar – disse ela sem embargo na voz. Não transparecia qualquer emoção. Voltou e entrou na boleia. Quando ergui a cabeça vi apenas uma poeira fina no ar, bem na esquina do primeiro quarteirão. A gente morava, então, na beira de uns curtumes, onde só gente humilde e muito pobre suportava. Vivíamos de um lado para o outro, como objetos estorvadores. Não bastasse a miséria imperante, ainda tínhamos a constante visita de cães sarnentos que não arredavam dali atraídos pelo mau cheiro que aqueles couros exalavam.
Não fora impensada a frase que minha mãe havia proferido. De fato, em menos de um mês ela reapareceu. Vovó estava lavando roupas na beira do rio Tocantins e eu brincava na sala, ao lado de minha irmãzinha que dormia. Se ela chorasse eu corria até o barranco e gritava. Vovó, como se lavasse roupa sempre ligada no mais sério problema, o de cuidar de seus dois netos, ouvia-me no primeiro “vó” que eu dizia. Subia correndo a encosta e, mesmo ofegante, tratava logo de resolver o problema, quase sempre resumido em muito cocô espalhado.
Quando vi minha mãe na porta acompanhada de um casal, senti uma coisa forte apertar meu coração. Deu-me vontade de correr e gritar, mas acabei envolvido em sua conversa. Ela logo foi jogando toda a nossa pouca roupa dentro de um saco e, muito afobada, incitava o casal a deixar o carro pronto para partir. Para ser sincero, eu ainda não havia atinado o que estava para acontecer. Uma vizinha, porém, cuja filha vivia brincando comigo, percebendo a maldade que estava sendo tramada, desceu para o Tocantins e foi avisar à minha avó. Ela veio correndo, tanto que quando chegou onde nós nos encontrávamos, não conseguia falar. Depois de alguns segundos, a voz saiu:
– Minha filha, que está fazendo?
– Dei meus filhos para este casal criar.
– Jura que não está falando sério, minha filha! Pelo amor de Jesus Cristo, diga que está brincando.
– Não estou brincando. A roupa deles que encontrei já está no carro.
Quase desfalecendo, minha avó correu até ao homem que já me tinha nos braços, agarrando-me pelo meio:
– Você não irá, meu filho! (Ela também mais nos chamava de filhos do que propriamente de netos.)
– Vai ser melhor pra eles, minha senhora. Nós podemos criá-los bem, dar-lhes estudo…
– Eles não terão o de que mais precisam: amor. Ninguém vai amá-los como eu. Fazem parte de mim. São minha vida e eu a deles.
E tanto me puxaram que começou a machucar. Não bastasse, minha cabeça de criança ainda não podia entender todo aquele tumulto e por isso comecei a chorar. Minha avó, então, soltou meus braços e se ajoelhou diante da multidão que, por causa do alvoroço, havia chegado:
– Pelo amor de Jesus Cristo, não deixem que levem meus filhos! Eu criei minhas filhas e sei que vou conseguir criar estes dois também.
Qual muro humano sem sentimento, as pessoas se mantinham impassíveis, observando apenas o desenrolar dos acontecimentos. Minha avó, percebendo que se não lutasse iria nos perder, ergueu-se como possessa e investiu decidida contra o homem que me retinha no colo. Estavam tão inflamados os seus olhos, tão penetrante o seu olhar que o homem afrouxou, soltando-me em suas mãos. A esposa dele que estava no carro com minha irmã Maria do Carmo, chamou pelo marido que se encontrava na sala. Ele obedeceu, entrou no carro e saíram em disparada, levando minha irmãzinha. Enrosquei-me no pescoço de minha avó, quase a sufocando. Ninguém mais me levaria sem que a vovó fosse junto. Minhas lágrimas escorriam pelo pescoço da criatura que eu mais amava e queria neste mundo.
Mamãe, aparentemente insensível a tudo permanecia calada, sentada numa cadeira bem no canto da salinha. Nem um pequeno sinal de lágrimas. Logo que o carro sumiu e o perigo de me raptarem desapareceu, desci do pescoço de minha avó e fui debruçar-me nas pernas de minha mãe. Para ser sincero, não sei que impulso me levou a isso. Ela colocou as mãos na minha cabeça. Olhei-a dentro dos olhos: olhos cansados, sofridos, desiludidos, sem amor – olhos sem vida. Meu pai, certamente, a havia matado.
Acho que foi ali, aos três anos que, pela primeira vez, de fato, chorei. Acho que foi ali também que aconteceu o meu primeiro pecado ao questionar o meu nascimento, ao perguntar ao Senhor do mundo por que havia soprado a vida naquele feto morto, já jogado fora.
5
Minha mãe não demorou muito com a gente. Três semanas depois viajou para Juazeiro do Norte outra vez, segundo ela, para ficar até que fosse a vontade de Deus. Escreveu-nos até 1974. Em todas as cartas ela parecia repetir a mesma coisa: “Mãe, perdoe-me pelo que fiz. Diga ao Siriano que um dia irei buscá-lo”. Nunca nos dizia se estava bem ou mal, se era feliz ou não. Certamente não era feliz, pois assassino algum houvera sido mais cruel que meu pai no ato de suprimir os mais lindos sonhos de uma adolescente.
Vovó amava minha mãe e compreendia o motivo de tudo o quanto havia transtornado a vida dela. Também tivera um grande amor, e minha mãe lhe era a mais doce lembrança daquele amor.
Jacinto, marido de minha tia Maria de Jesus, mais conhecida pela alcunha de Santa, apesar de adulto, foi uma das maiores amizades de meus tempos de menino. Ele parecia gostar mais de mim do que das próprias filhas. Brincava comigo sempre que voltava do serviço. Talvez por inveja, tia Maria de Jesus queixou-se disso aos pais dele. Mandaram chamá-lo e depois disso nunca mais o Jacinto quis brincar comigo. Eu era apenas uma criança e não podia entender nada do que haviam tramado contra mim. Muitas vezes – acostumado que estava – eu corria até ele, mas ele não mais olhava para mim. Descia da bicicleta, encostava-a na parede de taipa e adentrava com o semblante triste. Só hoje sei o porquê daquela mudança e Deus é testemunha do quanto foram injustos nas acusações que fizeram.
Aos poucos eu ia somando decepções, aprendendo a lei dos homens, acordando para os problemas que entristecem, às vezes estupidamente, as pessoas.
Vem a colheita do arroz do ano de 1975. Um fazendeiro de Cajuapara, de nome Joaquim – Joaquinzão, porque Deus fez poucos joaquins daquele tamanho – começou a arrebanhar peões para a colheita.
Seu capataz passou lá em casa: vovó era muito procurada para esse mister. Havia sido uma vida plantando, cuidando e colhendo arroz. Junto com ela contrataram minha tia Josefa que estava grávida, o Osmar seu marido, o Jacinto e muitos outros conhecidos. Ao todo formamos quinzes famílias. A fazenda era enorme. Possuía mais de mil reses, muitos suínos, galinhas e perus às centenas…. No começo tudo foi maravilhoso! Não faltava carne pra ninguém. Porém, quando venceu o primeiro mês, todos os contratados ficaram devendo. O preço cobrado pelas feiras ultrapassou os salários. Por causa disso, depois do primeiro mês, ninguém mais comprou carne. Passamos a viver de arroz com abóbora e, às vezes, esporádicas carnes de tatus, veados e pacas, abatidos nas esperas durante a noite.
Doía-me profundamente ver aqueles homens suarentos, cansados, com fome, sem tomar banho, apanharem as espingardas e as lanternas e se meter pela escuridão da mata à cata de um bicho para comer, enquanto as mangas, os chiqueiros e o terreiro estavam fartos de animais.
Já naquele tempo, minha cabeça que por certo ainda não conseguia atentar bem para as questões abstratas, percebia que deveria haver alguma coisa transcendental, talvez Deus de quem vovó tanto falava, para um dia fazer justiça a tanta gente que é levada ao sofrimento sem necessidade.
Vovó, dizia que sim. Ensinava-me sempre que, quanto mais as pessoas sofrem resignadas neste mundo, mais felizes serão no outro. Eu não entendia bem o que ela queria transmitir, mas na verdade aquelas palavras sempre ressoavam em minha consciência quando tinha nas mãos um pedaço qualquer de coisa gostosa para comer. Então eu repartia com quem estivesse ao meu lado.
Quando terminou a empreitada do arroz, o pessoal estava abatido. Muito trabalho e alimentação fraca explicavam aqueles braços mirrados e a cor pálida dos rostos. Mesmo assim, agora tudo por conta deles, resolveram empreitar a derrubada de 50 alqueires de mata. As famílias se uniram e partiram para a luta. Todos nós morávamos embaixo de folhas de babaçu ou então de uma folha plástica preta. Logo furava e se chovia molhava quase todo o interior.
Eu e minha avó tínhamos um quarto só pra nós. Quando a noite caía eu grudava em seu pescoço e não podia conceber que houvesse criança mais feliz e protegida no mundo. Estava certo que minha vida dependia da dela; e que se ela morresse eu me suicidaria. Pensava isso sempre.
Um dia, quando as mulheres vinham do rio Itinga onde foram lavar as roupas – eram dezenove horas mais ou menos – ao passar por um jatobá caído e oco, ouviram uns roncos esquisitos vindos do seu interior. Amedrontadas, correram e foram chamar os homens. Todos munidos de foices, machados e espingardas, acudiram. Fui junto: eu sempre bisbilhotava. Quando enfiaram uma tocha acesa dentro do oco viram tratar-se de uma cutia. O Jacinto fez pontaria e disparou. Péssimo caçador que era, errou o alvo. Espavorida e ameaçada ela abandonou o refúgio tentando escapar pelo outro lado. Foi abatida pelo meu primo a golpes de machado. Em condições normais, sem fome, certamente meu primo não teria acertado. Naquela noite foi uma festa e um exemplo de equidade: dividiram-na em 15 partes iguais.
Doutra feita, sempre pela necessidade, saíram à noite, o Osmar, três irmãos dele, o Goió, o Chico, o Jessé e mais dois amigos que arrumaram lá na fazenda. Conseguiram algumas espingardas e lanternas e foram caçar, não mais que a duzentos metros do aceiro. Verdade ou não, ouviram a onça esturrar. Embora fossem muitos, ficaram apavorados e começaram a correr desordenadamente, sem observar os vestígios da picada. Logo se perderam, assim como as lanternas e até algumas espingardas. Acabaram caindo numa grota funda em que os porcos costumavam enlamear-se. Gritaram, choraram: a roupa já estava toda rasgada, porque quando a gente se perde no mato, vira um bicho mesmo, perdendo por completo aquele senso de raciocínio que nos diferencia.
Quando amanheceu, todos os demais companheiros da fazenda saíram à procura dos perdidos. Estavam bem pertinho do aceiro e muitos choravam dizendo que nunca mais iriam conseguir voltar. Viraram chacota dos demais até o fim da empreitada.
Há muitas coisas que impressionam uma criança e é um dó que muitos adultos logo se esqueçam de que foram pequenos. Se o senhor Joaquinzão não tivesse se esquecido tão facilmente de sua infância, talvez não permitisse que crianças como eu vissem o seu modo de abater os porcos. Ele apanhava uma lata com gasolina ou álcool – nem lembro bem – e derramava em cima do animal pondo fogo em seguida. O pobre do bicho grunhia e corria pelo chiqueiro como se fosse um meteoro, até esvair suas forças e apenas gemer. Aí os peões começavam a pelá-lo ainda vivo. Muitas vezes eu fugia da sede quando sabia que iam matar porcos, mas às vezes era obrigado a ver aquilo. Então voltava para casa e me agarrava à vovó:
– Que foi filho? – Perguntava-me logo. Sempre sabia se alguma coisa não estava bem comigo.
– Eles estão matando os porcos daquele jeito outra vez.
Vovó sabia qual era o jeito e por isso apertava-me contra seus seios molengos e dizia:
– Filho, você viu a malvadez: nunca faça igual. Quando for forçado a ver essas coisas e perceber que são erradas, aproveite esse momento triste e indesejado para se lembrar de que nunca deverá fazer o mesmo. Não somente os porcos, mas qualquer animal desse mundo deve ser respeitado. Podemos até abatê-los, porém jamais fazer judiação com eles. Nem uma cobra venenosa deve ser morta com crueldade. Tudo o que há, há porque tem que existir.
– Eu também, vovó?
– Você mais do que todos os animais do mundo. Se Deus não deixou que lhe jogassem no lixo é porque, certamente, o amanhã lhe surgirá… e surgirá radioso e bonito, ainda que não perceba.
6
Duas semanas antes do Natal de 1975, a equipe queimou a derrubada que havia empreitado. Depois do fogo recolheram muitos animais silvestres que não conseguiram escapar das labaredas, pois o mato ressequido pela longa estiagem – o que era raro – mais se parecia com os quadros do inferno pintados na Idade Média. Quando o vento soprava mais forte as chamas formavam línguas de fogo que alcançavam 10 metros de distância. No meu entendimento de criança via o próprio inferno, e as figuras que minha imaginação formavam com a fumaça, sempre tinham formas de almas penadas que se retorciam e lamentavam na voz martirizante dos taquaruçus que espocavam com alarde. Antes, tudo aquilo era verde, cheio de pássaros e bichos: antes era vida. Agora era morte: tudo feio, triste, afresco do inferno.
Nunca mais se ouviria o matraquear das ararajubas, nem os roncos dos barbados. Doeu-me fundo aquela limagem. Hoje, se fecho os olhos, pareço ver aquelas cenas de tristeza e devastação. Acho que as crianças deviam cuidar das leis que regem as derrubadas. As crianças são mais sensíveis àquelas coisas que Deus nos deu de presente com tanta beleza e carinho.
Encontraram, depois que o fogo cessou, dezenas de animais mortos: tatus, macacos, pacas, jabotis e até um filhote de mateiro que, por sinal, já não era tão pequeno. Foi uma verdadeira festa para quase todos, menos pra mim que nem podia ver carne de capelão: uma espécie de macaco que sempre me fazia lembrar um velho lá do curtume. Fui para a sede e nem precisei dizer nada, porque o Zezão sempre deduzia. Trouxe-me um pouco de farofa e, junto, uma costela de galinha com o bagageiro agarrado: pedaço que mais gosto.
No começo de 1976, terminada a empreitada, voltamos para Imperatriz. Em cima de estrados de caminhões, de carona…. Eu e minha avó viemos numa Kombi, junto com mais nove pessoas. Vínhamos empilhados como sacos de arroz, ainda mais que havia muito bagulho junto. Eram nossos pertences e dezenas de gaiolas de imbaúba com uma ararajuba, periquitos, bem-te-vis e até um pardal. Ainda hoje não entendo como aquele passarinho de cidade foi parar lá naquele sertão. A ararajuba logo cortou a haste de imbaúba e se misturou a nós, obrigando-nos a prendê-la debaixo de uma bacia de lavar os pés. Os periquitos também nos impunham vigilância constante, pois viviam querendo imitar a ararajuba fujona.
Dentro da Kombi, além de nossos pertences, havia ainda a vovó, a tia Josefa, minha prima Márcia, o Osmar, o Goió, o senhor Messias, a Dijé, o motorista e eu. Ninguém tinha direito de folgar qualquer desconforto, pois não havia espaço nem para aliviar o pé adormecido.
Na época havia muitos caminhões que transportavam madeiras da mata até as indústrias de Imperatriz. Não sei se era por causa de a visão de dentro da Kombi ser ruim, comecei a notar que a cada hora éramos cortados pelo mesmo caminhão: um Chevrolet vermelho. Ele transportava seis toros de madeira branca. Hoje sei que eram de camurim – uma essência muito usada pelas laminadoras. Aquilo me impressionava muito, pois, eu nunca percebia nosso carro cortando aquele caminhão e, de repente, ei-lo novamente passando por nós. Na curva bem à frente, o desastre. Mal despontamos, vimos os toros espalhados pela estrada e o caminhão logo abaixo com as rodas para cima. No acostamento, um homem dava com a mão, desesperadamente. Paramos nosso carro. O homem que acenava era o motorista e havia sobrevivido. Estava fora de si. Não dizia coisa com coisa. Nunca me havia deparado com uma cena tão horripilante.
Quase no meio da pista havia um pano vermelho de sangue, encobrindo alguma coisa. Da nossa turma, uns estavam cuidando do motorista, outros olhando os estragos. Fiquei sozinho sem saber ao certo o que havia acontecido. Encaminhei-me como um autômato para o pano vermelho. Percebi que havia algo estranho embaixo e resolvi espiar. Tomei o canto do pano e o ergui um pouco: era o lado dos pés de um morto. Vi apenas dedos que, apesar de sujos, pareceram-me muito brancos. Quem estaria dormindo ali, naquele lugar perigoso e desconfortável àquela hora? Fui então para o lado da cabeça e ergui de vez o pano: o que vi jamais irá se apagar de minha mente. Hoje sei que chega a ser natural tais coisas acontecerem, tanto por causa de nossa imprudência, como pelo grande número de pessoas que trabalham em atividades de grande risco. Mas naquele tempo eu não pensava assim: achava que só os velhos é que morriam.
A cabeça não tinha forma: era um amontoado de pedaços que o motorista havia recolhido à pressa e colocado ao lado do pescoço. O cérebro se resumira a um punhado de massa cinzenta, mesclada de sangue, cabelo, ossos esfarelados e areia; a boca não tinha lábios e os dentes expostos pareciam arreganhados: não poderia precisar se sorriam ou se ameaçavam; o que restava do crânio se assemelhava a uma casca de coco, toda trincada, e os olhos muito volumosos – nunca poderia imaginar que nossos olhos fossem tão grandes – estavam longe um do outro, cada qual olhando em direção diferente.
Eu queria sair dali, mas não conseguia. Minha mão direita parecia grudada na ponta do pano e meus pés não obedeciam ao meu medo. Perplexo, tonto, viajando por um mundo do qual jamais imaginei, entrei num estranho transe. Foi o trauma mais sério, o mais grave de minha vida, disto tenho certeza.
Vovó agarrou-me pelo braço e teve, literalmente, que me arrastar. Fui jogado dentro da Kombi com a voz engrolada. Nem eu entendia o que estava se passando comigo. O certo é que nunca mais pude ir a um velório e nem dormir sozinho, se no quarto não houvesse claridade. Aqueles olhos me fitam sempre e, se fico no escuro, vejo fauces medonhas a me espreitarem. Se um dia eu tiver filhos me lembrarei disso, jamais permitindo que vejam cenas para as quais ainda não estejam preparados. Se os homens se lembrassem que foram crianças, não fariam nem filmes horripilantes, pois também isso deixa marcas profundas nas crianças. Nossa cabeça não está preparada para mudanças bruscas, porque ainda é muito sensível. Os adultos não imaginam, sequer, o mal que fazem aos pequeninos com os filmes de terror, com as revistas obscenas, com os programas que atentam contra a pureza, com tudo isso que fazem pensando apenas no lucro, em detrimento de tantas coisas sãs e bonitas que Jesus ensinou.
7
Há muito ouço dizer que o homem é um produto do meio; que somos sempre o resultado da massa com a qual nos fabricaram; que a gente é uma colcha feita com milhares de remendos: os remendos culturais recebidos de nossos amigos ou de pessoas com quem convivemos.
Tenho lembranças fortes e marcantes do meu curto passado, principalmente de minha infância. Minha avó e eu vivíamos numa casa muito pobre com paredes de barro e coberta com palhas de babaçu. Ficava na Rua Fortunato Bandeira. Era pequenina, coisa de quatro por quatro, no máximo. Aquele quadradinho servia de sala, de cozinha e de quarto. Recebíamos ali as visitas. Todos os que frequentavam nossa casa eram sempre parentes ou amigos de infortúnio, e por isso não ficávamos constrangidos.
A gente puxava uns caixotes e oferecia a eles, enquanto vovó e eu ficávamos na rede. Quando saíam, puxávamos novamente o fogãozinho para o centro e cozinhávamos o arroz e, se tivesse, a carne. Vovó passava mais o dia no rio Tocantins lavando roupa do que em casa. Com esse mister pagava minha escola, comprava a comida e me vestia decentemente. Somente ela não se cuidava, e hoje sei que era porque o dinheiro não dava. Com as pequenas sobras ela comprava agulha e linha para remendar velhos trapos.
Na época nem todos possuíam televisão, mas uma de minhas primas tivera este privilégio. Era em preto e branco, mas nem me dava conta de que existia outra melhor, ou pelo menos, colorida. Quando não estava brincando com minhas primas Jacira e Joelma, estava em frente à televisão, vendo o Capitão Asa, Selvagem da Noite, Amigos para Sempre e outros programas que bem retratam a década de 70. Vivíamos o militarismo e a censura não permitia o que se vê hoje, no que se refere ao liberalismo imoral de se apresentar cenas explícitas de sexo ainda antes da meia noite. A menos nisso podemos dizer que o militarismo não foi tão danoso.
A casa de minha tia ficava longe da nossa. Se quiséssemos ver televisão tínhamos que nos submeter a todos os perigos de viver numa cidade violenta como já era Imperatriz naquele tempo. Todos os dias matavam gente. Eu era criança, mas ouvia os adultos dizerem de gente perigosa que mandava matar por qualquer contratempo. Falava-se num tal de Magarefe, num Bonfim e muitos outros que ainda hoje, já bem mais moderados, vivem pela região.
Numa noite qualquer vovó e eu ficamos para assistir a um filme que passava depois da novela das oito. Acabou tarde. Minha tia morava numa casa que ficava bem na esquina da rua Sousa Lima com a Bernardo Sayão e nós lá na Rua Fortunato Bandeira, do outro lado da pista, onde passavam os aviões. Eu não tinha medo de morrer, porque ainda achava que a morte era uma questão de tempo e minha avó vivia me dizendo que os homens que matavam não se interessavam por uma velha pobre que arrastava uma criança consigo.
– E matam por quê? – Arguia eu inocentemente.
– Faltam a eles duas coisas, filho: a primeira é Deus em seus corações. A segunda é não acontecer nada a eles quando matam os outros.
– Mas então, podem matar a gente também.
– Não se preocupe, filho, não irão nos matar.
Quando passávamos pelo caminho do aeroporto, sempre ouvíamos barulhos esquisitos, gritos de horror, agonia de alguém. Eu ficava surpreso e perguntava à minha avó o que estava acontecendo. Ela me incitava a andar mais depressa e a não olhar para trás. Pela manhã, quando eu passava novamente por ali, sempre via calcinhas de mulher sujas de sangue ou então a polícia que arrastava algum cadáver de dentro do matagal.
Era comum também acontecerem assassinatos no meio da rua com o sol quente e a pessoa morta, às vezes, passava o dia todo estendida ali sem que a perícia aparecesse. O povo já estava tão tristemente acostumado que passava por cima como se aquele ser humano fosse apenas um cão.
Um dia vovó me chamou:
– Filho, você topa a gente mudar daqui desta cidade?
– Por que, vovó?
– Esta cidade é um péssimo exemplo para qualquer criança. Um pouco mais e acabará achando que é normal matar o semelhante. Somos bichinhos que nos acostumamos logo com tudo.
Na verdade, eu não entendia direito aonde a vovó estava querendo chegar. Somente hoje percebo que a convivência faz o homem e que, de fato, somos muito um produto do meio em que vivemos.
Acabamos não mudando, mesmo porque os abusos chegaram ao ponto de virar matéria nacional. Até delegados federais apareceram.
Alguns bandidos fugiram, outros foram presos, outros se mudaram, enfim, em matéria de justiça, Imperatriz melhorou bastante. Os que ficaram e tiveram maior precaução entraram na política e hoje são respeitados e se apregoam homens sérios e honrados. Menos mal, pois é muito bonito a pessoa reconhecer que o crime não compensa e que é muito mais honroso e bonito lutar com dignidade.
8
Em 1976 comecei a estudar na escola do professor Saraiva: um homem carrancudo que vivia empunhando uma régua pesada, não hesitando usá-la em nossas cabeças caso não entendêssemos o que explicava. No começo a gente não perguntava nada e sempre confirmava que havia entendido. Não havia um dia em que muitos da classe não levassem uma surra e fossem chorando para casa. Graças a Deus, as irmãs de caridade, alegando que o terreno onde ficava a escola do professor Saraiva era delas. Entraram na justiça, ganharam a questão e a escolinha foi demolida.
Em 1977, minha avó foi morar com minha tia Josefa, numa casa alugada, e passei a estudar no colégio Frei Dário, que foi construído no mesmo lugar da escolinha do Saraiva. Foi um ano maravilhoso para mim.
Aos oito anos de idade, toda a minha felicidade resumia-se em brincar e participar de festas e batizados. Nasceu no hospital São Vicente Férrer a minha prima Jane, filha da tia Maria de Jesus. Jacira, Joelma e eu fomos batizados na primeira – é acho que foi a primeira igreja católica de Imperatriz, a igreja de Santa Teresa D´Ávila.
Na televisão, As Panteras, S.W.A.T., Dom Mendes, Galáctica, Planeta dos Macacos…. Para mim, tudo aquilo era verdade. Eu sonhava – puxa!, como sonhei ser também um herói como os protagonistas daquelas séries! Não obstante, sentia despertar em mim um sentimento novo, desconhecido, forte.
Via as novelas, os artistas se beijando, deitando-se na cama e, mesmo sem saber ou perguntar a ninguém, um dia percebi uma sensação estranha acontecendo sob a força de meus pensamentos. Saí de fininho da sala e fui lá para o banheiro. Baixei as calças e fique me olhando naquele estado, relembrando as cenas que havia visto na televisão. Quando me toquei, senti um prazer muito grande naquilo, e hoje, somente hoje, posso entender quanto antecipa nas crianças a malícia e o sexo, por meio da insensatez dos adultos. Hoje sei também que dia menos dia, pela força da Natureza, todas essas coisas acabarão acontecendo a todos os adolescentes, só que acho que tudo deveria ter seu tempo e sua hora.
Comecei a me apaixonar pela Nádia, minha professora. Ela era linda, inteligente, atenciosa, carinhosa, a mulher mais meiga do mundo. Não a tirava de meus pensamentos, até que o final do ano se encarregou de destruir o meu sonho: ela foi embora. Em seu lugar, uma outra professora bem diferente, alguém que nada significava para o meu coração. Era o começo das paixões repentinas que iriam se suceder em minha vida daí para a frente, sempre muito fortes, rápidas e passageiras. Quem me gerou não parecia ter esquecido desse sério detalhe de seu temperamento, e por que não dizer, de seu destino?
Durante a Copa do Mundo de 78, tia Josefa mudou-se para uma casa espaçosa na Rua Sousa Lima, levando-nos com ela. A casa possuía um quintal grande, onde todas as tardes eu me divertia a valer. Já estava na primeira série do primeiro ano estudando ainda no Frei Dário, mas sem a minha professora Nádia. Como não há alegria sem tristeza e vice-versa, o ano seguinte começou como ressarcimento do anterior. Morre mãe Ana, irmã de vovó. Só em pensar que poderia ser minha avó, fiquei muitos dias praticamente sem me alimentar. Estava certo de que mina vida só iria até aonde fosse a vida de minha avó. Só em pensar nisso enchia-me de desânimo, um desânimo de morte.
Nesse ano nasceu também o meu oprimo Marcelo, filho da Josefa com o Osmar. Aumenta a crise financeira. Osmar, que sempre fora um marido exemplar, não dando mais conta do recado, passou a beber. Vivia caído pelas calçadas e muitas vezes tia Josefa, vovó e eu fomos buscá-lo na rua ou num botequim qualquer.
Jacinto, desde aquele dia, nunca mais fora o mesmo comigo. Só aos nove anos de idade pude saber o porquê de sua apatia: foram dizer a ele que eu andava de “saliência” com suas filhas. Na época eu não tinha tanta maldade nem atinava bem para essas coisas que hoje roubam a pureza das crianças. Quem inventou aquela mentira cometeu uma grande injustiça, privando-me da alegria de ter o Jacinto como amigo. Como criança eu vivia contando os minutos para que a tarde caísse e ele despontasse com sua bicicleta lá na esquina. Ele me ajudava a esquecer o pai que me abandonara. Aliás, eu quase nunca perguntava por aquele que me havia gerado. Vovó dizia de vez em quando que era um homem muito bonito, tão bonito quanto covarde. Dizia-me também, que se em algum dia eu pensasse em levar alguém para a cama, que parasse um pouco para pensar no que haviam feito a mim e à mamãe.
Um ato de paixão impensado pode se transformar na infelicidade de muitas pessoas, filho. Hoje eu entendo perfeitamente o que minha avó tentava ensinar-me.
O Jacinto substituía meu pai; as filhas dele, as minhas irmãs. Só que nunca mais permitiram que eu brincasse com minhas primas. Em 1978, sempre quando estávamos sozinhos, elas tentavam me agarrar e me perguntavam se eu não queria brincar de televisão. Ficava sem responder, pois, apesar das insinuações, não concebia fazer amor com minhas primas. Isso seria um pecado muito grande – vovó dizia.
Minha primeira experiência mesmo só veio lá no segundo semestre desse mesmo ano. Um amigo chamado Pedro me contou que o pai dele havia alugado uma de suas casas para uma senhora viúva que possuía uma filha de dez anos. A viúva trabalhava como biscateira no Calçadão e a filha dela ficava sozinha em casa. Então o Pedro me disse que sempre que a mãe não estava, ele ia lá e dormia com a menina. Perguntou-me:
– Você não quer experimentar?
– Quero – respondi, praticamente sem pensar.
Na verdade eu não sabia ao certo o que estava confirmando. Só lembro agora que tudo o que era novidade ou segredo, eu queria saber ou experimentar. Acho que foi por isso que respondi tão impensadamente. Foi também a primeira vez que menti para minha avó e senti depois uma dor profunda. Certamente a consciência doera. Minha avó sempre dizia que quando se faz alguma coisa que Deus não aprova, a consciência nos martiriza.
Além do Pedro, havia outro garoto que frequentava a casa da menina. Dos três eu era o mais novo, estava então com oito anos. Pedro, com onze.
Quando chegamos, o Pedro foi primeiro. Eu olhava o que estavam fazendo e não sabia onde me esconder. Tantas coisas se passaram naquela investida do mal contra meu coração puro que só hoje percebo o que o bem padece ao ser derrotado pelo mal. Não deve ser por outro motivo que inventaram o símbolo da maça e da desobediência para definir o pecado.
Quando meus companheiros terminaram, eu fui, Pedi que eles saíssem do quarto e não fizeram objeção alguma. Eu morria de vergonha, mas a menina já se parecia com mulher muito rodada. Foi tirando minha roupa e me acariciando: foi fazendo tudo por ela e por mim. Não sei por que ficou comigo, já que devia estar saturada de tanto sexo. Os meus companheiros – não sei se por causa de minha expectativa – pareceram-me incansáveis.
Quando retornamos, o Pedro me perguntou se eu havia gostado e se queria voltar. No outro dia, quando chegaram eu já estava lá. Todos os dias, mal a mãe dela saía para o Calçadão, eu baia na porta. Ela abria e a gente já começava ali na sala mesmo. Foi o resto do ano assim, e se não fosse ela, acho que nunca mais pararia. Um dia, porém, ela me chamou e disse:
– Siriano, não quero mais que venha aqui na minha casa.
– E por que não?
– Eu cansei.
– E isso cansa?
Não quero mais.
– Mas não é bom para você?
– Foi bom, enquanto eu mesma não sabia o que estava fazendo.
Fiquei pensando sobre aquilo e não relutei muito. Só o que me doeu foi eu ter que ir para casa, naquela última vez, sem fazer nada. Tentei convencê-la de que aquela seria a última vez, que não mais voltaria a procurá-la, mas não consegui convencê-la. Diante de minha insistência, ela explicou:
– É que estou virando moça e posso pegar filho. Já pensou se eu ficar grávida?
– Não, nunca pensei nisso.
– Pois é, ontem quando você saiu, comecei a sangrar e minha mãe me disse que eu acabava de virar mulher. Disse também que de agora em diante se eu ficar com homem, posso ganhar um neném.
– Nossa Senhora de Fátima! – Limitei-me a exclamar com os cabelos arrepiados.
Hoje fico surpreso em imaginar o que se passava na cabeça daquela menina. Buscava o prazer na convicção de que, sem consequências, não representava crime algum. Aquilo, para ela, assemelhava-se muito a uma brincadeira como outra qualquer: era bom e ela brincava. Acho que não estava cometendo crime algum, porque sua consciência não doía. Se a gente não sabe que uma coisa é pecado, certamente não é mesmo, porque só somos responsáveis por aquilo que conhecemos e acreditamos.
9
Época de Copa do Mundo na Argentina. O Brasil não vai além do terceiro lugar. Talvez pelo longo tempo sem nada a comemorar, o povo saiu às ruas, satisfeito e feliz, mesmo com aquela vexatória classificação.
Vovó, abusada de lavar roupa, resolve aceitar o emprego de doméstica, indo trabalhar na casa de dona Diana: uma enfermeira crente que não se cansava de pregar às filhas que moças decentes têm de se vestir com decoro. Por isso, suas filhas viviam empacotadas, com vestidos normalmente brancos que iam do pescoço (gola alta) até aos tornozelos.
De fato, a batina não faz o monge, porque com duas semanas que eu estava lá elas começaram a agarrar-me. No começo fiquei com medo, mas como já havia recebido insistentes aulas de safadeza com aquela menina que o Pedro me havia apresentado, logo fui pensando numa oportunidade para ficar com elas. O que dificultava era que vinham sempre juntas e eu ficava com vergonha de ficar nu com uma, tendo a outra a observar. Com o tempo, porém, também a vergonha se foi e eu vivia me despindo na frente das duas. Nunca consegui nada porque minha avó, como se fosse um “anjo danado”, sempre batia na porta ou me chamava bem na hora H.
Um dia, logo depois do almoço, começamos a brincar de esconder. Não houve aula nesse dia. Em minha mente só moravam planos de achar um lugar seguro para agarrar uma das meninas. Acho que viviam rezando para que eu encontrasse esse lugar.
Apesar de grande, o quintal não apresentava esconderijo algum. Somente um pé de macaúba, bem no canto, cheio de espinhos, oferecia-se como sugestão. Encostada a ele, uma velha escada que utilizavam para derrubar os cocos. As macaúbas, para quem não sabe, apresentam longos espinhos perfurantes: podem atravessar as mãos de uma criança. Subi pela escada e fiquei em pé no último degrau, camuflado pelas folhas de baixo. As meninas vasculharam tudo à minha procura. De repente, uma delas bateu na escada desequilibrando-me lá em cima. A fim de evitar a queda, agarrei-me às folhas cheias de longos espinhos. Logo alguns me penetraram nas mãos. A escada acabou caindo de vez e eu, para não me esborrachar nas pedras que havia em baixo, segurei-me com mais força ainda. Aí, dezenas de espinhos furaram-me por todo o corpo. Gritando como louco, logo atraí minha avó e os vizinhos. Um homem recolocou a escada e para tirar-me teve que cortar os espinhos, pois eles me travavam lá em cima.
Acho que foi a maior dor por que já passei. Levaram-me para o hospital e tiveram de me anestesiar todo para que os espinhos fossem retirados. Passei 40 dias tomando injeções e com o corpo todo inchado. Minha avó, muito esperta, disse-me que aquilo bem podia ter acontecido por causa de certos pensamentos ruins que estavam em minha cabeça naquela hora, pois Deus nunca permite o mal às crianças puras. Muitas vezes depois, quando pensava nas meninas, os espinhos da macaúba espetavam-me a consciência, livrando-as de minhas investidas.
– Seus pensamentos doíam mais em Deus, meu filho, do que os espinhos em seu corpo – repreendeu-me a vovó.
10
No final de 1978, minha tia Josefa resolve morar com a sogra Digé, deixando-nos sem casa, pois lá não havia lugar para tanta gente. Vovó volta para o casebre da Fortunato Bandeira, que estava alugado desde que mudamos para a casa da tia Josefa.
O aeroporto já não existia: no local estavam começando várias construções, como o Colégio Dorgival Pinheiro de Sousa, a COBAL, a Escola Graça Aranha, o Centro Esportivo e o SENAC. Passava-se a gestão do prefeito Carlos Amorim. Cheio de novas ideias, o Prefeito resolve ligar a Avenida Bernardo Sayão à Rua 15 de Novembro. Nosso casebre era um dos empecilhos. Durante noites a fio vovó entrava em desespero, chegando a chorar convulsivamente. Saí de minha rede e fui estar com ela, abraçando-a cheio de dor. Jamais existirá no mundo alguém que amou uma avó mais do que eu a minha:
– Vó, a senhora está doente?
– Não filho, estou bem. Volte para sua rede.
Ela chorava porque se via ameaçada de perder o casebre de palha de 4 x4, com um quintalzinho menor ainda. Os homens ricos nunca irão entender essas coisas, nem as lágrimas de minha avó. Era tudo o que possuía e se lhe tirassem aquilo, estaria arruinada, como alguém que possuísse um Boeing sem seguro visse-o pegar fogo e ser reduzido a cinzas. Preocupada em ter onde ficar, como cuidar de mim, ela chorava, passando longas horas em claro.
Nessa noite fiquei mais tempo agarrado em seu pescoço e nem percebi o sono me dominar. Quando amanheceu eu estava em sua rede, mas vovó não mais se encontrava. Ouvi muita conversa na rua e fui olhar. Havia muitas pessoas pobres reunidas, todas preocupadas com seus pedacinhos de terra que seriam engolidos com a ligação da Bernardo Sayão à 15 de Novembro.
Foram muitas as noites em que os moradores dali ficaram sem dormir, pensativos, apreensivos. Cada carro que zoava, todos já imaginavam ser as máquinas chegando para demolirem tudo. Minha avó, juntamente com outros pobres, não saía da Prefeitura, quase implorando ao Dr. Carlos Amorim que não tomasse a única coisa que havia conseguido na vida. Ele prometia indenizar, dar algum dinheiro e um pedacinho de terra em qualquer outro lugar, nas cercanias da cidade. O povo não queria que fosse assim porque o lugar era bom e ficava quase no centro da cidade.
Por fim, numa sexta-feira, chegou lá em casa o Prefeito. Minha avó teve um ataque de nervos e começou a chorar incontrolavelmente. Ela pensava que era a última ordem para abandonar o casebre. Contrariamente, o Dr. Carlos a abraçou e disse que para ele era mais importante o povo do que a cidade e que a Rua Bernardo Sayão iria mesmo só até a Rua Simplício Moreira.
Como se houvesse apenas invertido a polaridade, vovó continuou chorando no mesmo tom, porém, agora, de alegria. Agarrou-se ao pescoço do Prefeito e não soltava mais. Foi preciso que o pessoal que ali estava o ajudasse a se desvencilhar daquela situação embaraçosa.
Quando desgrudaram minha avó, o Dr. Carlos estava com os olhos cheios de lágrimas também. Certamente percebeu que felicidade não tem tamanho, que não é conseguida apenas com poder e dinheiro e que recebê-la é apenas uma questão de se acertar o número: como num jogo. Vovó chorava agora de alegria por ter salvo sua palhocinha e seu contentamento não era menos do que aquele que invade o coração de um milionário que acerta sozinho na loteria.
Em 1979, não suportando o convívio com a sogra, vêm para o nosso barraco a tia Josefa, o tio Osmar e seus dois filhos: Márcia e Marcelo. A casa que já era pequena para dois, agora teria de fazer o milagre de alojar mais quatro pessoas. Foi aí que senti a grandeza da fraternidade e o jeitinho que Deus dá sempre que fazemos alquilo que Jesus ensinou. Logo ampliamos um pouco, recebemos energia elétrica e tivemos o privilégio de uma televisão de vinte polegadas, tão minha conhecida.
11
Certa vez, passou em frente à nossa casinha um homem barbudo e, atrás dele, como se fosse um cachorrinho, caminhava um filhote de porco do mato. Cabisbaixo, quase cheirando os calcanhares do homem barbudo, o porquinho seguia. Vovó estava comigo e então me virei para ela e disse:
– Vó, sou igual àquele porquinho, não sou? Sem a senhora fico perdido.
Ela esfregou as mãos na minha cabeça e sorriu. Lá na esquina o homem barbudo subiu a calçada e o porquinho pulou atrás; o homem dobrou a esquina e o porquinho sumiu atrás dele. Olhei para a vovó e ela entendeu. Tomou-me pelo braço e carinhosamente arrastou-me para dentro do barraco.
Logo depois ouvimos palmas: era o senhor José, um homenzarrão queimado pelo sol e dotado de salientes músculos pelos braços. Por isso o chamava de Zezão. Conheceu a gente lá na fazenda do Joaquinzão. Vovó ofereceu-lhe um café e depois ouviu o que ele tinha a dizer:
Vim buscar a senhora para trabalhar comigo no Cajuapara.
Sem falar em data, dinheiro ou qualquer outro detalhe, vovó consentiu dizendo-se pronta. Eu a olhei lembrando o porquinho. Ela puxou-me afetuosamente:
– Nas férias de julho virei buscá-lo para ficar comigo.
– Você nunca mais irá querer voltar – interferiu o Zezão, quem bem conhecia meu apego à Natureza. Lá tem lagoas, peixes, passarinhos…. Meus olhos encheram-se de lágrimas e nem saberia decantar mais o que era inveja ou saudade antecipada. Embora a sabendo bem, não tão longe, aquilo me doeu fundo no coração. Se as pessoas nascessem somente para ser felizes, eu teria de acompanhá-la, embora para isso tivesse que abandonar meus estudos. Contudo, parece que a gente nasce somente para trabalhar, estudar, comer, dormir e depois morrer. Nunca vou entender essas coisas.
Sempre quando vejo os passarinhos voarem, os cavalinhos saltitarem pelas pastarias… Puxa!, morro de inveja, porque sei que não estão preocupados com a lição, nem com o dia de amanhã.
Uma semana depois, vovó vai para o Cajuapara. Tia Josefa ganha mais uma filha no São Vicente Férrer, a Marcilene. O mês de julho chega: nunca irei acreditar se me disserem que já houve no mundo um mês mais longo do que o junho daquele ano.
Quando minha avó chegou, chorei tanto que quase precisaram me internar. Ela e todas as avós do mundo jamais irão saber o quanto eu a amava. Mesmo assim, para não desagradar aos parentes, convenceu-me a ficar até o fim do ano, e em meu lugar, levou a Jane e a Márcia, minhas primas. Em agosto elas voltaram, pois, as aulas iriam ter início.
E se o tempo nos envelhece e nos leva deste mundo, também faz chegar os dias felizes. E assim, embora nem acreditasse como, aqueles meses também se passaram e o fim do ano chegou. Novamente vovó veio. Desta vez não haveria desculpas. Falei logo para a vovó que se tornasse a me deixar eu iria me matar. Ela riu bastante e confortou-me:
– Não vai precisar fazer isso, porque vim somente para buscá-lo. Também já não aguentava a saudade, filho.
Aquilo era tudo o que eu queria ouvir. Apertei-lhe tanto o pescoço que ela teve que se defender senão eu a jugulava. No outro dia saímos bem cedo. Nunca havia percebido que Deus fizera um mundo tão bonito. Não me continha de felicidade e alegria.
Naquele tempo as coisas eram bem mais difíceis que agora. Por isso, tivemos que esperar, lá na estrada do Cajuapara, por duas semanas até que um velho caminhão nos desse uma carona até a fazenda do Zezão. É estranho como a Natureza, em sua ingenuidade divina, consegue fazer cenários tão bonitos. Eram três lagoas verdes, abastecidas por um igarapé cristalino que passava bem perto da estrada. De cima de um morro de mais de 50 metros, onde ficava a sede, a gente podia ver todos os detalhes. Quando fui para a varanda e passei o olhar por tudo aquilo, o coração bateu forte e suspirei de felicidade. Não sabia o que dizer ou o que fazer. Vovó passou por mim e vendo-me extasiado, brincou:
– Gostou, filho?
– É lindo, vovó! Nunca mais vou sair daqui.
Mais uma vez ela sorriu. O sorriso de minha avó era sempre a demonstração mais convincente de que estava feliz. Isto me enchia de prazer porque vê-la assim era tudo o que em todos os dias eu pedia a Deus. Ela era meu anjo, minha mãe, minha vida.
Corri para o riacho e não acreditei quando vi dezenas de peixes pequenos coloridos, brincando na correnteza. Acho que o céu não precisava ser melhor para ressarcir os justos dos sofrimentos passados aqui neste mundo para alcançá-lo.
Em toda a volta da manga, a floresta eterna. Verdes árvores gigantescas: pareciam topar nas nuvens. Ouvia-se o grito estridente das araras e os esturros dos barbados. Era a pujança do natural, era ainda um pouco daquilo que Deus fez e do qual muitos homens não gostaram e ainda não gostam, pois destroem e derrubam. Pelas pastarias, muito gado. Ali, além do Zezão e de dona Júlia – que só apareciam em fins de semana – havia apenas cinco peões. O Zé Branco, espirituoso, contador inveterado de histórias e piadas, muito esperto. Trazia consigo um defeito adquirido, possivelmente de tempos difíceis quando apelava para tudo a fim de matar a fome insaciável de seus tempos de adolescência: bebia ovos crus como se fosse um lagarto. O Zezão gostava mais dele do que dos ovos e por isso preferia tentar esconder os ninhos das galinhas a despedi-lo; o Pelezinho, cujo apelido dispensa detalhes, vivia fazendo e desmanchando gaiolas o ano todo; os dois Júlios: o grande e o pequeno. O pequeno era filho adotivo do Zezão e não perdia a oportunidade de apontar-me como autor de todo malfeito que aparecesse. Tentava defender-me, mas acredito que ninguém foi mais infeliz neste tipo de tentativa do que eu. Ele era mais velho, mais alto e mais forte. Isso, porém, era esquecido ou levado em conta pelos mediadores. Somente o Alcides me amparava e dizia que sabia que eu estava certo e que o Júlio pequeno era mesmo um malvado. Isso, mais a beleza da fazenda, faziam com que eu nunca pensasse em me separar daquele paraíso.
No segundo mês a dona da casa trouxe a filha de uma amiga para passar o restante das férias lá na fazenda. Para ser sincero, até hoje não sei o nome dela, já que todos a chamavam de Loirinha. Era magra, um metro e setenta de altura, cabelos castanhos, pele clara, rosto de um anjo triste. Logo que a vi minhas pernas tremeram. Pela primeira vez senti algo que não pude explicar. Hoje sei que aquilo foi amor à primeira vista. Tudo o que falava, para mim era bonito. Eu podia estar triste, mas toda minha tristeza ia embora se ela sorrisse. No entanto, por maior que fosse minha alegria, se a visse triste, logo me entristecia também. Só desejava estar no lugar em que ela se encontrasse.
Todas as pessoas da fazenda se banhavam no igarapé, lá em baixo, na beira da estrada. Havia a hora dos homens e a hora das mulheres. As crianças, conforme o tamanho, tinham o direito de escolher a própria turma. A única coisa proibida era irmos sozinhos, pois os jacarés e as sucuris viviam comento galinhas, porcos e até bezerros de pequeno porte. Eu só ia se ela fosse e ficava excitado quando a via descer de short Jeans, bem curtinho e com uma blusa de tecido bem fino que praticamente desaparecia ao ser molhado. Os seios ficavam visíveis, tão visíveis que, às vezes, eu imagina que ela havia tirado a blusa. Por mais vergonha e timidez que sentisse eu não conseguia desviar o olhar e, então, ela brincava:
– Siriano! Siriano! …
Apesar das ameaças dos jacarés e das sucuris, eu ficava lá com ela até o sol se pôr. Mesmo naquela semana, a vovó disse que talvez precisássemos voltar e foi aí que senti que minha paixão por ela já não era tão obsessiva. Meu coração dividiu-se entre ir e ficar; entre minha avó e a Loirinha por quem estava perdidamente apaixonado.
Loirinha era uma criatura triste. Havia desfeito o noivado e sido levada para aquela fazenda com o fito de esquecer o passado e sarar as feridas que sempre, mesmo os mais lindo sonhos, criam. Quantas vezes a surpreendi com uma fotografia nas mãos, chorando muito. Então eu encostava, apoiava minha nela e dizia:
– Loirinha, chore não! Você é tão linda, tão educada! Um dia outro homem, melhor do que aquele que a deixou, irá gostar de você como merece.
Ela me olhava, esfregava as costas das mãos nos olhos e parecia sorrir. Colocava a fotografia numa bolsa, pendurava-a num cabide de madeira e me puxava pelos braços:
– Você é um amor de menino!
Ser chamado de menino, naquela época, não machucava. Meu amor era mesmo de criança e como criança eu via a vida e todas as coisas.
Um dia, todos da fazenda ficaram no quitungo – era assim que chamavam a casa de fazer farinha. Uma vez colocada no tacho, a farinha só podia ser retirada quando estivesse torradinha, no pondo, como diziam. A noite já ia alta e o sono me pegou. Falei para a vovó que eu não aguentava mais e que não tinha onde deitar. Ela veio a mim e ficou confusa. Sabia da minha “coragem” de ir para casa sozinho. A Loirinha que também lá se encontrava, ponderou:
– Deixe-o aqui nas minhas pernas.
O sono que me afligia desencantou-se. Mesmo assim fingi-me sonolento e fui. Ela me sentou em suas pernas e eu passei o braço em seu pescoço. Os longos cabelos cobriram-me o rosto. Imediatamente começou em mim um processo indescritível. Meu rosto parecia pegar fogo e uma estranha sensação tomou conta de todo meu ser. Como sempre, ela trajava um short bem curtinho e nossas pernas se tocavam por inteiro. Fui descendo a mão devagarinho como se estivesse escorrendo pelo sono e a apoiei num de seus seios. Parecendo não se importar, ela deixou. Meu rosto parecia em febre. Com aqueles carinhos, acho que foi ela quem dormiu, porque estava com os olhos fechados e respirava ofegante. A luz do lampião era fraca e quando as pessoas estavam de costas eu a acariciava com mais intensidade. Aquela sensação incrível cada vez mais se apoderava de mim. Era fantástico o que se passava comigo. Levantei minha cabeça um pouco e percebendo que ninguém estava me observando, levei a mão até o bico de um de seus seios: estava hirto e arrepiado. Mesmo “dormindo” o seu corpo não conseguir livrar-se dos hormônios excitados. E então, já não me importando com nada nem com ninguém, entreguei-me completamente às fantasias e acabei me molhando todo. Era a primeira vez que isso me acontecia, pois nunca havia ejaculado até então. Aí me sobreveio uma grande calma e, de fato, adormeci. Ainda hoje me pergunto e nunca uma dúvida foi mais cruel: será que a Loirinha estava mesmo dormindo? Será que não percebeu nada e que tudo foi apenas fantasia de minha mente?
12
Inicia-se o inverno na região. Em todo começo acontecem transtornos ocasionais à Natureza: mormaços na terra, nuvens negras pelo céu, relâmpagos e estrondos seguidos, verdadeiras trombas d´água… Depois de algumas semanas, então, o tempo se fecha definitivamente, só diminuindo no final de junho.
Para aproveitar esta última oportunidade, tanto do tempo como das férias, Loirinha resolve organizar um passeio pelas fazendas circunvizinhas. Na véspera, à noite, todos nós estávamos sentados numa grama perto do terreiro, deliberando sobre o passeio e ouvindo as intermináveis piadas do Zé Branco, quando uma bola de fogo, muito azul, apareceu a uns 20 metros do chão, a uns 200 metros de nós. Veio na direção da estrada, subiu a ladeira que dava para a sede da fazenda, passando a alguns metros da gente, quase nos enceguecendo. Sei que hoje, quando conto isso, muita gente acha graça, pondo em xeque toda sinceridade de uma criança, mas juro que aconteceu e que mais de dez pessoas que estavam comigo também viram. Devia ser coisa natural, mas, para nós, foi coisa do outro mundo.
No outro dia, apesar de o passeio já haver perdido sua importância por causa da misteriosa bola de fogo, saímos pelas fazendas contíguas. O pessoal assentou-se no fundo da carroceria e todos cantarolavam como loucos. Permaneci em pé, agarrado no malhal da carroceria, curtindo o vento que me batia no rosto, vendo as matas exuberantes e todo o verde que se evidenciava com a chegada do inverno. De repente, como se tivessem afinado as vozes, todos gritaram para que me abaixasse. Antes de atendê-los, quis saber a razão: acordei minutos depois, deitado no colo da Loirinha, que viajava na boleia.
Parecia que o próprio destino era sádico em alimentar minhas ilusões, deixando-as nascer para em seguida eliminá-las. Quando sozinho, imaginava, sonhava tanto que chegava a agradecer a Deus por ter inventado as ilusões. No toca-fitas do carro, só músicas de Lindomar Castilho e Evaldo Braga. Naquele tempo não se exigia mais para despertar os mais lindos sentimentos de amor e paixão.
Enrolaram-me um turbante na cabeça e olharam-me espantados. Mas, no colo da Loirinha, eu não sentia dor alguma. Só quando alcançamos a sede da primeira fazenda que estávamos visitando é que pude ver a extensão do que me havia acontecido. Passaram-me limão-galego nos arranhões. Quando já enchia os pulmões para desabafar em lamentos toda aquela dor, apareceu a Loirinha. Virando a moeda, comecei a sorrir, mesmo com os olhos cheios de lágrimas. Então, ela disse:
– Como é forte este meu rapaz!
Tanto os poetas mexem os adjetivos e organizam frases comoventes, mas por mais que tentem, jamais encontrarão outras que ressoem tão bem no meu coração como este “meu rapaz” ressoou.
Olhei-me depois no espelho: aqueles cipós que desciam de uma árvore qualquer, por pouco não me enforcaram.
Já com a noite avançada, chegamos às nossas casas. Loirinha foi deixar-me com a vovó. Explicou o que havia acontecido. Ela puxou-me para si, e suas mãos grossas pareciam veludo milagroso a aliviar as dores. Aí, chorei. Vovó sussurrou-me, então:
– Filhote dengoso, venha cá que vou lhe dar um remédio infalível. Vai deixar você bonzinho, logo, logo.
Esquentou um pouco d´água com arnica, misturou gotas de vinagre e pitadas de sal, lavando-me, em seguida, os arranhões. A dor foi saindo, saindo até desaparecer totalmente. Eu nunca duvidava se a vovó me assegurasse, por isso, todo remédio dela funcionava. Dormi bem a noite toda e, em poucos dias estava restabelecido.
Nenhum antibiótico foi inventado pelos laboratórios mais sofisticados do mundo que se igualasse à arnica de minha avó, sendo eu o doente, é claro. Não foi por menos que um chinês inspirado disse um dia: “Pra quem acredita, cabeça de peixe faz milagres.”
13
Infelizmente, também chegou àquela fazenda o desejo do lucro fácil. Dosséis verdejantes e bonitos foram decrescendo, ou mesmo desaparecendo a cada dia que passava. O lucro deixado pela madeira era tentador. Não havia custado nada ao Zezão plantar aquelas árvores. Comprou um caminhão e toda vez que o tempo permitia, mandava-o para o serviço. Três homens derrubavam as árvores, dividiam-nas em toros, guinchavam-nos sobre o estrado por meio de catracas e os transportavam às serrarias de Imperatriz. Não obstante as chuvas da noite, o Zezão mandou que o Valdemar, o Careca e o Negão saíssem e fossem ao trabalho. Eles obedeceram. Algumas horas depois, vimos, pela precária estrada, o caminhão lotado que vinha.
Como toda criança, eu era muito curioso. Logo que ouvi a zoada do motor e vi o caminhão saindo da mata, corri para o pasto, onde havia um morro muito íngreme. A Loirinha acompanhou-me. Saímos correndo: ela como se fosse criança.
Chegamos quase todos juntos, pois quando loirinha e eu alcançamos a barranca, já o caminhão desgovernara-se por causa da lama, tombando, indo parar dentro do igarapé que estava com bastante água devido à chuva da noite. Ficou com as rodas para cima e cobriu todo o leito do igarapé, quase não permitindo a passagem da água. No toca-fitas um bolero que parecia ter sido gravado para dar, às ocasiões drásticas, o fundo musical devido.
O Negão, embora bastante ferido, conseguiu arrastar-se para fora do riacho; Valdemar ficou boiando na água e os peões que se preparavam para o trabalho, tentaram socorrê-los, livrando-os da morte certa. Pelo pior mesmo passava o Careca: preso entre os toros e as ferragens, não podia sair. Gritava, pedia socorro, mas ainda que houvesse ali um exército inteiro, não ajuntaria força para retirar o toro que o esmagava contra a terra mole. E a água estagnada subia devagarzinho, ameaçando cobrir-lhe a cabeça. A motosserra da fazenda estava quebrada e só a oito quilômetros dali havia um fazendeiro que possuía uma Sthill 51.
Um peão arriou o cavalo e saiu a galope. Os outros, com enxadões e as próprias mãos, tentavam abrir uma valeta para que a água escoasse evitando, assim, cobrir a cabeça do Careca.
No entanto, por causa da chuva da noite – e agora represado pelo caminhão – o igarapé subia lentamente. Já alcançava o pescoço do Careca e nem sinal do peão que fora buscar a motosserra. Apegamo-nos às orações. Vovó, como sempre, tomou a frente. Ordenou que todos se dessem as mãos e pedissem a Deus que não deixasse o Careca morrer naquela agonia lenta. Antes que pronunciássemos dez palavras ouvimos o tropel. O peão chegou e já saltou empunhando a motosserra, correndo para dentro do igarapé. Puxou a corda e o motor pegou. Começou a cortar o toro a dois metros da ponta, parte que imprensava o pobre homem. Tudo correu bem e em cinco minutos ele o separou. O pessoal se reuniu e todos, munidos de espeques, afastaram o pedaço que pressionava o Careca. A água, de quando em vez, se alguém fizesse marola, cobria-lhe a boca. Tiraram-no devagar, arrastando-o para fora. Em seguida colocaram os três num Jeep e rumaram para Imperatriz em busca de socorro.
Naquela mesma noite minha avó me chamou, abraçou-me forte e disse:
– Filho, acho melhor a gente voltar. Daqui para a frente a chuva vai apertar cada vez mais e se não aproveitarmos, é bem possível que tenhamos de passar todo o inverno aqui dentro destas matas.
Lembrei-me imediatamente da Loirinha, mas sabia que também ela não iria demorar ali, porque estudava. Por esse motivo aceitei sem apresentar qualquer objeção. Ficava feliz quando vovó fazia com que me sentisse responsável. Naquele tempo até acreditava que, se houvesse qualquer contestação de minha parte, ela desistiria da viagem. É provável que ficasse mesmo. Nunca magoava meu coração. De minha parte, achava-a a mulher mais fantástica criada por Deus. Puxa, como eu a amava!
Se a estrada estivesse boa, da fazenda até a vila de Cajuapara, na Belém-Brasília, gastaríamos dez horas. No entanto, durou três dias. E não foram três dias comuns, pois passamos sede, fome e tivemos até que andar por uma noite inteira pelo meio da lama e das matas, sem uma réstia de luz.
Vovó trazia consigo uma lata de doce no ombro e a outra na cabeça; eu, a trouxa de roupa, mais confortável e mais leve. Nunca uma pessoa que não viveu tais dificuldades entenderá os percalços de uma viagem assim. Numa das noites passou por nós um caminhão e nos deu uma carona. Atolou duzentos metros à frente e depois de dura luta, o motorista nos aconselhou a ir andando, já que não tinha qualquer previsão de sair dali. O tempo estava enfarruscado, ameaçando mais chuva grossa.
Vovó não se apartava dos doces de leite nem eu da trouxa de roupas. Pusemo-nos a caminho. Anoiteceu. O motorista havia dito que chegaríamos a uma casa ainda antes do anoitecer, mas isso não aconteceu. Fomos tropeçando pelo anoitecer, mas isso não aconteceu. Fomos tropeçando pelo meio da mata, caindo, ouvindo esturros de onça e fortes trovões ribombando como se o mundo fosse acabar. Quando achamos a tal casa, estava fechada e tivemos que prosseguir viagem.
Vovó me deu um pouco de doce de leite, comeu também e fomos seguindo. Logo saímos da pequena abertura e nos embrenhamos de novo na mata. Eu ia pisando os calcanhares da vovó, mas ela não reclamava. Sabia o medo que invadia meu coração, ainda de quase criança. Eu crescera em malícia, mas acho que fora só nisso. Continuava tendo medo do escuro, dos trovões e de tudo o que não podia explicar. Lá pela meia-noite não suportamos mais. Vovó encostou-se num tronco, abraçou-me e disse:
– Vamos descansar um pouco, filho.
Apertei-a contra mim como se estivesse querendo entrar dentro dela e ela brincou:
– Pode deixar, filhote, nem uma mucura teria coragem de nos comer. Estamos há dois dias sem ver água… bem… temos uma grande defesa natural.
Logo adormeci. Ela apenas vigiava meu sono. Não sei por quantas horas fiquei dormindo, mas quando me mexi ela perguntou se eu aguentava andar mais. Disse que sim, e metemos os pés na estrada outra vez. Felizmente o tempo ameaçador passou sem chover. Felizmente, também, o sol despontou e todo aquele sofrimento chegou ao fim.
14
A minha vida e a de minha avó pareciam apenas um intercalar de imprevistos dolorosos. Muitas vezes me perguntava se em algum tempo chegaria uma boa notícia, aconteceria o milagre de podermos ir a um restaurante ou mesmo a uma lanchonete, comer alguma coisa, tomar um sorvete de cupuaçu ou de açaí.
Mal nos livramos daquela viagem dolorosa e outro acontecimento já exigia de nós mais luta, mais sofrimento. Ainda não tínhamos arriado nossos cacaréus no chão quando um garoto de mais ou menos treze anos se achegou. Minha avó e eu nos entreolhamos. Atrás do rapazinho, uma senhora magra e pálida, apareceu perguntando o que desejávamos.
– Bem – começou quase gaguejando a minha avó – é que esta casa era minha quando viajei para a roça, meses atrás.
– A senhora é dona Maria?
– Sim, sou eu mesma.
– É que a dona Josefa nos alugou esta casa e foi morar numa outra lá na Rua Fortunato Bandeira, bem próximo das Quatro Bocas. Ela disse que se viessem até aqui antes que pudesse avisá-los que ficassem calmos. Ela está esperando vocês para morarem lá na mesma casa que ela alugou. Vou buscar o endereço.
Acostumada a reveses, vovó tomou-me pelo braço e sem altercação alguma foi tomando a direção da Fortunato Bandeira. Eram vinte horas quando lá chegamos. Tia Josefa pareceu-me muito feliz em nos ver e isso arrefeceu um pouco toda a angústia que parecia não arredar de nossos corações. Aproveitando a sobra do jantar, fez um mexido que, talvez pela fome, pareceu-me a melhor comida do mundo. Meia hora depois eu já dormia profundamente. Quando acordei, o almoço já estava servido e foi difícil convencer-me de que havia dormido tanto. Vovó já não estava em casa|: saíra para procurar roupa para lavar. Eu sempre a via naquela sofreguidão, mas somente agora entendia melhor os motivos daquele sufoco. Somente agora, também, começava a perceber quanto custavam as roupas e os sapatos que sempre me deixavam apresentável.
Passei a dar mais valor ao pacto de que nossas vidas eram dependentes e que jamais viveríamos um sem o outro. Não sei se minha avó era criança, ou eu um velho. O certo é que a gente se entendia, amava-se e não concebia a possibilidade de vivermos sozinhos. Por isso um dia fizemos um pacto: se por qualquer motivo a morte tentasse nos separar, nos uniríamos pelo suicídio. Para mim foi uma medida fácil de tomar, porque, de fato, entendia que minha vida não teria sentido sem a velhinha mais doce e carinhosa dentre as mulheres.
Não foram poucas as vezes que me surpreendi conjeturando a separação. Quando isso acontecia os meus olhos se enchiam de lágrimas, pois até as suposições feriam profundamente o meu coração de criança. Todas as vezes que ela saía, de hora em hora em corria até a calçada para olhar se estava retornando ou se, por desgraça, alguém vinha correndo avisar que ela havia morrido. Era uma estranha e inexplicável obsessão.
Foi naquele mesmo dia que percebi que a vida e o mundo não paravam, que as coisas iam mudando e que teria que me adaptar, ou então eles me engoliriam. Minha querida década de 70 parecia não mais existir; meus anos de criança, também. Plantão de Polícia, Carga Pesada, Ciranda-Cirandinha, Planeta dos Homens… Meus Deus!, como o tempo estava passando depressa! E eu que havia nascido na esperança de um amanhã, continuava sem qualquer missão e sem os meios para conseguir. Aquele feto jogado no necrotério do Hospital São Vicente Férrer, naquela manhã de dezembro de 1969, não podia ter “ressuscitado” por acaso. Teria de haver um motivo, uma recomendação, um plano nos fastos do Eterno para tal milagre. Mas o amanhã parecia longo: nunca chegava.
15
Na Rua Ceará, não muito longe de nossa casa, havia uma igreja protestante chamada Assembleia de Deus. Ligada à igreja, a casa em que moravam o pastor e sua família. Ele tinha quatro filhas: Débora, Rúbia, Zoraide e Telma, a mais velha. A Rúbia era loura, pele bem clara, olhos azuis, corpo delineado…. Apaixonei-me à primeira vista. Mas diante de minha timidez, ela tomou a iniciativa, convidando-me a encontrá-la em sua própria casa. Marcou a hora e tudo. Fui, mas chegando lá notei que a Débora, uma de suas irmãs, encontrava-se com ela. Imaginando que me houvesse chamado para “fazer amor”, quando vi a irmã passei disfarçadamente ao largo. Não precisou mais que isso para a Rúbia odiar-me o resto da vida. Começou a não me notar, dando-me um desprezo que mais me fez, daí para frente, desejá-la com loucura. Passava noites em claro, cheio de fantasias e devaneios. Isso foi tomando tanto meu tempo que um dia resolvi colocar tudo em pratos limpos.
No Hospital São Vicente Férrer estava internada uma de suas irmãs, a Débora, e a Rúbia ia sempre levar roupas ou alimentos para ela. Fiquei esperando a melhor ocasião. Um dia vi quando saiu. Segui-a, esperando sempre pela melhor oportunidade para abordá-la. Quando ia curvar na Coronel Manoel Bandeira, interceptei-a tentando explicar-me:
– Rúbia, naquele dia não parei porque vi sua irmã na porta e não sabia se se importava com isso. Se soubesse teria…
Apenas se desviando de mim ela continuou, nem me olhando no rosto. Quis ainda argumentar, mas começou a correr e entrou no Hospital. Aquilo me doeu fundo na alma e hoje, apesar de mais crescido, fico imaginado como a Rúbia, ainda tão criança, era dona de uma personalidade tão forte. Talvez por causa disso, sempre me lembro dela. Para ser sincero, acho que é porque o meu orgulho foi ferido, ou então porque a vida quis ensinar-me que nem sempre se tem uma segunda oportunidade.
16
Minha avó, minha mãe, minha santa, minha deusa. Seu rosto sulcado, suas rugas, seu corpo maltratado. Suas mãos calejadas, seus cabelos grisalhos, seus pés casquentos, seus dentes pela metade. A senhora é a mulher mais bonita do universo: é meu tudo.
Não foi por menos que um dia pactuei com a senhora: jamais ficaríamos distantes um do outro. Aqui, sempre pelas palhoças, pelo sofrimento e até pela fome; do outro lado, pelos lugares que os mistérios nos reservarem.
A senhora é mais madura, é mais sábia: talvez até estivesse brincando quando acertou comigo que jamais nos separaríamos. Mas eu não, mãe, nunca tirei do meu coração a sinceridade da promessa caso a senhora morra primeiro. E assim, quando começou a passar mal e vi tia Josefa colocá-la num carro e rumar para o hospital, só a lembrança do pacto penetrou em minha alma. Primeiro me tranquei no quarto e rezei, e chorei, e fiquei sem comer para que Nossa Senhora não permitisse o pior. Depois cobrei de Deus o motivo de ter-me ressuscitado para agora manchar minhas mãos de sangue.
Muita coisa eu teria de fazer, estava quase seguro disso, mas quando, como?
À noite escutei um borburinho lá fora na rua. Corri até à janela e vi um carro parado com muita gente ao redor. Apesar da escuridão, meu coração logo percebeu que ali estava alguém morto. Quase perdi a respiração. Não conseguia imaginar outra pessoa, senão a minha avó. As lágrimas começaram a descer de meus olhos e sei que jamais se passara comigo o que se passou naquela noite. Como que levado por estranhas mãos, saí sozinho pela casa. Ao passar pela cozinha vi a faca que a vovó usava para cortar as coisas e fazer o almoço. Tomei-a com as mãos trêmulas e entrei no quarto. Tia Josefa, as crianças, todos, enfim, haviam corrido para ver quem havia morrido. Sentei-me na cama, abri a camisa e encostei a ponta da faca no peito. Depois, segurei o cabo com as duas mãos e comecei a chorar convulsivamente. Num dos impulsos a ponta da faca penetrou e o sangue começou a escorrer. Pressionei mais a faca que esbarrou num osso qualquer que protege o coração. Aí começou a doer muito e eu não sabia o que fazer.
A lei maior era minha palavra: não podia recuar. Havia prometido à minha avó que não a deixaria sozinha na misteriosa caminhada e estava certo de que me esperava para partir. Corri novamente à cozinha e vi um vidro de Pinho Sol. Tia Josefa havia comprado o frasco ainda pela manhã. Lembrei de que no Jornal Nacional havia sido noticiada a morte de uma criança, envenenada com desinfetante. Se ela morreu, também posso fazê-lo – imaginei.
Peguei o vidro, abri-o e o bebi todo, quase sem respirar. Apenas os soluços impediram-me de tomá-lo com água. O líquido descia-me pela garganta queimando como brasa. Joguei o vidro no chão e corri para o quarto onde eu dormia com minha avó. Abracei-me com a rede e fiquei esperando que a morte viesse. Senti vontade de vomitar e uma dor intensa na cabeça que aumentava a cada segundo que passava. Minhas vistas enturvaram e as forças já não davam para eu ficar agarrado à rede de minha avó. Senti que as mãos afrouxavam e que minha cabeça batia contra o chão. Quase na mesma hora vi a mim mesmo deitado e a minha avó ao lado. Corri para ela:
– Ô, vó!, pra onde vamos agora?
Tomando-me no colo, devolveu-me à rede. Ela era carinhosa comigo – sempre foi – mas agora me parecia ainda mais. Não sentia mais aquelas mãos calejadas. Estavam macias, aveludadas, mesmo quando esfregavam meus lábios. Por mais que eu quisesse estreitá-la, percebia uma agradável fraqueza que me impedia. Ela sorria, sorria sempre, dizendo para eu não ficar com medo. Nem eu mesmo sabia se estava assustado ou não, porque sempre fora dependente, porque sempre acreditei que enquanto vovó estivesse ao meu lado nada de ruim podia acontecer-me.
Só no outro dia, ainda sem enxergar direito (havia uma fraca neblina como se fosse um firmamento de esparsas nuvens a envolver-me), comecei a sair daquele êxtase e passar para outro estado: o do mal-estar. A primeira voz que ouvi foi a de quem nunca me abandonou:
– Filho, que fez?
– Vó?!…
– Estou aqui pertinho de você.
Ainda meio fora de mim, perguntei:
– Pra onde vamos agora, mãe?
– Ainda vamos ficar por aqui, meu filho – disse ela esfregando, agora, as mãos calejadas em minha fronte.
Percebi, naquele momento, que não havia morrido. A consciência retornava aos poucos. Perguntei surpreso:
– Vó, nós não morremos não?
– Não filho, estamos aqui. Não chegou a nossa vez. E nunca se esqueça de que vou viver muitos anos. Se disserem que morri, não acredite, mesmo que lhe mostrem o meu cadáver. A vontade de cuidar de você é mais forte que a morte, acredite.
Não conseguia ainda plenamente ordenar meu raciocínio. Sentia a impressão de haver engolido um copo de água fervente e estava muito tonto. Comecei a ver enfermeiras e médicos em volta da cama e talvez pela primeira vez acreditei que, mesmo uma criança pobre, é alguém neste mundo. Nunca acreditei que, além de minha avó, outra pessoa pudesse se preocupar comigo. Achava também que as crianças pobres eram o castigo que Deus infligia aos afortunados. Os pobres vivem precisando de tudo e de todos e isso, certamente, incomoda os ricos.
Felizmente, depois de alguns dias eu já estava bem. Por causa do que aconteceu comigo, vovó nem teve o direito de ficar doente. Logo que soube, ergueu-se da enfermaria, arrancou o soro do braço e foram agarrá-la aos tombos já saindo do hospital. Não houve ninguém que a demovesse de correr para aonde eu me encontrava. Ela sabia que era o único remédio que poderia livrar-me da morte: somente ela sabia disso.
17
Vovó e eu só tínhamos a nós como riqueza. Tínhamos uma taperazinha em Imperatriz, mas pouco lá morava porque precisava do parco auxílio do aluguel para sobreviver. Nem sei contar as vezes, os dias ou as semanas em que nossas refeições foram restritas a dois punhados de arroz com sal. Nem óleo podíamos comprar. Para dizer a verdade, eu nunca reclamava dessa situação, pois supria esta defasagem com alguma fruta surrupiada de algum quintal mal vigiado. Havia também as caixas das calçadas do mercadinho, que sempre continham algum bom naco de fruta que se podia aproveitar.
O senhor Nonato era um entre os tantos que vendiam frutas em Imperatriz. Já velho e de um coração muito grande, separava as frutas que não serviam para ser vendidas a fim de saciar a fome de muitas crianças. Eu já era tão seu amigo que nem precisava falar nada: bastava entrar e ficar encostado no balcãozinho improvisado. Um dia ele apanhou uma penca de bananas e falou:
– Guardei esta para você. Pode levar. Minha quitanda vai ficar fechada por alguns dias. Sabe, não estou me sentido bem. Até que eu volte, vai economizando estas daí.
Meus olhos brilharam. Apanhei a penca de bananas e corri para casa. Quando minha avó viu, ao invés de ficar feliz, entristeceu-se:
– Onde apanhou estas bananas, Siriano?
Era a primeira vez que me chamava pelo nome e percebi que havia alguma coisa errada, muito errada. Disse que o senhor Nonato é quem havia me dado. Ela olhou fundo nos meus olhos, mas não conseguiu perceber, dessa vez, se eles estavam sendo sinceros ou não. Por causa do tempo que cria a malícia nas crianças, já se mostrava insegura quanto à minha sinceridade. Apesar da afirmativa, tomou-me pelo braço e levou-me ao senhor Nonato.
– Foi eu quem deu sim, dona Maria. Fiz de coração. Ele seria incapaz de roubá-las. É um bom menino, a senhora está de parabéns.
Vi a felicidade estampar-se nos rosto de minha avó. Ela me estreitou nos braços e quase chorei de tanta alegria. Aprendia, aos poucos, um mistério que tanta gente, apesar de nascer e crescer, acaba morrendo sem notar: Deus não precisa mais que algumas bananas para fazer a felicidade de alguém.
18
No final do ano, o Jacinto comprou um sítio perto de João Lisboa: a cidade vizinha mais próxima de Imperatriz. Apenas 12 quilômetros. Como primeira iniciativa ele esteve com a vovó e pediu a ela para que tomasse conta do sítio para ele. Vovó vivia assim: onde houvesse um jeito de não passar tanta necessidade, lá estava ela. O importante era sobreviver até o dia em que Deus resolvesse abreviar-lhe a penúria. Fomos pra lá.
O sítio era considerado um dos três maiores da cercania da cidade. Três pés de manguitas, quatro de mangas de mesa, uma porção de bananeiras e, mais abaixo, descendo-se por uma ladeira, um jenipapeiro. Nunca consegui entender porque tendo apenas um pé de jenipapo, o sítio levava seu nome. Acho que era porque o que conta neste mundo não é a quantidade, mas sim, a qualidade. O jenipapeiro parecia fazer dos frutos, suas folhas. Cheios de bolinhas beges ele me lembrava uma árvore de natal. Dei adeus à fome por muito tempo, pois mal o estômago roncava eu descia a ladeira. Em poucos minutos resolvia o meu problema. Todos eram gostosos, mas sempre preferia os menores. Esfregava as mãos neles, depois passava-os na roupa e metia os dentes com vontade. Hoje sinto falta do prazer de apanhar uma fruta no chão e meter a boca sem importar-me com alguém que fosse me recriminar por falta de higiene. Hoje, quando os meios de comunicação ditam tantas regras para se ter saúde e evitar as doenças, sinto-me um sobrevivente mais forte do que os privilegiados de um naufrágio, porque nunca obedeci qualquer regra e ainda estou vivo.
Um dia, quando saboreava um desses frutos, a vovó me disse que o senhor Nonato havia falecido. Aquilo me doeu fundo. Para ser sincero, sempre imaginava que somente as pessoas más sofriam grandes dores. O certo é que nunca mais consegui sentir o mesmo prazer ao abocanhar uma fruta. Ainda hoje, quando passo em frente a qualquer banca, lembro a alma bonita do senhor Nonato. Se no céu houver frutas, certamente ele as estará vendendo – ou dando – o que lhe era tão comum. Acho que também ele viveu uma infância muito difícil.
Cedo percebi que há duas reações nas pessoas que passam algum tipo de necessidade quando criança: umas se trancam, ficam sovinas, miseráveis…, enquanto outras exageram pelo outro lado, tornando-se excessivamente compreensivas quanto as necessidades de seus semelhantes. Poucas são as que dosam com equidade as suas vidas, depois de uma infância atribulada.
Ali no Jenipapo eu tomei consciência plena do que é viver no interior. Durante a semana, os mais velhos iam para suas roças – a meninada, pela manhã ia também, principalmente para ajudar na plantação; à tarde, a escola do professor Valdir: um rapaz humilde que possuía apenas o curso ginasial, mas sabia muito bem passar às crianças, tudo o que aprendera.
Nos fins de semana – mais propriamente aos sábados – havia festa no barracão do Raimundo. Sanfoneiros amanheciam o dia tocando carimbós, baiões, siriás e outros ritmos que hoje sei, poderiam todos ser reunidos em animados forrós. Aos domingos, impreterivelmente, a missa, lá na igrejinha construída com folhas de babaçu e paredes de estuque com barro batido. O padre vinha de João Lisboa ainda no sábado à noite e dormia numa das casas de alguém da redondeza. Eu vivia perguntando à vovó pelo dia em que ele dormiria com a gente, pois era certo termos uma galinha na panela. Vovó nunca se entusiasmava com a visita. Hoje sei quanto lhe custava preparar um almoço cujo cardápio extrapolasse o eterno arroz com sal, agora tendo como sobremesa, jenipapos, bananas e, no tempo, muita manga.
Os que podiam, depois da missa dirigiam-se ao único açougue do povoado. Ficava quase no meio da rua. Havia uns paus com ganchos e o Altino Açougueiro pendurava ali toda a carne. A pessoa encostava, estudava o bolso, somava e somava, levando o que os parcos recursos permitiam. O Altino metia uma faca muito amolada e separava os pedacinhos, os quais dificilmente passavam de um quilo. Muitas vezes a carne sobrava e era amontoada num plástico jogado não chão, porque os necessitados compravam primeiro a cabeça, depois os mocotós e os ossos. A carne mais cara ia ficando sempre para o fim. Quanto a tarde caía e mais ninguém se apresentava para comprar, ele salgava tudo e pendurava na cerca para secar. Durante a semana ele ia vendendo, então, a carne-de-sol.
À tarde, o jogo de futebol. Era o que mais eu esperava. Enturmava-me com os meninos e ia para lá. Toda vez que a bola saía, ou aos intervalos, disputávamos tocar o pé naquela coisa maravilhosa: eu achava o máximo.
No começo de 1981 construíram um grupo escolar com a ajuda do deputado Lobão. Ele veio inaugurá-la e já no outro dia eu estava ali matriculado. Na medida do possível a vovó procurava o melhor para mim. Sem que pudesse entender, as coisas aconteciam à revelia de meus desejos. Mal me acostumava com uma coisa, outra diferente era exigida. Assim, agora que havia me reunido com os meninos do grupo escolar, o Jacinto resolveu trocar o sítio por dezesseis alqueires de terras lá perto da Mucuíba. O dinheiro não dava e diante disso pediu permissão para vender a casa de minha avó a fim de completar o pagamento, prometendo ressarci-la logo que pudesse. Vovó, com o coração maior do mundo, autorizou a venda de tudo o que possuía. Ele o fez. Ficamos na mais extrema miséria.
Em 1982 fomos para Mucuíba. Achei o lugar feio. Não havia ninguém e todo o pomar se resumia numa plantação sofrida de laranjeiras, uma jaqueira, um abacateiro e três pés de manga-de-mesa. O vizinho da frente possuía uns pés de manga de que eu mais gostava: mangas-rosa.
Tio Jacinto nos enviou para lá sem avisar que a casa estava ocupada. Por isso tivemos que ficar por mais de duas semanas num chiqueiro abandonado. Não havia mais porcos dentro, mas o fedor era ainda insuportável. Sem mais reclamar, minha avó estendeu nossas redes, passou uma vassoura de muxinga por entre os vãos das achas, improvisou um fogão com restos de tijolos e pedras e ficou aguardando que o antigo dono desocupasse a casa.
Quando me vinha a solidão eu corria pra minha avó como se fosse um porquinho caititu, todo dependente. Então ela me dizia coisas bonitas, coisas das quais eu nunca duvidava. A solidão de uma criança não é como a solidão dos adultos, porque ainda não está moldada na malícia, na suposição, no egoísmo ou na inveja. Eu só queria algumas crianças para correr pelos campos, jogar bola, tomar banho no igarapé… E vovó então dizia:
– Não tenha pressa, filho, um dia você terá amigos.
Não dizia quem nem como, mas eu acreditava. Em tudo o que me dizia eu acreditava. Duas semanas depois, a família mudou-se e nós ocupamos o lugar. Deus é muito sábio em transformar coisas insignificantes para uns em tesouros para outros. Quando entrei naquela casa, depois de haver sofrido por vários dias os vergastes do mau-cheiro, das muriçocas e do frio, achei-a uma linda mansão. Cheguei a respirar fundo de felicidade. Como se fosse um tufão, vovó limpou-a num instante e nos instalamos como dois reis. Havia lugar para tudo e ainda sobrava espaço. Eu já estava com doze anos, mas devido aos lugares em que vivia, eu ainda gostava muito de caçar de estilingue. Bem na varanda pendurei minha sacola de pelotas e adaptei uma tábua em que pudesse arredondar as bolotas de barro.
Todas as vezes em que eu ia tocar os bezerros para o curral – havia lá oito vacas, um boi, um cavalo e uma égua com seu cavalinho – selava o cavalinho e me sentia um verdadeiro mocinho de faroeste. Aos poucos eu ia me acostumando e gostando daquele lugar, que a princípio me deixara tão triste. Havia, não muito longe de nossa casa, um desfiladeiro. Era um lugar fantástico, principalmente quando a tarde caía. Montava no meu cavalinho e ia para lá. No caminho, peloteava as rolinhas, os bem-te-vis e tudo quanto encontrasse. Depois amarrava minha montaria no tronco de uma árvore e seguia a pé. Ia subindo por uma espécie de escada natural até atingir o topo de uma pedra de onde descortinava vasto panorama. O vale parecia um enorme campo de futebol e lá longe, eu acreditava, o céu tocava a terra.
Ali me chegaram as primeiras preocupações quando ao nosso destino. A imensidão me causava nostalgia, um aperto por dentro. Comecei a perceber o quanto significava a dúvida. Foi de cima daquela pedra, olhando a imensidão que comecei a notar minha pequenez e saber que minha fé era um nada. Acho que foi ali também que fiz, pela primeira vez, a pergunta que um dia toda criança acabar por fazer: “Deus, quem você é e por que fez o mundo e as pessoas deste jeito?”
19
Vovó quando em vez ralhava comigo porque eu chegava tarde demais com os bezerros. Sempre mentia dizendo que o Pintado, filho da Mansinha, não puxara à mãe e que sempre debandava dos demais, dando-me muito trabalho. Sabia que vovó não acreditava no que eu estava dizendo, mas o fingimento dela me satisfazia. Meio envergonhado ia saindo. Ela balançava a cabeça, tentava esconder o riso, mesmo porque eu não atrasava por estar fazendo coisas erradas, e ela tinha certeza disso. Na verdade, o que se passava com ela era pura preocupação. Temia que algo de ruim pudesse acontecer-me.
Uma vez por mês tia Maria ou Jacinto nos visitava, trazendo provimentos para o mês seguinte: um saco de arroz, meio de farinha, cinco quilos de sal, dez quilos de açúcar, três barras de sabão, alguns pacotes de café, fósforos e outras poucas coisas de que agora não me lembro. Isto, somando-se às frutas, ao leite e a pequenos peixes que às vezes pescávamos, dava para não passarmos necessidades. Nunca minha avó reclamava da vida, na sábia dedução de que tudo o que transcende ao necessário só nos serve para criar problemas. Na verdade, tínhamos apenas o mínimo, mas mesmo assim era melhor do que possuir muitas fazendas, muitas riquezas e vivermos preocupados com ladrões, gerentes desonestos ou mesmo pedintes incansáveis. Talvez por não estar afetado ainda pelo mal das vaidades, também achava que viver ali sozinho, isolado do mundo, mas tendo o que comer, estivesse bom.
Quando chegava a época das frutas, aparecia lá também a tia Josefa e o tio Osmar. Eles levavam alguns amigos e coisas diferentes para serem comidas. Até refrigerantes no gelo às vezes tínhamos. Quando isso acontecia, era sempre um dia de festa.
Como fosse começar a Copa da Espanha, um dia a tia Maria nos enviou um rádio a pilha. Puxa!, aquilo foi um presente maior do que um carro de luxo para muita gente. Amenizou bastante nossa solidão, já que o sítio distava três quilômetros da vila de Mucuíba e somente lá encontraríamos alguém. Antes de termos ganho o rádio, eu e minha avó, muitas noites, principalmente quando havia luar, ficávamos abraçados no terreiro, ouvindo o roçagar dos morcegos ou o grito lúgubre dos urutaus. Quando em vez conversávamos sobre alguma coisa, ou rezávamos alguma prece, sempre tirada de nossos corações, pois do catecismo, somente o Pai-Nosso e a Ave-Maria, sabíamos.
Um dia chegou-nos um bilhete no qual o Jacinto pedia a minha avó que contratasse dois peões para roçar três alqueires de juquira. Alguns dias após chegou lá em casa o velho Luís. Trazia consigo um rapaz esperto e muito malicioso. Chamava-se Nonato. Devia ter seus dezessete ou dezoito anos, totalmente vividos na rua, junto a muitos moleques que foram competentes em passar-lhe muita coisa errada. Nos cacaréus, revistas pornográficas. Em menos de uma semana eu já vivia marcando as horas para apanhá-las e levá-las para uma das moitas de bananeiras que havia não muito longe da casa. Lá, onde imaginava fugir até da vigilância de Deus, enchia-me de fantasias.
Nonato às vezes ia comigo e logo me fez perder a vergonha de expor-me nu. Não demorou também para que fôssemos para Mucuíba com a finalidade escusa de nos satisfazermos com as parcas prostitutas do lugar. Ele foi montado na égua e eu no meu cavalinho. Era noite de lua cheia, mas as nuvens no céu tornavam o caminho sombrio. Os animais, no entanto, parecem não ter problemas com a escuridão. Chegamos à Mucuíba ali pelas 20 horas. No interior é bem diferente da cidade grande, pois normalmente a noite é usada para dormir. Logo o sol se põe e quase todos se recolhem.
Na primeira casinha a que o Nonato me levou, havia mulheres. Chamando-me de lado, arguiu-me:
– Gostou de algumas delas?
– De nenhuma – respondi à pressa.
– Aqui não se pode ser muito existente – asseverou-me.
– Então prefiro voltar sem nada – defendi-me.
Sem forçar, o Nonato disse que conhecia outra casa e fomos para lá. Encostada no portal, logo vi uma garota de pouca idade, muito bonita, tão nova e bonita que não acreditei que fosse da vida.
– Pode ir que é – assegurou-me o companheiro.
Encostei e a convidei a sentar-se numa das cadeiras que havia logo para dentro da sala. Ela aceitou. Fiquei excitado. Quando já me preparava para investir, ela levantou a cabeça e percebi que seus olhos estavam cheios de lágrimas. Como que abatido num só golpe, todas as minhas emoções obscenas desfaleceram. Eu – penso – nunca irei acostumar-me com o sofrimento dos outros. A dor do meu semelhante me fere profundamente. Sempre consigo transferi-la para o meu coração. Começamos a conversar. Ela explicou:
– Sou filha de um fazendeiro muito rico. Há três meses fiquei grávida de um dos vaqueiros lá da fazenda.
– E por que não se casou com ele?
– Talvez até a gente tivesse se casado, mas tão logo meu pai soube tentou matá-lo e me expulsou de casa. Gritava que nunca mais queria me ver e que eu sumisse dali para não estragar as outras duas irmãs. Não sou vagabunda. O que fiz foi num momento de muita emoção e também de muito amor. Engravidei porque nunca soube sequer como isso acontece. Jamais meus pais me explicaram qualquer coisa a esse respeito. E por aqui, se os pais não ensinarem, ninguém ficará sabendo na rua como tudo se passa em nosso corpo. Nas cidades grandes a gente tem oportunidade de aprender muita coisa com as amigas ou com as leituras, mas na roça tudo é mistério.
– Por que não volta e explica tudo isso a seu pai?
– Já tentei várias vezes, mas ele nem me recebe. Não tenho aqui qualquer parente e os poucos que me conhecem têm medo de meu pai e não me recebem com receio de represália. Por causa disso me vi obrigada a vir aqui onde, pelo menos, posso ganhar alguma coisa para as despesas.
Por um momento fiquei imaginando se ela estava dizendo a verdade. Há bem pouco tempo eu havia lido naquelas revistas pornográficas do Nonato que as meretrizes sempre contam histórias parecidas para se dizerem santinhas e excitar seus parceiros. No entanto, ela estava dizendo a verdade. Puxei-a pelo braço, levando-a até uma pequena varanda de onde, quando em vez, a lua aparecia entre as nuvens. A menina era tão nova, tão bonita! Aproximei-me de seu rosto e a beijei na face, com o respeito que eu devotara à Loirinha. Aliás, foi por parecer-se com ela que eu comecei a sentir por ela um grande afeto. Esfreguei minha mão no seu rosto, enxuguei ou espalhei as lágrimas e disse para não se desesperar, pois minha avó havia ensinado que tudo o que acontece com a gente tem a permissão de Deus, embora, às vezes, não entendemos ou aceitemos. É que Deus nos dá, não exatamente o que queremos, mas sempre o que for melhor para nós.
Quando o Nonato saiu do quarto com a outra mulher, eu já estava pronto para partir. Sem respeito algum, ele se aproximou e disse umas palavras vulgares que, estou certo, feriram mais a mim do que à menina. Se pudesse, eu me teria casado com ela naquela mesma noite. Mesmo assim não fui além de um beijo na face. Éramos, ainda, duas, crianças.
Montamos em nossos animais e fomos nos afastando. Quando olhei para trás ela ainda estava na varanda, rosto colado na madeira de sustentação do telhado. Um raio de luar apressou-se a levar-me a Três Lagoas, onde um dia conheci a menina que mais amei na vida. Um amor de criança, porém, um grande e incomparável amor. A Loirinha tinha a capacidade de, com a sua simples lembrança, deixar meu rosto em fogo. Coisa de côncavo e convexo; de macho e fêmea…. Coisa que é inútil tentar explicar.
Já na estrada, quando estávamos a uns dois quilômetros, olhando para o relógio, o Nonato esporeou a égua e disse assustado:
Puxa, estamos atrasados!
– Atrasados para quê? – Perguntei sem entender.
– É que marquei com o Raimundo, filho do Flor, delegado de Mucuíba. Ele vai fazer um despacho e precisa de nossa companhia.
– Despacho?
– É, despacho. Não sabe o que é? É uma espécie de bruxaria em que se conclamam as forças do além para ajudar a gente a sair de algum problema aqui na terra.
– Mas quando se tem problema não é a Deus que devemos recorrer?
– É, mas tem coisa com que Deus não se envolve e então só se consegue apelando para o outro lado.
Fiquei curioso e até bati forte no cavalinho para não perder a oportunidade de saber como funcionava o tal despacho. Logo na frente, numa curva sombria, o Raimundo já esperava. Estava um pouco zangado: notei pela cara dele, embora alumiada fracamente por um luar sem presteza. Ainda antes que apeássemos, ele foi adentrando pela juquira, dizendo que nos apressássemos, pois só faltavam alguns minutos para a meia-noite. Aquilo me fez passar um calafrio pela espinha, mas não havia mais como recuar. A uns cem metros para dentro, ele parou. O lugar estava um tanto limpo, o que significava que não era aquela a primeira vez. Menos mal – imaginei.
Muito afoito ele se ajoelhou, apagou a lanterna, pediu que nós nos encostássemos a ele e ficássemos de pé, só observando o ritual. De dentro de um saco ele retirou um livro preto (depois fiquei sabendo que se tratava do Livro de São Cipriano) e o abriu numa página previamente marcada. Pela fraca luz do luar que agora alumiava um pouco mais por causa das nuvens que rareavam, vi várias figuras de caveiras com chifres, fotos diabólicas e umas frases que a fraca claridade não me permitiu ler. Ato contínuo retirou do mesmo saco uma cabeça de caveira humana e dois tocos de vela, ambos vermelhos e com mais ou menos trinta centímetros. Acendeu-os e os colocou de cada lado do livro aberto. Aí nos esclareceu:
– Fiquem em silêncio. Vou fazer um trabalho de feitiçaria porque mulher alguma se interessa por mim. Todos dizem que sou muito feio, mas um amigo me ensinou este trabalho que, segundo ele, não falha. Esta caveira é de mulher. Consegui com o coveiro lá da Mucuíba.
A noite estava fria, talvez pela madrugada que se aproximava. As nuvens já eram poucas e a lua quase alumiava inteiramente. Somente os galhos das árvores impediam que se visse claramente pelo chão. Nada de vento – silêncio constrangedor.
O Raimundo, então, erguendo a cabeça e depois a baixando até a página aberta, começou a ler em voz alta umas coisas horríveis, na qual dava a sua alma em troca dos prazeres deste mundo: mulheres e muito dinheiro. Aquilo me deu um medo tão grande que minhas pernas começaram a tremer. Para piorar a situação, uma nuvem passou fantasmagórica, baixando uma sombra de duendes. O luar cessou. Um vento que me pareceu quente começou a soprar com intensidade e acabou por apagar as velas. Ruídos estranhos invadiram, se não o local, pelo menos a minha cabeça.
Tentei agarrar-me ao Nonato, mas já era tarde porque escapou de fininho e partiu em disparada pela juquira. Sem pensar em mais nada tentei segui-lo, rasgando minha roupa e minhas carnes. Quando chegamos à estrada, os animais estavam empinando e relinchando, sendo-nos difícil montá-los.
O Raimundo veio logo atrás e ameaçou-nos de morte se contássemos o que tínhamos visto. Muito esperto, depois do susto, o Nonato disse que aquilo fora armação do Raimundo só para nos amedrontar, mas não acreditei, porque nunca tirou sarro e sempre que podia relembrava a ameaça.
Sei que as tensões e o medo podem causar fortes emoções em qualquer pessoa, mas o que me deixou confuso foi o terror que acometeu nossos animais. Não estou contando isto como verdade: estou apenas contando.
20
Findava o ano de 1982. O velho Luís e o meu companheiro de quem não guardo gratas lembranças – ensinou-me ou mostrou-me coisas que muito afetaram a pureza de meus sentimentos – terminaram a empreitada e foram embora. Como compensação, apareceram no sítio as minhas primas Jacira e Joelma, trazendo consigo mais duas amigas, a Sandra e a Solange. As duas, apesar de irmãs, eram totalmente diferentes fisicamente. Uma, a Sandra, era alta, pele clara e olhos azuis; a Solange, mais nova, era de baixa estatura, morena, cabelos negros e olhos castanho-escuros. A única coisa em que se pareciam era na educação, no olhar trigueiro e na beleza de sorrir. Amáveis e ainda muitos puras, adoravam andar a cavalo, subir nas mangueiras e passar o dia pela beira do igarapé pescando acarás ou piavas. Não havia peixes maiores por ali.
Havendo apenas elas de meninas estranhas e apenas eu de menino, toda escolha foi suprimida e logo nos apaixonamos. As duas dispensavam-me olhares furtivos e eu, por mais que tentasse escolher, não consegui me decidir. Apaixonei-me pelas duas. Era uma paixão diferente daquela que o Nonato me ensinara. Para ele tudo se resumia em sexo. Eu também gostava muito de safadezas, mas só quando percebia o momento e as pessoas pertinentes. Não sendo assim, gostava das meninas de outro jeito, sentindo prazer em estar sempre perto, em ajudar ou simplesmente correr e brincar de qualquer outra coisa. Era como se houvesse uma fera preguiçosa dentro de mim, uma fera que demorasse despertar. A única coisa que fustigava em mim esta fera era a Loirinha, de quem não podia, sequer, lembrar: minha braguilha subia.
No começo de 1983, vovó decidiu voltar para Imperatriz. Segundo ela eu devia continuar meus estudos. Era tudo o que, embora com sacrifícios quase extremos, podia deixar-me como herança.
– A senhora é minha herança, minha mãe, meu tudo, vó.
Ela passava a mão em minha cabeça e olhava para o céu. Acho que conversava com os anjos. Sempre que fazia isso me sentia o menino ou o rapaz – já não sabia precisar – mais seguro entre os viventes.
– A senhora consegue conversar com Deus, vó?
Ela sorria:
– Só não conversa com Ele quem não quer, filho. Ele está juntinho da gente todos os momentos do dia e da noite.
Eu olhava para os lados, para o alto e não entendia o que ela estava dizendo. Sabia que devia existir um outro reino, pois quando o Raimundo evocou o diabo naquele livro de São Cipriano, ele apareceu. Aquilo marcou profundamente e muitas vezes reclamei com Deus por Ele não fazer o mesmo quando a gente O evocava. Quantas vezes me ajoelhei no desfiladeiro e pedi a Ele para que cuidasse de mim e da vovó, dando-nos um lar e arrumando um jeito de não vivermos tão miseravelmente. Nada parecia mudar: o amanhã nunca despertava.
Matriculei-me na Escola Governador Árcher, na Rua Coronel Manoel Bandeira, como aluno da primeira série do primeiro grau. Voltamos a morar com a tia Josefa. Eu já contava treze anos de vida. Embora ainda não soubesse definir se era já um rapaz ou se me conservava criança, resolvi ajudar na despesa da casa, procurando trabalho para ganhar algum dinheiro. Todas as pessoas a quem pedia serviço achavam-me muito criança e negava o emprego. Não sei se por imposição da hereditariedade ou pela miséria que me foi imposta durante toda a infância, sou muito raquítico e pequeno: um caboclinho esquálido, muito tímido e sem grande presença. Por isso, embora com treze anos, fui vender picolés na rua. Todas as manhãs, ainda antes que o dia amanhecesse por completo, minha avó passava as mãos calejadas no meu rosto e me despertava.
– Filho, está na hora.
Eu, embora meio dormindo, via nas feições dela uma grande pena de fazer aquilo. Por isso logo pulava de pé e depois de abraçá-la, lavar precariamente o rosto e tomar, quando tinha, um pouco de café, partia para a Sorveteria Espumel.
Lá tomava o carrinho Nº. 8 e saía pela rua gritando:
– Olha o picolé mais doce e mais saboroso da cidade!
Aqueles gritos me feriam como gumes afiados. Nem sei como som saía de minha garganta, mesmo porque, sendo criado na roça, sentia uma grande vergonha em me expor, como imaginava, ao ridículo. As pessoas, no entanto, achavam muito normal e não desconfiavam que, por detrás daquela estatura de menino, houvesse um marmanjo envergonhado.
Com o tempo fui-me acostumando. Só voltava para almoçar e mesmo assim fazia-o à pressa. Logo no primeiro mês, por causa da sinusite estimulada pela friagem constante, quase não podia mais respirar. Em contato direto com os picolés e toda friagem a doença se agravou. Passava o dia inteiro exposto, ora ao sol, ora ao frio, com a cabeça metida dentro do carrinho para retirar os picolés. Quando a noite chegava, meus miolos pareciam que iam explodir. Mesmo assim não tomava remédio de farmácia porque o dinheiro não dava. Vovó raspava uns pauzinhos de “feijão-bravo” e punha-me a cheirar. Somando-se a vontade de livrar-me daquela dor à fé que eu tinha na vovó, eu logo melhorava e conseguia dormir.
No inverno era pior. Além do frio eu vivia gripado e causava – acho que era isto – nojo aos clientes e não vendia quase nada. Quando a noite chegava eu encostava o carrinho, lavava-o e ficava sentado num canto da sorveteria esperando que o dono fizesse as contas para ver quanto eu tinha de saldo. A gente recebia trinta por cento do que vendia. Houve dias em que só recebi reclamações, porque os picolés derreteram e o dono se viu também no prejuízo.
Aos trancos e barrancos conseguimos passar também o ano de 1983.
Pelo Natal ganhei uma bolinha de borracha. Para ser sincero esperava outra coisa, mas nunca irei esquecer aquele presente. Estava embrulhado num papel bonito e tinha um lacinho de seda amarela por cima. Eu não queria nem desembrulhar. Vovó animou-me:
– Vamos, desembrulhe, é para você.
Então, muito sem jeito, descobri a bola. Era da cor de café com leite e maior que uma laranja normal. Fiquei um pouco com ela na mão sem saber o que dizer ou o que fazer. Quando ergui a cabeça vi dois riscos molhados abaixo dos olhos de minha avó e percebi o quanto ela sentia não poder me dar coisa melhor. Apanhei a bola e nunca mais me separei dela. Gostaria que ela estivesse comigo no caixão em que serei sepultado um dia. É a coisa mais preciosa que possuo na vida, depois da vovó.
21
Agora que não tínhamos mais casa, vivíamos sempre à deriva, morando onde fosse possível. Quase sempre acompanhávamos minha tia Josefa que, de qualquer forma, nos dava guarida. Fomos parar num casebre lá na Rua Coronel Manoel Bandeira. Era uma casa dividida e a parte que tocou para minha tia e sua família, minha avó e eu, constava de uma sala, dois quartos e uma cozinha. Vovó e eu dormíamos na sala, ficando os dois quartos para serem divididos com a tia Josefa, o Osmar e seus filhos. O banheiro era um quadrado de tábuas bem no meio do quintal, debaixo de um abacateiro.
A família que dividia a casa com a gente possuía uma filha, a Luísa. Era alta, loira… acho que tinha uns dezoito ou dezenove anos. Morria de vontade de vê-la nua. Primeiramente procurei todos os ângulos do quintal tentando conseguir uma fresta que permitisse visualizá-la; depois, notando que de longe é impossível ver um objeto grande por meio de uma brecha pequena, apelei para a parede que dividia as duas casas. Era de alvenaria, mas mesmo assim não desisti. Apanhei um martelo, um prego grande e comecei a fazer um furo porque pretendia, por meio dele, enxergar a Luísa quando estivesse trocando de roupa. Fui obrigado a desistir porque a parede era muito grossa e por duas vezes o tio Osmar observou o sinal:
– Que diabo está acontecendo aqui? Estão querendo derrubar a casa?
Abandonei a ideia um tanto frustrado. Mesmo naqueles dias apareceu, vindo do interior, uma guria muito pobre à procura, não de emprego, mas de um lugar para ficar. Não tínhamos nada, mas mesmo assim a tia Josefa a empregou. Aparecida era seu nome. Vinha de Goiás, era quase de minha altura, tinha a pele clara, os cabelos escuros e cortados bem curtos. Era tímida como eu e possuía os olhos mais verdes que já vi. Fez-me esquecer o desejo de ver a Luísa nua, transferindo para ela minha obsessão. Muitas vezes quis namorá-la, mas minha timidez impediu. Por sua vez, também ela me olhava envergonhada e não dizia nada.
Como confessaria mais tarde, queria namorar comigo, mas não encontrava coragem para se declarar. Assim, olhos bem abertos por longas noites, vivemos sonhando fantasias como dois perfeitos idiotas. São interessantes a vida e as coisas que nela acontecem: lá de seu cantinho ela me desejava; do meu, eu a queria e embora não houvesse ninguém impedindo, nunca nos tocamos.
Parecem ser próprias dos tímidos certas taras não lá muito recomendáveis. Como não encontrasse coragem de dizer que desejava vê-la despida, tentava conseguir isso sem que percebesse. Comecei a inventar meios para flagrá-la nua. Quando saía do banheiro enrolada numa toalha, eu corria para debaixo da cama e ficava esperando. Ela vinha, desenrolava a toalha e ficava nua, mas eu só via do joelho pra baixo. Isso me dava uma angústia ainda maior. Dias depois me escondi atrás da porta do armário. Ela veio e despiu-se, ficando por longo tempo para lá e para cá, como se tivesse me premiando pela persistência ou atrevimento, não saberia dizer.
Ela, nua, ainda era mais bonita. Toda certinha, muito menina ainda, os seios pequenos e pontiagudos. Boquiaberto, engolindo saliva grossa, senti o coração pulsar em minha garganta. Houve um momento em que ela veio para o meu lado e fez menção de fechar a porta. Quase desmaiei, pois atrás daquela porta estava eu. Até o que havia de mais excitado em mim não vingou. Para minha sorte ele deu uma volta, apanhou o vestido e voltou.
Como houvesse dado certo, durante meses fiz isso e nunca, confesso, parei um minuto para imaginar que ela soubesse de tudo. Só anos depois, num encontro casual no Calçadão, já com um filho no colo, ela me disse que sempre me via ali no quarto.
– Mas! – Tentei buscar explicação.
Ela sorriu e, agora, verdadeiramente me tratando como uma criança, falou:
– Nós não merecíamos senão passar vontade. O que mais se reserva aos tímidos idiotas?
Quando dobrou a esquina, corei. O pior de tudo é que eu perdia sempre as oportunidades e sei que elas irão custar-me bons séculos de purgatório, mesmo sem tê-las utilizado.
22
Apesar da timidez já era nítida em mim a malícia. A pureza que sempre morara em meus olhos, aos poucos se esvaía. Minha avó, sempre protetora e dócil, agora me surpreendia quando avalizava as insinuações de meus tios que viviam me acusando de ganhar pouco e de gastar o pouco em coisas inúteis.
Sentindo aquela transição terrível comecei a fazer a cabeça de minha avó, no intuito de que ela pressionasse o tio Jacinto a pagar a casa que havia vendido para adquirir aquele sítio lá na Mucuíba. Havia em mim a esperança de reconquistar o carinho de minha avó, que aos poucos esmaecia. No entanto o tio Jacinto só ficava na promessa.
O tempo foi passando. A vida, embora sem pressa, ia me mostrando o outro lado da moeda. Quantas vezes, em vão, eu esperava as mãos calejadas da vovó em minha cabeça que ardia, mas ela parecia alheia a meus problemas, talvez decepcionada com a vida e cansada de mim. Comecei a procurar emprego como louco. Não podia decepcionar minha avó, minha mãe, meu tudo. Apeguei-me a Deus pedindo-lhe socorro, rezando por um emprego melhor. Precisava ganhar mais, ajudar nas despesas, ser útil.
Um dia, já no meio do ano, um crioulo alto interceptou-me na rua e depois de comprar-me um picolé, perguntou-me se eu não queria trabalhar com ele. Disse-lhe que não podia porque estudava à tarde e os estudos eram muito importantes para mim.
– Não tem problema, você trabalha a parte da manhã. Pago-lhe dez cruzeiros por semana e…
– Eu aceito – interferi.
Afinal, dez cruzeiros era mais que o dobro do que eu ganhava vendendo picolés o dia todo.
A Oficina do Negão, como era conhecida, funcionava na Rua Ceará, bem em frente à antiga loja das Redes Mossoró, onde é hoje uma loja de discos. Lá cheguei no outro dia, bem cedo. Encontrei mais cinco crianças de minha idade, todas sempre muito atarefadas. Havia muitos carros na oficina. Em poucos dias fiquei sabendo que o Negão era um homem esquisito, que não permitia que ninguém entrasse em seu quarto e que, dificilmente pagava os seus empregados. Depois de trabalhar um mês sem receber nada, juntamente com os outros cinco funcionários, resolvi pôr tudo em pratos limpos. Falei ao Negão que queríamos receber e ele marcou para o sábado seguinte, às 19 horas. Aguardamos mais uma semana, ao fim da qual ficamos esperando o pagamento. As horas se passaram e nada de o Negão aparecer. Durante três dias ninguém o viu. A mulher dele, desesperada, pediu a nossa ajuda a fim de localizá-lo em alguma parte. Saímos pelos hospitais, delegacias…, ninguém informava nada. À noite, quando retornamos de nossas buscas o encontramos na oficina. Achava-se completamente bêbado e nada pudemos resolver. No outro dia fui falar com ele a fim de receber os meus quarenta cruzeiros que estavam atrasados.
O Ribamar era um negão alto, de barba espessa e muito mal-encarado. Mesmo assim, desesperado, apanhei uma chave inglesa que estava a meu alcance e parti para o lado dele dizendo que receberia de qualquer maneira. Não sei a razão, mas ele se intimidou e, acalmando-me, chamou-me para dentro de seu quarto. Era a primeira vez que alguém entrava ali, apesar daquele recinto ser separado por apenas folhas de papelão. Quando adentrei, fiquei estupefato. Havia ali centenas de rádios, televisores e mais uma porção de objetos bonitos e sofisticados que nem hoje sei para que serviam. Disse-me que havia feito umas compras meio grandes e que por uns dias iria estar apertado. Deu-me três cruzeiros prometendo o restante para semana seguinte.
Deixei o emprego e fui embora. No dia marcado voltei para receber o meu saldo, mas encontrei a oficina fechada e a notícia de que o Negão era contrabandista, ladrão… e que havia sido descoberto pela polícia e fugido a tempo com a mulher, Deus sabe lá para aonde. Voltei arrasado. A primeira coisa que me ocorreu foi que mesmo isso não seria mais argumento para assegurar à minha avó e aos meus tios que não eu havia gastado o dinheiro em futilidade pela rua. E, de fato, não aceitaram minhas explicações.
À noite, alegando que a casa era muito pequena, expulsaram-me de lá e então fui morar na casa da tia Maria de Jesus. Transferi-me do Colégio Governador Árcher para a Escola Estado de Goiás. No começo do ano consegui um emprego de vinte cruzeiros por semana, na Gráfica Maia. Eu entrava às 7h e saía às 18h30min já direto para a escola, sem tomar banho ou comer qualquer coisa. O estômago doía, a sensação de mal-estar não me deixava. Tornava-se muito difícil assimilar qualquer coisa naquelas circunstâncias. Além do mais minha avó não me saía da cabeça. Eu era apaixonado por ela. Acho que poucas pessoas já gostaram de alguém como eu de minha querida avó. Vendo-a agora assim, indiferente aos meus problemas, doía-me fundo na alma. Nunca duvidei de que se um dia me deixasse, ficaria perdido no mundo. Era assim que me sentia.
Trabalhei na Gráfica Maia durante quatorze dias, também sem receber nada. Na terceira semana fui falar com o gerente ele me disse que se quisesse receber teria de pedir uma autorização assinada pelo Juiz de Menores. Talvez não fosse uma coisa impossível para outro rapaz, mas para mim aquilo se tornava tão vago como receber do Negão depois de seu sumiço. Cabisbaixo, talvez pela primeira vez sentindo ódio no coração, voltei para casa. Tia Maria de Jesus investiu durante:
– Bem que me disseram que você é um problema!…
– Tia…
Ela virou-me as costas e entrou no quarto. Baixei a cabeça que nunca parara de doer e comecei a chorar. “Quando, meu Deus, quando!?” – Perguntava-me sempre.
Já sem escolha ou opção, fui trabalhar de ajudante de pedreiro para o tio Jacinto, o mesmo que, talvez até sem querer, havia nos deixado sem casa e, possivelmente, criado todo aquele desacerto em minha vida.
Sempre fui raquítico, nunca gozei de muita saúde. A sinusite nunca me abandonara, legando-me uma constante dor de cabeça. Mesmo assim, passava o dia subindo e descendo escadas com pesadas latas de massa às costas, tijolos e tudo que se fazia necessário para dar conta de dois pedreiros. Um dia comecei a me sentir mal e sentei-me na escada. O tio Jacinto gritou lá de cima:
– Nisto é que dá ajudar parente! Moleque, está faltando material, ande logo.
Tentei explicar, mas a voz foi sufocada por um vômito de sangue. Ele gritou seguidamente e depois desceu quase correndo, muito zangado. A intenção dele, certamente, era esmurrar-me. Encontrou-me exangue, encostado na parede, sentado nos sujos degraus. Quando viu aquilo ficou preocupado. Gritou ao outro pedreiro e me levaram à pressa para o hospital. O médico disse que um rapaz como eu não podia fazer aquele tipo de serviço e que devia repousar e procurar algum afazer que usasse apenas a cabeça. Quase entrei em desespero, pois senti que nunca seria nada. Em minha cabeça eu jamais confiara.
Em casa a tia Maria de Jesus, pretextando que eu comia demais, controlava minha alimentação. Nunca podia me servir, porque diziam que deixaria os outros sem nada. A gente almoçava um pouco de arroz com feijão e carne e só jantava duas vezes por semana. O jantar nos demais dias era substituído por um pouco de suco e metade de um pão. Embora eu pudesse comer três pães, nunca reclamei. Sabia que já era bastante ter um lugar para ficar e não morrer de fome. Ia para a escola à noite e ficava difícil raciocinar com tantos problemas.
Lá, pelo menos, aconteceu-me – como sempre acontecia – uma coisa muito agradável, a Tamires. Loirinha de olhos azuis, um sorriso lindo, um jeitinho de criança pura. Nunca precisei mais que isso para me apaixonar. Responsável e atenciosa sabia ser gentil e também resguardar-se. Era comum as mocinhas matarem aulas para namorar. A Tamires nunca saía. Em todas as aulas estava lá, sorriso alegre, bonito como a paz dos corações. Se o professor não aparecesse, ela ficava ali, conversando comigo. Eu a olhava com a mais ardente das paixões, mas não tinha coragem de lhe dizer nada sobre meus sentimentos. Especulava apenas:
– Tamires, por que não sai como fazem as outras meninas?
– Porque acho que elas estão erradas.
– E por que pensa assim?
– Agora é tempo de estudar. Acha que algumas dessas meninas se casarão por causa desses namoricos?
– Acha-se muito nova, não é isso?
– Pois é. Se eu começar a sair, certamente irei gostar. Namorar deve ser muito bom. Um pouco mais vou esquecendo as aulas e magoando minha mãe. Minha mãe!, suspirou ela. Jamais irei decepcioná-la. Ela confia em mim e estou certa de que morreria de desgosto se a desiludisse.
Às vezes ela falava e eu nem ouvia o que estava dizendo. Ficava olhando aquele rostinho angelical, o som meigo que lhe saía dos lábios. Perdia-me em devaneios. Ela me tratava bem, mas mesmo assim nunca encontrei coragem para falar-lhe dos meus sentimentos. Com isso, o ano passou e mais tarde essa esperança desvaneceu. Passamos para a sexta-série. No ano seguinte ela mudou de escola e aí, em sonhos cada vez mais esparsos, ela foi desvanecendo, diluindo, desaparecendo de meu coração.
23
Somente em 1986, quando a tia Josefa alugou uma casa maior ao lado do Hospital São Vicente Férrer e me convidou a voltar é que consegui tirar da cabeça a ideia de estar sendo desprezado. Vovó recebeu-me com um abraço e chorei de felicidade. Depois de tantos problemas, ao invés de ficar empedernido, amolecia: chorava diante de qualquer emoção. Com novo entusiasmo saí à procura de emprego e naquele mesmo dia, como se fosse bênção de Deus empreguei-me numa serralheria de crentes, lá na Bernardo Sayão, bem próximo às Quatro Bocas.
O emprego era bom e eles pagavam certinho. Em pouco tempo aprendi a pintar, cortar ferro, lixar, enfim, desempenhar todas as funções de um serralheiro. Havia duas coisas que me desagradavam: o barulho da lixadeira e as incansáveis investidas dos “irmãos” que, a qualquer preço, queriam livrar-me do inferno. Segundo eles, os católicos estavam errados e ninguém se salvaria no erro.
Cinco meses depois saí de lá, trocando a serralheria por um emprego menos duro no qual ganharia mais. Fui ser moço de recado do doutor Paulo Rodrigues Alves, um homem de muita coragem. Tinha tanta que a gente até ficava com medo de estar por perto. Era o único em Imperatriz que ousava falar pelo rádio e pela televisão que o Davi era pistoleiro e ladrão. Quando a gente ouvia isso ficava todo arrepiado, porque o Davi era acusado de mandante da maior parte dos assassinatos das redondezas. Ninguém, no entanto, tinha coragem, sequer, de comentar. Dizia-se que se ele soubesse, no outro dia os pistoleiros dele estariam por perto. O Davi se dizia o galo de Imperatriz e vivia desafiando até o Governador do Maranhão
Um dia, um amigo do doutor Paulo aconselhou-o:
– Doutor, você não tem medo de ser morto?
– É para não ser morto mesmo que falo essas coisas do Davi – replicou.
– Como assim?
– Ele sabe que se eu aparecer morto ele será o primeiro a ser preso.
Desacostumado às boas maneiras, criado que fui quase sempre no meio do mato, parecia-me mesmo com um elefante num depósito de bolinhas de natal. Por sorte uns rapazes que também ali trabalhavam foram me ensinando como lidar com tudo aquilo. Devo ter aprendido depressa, pois logo a doutora Rosália, ginecologista, esposa do doutor Paulo Rodrigues, contratou-me para trabalhar exclusivamente para ela. Os rapazes meus amigos aconselharam-me a não aceitar, avisando-me que ela nunca mantinha ninguém no emprego por mais de algumas semanas. Mesmo assim aceitei o desafio.
Já sabendo que era exigente, sempre me antecipava, fazendo tudo o que imaginava que ela estivesse querendo. Era uma correria de manhã à noite, mas, pelo menos, ela parecia satisfeita comigo. Começou a me dar almoço e isso era uma das coisas de que eu mais gostava, pois só lá encontrava a quantidade capaz de acalmar o meu estômago insaciável.
Como sempre acontecia, encontrei no hospital a recepcionista da doutora Sônia: a Teresinha. Alta, pele clara… também lembrava a Loirinha, e todas que me lembrassem dela, suscitavam em meu coração o doce passado de sonhos, o primeiro e, talvez, único amor de minha vida. Não sei por que nunca encontrei uma loira de olhos azuis que não fosse educada e me tratasse bem. Era um dó que não pudesse estar sempre ali perto dela, porque vivia atarefado pela rua, cuidando em não desagradar a dona Rosália que, como já me haviam dito, era uma pessoa difícil de a gente satisfazer.
Aquela correria o dia inteiro me deixava em frangalhos quanto a noite chegava. Mesmo assim eu ia para o colégio. Não demoraram em apelidar-me de Soneca. Vivia caindo a cabeça na menor trégua dada pelos professores. A doutora Rosália também percebeu que o trabalho a pé estava me desgastando muito e adiantou-me o dinheiro para que comprasse uma bicicleta. A vida ficou mais fácil para mim. Aos poucos parecia que o amanhã despontava.
24
Certo dia, quando dobrei a esquina de minha casa, vi em frente uma porção de gente aglomerada e um caixão exposto à curiosidade. As pernas me faltaram e um calor imenso me subiu ao rosto. Minha obsessão aflorou-se na dúvida de que pudesse ser minha avó. Não tive coragem de me aproximar. Parei a bicicleta um pouco distante e perguntei a um curioso o que havia acontecido:
– Uma amiga de dona Maria, lá do interior…
Embora não desejasse a morte a ninguém, respirei aliviado. Não era bem o que havia me dito o rapaz, mas sim um sobrinho de minha avó, que tendo sendo ferido por um projetil, não resistira.
Apesar de todos os meus esforços, quando ia completar um ano de trabalho com a dona Rosália, talvez por causa dos problemas trabalhistas, ela me demitiu. Nesse tempo já não era muito difícil conseguir trabalho. Logo me empreguei na churrascaria do Hotel Schalom e tive o primeiro e único aniversário da vida. Eu completara dezoito anos e minha avó organizou como pôde uma festinha.
Não sabia ao certo o rumo de minha vida. Muitas vezes pensava se agora, perto novamente de minha avó, ei era e a fazia feliz. Não conseguia resposta. Naquele aniversário simples, rodeado de alguns amigos e amigas, invadiu-me uma grande angústia. A vida vai passando, a gente vai envelhecendo, mudando, absorvendo a cada instante o bem e o mal e, no fim, nem sabemos explicar o que é a vida. Coisas que nunca haviam acontecido, agora começavam a aflorar em mim. Já não era fácil aceitar as coisas como antes. Por vezes, surpreendia-me arreliando com Deus por causa de tantas injustiças sociais. Isso nunca havia me ocorrido antes.
Talvez por causa dessa rebeldia, o ano de 1988 começou mal. Perdi, logo no começo, a companhia do velho Bernardo – um santo homem que só sabia dar bons conselhos. Quando o dia amanheceu encontraram-no morto em cima da cama.
As marcas da morte não pareceram afetar-lhe o semblante de paz. A beleza de vida que sempre levou parecia estampada em sua face ainda rosada.
Novamente fico desempregado e novamente volto a trabalhar numa serralheria, desta feita com o tio Osmar. A serralheria era em sociedade com um amigo e ia de mal a pior. As dívidas se acumulavam, os trabalhos não eram entregues, os donos bebiam muito e viviam numa irresponsabilidade de fazer inveja a qualquer mau-político. As coisas foram-se agravando até que um dia chegou lá na oficina um homem muito zangado, procurando pelo tio Osmar. Como não o encontrara, o homem descarregou toda a sua ira em mim.
Sacou um revólver 38, engatilhou-o, colocou-o bem no meu nariz e disse que se o serviço dele não estivesse pronto no outro dia, às 14h, faria ali dentro uma carnificina. Nunca mais – pelo menos que eu saiba – ninguém abriu aquelas portas. O homem estava, de fato, disposto a acabar com aquela irresponsabilidade – e acabou.
Sem dinheiro, sem emprego e bebendo muito, a coisa se deu conforme foi armada. O tio Osmar, sempre bêbado, abandonou a família e foi para Roraima, nunca mais retornando. Terminava ali um casamento que durara dezesseis anos.
Trabalhei uns dias na Churrascaria Gaúcha, mas vítima que fui de uma das piores calúnias de minha vida, acabei demitido. A vida pareceu piorar outra vez e de maneira dramática. Três meses depois que o tio Osmar foi embora, a tia Josefa foi acusada de ter um caso com o marido de sua melhor amiga. O rebuliço foi tão grande que tivemos que deixar a casa para que não houvesse nova separação e até mortes. Mudamos para a Rua São Paulo, na Nova Imperatriz, bem próxima à Feirinha.
Larguei meus estudos e empreguei-me como ajudante de cozinha na Rodominas, firma responsável por um trecho da Ferrovia Norte-Sul. Ali não se tinha folga de um dia sequer, fosse domingo ou feriado.
Nessas circunstâncias, o Natal chegou. Embora tivesse que repor as horas perdidas, fui ver um pouco das comemorações do nascimento de Jesus Cristo. O Natal sempre me comovia. Aquelas músicas de paz. Aquela fé na crença de que há quase dois mil anos o Filho de Deus pisou nesta Terra, deixavam-me extasiado. Acho que todas as crianças e pessoas ingênuas e humildes sentem isso.
Concomitantemente às amostragens das festas, passava o filme “Amigos para sempre”. De repente, num plantão extraordinário, noticiou-se o naufrágio do Bateau Mouche. Mais de 50 pessoas morreram. Eu que estava ali sozinho, cobiçando a sorte de tantos que podiam se divertir e comemorar o nascimento de Jesus, retrocedi em minha inveja. Embora solitário, angustiado e mesmo triste, estava vivo.
Fiquei por bom tempo olhando um ponto qualquer, cismando. Há muitos pensamentos estranhos me acompanhavam. Jesus! Onde estaria neste momento? Aqui a meu lado? Lá ao lado daquele acidente? Em todos os lugares?
Aos poucos vou percebendo que no mundo há, todos os dias e horas, uma quantidade de felicidade e lágrimas misturadas, e que alguém, de qualquer maneira, terá de consumir: não poderá ficar para o dia seguinte.
Agarrado à minha bolinha de borracha cor de café com leite, eu via o Botafogo, depois de vinte e um anos, ser campeão. Apesar de vascaíno, fiquei feliz porque aquela menina que chorava de emoção ao lado do gramado tocou-me a alma profundamente. Se eu fosse Deus faria o Botafogo ser campeão muitas vezes só para ver a felicidade daquela criança.
No meio do ano, por falta de verbas, a Rodominas para os serviços e fico desempregado mais uma vez. Para compensar, o tio Jacinto, finalmente, devolve à minha avó a casa que havia vendido. Era uma casa de tábuas que ficava lá na Rua São Pedro. Fora construída num quase despenhadeiro e estava abandonada há muito tempo. Levei duras semanas de capina para ajeitar um pouco a aparência. Enquanto eu cuidava do quintal, a vovó arrumava a casa.
Empreguei-me no Hotel Presidente. Com o dinheiro consegui colocar água encanada e voltei à paz de viver com a criatura mais querida de minha vida. Sempre com seu coração grande ela não pôde dizer não à tia Josefa e seus filhos, quando estes disseram que não sabiam mais onde morar e que esperavam que lhes fosse reservado um cantinho. Talvez por ciúmes de dividir as atenções de minha avó, comecei a me desentender com a tia Josefa e com a Márcia, sua filha. Exatamente nestes dias (parece que um coisa ruim desencadeia outra) li no jornal que haviam esfaqueado – 17 facadas – uma recepcionista de hospital. Quando vi o nome quase desmaiei: era a Teresinha, aquela moça educada, bonita, gentil… aquela moça que eu tanto amara em silêncio.
Durante muitos meses ela me acompanhou, viveu dentro de mim. Antes de dormir parecia-me vê-la sorrindo num canto do quarto, dizendo-me coisas lindas que só ela sabia dizer. Interessante é que eu não sentia medo: até desejava que aparecesse e dissesse se podia fazer alguma coisa por ela. Depois rezava e conversava com ela sobre minhas fantasias. O sono vinha lento e macio como suas doces palavras. Assim eu dormia.
Em 1990 eu ainda estava trabalhando no Hotel Presidente, só saindo de suas dependências nos momentos em que para isso era solicitado pelo seu proprietário. Raramente visitava minha casa e isso serviu de trégua à animosidade que havia se iniciado entre mim, tia Josefa e a Márcia.
Eu levantava cedo – quatro horas – e preparava o café, comprava os pães, lavava as frutas e arrumava as mesas. A Deyse me ajudava nessas tarefas. Ela não era, senão, mulher. Não possuía a cor nem os traços que minha imaginação faz do belo, mas era mulher… e das mais sutis que conheci no poder de usar os resquícios de beleza que tinha para infernizar a vida de qualquer homem. Vivia se oferecendo, insinuando e na hora H escapulia das mãos da agente como se fosse um peixe liso e bem esperto. Ainda que eu vivesse mil anos não entenderia a Deyse.
No começo, de tanto vê-la me olhando; de tanto perceber que se encostava maliciosamente em mim, roçagando seus seios hirtos e pequenos; de tanto ser excitado, criei coragem e disse-lhe que gostava dela e pretendia namorá-la. Ela disse que não. Corei envergonhado e até arrependido por ter me submetido àquela humilhação. Fora uma inútil dose de remédio à minha timidez enfrentada com supremo esforço.
Nossos quartos lá no hotel eram contíguos e então começou a acontecer o imprevisível. Certa noite ela bateu na porta e entrou enrolada numa toalha, postando-se bem junto a mim, olhando-me fixamente. Aquilo, incontinenti, mexeu comigo, pois no celibato forçado em que vivia chegava a sentir inveja dos garotos que ainda podiam visitar as cabritas do vizinho.
Quando levei a mão para tocá-la, ela se afastou. Tentei aproximar-me e saiu pela porta com um sorrisinho bem sarcástico ou safado. Voltei para casa e contentei-me com os recursos que sabiamente a natureza usa para satisfazer os tímidos e os pobres desta terra.
A coisa começou a ficar repetitiva. Todas as noites, naquele mesmo horário eu podia até deixar a porta aberta. Sabia que viria enrolada apenas na toalha. Tentava agarrá-la, mas, invariavelmente, sempre fugia. Certa vez deixei a porta encostada e escondi-me por detrás. Sem mudar o horário em nem um minuto, ela apareceu. Quando entrou eu a agarrei cercando a passagem de retorno. Na verdadeira luta que travamos consegui arrancar-lhe a toalha e ela estava completamente nua. Afoito e desengonçadamente comecei a baixar minhas calças, tempo suficiente para que ela retomasse a toalha e saísse ventando.
Aquilo se tornou uma questão, digamos, de honra. Ou eu a possuía, ou ambos seríamos expulsos daquele hotel. Comecei a perseguição, uma perseguição ferrenha e implacável. Era só ela começar as insinuações eu partia para cima dela tentando agarrá-la à força.
Ela já sabia disso e parecia deliciar-se em me deixar louco. Às vezes, embora raramente, alguém chegava de supetão obrigando-me a virar-lhe as costas, todo vermelho por causa da situação em que me encontrava. Para ser sincero, eu já nem ligava tanto. A Deyse me ajudou até certo ponto, ensinando-me a ser mais atrevido com as mulheres.
E ela continuava a visitar o meu quarto, sempre enrolada naquela maldita toalha. Vinha perfumada, cabelos molhados, lábios umedecidos. Aquilo era o diabo em forma de gente. Sabendo que eu apertava o cerco a cada dia, entreabria porta e examinava com cuidado entes de entrar. Sem desistir, bolei um plano para agarrá-la, pois sempre o tempo gasto para tirar a minha roupa era suficiente para que ela escapasse.
Dez minutos antes de sua chegada eu me despi, metendo-me debaixo das cobertas – apesar do calor. Ela veio, olhou pela fresta e entrou. Naquele horário éramos, quase sempre, os dois únicos acordados do hotel.
Fiz que estava dormindo e ela se aproximou bem. Num salto felino eu a agarrei e arranquei-lhe a toalha de cima. Ela se viu em apuros e ameaçou gritar caso eu tentasse à força. Ignorando a ameaça comecei um verdadeiro estupro. Lutamos alguns minutos rolando pelo chão até que fui jogado contra o armário, batendo com minha virilidade numa quina qualquer, ferindo-me de o sangue escorrer. Quando olhei entre minhas pernas, não sabendo a extensão do ferimento, fiquei com medo. O causador de tudo baixou a guarda num segundo e enquanto eu o enrolava num lenço, ela desapareceu. O sangue não parava porque eu havia feito uma verdadeira operação de fimose.
No outro dia eu quase não podia andar e a Deyse, sempre com seu diabólico olhar cínico, esfregava-se em mim. Chamei-a com toda calma e perguntei-lhe a razão daquele comportamento. Pela primeira vez, tomando um ar de seriedade, ela se sentou na cama, pôs a mão no meu peito e contou:
– Quando com dez anos perdi a virgindade com o meu próprio irmão. Só fiquei sabendo disso há poucos meses. Até hoje, quando pego no sono, só um terremoto para me acordar. Aos dez anos, então, o meu sono era uma espécie de morte temporária. Tornou-se comum, naquele tempo, eu acordar toda lambuzada sem nunca imaginar do que se tratava. Só depois fiquei sabendo que era coisa de homem.
Um dia minha mãe, que já vinha desconfiando sem que eu soubesse, flagrou o meu irmão pelado dentro do meu quarto e concluiu que nós andávamos com safadeza mesmo sendo irmãos. Apanhei sem acordar, pois, ela nunca acreditou que isso pudesse acontecer com alguém dormindo. Na verdade, eu acho que o meu irmão se excitava me olhando ou tocando de leve, porque ninguém irá acreditar no que estou dizendo.
Apesar de toda balbúrdia eu continuava sem saber o que haviam feito comigo ou mesmo, porque apanhara.
Aos dezesseis anos, quando voltava da escola, fui agarrada por um negão que me arrastou pra dentro do mato e com uma faca no meu pescoço fez de mim tudo o que quis. Foi a coisa mais horrível de minha vida. Cheguei em casa aos gritos. Levaram-me para um hospital. O médico examinou-me e constatou o estupro, mas assegurou que não era a primeira vez que eu havia ficado com homem. Aquela declaração foi um escândalo ainda maior, já que minha mãe me mataria se eu contasse a verdade. Por isso, sexo é uma coisa horrível que nunca irei fazer com ninguém.
– Mas – perguntei-lhe – por que vem a meu quarto todas as noites, oferecendo-se deste jeito?
– Não sou fria não, só não quero sexo.
Agarrei-a, beijei-a, rolamos na cama e levei tempo, muito tempo para acreditar que ela falava a verdade. Antes que fosse mandado embora ou enlouquecesse, pedi demissão.
Ah, Deyse, Deyse! …
25
Em junho, sempre agarrado à minha bolinha de borracha, assisti à derrota da Seleção Brasileira para a Argentina. Em mais uma copa, os maiores jogadores do mundo ficavam de fora. A frustração foi geral.
Em agosto, já no desespero, fui trabalhar como ajudante de pintor lá no Pequiá, no município de Açailândia. Era sempre eu que me apaixonava pelas meninas, mas lá, pela primeira vez, encontrei também alguém que, de fato, me amou: a Rose.
Por incrível que possa parecer não era clara e nem se parecia com a Loirinha. Morena, olhos castanhos, cabelos longos e negros, magra e de uma educação nata tamanha que suprimia em mim, ao deixar abraçar-se, o desejo de levá-la à cama. Eu gostava do jeito de ela dizer as coisas, de sua cabeça. Foi um tipo de amor platônico que não experimentara ainda. Às vezes ficava pensando se não era por causa de tanta carência que em minha vida sempre me apaixonava pelas meninas que conhecia.
Com ela eu não via a hora passar. Ficávamos juntos até que os pais dela permitiam, conversando sobre nossa infância, nossos planos, tentando descobrir o que o futuro nos reservava. Depois o pai dela começava a pigarrear, passava com a escova de dentes para o banheiro e eu já sabia que era hora de me recolher.
Foi uma pena que a pintura das casas não tenha durado mais. Terminado o serviço tivemos que retornar para Imperatriz. Na hora da despedida apertei tanto a mão da Rose que ela foi obrigada a dizer que estava machucando. Depois me fez jurar – e foi fácil – que a amava, e vendo-a com os olhos molhados, corri para o carro que me aguardava.
Em Imperatriz, mais uma surpresa: a menina que eu amava escondido havia se casado. Nunca nem a vi namorando e, de repente, estava lá, grávida, obrigada a casar às pressas. A cada instante eu ia percebendo que havia muita coisa, muita coisa mesmo a aprender na vida. A lembrança ainda viva da Rose não me deixou sofrer muito com mais esta desilusão.
Com a entrada do Collor, a recessão começou a mexer ainda mais na Economia, fazendo piorar a nossa situação. Emprego foi ficando coisa rara. Depois de duras procuras, consegui uns dias de trabalho nas Lojas Brasileiras. Seria um trabalho temporário, quando o comércio necessitava de muitos funcionários para atender a demanda do Natal. Apesar de saber que seria demitido tão logo janeiro chegasse, empenhava-me a cada minuto do dia. Reconhecendo isso o gerente fixou-me também para depois das festas. Só que ao invés de três zeladores, a loja ficou somente comigo. O serviço era muito e pesado: lavar banheiros, varrer a loja, mantê-la limpa durante o expediente, carregar o lixo….
Tudo isso era suportável. O que realmente acabou com o meu emprego foi a chegada de um subgerente de nome ou apelido Lot, não sei ao certo. Este nada tinha do irmão de Abraão, mas infelizmente também não olhou para trás quando lhe desferi meu enxofre de ódio. Não ia com minha cara e muito menos eu com a dele. É interessante como a recíproca, nesses casos, é verdadeira. Foi mais uma lição que aprendi na vida: a mútua troca de sentimentos, afetos ou simpatia. Nunca havia visto aquele homem, como tenho certeza, ele também nunca tivera notícia de minha existência. Mesmo assim a gente não se suportava. Foi como se eu houvesse esbarrado num inimigo de outra encarnação. Achei-o antipático, e ele não teve outra impressão de mim. Era mais forte e poderoso: fui demitido.
Em 1991 voltei a estudar, matriculando-me na sétima série do 1º grau da Escola Estado de Goiás. A primeira ideia que me ocorreu foi a Tamires, que, no entanto, não mais estudava ali.
Novamente sem emprego e com a recessão cada vez maior, acabei sendo alvo fácil de minha tia Josefa e de minha prima Márcia. Elas tinham todo o tempo do mundo para fazer a cabeça de minha avó. Fui-me tornando a ovelha negra da família.
26
Tia Josefa, incomodada com minha presença inútil (pois não levava mais um tostão para casa) começou a me perseguir ferrenhamente. Minha avó, quando eu buscava amparo e proteção, desviava o rosto. Parecia não ter mais coragem para fitar-me nos olhos. Perdi o direito de defesa. Tia Josefa investia:
– Você não tem vergonha mesmo, porque qualquer um que tivesse um pouquinho que fosse já teria ido embora desta casa.
Eu olhava para a vovó e ela baixava a cabeça. À noite, às vezes, Charles Chaplin estava na tela e todos riam muito. Eu saía de fininho e ia chorar em meu cubículo. Até no direito de sorrir eu me sentia usurpado. Os pensamentos se desordenavam em minha cabeça. Toda a infância me vinha à mente e eu não sabia se tinha vivido bem a parte mais bonita da vida. Quantos sonhos agora desmoronavam!
Um dia vovó esfregou as mãos calejadas na minha cabeça de adolescente e disse para que eu não me preocupasse com o futuro. Deus, ao não permitir que eu morresse, tinha planos para mim. Há vinte e um anos eu aguardava esses planos! Já não sabia se devia continuar agarrado a sonhos e clarividência ou se devia encarar a vida dentro da realidade dura e real.
Agora perdia a vovó. Não me restava mais nada, nada mesmo. Caí de joelhos:
– Meu Deus, sei que vou morrer um dia! Não sei quando, mas sei que vou. Não queria morrer pobre deste jeito, humilhado, desprezado pela minha avó. Por ela não, meu Deus! Ajude-me a retribuir-lhe a felicidade e o amparo que me deu até aqui. Por favor, Deus, por favor! Não me deixe sem ela pelo resto dos meus dias. Não nos separe nunca.
E dentro daquela dor, pela primeira vez, lembrei-me de meus pais verdadeiros. Quando amanheceu, levantei-me ainda no escuro e, enquanto a vovó botava fogo na lenha do fogão, perguntei:
– Vó, a senhora tem tido notícias de minha mãe?
Aquilo parece ter ferido fundo a vovó. Era a primeira vez em vinte e um anos que eu chamava de mamãe a mulher que me trouxera à luz. Ela que estava enfiando uma acha de lenha no fogão, cessou o movimento, pensou um pouco e virando-se para mim disse:
– Você sabe que ela foi para o Ceará, escreveu uns tempos e depois nunca mais deu notícia.
– E o papai?
Novamente confusa e sem entender, replicou:
– Por que estas perguntas agora?
Baixei a cabeça tristemente, sem nada responder. Talvez em sua sábia perspicácia, percebia que já não era a mesma comigo. Colocou a mão no meu ombro e pude novamente, ainda que por um instante, ter a felicidade de sentir o toque daquelas mãos abençoadas. Só elas impediram, durante tantos anos, que eu me lembrasse que havia vindo de um homem covarde e de uma apaixonada mulher.
…
Neste mundo há aqueles que vivem e também aqueles que apenas nascem; aqueles que choram e os que apenas derramam lágrimas. Há de tudo nesta Terra: quase de tudo. No mundo privativo dos reais sentimentos apenas duas pessoas ou seres têm acesso: o homem em si e Deus. Nós, como pretensiosos espectadores, apenas conjeturamos, deduzimos. Por isso, na fantasiosa ficção do futuro, preestabeleço para Siriano, a doce probabilidade de dias melhores. Privá-lo-á Deus, depois de tantos percalços e sofrimentos, deste pequeno sonho?
…
Ao amanhecer eu já passava por Açailândia, rumo… bem, não iria tão longe, pois a melhor muda de roupa que tinha não dera para cobrir a passagem de muitos quilômetros. Ah, meu Deus, quantos pensamentos invadiram minha alma naquele salto no escuro! Ao romper o tempo, rasgava-se a sensatez; ao mergulhar na imaginação, o doce delírio das fantasias.
27
Quem caminha, quem não para, quem evolui um metro por dia em sua caminhada, certamente irá mais longe de quem desanima. De carona, a pé, mas sempre em frente, Juazeiro do Norte se aproximava. Embora com sede, fome, cansaço, eu caminhava. A dor de haver perdido o carinho e a proteção de minha avó, era alimento e estímulo necessários para sobreviver e vencer tarefas sobre-humanas. Hoje, estou certo, meu corpo não suportaria tantos sacrifícios! Às vezes, as pernas quase dormentes, não acatavam as ordens do cérebro, ocupado que estava na dor da separação de minha avozinha. Só sabia perguntar-me: “Meus Deus por quê?”
Numa tarde de junho, não lembro bem a data, aproximei-me do sul do Ceará, na zona do Cariri. Caminhava a pé por uma estrada de chão, quando avistei uma fazenda pontilhada de flocos brancos e muita gente que parecia passear por entre as flores. Pensei estar alucinado. A noite chegava e depois dali não saberia onde passar as horas escuras e o que comer diante de tanta fome.
Vi uma vereda – pareceu-me de carroças – e por ela segui para a sede da fazenda. Um velho Jeep vinha em sentido contrário. Nem precisou que eu pedisse para que parasse. O capataz freou o carro e perguntou-me:
– Que deseja, rapaz?
A pergunta, apesar de ser esperada, desconcertou-me:
– Que flores são estas?
Ele quase achou graça, mas acostumado que estava com a vida simples de uma região castigada pela seca e percebendo tratar-se de um estranho ao lugar, condescendeu:
– Vem de onde, rapaz?
– De Imperatriz, no Maranhão.
– Que ou quem procura?
Novamente a pergunta me pegou de surpresa, pois não sabia como confessar que fugia de mim mesmo, do aparente desprezo de minha avó e que tentava, num fiapo de esperança, reencontrar minha mãe. Sempre seria a saída:
– Estou procurando serviço.
O capataz desligou o motor do Jeep, desceu, apontou a plantação e explicou:
– Estas flores que você está vendo são algodão herbáceo. Ele precisa ser colhido urgentemente. Está maduro e o inverno, que em junho costuma cessar por aqui, este ano ameaça entrar em julho. Se isso acontecer, o prejuízo será enorme. Já ouviu falar de colheita de algodão?
Baixei a cabeça envergonhado: não sabia nem que aquilo era algodão. Compreendendo, o capataz – Francisco era o seu nome – fez sinal para que eu entrasse no carro, virou o Jeep e retornou à sede da fazenda. Deixou-me encostado na roda e adentrou por uma varanda extensa, desaparecendo depois por uma porta dos fundos. Fiquei ali olhando algumas nuvens pardacentas que tentavam esconder-se da vigilância de um luar que, mais cedo que nos outros dias, aparecera. Num galpão ao lado, como se fosse uma festa, dezenas de pessoas batiam talheres, conversando, rindo, comendo… era hora do jantar. Meu estômago parecia digerir-se ante o cheiro – fiquei sabendo depois – do baião-de-dois com carne moqueada de bode.
Ali, perdido naquele fim de mundo do sertão cearense, eu não saberia explicar agora o que se passava mais em minha cabeça. Cheguei a imaginar que estava vivendo um pesadelo ou mesmo ficando louco. Não sei quanto tempo estes pensamentos transtornaram minha cabeça, pois quando ouvi o capataz chamar-me, fui sobressaltado como se alguém, maldosamente, tivesse me dado um grande susto. Deram-me um prato esmaltado, fundo e bem cheio de qualquer coisa: a penumbra só permitia o cheiro.
– Fique por aí – disse o capataz, passando-me uma rede garimpeira. Amanhã a gente termina a conversa.
Só nas últimas garfadas a carne pareceu-me passada. Mesmo assim engoli tudo. Atei a rede no galpão e tentei dormir. Passei grande parte da noite tentando organizar algum pensamento sensato. Nuvens esparsas continuavam passeando pelo céu. Uma angústia terrível tomava conta de mim. Minha avó não me saía do pensamento. Talvez ela estivesse certa, talvez estivesse sofrendo muito por ter que ensinar-me a última lição de vida. Afinal, já não era mais uma criança para viver agarrado em sua saia.
Eu rolava na rede. Sentia que precisava esquecer o passado, livrar-me daqueles pensamentos negativos e enfrentar a vida e as pessoas de dentro da realidade. Mas não dependia de mim. Eu rezava, balançava a cabeça, pensava na vida.
O país ia de mal a pior. Mesmo com um salário que não dava para comprar um tênis ou um vidro de certos remédios, não havia como trabalhar. Os políticos, a maioria, estavam envolvidos em corrupção e apenas lutando pelo poder. Não precisavam mais que isso – poder – para praticar desmandos e ser protegidos pelo maior acinte à justiça: a impunidade. O povo se defendia sonegando impostos ou apresentando seu protesto com crimes de alto requinte de violência e crueldade.
E eu ali, perdido no mundo, sem nada – agora, sem nada mesmo. Sempre que essa angústia me sobressaltava, lembrava de meu nascimento e daquilo que vovó sempre afirmava: “Siriano, não foi por acaso!”
Amanheceu. Fui para o campo com a turma. Um saco de estopas a tiracolo, roupa única do corpo, nenhuma prática. Encostei-me num menino e tentei imitá-lo. Ele era esperto e conseguia, em fração de segundos, retirar o algodão e jogar no saco. Em minha primeira tentativa tive o dedo cortado por um capulho que mais me pareceu uma gilete escondida, afiada e traiçoeira. O menino pegou uma tira de pano do bolso, enrolou-a no meu dedo e, me olhando penalizado, aconselhou:
– Vai bem devagar até se acostumar. A gente se corta mesmo, principalmente agora que o Chico quer pressa. Ele está com medo que ainda chova.
Na semana seguinte eu não podia mais fechar as mãos. Inflamadas, doloridas, todas marcadas pelas pontas aguçadas dos capulhos. Aproveitaram-me na cozinha, já que falara de minha experiência em alguns hotéis de Imperatriz. Fiz alguns amigos e comecei a perguntar sobre Juazeiro, como era, se ficava muito longe…
Era início de setembro de 1994. A colheita do algodão terminara e apesar de eu ter sido um dos últimos a chegar, permanecia ali, esperando a oportunidade e as condições de dar prosseguimento à remota possibilidade de encontrar minha mãe. Isto aconteceu na primeira quinzena de setembro. Juntei o que tinha direito e parti para Juazeiro do Norte, sem endereço, sem conhecer ninguém. Já havia me convencido que é muito difícil morrer de fome, cansaço, desilusão ou frio.
28
Fogos espocavam, gente acotovela-se. Como numa grande feira de comida, centenas de barracas serviam aluá, granja, filhós de macaxeira, mangusta, pacará com mel e tantos outros quitutes típicos capazes de desafiarem os mais exigentes paladares nordestinos. O povo, como massa fervente, ia e vinha num estranho interesse de direções.
A procissão havia apenas chegado e a Igreja de Nossa Senhora das Dores já não suportava mais uma criança sequer. Ali no meio, acotovelado, empurrado, perdido na multidão, eu vivia a mais dolorosa solidão de meus vinte e quatro anos. Cada centavo que tinha significava um momento de sobrevivência, sem a humilhação de implorar um prato de comida.
Por isso eu passava o tempo só olhando e quando não dava mais para suportar, comia um pedaço de filhó com suco de caju – o lanche mais barato da festa.
Eu não sabia aonde ir, com quem conversar, onde ficar. Por sorte, naquela primeira noite, a festa foi até o amanhecer. Com todos os vergastes de uma noite sem dormir e com o espírito totalmente desajustado, eu chegara ao lugar, em que, se fosse a vontade de Deus, minha mãe se encontraria.
Juazeiro era uma cidade grande, mais ou menos do tamanho de minha querida Imperatriz. Por muitos dias vaguei por ela. Fiquei sabendo de Crato, de José de Alencar, do padre Cícero, dos cajus-amigos, da carnaúba, da Praça do Ferreira, do vaqueiro, jangadeiro, das rendeiras…, mas de Francisca da Silva, ninguém sabia, ninguém parecia ter a mínima lembrança, nem sequer com um nome parecido.
29
Em 1995, já no segundo semestre, eu estava empregado num armazém de secos e molhados, cujo proprietário era, também, dono de uma pensão. Eu recebia, além de uma rede para dormir e a comida, apenas um terço do salário da época. Sentia-me no paraíso. Estudava à noite numa escola pública. Foi quando abriram um concurso literário entre os quase duzentos estabelecimentos de ensino de Juazeiro do Norte. O trabalho deveria ser longo. O prazo de entrega era de cinco meses. O prêmio seria um dez mensal em Português, dez salários mínimos em dinheiro, um fusca 0 km, a publicação do trabalho que conseguisse o primeiro lugar e, de lambuja, um emprego na única repetidora de TV da cidade. O rebuliço foi geral.
Dia e noite, em qualquer tempo disponível eu me encerrava no quarto escrevendo minha própria vida. Foi ali que percebi que seria muito feliz se Deus me desse a graça e a chance de ganhar a vida escrevendo e, se possível, inserido no mundo da televisão.
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Em 1996 chegaram os livros. Eu não tinha coragem de tocá-los. Não acreditava tê-lo escrito. As coisas pareciam mudar a cada instante e sempre para melhor. Empreguei-me na TV Juazeiro e já ganhava o bastante para jantar fora e não passar necessidades. Comecei a guardar toda sobra, alimentando o maior sonho da vida: retribuir à minha avó um pouco do tanto que ela havia feito por mim. Por causa da maneira com que saí de Imperatriz e também pelo orgulho ferido, eu precisava vencer, provando à tia Josefa e até à minha avó, que não era um imprestável ou um parasita. Estava certo que vovó se arrependera, mas nem por isso esquecera sua anuência tácita às insinuações da tia Josefa. Em minha gaveta havia centenas de cartas guardadas, escritas como desabafo pela grande saudade da criatura que mais amava no mundo. Estava certo de que ela também chorava minha ausência. A gente se amava demais para nos esquecermos em apenas um século.
31
Em 1997 encontrei minha mãe. Estava num prostíbulo, talvez o pior das cercanias de Juazeiro. Mechas de cabelos brancos, seios dependurados, trapo humano. Eram 11 horas quando entrei no cubículo imundo que exalava um fedor insuportável de amônia e cigarro. Estirada numa cama também suja e desmantelada, ainda bêbada, não dizia coisa com coisa, não me reconhecia. Por causa disse falei pouco, retirando-me transtornado a fim de tentar coordenar as ideias e tomar uma decisão.
Preparei um dos quartos. Nesse tempo eu já morava numa pequena casa alugada e levava uma vida decente. Não pude curtir a emoção dos encontros novelescos. Foi algo maquinal, fora dos princípios cristãos. Foi também um golpe duro, mais um em minha vida. Não aconteceu com abraços e sorrisos… nem com lágrimas.
Os três primeiros meses foram duros, tão duros que me fizeram esquecer a dor de ter deixado minha avó quando saí de Imperatriz. Depois desse prazo, dia a dia, minha mãe foi mudando. Falou de Maria do Carmo, minha irmãzinha que foi dada por ela mesma a um amigo e que por sorte, estava estudando num colégio de freiras na capital do Ceará. Encontrei-a no início de dezembro de 1997. Aí sim, pude sentir a emoção de abraçar o meu sangue e acreditar que Deus ainda não havia desistido de mim. Cheia de fé, alegre, bonita e, apesar dos reveses da vida, muito feliz. Passamos o Natal juntos, em minha casa. Minha mãe sorriu, talvez pela primeira vez em muitos anos. Conversamos até a hora da Missa do Galo. Principalmente em mim, nunca se passaram tantos planos.
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Em 2001 consegui comprar uma casa em Imperatriz. Era a primeira parte daquele plano que se realizava. Ela tinha quatro quartos, despensa, sala, uma cozinha, dois banheiros e um quintal razoável. Não era de luxo e não havia sido totalmente quitada, mas estava dentro de meu orçamento. Isso me tranquilizava. Vovó ainda não sabia de nada, nem de meu paradeiro. As cartas continuavam sendo escritas e engavetadas, num estranho sigilo que, às vezes, até eu mesmo estranhava.
Nessa época eu já desempenhava várias funções na TV de Juazeiro, e recebido resposta positiva da TV Capital de Imperatriz para trabalhar. Garantia-me assim para que meu plano não falhasse. Todos os dias eu falava com minha irmã Maria do Carmo e ela nunca deixou de me dar a maior força, como se fizesse parte dos desígnios de Deus para resgatarmos nossa família, principalmente nossa mãe. Agora eu possuía o necessário e por isso, e só por isso, considerava-me o homem mais rico do mundo. A felicidade era tanta que, às vezes não me deixava dormir. Ficava debruçado na janela, olhando as estrelas e cismando o futuro. Via o sol despontar, expulsar a negridão da noite e encher a terra de movimento e cantos. Que estaria acontecendo comigo, com minha alma, com o meu coração? A profecia de vovó ia-se cumprindo e ela, merecidamente, fazia parte dessa profecia.
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Nunca irei conseguir explicar ou definir a emoção de meu encontro com vovó. Durante uma semana, minha mãe, minha irmã e eu ficamos arrumando a nova casa, mantendo-nos, praticamente, escondidos, para que nada atrapalhasse a surpresa. Passei quase três dias olhando detalhes e arrumando o quarto da mulher que mais me amou e que mais amei na vida.
Quando tudo estava pronto, entrei no meu carro e não resisti à tentação de passar pela Rua São Pedro para dar uma olhada em nosso antigo casebre. Ainda estava lá, carcomido, escorado, quase desabando. Minha intenção era apenas olhar e saber se minha avó ainda morava ali. Por coincidência ou fatalidade, sentada num tamborete em frente à porta da sala, esfregando uns lençóis brancos dentro de uma bacia, estava ela. Cabelos brancos e desalinhados, uma roupa de musselina surrada, escura como a desesperança, descalça… Todo o meu corpo enrijeceu-se, meus olhos encheram-se de lágrimas, meu coração parecia sair do peito. Descontrolado, fora de todo plano, brequei o carro e saí correndo para ela. Nada conseguia deter minha emoção, nada. Atirei-me ao seu pescoço e rolamos pelo chão. Eu só dizia: vó, vozinha, quanta saudade! …
Ela demorou a entender o que estava se passando, mesmo porque seus olhos cansados, mais os vergastes do tempo em mim, impediam-na de reconhecer no estranho sujeito, o garoto dependente de anos atrás. Quando se deu conta, caiu em prantos e de joelhos balbuciava palavras tão cheias de emoção e fé que só Deus, certamente, soube decifrar. Mas eu estava certo que se referiam à dor daqueles longos e intermináveis anos de separação. Mais tarde ela me diria: “Se eu não agisse daquela maneira, filho, você ainda estaria aqui, agarrado à minha saia e sofrendo todo tipo de humilhação. Foi uma decisão dura que me doeu muito, mas que se fez necessária para que a profecia se cumprisse. Hoje vejo que você é mais senhor de si, cresceu espiritualmente e pela maneira como está se vestindo, parece que se arrumou na vida. Só Deus sabe quanto tudo aquilo me custou!”
Só adentramos no barraco quando a noite caiu. Vovó parecia tentar evitar que eu entrasse, como se estivesse querendo poupar-me da dor de sua miséria.
Desconcertada, gaguejou:
– Filho, hoje não tenho nada para oferecer-lhe. Sabe…
– Não se preocupe, vó, não tem qualquer importância. Venha aqui pertinho de mim. Amanhã bem cedo a senhora arruma suas coisas. Virei buscá-la tão logo o dia amanheça.
Ela olhou dos lados e sorriu: não tinha fundamento a minha observação, porque todas as coisas que possuía se resumiam a menos de um saco pela metade. Então observei:
– Não tem importância, vó. Nós nos conhecemos bem.
E para cortar o clima desagradável da miséria extrema, perguntei:
– E tia Josefa, minhas primas…
– Josefa mudou-se para o interior. Não tinha mais como sobreviver na cidade.
– Meu Deus! Mas a senhora está sozinha há muito tempo? Nunca ficou doente?
– E gente como eu tem tempo de ficar doente?
– E como conseguiu manter-se sozinha todo esse tempo?
– Toda uma vida, você está querendo dizer, não é mesmo, filho?
Acho até que fiquei vermelho. De fato, ela sempre cuidava de si e de quase todos nós. Sozinha, certamente era mais fácil sobreviver. Ela continuou:
– Sei lavar roupa. Ultimamente tenho poucos fregueses. Meus olhos cansaram, e não enxergam direito. Às vezes deixo manchas nas roupas e os fregueses reclamam.
Às 23h, depois de alguns pães e café, retornei para minha casa. Maria do Carmo e mamãe estavam acordadas e aflitas. Ficaram um tanto decepcionadas, mas acabaram tendo de entender. Meu reconhecimento, meu amor e minha saudade foram superiores às minhas forças e decisões. Também naquele resto de noite não consegui fechar os olhos. Mais uma vez vi o sol nascer. Naquele dia ele me pareceu a luz de minha alma. Enquanto mamãe e Maria do Carmo davam os últimos retoques, fui buscar minha avó. Afirmo hoje a quem estiver lendo essas coisas, que se possível fosse, eu daria mais trinta e um anos de minha vida para repetir o prazer que senti naquele momento.
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Assustada, vovó colocou sua pequena tralha no bagageiro, perguntando, em seguida, se o carro era meu. Respondi que sim. Notei que estava muito insegura. Não lhe era fácil acreditar que eu, aquele menino dependente, pudesse, digamos, ter vencido na vida. Na verdade, considerava-me um vencedor, tipo aluno que passou no vestibular. Sabia que a vida não seria fácil, que teria de mantê-la com o trabalho, mas agora tudo isso só iria depender de mim. Tentei acalmá-la:
– Vó, as coisas mudaram muito. Não fique assustada. Não matei, não roubei, não pratiquei ato algum que possa manchar os seus ensinamentos. Logo ficará sabendo de toda a verdade. Agora quero apenas que confie em mim e venha morar comigo.
– Onde fica sua casa?
– Não muito longe daquela sua primeira maloca, aquela que a Prefeitura queria demolir, lembra?
Ela pareceu ficar mais calma, mas eu sabia que sua cabeça revoluteava, que tudo o que estava acontecendo era demais para ela, já perto dos setenta, cansada, vergastada pela crueldade do mundo e da vida. Quando freei o carro, ela perguntou por que havia parado.
– Esta é a nossa casa, vovó.
Certamente não estava acreditando no que, embora não muito bem, estava vendo. Ficou calada. Estacionei, desci, abri-lhe a porta, apanhei seus pertences, coloquei meu braço sobre seus ombros e fomos caminhando. Minha mãe e Maria do Carmo, conforme havíamos combinado, mantinham-se escondidas. Chegamos à sala. Coloquei o saco que continha as coisas de minha avó num canto e depois assentei-a no sofá, disposto e bem em frente ao corredor. Um som, de início quase inaudível, depois alto e claro, invadiu toda a casa:
“Oh, minha mãe, minha santa querida!
És o tesouro que tenho na vida,
Eu te ofereço esta linda canção,
“Mãezinha do coração…”
E enquanto Timóteo, com seu vozeirão enchia nossos corações de saudade, Francisca, minha mãe, apareceu no corredor, trazendo nas mãos um lindo ramalhete de flores coloridas. Veio em passos lentos, os olhos molhados. Parou em frente. Vovó não a reconheceu. Ela disse, então:
– Mãe, sou eu, sua filha Francisca.
Vovó começou a respirar descompassadamente. Percebemos que não estava se sentindo bem. Achegamo-nos. Ela acabou desmaiando mesmo.
– Calma – disse para minha mãe – não se preocupe, foi apenas emoção. Ela ainda nem se deu conta direito do que está acontecendo.
Maria do Carmo, que já se preparava para entrar em cena, logo após as flores, largou o enxoval que trazia para a vovó e acorreu célere. Duas horas depois, tudo estava vem. Vovó continuava atônita, desconcertada. Não sabia se tudo aquilo estava acontecendo ou se apenas sonhava. Naquela noite fiz questão de amarrar minha rede bem pertinho dela. Conversamos até que nossas frases começaram a parar pelo meio, numa demonstração inequívoca de que o cansaço estava nos vencendo. Para que aquela casa fosse o céu, naquela noite, só faltaram os querubins.
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Em 2003 encontrei meu pai. Estava numa clínica em pele e ossos. Era mais um entre os milhões que definhavam pelo mal do século, aguardando apenas o último suspiro.
Minha mãe parou na porta, agarrou-se ao portal e não conseguia, sequer, bater as pálpebras. Seu olhar cravou-se naquele espectro definhado, retrocedendo-lhe os anos na mais triste lembrança do irreversível. Quantas lembranças, quanta felicidade, quanta dor agora desfilava na passarela do passado.
Minha mãe não sabia se devia atender ao instinto de vingança ou aos apelos do coração, sempre a perdoar. Maria do Carmo tomou-a pelo braço:
– Coragem, mãe, muita coragem.
Despertando do estupor, deixou o braço esquerdo escorregar pelo portal e, como uma limalha atraída por ímã, foi caminhando para o leito. Meu pai, embora lúcido, parecia, ou mesmo não reconhecia ainda as pessoas que ali estavam. De repente, seu olhar e o de minha mãe se encontraram. Se havia alguma coisa que nem a doença, nem o tempo jamais apagariam, era o olhar penetrante e apaixonado de minha mãe. Ele a reconheceu. Sua respiração tornou-se descompassada, ofegante e embora sem trejeitos, suas faces foram sendo molhadas por lágrimas incontroláveis. Só Deus poderia avaliar quanto havia nelas de emoção e arrependimento.
Mamãe ajoelhou-se à cabeceira da cama, levando as mãos trêmulas ao rosto do homem que a fez a mulher mais feliz e também mais infeliz deste mundo.
Chamei minha irmã e fomos para o corredor deixando-os sozinhos. De minha parte não queria testemunhar nem passar a ninguém o que ali iria acontecer. Em menos de vinte minutos, voltamos. Minha mãe estava com o rosto molhado, mas seus olhos pareciam revestidos com o brilho de seus dezesseis anos. Certamente não conversaram, não disseram nada: apenas ficaram olhando um para o outro. A vida, por si, fora todo o diálogo. Cada retina se transformara numa telinha que refletia o filme de suas vidas.
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Agora estávamos reunidos novamente. Apenas Sílvia não se encontrava. Casara e fora morar em Ribeirão Preto, no estado de São Paulo. Estava muito bem, muito feliz e prometia sempre trazer as duas netinhas para matar a curiosidade e a saudade da vovó. A família de meu pai não sabia como agradecer-nos por tirar-lhe o incômodo de cuidar de seu filho na situação em que se encontrava. Mamãe não lhe saía da cabeceira e a doença, depois de longo período estabilizada, começou a regredir. Por todo o mundo a AIDS dizimava e já se falava em enterros coletivos, tipo emergência de guerra. Papai, no entanto, resistia, melhorava mesmo.
Quanto a mim, ainda não havia obtido do coração qualquer decisão definitiva sobre a vingança ou o perdão. Não sei porquê, apesar de minha mãe não ser também doce lembrança, não conseguia odiá-la ou guardar-lhe qualquer rancor.
Sofrera demais. Pagara e deixara saldo.
Quantas vezes, sozinho, debruçado no peitoril da janela, meu pensamento divagava pelo infinito em busca de argumentos, de respostas que nunca vinham. Lembrava os predestinados do passado, mas a história parecia relatar apenas os grandes predestinados. Aos poucos ia entendendo que também há os pequenos predestinados. Nunca duvidara das palavras de minha avó: “Não foi por acaso, Siriano. Deus tem um plano, alguma missão para você. Um dia verá!”
E, de fato, eu vi esse dia!…