APRESENTAÇÃO a mim solicitada sobre o livro “O JUMENTO”, de Pedro Mário Nardelli
DEPOIS DO MUTUM, O JUMENTO
Conheci Pedro Mário Nardelli, pessoalmente, no ano de 1979. Jovem, cheio de planos e sonhos: exemplo digno de que se é possível, com fé e perseverança, conseguir quase tudo o que se almeja. Se fecho os olhos para avivar melhor o passado, vejo-o estacionar seu carro na frente de minha casa, lá em Linhares, no Espírito Santo, sorridente e entusiasmado, gritando como se fosse uma criança que não se contém de felicidade. Iríamos para o estado de Alagoas, mais precisamente, para São Miguel dos Campos, onde ele, depois de cansativas pesquisas, confirmara a presença do Mutum de Alagoas. Já nesse tempo, da Mata Atlântica, apenas resquícios da exuberância de suas florestas que, tristemente, cediam lugar aos canaviais. Ainda não se descobriu uma convivência pacífica entre as flores e os porcos; entre a Natureza e o progresso; entre a partilha e a ganância.
No seu livro científico “A Preservação do Mutum-de-Alagoas”, na página 137, Nardelli desabafa: “Assistimos desolados, durante 17 meses, à destruição inexorável, talvez do último baluarte de uma forma de vida, imolada em holocausto à ambição do homem.” É que ali, nos grotões em que não compensava o plantio da cana, agonizavam algumas espécies de mutuns e inhambus que não existiam em qualquer outra parte do mundo.
Nardelli, hoje, embora o tempo não lhe fizesse exceção, continua com o entusiasmo de seus “tempos de menino”. Sua gratidão por existir é contagiante; sua conformidade, ante os reveses, um constante exemplo a ser seguido. Soergueu-se da pobreza, conheceu a riqueza, sem jamais postergar os mais nobres sentimentos de um homem digno e preocupado com a natureza e com os seus semelhantes. Nunca abandonou suas origens. No vaivém da moda, das leis e do progresso, a fidelidade a seus princípios. Vê, na alegria de viver, no desapego às coisas materiais, na compaixão às crianças abandonadas, na dor de perceber o desrespeito à Natureza… as principais razões de sua estada neste mundo.
Hoje, como é mais que natural e normal, o peso do tempo dificulta-o viajar e pesquisar lugares ermos e hostis, prenhes de carrapatos, mosquitos, cobras… para salvar, da extinção, espécies ameaçadas. Mas, Nardelli não desiste. Há o que fazer pela humanidade em qualquer tempo e lugar. Mudou de “modalidade esportiva”: no enfraquecimento do corpo, o fortalecimento do espírito. Foi assim que ele encontrou um meio salutar de continuar sua missão em prol de um mundo melhor.
Sentado, caneta em punho, sem fôlego para longas viagens de carro, mas sem desistir delas, resolveu encilhar o “Jumento” e partir para uma nova missão: orientar aqueles que padecem sem que a isso fosse obrigatório.
Já li muitos livros de autoajuda (inclusive escrevi um), mas nenhum se compara com os conselhos simples e precisos passados por Nardelli. Linguagem despojada, sem rebuscamento; objetiva, visando a expor, claramente, os meios para se ter mais tranquilidade, paz e felicidade; coloquial, pondo na roda dos bate-papos, a fieldade da linguagem corriqueira dos protagonistas. Enfim, mais preocupação com o fim do que com os meios para alcançá-lo.
Nardelli mostra que, economizar é pensar naqueles que passam fome; é proteger a Natureza; é respeitar e interagir com o mundo. É um livro diferente, singular na abordagem dos assuntos. Entre meditações, devaneios, poesia e humor, descobrimos, nele, o quanto somos imperfeitos e mesquinhos; o quanto mais podemos fazer, se nos despirmos da vaidade, do orgulho e, principalmente, do egoísmo. O quanto de dores e lágrimas podemos evitar, utilizando, apenas, o privilégio da inteligência, na precaução, na sensatez, nos cuidados e nas previsões lógicas.
“O JUMENTO” é um livro que, mesmo que o encontrasse sob o gelo do Polo Norte, saberia ter sido escrito por Nardelli. Somente um homem preocupado com os seres humanos e com a Natureza que o cerca, seria capaz de escrevê-lo. Livaldo Fregona
Bem, como amigos – comungando os mesmos ideais – ele, bem acima; eu, tentando subir, começamos a estreitar o relacionamento. Nesse tempo, ele estava escrevendo o livro científico A PRESERVAÇÃO DO MUTUM-DE-ALAGOAS (The Preservation of the Alagoas Curassow). Nem é preciso dizer que foi editado em duas línguas. E – por mais estranho que possa parecer – ele me pediu para escrever três páginas sobre a Mata Atlântica. Mas não seria nada científico. “Quero que você desenvolva o tema de forma poética e que a ideia seja incutida na divagação”. Confesso que passei dias imaginando como iria eu extrair de minha limitação, o pedido de um tão grande amigo. Bem…. Letra por letra, parágrafo por parágrafo, tentei. O certo é que eu não podia negar o pedido. No fim, enviei a ele o que vai abaixo. Certamente, ele nunca se arrependeu tanto, mas o texto saiu no livro. Ei-lo:
Mata Atlântica: realidade, sonho e saudade
Livaldo Fregona
Um homem de nosso século, às margens do oceano revolto, dedos enclavinhados no queixo, divide o olhar entre a espuma das ondas e o mato seco da encosta. Seus pensamentos retrocedem meio milênio, na ilusória visão de três modestas embarcações que aportam no litoral baiano. Em sua divagação ele ouve Caminha, com seu sotaque lusitano, lendo a Cabral e ao Frei Coimbra a carta sobre o descobrimento de nosso País, carta que seria enviada posteriormente ao rei D. Manuel I.
Em devaneios e sonhos, ele se reveste da fantasia de um semideus, eleva-se aos páramos da quase onipresença e lança um olhar admirado pelas encostas do novo mundo descoberto: Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, BRASIL.
Permeio a liames de cipós e galhos retorcidos, sobre raízes descobertas pelas torrentes, convivendo com feras e insetos, no delírio de um dos mais exuberantes viveiros genéticos do planeta, ele vê a mata sombria de adernos, vinháticos, angicos, angelins, cedros, jacarandás, canelas…, mais de cento e noventa mil espécies de plantas e animais, equilibradas debaixo de normas misteriosamente preestabelecidas pelo Criador. No topo da cadeia, um guerreiro Tupinambá retesa o arco à cata do mateiro que fareja o alimento no atrativo suave da flor do pequi.
O semideus do sonho espreita o tempo no desenrolar da história e da tradição. Do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, como se fosse um natural tapete costeiro decorado com bromélias e orquídeas, explana-se, maravilhosa, A Mata Atlântica. Ele admira estonteado, aquele veio de riqueza, aparentemente inesgotável.
Na epopeia do descobrimento, na pujança das árvores que parecem se elevar às nuvens, na harmonia do relevo, no embalo das ondas, na sinfonia dos tangarás orquestrando sob a suavidade dos alísios, ele vê o próprio Deus estender a rede para um descanso merecido depois da cansativa fiscalização às galáxias de sua morada.
De repente, o Criador se ergue: ele estremece. Um barulho estranho invade a paz daquele ambiente sacrossanto. Facões, foices, terçados e machados golpeiam as árvores indefesas; motosserras, fogo e jogo de interesse completam a destruição. Tombam as faveiras, as braúnas, as sucupiras, os jatobás, os vinháticos, as maçarandubas, os tapicurus, os bacumixás…; nem o pau-brasil, apesar de sua contribuição em denominar uma das maiores nações geográficas do mundo, escapou. Restava então, na lápide de algum parque, um epitáfio de saudade: Caesalpinia echinata.
No lugar do colossal tapete verde que margeava quase toda costa brasileira, o sonhador vê, agora, canaviais e engenhos, siderúrgicas e usinas, cidades e vilas. Num respeito à liberdade prometida, Deus não interfere diretamente: deixa que o homem trace seu próprio destino.
O semideus do sonho, agora se transforma em semideus da saudade. Já não há mais as farinhas secas, as estopeiras, as oiticicas, os louros, as gendibas, as perotingas, as perobas, os paus-sangue, as cabiúnas, as bicuíbas, os roxinhos, as moçutaíbas, os parajus…, não, já não existem em profusão, como antes.
Quantas vezes, ali, em tempos idos, o velho Arariboia, sentado sobre as raízes expostas de um pau-d’arco, contou aos curumins da tribo, histórias fantásticas sobre a origem das estrelas, da noite, do fogo, do travesso Macunaíma e de suas próprias peripécias na luta contra os franceses; quantas vezes o preto velho, alquebrado pelo trabalho e pelos açoites, sentou nas coxas o pretinho ingênuo para falar-lhe de uma terra distante que o definhava de saudade; quantas vezes, o ganancioso e frustrado estrangeiro morreu doente ali, na vã esperança de uma fortuna fácil.
Já não se vê, à sombra dos jequitibás, o canto pela chuva, nem o grito de guerra dos Tupinambás, dos Caetés, dos Tamoios, dos Tupiniquins ou dos Temiminós. Fiapos de redes balançam dependurados; ossos espalhados atestam o massacre criminoso.
Uma tristeza singular se apossa do espectador da saudade. Não fica difícil antever o apocalipse de uma das mais belas florestas do mundo. Milhares e milhares de espécies e plantas e animais desaparecem a cada década.
Ele sabe que, embora não se leve em conta, não há um átomo vagando ao léu neste planeta, nem uma margarida desabrochando por acaso.
De além-mar, vozes tonitruantes chegam-lhe aos ouvidos: são os povos que destruíram suas reservas, poluíram o planeta, enriqueceram e, agora, reclamam o rareamento do ar puro. Falsos ecologistas se apresentam em busca de mais uma oportunidade de ver seus nomes em tarjas brilhantes como defensores e salvadores da Natureza. É um novo e maior perigo que se aproxima. Se os satélites que denunciam as queimadas virassem as lentes para os bastidores políticos, certamente iriam detectar a iminência de um acidente ecológico ainda muito maior. Certamente, em busca de mais poder, riqueza e prestígio, os falsos ecologistas não hesitarão em desconhecer, sequer, o sagrado direito de soberania, de deixar à geração futura, ao menos um pouco do esmero e do cuidado do Criador.
Mas, no meio de todos este falso aparato, surge uma esperança: homens bem-intencionados que erguem a bandeira da sinceridade e, mesmo diante dos entraves burocráticos e inoperantes, lutam para salvar da total extinção, o mico-leão-dourado, o jacu-taquara, o mutum-de-alagoas, o macuco de São Miguel dos Campos.
A Associação de Defesa da Jureia (parque com ecossistemas originais da Mata Atlântica), o S.O.S. Mata Atlântica, a CETESB e o IBAMA, embora infiltrados por alguns ecólogos oportunistas, lutam – não mais para salvar a Mata Atlântica – mas, ao menos, para conservar o que restou.
Jamais se saberá o que a humanidade perdeu com a destruição desta riqueza. Sabe-se, apenas, do que ainda, conscientemente podemos perder. É neste estágio que sobressaem os verdadeiros idealistas que, mesmo em detrimento de seus próprios interesses e lutando contra todo tipo de burocracia espúria, tentam conscientizar o povo do insofismável refrão: se a Natureza morrer, morreremos com ela.
E, pela última vez, caminhando já tropegamente e quase sem esperanças, o nosso arauto da história, no romantismo que refrata a crueza do crime, vê mãos estendidas num alento de fé. Na angustiosa expectativa do fim, a esperança de um novo começo. Os seres vivos só se desenvolvem em meios favoráveis. Quando a poluição se tornar insustentável e o oxigênio insuficiente, os seres humanos só terão duas escolhas: morrerem juntos ou cuidarem da Natureza. É a vingança tácita que tarda, mas não falha.
Crestado o último tronco, nosso semideus, agora da saudade, acorda do pesadelo. Não há mais motivos para sonhos e devaneios agradáveis. Já não ouve o esturro da pintada, o matraquear dos papagaios, nem os guinchos dos macacos; já não escuta os gemidos dos mutuns no dossel da floresta, nem o chororocado da macuca nos grotões sombrios. Da orquestra de querubins alados, restam apenas os apitos estridentes dos trens de ferro, o barulho ensurdecedor dos escapamentos, a zoada louca das usinas. O progresso desenfreado insurge ameaçador. A Natureza se retrai.
E nosso homem enxuga o rosto suado pelo pesadelo da retrospecção. O mar ainda azul – testemunho presente de toda degradação – continua ali, impassível e acusatório.
Um dia, quem sabe, outro homem se sentará ali e no chuá-chuá das ondas dormirá e sonhará com uma densa floresta de orquídeas e bromélias. Ele caminhará, desviar-se-á de troncos seculares e esticará sua rede sob as copas fechadas das jueranas. Agora, porém, nosso semideus desperta e volta à luta. Salta sobres hastes imaginárias, apara o chapéu para diminuir o calor das chamas que, apesar dos séculos, ainda ardem em sua consciência – parece ainda sonhar. Mas, está acordado, andando sob o calor intenso de um sol causticante. Ajoelha-se, então, e ergue a cabeça. Não há, por perto, uma sombra sequer para socorrê-lo. Apenas o mormaço envolve-o vingativo. Exclama comovido, numa oração curta de desespero:
– Meu Deus, que fizemos!
Version:
On the shores of a turbulent ocean, a man of the modern era clasps his chin in his hands as he gazes in turn at the foamy waves and the dry forest on the hillside. His thoughts slip back 500 years, to the illusive vision of three simple ships which arrived on the coast of Bahia state. In his reverie, he tunes in to the Portuguese acccent of Caminha reading a letter to Cabral and Friar Coimbra with news of the discovery of Brazil, and which was later sent to King D. Manuel I.
In his ramblings and………………..