TINAMUS GUTTATUS


Para leigos no assunto, o Guttatus, vulgarmente conhecido – entre outras denominações caboclas – como pé-de-serra, tem a aparência de um Tinamus Solitarius jovem. Mas, na verdade, é uma espécie bem diferente e com estranhas características. É o menor dos Tinamus (inhambus que empoleiram para dormir) e o único que, praticamente, não abre o bico para piar. Nota-se, olhando bem de perto, uma separação milimétrica entre os bicos.
Seu piado é, também, o mais grave entre os emitidos pelos Tinamus, começando com uma nota mais longa, um leve intervalo e uma finalização rápida. Ouça o piado. O macho pia “mais agudo” que a fêmea, é um pouco menor, tem mais pintinhas brancas nas penas, principalmente das asas e sempre me pareceu que o macho é dominante, pois, normalmente, é quem aparece na frente, quando vem acasalado. Não bastasse, é o que mais responde ao ser desafiado.A quem deseje convidá-lo a aproximar-se, fora do tempo de reprodução, recomenda-se muita paciência e espírito prevenido para uma frustração. Costuma levar horas para se aproximar. Note que falei “aproximar”, pois daí a se mostrar, são outros tantos minutos que, às vezes, nem se completam. Note que estou falando do que mais acontece, porque, em tempo de reprodução, se você se postar no território do casal, é possível que ele venha sem piar e correndo. Aí é uma questão de ciúme e de provar quem é quem naquela área. O território de um casal de Guttatus vai um pouco além da distância em que seu piado é ouvido. Atinge, mais ou menos, um raio de 300 metros.

Outro costume, ao menos para o caçador, irritante, é ele responder bem próximo e não se apresentar. E aí, haja paciência, pois passar algumas horas e, por fim, retornar, é o mais comum. Outra característica bem acentuada é, ao chegar (quando chega), fazê-lo com determinação: parte do lugar em que se encontrava e vem direto ao chamado. Ao chegar, não encontrando o desafiante, segue o caminho. Depois desta verificação frustrada, é raro alguns deles retornarem.

Em cativeiro, não gosta da companhia dos Tinamus Solitarius, que, sem que eu conheça a razão, detestam os Guttatus. Talvez por serem desconhecidos, pois, na natureza, onde existe o Guttatus, não existe o Solitarius. Essas duas espécies, se obrigadas a conviverem, representam cães e gatos de nossas casas, sendo o Guttatus, é claro, o gato. Em cativeiro, nunca consegui que coabitassem. Passam alguns dias e até meses como se não se preocupassem um com o outro. De repente, você encontra o pobre Guttatus escalpelado ou morto. Como todo inhambu, na época da reprodução, mais de uma fêmea ou mais de um macho, dificilmente viverão em harmonia. E, em cativeiro, sem espaço para o derrotado fugir da visão do adversário, é morto por ele. E a morte é sempre horrível, pois o vencedor, depois de dominar o concorrente, vai beliscando a cabeça, arrancando os pedaços, descarnando até levá-lo a uma morte cruel.

Como sou péssimo na descrição de plumagem, deixarei isso por sua conta, inserindo fotos que vão dos ovos à idade adulta. Veja Guttatus no link FOTOS desta homepage.

Os cruzamentos dos Guttatus são semelhantes aos dos Solitarius. A fêmea agacha-se, entreabre as asas, estica o pescoço rente ao chão. O macho sobe, sapateia alguns minutos e, fica aguardando que a fêmea erga lateralmente a cauda. Ela se eleva e ele desce, unindo as cloacas, com o macho introduzindo seu órgão masculino. Havendo sucesso, ele fica com o pênis dependurado e segurando o pescoço da fêmea por alguns segundos. Sua postura normal é de quatro ovos e a cor é semelhante à dos ovos dos Solitarius, Majores, Taos… São arredondados como os ovos das Taos, porém bem menores, talvez, a metade. Veja uma ninhada de cinco ovos no link FOTOS.

O tempo de incubação é de 19 dias e como todo inhambu, também o Guttatus é extremamente apegado ao ninho depois das duas primeiras semanas de choco. Tive duas experiências incríveis atestando isso. No tempo em que eu trabalhava com madeira, nosso tratorista passou com a estrada rente a um grosso jatobá. Numa das catanas, sem que ninguém soubesse, um Guttatus estava chocando seus ovos. O trator passou e foi abrindo estrada. O auxiliar – aquele que vem atrás do trator retirando raízes do meio da estrada ou cortando galhos recurvados sobre a mesma – ao passar pelo jatobá, viu um Guttatus chocando. Como sabia que eu vivia pesquisando os inhambus, logo se apressou em me chamar. Não imagine minha surpresa ao ver o ninho, inclusive com alguns torrões de terra da estrada encostados nos flancos do Guttatus. Doutra feita, já lá em Uruará – lugar de anos de minhas pesquisas – o tratorista da firma chegou para o almoço trazendo uma tona nas mãos. Como não gostasse de caçar e nunca levava arma e, ainda por cima, trazia cascas dos ovos do ninho, acreditamos que, de fato, sem que soubesse, ele atropelou, de trator, aquele macho de Tao que preferiu dar a vida a abandonar seu ninho.

Em cativeiro é comum a gente erguer um inhambu, mesmo espantando, olhar o que choca e repô-lo à sua posição, sem que ele se retire do ninho.