ESTRANHA PASSAGEM

Em ESTRANHA PASSAGEM, o leitor deparar-se-á com vários tópicos que envolvem a vida das pessoas pobres, acaçapadas pelos bairros e cercanias das cidades. É um submundo dos marginalizados, onde a vida lateja na simplicidade e na miséria extrema.

Nos guetos atuais, os seres humanos nascem e morrem sem a mínima chance de opção e sob as vistas obcecadas de uma sociedade egoísta em que poucos se importam com o sofrimento dos irmãos.

O autor aborda com precisão esta realidade da vida. Mostra a torpeza da polícia, dos políticos e da própria justiça, com esmero e precisão. Mostra também que a felicidade está dentro das pessoas e que é estúpido e inútil buscá-la no conforto e na riqueza.

Busca em Deus a única saída sensata para os espezinhados: “Deus, somente Ele, é esperança para os oprimidos”. Em cada página o leitor encontrará as vicissitudes da existência, narradas com a crueza honesta da realidade. É o quarto livro do autor e seu segundo romance.

Parte do capítulo XXII, página 166M

O sangue descia pela perna desnuda de Marcos e uma sede incontida ressecava a boca. Pensou em gritar, mas isto poderia ser seu fim, e agora, não sabia porque, queria viver. Aguçou os ouvidos e certificando-se do silêncio, começou a arrastar-se pelo declive. Em cada movimento, o sangue esguichava. Com muito cuidado esfregou o alfanje numa vara, cortou-a quase serrando, fez dela um cajado e continuou seu caminho. A cada minuto as forças esvaíam-se e a dor aumentava. Ele continuava se arrastando em direção à água. Ganhou a encosta e viu, lá embaixo, o filete de água que escorria silenciosa e calma, entre folhas e raízes, insensíveis à torpeza que vingava a seu redor.

O silêncio grassava, profundo e mudo. Era um silêncio que pressagiava o fim, com sua presença acabrunhante e triste. Marcos parou, sintonizou cada sentido: tudo era quietude, expectativa, fim. Medo, angústia, ansiedade e arrependimento, eram as únicas companhias que, qual hienas e chacais, gargalhavam e espreitavam a presa, no seu labirinto de morte.

Mais e mais, a boca ressequida, a visão enturvada. Bem próximo, a tonteira o dominou e ele foi ao solo. Arrastou-se um pouco mais e suas mãos tocaram a água bendita. Sorveu em delírio aquele líquido com o qual Deus fizera emergir a própria vida. As vistas continuavam enubladas, a dor roía-lhe as forças e o suor gelado arrefecia suas têmporas. Num último esforço conseguiu sentar-se. Olhou para o ferimento, mas pouco viu do que a bala fizera. Passou a mão por cima e sua carne parecia anestesiada e insensível. Volveu os olhos e os últimos raios de sol, eram-lhe milhões de arco-íris a festejar em cores, o delírio do fim.

– Meu Deus! Disse ele sumidamente, entre as abantesmas da solidão, enquanto em sua mente, chispas de lucidez ainda festejavam seu desespero.

Nisso, ressoa nova explosão e ele cai de borco sobre a lama da margem. A água tingiu-se de vermelho e dezenas de vozes explodiram num só tempo:

– Acertamos, acertamos!…

– Parem, pelo amor de Deus!…

– Não atirem, não atirem!…

– Marcos, filho meu!…

E como se em todo tempo houvessem ensaiado, policiais, José, Djanira, Paolo e seus companheiros irromperam na barranca do riacho. Num relance de olhos, Paolo reconheceu Marcos pelas vestimentas e desceu célere ao seu encontro. Ajoelhou-se a seu lado erguendo a cabeça moribunda. Todo exangue, lábios lívidos, olhos sem brilho, respiração ofegante, Marcos balbuciou:

– Paolo, por que me traiu?

Paolo estremeceu e ia explicar, mas todos se acercaram, impedindo. José fitava aquela criatura e não podia vê-lo como filho, o filho que tanta amara, que corria pelas ribanceiras do Itinga e ria feliz dos passarinhos e das lagartixas assustadas; que mergulhava nas águas, alçava os jequis e pulava pelos campos como um potro, feliz por viver. Aquele menino que saía ao seu encontro, gritando cheio de felicidade:

– Pai, pai, cadê minhas balas? – E ele retirava o embrulho e entregava-o nas mãos trêmulas do menino. Depois, Imperatriz, engraxando sapatos, limpando carros e quintais. Extático, vendo medrar no coração a angústia do desespero, sentiu as forças faltarem e caiu prostrado ao lado do filho, sem sentidos, porque como dizia Sófocles: “Os mais lamentáveis dos males são aqueles que nós mesmo criamos”.

Marcos respirava em golfadas, enquanto a saliva tornava-se escarlate pelo sangue que advinha do tiro nas costas. Djanira, em sua debilidade feminina, gritava, e seus ecos perdiam-se entre os esturros dos guaribas que festejava a chegada da noite. Marcos – gritava ela, inconsolável – não se vá, eu adoro você. Tenho certeza que vai ficar bom. Eu gosto de você, meu irmão. Nunca mais farei nada de errado, eu prometo, juro…

E no meio do tumulto, os olhos de Marcos buscaram os gritos de amor de sua irmã e seus ouvidos ainda puderam filtrar e reconhecer aquela doce voz. Sua cabeça, num supremo esforço virou e debaixo da neblina de seu olhar, pôde ver aquela face morena, de um anjo de Deus a fosforescer no meio da escuridão da debilidade. Os cabelos revoltos e negros resplandeciam e as lágrimas refletiam a pureza daquele amor sincero. Marcos respirou mais profundo e num impulso de sua última resistência ciciou:

D-ja-ni-ra… fi-que com… Deus – e tombou a cabeça de lado, para nunca mais erguê-la.

O pica-pau avinhado, agarrado ao tronco seco do arvoredo, repicava seu clarim, anunciando o fim do dia. No eterno rodízio da floresta, o recolhimento dos diurnos e o despertar dos noctívagos. Pela floresta, fachos, tochas e lanternas seguiam pelas trilhas da desolação. Lágrimas contidas e soluços desolados misturavam-se aos passos trôpegos do cortejo. Os relâmpagos cortavam as distâncias, numa encenação de força e beleza – era o inverno que chegava.

No outro dia, com certeza o sol nasceria e toda fauna, em rebuliço voltaria a dar vida àquele mundo, dantes intocado. Os tangarás, as araras, os papagaios, as azulonas, os papa-formigas, os jacus-taquara, os galinhos-do-mato, as choronas, os pés-de-serra, as sururinas, os urus, os mutuns… e toda família daquele nicho, regozijar-se-iam numa onomatopeia de íntimos colóquios. A vida continuaria, a despeito dos sofrimentos, das angústias e das alegrias, porque ela nada significa para quem a perde, mas é eterna para aqueles que ainda a detêm nas mãos do Criador.

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